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Correspondentes de guerra:

uma visão presencial e espectral de


um cenário surreal
Cleber Almeida de Oliveiraª

Resumo: A relação entre a mídia e a guerra é antiga. Heródoto, consagrado na


historiografia como o “Pai da História”, registrou suas impressões da guerra dos
gregos contra os persas. No decorrer dos séculos, a cobertura e a escrita sobre as
guerras evoluiu, e surgiram os correspondentes de guerra: jornalistas especializa-
dos em cobrir as operações e registrar, em suas reportagens, a experiência brutal
do campo de batalha. O presente artigo analisa o trabalho dos correspondentes
de guerra junto à Força Expedicionária Brasileira, força militar enviada pelo Go-
verno Brasileiro à Itália para combater o nazifascismo, durante a Segunda Guerra
Mundial.
Palavras-chave: Mídia, correspondentes de guerra, Segunda Guerra Mundial,
Força expedicionária Brasileira.

Ao se tratar sobre a guerra, incerteza e de perigo – pessoal e


pode-se reconhecer, nas suas en- coletivo.
trelinhas, duas condições humanas Há que se perceber que a mis-
essenciais: a necessidade de supe- são do correspondente de guerra,
rar o milenar e permanente conflito seja ele um representante oficial –
sócio-civilizatório, de sobreviver e civil ou militar – de algum Estado
de aprender com os percalços; e a beligerante, ou então um especta-
necessidade de se relatar tudo o dor/observador civil autorizado –
que foi experimentado e vivenci- normalmente alguém dos meios de
ado nessas situações extremas de comunicação –, se encontra com-

__________
a Historiador, pesquisador associado do Centro de Estudos e Pesquisa de Histó-
ria Militar do Exército..
primido entre duas reais expectati- pre forma fascinados pelas narrati-
vas de narrativa da ―terra de nin- vas das guerras, desde as proezas
guém‖, a qual nada mais é do que a sobre-humanas dos heróis, pas-
apreciação e a descrição idiossin- sando pelas estratégias e manobras
crática tanto do cotidiano como dos vencedoras dos grandes líderes
melindres – ambas oficiais ou não militares até as histórias de penú-
– de qualquer conflito bélico. Nu- ria, sacrifício e superação dos
ma visão bem objetiva e simplista, combatentes – de ambos os lados –
sem as mesuras acadêmicas e/ou e das populações afetadas – direta
dos discursos oficiais, Karl Kraus e/ou indiretamente – por esses
exprime a noção segundo a qual ―A eventos colossais e dramáticos. E é
guerra, a princípio, é a esperança dessa demanda/necessidade que
de que a gente vai se dar bem; em surgem tanto as obras e os relatos
seguida, é a expectativa de que o in loco dos seus participantes como
outro vai se ferrar; depois, a satis- o discurso e a desinforma-
fação de ver que o outro não se deu ção/manipulação/reengenharia
bem; e finalmente, a surpresa de oficiais – ou de grupos rivais – dos
ver que todo mundo se ferrou‖, fatos.
enquanto que, numa linha mais Nesse particular, e com extra-
reducionista e apologética da ma- ordinária clareza explanatória,
triz salvacionista e evolutiva da Borges1 afirma textualmente que a
guerra como uma lógica atemporal história da correspondência de
e cíclica, afinada com os princípios guerra caminha a passos largos
da Realpolitik prussiano-teutônica, com a história da literatura e das
Bertolt Brecht afirmava que ―Não guerras, já que, em si, é impossível
conseguireis desgostar-me da guer- desvincular essas três vertentes.
ra. Diz-se que ela destrói os fracos, Fincando pé num passado tão lon-
mas a paz faz o mesmo.‖ gínquo quanto proximal, lem-
É inegável, e inquestionável, brando, por exemplo, a Ilíada
que, desde a aurora dos tempos, (Homero), de De Bello Gallico
povos, culturas e civilizações sem- (Júlio Cesar) e A Arte da Guerra

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(Sun Tzu), grandes batalhas foram pode ser e é encarado como uma
transformadas em livros épicos ameaça e o seu divulgador deve
(lidos até hoje) numa tentativa de enfrentar as consequências de seus
esclarecer para um povo o desen- atos. Por isso que é vital a compre-
rolar e as consequências de uma ensão de que o percurso dos cor-
guerra. Confirmando a noção ba- respondentes de guerra em seus
silar de que é fato que a guerra quase dois séculos de existência,
sempre exerceu um estranho mag- muitas vezes não como jornalistas,
netismo sobre as pessoas, ao relatar mas como integrantes da engrena-
sobre: o embate travado entre dois gem da máquina de propaganda
povos, o front, onde milhares de dos países beligerantes.
soldados dão suas vidas por um Cria-se, então, uma mística
ideal, muitas vezes desconhecido que cerca a figura desses partici-
ou que não lhes pertence, o patrio- pantes que nos mantém, ao mesmo
tismo de milhares de jovens que tempo, a par da situação no front e
não chegam à vida adulta, tudo isto dos demais aspectos das campa-
estimula o imaginário das pessoas; nhas militares sem que para isso
toda a aura que envolve a guerra precisemos abandonar a segurança
chama a atenção de quem fica na dos nossos lares/locais de trabalho;
retaguarda, protegido pelos seus e bem longe das zonas de conflito.
―bravos pracinhas‖. A guerra afeta a todos, mas muitos
Por princípio ético da profis- dos seus ferimentos não são nota-
2
são o papel do jornalista de infor- dos pelas vítimas no momento
mar os fatos, a ―verdade‖, torna-se imediato e nem deixam cicatri-
algo secundário dentro de um am- zes/marcas aparentes ou visíveis,
biente onde a hostilidade e a sede mas que com certeza irão gerar
pela vitória imperam, caminhando sequelas permanentes e dolorosas;
sempre no ―fio da navalha‖, na e os correspondentes de guerra não
perspectiva de que publicar qual- são exceção à regra.
quer coisa que coloque a nação em Focando nessa lógica per-
risco ou choque a opinião pública versa, mas inevitável, Diniz3 com-

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partilha da noção de que uma aura tanto, a rotina é dura e os perigos,
de glamour acompanha o trabalho constantes, mas o encanto que esta
de correspondente de guerra desde atividade exerce no cidadão co-
que o primeiro jornalista foi envi- mum, e entre jovens e jornalistas –
ado a um campo de batalha para ou mesmo jovens jornalistas – é
relatar seus horrores, e que isso se uma constante.
deu na guerra da Crimeia, em Para quem nunca esteve fisi-
1854, William Howard Russel, do camente presente e/ou atuando
jornal The Times, mandava seus rotineiramente numa zona de con-
despachos via telégrafo. Assim, um flito, num front de combate teorizar
século e meio depois, as notícias se sobre como os fatos são percebido
propagam em tempo real, com o e a maneira pela qual as notícias
diferencial de que mesmo quem devem ser elaboradas e veiculadas
não é jornalista profissional pode não passa de um mero, e cômodo,
ser convertido em porta-voz de exercício acadêmico/intelectual
informações – por exemplo, vídeos com as vantagens inerentes do
feitos por celular e postados na distanciamento seguro da possibi-
internet da Guerra da Síria por lidade de sofrer efeitos – diretos ou
moradores locais. colaterais – do ambiente confla-
Usando de uma licença poé- grado. Trocando em miúdos, tais
tica ingênua e pueril4, grande parte postulados não passam de concei-
do senso comum considera que tuações desprovidas de uma prática
trabalhar em zonas conflagradas comprobatória, mas com o adendo
para mostrar ao mundo as atroci- de que se tais produções estiverem
dades de um conflito armado é fundamentadas em relatos criveis e
encarado como o lado mais ro- consubstanciados por agentes que
mântico da profissão, mas o cotidi- passaram por tais cená-
ano daqueles que estão no front é rios/contextos – da miséria e da
bem diferente. Num viés mais rea- estupidez humanas –, há sim valor
lista, o correspondente de guerra agregado a elas.
ganha fama e visibilidade, no en-

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O trabalho desses profissio- volta de 1914, quando do início da
nais é tão necessário quanto poten- primeira grande guerra com a im-
cialmente perigoso, e mesmo mor- posição da censura governamental,
tal, há que se deixar de lado a ilu- foi a era em que as mídias cultiva-
são romântica e enganosa de que ram e alargaram o seu poder de
por simplesmente serem o que são influência sobre os cidadãos co-
e por fazerem o que fazem os cor- muns, no que toca aos conflitos
respondentes de guerra se tornam bélicos. Nesse período áureo, os
imunes a qualquer artefato bélico, correspondentes passaram a ser
arma ou retaliação dos beligeran- vistos como heróis, não só pelos
tes, ou então são agraciados com leitores, mas também por si mes-
algum dom divino de ―corpo fe- mos, colocando-se no centro das
chado‖ no desempenho das suas histórias que contavam e culti-
funções. Guerras matam pessoas, vando a sua própria figura, com
mutilam e causam feridas/sequelas duas consequências atreladas: os
no corpo e na alma, não impor- editores e diretores das publica-
tando se são combatentes – solda- ções, por sua vez, fizeram uso da
dos ou forças não convencionais –, liberdade de que dispunham e edi-
população civil, desavisados mi- tavam tudo sem qualquer censura;
grantes ou espectado- e os leitores não podiam estar mais
res/observadores/relatores desses satisfeitos.
conflitos. Sucumbindo ao embate mer-
cadológico6, o problema deste cres-
BREVE HISÓRICO E PE- cimento foi permitir a criação da-
RICULOSIDADE INCUTIDA quilo que conhecemos como sensa-
cionalismo, o yellow journalism,
Desde as primeiras coberturas jornalismo amarelo, pois devido à
jornalísticas das guerras, Carvalho5 enorme liberdade de que as publi-
demonstra que daí em diante inici- cações dispunham, alguns jornais
aram-se os anos de glória da im- começam a praticar um falso jor-
prensa que chegariam ao fim por nalismo, que aliado à procura de

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maior lucro, começa a transformar guerra prestes a começar, algo
invenções em realidade e mentiras tinha de ser feito para travar o po-
em verdades jornalísticas. Respal- der dos media; os jornais tinham de
dando a veracidade de tal distor- ser mais controlados, o que levaria
ção, o caso mais flagrante, e talvez a uma nova era do jornalismo de
o maior exemplo destes eventos, guerra, a da censura preventiva.
remete para o magnata da imprensa Complementando a informa-
americana William Randolph He- ção acima8, a verdade é que apenas
arst, dono do New York Journal, a partir de 1915 os jornalistas pas-
que à procura de maiores lucros, e sam a poder cobrir a guerra, no
na tentativa de bater o rival New entanto, o grupo seria escolhido a
York World, fez da guerra pela dedo (sistema pool) e apenas cinco
independência de Cuba uma autên- jornalistas aprovados seguiram
tica novela. para a frente. E trabalhando sob
Desde então, com um maior uma censura apertada e altamente
volume de recursos de comunica- controlada pelos militares, apenas
ção e de rapidez de transmissão de as informações da vida das trin-
dados7, a guerra torna-se, assim, o cheiras eram objeto de publicação,
objeto mais desejado da imprensa, e, com o adendo de que, quando se
e desde que William Russell ini- escrevia sobre os combates, o as-
ciou a atividade, esta especializa- sunto era descrito da forma que o
ção jornalística não deixaria de governo entendia e apenas quando
evoluir. Há que se ressaltar uma as batalhas tivessem terminado.
dualidade presencial imposta: e se Iniciando com o telegrafo e a
no que toca ao jornalismo isso era fotografia, ainda nos conflitos do
algo benéfico, para o lado dos go- século XIX – Guerra Civil Ameri-
vernos não era bem assim; os Esta- cana, Guerra da Criméia, Guerra
dos estavam a perder um impor- do Paraguai etc –, e, logo depois,
tante sigilo, e com tanta liberdade, no século XX, o uso do cinema e
com o yellow journalism em cres- do rádio – da Primeira Guerra
cimento, e com a primeira grande Mundial em diante –, e depois da

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televisão – a partir da Guerra do conotação: ou uma mesma notícia
Vietnã, mas intervalos de transmis- era repetida por mais de um apre-
são para os Estados Unidos de sentador/jornalista ―por reveza-
cerca de dois dias –, e das redes de mento‖; ou então por qualquer
computadores no final do século profissional desqualificado como
anterior – na primeira metade do correspondente de guerra e que só
século XX não havia internet, po- relata aquilo que a própria audiên-
rém todos esses elementos já fa- cia podia identificar e concluir por
ziam parte do quotidiano, e tal si mesma.
como hoje, já eram usados para Assim10, quando se assiste ao
fazer jornalismo, incluindo o de salto da simples e estática World
guerra, sem esquecer do fax –, tais Wide Web (www) para a inovadora
ferramentas possibilitaram uma e interativa Web 2.0, o jornalismo
maior e mais detalhada cobertura ganha um novo aliado e as páginas
jornalística dos conflitos armados. online um novo significado e rele-
Frisando que, dentro desse viés vância, já que não fosse assim e
evolutivo e tecnológico 9, a primeira nenhum jornal estaria a apostar nos
década do século XXI trouxe a era conteúdos noticiosos pagos online,
da informação sem limites: com o ou em outros serviços premium que
aperfeiçoamento da internet e a sua fidelizem o utilizador à sua página
massificação mundial, temos hoje à da Net além do meio mais tradicio-
nossa disposição texto, fotografia, nal. E, no que toca à especialização
som, vídeo e comunicação inter- abordada, o meio digital trouxe três
pessoal, tudo numa só plataforma e grandes novidades que podem tor-
à distância de um clique. nar os outros media obsoletos:
O grande problema gerado por imediatismo melhorado, conver-
esse imediatismo de um noticiário gência de conteúdos e liberdade de
no ar 24 horas era a necessidade criação.
constante de suprir o público com Em temos comparativos, gros-
novas notícias. O resultado dessa so modo, de acordo com Carvalho,
pressão de desdobra em uma dupla quanto à primeira, a internet con-

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segue uma grande vantagem em realçar e enaltecer que a especiali-
relação à televisão, por exemplo, e zação de guerra evoluiu muito em
mesmo apesar de se manter o risco cerca de um século e meio de exis-
da publicação de conteúdo desne- tência, uma vez que desde William
cessário (como acontece na TV Howard Russell até à Primavera
com o excesso de diretos) o seu Árabe foi um longo e árduo cami-
conteúdo pode ser ignorado pelo nho pela melhoria da informação.
utilizador, que pode escolher não Seguindo a lógica de Lavoi-
abrir as notícias – ao passo que na sier de que ―na natureza nada se
televisão, assim como na rádio, cria, nada se perde, tudo se trans-
para tal tem de mudar a estação. forma‖, a atual ―imprensa marrom‖
Existe uma maior seleção ao nível – uma expressão de cunho pejora-
de conteúdo, como não existe no tivo, utilizada para se referir a veí-
direto da TV e rádio, onde o re- culos de comunicação (principal-
pórter fala diretamente, e: algum mente jornais, mas também revis-
excesso de informação é facilmente tas e emissoras de rádio e TV), e
subtraído ao texto, ao mesmo tem- mesmo na internet, considerados
po em que a voz ou o vídeo podem sensacionalistas, ou seja, que bus-
ser editados. cam elevadas audiências e venda-
O que se pode, e se deve fazer, gem através da divulgação exage-
é se ilustrar para poder filtrar a rada de fatos e acontecimentos,
informação, checar fontes e atestar sem compromisso com a autentici-
as suas credibilidades, ligações e dade – é a versão mais recente do
intencionalidade, além de tratar de yellow journalism, do século XIX.
questões como censura, autocen- E seguindo esses trâmites bombás-
sura, forjamento de provas e falso ticos, temos o avolumamento da
jornalismo. O que se pode ter cer- explosão/extrapolação de notícias
teza de que nenhum meio de co- falsas (sendo também muito co-
municação se revelou perfeito para mum o uso do termo em inglês
a cobertura de um conflito11, no fake news), que são um ti-
entanto, ao mesmo tempo, vale po/subproduto de imprensa mar-

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rom que consiste na distribuição Fica patente, pois que13 as atu-
deliberada de desinformação ou ais guerras, conflitos armados e o
boatos via jornal impresso, televi- surgimento de grupos considerados
são, rádio, ou ainda online, como terroristas é um dos fatores que
nas mídias sociais. contribui para os riscos da profis-
Vieira12 assevera que, como se são do correspondente, com o
sabe, a cobertura internacional é agravante de que por ser cidadão
ampla, pois abrange desde a polí- de outro país, a vida do correspon-
tica e cultura até acidentes de gran- dente é encarada como moeda de
de magnitude, desastres naturais e troca por grupos extremistas, sendo
guerras, e como consequência, o potencialmente negociável com o
profissional que ocupa a função governo de seu país de origem,
pode ter um dia tranquilo seguido fatos que costumam ser reportados
de outro em que fica a dois passos nos telejornais, quando o próprio
da morte. Então, é preciso ter muita jornalista é a notícia: os sequestra-
coragem, pois a realidade é violen- dos capturam o correspondente e
ta e triste – com 30 jornalistas mor- mandam mensagens em vídeo fa-
tos nos primeiros meses de 2015 zendo exigências para que ele pos-
(Committe to Protect Journalists), sa ser libertado ou, no mínimo,
sendo 10% de correspondentes para que não seja morto.
internacionais – pois enquanto Cabe destacar que se trata da
alguns morrem em acidentes de apresentação de um cenário primá-
carro em coberturas de eventos rio, sem considerar outras variáveis
esportivos, por exemplo, outros são tão sinistras quanto macabras 14, ou
vítimas de explosões e ataques seja, essas são apenas algumas
terroristas em locais públicos – ou demonstrações que dão relevância
nos fronts, decapitados por grupos aos atuais riscos da profissão: ele
como o ISIS – e que matam cente- existe, é real. O efeito mais imedi-
nas de pessoas de uma vez; ou de ato e danoso é o medo que acom-
mesmo de sequestros e torturas. panha tais constatações e ocorrên-
cias, e mesmo que seja a título

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preventivo, sempre se pondera por século XIX e todo o século XX,
uma limitação da atuação desses sendo que o resultado desses en-
profissionais, e, por isso mesmo, contros é o que conhecemos hoje
associado a outros fatores, pode ser por Direito Internacional Humani-
decisivo (ou pelo mesmo um forte tário, que tem como principal ob-
argumento) para a diminuição do jetivo orientar e proteger as vítimas
número de correspondentes – tanto dos conflitos armados.
por parte das empresas jornalísticas Igualmente importante, dentro
como por parte dos próprios jorna- da visão de Borges16 é fazer a dis-
listas. tinção superficial entre o Direito
O que de fato então os pro- Internacional Humanitário e os
tege? Não se pode deixar de frisar Direitos Humanos. Objetivamente,
que as guerras contemporâneas são enquanto o primeiro é um ―direito
regidas por convenções e tratados de exceção, de urgência, que inter-
pautados pelo Direito Internacional vém em caso de ruptura da ordem
Público, assim15, para proteger jurídica internacional‖, o segundo
(pessoas) e controlar (conflitos), ―tem como objetivo garantir, em
em 1864, na cidade de Genebra, foi todo momento, aos indivíduos,
realizada uma convenção com o desfrutar dos direitos e das liberda-
objetivo de traçar certas normas des fundamentais e protegê-los das
para as guerras, contudo é, porém, calamidades sociais.‖
uma falsa visão acreditar que antes Embora tendam, por natureza,
disso não houvera a tentativa de a se intercalar, são diferenciados. O
impor limites às ações dos confli- que se pretende promover é a no-
tos, pois desde que há guerras, há ção límpida e cristalina de que17,
uma tentativa da humanidade de assim, o Direito Internacional Hu-
impor restrições legais e morais ao manitário é um direito de guerra,
seu uso e aos seus costumes. Des- promovido pelo Comitê Interna-
tacando que a Convenção de 1864 cional da Cruz Vermelha, enquanto
foi a primeira de uma série realiza- os Direitos Humanos – criado em
das ao longo da segunda metade do 1948 – é um direito de paz, promo-

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vido pela Organização das Nações criar conceitos e embasamentos
Unidas. Fica claro, entretanto, que diferenciados com relação a pa-
íses distintos, o correspondente
ambos se complementam e nasce- internacional que se vale de seu
ram do interesse comum de res- conhecimento para transmitir
peitar a dignidade humana, seja em aos demais a sua versão dos fa-
tempos de ―paz‖ ou de guerra. tos, garante um novo rumo à
história. Muitas vezes, apon-
tando, uma crítica que gera a
A cobertura de guerra e conflito reflexão das pessoas.18
diverge do jornalismo conven-
cional. Com uma rotina incerta,
O que Forentin e Bertol19
o correspondente que se pro-
põem a trabalhar nessa área transparecem é a prova inequívoca
acaba por ter que lidar com a de que a intensidade do trabalho
abrangência de temas fora de abala diretamente o rendimento do
seu país de origem, tendo aces-
so, a outra cultura, política, trabalhador, mas mesmo assim o
economia e linguagem particu- profissional tem maior facilidade
lares. Além do mais, com inte- em reportar uma dor física do que
resses muitas vezes camuflados. psíquica, ―falar da saúde é sempre
O jornalismo de guerra e confli-
to se torna fundamental, sendo difícil, já que evocar o sofrimento e
que é através dele que temos a a doença é, em contrapartida, mais
noção real do que acontece, tan- fácil, pois todo mundo o faz, e,
to no nosso país, como nos ou- como se, a exemplo de Dante, cada
tros, além do mais ―é um ab-
surdo afirmar que ‗toda guerra um tivesse em si experiência sufi-
é absurda‘, para a quebra deste ciente para falar do inferno e nunca
tabu existe o jornalismo de do paraíso. Certo é de que quando
guerra com o propósito de en-
mais a pessoa ficar exposta e vul-
frentar certos constrangimentos
para nos relacionar com o mun- nerável maior o risco de ter uma
do.‖ O jornalismo de impacto, doença, a capacidade de recupera-
como o de cobertura de guerra é ção e defesa do organismo vão
responsável por garantir aos re-
ceptores, visões de um meio,
diminuindo, com o que aumenta a
onde a realidade não é a mesma vulnerabilidade a fatores patogêni-
da que vivenciam. Capaz de

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cos externos e, em consequência, o tentando chegar a um centro de
risco geral de adoecer.‖ alimentação da Organização das
Agravando tal quadro 20, os Nações Unidas (ONU), próximo à
meios de comunicação buscam aldeia de Ayod, quando um abutre-
suprir suas necessidades e promo- de-capuz apareceu nas proximida-
ver o show sem pensar na saúde des, e essa foto foi tirada no ano de
dos profissionais, o perigo está no 1993, no Sudão (numa área que
glamour e o charme funcionarem hoje pertence ao Sudão do Sul); na
como cortinas de fumaça a escon- época, o país estava arrasado por
der as feridas abertas e os pontos uma longa guerra civil. Na época,
obscuros do nosso ofício, de modo vendida para o The New York Ti-
que as situações patológicas se mes, a fotografia foi publicada pela
apresentam em um espetáculo in- primeira vez em 26 de março de
formativo, onde o insignificante 1993 e foi repassada para muitos
nos parece importante, a incoerên- outros jornais ao redor do mundo,
cia nos parece saudável. Vê-se que, e, em 1994, a imagem ganhou o
dessa forma, é perceptível a im- Prêmio Pulitzer de Fotografia Es-
portância da psicologia do traba- pecial.
lho, sendo que a mesma pode inter- Refinando um pouco mais,
ferir na organização e no ambiente Borges22 chama a atenção para o
de trabalho a fim de zelar pelo detalhe, nem sempre aven-
equilíbrio emocional das pessoas, tado/ventilado, de que, por outro
sem deixar de considerar que nos lado, esse mesmo direito humanitá-
traumas psicológicos, estresse pós- rio distingue dois tipos de jorna-
traumático (TEPT) etc. listas de guerra. Antes de expor tal
Talvez o caso mais emblemá- separação há que se saber que am-
tico e tétrico dessas afetações psi- bos são enquadrados como pessoas
cológicas é o acontecido (suicídio) que seguem as forças armadas sem,
com Kevin Carter21, um premiado entretanto, fazer parte delas, que
fotojornalista sul-africano, que são: o primeiro é o embedded, que
fotografou uma criança faminta segue um exército, com autoriza-

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ção e proteção de um dos lados 3. Eles podem obter um cartão
beligerantes, usa um uniforme e de identidade de acordo com o
modelo anexo ao Anexo II do
ganha uma patente; o segundo é o presente Protocolo. Este cartão,
jornalista independente que não se que será emitido pelo governo
submete às regras ou proteções de do estado do qual eles são naci-
qualquer um dos lados beligeran- onais, ou no território de que
residem ou onde a agência ou
tes. imprensa que os emprega, ates-
Mediante tal quadro, medidas tará a qualidade do trabalho do
protetivas foram tomadas: jornalista titular.23

Assim, observa-se claramente Obedecendo a essa retórica


que desde a Conferência de devidamente abalizada, Cinelli24
Genebra de 1974-1977 os cor- reafirma que, de fato, a violência
respondentes de guerra possu-
maciça organizada é a única carac-
em uma posição privilegiada
dentro dos conflitos armados. O terística que distingue a guerra de
artigo 79 do Protocolo I trata todas as outras atividades humanas,
especificamente disso: já que o papel desempenhado pelo
Artigo 79 - Medidas de prote-
ção de jornalistas
Estado e seus agentes, notadamente
1. Jornalistas que realizam tra- os responsáveis pela administração
balhos profissionais riscos em da violência, é decisivo para que a
áreas de conflito armado serão legitimidade nessa aplicação seja
considerados pessoas civis na
acepção do n.o 1 do artigo 50. mantida. Nessa estrutura instituci-
2. Eles serão protegidos como onalizada e centralizada, isso pas-
teem conformidade com as sa, por exemplo, pela preocupação
convenções e presente Protoco- com a difusão adequada do conte-
lo, desde que nenhuma ação se-
ja tomada sua condição de civis údo dos diversos tratados e normas
e sem prejuízo do direito de humanitárias a todos os reais e
correspondentes de guerra cre- potenciais destinatários, tanto na
denciados às forças armadas de
paz quanto na guerra.
benefício estatuto previsto no
artigo 4A.4 da Convenção. Não se pode ignorar o fato de
a guerra estar sob a tutela absoluta

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e exclusiva do Estado foi um im- ça. Levando em consideração que a
portante marco rumo à consolida- guerra é a primeira e mais antiga
ção do próprio conceito de Estado, das relações internacionais, e que
frisando que, a despeito de algumas já nos tempos antes da História, o
opiniões contemporâneas diver- sucesso guerreiro aparecera muito
gentes, aparentemente assim conti- cedo, com seu aspecto de o mais
nuará a ocorrer. Numa visão mais violento e teatral entre os fenôme-
encadeada pelos estudos e indica- nos sociais, a necessidade de regu-
dores mais confiáveis, mesmo que lar as hostilidades bélicas entre as
outras variáveis surjam como in- nações deu origem, recentemente,
tervenientes, decorrentes das ―no- ao DICA (Direito Internacional dos
vas guerras‖ ou da ―governança Conflitos Armados) – o qual deve
globalizada‖, é provável que ainda exercer ao longo do processo deci-
assim permaneçam imutáveis al- sório militar, o que tange à condu-
gumas convicções, principalmente ção ética de um conflito armado –,
aquelas ligadas à ênfase na condu- portanto, a ancestral interligação
ção de conflitos armados sem per- entre guerra e direito é uma evi-
der de vista o aspecto humanitário. dência de sua indissociabilidade
Assim, em sua essência25, a Embora pareça controverso e
noção de legitimidade corresponde mesmo desproporcional, Costa
à ideia de uma relação harmônica Júnior26 comprova que o Direito
de uma instituição, uma pessoa, um Internacional Público não existe
ato determinado, com o seu fun- como direito, pelo menos é o que
damento ético, que pode ser um deixa transpassar por lhe faltar a
modelo pessoal, humano — herói, previsão de sanções, um poder
profeta ou super-homem — ou verdadeiramente sancionador com
divino; ou então, da conformidade condições de coercibilidade e que
com um conjunto de princípios e vai esbarrar na soberania dos Esta-
regras de comportamento, e, sob dos. E tem mais: por orientar-se,
esse aspecto, a legitimidade nada não por um universo normativo,
mais é do que uma forma de justi- mas por interesses de pessoas natu-

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rais específicas e dos Estados que
governam, nem sempre das nações TENDENCIONISMO E
ou dos povos que, proporcional- CENSURA
mente, nem sempre estão a dar seu
aval àquele que tem o poder consti- Algo que precisa ser entendi-
tucional de fazer a guerra. do de imediato é que28 o corres-
Até para um leigo 27, certamen- pondente, como o antropólogo,
te que isso não é Direito, muito necessita de algum tempo para
embora se o possa conceber como entender aquela nova sociedade
um esboço de universo formado com a qual vai lidar em seu traba-
por elementos regentes do chama- lho, portanto, a etnografia (o estu-
do concerto das nações. Nesse jogo do descritivo das diversas etnias,
do xadrez do equilíbrio do poder de suas características antropológi-
mundial, tudo se dá sob a batuta de cas, sociais etc; o registro descriti-
uns poucos que governam o mundo vo da cultura material de um de-
e tem, sob a sua chancela, o poder, terminado povo) depende disso
a ganância e um Direito internaci- tanto quanto a cobertura jornalísti-
onal que ainda não consegue esta- ca. A individualidade, a formação e
belecer normas realmente eficazes as convicções desses profissionais
e limites realmente delimitadores funcionam como filtros, mas o
dos direitos irreais que tem alguns trabalho de ambos, no entanto,
governantes. devem ser baseados em suas pers-
No caos da guerra a letra da pectivas nacionais sob a cultura
lei parece ser alvo prioritário de estrangeira sobre a qual reporta, e é
aniquilação. A indiscriminação das por essa condição cultural e civili-
vítimas parece ser a única certeza zatória que diversos antropólogos
de homogeneidade e de uma certa escreveram a respeito do olhar de
condição igualitária sombria e te- estranhamento e exterioridade por
nebrosa que não diferencia os que parte do pesquisado em relação ao
tombam ante a senda criminosa de seu objeto, ou seja, essa seria uma
certos combatentes sanguinários. atitude necessária e até natural,

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provinda da presença de sua pró- pode, de maneira alguma, perder o
pria cultura e de sua origem, que contato com o seu país.
não devem ser descartadas devido Por outro lado, também não se
ao contato com uma nova cultura. pode, e nem se deve, deixar de
Para que não se perca o ―olhar suprir seus leitores/público com
de alteridade‖, evitando dispersões informações e curiosidades sobre
focais e de comunicação efetiva e aquele pedaço do nosso planeta
inteligível entre o emissor (corres- onde ele se encontra para que não
pondente) e o receptor (leitores, se crie a ilusão que existe uma
público alvo), Rusky29 pondera que homogeneidade internacional con-
um correspondente muito tempo tínua e clonada. Analogias são
em um país pode deixar de pensar muito bem vindas, úteis mesmo, já
como seus leitores e pensar como que as comparações são uma forma
suas fontes, o que pode ser fatal de trazer mais para perto o que é
para um bom trabalho. A razão de alheio30, hipoteticamente, se acon-
se evitar essa maior interação soci- tece um escândalo envolvendo um
ocultural com os ―nativos‖ se ba- jogador de futebol americano nos
seia na percepção de que é impor- Estados Unidos, por exemplo, é
tante que o correspondente, além provável que o brasileiro médio
de informado sobre o que acontece não o conheça, e compará-lo com
em seu país, lembre-se da forma de algum jogador brasileiro tão famo-
pensar de seus conterrâneos, para so quanto, mas de futebol, esporte
conseguir traduzir a eles uma reali- popular no Brasil, pode ser uma
dade estranha: ele (o corresponden- boa saída para que o brasileiro
te) tem que traduzir a realidade do entenda a proporção do caso.
país em que está e fazer o máximo Moretti31 compartilhada da
possível de comparações que per- certeza de que o jornalismo, cujo
mitam às pessoas identificar o que compromisso maior deveria ser
está acontecendo com os referenci- com a verdade, como diz um co-
ais que estão acostumadas a usar nhecido slogan, nem sempre pri-
aqui em casa; o correspondente não mou pela ética durante sua turbu-

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lenta história. Assim, distorções de volveu a Inglaterra e a Rússia
fatos, meias-verdades, exageros, numa disputa de fronteiras. O
papel de correspondentes era
narrações tendenciosas de aconte- atribuído a jovens soldados que
cimentos são elementos presentes mandavam cartas das frentes de
nessa atividade, provavelmente batalha, expediente bastante in-
desde que um tambor pioneiro satisfatório, pois não apenas es-
ses soldados-correspondentes
ressoou transmitindo a primeira eram altamente seletivos com o
notícia a distância, ou desde que que escreviam, como mal en-
uma testemunha ocular resolveu tendiam o processo jornalístico.
Foi então que o editor do The
narrar o que viu para outras pesso-
Times londrino enviou para o
as. Desde quando? campo de batalha um repórter
especialmente contratado para a
Já nos primeiros relatos de função: William Howard Rus-
guerra de que se tem notícia, sell, o primeiro correspondente
aqueles do Antigo Testamento de guerra. Ele fez tamanho su-
da Bíblia, temos pontos de vista cesso cobrindo a guerra que de-
claramente tendenciosos, prin- pois reportou outros conflitos,
cipalmente quando se tratava de como a Guerra de Secessão
narrar os combates do povo he- EUA e a Guerra Franco-
breu contra os filisteus, egíp- Prussiana.32
cios ou qualquer outro povo.
Posteriormente, outros relatos Surge, dos comportamentos
de guerra igualmente distorci- desviantes e posturas aéticas e an-
dos foram sendo produzidos ao
longo da história, muitos na tiprofissionais, um novo filão na
forma de poemas épicos, como indústria jornalística, e sobre a qual
a Ilíada de Homero, outros na Moretti destaca que com o sucesso
forma de crônicas, como as
da cobertura dessa guerra, os cor-
campanhas de Júlio César na
Inglaterra. respondentes se tornaram estrelas,
Até então, seus redatores eram trata-se da Era de Ouro dessa cate-
anônimos. O primeiro corres- goria de jornalistas, e que foi entre
pondente de guerra que merece
tal nome só apareceu no século 1865 e 1914.33 Nessa esteira, rapi-
XIX, especificamente na Guer- damente, o correspondente se tor-
ra da Crimeia (1854), que en-

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nou o herói de suas próprias histó- internacional, exercido por um
rias, contando-as com toda a cor e repórter no local dos acontecimen-
intensidade, contexto onde o crédi- tos. Sem deixar de citar que, ao
to ‗Do nosso correspondente‘ foi longo da história da correspondên-
eliminado e substituído pelo nome cia de guerra, o mito em torno do
do próprio repórter, e que tinham jornalista que vai ao front foi cres-
por características: meio malucos, cendo entre leitores e dentro da
meio aventureiros, viajavam em própria categoria profissional na
cavalo, jegue, camelo, de esqui, de qual se insere o repórter, a ponto de
navio ou de trem para onde fosse; ser visto como uma estrela dentro
carregavam cartas de crédito, peças da profissão.
de ouro e, como não poderia deixar Reforçando afirmações anteri-
de ser, um par de pistolas sempre ormente estabelecidas36, historica-
carregadas; alguns deles chegaram mente, a relação entre jornalistas e
inclusive a servir ao Ministério das o acontecimento guerra confere
Relações Exteriores de seus países embasamento à notória frase do
como espiões e informantes.34 senador americano Hiram Johnson,
Lopes35, ao abordar a relação que, em 1917, afirmou: ―A primei-
comensal e simbiótica entre os ra vítima, quando começa a guerra,
correspondentes de guerras e a é a verdade‖. Com a ressalva de
censura a que são submetidos, re- que a dualidade/dubiedade dessas
lembra, a priori, que, por definição, situações caóticas, e mesmo o dua-
a correspondência de guerra con- lismo ético – bem x mal – deve ser
siste na transmissão periódica de percebida e conhecida antes de ser
notícias de uma guerra por jornalis- amaldiçoada e defenestrada: a
tas profissionais enviados por ór- guerra é uma situação extrema,
gãos de imprensa ou freelancers a confrontado com cenas de violên-
uma zona conflagrada no exterior, cia, em que sua vida está em risco,
além do que, nesse sentido, esta o ser humano costuma expressar
prática consiste em um tipo especí- instintos primitivos, como a luta
fico de jornalismo profissional por sobrevivência, o ódio, a indife-

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rença; mas, em algumas ocasiões, ra de guerra é o repórter mais ou
também expressa solidariedade e menos aderir acriticamente às cau-
senso de proteção da família e de sas e racionalidades que sua nação
seu círculo social. defende no conflito.
A guerra e seus corresponden- Dessa forma38, passa a valori-
tes jornalísticos vivem essa relação zar a coragem e a bravura dos sol-
de amor e de ódio, mas acabam se dados, sem questionamentos, sendo
tornando inseparáveis por simples que a relação entre o jornalista e os
―retroalimentação‖: Informação é governantes começa a sofrer afeta-
poder, seu controle/censura é uma ções mais intensas – equilibrando-
arma vital. se entre conivência, aceitações,
Lopes37, numa breve análise conflitos e censura - no final do
primária, afirma que o controle da século XIX. E já no início da I
informação é considerado por es- Guerra Mundial, na Grã-Bretanha,
trategistas militares uma arma im- sob o Decreto de Defesa do Reino,
portante utilizada na guerra, pois foi criado um sistema de censura
sendo o jornalista um agente do tão severo que seu legado estende-
conflito disposto a tornar públicas se até hoje, e, como bônus, a boa
descrições e narrativas sobre o vontade dos proprietários de jor-
acontecimento, é presumível que nais na aceitação desse controle e
seu trabalho, capaz de influenciar sua cooperação na disseminação da
as demais forças envolvidas e a propaganda trouxe-lhes a recom-
opinião pública, seja alvo de con- pensa do status social e do poder
trole. Daí, em muitos casos, o jor- político; mas também minou a
nalista acaba por se engajar no confiança do público na imprensa.
esforço guerra, com relatos a favor No irromper da Grande Guer-
do governo de seu país, onde é ra (1914-1918), Lopes39 destaca
frequente o jornalista, em situações que, inicialmente, o correspondente
de conflito, se deixar manipular por de guerra não se enquadrou no
fontes militares ou governamentais, esforço de propaganda – os propri-
sendo que a regra geral na cobertu- etários de jornais estavam ansiosos

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em cobrir a guerra, principalmente o governo a melhorar as condições
porque ela seria um bom negócio de higiene e de assistência médica
para os periódicos, as dificuldades nos campos de batalha. Avançando
eram imensas, e para piorar o go- um pouco mais no tempo, e na
verno britânico ordenara que qual- evolução dos meios e ferramentas
quer correspondente encontrado no de comunicação, cabe relembrar
campo fosse preso, tivesse seu que foi a cobertura no Vietnã –
passaporte apreendido e fosse ex- sobretudo a dos norte-americanos,
pulso da região. Nesse contexto, e lá, principalmente, a de televisão
enquanto o continente mergulhava – que fez com que, pela primeira
no conflito, alguns correspondentes vez na história, a população dos
entravam e saíam da prisão, outros EUA se colocasse contra seu pró-
ingressavam clandestinamente na prio governo, de tal forma que fez
Alemanha e, outros ainda, conse- minar o apoio político ao conflito,
guiam suas primeiras informações e como consequência derradeira,
exclusivas, como Granville Fortes- isso abalou o moral das tropas,
cue, que noticiou, em primeira mão levando os Estados Unidos a con-
para o Daily Telegraph de 3 de frontarem com a mais humilhante
agosto de 1914, a reportagem ―País derrota militar de sua história.
invadido por soldados alemães. A Em brevíssimo comentário
Bélgica era ocupada pela Alema- acerca da temática desse simpósio,
nha‖. cabe destacar que41, no caso da
Apesar de toda essa arquitetu- cobertura brasileira na II Guerra
ra desinformativa40, é importante Mundial, o trabalho dos correspon-
trazer uma vez mais as palavras de dentes era triplamente censurado:
Ribeiro: ―se guerra é ruim, guerra pelo V Exército Aliado, pela Força
sem jornalista (ou escritor) por Expedicionária Brasileira (FEB) e
perto é pior‖, pois, dentre outros pelo Departamento de Imprensa e
serviços meritórios e humanitários Propaganda (DIP): os exagerados
prestados, foi a cobertura dos cor- elogios aos soldados nacionais
respondentes britânicos que levou contidos nos textos dos correspon-

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dentes chegavam a tal ponto que, ―verdade‖, torna-se algo secundá-
às vezes, provocavam constrangi- rio dentro de um ambiente onde a
mentos entre os próprios pracinhas. hostilidade e a sede pela vitória
Sobressai-se a prática de Rubem imperam. Entendendo-se que pu-
Braga teria sido exceção, uma vez blicar qualquer coisa que coloque a
que o profissional teria conseguido nação em risco ou choque a opini-
driblar o controle governamental ão pública pode ser e é encarado
para fazer chegar ao público seu como uma ameaça e o seu divulga-
pensamento sobre a guerra, e ape- dor deve enfrentar as consequên-
sar de ter o seu trabalho de cober- cias de seus atos.
tura de guerra sensivelmente limi- Ecoa aqui, de forma retum-
tado, desenvolveu o seguinte estra- bante, a certeza de que43, nesse
tagema: por outro lado, parado- sentido, a última coisa que veremos
xalmente, ele conseguiu uma liber- dentro da cobertura de guerra é a
dade que não havia usufruído no liberdade de imprensa, independen-
Brasil estadonovista; utilizando-se, te do país onde ela é feita e para o
para isso, de recursos literários qual ela é realizada, pois nenhum
inseridos dentro do seu trabalho conflito jamais travado pela huma-
jornalístico, como contar a trajeto nidade e coberto de uma forma ou
ria de personagens que causassem de outra pelos jornalistas esteve
simpatia e identificação do leitor livre da censura; nem mesmo a
ou relatar situações que validassem guerra do Vietnã como muitos
a sua opinião; através da análise da querem crer. De sorte que, fosse
sociedade italiana e de outros as- num ambiente ou em outro, a cen-
pectos da guerra, ele conseguia sura estava sempre presente e tra-
expressar as suas opiniões políticas balhando para manter a opinião do
e a sua visão de mundo, o que seria público interno ignorante dos acon-
muito difícil de se obter no jorna- tecimentos do front.
lismo brasileiro da época. Quando trocamos o Direito
Borges42 reitera que o papel Natural pelo Direito Positivo, há
do jornalista de informar os fatos, a milhares de anos, para vivermos

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numa sociedade com instituições e trouxe consigo, entretanto, outra
governos, parte da liberdade foi novidade: a censura, conhecida
sacrificada em nome de duas ações pela primeira vez durante a guerra
que se faz querer serem encaradas dos Trintas Anos (1618-1648), na
como umbilicais e estritamente Alemanha, esta foi a primeira
necessárias para a garantia da ca- grande guerra europeia, caracteri-
minhada civilizatória: a manuten- zada por um conflito religioso en-
ção da ordem pública e a preserva- tre católicos e protestantes, que se
ção da paz social. Em já existindo estendeu de 1618 a 1648, e provo-
restrições e censuras prévias dentro cou o esfacelamento do Sacro Im-
da normalidade dessas situações pério Romano-Germânico.
aceitas pela população, não causa Outros governos/países copia-
estranheza nem tampouco repulsa o ram essa ―prática preventiva‖45,
fato de que durante períodos de uma vez que foi também para im-
guerra tais ―amarras‖ sejam ainda pedir que as notícias desse longo
mais apertadas. conflito chegassem em detalhes ao
Estabelece-se, pois, nessa sea- conhecimento do público inglês
ra de dicotomia primordial44, a que o Star Chamber Decree, em
conexão entre comunicação e con- vigor de 1632 a 1638, inviabilizava
flitos, a qual é, então, bastante vi- parte da imprensa britânica e de
sível, já que, desde o século XVI, certo modo dava a ela novos ru-
guerras e disputas marcaram toda a mos. Dessa feita, a censura vinha
Europa, seja no seu período mer- na forma de imposições governa-
cantilista, seja na fase capitalista e mentais, proibição de circulação de
continuam a marcar até a atualida- jornais que não fossem os oficiais,
de, com o advento da globalização, taxações exorbitantes, bem como: é
de modo que notícias de guerras e interessante notar, porém, que a
feitos militares assinalam o início censura surge dentro de uma im-
da imprensa e permeiam toda a sua prensa claramente voltada para as
história. Como luz e trevas cami- notícias que vinham de terras dis-
nham sempre juntas, a imprensa tantes; sua explicação se deve à

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intenção dos governantes locais de os séculos XV e XVIII e está inex-
impedir a disseminação do gérmen tricavelmente ligado à evolução do
das grandes revoltas ou revoluções Estado moderno. Em assim sendo,
dentro de seus países e evitar im- eis porque a guerra legítima precisa
pugnações às medidas oficiais. ser, para ser de fato legítima, geri-
Revisitando uma no- da exclusivamente pelo Estado,
ção/entendimento basilar já exaus- que a monopoliza, administrando
tivamente reprisada até aqui, Cinel- os meios e, por extensão, dosando-
li46 nos faz rememorar a compreen- lhes a sua aplicação.
são primária, e histórica, de que o O conjunto de medidas restri-
monopólio dos meios destinados à tivas de informação é, por isso,
aplicação da violência e às ações rotulado como Lei de Censura,
constabulares (poder de polícia) é frisa-se o destaque para a prece-
uma das principais características dência e procedência da expressão
do Estado moderno, permeando firme da ―Lei‖.
seus elementos constitutivos (povo, Enquanto prerrogativa do Es-
território e governo soberano). tado, nas situações aquém e além
Relembrando ainda que isso o ca- da normalidade da divisão entre
racteriza, dentre outras razões, Poderes constituídos (Executivo,
porque o distingue das comunida- Legislativo e Judiciário), e no res-
des pré-modernas, onde a ameaça peito a sua autonomia e destina-
de violência humana por parte de ções próprias, o direito de se fazer
exércitos invasores, bandoleiros e leis de exceção em nome tanto da
senhores da guerra locais era cons- segurança como da soberania naci-
tante e indiscriminada. onais encontra na guerra um terre-
Sem esquecer-se de asseverar, no fértil para sua expansão, diversi-
enfaticamente, que47 o que nós ficação e aprofundamento.
tendemos a perceber como guerra,
o que habitualmente se define co- SEGUNDA GUERRA
mo guerra é, de fato, um fenômeno MUNDIAL E CORRESPON-
que tomou forma na Europa entre DENTES BRASILEIROS

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Ação direcionada e vocacionada
Para muitos estudiosos e pes- prematuramente, cenário onde a
quisadores a Segunda Grande luta pela dominação das consciên-
Guerra Mundial (1939-1945) nada cias da população atingiu tamanha
mais é do que a continuação da proporção que tornou a guerra pro-
Primeira Grande Guerra Mundial pagandística um ponto central do
(1914-1918), após um interregno, conflito, assim: a propaganda esta-
uma suspensão das hostilidades, de va inserida em todos os veículos de
um reenquadramento geopolítico, comunicação, não havendo ne-
durante um breve intervalo comu- nhum órgão de imprensa que esca-
mente denominado como Período passe dessa realidade; desde a vei-
Entre Guerras (1918-1939). Essa culação de notícias até os anúncios
―meia-verdade‖ – se é que tal coisa publicitários, tudo fazia parte da
de fato exista, ou que seja possível propaganda estratégica de guerra.
– esbarra em um dos aspectos mais Com o adendo de que49, ante-
determinantes e diferenciais desse riormente, na Primeira Guerra, já
intervalo nesse grande jogo bélico tinham sido usadas técnicas propa-
do século XX, a saber: o uso mas- gandísticas, mas, desta vez, em
sivo e profissional da propaganda consequência da evolução tecnoló-
como instrumento de poder e de gica dos meios de comunicação,
aparato ideológico a partir da dé- essas técnicas apresentavam um
cada de 1920. enorme grau de sofisticação. Con-
Em auxílio a essa argumenta- tudo há um importante diferencial,
ção basilar, Henn48 corrobora o enquanto, no conflito anterior, a
entendimento de que uma caracte- propaganda e a censura eram ge-
rística fundamental da Segunda ralmente responsabilidades do
Guerra Mundial refere-se à exis- mesmo departamento, agora, exis-
tência de outra guerra, paralela à tiam pessoas com a função especí-
bélica, para a qual foi dada uma fica de realizar a propaganda.
grande importância por parte dos Deixando de lado a aborda-
governos dos países beligerantes. gem como o ódio étnico, o racismo

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e a difamação política e ideológica número de pessoas; por isso, pro-
que marcaram o envolvimento da curavam fazer as transmissões de
imprensa e da propaganda, de for- forma dinâmica e emotiva.
ma ostensiva, monstruosa e ignó- E como e onde o correspon-
bil, durante a Segunda Grande dente de guerra entra nessa arena?
Guerra Mundial, destaca-se que50, Acentua-se, dentro da análise
no que tange à cobertura jornalísti- pontual de Henn52 que a Testemu-
ca, a Segunda Guerra caracterizou- nha Ocular era a única pessoa en-
se por marcar a consolidação do carregada e com autorização de
rádio como principal meio de co- assistir ao andamento das ações nas
municação popular mundial, com zonas em que as autoridades proi-
exceção de esporádicos filmes com bissem a entrada dos demais cor-
caráter documental exibidos nos respondentes e, posteriormente, de
cinemas, as pessoas não tinham divulgar o seu relato aos colegas,
acesso a imagens reais dos comba- além do que na Segunda Guerra,
tes; a televisão só iria se difundir esta pessoa era um jornalista esco-
após o término da guerra. Portanto, lhido pelos responsáveis militares,
sendo assim, somente o rádio pode- diferentemente da Primeira, na
ria transmitir ao vivo das zonas de qual era um militar de carreira.
combate, era a partir da narração Bem como, de outra parte, não era
do locutor que o público ouvinte somente ele que deveria trabalhar
construía a sua imagem das bata- sob o severo controle das autorida-
lhas, o que fez com que o rádio des militares, já que qualquer um
cumprisse um papel fundamental que se interessasse em atuar como
no sistema de propaganda elabora- correspondente de guerra deveria
do pelos aliados51: os locutores passar por um complexo ritual de
estavam cientes do papel que lhes aceitação, e nesse processo, antes
cabia: incrementar o interesse da de seu credenciamento, estava su-
população pela guerra, levando a jeito a ficar concentrado em um
que a torcida pela vitória dos seus quartel por um prazo estipulado,
compatriotas contagiasse o maior recebendo instruções e aprendendo

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os regulamentos militares, assim dentes de guerra que não se en-
como tinha de, obrigatoriamente, quadrassem voluntariamente no
assinar um documento comprome- esforço de guerra, quer seja aqueles
tendo-se a encaminhar o seu texto a que eram jornalistas, muitas vezes
todas as censuras instituídas pelo com experiência em cobertura de
comando. outros conflitos, seja os que eram
Obtendo sucesso na sua ―edu- escritores e trabalhavam nesta fun-
cação inicial‖53, depois disso, ves- ção pela primeira vez, todos, de
tia um uniforme de tropas regula- forma mais ou menos acentuada,
res, com a insígnia de War Corres- sucumbiram ao trabalho da propa-
pondent bordada em dourado no ganda patriótica.
ombro e um soldado encarregado O choque inevitável, porém na
de ser seu motorista era-lhe desig- maioria das vezes adiado, por cau-
nado. Mas, apesar de contar com o sa do engajamento, do nacionalis-
posto simbólico de capitão, era mo e da responsabilidade que lhes
credenciado formalmente como pesavam sob os ombros, entre a
―junto às tropas‖, ou seja, não era verdade dos fatos e a narrativa
considerado parte das tropas regu- produzida cobrou altos preços.
lares. Henn55 esclarece que é interessante
Não se pode deixar de pautar constatar que alguns corresponden-
que o correspondente faz parte de tes tenham feito, posteriormente ao
uma complexa engrenagem – naci- término do conflito, exames de
onal e estratégica – que é o esforço consciências sobre as suas atuações
de guerra. E naquele momento engajadas no esforço de guerra de
histórico crucial e decisivo para os seus países, mas que, no entanto,
rumos civilizatórios da humanida- nem todos que o fizeram lamenta-
de54, devido à abrangência da ali- ram terem trabalhado deste modo,
ança contra o fascismo e o nazismo já que grande parte defendeu a
na maior parte dos países do mun- legitimidade de suas atuações, por-
do, era extremamente difícil, senão que se tratava, segundo eles, de
impossível, encontrar correspon-

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uma guerra justa, ou seja, do bem ção na qual os próprios correspon-
contra o mal. dentes se autocensuravam, hesitan-
No campo inimigo56 na Ale- do antes de noticiar qualquer in-
manha, desde o início da década de formação que pudesse prejudicar o
30, existiam órgãos governamen- esforço de guerra, receando serem
tais com a função específica de considerados traidores dentro de
elaborar propaganda do regime, seus países. Na outra ponta da ca-
Joseph Goebbels era o Ministro da deia midiática, os diretores e pro-
Propaganda e defendia em seus prietários dos meios de comunica-
discursos que a adesão da popula- ção tampouco consideravam des-
ção ao nazismo não deveria ser cabida a censura, ao contrário,
feita somente através da coerção achavam que ela era inevitável em
física, embora admitisse a sua im- época de guerra: com efeito, em
portância, e, para ele, as pessoas fevereiro de 1945, ocorreu a visita
deveriam ser cooptadas ideologi- de três representantes da Sociedade
camente através da propaganda, a Norte-Americana de Redatores de
qual, devido à sua relevância, de- jornais à Londres com o objetivo
veria ser formulada com profundo de discutir o livre fluxo de notícias
rigor científico. entre os países no pós-guerra; re-
Formulações similares tam- presentantes de jornais ingleses
bém se deram no campo dos Alia- declararam serem francamente
dos. Henn57 explica que, dessa favoráveis a essa liberdade de in-
forma, tendo em vista o perigo de a formações, mas somente depois de
Europa ser dominada pelo nazis- terminado o conflito mundial.
mo, a partir do momento que Grã- Marchioro58, ao expor sobre a
Bretanha, Estados Unidos e União participação de correspondentes de
Soviética se engajaram definitiva- guerra brasileiros nos campos de
mente na guerra, a tendência natu- batalha da Europa, inicia obser-
ral para os meios de comunicação vando que a Segunda Grande
era integrarem-se voluntariamente Guerra iniciou-se em 1939, no
à propaganda de seus países, situa- entanto foi apenas em 1944 que o

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combate começou a ser decidido, de Canudos – o escritor Euclides
bem como que o Brasil participou da Cunha foi como correspondente
da guerra entre setembro de 1944 e (O Estado de S. Paulo) e daí já
maio de 1945, enviando 25445 havia confluências entre literatura e
soldados e oficiais para o front. E jornalismo, da sua viagem escreveu
que durante o tempo em que a FEB Os Sertões –, e, em 1932, Rubem
esteve na Itália, foram enviados Braga cobriu como correspondente
jornalistas e correspondentes, e a Revolução Constitucionalista de
dentre estes estavam Rubem Braga, São Paulo. Dessa feita, pode-se
junto ao Alto Comando Aliado, e dizer que Rubem Braga foi um dos
Joel Silveira, sobre eles descreve: pioneiros desse tipo de jornalismo
Braga permaneceu na Itália de no país.
setembro de 1944 a abril de 1945, e Complementando essa narra-
durante este período escreveu a tiva, Marchioro60 relata que pouco
maioria dos relatos que compõem o antes do envio das tropas brasilei-
seu livro Crônicas de guerra: com ras para a Europa, durante a Se-
a FEB na Itália; Joel Silveira em- gunda Guerra Mundial, os princi-
barcou para a Itália no mesmo ano pais jornais do Brasil pediram
em que Braga, estiveram juntos em permissão para que seus corres-
muitos momentos na guerra, e vá- pondentes de guerra fossem cre-
rias vezes passaram pelos mesmos denciados junto às tropas. Com a
lugares relatando suas experiên- concessão assegurada, os primeiros
cias. representantes dos jornais brasilei-
Numa breve retrospectiva his- ros rumaram para a Itália em 22 de
tórica dessa faceta do jornalismo 59, setembro de 1944, e entre eles es-
a primeira vez que se tem registro tava Rubem Braga, do Diário Cari-
do envio de correspondentes de oca; e em 23 de novembro, junto
guerra da imprensa brasileira foi na ao 4º escalão, embarcou Joel Sil-
Guerra do Paraguai (no século veira, dos Diários associados.
XIX), posteriormente na guerra Comparando os estilos dos
que ficou conhecida como Guerra dois correspondentes em destaque:

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desta forma, em narrativas que
Pode-se dizer que a crônica de abrigam interlocuções de vozes, de
Joel Silveira é aparentemente contextos e fronteiras. Sem esque-
mais informativa e relacionada
à linguagem jornalística que a cer-se de destacar que as histórias
de Rubem Braga, entretanto produzidas durante a guerra foram
ambos os autores conseguem acolhidas por suportes diferentes e
atingir o leitor cogitando refle- em tempos diferentes, gerando
xão e proporcionando fruição.
No caso de Silveira, tal impacto receptores, experiências, diferen-
é atingido porque ele seleciona tes, uma vez que, no movimento,
momentos exatos de seus rela- rumo à guerra, os soldados, mas
tos onde se utiliza da informa-
também o correspondente de guer-
ção para inserir algo que repre-
sente uma quebra na linguagem ra encontrarão outros homens vin-
jornalística – o que aproxima dos de outras terras que ao se des-
seu texto da prosa ficcional, locarem, carregam em suas baga-
como é o caso da crônica
―Aquilo lá é Bolonha‖. Rubem
gens suas histórias.
Braga é tido pela crítica como Jamais se pode deixar de refle-
um cronista lírico [...] Nesse tir/ponderara/argumentar que eles
sentido, tanto Braga quanto Sil- estarão juntos num outro país que a
veira, apesar de todas as condi-
ções adversas (censura, distân- guerra manejada pela força impie-
cia, meio de transporte), trouxe- dosa e devastadora do fascismo
ram, além de informações, transformou em campo de batalha,
emoções e experiência às famí- bem como que, logo, eles irão
lias que ficaram no Brasil. 61
compartilhar um espaço pluricultu-
Concorda-se, em amplo espec- ral.63 Especificamente no caso do
tro, com Charlon62 na assertiva de correspondente de guerra, deslocar-
que o pesquisador por meio da se para viver uma guerra mundial
escritura/narrativa de Rubem Braga significa também viver a circulação
– e de outros correspondentes de de sentidos e as trocas culturais não
guerra – está diante do ―outro‖ apenas como jornalista correspon-
materializado em escritura/textos e, dente de guerra, mas também como
homem, e, na derradeira e homo-

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Revista do IGHMB – ANO 78 – nº 106 – 2019 113
gênea nivelação, todos, sem dife- notícias de guerra se tornou algo
renças de divisas, estarão, igual- tão presencial quanto corriqueiro; e
mente, expostos às interpretações e até mesmo uma mercadoria. Con-
às trocas, em regiões de fronteiras. tudo, nem todos sabem o que falam
Se ―A cobra Fumou‖, certa- ou fazem, e por isso é que é preciso
mente alguém relatou. criar ―filtros‖ para selecionar o que
presta ou é fake news e/ou desin-
formação nesse contexto.
CONSIDERAÇÕES FINAIS Certo é que nada substitui a
figura e a presença do correspon-
Somos, desde sempre, e para dente de guerra atuando in loco.
sempre, sedentos/viciados por in- Afinal de contas eles são nossos
formação, e quando o assunto é olhos, ouvidos e boca no
guerra, qualquer uma, essa deman- front/campos de batalhas; e tam-
da é ainda mais urgente e diversifi- bém parte da nossa alma e coração.
cada. Ninguém é tão ingênuo, ou
desprovido do mínimo de senso
crítico e de lógica/razão, para aven- BIBLIOGRAFIA
tar a possibilidade de que tem algo
faltando ou que alguma coisa pare- BORGES, Lorena Araújo de Oli-
ce demais exagerada e fora de con- veira. Entre a informação e a cen-
texto nas narrativas de guerra, pois sura no front: a guerra perdida dos
correspondentes. Monografia (Cur-
o jornalismo nessas ocasiões se
so de Graduação em Comunicação
confunde – intencionalmente ou Social com habilitação em Jorna-
não – tanto com propaganda nacio- lismo) - Faculdade de Comunica-
nalista e patriótica como com a ção Social e Biblioteconomia, Uni-
mais desmedida ficção. versidade Federal de Goiás, Goiâ-
E com os avanços midiáticos e nia: 2005.
dos meios de comunicação, princi- CARVALHO, Élvio da Silva. Jor-
palmente das transmissões instan- nalismo de Guerra: o caso da Im-
tâneas e na internet, o componente prensa Portuguesa. Dissertação

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Revista do IGHMB – ANO 78 – nº 106 – 2019 114
(Mestrado em Jornalismo -2º ciclo tas após situações traumáticas:
de estudos) – Universidade da Bei- estudo descritivo-analítico. Anais
ra Interior, Artes e Letras. Covilhã, do Intercom – Sociedade Brasileira
Portugal, 2013. de Estudos Interdisciplinares da
CHARLON, Maria de Lourdes Comunicação, XVII Congresso de
Patrini. Rubem Braga: correspon- Ciências da Comunicação na Regi-
dente de guerra na Itália. Anais do ão Sul. Curitiba: de 26 a
XV Congresso da ABRALIC (As- 28/05/2016.
sociação Brasileira de Literatura GARCIA, Maria Fernanda. A foto,
Comparada), com a temática Expe- o prêmio e o suicídio. 2017. Dis-
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Contemporâneas, Universidade do <http://observatorio3setor.org.br/n
Estado do Rio de Janeiro (UERJ). oticias/foto-o-premio-e-o-
Rio de Janeiro: 7 a 11 ago. 2017. suicidio/> Acesso em: 10 maio
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mes. Direito internacional dos HENN, Leonardo Guedes. Os cor-
conflitos armados: legitimidade e respondentes de guerra e a cobertu-
confiança ontológica. Juiz de Fora: ra jornalística da Segunda Guerra
Centro de Pesquisas Estratégicas Mundial. Revistas Sociais e Huma-
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guerra: a rotina da cobertura no Dissertação apresentada como re-
front. 2011. Disponível em: quisito parcial para obtenção do
<http://observatoriodaimprensa.co título de Mestre em Comunicação,
m.br/jornal-de- pelo Programa de Pós-Graduação
debates/correspondente-de-guerra- em Ciência da Comunicação da
a-rotina-da-cobertura-no-front/>. Universidade do Vale do Rio dos
Acesso em 6 mai. 2018. Sinos – UNISINOS. São Leopoldo,
2015.
FIORENTIN, Luana; BERTOL,
Sonia Regina. Reação de jornalis-

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Revista do IGHMB – ANO 78 – nº 106 – 2019 115
MARCHIORO, Camila. Rubem
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ta Estação Literária, v. 11, jul., Social e Biblioteconomia da Universi-
2013, pp. 252-262. dade Federal de Goiás, para a obten-
ção do título de bacharel em Jornalis-
MORETTI, Marco Aurélio Morro-
mo. Goiânia: 2005, p.9.
ne. A ética no jornalismo: o jorna-
2
lismo em tempos de guerra. São Ibid.
3
Paulo: Cenários da Comunicação DINIZ, Lília. Correspondente de guer-
(UNINOVE), vol. 3, dez., 2004, pp. ra: a rotina da cobertura no front.
89-102. 2011. Disponível em:
RUSKY, Renata Silveira. O perfil http://observatoriodaimprensa.com.b
e a rotina de correspondentes in- r/jornal-de-debates/correspondente-
ternacionais. Monografia apresen- de-guerra-a-rotina-da-cobertura-no-
front/. Acesso em 6 mai. 2018.
tada ao Curso de Comunicação
4
Social, da Faculdade de Comuni- Ibid.
cação da Universidade de Brasília, 5
CARVALHO, Élvio da Silva. Jornalismo
como requisito parcial para obten- de Guerra: o caso da Imprensa Portu-
ção do grau de Bacharel em Jorna- guesa. Dissertação para obtenção do
lismo. Brasília: 2013. Grau de Mestre em Jornalismo (2º
VIEIRA, Maria Clara Nicolau. ciclo de estudos), Universidade da
Correspondente internacional: es- Beira Interior, Artes e Letras. Covilhã
tudo sobre a atual conjuntura da (PT): 2013, p.13.
6
profissão. São Paulo: Revista AL- Ibid.
TERJOR, Grupo de Estudos Alter- 7
Ibid.
jor: jornalismo popular e alternati- 8
Ibid., p. 16.
vo (ECA/USP), ano 6, vol. 2, ed. 9
12, jul.-dez., 2015, pp. 123-134. Ibid., p. 13.
10
Ibid., p. 20.
1 11
BORGES, Lorena Araújo de Oliveira. Ibid, p. 21.
Entre a informação e a censura no 12
VIEIRA, Maria Clara Nicolau. Corres-
front: a guerra perdida dos corres- pondente internacional: estudo sobre
pondentes. Monografia apresentada a atual conjuntura da profissão. São
ao Curso de Graduação em Comunica- Paulo: Revista ALTERJOR, Grupo de

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Revista do IGHMB – ANO 78 – nº 106 – 2019 116
Estudos Alterjor: jornalismo popular e ontológica. Juiz de Fora: Centro de
alternativo (ECA/USP), ano 6, vol. 2, Pesquisas Estratégicas Paulino Soares
ed. 12, jul.-dez., 2015, pp. 123-134, de Souza, 2008, p. 7.
p.128. 25
Ibid.
13
Ibid., p. 128-129. 26
COSTA JÚNIOR, Emanuel de Olivei-
14
Ibid, p. 129. ra. A guerra no direito internacional.
15
BORGES, op.cit., p. 58. Revista Jus Navigandi, Teresina, n.
16 114, 26 out. 2003. P.6.
Ibid., p. 59. 27
17 Ibid.
Ibid. 28
18 RUSKY, Renata Silveira. O perfil e a
FIORENTIN, Luana; BERTOL, Sonia rotina de correspondentes internacio-
Regina. Reação de jornalistas após nais. Monografia apresentada ao
situações traumáticas: estudo descri- Curso de Comunicação Social, da Fa-
tivo-analítico. Anais do Intercom – culdade de Comunicação da Universi-
Sociedade Brasileira de Estudos Inter- dade de Brasília, como requisito par-
disciplinares da Comunicação, XVII cial para obtenção do grau de Bacha-
Congresso de Ciências da Comunica- rel em Jornalismo. Brasília: 2013, p.
ção na Região Sul. Curitiba: de 26 a 26.
28/05/2016, p.4. 29
19 Ibid.
Ibid., p. 10. 30
20 Ibid., p. 27.
Ibid. 31
21 MORETTI, Marco Aurélio Morrone.
GARCIA, Maria Fernanda. A foto, o A ética no jornalismo: o jornalismo em
prêmio e o suicídio. 2017. Disponível tempos de guerra. São Paulo: Cenários
em: da Comunicação (UNINOVE), vol. 3,
<http://observatorio3setor.org.br/not dez., 2004, pp. 89-102, p. 91.
icias/foto-o-premio-e-o-suicidio/> 32
Acesso em: 10 maio 2018. Ibid.
33
22
BORGES, op.cit., p. 60. Ibid., p. 92.
34
23
Ibid., p. 61. Ibid., p. 92-93.
35
24
CINELLI, Carlos Frederico Gomes. LOPES, Rodrigo Guimarães. A práti-
Direito internacional dos conflitos ca jornalística em áreas de guerra:
armados: legitimidade e confiança uma experiência brasileira na cobertu-
ra do conflito na Líbia. Dissertação

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Revista do IGHMB – ANO 78 – nº 106 – 2019 117
52
apresentada como requisito parcial Ibid., p. 676.
para obtenção do título de Mestre em 53
Ibid.
Comunicação, pelo Programa de Pós- 54
Graduação em Ciência da Comunica- Ibid., p. 681.
55
ção da Universidade do Vale do Rio Ibid., p. 682.
dos Sinos – UNISINOS. São Leopoldo 56
Ibid.
(RS): 2015, p. 28. 57
36
Ibid.
Ibid., p. 29. 58
37
MARCHIORO, Camila. Rubem Braga
Ibid., p.35. e Joel Silveira: dois cronistas no front.
38
Ibid. Londrina (PR): Revista Estação Literá-
39
Ibid., p.36. ria (UEL), vol. 11, jul., 2013, pp. 252-
40 262, p. 256.
Ibid., p.39. 59
41 Ibid.
Ibid. 60
42 Ibid.
BORGES, op.cit., p. 9. 61
43 Ibid., p. 260-261.
Ibid. 62
44
CHARLON, Maria de Lourdes Patrini.
Ibid., p. 14. Rubem Braga: correspondente de
45
Ibid. guerra na Itália. Anais do XV Congres-
46
CINELLI, op.cit., p. 2. so da ABRALIC (Associação Brasileira
47 de Literatura Comparada), com a
Ibid., p. 3. temática Experiências Literárias e
48
HENN, Leonardo Guedes. Os cor- Textualidades Contemporâneas, Uni-
respondentes de guerra e a cobertura versidade do Estado do Rio de Janeiro
jornalística da Segunda Guerra Mun- (UERJ). Rio de Janeiro: de 07 a 11 de
dial. Santa Maria (RS): Revistas Sociais agosto de 2017, p. 6783.
e Humanas (Universidade Federal de 63
Ibid.
Santa Maria/Centro de Ciências Soci-
ais e Humanas), vol. 26, nº. 03,
set./dez., 2013, pp. 670-686, p. 670.
49
Ibid.
50
Ibid., p. 674-675.
51
Ibid

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