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OS SOLDADOS PERDIDOS

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por qualquer meio

Título: Os Soldados Perdidos


Autor: João Viegas
Fixação do texto e revisão: Carlos d’Abreu
Prefácio: Mário Tomé
Posfácio: Carlos d’Abreu
Paginação: Paulo Pratas
1ª Edição - Julho 2020
Impressão: Tipografia Damasceno, Coimbra
Depósito Legal: XXXXXXX/20
JOÃO VIEGAS
Aos dez mil militares portugueses mortos durante a guerra colonial,
aos milhares de feridos e estropiados, destacando os “encestados”,
homens sem braços, nem pernas, metidos em cestos de verga,
cheios de tubos, à espera da morte nos fundos dos hospitais militares,
assim como aos homens das “banheiras”, militares atingidos pelo nosso
napalm.

Aos meus seis filhos, seis netos e uma bisneta,


para que nunca venham a conhecer a guerra que me ensombrou a vida!
PREFÁCIO

A GUERRA COLONIAL NÃO ACABOU

Mas por um homem ferido / num labirinto perdido /


entre uma morte e uma vida! // Transforma-se o oprimido /
em instrumento opressor / Nasce num peito uma guerra! /
E, lá longe… / Na sua terra / o abutre, o carrasco, / o nazi, /
a peste, / enchendo o ventre de carne / escreve: /
“DITOSA PÁTRIA QUE TAIS FILHOS DESTES”
António Calvinho

Bardamerda para tal gente e um hurra


aos cadáveres de todos os soldados perdidos,
afinal, todos nós
João Viegas

Enquanto um só combatente estiver vivo, enquanto mulheres e


filhos permanecerem vivos e com eles os traumas que a guerra co-
lonial provocou nos corpos e nos espíritos, ela aí está. A guerra co-
lonial.
Já muito se escreveu sobre aqueles treze anos que deixaram a
marca mais dura e mais profunda no século vinte português.
“Os Soldados Perdidos”, que tenho à minha frente, quarenta e oito
anos depois de o seu autor, João Viegas, ter desembarcado no “paraí-
so de todos os medos” como ele próprio qualificou aquela terra que

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atrai e repele a um tempo, será, talvez, a última obra literária sobre a
guerra colonial escrita por um ex-combatente.
O stress provocado pela brutalidade e pela violência da guerra,
pelo que viveram durante aqueles mais de dois anos, uma interrup-
ção brutal na sua vida em construção, na continuidade das suas vi-
das profissionais, no amanho do campo, nos estudos, despertou em
muitos combatentes mobilizados como carne para canhão, a neces-
sidade e a vontade incontida de pôr no papel, tanta vez numa abor-
dagem literária sem filtro, como quem respira, a realidade nua, bru-
tal, sem contemplações, quase sem narrativa organizada, um grito,
um berro tão violento quanto a própria guerra que o determinava.
Uma condenação sem apelo, saída do coração, da chaga aber-
ta para sempre, do coto ainda mais provocador que inferiorizante
como foi, aliás, o caso de um dos personagens reais, como são quase
todos, senão todos, os que habitam esta obra tão singela e tão pode-
rosa. Refiro-me ao Jorge Carneiro, militar e combatente de eleição e
um revolucionário genuíno.
Assim foi a verdadeira aprendizagem daquela guerra para a ge-
ração que lhe sucedeu, pela pena de escritores que nunca o tinham
sido ou que não constavam (ainda…) do main stream da literatura,
a arte a brotar das profundas feridas que lhes marcaram a alma, quer
pelo que viram fazer quer pelo que fizeram e nunca pensaram ser
capazes de fazer, quer pelo que sofreram na verdadeira solidão dos
que enfrentam a morte iminente.
Em “Os Soldados Perdidos” encontramos a revelação profunda
do humano pela exposição visceral dos soldados na sua permanente
procura da sobrevivência física e anímica numa realidade cuja es-
sência lhes escapa mas que vão aprendendo a dominar, a cada dia
que passa no confronto com o inesperado, por vezes com o indizível.
Uma inteligência prática e uma capacidade inata de resistência
constroem o seu mundo possível servindo-se da própria hierarquia
que os sujeita.

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O cotejo, que me atrai, de duas obras tão diferentes mas tão pró-
ximas como são “Nó Cego”, a obra-prima que se impõe como o re-
quiem da guerra colonial e “Os Soldados Perdidos” de João Viegas,
decorre de, nesta última, termos um invulgar e poderoso enlace en-
tre a veemente e sistemática condenação da guerra, e desta guerra
em particular, a condenação frontal dos assassinos de voz meiga que
a impõem por métodos brutais, totalitários e terroristas e a explícita
e por vezes entusiástica celebração, mesmo exaltação, das qualidades
militares daqueles que são forçados ao combate que está presente em
“Nó Cego”.
Será uma característica de todas as guerras esta contradição,
eventualmente percorrerá todas as obras, mas aqui encontramo-la
no centro da narrativa. Aqui não se trata de uma constatação amar-
ga. É uma forma muito bela, quase ingénua, de como se celebra a
vida e a sua precariedade.
Falo-vos de um belo livro. Um belo livro caracterizado pela sim-
plicidade narrativa que nos põe no centro da acção, por vezes qua-
se frenética, mobilizados também nós “ao serviço da pátria” como
ainda hoje sem qualquer pejo se diz daqueles que foram vítimas do
fascismo e enviados para matar os seus irmãos de sofrimento, ainda
mais brutal e depois, calhando, morrer.
Um estilo lesto e vivíssimo, sem rodriguinhos nem apaziguado-
res nem moralistas, sem complicações ficcionais, com a limpidez e
a força da realidade crua, acompanha a acção do alferes miliciano
Viegas, como tantos outros arrancado aos seus filhos, sem direito a
beneficiar da figura de “amparo”, por razões que conhecemos, pois
ele fazia política e propaganda subversiva insidiosa contra a guerra
colonial transformada na linha principal de ataque ao fascismo.
Feita a travessia do sofrimento, da contradição angustiante entre
a consciência anti-fascista e anti-colonial e a consciência mobiliza-
dora, tornada necessidade, de que tinha que levar os seus homens
de volta para casa, fosse onde fosse e de que para isso tinha que sa-

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ber estar à altura, ele, saído de uma instrução precária, militar fei-
to à pressa, carne para canhão, eis o nosso alferes miliciano Viegas
que escapou por entre os pingos da chuva, de volta ao seu CITAC,
entretanto assaltado, roubado, encerrado e destruído pela PIDE, de
volta ao encontro dos colegas e camaradas para o fazer renascer e
com ele repercutir na arte a paz e a liberdade conquistadas. A beleza
dos jogos de amor desprendido, simples e divertido com Bela, a jo-
vem informadora do PAIGC como todos sabiam, mas que oferecia
momentos de prazer único naquelas paragens, fê-lo sofrer genuina-
mente quando foi presa pela PIDE e desterrada para um campo de
concentração, o Ilhéu das Galinhas, no arquipélago dos Bijagós.
Mas teve o prazer de ser o primeiro a receber o seu abraço emo-
cionado e sentir correndo pela sua face as lágrimas de alegria e de
emoção e de amor com que Bela se encolheu, feliz de novo, nos seus
braços numa festa à liberdade de ambos e de ambas as pátrias.
A narrativa da experiência do alferes miliciano Viegas, desde o
embarque no DC-6 para a Guiné, “o paraíso de todos os medos”
até ao regresso a casa, dois anos depois de ser encharcado, sem avi-
so, pelo seu próprio suor, pegajoso e mórbido, com que Bissau na
“época das chuvas” saúda os que mal assomam à porta do avião no
aeroporto da Bissalanca, até dois meses depois do 25 de Abril, quan-
do regressa à ”Metrópole” é um palpitante hino à alegria de viver
através das picadas da morte.
João Viegas fá-lo com uma entusiástica e quase absurda delicade-
za, que se esconde por detrás da adopção sistemática da linguagem
vulgar e rude dos homens na fronteira do suportável. Somos tocados
profundamente pela sensibilidade esclarecida dum sentido crítico
irredutível decorrente da sua inteligência de artista.
A sempre presente condenação do fascismo e da guerra colo-
nial não prejudica a naturalidade com que, nela metido até aos ca-
belos, fosse simplesmente um soldado camarada dos homens que
comandava desenvolvendo uma relação de grande fraternidade e

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compreensão com cada um, assumindo naturalmente com grande
espontaneidade a capacidade de comando entre camaradas, esta-
belecendo uma hierarquia muito própria alicerçada nos humanos
valores e interesses comuns: enfrentar as condições adversas, en-
frentar aqueles que os obrigaram a designar por inimigos e que, na
elementaridade radical da luta pela sobrevivência, foram forçados a
agir como se assim fosse.
O Alferes Viegas e os seus homens construíram um núcleo in-
vencível, e não me refiro às vicissitudes do combate, porque simples-
mente foram levados ao entendimento de que a sua vida e a sua hu-
manidade essencial se enraizavam não tanto na eficácia do combate
ao inimigo, que, reconheçamos, não era muita, mas na fraternidade
e solidariedade que souberam construir.
E uma das coordenadas determinantes foi a compreensão de que
a tragédia se combate com a alegria da camaradagem e que a cora-
gem para a viver também pode nascer da própria acção.
Em “Os Soldados Perdidos” o autor, ele mesmo o alferes mili-
ciano Viegas, subverte pela forma como age e se relaciona com os
seus homens, os cânones da hierarquia contrapondo-lhe, em pleno
teatro de operações, a solidariedade e a fraternidade que constituem
a verdadeira camaradagem. E mesmo a base da eficácia operacional
possível.
João Viegas consegue, na pessoa do alferes Viegas, pôr em prática
os ensinamentos de “A Arte de Ser Chefe” de Gaston Courtois —
curiosamente um sacerdote francês ligado ao movimento dos tra-
balhadores católicos — estudada na Academia Militar, mas tão só,
para tantas vezes serem postos de parte pelo carreirismo, pela opção
do mando em vez do comando, pela pusilanimidade do carácter que
fornece à burocracia todo o seu poder e pelo cretinismo militar, para
parafrasear Lenine quando classifica o cretinismo parlamentar.
Na sua hostilidade radical à guerra e à hierarquia, o alferes Viegas,
por amor dos seus homens e não à pátria dos fascistas, capitalistas e

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latifundiários que, ainda hoje, roubam ao povo a sua pátria para lhe
imporem a deles, revela-se um verdadeiro comandante, encostando
às tábuas a hierarquia que sempre tentou submete-lo às suas regras
estritas sem realmente o conseguir.
Um verdadeiro comandante sempre na primeira linha a enfrentar
os perigos que a todos ameaçavam. Ele próprio, ferido em combate e
evacuado para de novo voltar por exigência sua para junto dos seus
homens, os camaradas a quem pertencia e que comandou nas mais
diversas situações ora abrigando-se do tiro dos guerrilheiros ora
correndo de peito aberto sobre eles como o exemplo dos soldados
africanos sob o seu comando o obrigava.
Mas bom bom eram, quando a sorte o proporcionava e surgia
a oportunidade, aquelas boas bebedeiras catárticas conjuntamente
com a ida às meninas nas povoações já organizadas de acordo com o
cânone colonizador. E para esses momentos de absoluta entrega ao
prazer não importava arriscar de novo a vida numa emboscada ou
no rebentamento de uma mina. A vida é nossa, vale mais arriscá-la
porque nos sabe bem do que sob o látego infernal da hierarquia.
Viegas irá, já na última fase da comissão ser colocado no Esta-
do Maior do comando-chefe por decisão directa do general Spínola,
que antes de ser chefe dos bombistas do MDLP no intento abstruso
de fazer ajoelhar a democracia, esquecido de que há formas mais
eficazes como ficou provado, foi um comandante militar de prestígio
apesar de condenado a perder a guerra já perdida logo que começou.
Aí, as capacidades de Viegas para analisar as diversas componen-
tes do movimento das tropas baseado nos serviços de informações
tornaram-no indispensável.
Sublinhe-se que os serviços de informações militares estavam
organizados de acordo com a estrutura da NATO a que o governo
fascista de Salazar aderiu orgulhosamente para a defesa comum das
nações democráticas da Europa, decerto com a garantia de que tais
democracias, não apoiariam, como sucedeu, o movimento demo-
crático que timidamente eclodiu em Portugal na sequência da der-
rota do nazi-fascismo em 1945.
Isto quer dizer que a capacidade de obter informações sobre os
movimentos do inimigo estavam praticamente a cargo das unida-
des militares no terreno e, essencialmente, dependente da PIDE e
sua vasta rede de bufos. Tal colocava a PIDE numa situação relativa-
mente privilegiada que sustentava uma certa arrogância quando em
contacto com as unidades combatentes.
O alferes Viegas, quando ainda no comando operacional do seu
pelotão teve ocasião de confrontar uma dessas ratazanas da PIDE
dando a fuga a um guerrilheiro de que o pide, o inspector Palma, se
arrogara o direito de se apoderar para o torturar e extorquir infor-
mações, mostrando serviço.
As relações entre os militares e as polícias políticas foram sempre
conflituais, o que se pode atribuir à frequente actividade política e
golpista desenvolvida pelos militares, aliás na tradição revolucioná-
ria desde o afrontamento a Beresford que custou a vida ao General
Gomes Freire de Andrade. O próprio 28 de Maio de Gomes da Costa
teve, no seu desencadear, uma percepção dos interesses populares
à flor da pele naturalmente esmagados logo de seguida pela forças
do capital e dos senhores da terra organizadas em torno de Salazar.
Outras tentativas, várias, de derrubar os fascistas, envolveram civis
e, sempre, militares até ao assalto ao quartel de Beja, em 1961, para
proclamar o legítimo presidente da República, o General Humberto
Delgado.
Nesta sua nova actividade acompanha de perto o movimento dos
Capitães, a aproximação ao PAIGC e as dificuldades inerentes ao
encontro de forças beligerantes durante treze anos e que agora se
confrontavam ainda mas para encontrarem a melhor forma de se
darem as mãos.
O Movimento dos Capitães a caminho de se tornar Movimento
das Forças Armadas para atenuar a radicalidade do golpe, enquanto

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iam morrendo soldados e guerrilheiros esforçava-se por se libertar
da estratégia spinolista de manter o império esgotado e apodrecido.
De regresso à vida de cidadão finalmente livre face ao poder,
porque livre foi sempre perante si próprio, de cidadão politicamen-
te comprometido e empenhado e não apenas cidadão sobrevivente
duma guerra que lhe não dizia respeito mas o confrontou nas suas
mais profundas convicções, de regresso à sua actividade profissional
num Portugal liberto do fascismo mas ainda e sempre sob ameaça
dos “irredentistas”, o professor não descurou a defesa material da
liberdade conquistada.
Agora já na sua escola, em Figueiró dos Vinhos, participou en-
tusiasmado na preparação da resistência à possibilidade de uma in-
cursão de um forte grupo terrorista que se constituía do lado de lá
da fronteira, na Espanha franquista. A experiência humana e opera-
cional ganha na luta contra a liberdade a que fora obrigado, estava
agora pronta para a defender até às últimas consequências.
Duas personagens fundamentais, para além, naturalmente, do al-
feres Viegas, lui même, balizam todo o conceito estético, humanista
e ético de “Os Soldados Perdidos”. São elas o Furriel Trindade for-
mado na escola dos Rangers, formando combatentes com elevado
grau de eficácia. Ele será o verdadeiro instrutor, o protector durante
os combates, o companheiro seguro de tropelias, o amigo e compa-
nheiro de todos os momentos.
E o comandante do destacamento de fuzileiros, o explosivo ruivo
Labaredas, pronto para acorrer em auxílio sempre que necessário
no combate ou na festa com que os combatentes celebram o estarem
vivos.
Estas duas personagens, na vivíssima simplicidade com que são
descritas, expressam afinal, e de forma tão real, a complexidade ra-
dical da vida das tropas especiais, neste caso os “ranger” e os “fuzos”.
Eles assumem como sua própria natureza, como justificação do pró-

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prio acto de combater numa guerra odiosa, uma superioridade mo-
ral não em relação ao inimigo que desse são próximos, talvez mes-
mo irmãos, numa ética própria, mesmo quando não percebida, que
tantas vezes sublima a violência, até quando extrema, no combate
que apenas fisicamente os opõe. Trata-se pelo contrário de uma su-
perioridade que os faz permanecer, vivos ou mortos, uma acusação
eterna às bestas engomadas que lhes impuseram a maior das violên-
cias: tirar a vida aos seus próprios irmãos.
A burocracia virtuosamente assassinada, a hierarquia metamor-
foseada no desfrute da fraternidade, da solidariedade, da camarada-
gem.
A humanidade manifestando-se em toda a sua beleza no “paraíso
de todos os medos”.
A abnegação e o medo, eis o ser humano na sua totalidade.
Ao longo da leitura destas páginas senti-me contigo meu caro João
Viegas. A acompanhar-te nas picadas, nas bebedeiras, nos combates,
no estremecimento angustiado perante a tua luta pela vida quando
ficaste gravemente ferido, a construir contigo, com o Trindade, com
o Labaredas e a malta toda, pretos e brancos, a caminhada que me ia
pôr do lado daqueles com que afinal iria identificar-me e unir forças
para liquidar, ainda que só daquela vez, o inimigo comum. Ele aí está
ainda e sempre, neste seu actual avatar pandémico de que somos
todos iguais à brava.
Fiquei feliz por me teres escolhido para escrever estas linhas e
pelo que me fizeste reviver tão bem acompanhado.
Belo livro!
Obrigado, um grande abraço.

Mário Tomé

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NÃO VISTE
QUE LÁPIDES E FLORES
PARTILHAM O MESMO MAPA?

É ASSUNTO TEU
NAUFRAGAR EM TERRA.

(Karlotti Val, Postais de Fumo)


OS SOLDADOS PERDIDOS

Em nenhuma guerra foram os soldados vencedores. Só os ge-


nerais, os marechais, os políticos, ou seja, os senhores das guerras,
saíram vitoriosos. Os milhões de cadáveres que regaram o chão dos
campos de todas as batalhas, nunca tiveram importância. “Os Sol-
dados Perdidos” é um livro dedicado a todos os soldados de todas
as guerras, cujos nomes figuram sempre como números dispensá-
veis, enquanto os banqueiros de mãos dadas com os políticos, os
verdadeiros senhores do mundo, comemoram as misérias dos mor-
tos com champanhe francês e caviar, por entre sorrisos canalhas de
quem nunca perdeu o poder.
Bardamerda para tal gente e um hurra aos cadáveres de todos os
soldados perdidos, afinal, todos nós.
Aos combatentes da guerra colonial, ainda mais perdidos que os
outros, um abraço de irmão de guerra, sabendo nós que essa guerra
embora já terminada, ainda vive na cabeça de milhares de homens
que sacrificaram a juventude para engordar os mesmos políticos que
continuam a desgraçar o meu povo.
Naquele 16 de junho de 1972 estava um belo dia de Verão, ideal
para uma ida à praia. Quis o destino que a minha sorte estivesse
marcada para embarcar, nesse mesmo dia, para a guerra colonial,
mais propriamente para a Guiné, o paraíso de todos os medos onde
a morte espreitava em todas as bolanhas e a vida era só um intervalo
no próprio medo.
Para cúmulo, a viagem seria feita durante a noite, num dos fa-
mosos DC 6 da Força Aérea, aeronave de transporte de carne fresca
para o esforço de guerra. Ir de avião para a guerra era um luxo exa-
gerado para um alferes assustado.

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João Viegas

Não era todos os dias que se era convocado, à força, para ir ajudar
a guerra das tropas do império. Orgulho desmedido para alguns,
muito poucos, chatice para outros mais divertidos e, um enorme
medo para a grande maioria dos privilegiados. O meu caso estava
entre estes últimos, não tenho vergonha em dizê-lo.
A viagem começou com um aperto de mão entre a meia dúzia de
alferes, tão assustados como eu e, como não podia deixar de ser, co-
meçámos por comprar uma garrafa de whisky, que se revelou meio
esquisito, o que naquelas circunstâncias, de sede muita e medo tam-
bém, pouco importou. Atacámos o líquido com a sede dos vulgares
mortais e passado pouco tempo estávamos todos já mais ou menos
contentes. Essa alegria forçada revelou-se muito importante na evo-
lução da própria viagem, pois resultou na utilização ruidosa dos fa-
mosos sacos para vomitar.
Parecia que íamos para uma alegre excursão, algures num paraíso
tropical, em busca das tataranetas ninfas camonianas. A porcaria da
viagem nunca mais terminava, as anedotas iam-se esgotando com
a bebida, que se esgotou entretanto. Com o passar das horas, a es-
tremecer com os solavancos daquela lata velha, não havia graça que
resistisse e, as piadas já não tinham pilhéria nenhuma.
Dormir durante o voo só à custa da bebedeira que acalentava as
almas. As horas passavam intermináveis, já dormia quando chegá-
mos a Bissau, pelas 8 da manhã. A porta do avião abriu-se e fomos
invadidos por um calor brutal e uma luz intensa que nos atravessou
o corpo como um choque eléctrico, provocando-nos um suor pega-
nhento que ensopou a camisa — porcaria de farda — e um cheiro
estranho embalou-nos o olfacto.
Bissau…, uma luz incrível a inundar a cidade, um aeroporto ex-
cêntrico rodeado por enorme matagal. Quando dele saímos, uma
longa estrada de asfalto e cheia de lombas conduziu-nos ao famoso
quartel-general (QG), local onde o nosso destino seria decidido por
um oficial superior, de preferência mal-encarado, olhar de sapo pa-

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Os Soldados Perdidos

pudo, cheio de galões e farda engomada até ao cabelo, cabelo rigoro-


samente cortado à escovinha, tudo para que os maçaricos sentissem
o peso da importância das suas nobres missões.
— Senhores alferes, bem-vindos à Guiné, pois esta será a vossa
casa nos próximos anos. Se seguirem as regras, à risca, poderão vol-
tar a casa inteiros e cheios de saúde. Este clima até é propício a uma
saúde de ferro, claro que é preciso evitar excessos e ter cuidado com
o inimigo que está em toda a parte. Tirando esses pequenos por-
menores podemos dizer que irão gostar muito do tempo que aqui
passarem. Boa sorte a todos….
— Que discurso da treta. Cheira-me a esturro, tanta saúde no
meio desta merda toda. Estão-nos a enganar.
Depois, a apresentação aos outros alferes e a distribuição pelos
respectivos postos de combate.
— O alferes Viegas vai para Catio comandar um destacamento de
caçadores africanos, em substituição do alferes Abrantes, falecido no
local, num trágico acidente.
Vim depois a saber que o referido acidente, não foi mais que uma
execução sumária, porque o Abrantes se recusou a fornecer uma
viatura a uns soldados africanos que queriam ir à tabanca visitar as
famílias. Os assassinos que nunca foram sequer identificados, mon-
taram uma HK 21 à saída da tenda e limitaram-se a descarregar a
fita de munições no corpo do infeliz. Ninguém viu nada, porque os
caçadores africanos, todos eles ex-guerrilheiros, tinham um espírito
de corpo impressionante e, não confessaram a autoria do atentado.
Como é hábito neste tipo de situações a responsabilidade pela
morte de um alferes não era assim tão importante, mais morte me-
nos morte, era para isso que servíamos.
Com esta notícia aterradora, lá assumi as minhas funções, esfor-
çando-me por conciliar imprevistos e o mau feitio dos caçadores
africanos mais exaltados. A tarefa não tranquilizava, mas não era
impossível para quem sabia lidar com gente perigosa, muito mais

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João Viegas

perigosa, refiro-me aos famigerados “pides” que estavam por toda a


parte, a controlar tudo, com aqueles ares canalhas e prepotentes. O
mato dava-me (alguma) segurança. Aqui os rapazes da gabardina,
dos casacos mal-amanhados para caberem as pistolas, das caras pati-
bulares, não arriscavam meter-se com um alferes suspeito, com ficha
escura como breu, que ainda por cima comandava ex-guerrilheiros
loucos.
Se dissesse que foi fácil, era presunção a mais: todos os dias havia
problemas, até entre eles, que se esfaqueavam por nada, para além
do perigo de andarem armados até aos dentes. A minha grande pro-
va de fogo foi numa emboscada que o inimigo (IN) nos fez. No mo-
mento em que começou o tiroteio, os meus soldados começaram a
disparar à maluca, e avançaram na direcção dos tiros dos guerrilhei-
ros, gritando palavras no seu dialecto — que nunca aprendi verda-
deiramente — de peito feito às balas, sem qualquer tipo de temor,
enquanto me atirava para o chão, conforme vi nos livros em Mafra.
Errado, a táctica era mesmo correr juntamente com os homens, a
disparar e a gritar de qualquer maneira, só “evitando” ser atingido
no meio de tanta confusão. Tarefa que parecia incrível, mas que foi
resultando milagrosamente. Por entre mortos e feridos, nunca fui
seriamente atingido e, consegui sobreviver até aos dias de hoje. In-
terrogo-me como tal foi possível…
Claro que sabia que esta situação era transitória, pois quando as
coisas acalmaram, por razões que desconheço, tinham que me ar-
ranjar outro posto, noutro local, de preferência ainda mais perigoso,
para me porem a sorte à prova.
Assim foi e, num dia cuja data esqueci, fui informado para me
preparar, pois seguiria viagem para outro destacamento.
Eis que me vejo a ser enviado para a zona de Bambadinca, mais
concretamente para Mansambo, uma espécie de paraíso comparado
com o anterior quartel. O grande e não único problema consistia na
viagem pela picada que tinha mais minas que buracos um queijo

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Os Soldados Perdidos

suiço. Aprendi que o melhor remédio era mesmo não pensar nas
minas, pois se uma rebentasse com o unimog, era viagem certa para
a tragédia, corpos pelo ar, membros decepados a bailar pelo chão,
sangue a ensopar a mata, helicópteros que tardavam a chegar, solda-
dos aos gritos e a chorar, cadáveres queimados como barrotes.
Infelizmente, assisti a essas cenas vezes demais e, recordo o cheiro
a carne queimada e a sangue. Aliás, esse cheiro fica-nos gravado na
alma para o resto da vida…
A rotina num acampamento militar é mesmo uma grande chati-
ce. Como não há nada para fazer, viam-se casinos a funcionar em to-
das as camaratas-abrigo, as cervejolas meias frescas a escorregarem
pelas gargantas ressequidas, a sede infernal, sempre a sede, porque
beber água, só com desinfectante e a saber a bosta era insuportável.
Por isso mesmo optei por encher um dos cantis com whisky e “coca-
-cola” e, ia disfarçando a bebedeira conforme podia.
E os dias arrastavam-se ao ritmo do calor, suados e chatos, com
um peso enorme a vergar a vontade de adiar tudo o mais tempo
possível. Aliás, já a própria vida estava adiada.
Fiquei a comandar o 4º pelotão, dada a morte recente do alferes
titular, o Oliveira, que teve o azar de ir no lugar do morto, numa
coluna a Bafatá.
Quando me foi entregue o pelotão, destacou-se um jovem, o fur-
riel Trindade, de operações especiais, uma espécie de anjo-da-guar-
da, já que ele sabia mesmo de guerra, era valente e atrevido, e senti
logo amizade por aquele jovem guerreiro que estava em toda a parte,
especialmente onde a minha vida corresse perigo.
Éramos irmãos de guerra, partilhávamos os copos, as miúdas,
as inúmeras emboscadas para as quais nos enviavam. Em privado,
tratávamo-nos por tu, no pelotão havia a cadeia do comando. Eu só
avançava depois dele me dizer se era mais ou menos seguro.
A rotina diária era montar emboscadas bem longe do destaca-
mento, sempre com um picador africano à frente da coluna, eu co-

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João Viegas

locado no meio do pelotão e o Trindade a circular por toda a par-


te. Um dia, já farto de tanta monotonia, tive a ideia peregrina de
combinar com o Trindade a escolha de um local abrigado, longe das
pistas normais, onde poderíamos descansar de tanto calor e aprovei-
tar para relaxar. Bem-dito, melhor feito, encontrámos esse lugar, a
seguir a uma enorme bolanha, logo atrás de umas bagabagas, isto é,
enormes termiteiros consistentes e rijos como cimento, onde insta-
lámos a emboscada, cada dois homens abrigados por detrás dessas
defesas naturais. Aliás, os guerrilheiros faziam exactamente a mes-
ma coisa. Depois de colocados estrategicamente, eu e o Trindade
fizemos revista às posições e verificámos estar tudo preparado para o
que desse e viesse. Após a revista era o momento do descanso, todos
em silêncio e sem fumar. Cada um puxava dos seus livritos de banda
desenhada e entretinha-se a matar as horas e o calor. Alguns mais
atrevidos levavam umas cervejolas nos bornais das munições, coisa
que mais tarde iria ter consequências, só não desastrosas, por pura
sorte. Num dia em que nos dirigíamos para o local, fomos embos-
cados e pedi ao cabo Fonseca para mandar umas morteiradas para
afugentar os guerrilheiros. Qual não é o meu espanto quando o Fon-
seca, após dois disparos com o morteiro sessenta, vem ter comigo
muito aflito e me confessa:
— Alferes, já não tenho granadas, hoje trouxe mais umas cerve-
jas, desculpe lá…
Em face duma situação que se podia tornar perigosa, mandei
retirar, dizendo aos homens para lançarem granadas à discrição. A
confusão que se estabeleceu foi-nos proveitosa e permitiu-nos se-
guir para o quartel. Lá chegados reuni o pelotão de imediato e fiz um
discurso onde apelei à obrigação de nos esforçarmos por sobreviver,
não só relativamente a cada um de nós, mas também ao grupo. A
coisa encaixou na perfeição, a maioria dos homens veio ter comigo
e pediu desculpa “por qualquer coisinha”, alguns abraçaram-me e
pediram que os levasse dali sãos e salvos.

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Os Soldados Perdidos

Claro que perdoei o incidente, até porque não houve baixas, e


creio que os mentalizei a não trocarem granadas de morteiro por
cervejas, não fosse o diabo tecê-las e caíssemos numa emboscada
infernal, com mortos e feridos.
E os dias tornavam-se infindáveis, do abrigo para as operações, só
interrompidos por uns jogos de futebol selvagem, pernas escalavra-
das, porrada de criar bicho, insultos e mais porrada. Confesso que
nunca fui muito bom a jogar à bola, motivo por que a equipa onde
jogasse, era mais que certo, perdia escandalosamente.
Num dia de Agosto foi enviada uma coluna à cidade de Bafatá
usando a famosa pista da morte, uma estrada de terra batida, cheia
de buracos e minas. O pesadelo de qualquer soldado. Eu seguia na
GMC da frente, precisamente sentado no lugar do morto, ou seja, ao
lado do condutor. À frente do camião instalávamos sacos de areia
para amortecer o impacto de alguma mina imprevista. Claro que
estas colunas feitas para abastecimentos de vária ordem, eram apro-
veitadas para o pessoal comer na cidade os famosos bifes com ba-
tatas fritas, muito picantes e também um bom pretexto para ir às
“meninas”, numa casa fora da cidade, pintada num vermelho vivo,
tipo lanterna, onde as tropas faziam bicha para entrar. Por deferên-
cia militar, o alferes era o primeiro a escolher a mais bela e atrevida
miúda, privilégio que nunca recusei, bem como o furriel Trindade,
meu segundo no comando e primeiro na amizade, irmãos de san-
gue e de armas. Habitualmente as sessões prolongavam-se por muito
tempo, nunca se sabia se no regresso alguém ficaria esticado para
sempre. Era mesmo o merecido repouso dos guerreiros solitários e
tristes. Após esta sessão agitada, seguíamos todos em conjunto para
a zona dos restaurantes, à cata dos bifes afamados.
Quando chegávamos, a festa e alegria da juventude inundava o
local, por entre as caras bronzeadas dos comensais habituais, chatea-
dos por verem o seu espaço ser invadido por tanta farda estridente
e alarve. O vinho da casa era impossível, uma mistela enviada da

25
João Viegas

pátria em bidões de duzentos litros, negociata segura de alguma alta


patente que fazia aquilo que melhor sabia, ou seja, enriquecer com
a merda da guerra, a qualquer preço, não fosse acabar de repente o
tacho e deixasse de entrar o vil metal que move todas as guerras. Vi-
nho só mesmo de marca, o que o tornava caríssimo. A cerveja corria
gelada, sempre mais cerveja, não fosse a festa acabar por falta dela.
Comecei a constatar que uma certa bebedeira começava já a toldar
as cabeças dos soldados, situação perigosa no regresso ao quartel
pois podia haver emboscadas no caminho e o que menos queria era
que houvesse baixas estúpidas. Tive que me levantar e dar um berro:
— Camaradas, não há mais copos, acabou-se a festa.
As reacções não foram pacíficas, por vontade de alguns devia a
festa continuar pela tarde dentro. Depois de os mandar formar à
frente do restaurante, distribuí-os pelas viaturas estacionadas na es-
trada. Segui para a GMC com o meu grupo de sete homens, sendo
os restantes dezasseis enviados para os dois unimogues.
Lá seguimos viagem em marcha acelerada, com pressa de chegar
ao quartel. A GMC à frente, as outras duas viaturas com uma distân-
cia de cerca de vinte metros entre cada uma, a melhor solução para
enfrentar uma emboscada.
Quando atingimos o quilómetro vinte, numa zona de mata cer-
rada com uma curva pronunciada, começou o tiroteio do IN, tendo
o meu condutor sido atingido no pescoço caindo para cima do vo-
lante. Dei o grito:
— Todos para o chão
Os soldados saltaram das viaturas já paradas e começou a festa
do costume, rajadas por todo o lado. Fiquei com a ala direita, o
Trindade comandou a esquerda. Deitados nas bermas da picada
ripostámos com tudo o que podíamos, rajadas, morteiradas, ba-
zucadas mas, o fogo do inimigo não parava. Situação de merda,
mas sem nunca perder o controlo. A dada altura comecei a usar os
dilagramas para enviar granadas em chuveiro sobre os guerrilhei-

26
ros. Neste momento o fogo começou a diminuir de intensidade,
mas para evitar surpresas, decidi avançar para a zona da embos-
cada, mato a dentro, até que chegámos ao local que tinha servido
de apoio às metralhadoras pesadas, local identificado por milhares
de cartuchos no chão, à mistura com sangue e rastos de fuga. Vol-
támos à picada, e, constatei que o Trindade tinha feito o mesmo
na sua ala, pelo que ocupámos as viaturas. Na GMC tive que afas-
tar o cadáver do camarada Simões que por azar tinha levado mais
uns tiros no tronco. Foi deitado cuidadosamente na parte detrás da
viatura, coberto com um pano de tenda, assumi o volante e mandei
avançar o Costa para o meu lado.
— Atenção camaradas, já viram que estes gajos nos querem lim-
par o sebo, atenção e abram fogo ao mínimo alarme. Conduzi o mais
rápido que podia e, só passada uma hora chegámos ao quartel. Con-
fusão instalada, todos a gritarem, a contar aos homens que ficaram,
a tragédia de ter perdido mais um amigo. O capitão lá veio pedir-me
satisfações e pormenores do ocorrido. Dei-lhe todas as informações
e, retirei-me para o meu quarto na casamata, já com o Trindade a
meu lado.
— João, não fiques triste, as mortes acontecem, não tiveste culpa.
— Porra Trindade, logo tinha que acontecer com aquele infeliz,
pai de família com dois filhos. Estou farto desta merda.
Deitei-me na cama, a ler mais umas páginas da biografia de Che
Guevara. Porra, o que aquele homem passou para libertar a América
Latina, na canga dos piores ditadores.
Quando se libertará o meu país da canga do herdeiro do “botas”
e dos seus apaniguados? Só com uma intervenção militar será possí-
vel, mas isso vai demorar muito tempo.
Este dia não era como os outros, havia muita tristeza estampa-
da nos rostos de todos os homens, eu cirandava pelo quartel, olhos
perdidos na mata, uma vontade enorme de sair dali. Encontrei o
alferes Almeida, outro bom camarada, comandante do 3º pelotão,

27
João Viegas

ex-estudante de História em Coimbra, outro jovem com quem podia


falar de política e da nossa miserável situação.
— Almeida, estamos fodidos, parecemos gado encurralado para
o abate.
— Tem calma, Viegas, é lixado perdermos um camarada, tens que
ter cuidado pois o capitão está-se a preparar para nos enviar para
uma grande operação lá para os lados de Madina do Boé, que como
sabes é território do IN já há alguns anos.
O jantar, cerca das sete, não foi um jantar normal, o pessoal a co-
mer na messe com muita pressa, pois tinha combinado com o Trin-
dade que nessa noite ia haver bebedeira colectiva com petiscos, ou
seja, frango frito com alho e cebola, com muito gindungo e grades
de cerveja a perder de vista. Seria a nossa forma de nos despedirmos
do camarada Simões, cujo cadáver já estava na enfermaria à espera
de ser embarcado num helicóptero que só viria no dia seguinte. Com
o pelotão todo sentado na mesa da camarata-abrigo, comigo à cabe-
ceira, o Trindade a meu lado, relembramos o defunto enquanto as
cervejolas frescas desapareciam a um ritmo alucinante. Claro que as
bebidas eram por minha conta, aboli whisky e outras merdas, mas o
bagaço de figo constava na ementa final.
— Camaradas, a vida continua, hoje calhou ao Simões, amanhã
pode ser um de nós, vamos beber. As sentinelas de serviço não po-
dem acelerar muito pois de seguida têm que ir ocupar os postos e
estar atentos. Por hoje já chega de mortos.
Olhei para os rostos daqueles rapazes e vi o medo espelhado em
todos os olhares.
Conforme o prometido, a festa foi mesmo de arromba. As cerve-
jas desapareciam e voltavam a aparecer, já ninguém falava da guerra,
só de coisas boas, miúdas, mais miúdas e aventuras que eram pura
invenção. Chegou a noite a galope, as risadas estridentes chamavam
a atenção para o abrigo do 4º pelotão. Sabíamos que o capitão não
ia aparecer, era pessoa demasiado importante para ir chatear trinta

28
Os Soldados Perdidos

homens em estado quase líquido. A noite foi longa, enquanto hou-


ve cerveja contaram-se histórias e anedotas, parecia que tínhamos
a corda toda. A partir da meia-noite, já metade dos homens dormi-
tavam com a cabeça na mesa, outros tinham ido para os beliches e
ressonavam selvaticamente. Destaquei dois camaradas para ficarem
de plantão, não fosse o IN lembrar-se de atacar pela calada da noite
e fazer “merda grossa”, como bem sabiam.
Depois de controlar todo o pessoal que já tinha aterrado, fui para
o quarto do comando do pelotão, ocupado por mim e pelo Trinda-
de, precisamente no extremo do abrigo, virado a Sul. Na única setei-
ra tínhamos instalada uma MG 42, metralhadora pesada alemã do
tempo dos nazis, que debitava 1200 tiros por minuto, uma máquina
de morte tipicamente alemã.
Os sacanas dos alemães sabiam bem como matar muitos e de-
pressa e, claro que os portugueses não deixavam de fazer o gosto ao
dedo, sempre ao serviço da bajulação. Pudera, com um império para
saquear era preciso limpar território e pôr os guerrilheiros confina-
dos a um espaço mínimo. Nunca assisti a nenhum massacre, mas sei
que os houve. Só uma vez participei numa operação em que o M.
apareceu com o seu grupo de comandos africanos, autênticos fan-
tasmas assassinos que andavam tão rapidamente pela mata que mais
parecia esvoaçarem de mãos dadas com a morte.
— Pôrra, alferes, têm uma cara de assassinos que até mete medo.
Dizia-me o cabo Fonseca, ao que retorqui:
— Deixem passar a morte, dá azar olhá-la de frente.
Essa operação militar foi mais uma retirada estratégica, pois o IN
estava à espera com mais de duzentos homens e estraçalhou uma
companhia de caçadores que seguia na vanguarda. Quanto aos co-
mandos africanos, retiraram ainda mais depressa do que chegaram,
ficando a retenção do IN nas mãos de duas companhias assustadas
e mal preparadas. Aproveitei a retirada para voltar à base o mais de-
pressa possível. Quando cheguei à rectaguarda, o acampamento es-

29
João Viegas

tava numa confusão total. Os comandantes a tentarem reagrupar as


tropas para nova investida mas uma ordem do general Spínola parou
com tudo e, por fim, recebemos a desejada ordem de regressar aos
quartéis. O resultado da operação saldou-se numa dezena de mortos
e várias dezenas de feridos.
Claro que nunca houve notícias sobre mais esta vitória das glo-
riosas forças armadas contra os terroristas a soldo de Moscovo.
Como era meu hábito, no dia seguinte acordei às 6 horas da ma-
nhã, pudera, o calor começava a partir das sete. Sentia o habitual
sabor a papel de música, estava meio enjoado. Os soldados estremu-
nhados estavam com uma cor um pouco amarelada, alguns ainda
tinham vómitos, outros encostavam-se às paredes para não caírem
redondos no chão. Em suma, não era lá muito bom dia para opera-
ções militares, esperemos que o capitão não tivesse acordado com
tendências heróicas e fosse lixar a taça…
Com um oficial daquele calibre tudo era possível e, como não
podia deixar de ser, fomos informados que iríamos dentro de pou-
cos dias para Bissau, a fim de seguirmos para Cobumba, na zona
do Cantanhez. Passados sete dias formámos uma imensa coluna de
viaturas onde levávamos todo o material de guerra necessário, bem
como os nossos bens pessoais.
No dia aprazado seguiu a coluna com toda a companhia a ser le-
vada para a capital, onde depois embarcaríamos para o destino final.
A viagem correu sem emboscadas, pudera, quem iria enfrentar
uma companhia inteira preparada para qualquer situação?
Passadas quatro horas, chegámos a Bissau onde fomos enqua-
drados num quartel da cidade. Como não tínhamos ideia da data
da famosa viagem para o Sul, ficámos com muito tempo livre para
conhecermos bem a capital. Claro que durante o dia ninguém fica-
va desocupado, era necessário fazer todo o tipo de exercícios num
ritmo acelerado, pois ninguém queria tantos homens desocupados
prestes a seguirem para uma posição mais complicada. O furriel

30
Os Soldados Perdidos

Trindade era o homem mais qualificado para pôr todo o pelotão a


mexer, acordar às sete da manhã, corrida de quatro quilómetros fora
do quartel, flexões, carreira de tiro, manhãs ocupadas a tempo intei-
ro para deixar os homens saírem à tarde e se espalharem pela cidade.
O maior problema eram as idas até ao Pilão, o bairro das meninas
mal comportadas, havia rivalidade entre as diversas armas e, quando
se cruzavam comandos com pára-quedistas ou com fuzileiros, havia
porrada pela certa, só interrompida pela intervenção da PM. Claro
que à noite ninguém saía do quartel, nem soldados nem oficiais, não
fosse haver um imprevisto.
Num dia azarado, fui com o Trindade ao Pilão, onde as casas
pobres já estavam apinhadas de soldados, e as raparigas às janelas
numa enorme exposição dos seus atributos. Numa determinada casa
encontravam-se uns rapazes do meu pelotão que, quando me viram,
em companhia do furriel, fizeram uma festa javarda, com aquelas
piadas de mau gosto:
— Então meus senhores, estão a tirar a barriguinha de misérias?
Risada geral com mais uns comentários ordinários. Foi-nos acon-
selhada uma casa com umas miúdas cabo-verdianas que eram o que
de melhor havia no local. Como seria de esperar, fomos inspeccio-
nar o local, aproveitámos para beber umas cervejolas geladas e logo
ficámos a conhecer a patroa, rapariga já entradota, toda arranjada
como se fosse para um baile, a fumar um charuto e a sorrir alarve-
mente. Parecia que estávamos num filme de Fellini:
— Sinhor alfero e sinhor furriel estava desejosa de os conhecer,
os vossos rapazes falam manga de bem dos sinhores, entrem na casa
de bó...
— Para o sinhor alfero tenho uma jovem bonita acabada de che-
gar de Cabo-Verde, a Bibi, para o sinhor furriel tenho outra manga
di beleza, a Gigi.
Lá apareceram as pequenas, dois monumentos à beleza africana.
Eu fiquei com a Bibi e o Trindade com a Gigi...

31
João Viegas

Aquecíamos naquele clima ajavardado, quando se ouve uma gri-


taria à entrada da casa:
— Putedo, chegámos!
Confusão instalada, gritos e mesas viradas. Tive que chamar o furriel
pois era ranger e, para lidar com comandos, só um ranger puro e duro.
— Camaradas, está aqui um oficial, mais respeito! Ao que logo
responderam:
— Um oficial da tropa macaca?
— Não, é o meu alferes!
Aí as coisas acalmaram, os dois matulões dos comandos amansa-
ram e pediram desculpa pela confusão.
— Camaradas, pago um whisky à vontade. E sim, sou da tropa
macaca, mas tenho um furriel ranger.
Os rapazes dos comandos iam ficando mais grossos à medida que
bebiam aquela mistela a que chamavam whisky, o que permitia que
eu e o Trindade prosseguíssemos a atividade para a qual lá nos en-
contrávamos.
Aos outros clientes que tentavam entrar eles cuidavam de os des-
pachar, dizendo:
— Isto hoje, já está reservado.
Quando saímos, lá nos encontrámos com os comandos muito bê-
bedos, abraços e hurras e seguimos para o quartel.
À chegada, fui logo chamado ao capitão que me comunicou que a
nossa partida seria no dia seguinte, pelas seis da manhã.
— Alferes, mentalize os homens da importância da missão, não
pode haver falhas...
Reuni imediatamente todo o pelotão e numa breve intervenção:
— Camaradas, amanhã seguimos para Cobumba que é um sítio
perigoso, o IN está espalhado pela zona e ao mínimo descuido cai-
-nos em cima. Se querem continuar vivos não pode haver descuidos
nem bandalheiras. Partimos às cinco da manhã, portanto o levantar
é às três, boa sorte a todos.

32
Os Soldados Perdidos

O silêncio abateu-se sobre todos os homens, é assim, quando a


morte se aproxima no dia seguinte. Nessa noite não houve copos,
nem jogatinas de cartas, quem tinha livros ia lendo para evitar que o
medo não lhe apropriasse a mente e a atrofiasse.
Adormeci com a lírica de Camões nas mãos, para poder navegar
na arte desse poeta-soldado que tão maltratado foi no seu tempo.
Fomos levados para o cais da marinha onde nos aguardava uma
LDG (lancha de desembarque grande), embarcação de transporte de
tropas, do tempo da segunda guerra mundial, com espaço para uma
companhia de infantaria, mais uma berliet e um unimog. À entrada
perguntei quem era os que não sabiam nadar, para lhes serem dis-
tribuídos coletes de salvação, não fosse aquela porcaria ir ao fundo e
morressem homens estupidamente.
A LDG tinha um nome bélico,” Bombarda”, e era comandada por
um primeiro-tenente, Taborda, um marinheiro simpático e afável
que conhecia a zona e bem sabia o buraco que aquilo era.
Depois de estar tudo em ordem lá zarpámos, rumo a Cobumba,
insondável destino assinalado pelo medo. Todos os homens revela-
vam cara triste e preocupada, não era para menos, depois de tanto
tempo a habituarem-se a um aquartelamento tinham que pegar nas
trouxas e seguir rumo ao desconhecido. Isto, na guerra, não era coi-
sa boa, cheirava mal, a emboscadas e ataques permanentes numa
zona nova.
Foi decidido com o capitão que, o meu 4º pelotão seria o primeiro
a desembarcar, para defender o perímetro e tratar de algum assunto
mais grave.
Até entrarmos no rio a viagem foi agitada, o mar alto a enjoar
muitos homens, que iam vomitando, borda fora.
Entretanto, fui até à torre de comando, zona onde estavam insta-
lados dois canhões bofford, armas potentes, uma a bombordo outra a
estibordo, com as respectivas guarnições, prontas a rebentarem com
qualquer ameaça.

33
João Viegas

Na ponte de comando dominava o comandante (cmdt) Taborda,


um jovem 1.º tenente, sempre bem-disposto, a esclarecer os oficiais
presentes das dificuldades da zona para onde íamos, zona que, se-
gundo ele, era bem perigosa, pois o IN controlava sectores vários,
as guarnições eram atacadas diariamente. A nossa sorte, dizia ain-
da, era termos por perto um destacamento de fuzileiros, comanda-
do pelo subtenente Labaredas, um grande comandante e autêntico
guerrilheiro que comandava um agressivo grupo de “fuzas”. Ficámos
todos mais descansados por sabermos que tínhamos amigos por
perto, distanciados só a cinco quilómetros.
O rio, de águas cinzentas, devido ao intenso lodo das margens,
corria calmamente, mas fazia-me impressão não saber o que andava
lá por baixo, pois não se conseguia ver nada. Perguntei ao cmdt Ta-
borda se não haveria crocodilos, ao que ele me disse que sim, peque-
nos, mas com uma fome danada. Não me tranquilizou, mas por ora
nada diria aos homens, não fossem entrar em pânico.
A viagem continuou com alguns soldados a vomitar por causa do
enjoo, já havia até um cheiro a bordo um pouco incomodativo, direi
mesmo uma javardice.
De repente, o cmdt gritou-nos que nos aproximávamos do local
de desembarque e aconselhou que preparássemos as pranchas metá-
licas que seriam encostadas à grande prancha de desembarque. Tudo
teria que ser muito rápido para que o meu pelotão organizasse um
perímetro de defesa, mais ou menos seguro.
Chegados ao local de desembarque, lá baixou a rampa de acesso,
que tombou no lodo cinzento e malcheiroso, enquanto várias pran-
chas de metal eram acopladas para que o pessoal saísse em passo
de corrida para ocupar posições de defesa na mata próxima. Claro
que o primeiro a saltar foi o furriel Trindade que logo que saiu da
prancha se enterrou no lodo, quase até à cintura, provocando uma
risada generalizada. Mandei colocar mais pranchas, no seguimento
das outras, para garantir mais estabilidade, até para a berliet que ti-

34
Os Soldados Perdidos

nha que levar dezenas de caixas de munições e outro equipamento


mais pesado. Depois da ordem cumprida, saí em formação com os
restantes homens que evitavam a maldita lama, avançámos para um
cabeço, que permitia uma boa defesa em caso de ataque.
Depois de avaliar a zona, disse ao capitão que podia avançar à
confiança. Assim, lá começaram a desembarcar os outros pelotões,
já que se sabia não haver IN na área. O espectáculo do desembarque
começou com o 1º pelotão a sair calmamente, logo seguido pela ber-
liet e os restantes pelotões. De repente, ouviram-se tiros, rajadas su-
cessivas que nos deixaram um pouco desorientados e confusos, não
obstante o tiroteio do lado Sul do rio. Eis que que surgem três zebros
numa velocidade alucinante, com umas sirenes ligadas a fazerem um
barulho infernal. Era o nosso vizinho do destacamento de “fuzas”
que nos queria cumprimentar.
— Siga a marinha, cumprimentos ao exército, o IN estava a 4km
daqui e eu tive que os pôr a andar. Sou o subtenente Labaredas, al-
cunha dada por causa desta barba ruiva, e estes quinze camaradas
fazem parte do destacamento de “fuzas” do rio, gente boa mas, um
pouco doida como eu.
Gostei do estilo do camarada de guerra e, senti que iríamos ser
amigos, como de facto veio a acontecer.
Depois da chegada dos “fuzas”, instalou-se uma certa agitação nos
homens que já tinham chegado a terra segura. Faltavam só desem-
barcar três barcos sintex que iriam contribuir para fazer o patrulha-
mento no rio junto ao destacamento que ficasse na defesa da zona. A
dada altura o Labaredas gritou bem alto:
— Tenho que partir, o IN anda por lá a fazer merda e tenho que
os acalmar, boa sorte camaradas.
Todos os saudámos efusivamente, enquanto os três zebros se afas-
tavam a alta velocidade com as sirenes ligadas. Boa sorte, camaradas.
O capitão deu-me ordem para deixar dois homens a guardar os nos-
sos barcos, que estavam assentes no lodo e presos a árvores por gros-

35
João Viegas

sos cabos, enquanto seguiam com a berliet e três pelotões para o pos-
to de comando situado no cimo duma picada. Cabia-me comandar o
destacamento do rio, situado a quinhentos metros da margem, junto
a uma pequena tabanca de Balantas. A tarefa era instalar uma base
operacional, rodeada de arame farpado e, abrir valas para abrigos
individuais onde nos defenderíamos dos ataques do IN. As nossas
instalações seriam tendas de campismo onde teríamos que viver nos
próximos tempos. A minha sorte era ter o furriel Trindade por perto
já que ele era perito em montar esse tipo de bases operacionais. Em
Mafra não nos ensinavam essas coisas. Quando chegámos ao nos-
so destino, ou seja, ao local onde iríamos montar o destacamento,
estava um soldado do comando a guardar todo o material que nos
tinha sido destinado: tendas; caixas várias com munições; uma arca
frigorífica a petróleo, de dois metros; um canhão sem recuo 106, e
respectivas munições; três metralhadoras MG 42; grades de cerveja
para colocar na arca; umas garrafas de whisky; pacotes de tabaco;
uma caixa de charutos espanhóis; e vário material para preparar a
instalação da base.
O Trindade veio ter comigo:
— Alferes, temos que marcar o perímetro e colocar estacas para
pôr o arame farpado, entretanto, há que montar as tendas e instalar
armas pesadas nos pontos mais fracos.
— Vamos começar furriel, avisa os homens que temos que abrir
os abrigos até à noite e fazer tudo o que dizes.
As ordens foram dadas e, os trinta homens começaram por mon-
tar as tendas em zona de acampamento, uma tenda para cada dois
homens e uma tenda grande para as refeições e centro de comando.
Quando começámos a escavar os abrigos decidiu-se que o melhor
era fazê-los colectivos, por secções de armas. A terra era dura que
nem cornos, o calor deixava os homens cansados rapidamente, a
arca a petróleo já estava instalada ao abrigo duma árvore grande,
várias grades de cerveja aguardavam a oportunidade de serem con-

36
Os Soldados Perdidos

sumidas às refeições, fora disso, ninguém bebia. Um grupo de dez


homens estendia o arame farpado preso a estacas de madeira, ao lon-
go do perímetro do acampamento. Cerca da uma hora depois, com
o calor a quarenta graus, o grupo reuniu-se debaixo da dita árvore,
as rações de combate foram distribuídas e seriam a primeira refei-
ção do dia. Os homens cansados e taciturnos olhavam para a mata e
perguntavam:
— Alferes, o IN está na mata?
— Claro que anda por ali, à espera de oportunidade para nos cair
em cima, todo o cuidado é pouco; depois de comermos vamos aca-
bar o trabalho porque à noite podemos ter uma surpresa.
Após a parca refeição, as tendas foram montadas com enorme
rapidez mas, todos voltámos ao trabalho, pois o mais difícil eram os
abrigos, considerando que cavar naquela terra ressequida exigia um
grande esforço, só suplantado pela robustez daqueles jovens campo-
neses. Até às quatro da tarde foram abertos os buracos à medida dos
homens, com altura suficiente para que se pudesse abrir fogo sem
perigo de maior. No dia seguinte cortaríamos troncos de palmeira
para cobrir os abrigos, ficando só o espaço das seteiras onde as armas
caberiam para varrer toda a zona que estivesse à frente.
À tardinha do primeiro dia, lá pelas sete horas, já era defensável
o perímetro do destacamento, as metralhadoras pesadas nos sítios
certos, o canhão sem recuo apontado para uma área suspeita, as ten-
das todas montadas, colchões de praia em cima da terra, um medo
terrível das cobras, pois dormiríamos no chão.
— Alferes, há cobras nesta zona?
— Ó homem, estamos na Guiné, há cobras por toda a parte, e
mosquitos e outros bichos malditos...
Entretanto, aproximaram-se dois balantas, fortes e com ar de va-
lentes, transportando um porco do mato preso e suspenso num pau;
dirigiram-se a mim e ao Trindade:
— Comandantes, cá tem arroz, caça para bó.

37
João Viegas

Aceitei a oferta, mandei o furriel chamar os da cozinha com a


encomenda de trazerem dois sacos de arroz de vinte quilos cada,
para entregar aos emissários de tão bela surpresa; carne fresca para
o jantar. De seguida, fomos até à tabanca, sendo cumprimentados
pelo povo Balanta que ocupava as quatro palhotas, logo à entrada
do destacamento. Quando viram os sacos de arroz nas mãos dos
seus representantes, ficaram contentes, talvez felizes por terem o tão
desejado arroz, alimento base das populações, que devia escassear
por aquelas bandas. O povo local era reservado, direi simpático mas,
pouco comunicativo, mulheres lindas com membros bem constituí-
dos, dentes brancos como marfim, crianças, muitas crianças a salta-
rem por toda a parte, ou agarradas aos panos das mães, velhos alti-
vos, rijos e de olhar penetrante que sorriam para nós enquanto iam
falando com os homens que se tinham deslocado à base, avisavam-
-nos dos macaréus do rio, ou seja ondas enormes e cheias de força,
resultantes das marés cheias que tudo arrastavam na sua passagem.
Agradecemos tanta simpatia e aproveitámos para irmos até ao pe-
queno grupo que tomava conta dos sintex.
— Camaradas, há que subir os barcos para terra firme, porque
daqui a pouco vem o macaréu que leva tudo à frente, depois vão
jantar e serão substituídos por outros dois, que passarão aí a noite.
Vimos as improvisadas instalações abrigadas por uma parede de
adobe duma qualquer antiga habitação que teria havido por ali. Eu
e o Trindade seguimos para a base e, constatámos que os trabalhos
prosseguiam a bom ritmo. O arame farpado já envolvia todo o pe-
rímetro com a tabanca incluída; fizemos uma revista rápida a todos
os postos demarcados e constatámos que estava tudo pronto para o
que “desse e viesse”.
— Pessoal, depois do trabalho terminado, quero falar convosco
para definirmos umas regras fundamentais no sentido de podermos
sair daqui vivos.
Lá pelas 18horas, juntei os homens debaixo da árvore grande:

38
Os Soldados Perdidos

— Camaradas, como já perceberam, esta zona é muito diferente


do sítio de onde viemos, o povo é guerreiro, são balantas bravos, au-
tênticos guerrilheiros com passado de muitas batalhas, as mulheres
são bonitas, mas quero as breguilhas bem cerradas, para não haver
confusão com a população. Os que fizerem merda passam a fazer
parte dos pica-minas, ou seja, vão à frente a picar as minas, não há
excepções para ninguém, os galãs têm que andar na linha e, não es-
queçam que qualquer distração é fatal. Agora vamos comer o nosso
porco assado com esparguete, cada homem tem direito ao máximo
de duas cervejas, boa sorte camaradas.
O jantar decorreu com o pessoal sentado em panos de tenda, já
que a mesa ainda não estava pronta, só no dia seguinte haveria mesa,
feita pelos carpinteiros de serviço.
Quando chegaram os dois homens de guarda aos barcos, foram
substituídos por outros dois que seguiram contrariados para o pos-
to, com a minha promessa de que seriam visitados durante a noite
por patrulhas especiais.
— Costa e Fonseca, estão autorizados a levar um bagacito, por
causa do frio e, já sabem, lá para a meia noite vou visitar-vos e não
façam merda, não quero levar um tiro amigo.
Vim com o Trindade para a base e, nessa altura ouvimos a saída
de duas morteiradas que atingiram o centro do destacamento, não
atingindo, por pura sorte, ninguém, nem sequer material de guerra.
Imediatamente mandei dar fogo com o canhão sem recuo, 106, para
o local de saída dos morteiros, só uma salva de três tiros, pois as
munições tinham que ser poupadas.
Depois do ataque disse aos homens que aperfeiçoassem tudo, ou
seja, os pequenos abrigos individuais, pusessem minas no perímetro
do arame farpado, com elaboração do respectivo mapa de localiza-
ção, e se preparassem para estar de vigilância nas próximas 24 ho-
ras, com dormidas por turnos. Para primeiro dia já havia emoções a
mais. A noite aproximava-se e agora vinha o medo das cobras, que

39
João Viegas

andavam por toda a parte e, dormir em colchões de praia, rente ao


chão, não era reconfortante para ninguém.
Nessa noite, temida noite, sabíamos que poucos dormiriam em
paz, o IN rodeava-nos e ninguém queria morrer, logo no dia da che-
gada à nova morada provisória. Cerca das nove, pedi ao Trindade
para segurar o destacamento, enquanto eu ia ao rio ver como esta-
vam as coisas, só que desta vez levava cinco homens comigo, para
evitar surpresas desagradáveis. Em silêncio chegámos ao local das
ruínas, onde estavam abrigados os assustados soldados, dei um asso-
bio que foi correspondido, entrámos no local onde os dois homens
se abrigavam, mantivemos uma cavaqueira de ocasião e comuniquei
que lá para a uma hora da manhã iriam ser substituídos, pelo Mene-
zes e o Gaspar.
— Ninguém prega olho hoje, o IN anda por aí à espera da opor-
tunidade para nos fazer em picado, entendido?
— Alferes, conte com a malta, se eles vierem levam coça.
— Está bem, daqui a uma hora há outra patrulha de cinco; vou
trazer-vos um bagacito por causa do frio, mas atenção, não quero
borracheiras.
— Tudo bem, alferes, então e umas mantas?
— Não há mantas para ninguém, já disse que hoje ninguém dor-
me.
Deixámos a patrulha no local e, seguimos para o destacamento
onde o Trindade já aguardava, nervoso.
— Alferes, estava preocupado convosco, pensava que tinha de lá
ir.
— Calma, homem, deixei-lhes um “rádio-banana” para darem o
alerta em caso de qualquer bronca.
Todo o pessoal estava alerta, dei várias voltas ao perímetro, todos
os postos estavam devidamente organizados.
— Já sabem, ao mínimo sinal, abram fogo, não quero o IN por
perto do arame.

40
Os Soldados Perdidos

— Descanse alferes, eles hoje não vêm chatear-nos. Dizia o Ma-


nuel com o seu ar atrevido. Fui até à tenda, o Trindade descansava
em cima do colchão de praia, todo vestido, eu encostei-me um boca-
do, estava nervoso e irritado, nem um gole de whisky me acalmava,
aliás hoje não era dia para tentações de copos.
— Trindade, o que achas desta merda?
— Tem calma, Viegas, os gajos já fizeram uma tentativa e leva-
ram a resposta, hoje não voltam a atacar-nos, descansa um pouco
enquanto eu vou dar a volta aos postos.
Não conseguia descansar, estava agitado e nervoso, levantei-me e
procurei o Trindade que estava na mata, por cima do posto do rio.
Dali pude observar a força do macaréu, uma imensa onda que varria
o rio rumo ao interior, exactamente na maré cheia, um fenómeno
observado nestes rios africanos.
— Temos que ter cuidado com esta merda, só precisamos de sa-
ber o horário das marés, amanhã de manhã vamos visitar o Labare-
das par nos dar indicações úteis sobre o fenómeno.
Acompanhado por cinco homens, voltei ao posto do rio, onde
encontrei os dois soldados aterrorizados com o macaréu.
— Alferes, viu aquilo que se passou, estávamos a ver que íamos
na cheia.
— Calma, é só a merda dum macaréu, uma onda gigante que re-
sulta da maré encher e empurrar as águas do rio, vinde os dois já
comigo, o António e o Miguel substituem-vos, amanhã a alvorada é
às cinco pois temos muito que fazer.
Na base, reuni-me ao Trindade:
— Avisa o pessoal que a alvorada é às cinco e, quero que durmam
com a farda e as botas calçadas, por causa das cobras.
Eu próprio tinha medo das malditas cobras, pudera, já tinha
sido mordido por uma e, não fosse a rápida intervenção do cabo
enfermeiro com uma injecção anti-veneno e, a coragem do pi-
cador africano que me cortou o local da mordidela e chupou o

41
João Viegas

veneno que conseguiu, eu já andaria a navegar na última barcaça


dos mortos.
— Trindade, vamos descansar um pouco, já é uma da manhã.
Fomos para a tenda, G3 ao lado do colchão, lenço mosquiteiro na
cara, pois os milhões de mosquitos colavam-se à pele para chuparem
o nosso querido sangue, sacanas, até os mosquitos nos queriam dali
para fora.
Passava pelas brasas quando me apercebi de um restolhar à en-
trada da tenda. Dei um salto e pus-me em pé a tempo de ver uma
surucucu, a aproximar-se dos colchões.
— Cobra!
Gritei a plenos pulmões, enquanto o Trindade se levantava com a
G3 na mão e disparava uns tiros na sacana da bicha, que continuou
o seu percurso para fora da tenda, sem um beliscão.
— Trindade mata essa gaja antes que lixe alguém.
— Isso queria eu, mas a puta é mais rápida que nós, só imobili-
zando-a lhe conseguimos desfazer a cabeça.
Foi dado o alerta a todos os homens que começaram a aparecer
fora das tendas com ar assustado:
— É o IN?
— Pior, uma surucucu anda por aí e vai fazer merda, tudo já aqui
reunido, pois temos que ver se caçamos o bicho.
— Alferes, é igual àquela em Mansambo, que pisámos com a ber-
liet e mesmo assim se safou?
— Exacto, a partir de hoje os carpinteiros têm que fazer uma es-
trutura em madeira para os colchões assentarem, tipo cama, para
que ninguém morra com esta puta enfiada na boca, ou estrangulado,
ou mordido.
— Já que estamos acordados quero os cozinheiros a preparar um
pequeno almoço substancial, café que não seja a mixórdia do costu-
me, pão fresco com manteiga, e tudo o mais a que temos direito, ao
trabalho.

42
Os Soldados Perdidos

Ainda não eram cinco da manhã e já havia agitação no acampa-


mento, todos a desempenhar as suas tarefas, uns a rir, outros meio
borrados de medo, a cobra pior que o IN, o alvo de todas as anedotas
e pilhérias do costume, enfim, jovens de 18, 19 e 20 anos a afugentar
o medo conforme podiam.
Entretanto, com tanto tiro disparado àquela hora, o comando
“enviou um rádio” para perguntar as razões do alvoroço.
— Tudo bem, acampamento atacado por cobras.
Dizia o operador de rádio que deu a entender que haveria talvez
centenas ou até milhares de cobras a tentar matar o pessoal. Eu tive
que corrigir a mensagem dizendo que o incidente estava resolvido e
que após o pequeno almoço seguiríamos para o destacamento dos
“fuzas”. Entretanto “enviei rádio” aos “fuzas”.
— Dentro de uma hora exército chega.
Sentados à mesa das refeições, só abrigada por um pano de tenda
dos grandes, todos comíamos com apetite voraz; pudera, o medo
abre o apetite, já alguns mais alarves pediam umas latas de conserva
e umas cervejolas.
— Calma aí, isto é só o pequeno almoço. O furriel vai destacar
quinze homens que me vão acompanhar até aos “fuzas”.
Destacados os quinze homens que me acompanhariam, todos
munidos com ração de combate e cantis cheios de água, eu, como
sempre, com os dois cantis da praxe, um só com água, o outro com
whisky e “coca-cola”, seguimos para os sintex equipados com os mo-
tores Mercury 50, a estrear. Pusemos os três barcos na água, entrá-
mos para ocupar posições, íamos todos sujos de lama, instalámo-
-nos nas respectivas posições, eu no barco da frente com mais cinco
homens, um no motor, os outros virados para ambas as margens, as
G3 prontas a disparar, dei ordem de partida e seguimos a boa velo-
cidade pelo meio do rio, donde já podíamos avistar os famosos al-
faiates, pequenos e vorazes crocodilos que entravam nas águas com
a calma dos caçadores furiosos que eram.

43
João Viegas

Após meia hora de caminho, ainda não avistava o destacamento


“fuza”, o que me deixou preocupado, de repente, umas rajadas na mar-
gem esquerda do rio levaram a que todos os homens começassem a
disparar naquela direcção, passados uns breves minutos ouvimos a sire-
ne dos “fuzas” e uma fuzilaria impressionante, eis que dois zebros com
vários homens chegavam a alta velocidade e rebentavam com a margem
da emboscada permitindo-nos segui-los, também com maior rapidez,
e, dentro de poucos minutos já estávamos na base dos fuzileiros onde se
destacava a figura imponente do subtenente Labaredas, que nos recebeu
com um sorriso de palmo e uma alegria quase infantil.
— Porra, estava a ver que vos comiam vivos, são uns cabrões, mas
já se piraram para outras bandas, bem-vindos camaradas da tropa
macaca, vocês são rijos, vamos comemorar.
À chegada éramos abraçados por aqueles estranhos camaradas de
guerra que mais pareciam guerrilheiros brancos. O Labaredas com
a sua voz aguerrida:
— Bebam enquanto podem, um dia destes acaba-se-vos a sorte.
O quartel era simpático, arame farpado a toda a volta, uma barra-
cas, com panos camuflados, mesas nos pontos mais abrigados, umas
cervejolas frescas a saírem das arcas, umas conservas de sardinha
picante com uns casqueiros feitos para a ocasião, enfim, uma festa
que prometia prolongar-se.
— Alferes, tens que te habituar, nesta zona os gajos estão bem
armados e só nos querem limpar o sêbo, dizem que têm instrutores
cubanos mas, isso não nos impressiona, se mandassem umas cuba-
nas boas a história seria outra.
— Então isto é assim todos os dias?
— Que esperavas que fosse, não estamos de férias e por estas ban-
das ou se mata ou se morre, nada demais. Vamos apreciar este pe-
queno-almoço reforçado, depois tenho que te mostrar as instalações
para que vocês aprendam como vivem os “fuzas”, conforto na guerra
também é importante.

44
Os Soldados Perdidos

Dava gosto ver o pessoal a conviver enquanto comiam as sardi-


nhas muito picantes e a cerveja bem gelada, um luxo, como se esti-
vessem de férias.
— Viegas, vocês têm que construir um embarcadouro como o
nosso, senão, ficam sempre cagados como estão, com a merda deste
lodo malcheiroso.
— Preciso que me ensines como se faz e, como evitar os malditos
macaréus, ah, preciso dum horário das marés para precaver essas
ondas assassinas.
— Primeiro, comer e beber, depois, o trabalho. Começou uma
festa de arromba, os meus soldados estavam maravilhados pela ale-
gria desta malta doida que tratava a guerra por tu e não tinha medo
da nada, era bonito de se ver.
— E se os cabrões atacam enquanto comemoramos?
— Não te preocupes, os gajos sabem que se nos interrompem a
sagrada refeição, levam uma coça das antigas e têm que cavar até
Conakri.
De repente ouviu-se um barulho estranho, vindo do Sul, parecia
um avião engasgado que fazia estremecer tudo à nossa volta.
— Morteiros 122. Abriguem-se!
Nós seguimos o conselho e atirámo-nos para o abrigo mais próxi-
mo, enquanto os morteiros caíam fora do quartel, provocando uma
explosão brutal que quase nos ensurdeceu.
— Viegas, pega nos teus homens e vai já para o teu quartel, isto é
um ataque de um bi-grupo IN, com quase 200 homens, a seguir vão
para cima de ti e do resto da companhia, pira-te e avisa o teu capitão
do que vem aí.
— Não precisas de ajuda?
— Nem pensar, vocês não sabem lutar como nós e, não quero ser
responsável pelas vossas mortes, arranca a alta velocidade, antes que
eles cerquem a zona.
— Pessoal, temos que partir antes que seja tarde, para os barcos,

45
João Viegas

já; ainda me virei na direcção do Labaredas que gritava para os seus


homens:
— Camaradas, enquanto a bandeira estiver naquele mastro, nin-
guém recua, venham eles e, siga a marinha...
Quando entrámos nos sintex dei ordens para acelerar ao máximo
e seguirmos para a base, a meia hora seguinte foi passada num sufo-
co de medo e aflição, enquanto ouvíamos o forte tiroteio vindo dos
lados dos fuzileiros.
— Estão a ver o que nos está reservado? Eles vão atacar a seguir, e,
quando chegarmos, é tirar os barcos da água e levarmos os motores
para cima, depois temos que nos preparar para o pior.
Em menos de meia hora chegámos ao quartel, corri para o desta-
camento, chamei o Trindade a quem contei o ocorrido com os “fu-
zas”, segui para o comando da companhia, relatei os factos ao capitão
que ficou muito preocupado e, voltei para a minha unidade, onde
comecei os preparativos para o que viria a seguir.
— Quero o canhão sem recuo apontado para a mata em frente,
quando eles chegarem comecem a fazer fogo com as granadas alta-
mente explosivas e incendiárias, não os podemos deixar aproximar.
Os soldados corriam para as armas colocadas nos abrigos, ner-
vosos com tudo o que se passava, fumavam cigarros uns atrás dos
outros, enquanto olhavam na direcção dos fuzileiros, ouvindo os
rebentamentos incessantes, fogos vários na mata, uma barulheira
infernal de guerra dura.
— Será que eles se safam?
— Os “fuzas” são danados, não vão abandonar o quartel, estejam
calmos e preparem-se para o pior.
Entretanto íamos ouvindo mensagens rádio dos “fuzas” para o
comando deles:
— IN no arame, precisamos de apoio aéreo, escuto...
Aquilo devia estar infernal e, nós não podíamos fazer nada, nem
sequer ir em socorro dos nossos camaradas de guerra, só tínhamos

46
Os Soldados Perdidos

uma companhia e não conhecíamos o terreno, enfiar pelo mato den-


tro era suicídio, nunca chegaríamos a tempo de salvar os “fuzas”, que
merda de impotência. O Trindade só dizia:
— Se tivesse aqui os meus rangers já lá estava, mas com esta ra-
paziada não há hipóteses, nunca entraram numa batalha na mata
com os fanáticos dos bi-grupos, autênticos profissionais da guerra
de guerrilha, ia ser um massacre. Aqui na base ainda temos uma
hipótese de os espantar para longe. Pessoal, preparem os morteiros
60 e as metralhadoras pesadas, vejam as fitas das balas, para não en-
cravarem, quero dez homens nos abrigos da frente, o alferes aguen-
ta o resto do pessoal e dá-nos cobertura, chegou a guerra a sério,
se não querem morrer preparem-se para o pior, depois é mais fácil
enfrentá-los.
Alguns dos homens estavam em pânico, o capitão enviava rádios
de pedido de auxílio ao comando do batalhão, vivia-se um daque-
les momentos em que só havia duas hipóteses para os soldados, ou
safarem-se ou morrerem de armas na mão. Fui ter com o Trindade
e constatei que ele dispunha as tropas com a eficácia própria das
tropas especiais. Hoje não me importava de ser ranger, teria mais
hipóteses de enfrentar o que vinha por aí.
Subitamente, ouviu-se o barulho característico dos morteiros
122, vindos na nossa direcção, como já tinha ouvido os outros, pude
gritar:
— Abriguem-se, morteiros a chegar.
Mais uma vez, a besta da morte caiu fora do acampamento, com
um barulho louco de rebentamento de uns quilos de trotil, o cheiro a
queimado era sintomático, os homens entreolhavam-se assustados,
aquele olhar de medo reflectido nos olhos muito abertos.
— Alferes, vamos morrer?
— Calma, hoje é mau dia para morrer, mas será bom para caçar
estes gajos, ninguém vai morrer!
— Trindade, que grande merda, se eles não passaram pelos fu-

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João Viegas

zileiros é porque têm outro grupo de ataque que se dirige para cá,
dá ordem de fogo ao canhão sem recuo, com granadas explosivas e
incendiárias, pelo menos podemos ver o fogo de artifício e assustar
os sacanas.
— Fogo à peça, apontem naquela direcção, vamos rebentar com
os gajos.
Ouviu-se o barulho de saída de morteiros, ”poc, poc,” e duas mor-
teiradas atingiram o centro do acampamento, sem provocar baixas.
— Abriguem-se, chegaram os gajos.
O pessoal começou a correr em direcção aos abrigos, só as G3 à
vista, todos à espera de avistar o IN para poder abrir fogo à vontade,
conforme eu tinha ordenado.
Enquanto estava no abrigo, “enviei um rádio” ao Labaredas a pe-
dir um ponto de situação.
— Camarada, a situação está controlada, IN derrotado no arame
farpado, pedimos ajuda à força aérea, os FIAT a caminho, abriguem-
-se, siga a marinha...
Fiquei contente com a notícia, isso explicava o avanço para cima
de nós, depois da derrota nos “fuzas”, vinham tentar a sorte com o
exército, sempre pior preparado. Avisei o capitão do ponto de si-
tuação, preparámo-nos para o ataque dos FIAT, já sabíamos que ia
haver napalm, coisa feia de se ver, toda a mata à nossa frente ia arder
como uma tocha e, os sobreviventes só tinham que se pirar para bem
longe.
Passados poucos minutos ouvimos o barulho dos aviões a chegar
e gritámos:
— Boa, estamos safos.
A mata começou a arder, o cheiro de gasolina a queimar deixou-
-nos mais calmos pois o IN tinha mesmo que fugir, se queria escapar
sem ser totalmente dizimado.
As labaredas limparam toda a zona, num ritual de morte impres-
sionante, o napalm que atingiu parte do rio, pôs as águas a arder, um

48
Os Soldados Perdidos

espectáculo macabro para quem pouco sabia de guerra. Não imagi-


no o sofrimento de quem fica no meio daquele fogo. Toda a gente
sabe que o uso de napalm está proibido pela Convenção de Genebra,
mas todos os países o usam. Hipocrisia mundial até ao fim dos tem-
pos, matar muitos e, o mais rápido possível.
— Camaradas, já viram quem é este IN, estão bem armados e
querem matar-nos ou prender-nos, aqui não pode haver hesitações,
qualquer falha é a morte ou pior sorte, sermos apanhados à mão
para propaganda da luta deles. A nossa obrigação é para com a nossa
bandeira, e com cada um de nós, lutamos para sairmos daqui vivos
e podermos contar o que se passou. Nunca esqueçam, a nossa luta
é pelo camarada ao nosso lado, nosso irmão de guerra, tudo o res-
to são balelas de quem nunca viu esta guerra de merda. Estamos
unidos e, vamos embora qualquer dia, a partir de hoje não há mais
guarnições nos barcos, tiramos os motores e trazemo-los para aqui,
se roubarem os sintex, eles que nos arranjem mais, não vou arriscar
deixar soldados sozinhos num sítio tão perigoso. Estamos todos en-
tendidos?
Depois deste breve discurso pude ver o pessoal a sorrir e a fazer
as brincadeiras do costume, eram só 23 jovens que se tinham trans-
formado em guerreiros, nada de mal lhes podia acontecer.
Naquele instante apareceu o capitão no jeep, com uma guarnição
de cinco homens:
— Alferes, houve baixas?
— Não, capitão, só estragos provocados pelos 122, tendas caídas
e estilhaços cravados nas árvores, para além de um cagaço enorme.
— Muito bem, esteve à altura dos acontecimentos, organize os
homens para reforçarem as defesas.
— Meu capitão, não tem uma bandeira a mais? Gostava de a has-
tear num mastro, para dar mais ânimo aos soldados.
— Mande alguém buscar a bandeira e tragam mais munições de
morteiro, fica avisado que na próxima semana o OG vai mandar um

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João Viegas

obus 14, com respectiva guarnição, para estar melhor preparado


para situação idêntica.
O capitão foi cumprimentar os homens em revista acelerada, fi-
cámos a saber que só nós tínhamos sido atacados, o resto da compa-
nhia estava incólume. Ainda bem, éramos a primeira linha de ataque
do IN, para atacar o comando tinham que passar por nós, coisa que
iríamos tornar cada vez mais difícil. A população da tabanca come-
çou a aparecer, o balanta que já me tinha oferecido um porco do
mato, carregava outro que também me ofereceu cordialmente. Desta
vez não queria arroz mas ofereci-lhe na mesma mais dois sacos de
20kg, deixando-o feliz e sorridente.
— Pessoal, almoço de caça grossa, ponham as brasas a aquecer,
hoje vamos comemorar a nossa sorte, não sem convidar os fuzileiros.
— “Atenção à marinha”, gritava eu no rádio, hoje há porco assado
na brasa, podem vir.
Do outro lado, a voz jovial do Labaredas:
— OK, bebidas por nossa conta, vamos a caminho.
Meia hora depois chegavam os “fuzas” com a barulheira do cos-
tume, sirenes ligadas e dois zebros carregados de homens a rir rui-
dosamente.
— Porra, alferes Viegas, estamos todos cagados de lama, tens
mesmo de mandar construir um cais em madeira, nós ajudamos.
Levei os “fuzas” para o destacamento, o cozinheiro e seus aju-
dantes já faziam o porco no espeto, especialidade da zona de Viseu,
as cervejolas geladas eram distribuídas pelo pessoal, os meus ho-
mens tinham crédito no bar, depois se veria, os soldados estavam
em amena cavaqueira com os fuzileiros, abraçavam-se, enfim uma
verdadeira irmandade de guerra, só possível de perceber por quem
por lá andou.
O alferes Almeida, comandante do 3º pelotão instalado na sede
da companhia, juntou-se a nós para quebrar a monotonia do co-
mando.

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Os Soldados Perdidos

— Viegas, aqui respira-se guerra e farra, parece que estamos em


Coimbra.
— Pois é, Almeida, mas nós levamos com a porrada toda, esta-
mos na primeira linha, logo, merecemos alguma reinação... Já que
estás aqui, vais ajudar a montar o cais de madeira, aqui o Labaredas
vai-nos ensinar como se faz.
— Tratemos de coisas sérias primeiro, a fome aperta depois da
batalha, só depois da comezaina é que estamos em condições para
vos ensinar qualquer coisa. E a alegria corria tão rápida como o ál-
cool, de tal modo que tive que lembrar à rapaziada para não exage-
rar. Todos comiam como se fosse a última vez, ninguém sabia quan-
do chegava a tal bala com o nosso nome escrito.
Entretanto, aparece o capitão, que já sabia do almoço festivo e me
disse:
— Alferes, podia ter-me convidado para conviver com o subte-
nente Labaredas, a não ser que eu não seja bem-vindo.
— Desculpe, meu capitão não queria incomodá-lo e isto é só um
convívio entre soldados e oficiais subalternos, não sei se seria do seu
agrado.
— Já percebi, estou a mais, mas este ainda é o meu quartel, tenho
que ser informado de tudo.
— Certamente, meu capitão, não volta a acontecer.
Nesta altura o Labaredas entrou em cena para por água na fervura:
— Meu capitão, ia visitá-lo a seguir ao almoço, hoje comemora-
mos o dia em que ambos sobrevivemos a um poderoso ataque do IN.
— Podem prosseguir, vinha só avisar o alferes Viegas que ama-
nhã vamos fazer uma emboscada ao IN, lá mais para o Sul, ordens
superiores.
E a conversa estragada prosseguiu com lugares comuns e balelas,
a dada altura o Labaredas convocou os seus soldados e anunciou que
estava na hora de seguir para a base, pois tinha recebido um rádio a
pedir a sua comparência.

51
João Viegas

O almoço acabou de repente, a alegria dos momentos anteriores


esbateu-se com a intervenção do capitão, amanhã íamos começar as
malditas emboscadas sem termos tido tempo para conhecer bem o
terreno, não ia dar coisa boa, que chatice, a burocracia na guerra era
tão mortal como as balas do IN.
Quando olhei para o quartel com atenção, só pude ver destruição,
tendas caídas, estilhaços por toda a parte, um buraco enorme onde
tinham caído os 122, fora do acampamento, felizmente sem baixas,
só confusão e medo.
O pessoal começou por remontar as tendas, os colchões volta-
riam a ficar rente ao chão, com um grupo de vigia às cobras, o cais de
embarque continuou adiado, os abrigos foram vistoriados para con-
firmar se estavam operacionais, a preocupação espelhada nos rostos
daqueles jovens soldados pela emboscada de amanhã.
“Enviei um rádio” ao Labaredas para saber se estava tudo bem.
— Ok, tudo normal, teu capitão é um chato, cortou-nos a festa,
cuidado com a emboscada de amanhã, eles andam na zona.
O que me deixou mais preocupado. Entretanto, desloquei-me ao
comando da companhia para pedir ao capitão que me ajudasse com
o cais de embarque, já que ele era engenheiro na vida civil, o que se
prontificou a fazer rapidamente, lembrando-lhe o que pensava da
emboscada do dia seguinte.
Alferes não se preocupe, tenho tudo controlado, você segue à
frente com o seu pelotão.
Tinha que ser, estava a castigar-me pelo almoço com os “fuzas”.
Antes de me vir embora, entregou-me a bandeira nacional conforme
o meu pedido.
Já no destacamento, e como o dia tinha sido demasiado ocupado,
decidi deixar o pessoal à vontade, uns a arranjar o estrado para os
colchões, por causa das malditas cobras, outros a olear armas, outros
ainda a beberem umas cervejas autorizadas, outros ainda a entrar na
tabanca só para regalar as vistas com as beldades locais.

52
Os Soldados Perdidos

Para os habituar bem, chamei toda a gente para uma formatura


imprevista que correu normalmente e fiz o meu discurso habitual
em casos anormais:
— Camaradas, hoje tivemos a oportunidade de sentir o que va-
mos viver por estas bandas, o IN não nos quer por cá, mas nós va-
mos ficar de qualquer forma, hasteiem a bandeira e está tudo a fazer
continência, esta é a nossa pátria, inspirem-se naquilo que ela repre-
senta, que não tem nada a haver com os vampiros que nos chupam o
sangue lá para os lados de Lisboa.
— Alferes, não tem medo de dizer essas coisas? Perguntou o Fon-
seca rapaz trabalhador, e de compleição forte, da zona de Viseu, que
não tinha papas na língua e, por vezes era embaraçoso nas questões
que punha.
— Camarada Fonseca, aqui, convosco, a PIDE-DGS não mete
medo, mas eles não vêm para a frente de combate porque são uns
canalhas e cobardes, porque se escondem na sombra à espreita para
matar quem se lhes opõe, são uns cabrões.
Todos se calaram, a PIDE metia medo só de a ouvir mencionar.
Os mais atrevidos faziam comentários do género:
— O alferes deve ter umas contas a ajustar com esses gajos.
— É melhor não falar deles, dá azar.
— Chiça, eu não quero nada com essa gente.
Entretanto continuei o meu discurso sobre a emboscada do dia
seguinte:
— Camaradas, amanhã é dia de emboscada, ordens do capitão, o
nosso pelotão segue à frente, como é hábito, eu o Furriel seguimos
normalmente, só que desta vez sou eu que vou à frente da coluna,
logo a seguir ao picador africano, todos com os olhos bem abertos,
isto é zona IN, quero todos fora das camas às cinco da manhã, para
preparar o pequeno almoço substancial; não esqueçam de levar dois
cantis cheios de água, pois pode haver imprevistos; atenção ao ca-
marada da frente; o cabo enfermeiro Conceição não pode começar

53
João Viegas

a beber cervejolas logo pela manhã. Se me acontecer alguma coisa,


já sabem que o furriel Trindade comanda o pelotão. Ao mínimo si-
nal dêem-lhes com força, e esperemos estar a almoçar às horas do
costume.
A reacção dos homens foi quase imediata.
— Alferes está a prever que haja merda?
— Estamos em guerra, a minha pátria é a bandeira e cada um de
vós, tenho medo de morrer, sou demasiado novo, se morrer é por
azar, quem não tiver medo dê um passo em frente.
Claro que ninguém avançou, todos tinham medo, o que é um
bom sintoma para qualquer soldado. A adrenalina do medo desper-
ta os sentidos dum guerreiro, evitava muita asneira e colocava todos
os homens em pé de igualdade, a irmandade entre soldados salvava
muitas vidas, li em livros e vivi na prática.
— Agora vamos preparar o jantar que hoje é a porcaria do cos-
tume, esparguete com bocados de carne do porco que almoçámos,
bebidas com limites, só duas cervejas cada um, depois vamos espa-
lhar soda cáustica à volta das tendas que, segundo o nosso furriel
Trindade afasta as putas das cobras que odeiam o cheiro. Coisas de
rangers que sabem mais de guerra do que nós todos juntos!
Reuni-me com o Trindade para passarmos revista aos postos,
e constatámos que estavam devidamente preparados para qual-
quer eventualidade; fomos ainda ver qual a situação dos barcos,
agora que já não havia guarnição, pedi ao furriel que armadilhas-
se dois barcos com granadas defensivas, o que ele prontamente
fez, colocando arame de tropeçar nas cavilhas das granadas; eram
suficiente para rebentar com os barcos e respectivos autores de
qualquer tentativa de furto. Claro que iríamos avisar toda a com-
panhia da situação dos sintex, assim já não era necessário deixar
guarnições mal protegidas no local, evitando raptos ou mortes
inúteis. Rapidamente voltámos à base avisando todo o pessoal da
situação e enviando dois homens ao comando da companhia com

54
Os Soldados Perdidos

uma mensagem escrita, para que o capitão avisasse toda a gente


do que se estava a passar.
O resto da tarde foi passado a fazer revista a todos os postos, com
particular atenção ao arame farpado que, para além das minas no
exterior, passou a contar com garrafas de cerveja juntas, para fa-
zerem barulho se alguém lhes tocasse. Enfim, segurança de merda
para uma situação de merda como era a nossa.
Entretanto, o capitão deu ordem para que me dirigisse ao co-
mando da companhia, a fim de me instruir sobre a operação do dia
seguinte. Chegado ao local, dirige-me à tenda do comando, onde
estavam todos os restantes oficiais, ou seja, o capitão e os alferes
Mendonça, Almeida e Tavares. O capitão dirigiu-se a mim:
— Alferes Viegas, amanhã, pelas sete saímos da companhia, rumo
ao Sul, pela trilha marcada no mapa. O alferes Almeida segue para a
sua base com o terceiro pelotão onde vai ficar a fazer guarnição até
ao seu regresso, você só deixa ficar a secção do canhão sem recuo, ou
seja os três homens respectivos, os restantes vinte homens vêm aqui
ter depois de serem rendidos pelo terceiro pelotão, a coordenação
dos seus homens fica a seu cargo, vamos só montar uma emboscada
num cruzamento de estradas, aqui, neste ponto (marcando o sítio
com a mão), esperamos umas três horas e, se não houver problemas,
regressamos à companhia pelo mesmo trilho. Como vê, não é nada
de especial.
— Meu capitão e se formos emboscados à ida ou à vinda?
— É o costume, fogo total até estarmos fora de perigo.
— Amanhã, cá estarei com o pelotão.
— Dispensado, pode partir, está tudo dito. Alguém tem dúvidas?
Fui-me logo embora, após cumprimentar todos os camaradas.
Quando estava quase a sair, encontrei o alferes Pinto, médico da
companhia, que tinha estado comigo em Coimbra.
— Então Pinto? Cá estamos nós nesta merda à espera do pior.
— Achas que estamos aqui por causa da crise de 1969?

55
João Viegas

— Tenho a certeza, os gajos nunca nos perdoaram termos feito


a greve académica e termos gozado com um batalhão da GNR que
andava por lá em estado de guerra, lembras-te?
— Sim, Viegas, aqueles jipes com arame farpado à frente, os cava-
los por toda a parte, as escadas monumentais rigorosamente vigia-
das, os berlindes no chão para os cavalos caírem com os cavaleiros
anafados, toda aquela festa.
— Pinto, só nos faltava o conhecimento militar e respectivo ma-
terial de guerra, caso contrário naqueles dias de glória tínhamos
honrado os batalhões académicos da velha Universidade, “vitória ou
morte”.
— Então e no dia 17 de Abril não foste tu que gamaste aquelas
medalhas a um general de várias estrelas?
— Por acaso não fui, mas sei quem o fez, de tal forma que lhe
rasgou a farda e, ainda hoje as medalhas estão em exposição numa
república.
— Viegas, éramos jovens, fizemos o que pudemos...
— Pinto, nós somos jovens, eu só tenho 24 anos, tu a mesma coi-
sa, temos é que sobreviver a esta merda para podermos contar o que
por cá vimos.
— Não me digas que vais amanhã na tal operação?
— Vou, o que não me agrada nada. A propósito, preciso que me
arranjes pacotes de sulfamidas e umas ampolas de morfina para en-
tregar ao enfermeiro. Só espero não ter que utilizar o material.
O Pinto lá foi buscar o material solicitado, demos um abraço de
irmãos, não sem ir à tenda dele beber um whisky simples, a melhor
vitamina naquelas circunstâncias.
Segui para o destacamento em passo acelerado, “esperemos que
não haja merda”, pensei. Não podia deixar de pensar em Coimbra,
onde passei os melhores anos da minha juventude.
Tudo estava demasiado longe, a cidade estudantil, a irmandade
académica, a revolução nas mentes, o teatro no Círculo de Inicia-

56
Os Soldados Perdidos

ção Teatral da Academia de Coimbra (CITAC), fechado pela PIDE


em 1971, pelas razões do costume, os copos, as miúdas bonitas, os
meus cinco filhos e a não ser considerado amparo de família só para
poder ser enviado para a guerra, supremo castigo por ser diferente,
e não ser bem comportado como o regime exigia. Aqui estava eu na
guerra, sem perceber nada do assunto, sobrevivente por natureza,
vivo porque tinha a sorte de ter um furriel ranger, uma verdadeira
máquina de guerra, que resolvia os maiores problemas de qualquer
comandante sem experiência. Depois de passar por tanta merda, só
por azar iria morrer nesta guerra. Mas a guerra é também isto, sorte
ou azar, e, a tal bala com o nosso nome escrito andava à solta pela
selva da Guiné. Tudo dependia da sorte!
Cheguei ao destacamento em marcha acelerada, entreguei ao
cabo enfermeiro Conceição todo o material que o médico me tinha
dado, fui falar com o Trindade para combinar mais uns pormenores
para o dia seguinte, os soldados rodeavam-me nervosos:
— Então, alferes, sempre vai haver emboscada, amanhã?
— Vai, durmam bem, não pensem na morte porque dá azar, ama-
nhã se verá o que vai acontecer. Hoje não há bebedeiras, quero todos
espertos que nem um alho e durmam o melhor possível. Alvorada às
quatro da manhã!
— Trindade, a emboscada não me cheira lá muito bem, num cru-
zamento de estradas, em zona IN…
— Tem calma Viegas, vamos fazer o habitual, montamos a em-
boscada com o mínimo de barulho possível, só é pena eu não ter
tempo para vos ensinar a fazer emboscadas à ranger, o IN ficava todo
no local.
Sentámo-nos à mesa das refeições, conversando e bebendo umas
cervejas geladas, enquanto alguns soldados pediam autorização para
se sentarem e beberem qualquer coisa, ao que eu anuí.
— Trindade manda formar os homens junto à bandeira, quero
dizer umas palavras.

57
João Viegas

Quando fomos para a parada, já todo o pelotão se perfilava sob


a bandeira.
— Camaradas, amanhã é dia de mais uma emboscada, o que não
é novidade para ninguém. Esta não me agrada nada, pois estamos
em território IN e, já tivemos oportunidade de confrontar este ini-
migo que é mais aguerrido do que aquele que enfrentámos na zona
de Mansambo. Vão três pelotões e, nós vamos à frente da coluna. Eu
vou a seguir ao picador, os outros na formação normal, os olhos bem
abertos e dedo no gatilho. Ao mínimo alerta, abram fogo cerrado
para espantar o IN da área. Não quero mortos, nem quero heróis,
o último que conheci, já morreu. Nunca esqueçam que este IN faz
guerra de guerrilha, a guerra mais perigosa que há, em que poucos
podem derrotar muitos, já o nosso Viriato, o pastor guerreiro dos
Lusitanos, derrotou exércitos romanos com milhares de homens.
Quando eles têm hipóteses, dão cabo de nós, por isso mesmo, quero
todos os homens atentos e prontos para resposta rápida e mortal,
atirem-lhes com tudo. Não pensem demasiado no dia de amanhã,
quero todos a dormir o melhor possível, ninguém leva tabaco, nem
bagaço, dois cantis de água por homem e, ração de combate, pois
ninguém sabe o tempo que vai demorar a emboscada. Está na hora
de descansarmos, não esqueçam a soda cáustica à volta das tendas
e, que ninguém saia descalço para fora das tendas senão queima os
pés. Boa sorte a todos…
Dirigi-me para a tenda, acompanhado pelo Trindade, passei por
outras tendas onde os homens se aconchegavam, cigarros na boca,
piadas sobre o dia de amanhã, tudo normal neste local tão belo e tão
triste, ao mesmo tempo. O entardecer em África é maravilhoso. Um
pôr do sol de sangue vivo, o calor a derreter tudo, o verde da mata
num contraste quase trágico, parecia a bandeira nacional a arder
num imenso fogo de esperança.
— Trindade, o que pensas do capitão?
— Não é mau homem, mas não percebe nada de guerra.

58
Os Soldados Perdidos

— Mais um a tirar o curso em Mafra.


— Pois é, deviam fazer um estágio nas tropas especiais.
— E, até ver temos que levar com ele. Até haver uma tragédia.
— Não, Viegas ele não é tão burro assim.
— Espero bem que não, só que estas emboscadas irritam-me, são
decididas demasiado depressa.
— Não penses mais nisso, amanhã se verá, tenta descansar, pois
temos que acordar às quatro da manhã.
Como já ia sendo normal, deitámo-nos vestidos e com as botas
calçadas, o lenço camuflado a tapar a cara, a torcida a arder para
afastar os milhões de mosquitos, que nos iam chupando o sangue
que ainda nos corria nas veias, um estranho silêncio, enquanto sabo-
reávamos um whisky velho, como se estivéssemos numa cabana, na
pradaria do oeste selvagem. Só pensava no dia seguinte, enquanto o
Trindade começava a roncar como uma horda de hunos.
Às quatro da manhã somos acordados com o toque estridente do
corneteiro que corria as tendas a tocar e a rir, um verdadeiro sacana.
Demos um salto, fui lavar a cara, nem banho tomei, comecei a
convocar os soldados para a formatura junto à bandeira. Rapida-
mente se reuniram os vinte e três homens do pelotão, devidamente
preparados para tomarem o pequeno almoço com café puro e um
casqueiro com manteiga. Aproveitei para dizer as primeiras palavras
do dia:
— Camaradas, hoje vamos passar por mais uma prova de fogo
não desejada, mas ordenada por Bissau. Quero só lembrar que va-
mos levar a máxima munição para todas as armas. Fonseca, quero
que leves seis granadas de morteiro. Conceição, já que és o enfer-
meiro, hoje não bebes antes da operação, depois podes afogar-te em
bebidas. Todos atentos ao mínimo sinal e cuidado com os RPG, já
sabem o que nos acontece se levarmos com um em cima. Vamos
comer e, depois esperamos ordem para seguirmos para o comando.
Boa sorte a todos, hurra, hurra.

59
João Viegas

— Hurra, hurra...
Todos sentados à mesa no pequeno almoço revigorante, cafetei-
ras de café já com açúcar, casqueiros vários cheios de manteiga até
às bordas. Comiam com alegria como se fossem para um passeio ao
campo. Assim eram estes valentes jovens, abandonados nas frentes
de combate para as promoções de altas patentes que precisavam de
mais umas medalhas para o seu glorioso currículo militar. Mais uma
guerra estúpida a exigir o sacrifício dos seus melhores filhos, como
aliás todas as guerras.
Às cinco e meia da manhã seguimos para o comando da com-
panhia, em fila de um, como deve ser numa coluna militar na mata
cerrada, o mínimo barulho possível, sem cigarros para que o IN não
cheirasse o tabaco, e chegámos conforme o previsto. Toda a com-
panhia já estava formada à nossa espera, as continências da praxe,
pelotão apresentado, o capitão falou com o seu ar de grande coman-
dante:
— Homens, sabeis que vamos fazer uma operação perigosa, ou
seja, vamos montar uma emboscada às picadas que o IN utiliza para
se deslocar para os ataques. O 4º pelotão do alferes Viegas vai à fren-
te, a seguir ao picador africano, os restantes seguem em fila, sem
qualquer barulho, e quando eu encontrar o sítio ideal montamos
uma emboscada para destroçar o IN. O 3ºpelotão, do alferes Almei-
da, segue para o destacamento do rio para substituir o 4º pelotão.
Não toquem nos barcos porque foram armadilhados.
O 3º pelotão deslocou-se para o meu destacamento, onde só ti-
nha ficado uma secção para manobrar o canhão sem recuo, os ou-
tros seguiram picada fora comigo à frente, logo a seguir ao picador,
os restantes homens em fila silenciosa, com o furriel Trindade a dar
instruções aos homens. Os restantes pelotões seguiam atrás, com o
capitão no meio da coluna. Andámos, andámos, até que o capitão
deu ordem de alto à coluna e ordenou para montar emboscada numa
zona da mata cerrada, com ligeira elevação para precaver surpresas,

60
Os Soldados Perdidos

o que não estava mal pensado. Todos deitados de barriga para baixo,
armas apontadas em frente, quem quisesse mijar tinha que o fazer
nas calças, ninguém se levantava a propósito de nada. E as horas co-
meçaram a passar lentas demais, o suor a escorrer pelo corpo todo,
passada uma hora, depois duas, até que chegados à terceira hora sem
novidades, o capitão decidiu voltar à base o mais depressa possível.
Naquele dia estávamos com sorte, nada se tinha passado, o IN
andava por outras paragens ou soube de alguma coisa e evitou o
confronto.
Chegámos ao quartel o mais rápido possível, havia contentamen-
to no rosto de todos, alegria, direi mesmo.
— Quero o pessoal em formatura; Trindade, vai desarmadilhar os
barcos, hoje vamos à pesca.
Todos formaram rapidamente, podia haver novidades.
— Camaradas, hoje vamos pescar para o almoço, encham os bol-
sos de granadas e quinze de vós acompanhai-me. O furriel Trindade
já foi desarmadilhar os barcos. Arranjem pranchas de madeira para
colocarmos no lodo e não nos sujarmos todos. Atenção, não quero
ninguém dentro de água, por causa dos crocodilos.
Quinze voluntários se apresentaram, instantaneamente. Tive que
dispensar outros que já estavam a mais. Dirigimo-nos para o rio com
as quatro pranchas e os três motores dos barcos. O Trindade já tinha
desarmadilhado a zona, pelo que pusemos os motores e deslocámos
os sintex para a água, desta vez a escorregar pelas pranchas. Avisei
o furriel para comunicar ao capitão que ia haver pesca, pelo que os
rebentamentos eram para isso mesmo. Entretanto mandei um rádio
aos “fuzas” a avisar o que ia acontecer.
Barcos para a água — gritei —, embarquem logo, sem pôr os pés
na lama, vamos para o meio do rio.
Com os barcos em movimento, tripulações de cinco homens
em cada barco, fomos para o meio do rio e começámos a pesca-
ria. Cada barco mandava duas granadas, cachões se elevavam da

61
João Viegas

água, os crocodilos fugiam da área, os peixes mortos começavam a


aparecer à tona de água e eram prontamente recolhidos em redes
improvisadas em panos de mosquiteiro. Que pescaria, uma hora
depois, com uma vintena de granadas atiradas, os barcos estavam
cheios de peixe de diversas qualidades, hoje estávamos à beira-mar
numa pesca de loucos varridos e uma enorme alegria de crianças
grandes. Dava gosto ouvir e ver os risos daqueles rapazes, com a
responsabilidade da morte às costas, contentes como nunca os ha-
via visto.
— Alferes, barcos cheios, vamos almoçar.
— Já chega, vamos embora, peixe assado à vista.
Depois da pescaria, aproximámo-nos das margens, onde o Trin-
dade nos aguardava com cerca de dez homens, todos a rir e a acenar,
numa idílica cena de praia, num país em paz, azul do mar e miúdas
bonitas nas praias ensolaradas, do meu país.
Subam os barcos para terra firme, tirem os motores e as pranchas
para levar.
Ordens cumpridas num ápice, caixas de munições carregadas de
peixe, uma coluna em fila para descarregar todo o material para o
almoço. O furriel já tinha dado ordem para o lume estar pronto para
que as brasas assassem o rico peixinho.
No destacamento, o ambiente era festivo, todos atarefados com
qualquer coisa, desta vez havia vários cozinheiros, o peixe aterra-
va nas brasas, as cervejas aterravam nas mesas, a festa continuava,
quem diria que a guerra estava ali, ao virar da esquina. Nesta altura,
o Trindade vem ter comigo e lembra-me.
— Alferes, tens que convidar o capitão, senão há merda.
— Ok. Trindade, “manda um rádio” para convidar Sua Excia.; de
caminho, manda outro ao Labaredas.
“Rádios enviados”, passada cerca de meia hora chega o capitão
com o alferes Mendonça, o seu segundo comandante.
— Meu capitão, ainda bem que pôde vir, hoje há peixe grelhado

62
Os Soldados Perdidos

com umas batatas cozidas; agora só aguardamos a chegada do subte-


nente Labaredas e mais alguns “fuzas”.
— Muito bem, alferes, está a ver como é fácil ser mais polido?
— Eu sou polido, só que às vezes perco o brilho, deve ser desta
guerra.
Minutos depois, chegam os “fuzas”, sirenes a fazer um barulho in-
fernal, desta vez com as pranchas repostas no local de desembarque,
para não ouvirmos críticas.
— Senhor capitão, camaradas alferes, chegámos e estamos cheios
de fome.
O capitão deu a ordem, todos para a mesa, a rapaziada apertou-se
o mais possível para que todos coubessem, as cervejas continuaram
a pousar na mesa, o Labaredas a segredar-me.
— Viegas, trouxe umas garrafas de whisky da marinha, bem me-
lhor do que as do exército.
— OK, não faças estrilho, o capitão não pode ver.
A pescaria vinha para a mesa, grandes peixes deste rio imundo,
a gordura a derreter nas travessas, as batatas a serem colocadas nos
pratos e, era uma alegria ver estes homens comerem o impensável,
peixe acabado de grelhar, um acepipe só das altas patentes nas suas
messes engalanadas.
O capitão não se sentia à vontade, até que começámos a falar do
famoso cais provisório, nisso o capitão era competente como enge-
nheiro civil. Amanhã começaria a obra fundamental, com a ajuda
dos fuzileiros e a sua experiência em obras dessa natureza, o que
deixou toda a gente bem-disposta e, com projectos para os dias se-
guintes, o que não era pouco para tal sítio.
O almoço estava no ponto, ou seja, gostoso e bem regado, de cer-
veja, é claro, não havia vinho decente no mato, só vinho em bidões
de duzentos litros, negociata segura de uma patente superior. Só ser-
via para temperar comida, ou então para algum bêbedo inveterado
que até consumiria petróleo. Eu e o Labaredas estávamos desejosos

63
João Viegas

que o capitão se fosse embora, para ficarmos mais à vontade e pas-


sássemos para o famoso whisky da marinha. Só pelas três da tarde
tivemos essa oportunidade.
Senhor subtenente, senhor alferes, rapazes, gostei do petisco, para
a próxima, vão à pesca para os restantes pelotões, foi uma boa ideia.
Alferes Viegas está a surpreender-me positivamente. Continue assim.
Lá partiu, todo impante, com o seu adjunto rumo ao comando.
Foi um dia simpático, com algumas aventuras e recheado de
emoções, se isto fosse sempre assim, a guerra iria ser uma peluda.
Depois da patuscada, já o capitão ia longe, os fuzileiros começam a
tirar garrafas de whisky dos alforges, dos bolsos das calças e, eis que
se juntam em cima da mesa cerca de umas nove garrafas. Tive que
intervir, imediatamente, pois não queria ninguém bêbedo:
— Camaradas, só um pequeno copo a cada um, guarda-se o res-
tante para outras ocasiões.
— Só hoje, alferes, vá lá.
— Já disse, um copo pequeno e chega, não quero bebedeiras em
zona IN.
O Labaredas disse logo com o seu vozeirão:
— Vocês não são fuzileiros, aguentem-se. Tivessem ido para a
marinha.
E a rodada autorizada foi consumida rapidamente, sobravam sete
garrafas que foram guardadas na minha tenda, local sagrado para o
pessoal.
A festa seria para durar, não fosse o Labaredas ter gritado aos seus
homens:
— “Fuzas”, daqui a meia hora chega o macaréu, vamos recolher à
base, a toda a velocidade.
A despedida de bons camaradas fez-se efusivamente, abraços e
pilhérias, camaradas de guerra que se viam até não sei quando, al-
guns pela última vez, pois nesta terra maldita havia muitos motivos
para se morrer.

64
Os Soldados Perdidos

— Viegas, quando quiseres ajuda para construir o cais, avisa, es-


tou às ordens.
— Obrigado Labaredas. E obrigado pelo whisky.
— Temos lá disso às caixas. Abraço e boa sorte.
Vimo-los partir como se fossemos já velhos amigos, a guerra tem
destas coisas, cimentam-se amizades pela proximidade com a morte
e, pelas insignificâncias da vida.
O resto do dia passei-o a visitar os homens, a inspecionar armas,
a constatar se havia copos a mais, fui à tabanca com o Trindade para
analisar a defesa, vi o orgulhoso povo balanta nas suas lides, aqui
e ali, um acenar de braços, em cumprimentos efusivos, uns cães a
brincar, o nosso amigo caçador veio dizer-me que brevemente as ca-
delas paririam, se eu queria algum cachorro, no que anuí, e que fica-
ria com dois, para mascotes do pelotão; faria bem aos homens terem
animais, para receberem o incondicional amor canino.
Estava tudo em condições, nada de novo em Cobumba. Tínha-
mos que começar a construir o pequeno embarcadouro, faltavam
o projecto do capitão e os respectivos materiais. Desloquei-me ao
comando para falar com o capitão.
— Meu capitão, precisamos dos planos para construir o embarca-
douro que o capitão prometeu.
— Estão aqui, pode levar, cuidado com as madeiras usadas, para
a base têm que ser troncos de palmeira, porque aguentam melhor a
água.
— Meu capitão, vamos precisar de um gerador para o destaca-
mento.
— Já está tratado, para a semana vem o gerador e um canhão 140,
ou seja, o obus 14, uma peça de artilharia enorme, tem que arranjar
local para a coloca e, alojamento para seis homens, incluindo o alferes
que comanda o grupo da peça. Pode seguir, tem muito que fazer hoje.
Quando cheguei ao destacamento reuni com o Trindade para
combinar tudo e pôr as coisas a andar.

65
João Viegas

— Trindade, para a semana chega um obus 14 e um gerador, va-


mos escolher um sítio para instalar as duas coisas.
— Viegas, o obus é enorme, tem que se construir um paredão
para proteger a peça e os homens da guarnição. É melhor serem eles
a escavar o local e a escolherem o sítio da instalação.
— Quanto ao gerador, temos que o colocar num local o mais
abrigado possível, não o podemos pôr debaixo da árvore grande,
pois o IN pode usar a árvore como alvo.
Entretanto, chegou um soldado do comando da companhia.
— Alferes, o nosso capitão quer falar consigo agora. É urgente!
— Vou já contigo, furriel aguenta o forte, vou ouvir as novidades.
Quando cheguei ao comando, o capitão já me esperava com ar
impaciente.
— Alferes Viegas, o IN tem um bi-grupo na área, cerca de duzen-
tos ou mais homens. Vai haver ataque em breve. Prepare os homens
para o pior.
— Meu capitão, se houver ataque agora, estou sem gerador, logo
ninguém vê nada. Vou avisar o pessoal para a batalha final.
— Calma homem, anda a ler muitos livros, aqui não há batalha
final, só que vai ser difícil enfrentá-los. Quanto às luzes, eu sei que
há-de inventar uma solução, boa sorte, pode seguir.
Fiquei preocupado com as notícias. Conversei com o furriel Trin-
dade que sabia bem como resolver situações de guerra difíceis.
— Trindade, bi-grupo na zona, temos que alertar toda a gente.
— Viegas, só temos uma solução, pôr mais minas anti-pessoal no
arame e distribuir as MG 42 nas zonas abertas.
— Só temos um canhão sem recuo, vamos mudá-lo de sítio?
— Não, a posição está defendida, deixa-os vir, com fogos cruza-
dos limpamos os “animais”.
— Vou avisar toda a gente, hoje ninguém dorme. Alerta total,
manda-os reunir junto à bandeira.

66
Os Soldados Perdidos

— Nunca pensei ver-te um patriota, assim dá gosto. Já sinto na


boca o sabor a sangue.
— Isso és tu, feito para a guerra, eu só tenho medo de não estar
à altura.
— Não Viegas, és bom comandante, o teu azar é não teres apren-
dido nada em Mafra.
O corneteiro tocou a reunir, todos os homens formaram sob a
bandeira. Um ar assustado nos rostos.
— Camaradas, o IN está em força, muito perto de nós. Possivel-
mente vai atacar dentro de horas, quero carga máxima, não poupem
munições, se chegarem ao arame vamos todos morrer. Estes sacanas
foram treinados pelos russos, são valentes e querem-nos matar.
Ouviu-se um grito uníssono.
— Estamos com o nosso alferes e com o furriel, vamos pô-los a
andar.
-Camaradas, hoje não há cerveja para ninguém, só “coca-cola”,
armas a postos e olhos abertos, o jantar são conservas, podem ir para
os postos. Cabo Conceição, estamos entendidos? Se te apanho nos
copos és o próximo picador do pelotão.
— Certo, alferes, eu não quero morrer.
Chamei o furriel Trindade e perguntei-lhe qual a disposição que
deveria tomar para enfrentar o IN.
— Trindade, não temos luzes, o que devemos fazer para baralhar
o IN?
— Alferes, temos que pedir mais uma MG 42, à companhia e
umas vinte fitas de munições. Uma bala tracejante em cada cinco,
assim, podemos afinar a pontaria. Precisamos de mais um morteiro
60 e trinta granadas, eu faço fogo com esse morteiro.
— Ok, vai à companhia pedir esse material, quero tudo pronto ao
entardecer.
O furriel, acompanhado por dois homens, seguiu para o coman-
do a solicitar o material. Meia hora depois já estava de regresso com

67
João Viegas

tudo, mais duas MG 42 e cinquenta fitas de munições, para além de


foguetes luminosos. Estávamos preparados para qualquer ataque, a
qualquer hora, só o nervoso miudinho dominava o espírito de todos
os homens.
As horas passavam lentas, demasiado lentas, talvez a lentidão da
própria morte ao aproximar-se, depois, era tudo rápido, demasiado
rápido, uma bala e pronto, seguíamos para o infinito de todos os
guerreiros ao longo dos tempos.
O jantar de conservas decorreu com uma tranquilidade anormal,
ninguém ria ou contava anedotas, só o ar taciturno daqueles rostos
tristes, a pensar no que viria por aí. O ataque seria quando? Have-
rá mortos e feridos graves, demasiadas interrogações em tempo de
guerra, quando a cabeça tem que estar pronta para matar outro ser
humano, como quem não quer a coisa, só porque nos querem matar
no maior número possível.
Aproveitei para fazer mais um discurso à CITAC, em tempo de
guerra:
— Camaradas, temos o IN à perna, querem-nos matar e, nós não
deixamos. Quero a máxima prevenção para os próximos dias pois o
ataque pode ser em qualquer dia e qualquer hora, a partir de hoje. O
IN tem duzentos homens na zona e, se atacar em força, vai ser brutal
o seu poder de fogo. Abriguem-se e mandem-lhes com tudo o que ti-
vermos. Não os quero perto do arame farpado, vamos pôr mais minas
e armadilhas para a recepção calorosa que os espera. As MG 42 ficam
montadas nas três frentes expostas ao IN. A cada cinco balas ponham
uma tracejante para se corrigir a pontaria. Os foguetes luminosos são
lançados para podermos ver a dimensão do ataque e a sua direcção.
Como já disse hoje, não há cerveja nos próximos dias, bebam colas,
sumos ou água. Boa sorte, camaradas, hoje é mau dia para morrer.
Quando acabei a intervenção, ouviu-se um “Hurra” em crescen-
do, grito treinado pelo furriel Trindade, ou seja, grito de guerra dos
rangers cuja força anímica ajuda o ego dos combatentes.

68
Os Soldados Perdidos

Estavam todos preparados para o ataque que, a acontecer, seria


quando caísse a noite, hora ideal para bombardear e atacar, fazendo
a maior confusão possível. Entretanto, enviei uma mensagem via rá-
dio aos “fuzas”: “IN prestes a atacar nossa posição, estejam atentos
com vossa zona”.
Do outro lado, do rádio: “estamos sempre prontos, boa sorte ca-
maradas”.
Entretanto, dei ordem para que todos fossem para os respectivos
abrigos. Ninguém iria para as tendas até nova ordem.
Lá para as dez da noite, ouvimos sete saídas de morteiro, que co-
meçaram a acertar no meio do destacamento com estragos visíveis.
Eram granadas de morteiro 80, armas letais de grande efeito destrui-
dor. As tendas caíram todas, uma acertou em cheio no espaldão do
canhão sem recuo, provocando a morte dos três homens da secção.
A confusão estava instalada, homens choravam de raiva, outros gri-
tavam para os abrigos próximos a perguntar se estavam todos bem.
Mandei abrir fogo com a bazuca; as metralhadoras MG 42 esta-
vam ao rubro depois de várias fitas descarregadas; os morteiros 60
disparavam granadas a fio; quando aqueciam demais, mandei que
mijassem para os tubos para as arrefecerem; pedi à companhia para
fazer fogo de canhão sem recuo para as coordenadas do IN; mandei
enviar os foguetes luminosos para a frente de combate; dezenas de
homens avançavam para o arame; pedi aos “fuzas” para apoiarem
com as peças boford, mais os nossos morteiros 60, com granadas ex-
plosivas e incendiárias; a batalha estava no auge, era viver com sorte
ou morrer às mãos daqueles guerrilheiros bem treinados na Rússia.
Cabrões dos russos. Saí do meu abrigo para saltar para o abrigo da
MG 42, onde estava o furriel Trindade.
Porra, fui atingido, tive tempo para gritar, enquanto me arrastei
para o abrigo. Sangue em abundância escorria pela perna esquerda.
Tive sorte, pensei, quando chegou o cabo enfermeiro com o seu bor-
nal médico.

69
João Viegas

— Alferes, teve uma sorte dos diabos, o IN acertou-lhe a milíme-


tros da artéria femural. Vou-lhe dar uma injecção de morfina por
causa das dores.
— Trindade, assume o comando e espalha pelo pessoal que estou
vivo. Temos que aguentar estes sacanas e rebentar com eles.
O furriel Trindade começou a informar os postos que eu estava
vivo e mandei resistir, o que deu novo ânimo à rapaziada. O fogo
infernal continuava a um ritmo alucinante, as balas tracejantes ilu-
minavam a noite em acertos de pontaria, a artilharia da companhia
ia fazendo estragos nas forças IN, as granadas dos “fuzas” acertavam
em cheio.
Passada uma meia-hora, o fogo IN reduziu de intensidade,
viam-se cadáveres espalhados pela zona guerrilheira, a artilha-
ria não parava, os nossos resistiam, os poucos que chegaram ao
arame eram dizimados pelas minas colocadas à volta do perí-
metro. Ouvimos uns apitos e o ataque parou, de repente, vá-se
lá saber porquê, possivelmente ou iam reagrupar ou batiam em
retirada. Foi o segundo caso, o furriel saltou para o abrigo onde
eu estava.
— Alferes, o IN retirou com pesadas baixas, estamos safos. Isso
dói muito?
— Não, a morfina não deixa doer, continua é a sangrar.
— Vamos já tratar disso. Conceição quero dois filtros de cigarro
embebidos em sulfamidas, para tapar os buracos de entrada e saída
da puta da bala. Depois o médico faz pensos bem feitos. Vais-te safar
camarada, técnica dos rangers infalível. Bebe um whisky para limpar
a garganta. Mandem avançar o médico da companhia, já.
O alferes Pinto, médico da companhia, chegou a correr com mais
uma maca e dois auxiliares.
— Viegas, tiveste uma sorte dos diabos, agora vou-te fazer um
penso e dar umas injecções de penicilina e de anti-tetânica. Tens
viagem garantida para Bissau.

70
Os Soldados Perdidos

— Não quero ir para Bissau, lá ainda me cortam a perna. Quero


que sejas tu a tratar-me.
— OK, todos os dias mudaremos os pensos para ver a cor das
feridas, se não ficarem roxas, estás safo.
— Pinto, dá-me mais um whisky, estou com sede mortal.
— Está bem, já agora bebemos os dois, extensível ao furriel Trin-
dade que com a ideia dos filtros, se calhar te salvou a vida, porque
o sangue estancou. Agora vou-te pôr na maca para te levar para a
enfermaria, lá posso observar se tens febre e outras coisas. Só por
um dia ou dois.
— Está bem. Trindade assume o comando do pelotão até ao meu
regresso.
— OK, chefe, as melhoras e até um dia destes, não vai mais um
whisky para o caminho?
— Claro, e não me lixes a garrafeira; dá porrada, não te esqueças.
— Alferes, as melhoras.
Gritou ele, a fazer-me continência, com os demais soldados pre-
sentes no local.
— Hurra, alferes...
Dava gosto ver a amizade daqueles jovens pelo alferes que pouco
sabia de guerra mas, respeitava os seus soldados como irmãos de
guerra.
É sempre esta diferença, respeito pelos homens sob o seu coman-
do, que marca os soldados face ao comando directo do seu oficial
que os conduz para a vida ou para a morte, conforme a sua perso-
nalidade.
Não há guerras bonitas, são todas feias e imundas, o ser humano
revela o seu carácter face à adversidade da morte iminente, se as
pessoas são más, esforçam-se por fazerem o seu pior, vingando-se
num inimigo que só cumpre ordens, tal como nós. A diferença está
no coração dos combatentes, se forem bem formados, esforçam-se
para atenuar a natureza selvagem do ser humano, se forem malva-

71
João Viegas

dos, então vem ao de cima toda a bestialidade que não os diferencia


dos piores predadores.
Como dizia James Jones “a guerra não enobrece os homens,
transforma-os em cães raivosos, envenena-lhes as almas”. Tal e qual,
tive a oportunidade de conhecer homens valentes, incapazes de ul-
trapassarem os limites da bestialidade, já outros, cobardes e viperi-
nos, utilizavam a guerra para satisfazer as suas piores frustrações,
mesquinhos e traidores, sempre prontos a agradar aos seus superio-
res, também mesquinhos e imbecis.
Entretanto dei ordem que pusessem os restos dos corpos dos três
mortos, o Simões, o Magalhães e o Menezes, em sacos de plástico e
os colocassem por cima de mim. Seria a minha homenagem àqueles
valentes que caíram com a morteirada dum 80 que lhes acertou em
cheio, no espaldão do obus 106. Imagem sinistra, que me reportava
para os heróis franceses, os para-quedistas em Dien Bien Phu, que
saltavam de para-quedas para morrerem ao lado dos seus camaradas
mortos, nas valas enlameadas e ensanguentadas. Seria eu um anjo
da morte, cavalgando a música de Wagner, enquanto os camaradas
tombavam à minha volta? Ou tão só um personagem d’Os Lusíadas,
que por feitos valorosos entraria na enorme galeria dos heróis por-
tugueses de antanho, enquanto o resto do império se afundava nas
matas sinistras da terra das febres, Guiné do meu coração.
Estou vivo, por pura sorte, de mim ninguém ouvirá falar, falta-me
o engenho do meu amigo Camões, o poeta soldado, condenado por
amar demais e, escrever bem demais.
Quando cheguei à enfermaria da companhia, já o capitão me es-
perava, acompanhado pelo médico e um grupo de alferes e soldados
que vinham ver o espectáculo do alferes vivo, no meio dos mortos
que me acompanhavam.
— Alferes Viegas, é sinistro trazer os mortos em cima de si, está
bem da cabeça?
— Meu capitão, perdão, só trouxe os restos dos mortos, porque

72
Os Soldados Perdidos

corpos inteiros não os havia, e, esta é a melhor homenagem que lhes


podia prestar.
— Levem o alferes e os mortos para a enfermaria, amanhã virá
um helicóptero para levar o vivo e os mortos para o hospital.
— Perdoe-me, meu capitão, eu não quero ir para Bissau. Os meus
homens precisam de mim e, já agora, proponho o furriel Trindade
para uma medalha por bravura em combate. Ele comandou o desta-
camento após eu ter sido atingido, um bravo.
— Falamos disso depois, alferes Pinto, o homem pode ficar aqui
para ser tratado?
— Claro, meu capitão, acho que devemos respeitar a vontade do
alferes Viegas.
Terminado o ritual de acolhimento, o Pinto dirigiu-se a mim, en-
quanto enchia um copázio com um belo whisky e me dizia, a sorrir:
— Grande peça de teatro, o homem ficou atrofiado. Bebe este
belo néctar, antes que se acabe, só te faz bem.
— Achas que posso morrer?
— Tu? Com essa estrelinha que trazes contigo, acho que não vais
morrer nesta guerra, só se for noutra qualquer. Bebe à vontade mais
um copo destes, dá-te cor, pareces um defunto.
— Chiça, com amigos destes não sei... ouve-me bem, se me acon-
tecer alguma coisa, quero música de Wagner no meu enterro, pode
ser “As Valquírias”.
— Lá estás tu a falar em mortos, será da bebida?
— Não, meu amigo, estou triste com a sorte daqueles infelizes,
azar puro.
— É a merda da guerra, não morrem todos, mas morrem muitos.
— Hoje não foi o teu dia, anima-te e bebe outro, com a bebedeira
vais dormir como um menino.
— Saúde à vida, disse eu, enquanto mamava o terceiro copo. Es-
tou cansado!

73
João Viegas

— Dorme enquanto podes, o hotel é uma javardice, mas não


há melhor para doentes heróis. A propósito, tenho que te fazer um
penso decente, pelo que sei tens aí uns filtros de cigarro a tapar os
buracos de entrada e saída da bala. Quem teve a ideia de fazer essa
merda?
— O furriel Trindade, coisas de rangers. Já te tinha dito.
— Se calhar, salvou-te a vida mas, temos que pôr umas compres-
sas aplicadas por mim, o único médico presente.
— OK, despacha-te, quero dormir.
Enquanto o Pinto fazia as tais compressas, bebi mais um gole da-
quele belo whisky, que me acalmava o nervoso miudinho.
— Dói-te?
— Não, só uma moinha que chateia, mas não tem importância.
— Se isto começar a ficar com côr arroxeada, vamos mesmo que
te transferir, senão ficas sem perna. Imagina as gajas em Coimbra a
ver o famoso Viegas com uma perna de pau. Romântico, mas lixado
para um actor.
— Se me doer tomo mais morfina?
— Nem penses, a dose que levaste dá para um maluco como tu,
mais matava-te.
Lembro-me de ter aterrado num sono esquisito, depois apagou-
-se tudo.
No dia seguinte, acordei com a boca seca, como se tivesse bebido
uns copos, a perna já não me doía, estava tudo normal quando o
Pinto me entra na enfermaria com um sorriso parvo.
— Olha quem vem visitar-te? O furriel Trindade e o subtenente
Labaredas.
— Camarada Viegas, estás com bom aspecto, agora que és candi-
dato a uma medalha.
— Não há medalhas para mim, propus uma para o Trindade, que
comandou depois que eu caí.
— Alferes, um ferimento em combate dá direito a uma lata.

74
Os Soldados Perdidos

— A única coisa que eu queria era o fim desta guerra e, que fos-
semos todos para casa.
— Então camarada Viegas, sai daqui antes que fiques deprimido.
Os “fuzas” querem oferecer-te uma almoçarada bem regada.
— Labaredas, quero ir-me embora o mais depressa possível, por
mim ia já hoje, mas o Pinto ainda não sabe se fico com ou sem perna.
— Sou só teu médico, a perna não vai sair, está descansado e, se
continuares a melhorar, podes ir para o teu destacamento dentro de
dois dias, com muletas, é claro.
— Chiça, muletas?
— Sim, Viegas, muletas para não esforçares a perna esquerda, se-
não arriscas-te ao pior, infecção e perna cortada.
— Alferes, daqui a dois dias venho cá buscá-lo, o pessoal tem
saudades e, eu também.
— OK Trindade, mas não quero comissão de recepção à chegada.
Para despedida, proponho um copázio do whisky, da marinha,
que eu trago no cantil, hurra.
Um copo de metal com uma boa dose de whisky foi distribuído
por todos, tinha uma sede mortal e a bebida escorregou que nem
água das pedras; o corpo com vontade de se levantar e partir para o
destacamento, apoiado pelos camaradas; para já era impossível.
Entretanto o Pinto decidiu mostrar o buraco da bala, a todos, ti-
rou o penso, constatou que a ferida não apresentava coloração anor-
mal, deu-me uma palmada no ombro e disse a sorrir:
— Viegas, se isto continuar a correr tão bem, dentro de dois ou
três dias podes ir andando para a tua tenda, apesar de considerar
estupidez se o fizeres.
— Ó furriel Trindade, tome conta deste maluco, à mínima dor
quero-o logo aqui; fica à sua responsabilidade.
— Senhor alferes Pinto, o nosso alferes Viegas é muito difícil de
controlar, mas cá estarei com ele de volta se houver algum azar.

75
João Viegas

E a manhã passou com a rapidez das coisas boas, mais umas pia-
das do costume, sessão interrompida pela decisão do Labaredas em
voltar ao seu destacamento.
— Camaradas, tenho que voltar, há “fuzas” à espera do coman-
dante. Quando o Viegas voltar à base, fazemos uma festarola das
antigas.
— Obrigado pela tua visita, camarada mais doido que eu, sou
imortal e não sabia.
— Não abuses da sorte, já gastaste uma vida, não sei, nem quero
saber quantas te sobram.
Abraços e sorrisos, os meus amigos lá voltavam à guerra, enquan-
to eu suava de tristeza naquela enfermaria improvisada.
Com o apoio dumas muletas levantei-me e, comecei a andar pela
zona da companhia, visitei o alferes Almeida, o Mendonça, o Lima,
os soldados cumprimentavam-me, tudo me parecia estranho, queria
voltar ao meu destacamento o mais depressa possível, fui falar com
o capitão.
— Meu capitão, já estou bom, quero voltar à base.
— Calma, alferes Viegas, só o alferes Pinto pode determinar
quando você pode seguir.
— Vou falar com o Pinto para resolvermos isto.
Falei com o médico, insisti na alta que me foi dada na hora, com o
conselho de mudar o penso todos os dias e ver a cor da ferida.
— Meu capitão, o alferes Pinto já me deu alta, posso seguir para
o destacamento?
— Alferes, se se sente melhor pode seguir, alguém vai levá-lo no
meu jeep.
— Obrigado, meu capitão.
— Não me agradeça, sabe que alguma coisa pode correr mal, mas
não vale a pena dizer-lhe mais nada.
Lá consegui partir, o eterno cantil do whisky, uma golada pelo
caminho, o destacamento não me aguardava, vieram todos dar-me

76
Os Soldados Perdidos

os parabéns pela sorte, logo trouxeram uma cadeira de praia para eu


me sentar junto da árvore grande.
— Alferes Viegas, os seus homens aguardam-no.
— O pelotão formou junto da bandeira, os homens gritaram
“hurra, viva o nosso alferes”, as lágrimas bailaram-me perigosamen-
te. Tinha voltado à guerra, os meus irmãos de destino aguardavam-
-me. Entretanto, chegou o chefe da tabanca, Glomur Na Montche
acompanhado pelo caçador, com dois cãezinhos para me oferecer.
Seriam as mascotes do destacamento, gordinhos e espertos, os ra-
binhos a abanarem, uma alegria para todos, parecíamos crianças a
quem tinham oferecido cachorrinhos para com eles partilharmos o
imenso amor que nos corria no sangue.
Estes animais vão chamar-se Bolinhas e Leão e, temos que os tra-
tar como camaradas de guerra.
Assim foi, todos faziam festas e pegavam neles ao colo, a alegria
estampada nos rostos de jovens soldados perdidos no meio desta
mata impenetrável e cheia de surpresas más.
— Camaradas, obrigado por tudo, os animais têm que ser bem
alimentados e dormem nas tendas, precisamos de bons amigos nesta
terra que nos tenta expulsar.
Escusado será dizer que todos os homens queriam os cães perto
de si, quando o furriel Trindade disse:
— Meus senhores, os animais foram oferecidos ao alferes, ele já
lhes deu os nomes, vocês estão muito ocupados, eles vão ser os ad-
juntos do alferes Viegas.
Todos gritaram que sim, que os cachorros iriam ajudar na recu-
peração do alferes.
— Camaradas, uma cerveja a cada homem, na minha conta. Tra-
gam umas latas de conserva de sardinha picante e casqueiros, vamos
petiscar como sabemos.
— Viva o alferes, ouviu-se a uma voz.
— Calma, só quero comer qualquer coisa, tenho saudades.

77
João Viegas

— Alferes, se houver um ataque o que vai fazer com as muletas?


— Fonseca, atiro-me para o abrigo da MG 42 e, depois logo se vê,
enquanto houver munições é mandá-los abaixo.
— Alferes, dizia-me o Trindade, na tenda há uma cama da tropa
para deitar, cortesia do capitão.
— Boa, assim se houver ataque basta-me pôr os pés no chão e ir
para o abrigo. Não se esqueçam dos cães, se houver ataque, alguém
que os leve para os abrigos mais próximos, não os quero estraçalha-
dos pelas balas IN.
— OK, alferes, os cães já são da família, ninguém lhes fará mal.

Entretanto a vida no destacamento começava a voltar à normali-


dade, quando perguntei pelos cães disseram-me, entre sorrisos, que
eles estavam a estrear a minha nova cama. Claro que algum engraça-
dinho os lá pôs, onde descansavam tranquilamente do imenso calor
que se fazia sentir. Olharam-me com um sorriso, ladraram esganiça-
damente e continuaram a dormir. Belos animais, iam ser uns cama-
radas fundamentais para a moral das tropas.
Era bom ter voltado a casa, o meu destacamento, os meus homens
e amigos, o meu pequeno mundo embrenhado na guerra, longe das
caganças e discursos patrióticos, sentia-me bem, direi mesmo, tinha
voltado às origens: guerra e honra. Naquele momento senti-me in-
vadido por uma estranha nostalgia, tinha saudades dos meus cinco
filhos que mal me conheciam, o Frederico, a Catarina, o Pedro, o
Filipe, a Sónia, crianças que eu não sabia se voltaria a ver. Tristeza
e saudades, talvez provocadas pelo charuto manhoso, mas umas lá-
grimas afloraram-me nos olhos. Um guerreiro não chora, pôrra, as
lágrimas seguraram-se por um triz, o Trindade olhou-me e disse:
— Viegas, estás a chorar?
— Não, meu amigo, é da merda do charuto.
— Tens saudades de casa?
— Tenho saudades dos meus filhos, da casa, não sei se voltarei.

78
Os Soldados Perdidos

— Já nasceste duas vezes, não vais morrer nesta merda de guerra.


— Não sei, mas já não tem importância.
— Porque não te deram o amparo de família?
— Coimbra, crise de 69, prisão, uma vida pendurada no destino.
— Um ranger faz o seu próprio destino.
— Eu sei, Trindade, não sou tão valente como tu, às vezes sonho
que não saio daqui.
— Vais sair sim meu amigo, deixa-me dar-te um abraço.
Abraçámo-nos como dois irmãos que já éramos, a minha vida
dependia, em grande parte, da ajuda do furriel ranger que me prote-
gia todos os dias. Será que Deus me conhecia e iria fazer o mesmo?
Todos os soldados que estavam nas proximidades pararam o obser-
var a cena estranha, o alferes e o furriel a abraçarem-se, amigos, sa-
biam todos mas, algo mais se passava.
— Trindade, vamos trabalhar, já chega de mágoas e tristezas.
— Ok, é melhor sentares-te na cadeira de praia que está debaixo
da árvore, enquanto lês um livro e bebes um copo, pelo cantil. Se
houver ataque, venho cá buscar-te e ajudo-te a seguires para o abrigo
mais próximo.
— Está bem, Trindade, manda vir o cabo Conceição para mudar
os pensos e ver como está a ferida. Dói-me ligeiramente, não quero
arriscar.
— OK, Viegas, chamem o Conceição já (gritou ele para o soldado
que passava por perto), vá lá, despachem-se.
— Alferes (dizia o enfermeiro que chegou em minutos), vamos
lá ver o buraco (enquanto me tirava as gazes que envolviam a perna
esquerda), isto está quase bom, mais uns dias e já pode largar as
muletas.
— Boas notícias, tenho que fortalecer a perna, tragam-me qual-
quer coisa que sirva de bengala.
O soldado Rafael, atirador especial, valente como um beirão,
trouxe-me o pica-minas em metal, envolto em fia adesiva. Seria a

79
João Viegas

minha bengala provisória. Larguei as muletas e levantei-me com


certo esforço, apoiado pelo Trindade, dei uns passos e a coisa resul-
tava quase na perfeição.
Já tenho bengala, que é uma merda, tentem arranjar qualquer coi-
sa mais forte. Se caio no chão, estou lixado.
Já a andar, com o apoio da bengala, dirigi-me à tabanca para falar
com o caçador. Qual não é o meu espanto quando ele aparece com
uma bengala de madeira preta, toda trabalhada, oferta do chefe da
tabanca. Fui agradecer ao homem grande, um balanta já velho, o
Glomur Na Montche, cabelos grisalhos, olhos negros, doces como a
paz, que a sorrir me estendeu a mão que cumprimentei efusivamen-
te. Todo ele sorria, “alfero bom, vem tabanca beber coisa manga di
forte, perna ficar boa depressa dimais, alfero vai por colar ronco e
nunca tirar, ser pra bala passar “.
— Obrigado, chefe, vamos Trindade, oferece quatro sacos de ar-
roz ao senhor, eles precisam.
A bebida que me ofereceram era baseada no fruto cola, um ener-
gético natural que dá uma potência sexual incrível, tira a fadiga e dá
muita energia. Enchi um cantil com o produto, comecei logo a sentir
mais força, era bom.
— Trindade, isto é mesmo bom, arranja mais uns cantis com ma-
terial deste, é bem melhor que o whisky e só nos vai fazer bem.
— OK, vou buscar mais bebida desta, mas não dispenso o whisky.
— Arranja pelo menos três cantis cheios.
Depois de descobrirmos as propriedades de tal bebida, começa-
mos a encharcar-nos com a dita, sentíamo-nos mais fortes e valen-
tes, e a minha perna recuperava a olhos vistos, não doía nada e já
assentava o corpo com muita facilidade. Na próxima semana íamos
receber um gerador médio e um obus 14, pelo que tínhamos que
escolher o terreno para as ditas instalações, coisa que começámos
logo por fazer, até que encontrámos uma boa posição para o obus,
onde se teria que colocar um espaldão, com bidões e sacos cheios

80
Os Soldados Perdidos

de terra. Quanto ao gerador decidimos onde o colocar a recato dos


ataques. Estava tudo pronto para a próxima investida do IN. Com
o gerador já tínhamos luzes de exterior, com uns focos grandes que
batiam a mata num grande raio de acção. De repente apareceram
os cães, o Leão e o Bolinhas, num latido feliz a abanarem as caudas
e a saltarem à nossa volta, as mascotes apresentavam-se ao serviço.
Ficámos todos contentes e fizemos festas àqueles novos camaradas
de guerra. Parecia que éramos felizes, só por aquele momento de
ternura tão simples e tão importante. O operador cripto chegou com
uma mensagem do comando: “LDG chega amanhã com a carga pre-
vista”, o que nos deixou visivelmente bem-dispostos; mandei formar
o pelotão junto à bandeira.
— Camaradas, amanhã chega a LDG com o obus 14 e um ge-
rador. Devem ser rebocados por um unimog. Portanto, amanhã te-
nham preparadas as pranchas metálicas para assentar no lodo.
— Trindade, quero uma fiada de arame farpado à altura dos cães,
para eles não saírem para o campo de minas.
— Pessoal, ouviram o alferes? Colocar mais uma fiada de arame
farpado, já!
— Trindade, então e o cais de embarque, não avança?
— Alferes, aguardamos ordens do capitão.
— Camaradas, quero todos a trabalhar, vamos cortar madeira e
uns troncos de palmeira, para fazer estacas para o cais. Organizem-
-se em dois grupos e de seguida tragam lenha para os fogões. Aca-
bou-se a boa vida.
— Ó diabo, o alferes está mais forte. Renasceu e, veio mais valente
(dizia o Cabo Fonseca, entre risos da rapaziada).
— Camaradas, menos conversa, já disse que não quero ver nin-
guém parado. Amanhã chega material novo, vamos dar uma arru-
mação a esta espelunca a que chamamos destacamento.
— O alferes está com o diabo no corpo, nunca o vimos assim
(proferiu entre dentes o Manuel).

81
João Viegas

Com toda a gente a trabalhar intensamente, a unidade parecia


mesmo um quartel de operações especiais. O furriel Trindade anda-
va de um lado para o outro, eu lá ia descansando na cadeira de praia,
oferta do pessoal, que eles tinham tirado de algum desgraçado que
passou a sentar-se noutro sítio qualquer. Nunca ninguém se quei-
xou.
Entretanto chega o capitão com o seu adjunto, com um recado
urgente de que o IN rondava a zona com forte concentração militar.
— Alferes Viegas, situação grave. O IN vai atacar-nos em força.
Sente-se preparado?
— Meu capitão, venham eles. Eu vou para o abrigo da MG 42 e,
enquanto houver munições eles não entram.
Dado o alerta, pararam os trabalhos de rotina, todos se dirigiram
para as suas posições, o álcool foi abolido, provisoriamente, eu só
ingeria aquele líquido balanta que me dava energia. As horas come-
çaram a passar mais calmamente, os rostos assustados dos soldados,
um nervoso miudinho a tomar conta do pessoal, no qual me incluía.
O único que assobiava e cantarolava era o Trindade, o nosso ranger,
o orgulho do destacamento, dir-se-ia que estava contente e desejoso
do confronto, o único profissional no meio daquela gente toda. O
que seria de mim, de nós todos, sem aquele jovem, que mais parecia
um guerreiro de antanho, de espada em riste à espera dos malogra-
dos infelizes que o iriam defrontar. Com homens desta fibra, nunca
iríamos perder a guerra, assim os comandantes dessem valor a tal
gente, os verdadeiros heróis do meu pequeno país.
Mandei chamar o caçador balanta para o informar do ataque
iminente e disse-lhe que se quisesse abrigar as mulheres e as crian-
ças nos abrigos, o poderia fazer. Ele limitou-se a olhar-me, sorriu,
agradeceu, mas disse que estavam mais seguros na mata em frente,
que era o que faziam sempre que havia ataque. Percebi que eles já
sabiam do ataque e que para evitar baixas, preferiam arriscar na
mata.

82
Os Soldados Perdidos

Passada uma meia hora, o chefe da tabanca conduziu o seu povo


para a mata a oeste, fazendo-me um cumprimento com a mão aber-
ta. Imediatamente dei um grito para os homens recolherem aos abri-
gos, colocando os cães no meu abrigo da MG 42.
O jantar hoje é ração de combate, não há álcool para ninguém,
quero o “racal” perto de mim e os outros rádios, um com o furriel
Trindade, outro na secção de morteiros. Quando o IN aparecer na
mata, quero morteiradas certeiras, com granadas incendiárias. Hoje
não os quero na zona do arame.
Na zona da base, no comando da companhia, ouviam-se os pri-
meiros rebentamentos.
O rádio “racal” começava a emitir:
— “zona 2, estamos sob forte ataque IN, rebentem com os flan-
cos, na área da mata, a leste, já”. Dei ordem aos homens dos mortei-
ros para lançarem morteiradas a NE, salvas repetidas. Mas a inten-
sidade do fogo não parava. E, logo hoje que não tinha canhão 106.
Fogo, gritava para o rádio. Os morteiros saiam certeiros, já se via a
mata a arder e, quem lá estava iria pelo mesmo caminho. Sempre o
rebentamento sucessivo, pedi ajuda aos “fuzas”:
— “daqui, zona 2, precisamos de apoio de artilharia para NE,
zona da mata, companhia sob ataque.” O comandante Labaredas fez-
-se ouvir: “camarada, seguem os biscoitos para esses anormais” e um
barulho ensurdecedor se fez ouvir quase de imediato, era o obus 108
da marinha que entrava na festa, e que festa. A mata a arder na zona
do ataque, o apoio da Força Aérea foi pedido pelo comando.
— Cuidado rapazes, o napalm vem a caminho, o carnaval vai co-
meçar, disse eu para todos os postos.
Só que desta vez não foi napalm, foram bombas de alta potência
lançadas pelos FIAT G91, que arrasaram a zona e puseram o IN em
fuga. Depois do espectáculo, o fim repentino do tiroteio, os homens
começavam a sair dos abrigos e eu a pedir ajuda para sair, os cãezi-
nhos a ladrar à minha volta, a vida a regressar ao normal, a popula-

83
João Viegas

ção da tabanca de regresso a casa, os homens a abraçarem-se entre


risos e choro.
— Camaradas, atendendo à situação, podem beber uma cerveja
por homem, só uma, porque isto ainda não acabou. Não esqueçam
que amanhã temos a chegada da LDG com o obus 14, o gerador e
os mantimentos pedidos, para além do correio. Despertar às cinco
da manhã. Depois da cerveja dêem uma volta para ver se está tudo
bem, depois, tudo a dormir, sem estrilhos.
Os homens deram a volta ao arame, olhos postos na mata, os cãe-
zinhos a brincar com as pernas dos soldados, todos contentes, a vida
a voltar à rotina da guerra.
Tive tempo para olhar o céu, milhões de estrelas enchiam a noite
africana, tanta beleza e ao mesmo tempo tanta tristeza na alma. Ti-
nha saudades nem sei de quê, sentia um nó da garganta. Meu Deus,
conseguirei chegar a casa? Já nem sei, tenho sangue nas mãos, de ho-
mens que noutras circunstâncias seriam meus amigos, maldita guer-
ra, que acabe depressa. Vou-me deitar, amanhã será um dia duro.
Os cães saltaram para a minha cama e enroscaram-se para dor-
mirem, estavam felizes na sua inocência de animais estimados por
todos. Tudo iria correr bem, um dia destes estava a caminho de casa.
As crianças. O fim do curso. Uma vida normal.
No dia seguinte a alvorada foi às cinco da manhã, por volta das
seis já por lá andavam os fuzileiros comandados pelo meu amigo
Labaredas, para recepcionarem a LDG “Bombarda” que trazia ma-
terial de guerra e comestíveis. Os zebros voavam no rio Cumbijã e
levantavam pequenas ondas, enquanto as sirenes dos “fuzas” faziam
um cagaçal dos antigos, era uma festa, as crianças balantas batiam
palmas por assistirem a tanta alegria, o enigmático chefe Glomur
Na Montche cumprimentava-me à distância com a mão aberta, o
caçador sempre a seu lado fazia o mesmo, iria ser um dia diferente,
dia de festa rija, um intervalo bem merecido no meio do sangue que
empapava a bela terra da Guiné. Entretanto, dei ordem ao Trinda-

84
Os Soldados Perdidos

de para dar chocolates da ração de combate às crianças, elas iriam


gostar e os soldados não sentiriam a diferença. Assim se fez e era ver
todas as crianças a saltar de alegria. Hoje era um bom dia, guerra
ausente, ou não, crianças felizes, valia a pena. Ainda dei ordem para
distribuírem sumos pela criançada, todos andavam agitados.
Pelas oito da manhã chegou a LDG com a carga completa. Depois
de colocadas e reforçadas as pranchas metálicas, a rampa baixou e
saiu um unimog a rebocar o obus 14, um canhão enorme que iria
ocupar demasiado espaço no destacamento. Conjuntamente vinha
uma secção comandada por um alferes, e seis artilheiros. A seguir,
vinha mais um unimog com o gerador e dois electricistas que monta-
riam o aparelho. Só depois saiu outro unimog com material de guer-
ra e abastecimentos para vários meses. As várias pranchas metálicas
impediram o atolanço no lodo. Desembarque perfeito e terminado,
a LDG “Bombarda” despediu-se com um apito forte e estridente e lá
seguiu viagem para o destacamento dos “fuzas”.
Os dois primeiros unimogues ficaram na minha base, o das muni-
ções e abastecimentos foi para a sede da companhia.
As crianças da minha unidade davam pulos de contentes, tanta
alegria em tão pouco tempo. A entrada do obus 14 apanhou todos
desprevenidos, o que fazia um monstro daqueles num destacamento
de rio? O alferes de artilharia apresentou-se-me:
— Alferes Maurício. Onde instalo a bisarma?
— Bem-vindo por estas paragens. Cuidado com o IN. Escolham
o melhor local para a montagem do espaldão de artilharia, os meus
homens ajudarão. Entretanto, escolham um sítio para montarem as
vossas tendas”.
Imediatamente os unimogues carregaram bidões vazios para fa-
zer um espaldão de artilharia, depois de os encherem com terra e
porem sacos de areia em cima. Parecia um quartel de formigas, toda
a minha gente trabalhava com esforço. Entretanto, os electricistas
lá escolheram o melhor sítio para instalarem o gerador e já ligavam

85
João Viegas

cabos que enterravam na terra dura. Assim, no próximo ataque noc-


turno, já tínhamos luz para abranger toda a mata à nossa frente e
nos podermos alumiar sem ser com candeeiros a petróleo. Passadas
quatro horas, já o espaldão de artilharia estava pronto, o gerador a
funcionar, os holofotes nos sítios e, todo o pessoal cansado e suado a
precisar duma cerveja fresca, o que veio a acontecer por ordem mi-
nha. Além disso, tínhamos mais sete homens de artilharia e um elec-
tricista que não lhe apetecia ficar, mas teve que ser. A base começava
a ser um quartel a sério. Até gerador tinha, para além do famigerado
obus 14, assente em pneus de camião, para ser mais fácil de deslocar
e um unimog, que bastante falta nos fazia, para irmos ao comando e
carregar material sem ser à unha.
— Depois de ter tudo instalado, convidei o Labaredas para visitar
o novo quartel, com artilharia pesada e tudo, ao que ele me respon-
deu que preparasse um almoço substancial, pois traria as bebidas,
e whisky, é claro. Mandei fazer um esparguete com bastante carne
que havia nas arcas, enchi as arcas com cerveja acabada de chegar e
já tínhamos outra arca a funcionar, oferta do capitão, para nos acal-
mar os nervos e termos sempre comestíveis e bebíveis prontos para
emergências. Éramos tratados com simpatia pelo nosso capitão mi-
liciano, que sabia pouco de guerra, mas até era boa pessoa. Desta
vez convidei o capitão para o almoço com os “fuzas”, até para evitar
mais confusões. Andava contente porque a perna melhorava a olhos
vistos, a bebida balanta dava-me energia de sobra, coxeava pouco, a
bengala era mais para fazer de conta, em suma, estava como novo
e cheio de energia. Já tinha gasto uma vida, para a próxima podia
ser de vez, logo veríamos se a sorte me abandonaria. Entretanto dei
ordem para levarem no unimog as chapas de ferro utilizadas nos de-
sembarques, para que os “fuzas” se não se sujassem como era hábito.
O furriel Trindade tomou conta da operação e em menos de meia
hora estava tudo pronto, desta vez os fuzileiros não iam ficar enter-
rados no lodo.

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Os Soldados Perdidos

Eis que, entretanto, chega o capitão com o seu adjunto de jeep e


se dirige a mim:
— Alferes Viegas, você está sempre em festa, até parece que está
em Coimbra com os seus amigos.
— Meu capitão, esta é a recepção à secção de artilharia do alferes
Maurício e seu pessoal, temos que estar à altura do momento, com
um canhão deste tamanho, o IN vai pensar duas vezes antes de voltar
a atacar.
— Claro que está à espera dos seus amigos fuzileiros, eles não
faltam às suas festas.
— Meu capitão, já fazem parte da família militar que nos ajuda
nas piores situações.
— O que é o almoço?
— Esparguete com as melhores carnes, regadas com cerveja gela-
da e muito gindungo.
— Então onde estão os convidados?
— A chegar, meu capitão, e cheios de fome, tal como nós.
— Muito bem, vamos para a mesa e esperamos sentados, tenho
coisas urgentes a tratar no comando da companhia.
De repente as sirenes da marinha deram o alerta da chegada do
Labaredas e seus homens. Os “fuzas”, desta vez sem lama, chegaram
ruidosamente, fizeram continência ao capitão, que mal lhes corres-
pondeu, sentaram-se à mesa e o almoço começou a ser servido com
as pilhérias do costume.
— Camaradas, este almoço é a nossa recepção aos artilheiros
presentes, os homens do obus 14, que vai manter o IN longe destas
paragens.
— Hurra, aos homens do obus, e boa sorte para o destacamento
do alferes Viegas, que acabou por nascer de novo, graças à bala que
entrou e saiu. Palavras do Labaredas, que segurava uma cerveja na
mão e mantinha um sorriso provocatório e delirante.

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João Viegas

— Camaradas, estamos aqui para comer, venha de lá esse almoço,


bem picante e inspirador para as lutas que se aproximam.
Chegaram as terrinas fumegantes com esparguete feito à moda
da tropa, direi mesmo um pouco ajavardado, com os gindungos bem
à vista e os bocados de carne saborosa. O ataque à comida começou
pelo próprio capitão que se serviu, provou e aprovou.
— Está muito bom. Ó alferes, um dia destes venho cá buscar-lhe
os cozinheiros.
— Meu capitão, o segredo está no tempero e o responsável é o
furriel Trindade que ensinou os cozinheiros a temperar tudo à riba-
tejana.
Risada geral e durante uns segundos não se ouviu o barulho de
uma mosca, todos a comerem com apetite devorador o belo manjar.
Passada quase uma hora de almoço, o capitão comunicou solene-
mente que, em breve, o general Spínola viria visitar as tropas no ter-
reno e que estivesse tudo a brilhar para a ocasião. Depois da notícia,
o capitão seguiu para o comando e deixou-nos a acamaradar com
uns whiskys pelo meio, o que descontraiu.
— Se o nosso general vem por aí, é porque vai haver merda. Te-
mos que estar atentos a qualquer notícia que nos chegue, sobre ac-
ções especiais. Ele só se desloca para dar início a grandes operacões.
A propósito, Viegas, sabes fazer ski aquático?
— Labaredas, só se for sentado.
— E por que não? Sentas-te na prancha do duche, enquanto o
barco te puxa. Os outros dois barcos seguem junto às margens en-
quanto os homens atiram granadas ofensivas para afastar os croco-
dilos, e vão pescando uns belos peixinhos para porem nas arcas.
— Labaredas, proposta aceite, amanhã começa o ski, em seguran-
ça. Camaradas, amanhã às sete da manhã saímos para o rio. Quero
tudo pronto.
Depois do almoço, o pessoal dispersou para efectuar as mais di-
versas tarefas. O unimog carregou mais meia dúzia de bidons vazios

88
Os Soldados Perdidos

para colocar no espaldão do obus 14, que depois seriam cheios de


terra. Era a secção de artilharia que tratava disso, como lhe compe-
tia. Todos os outros homens limpavam armas e queimavam as fezes
das latrinas. Todo um destacamento de trinta homens a preparar-se
para a guerra. E para a visita do grande general Spínola. Despedi-me
do Labaredas e seus dez “fuzas”, já em cima das pranchas de ferro
que protegiam da lama cinzenta.
— Já sabes, Viegas, utiliza a prancha do banho para fazeres sky,
pões os três barcos na água, um no meio, o teu, os outros dois juntos
a cada margem, atentos à mata e aos crocodilos. Não estejas mais
de uma hora dentro de água, é perigoso, o IN anda nesta zona, e se
repetires muitas vezes, vais levar com uma emboscada.
— OK, Labaredas, tiveste uma bela ideia, vamos ver qual a reac-
ção do capitão. Se ele proibir, vou só à pesca.
— Um abraço, camarada, boa sorte e siga a marinha, dizia-me ele,
enquanto ligava a sinistra sirene de guerra que o IN bem conhecia.
Os dez “fuzas” arrancaram nos zebros a alta velocidade, pareciam
motoqueiros nas águas cinzentas do rio Cumbijã.
Neste resto de dia, mandei formar junto à bandeira para mais um
discurso às tropas:
— Camaradas, hoje foi um dia bom, não houve ataques, come-
mos e bebemos bem, a guerra foi adiada por algumas horas, mas
não esqueçam que o IN nos quer daqui para fora, coisa que não vai
acontecer tão cedo. Quero agradecer a todos a vossa coragem e o
apoio que têm dado. Boa sorte, camaradas, ao trabalho.
Passei pela tabanca para falar com o caçador, perguntei-lhe se ti-
nha munições para a sua velha mauser, ao que ele respondeu:
— “alfero bom, ter manga di balas e quer saber se eles virem aí?
Hoje, cá tem pirigo, canhão grande, ronco dimais. Amanhã podi ser,
hoji não”, terminou com aquele sorriso enigmático que dizia quase
tudo.
Com o cair da noite mandei ligar os holofotes para a zona da

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João Viegas

mata, zona leste, entrada obrigatória para os ataques malditos. Se o


IN aparecesse seria bombardeado com os dois canhões sem recuo,
106, que o comando me entregara para substituição do malogrado
canhão que havia ficado desfeito com a respectiva guarnição. Para
além disso, o obus 14 só aguardava o momento para entrar em cena
com as suas munições gigantescas. Só rezava a todos os santinhos
para que os sacanas nunca acertassem dentro do espaldão do obus,
pura e simplesmente desapareceria metade do destacamento e, ha-
veria mortos por todo o lado.
Noite tranquila, no dia seguinte começámos os preparativos para
a operação sky aquático. Todo o destacamento a assistir na mar-
gem, os barcos na água, com motores ligados, dois seguiram para as
margens, os crocodilos pequenos, os alfaiates, a entrarem na água,
mandei lançar umas granadas ofensivas para os afastar, instalei-me,
sentado, na prancha do banho, ligada ao barco por duas fortes cor-
das, dei ordem de partida, falhanço total, mergulhei nas águas cin-
zentas, não se via nada, lá me apanharam, rapidamente, antes que
um daqueles sinistros bichos me abocanhasse. O sky aquático aca-
bou tão depressa como começou, os soldados batiam palmas, enfim
uma fantochada que só não acabou mal, graças à minha estrelinha
da sorte.
— Camaradas, acabou-se a experiência, nós não somos fuzilei-
ros, ninguém volta a fazer isto.
A pescaria começou com umas granadas ofensivas, o peixe a vir à
tona e a ser apanhado pelos homens. Durante uma hora houve pesca
livre.
— Camaradas, desta vez vamos distribuir algum peixe pela po-
pulação da tabanca. O nosso peixe segue para as arcas congeladoras,
hoje levamos peixe para o comando, encham os baldes até à borda.
E o calor, já implacável, forçou-nos a voltar à base rapidamente.
Os barcos ficaram na margem, bem presos a estacas potentes. Mais
de dez baldes foram carregados para o unimog e, começámos a dis-

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Os Soldados Perdidos

tribuição pela tabanca com dois baldes, ao que o chefe cumprimen-


tou enquanto ia dizendo “alfero manga di bom”.
Fiquei no destacamento com três baldes e fui avisando o cozi-
nheiro:
— Hoje há caldeirada à ribatejana, com muito picante, almoço às
doze horas, sem falta. Os restantes cinco baldes foram levados para
o comando da companhia.
A vida corria serena, a experiência do sky aquático definitiva-
mente esquecida, os homens contentes com a ocupação do tempo, o
Trindade a obrigá-los a limpar as armas e a fazer corridas à volta do
acampamento, tudo preparado para futuros ataques.
A minha perna já não doía, a bebida balanta fazia milagres, jun-
tamente com uns whiskys e uns comprimidos.
Sentia-me quase feliz naquele “buraco” na selva, onde tudo seria
mais simples se não houvesse guerra, a paisagem africana deslum-
brava-me, completamente. Que país bonito e gente boa, podia ser
um paraíso se fosse tratado com amor e respeito. Pela minha parte,
tudo fazia para não me embrenhar demasiado na guerra, para além
da defesa dos ataques do IN. Era a terra deles, queriam a indepen-
dência, era compreensível, os portugueses tinham feito o mesmo em
relação aos espanhóis que devastaram o nosso país durante sessenta
duros anos, o pior viria depois, com a agenda política do partido
financiado por impérios implacáveis, ditos de esquerda. O povo,
como sempre, pagaria o preço final, sempre o povo a pagar o preço
mais caro, em nome de causas, por vezes, duvidosas. Questões po-
líticas que seriam resolvidas. A seu tempo, o povo gemeria com as
grandiosas vitórias do PAIGC, cheio de gente séria, misturada com
os corruptos do costume a afiarem os dentes para o tão esperado
banquete final. Se estivesse vivo, cá estaria para assistir ao desfile
dos vencedores, os partidários do partido único e, ao cortejo dum
povo livre dos colonizadores, mas sob a canga duma ideologia. Ao
fim e ao cabo, como ideologias tão díspares se parecem na realidade.

91
João Viegas

Nunca é o povo quem mais ordena. Ditaduras e democracias com


destinos entrelaçados.
Às doze horas, em ponto, tocou a sineta e o almoço tão desejado.
Caldeirada à ribatejana foi servida aos trinta homens que já espera-
vam à mesa. Quando cheguei com o Trindade, todos se levantaram
e o furriel mandou as sentinelas para os postos, afinal não estávamos
de férias e o IN rondava.
Ainda não tinha começado a almoçar, recebi um recado do capi-
tão para me apresentar no comando às 14horas para reunião urgen-
te. “Ó diabo, vinha lá merda”.
— Camaradas, vamos a almoçar, com calma, o capitão deve ter
novidades más, como é hábito, espero bem que não se lembre de nos
mandar para mais uma emboscada da treta. Comam bem e, deixem
o resto por minha conta.
E o almoço lá prosseguia com uma certa alegria, da parte da rapa-
ziada, eu não estava nada contente, pressagiava notícias más.
— Em menos de uma hora o almoço estava no papo, todos tí-
nhamos comido com mais ou menos apetite. Às 13h30 segui para
o comando no unimog, com uma secção de escolta. Dirigi-me logo
ao posto de comando, onde encontrei o capitão bem-disposto e com
um sorriso sacana.
— Alferes Viegas, prepare os seus homens para uma emboscada
na picada a Leste, temos que apanhar prisioneiros para saber onde
é a base do IN.
— Meu capitão, só um pelotão é pouco, o IN anda com bi-grupos
de duzentos homens, vai caçar-nos.
— Não discuta as ordens, vêm do comando-chefe, saída às 19h00
e, regresso às 05h00 de amanhã.
— Quando cheguei ao destacamento, reuni os soldados debaixo
da bandeira.
— Camaradas, hoje vamos dormir na mata, emboscaremos o IN
para caçar prisioneiros. Saída às 19h00, regresso às 05h00. Levem

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Os Soldados Perdidos

os ponchos, pois pode chover. O jantar será às17h00, sem copos,


deixem os cigarros aqui, não quero ser caçado por causa do tabaco.
Sigo na frente da coluna, o furriel Trindade comanda no caso de eu
cair, segue a meio da coluna com as armas pesadas, quero a bazuca
com seis granadas, o morteiro 60 com dez granadas, ninguém faz
barulho, não quero ouvir nem uma mosca, quanto mais uns traques
de algum engraçadinho, quem se atrever, vai a pica-minas. Escuso
de vos dizer como é perigosa a missão.
Os homens ficaram preocupados e, com razão, não eram capazes
de perceber a razão desta operação. Já bastavam os ataques do IN,
quanto mais ir à procura de merda no seu território. Andavam todos
muito nervosos, geralmente estas operações traziam graves proble-
mas, mortos e feridos e, um pelotão em zona IN era uma porcaria.
Pelas 17h00 decorreu o jantar, esparguete com bocados de carne,
sem bebidas alcoólicas, sem alegria, todo o pessoal taciturno e triste.
— Alferes, se o IN estiver à nossa espera vai ser uma merda, dizia
o Fonseca.
— Calma camaradas, ninguém nos espera e nós vamos de pan-
tufas, não haverá o mínimo barulho. Tiros, só se for necessário e,
depois aceleramos o nosso regresso, baixas não estão previstas, só
vamos caçar um prisioneiro vivo. Boa sorte a todos e preparem-se
para a partida às 19h00. Dois cantis de água por homem, e uma ra-
ção de combate.
Até às 19h00 andavam todos tristes, como se previssem uma tra-
gédia.
À hora marcada, o pelotão iniciou a operação por um trilho
que conduzia à zona marcada para a emboscada. O picador seguia
à frente com o ferro longo a picar o chão, não fosse haver minas
anti-pessoal no caminho. Ninguém fazia barulho, os homens des-
locavam-se como fantasmas, as G3 em posição de fogo, os espíritos
alertas, atentos a qualquer ruído, caminhámos durante uma longa
hora até ao local previsto para a emboscada. Ocupámos posições

93
João Viegas

atrás duns baga-bagas, enormes formigueiros consistentes como ci-


mento, todos de barriga no chão, quem quiser mijar, mija nas calças,
tivessem-se preparado antes.
As horas passavam devagar, demasiado devagar, os homens esta-
vam perto uns dos outros, ao alcance do braço, dessa forma o raio de
acção da emboscada não era tão grande, mas mais seguro, ninguém
seria apanhado à mão.
De repente o Coimbra, atirador da MG 42, deu-me um toque no
braço para olhar os três guerrilheiros que avançavam, descontrai-
damente, por um trilho paralelo, de AK 47 a tiracolo, enquanto fa-
lavam e gesticulavam. Entraram na zona de morte da emboscada e,
dei ordem para abrir fogo, sem os matar. O Coimbra deu uma rajada
curta e, os homens caíram gemendo. Aproximei-me com cuidado,
dois estavam mortos. O guerrilheiro vivo, com ferimentos nas per-
nas, olhou-me surpreso e sorriu como se me conhecesse há muito
tempo. O enfermeiro tratou-lhe das feridas, o homem podia andar,
dei ordem de retirada com o prisioneiro amarrado, de mãos atrás
das costas. Marcha acelerada, tinha pressa de chegar e sair da zona
já alertada pelo tiroteio.
Passada uma hora chegámos ao destacamento. O pessoal estava
cansado e eufórico, pois tínhamos um prisioneiro. O pelotão substi-
tuto regressou à base do comando, e o pessoal, esgotado, foi deitar-
-se, não sem antes revistarem o prisioneiro, que estava amarrado a
uma barra de ferro, numa tenda esvaziada para o efeito.
— Ninguém trata mal o preso de guerra, amanhã, pode acontecer
o mesmo connosco e, não quero retaliações.
Com o cansaço que trazia, adormeci rapidamente, só acordando
às cinco da manhã com um problema para resolver: o que fazer com
o preso de guerra? Decidi falar com o capitão que me daria instru-
ções nesse sentido, segui de unimog para o comando onde o capitão
já me esperava com ar de preocupado.
— Então alferes, o prisioneiro está bem guardado?

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Os Soldados Perdidos

— Claro, meu capitão, o homem está numa tenda, com guarda à


vista.
— Alferes, dentro de dois dias a PIDE vem cá buscá-lo, para o
interrogatório. Quero o homem bem guardado.
— Esteja descansado, meu capitão.
Bati a pala, e fui-me embora para o destacamento o mais depressa
possível. Entregar um preso à PIDE, nunca. Fui falar com o Trinda-
de.
— Trindade, eles querem entregar o preso à PIDE e, eu não o vou
fazer. Ajuda-me a preparar um esquema para lhe dar a fuga.
— Viegas, arriscas-te a ser preso e eu também. Estou de acordo,
a PIDE-DGS se quer prisioneiros para torturar, que venha combater
para o mato. Primeiro que tudo, vamos prendê-lo a uma árvore, com
cordas. É tudo mais fácil, a partir daí.
— OK, trata de tudo para lhe dar a fuga durante esta noite.
Voltámos à rotina normal do destacamento, só que desta vez com
o prisioneiro atado a uma árvore, pelo tronco, perto da tabanca, com
um soldado na zona.
Falei com o prisioneiro, na presença do furriel.
— Não sei se compreendes: tenho ordens para te entregar à PIDE
mas não o vou fazer. Hoje à noite vais embora, após umas explosões
de granadas ofensivas. Diz à tua gente para não atacar mais o pes-
soal.
— Alfero manga di bom comandante.
Não houve mais palavras, fui-me embora para falar com o furriel
Trindade, que encontrei no bar, a beber umas fresquinhas, em fim
de tarde atribulada.
— Trindade, o homem está à espera.
— Alferes, às 24h00 vai haver festa.
Aproveitei para beber uma cerveja, enquanto os homens iam che-
gando em grupos de amigos para comemorarem o facto de estarem
vivos. Numa guerra, era preciso perceber que o facto de se estar vivo

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João Viegas

era uma questão de sorte. A morte corria a mata à procura dos aza-
rados e levava-os, como quem não quer a coisa, suave e traiçoeira-
mente, enquanto os homens soltavam os últimos suspiros.
A noite corria tranquila, por vezes íamos ver o prisioneiro atado
à árvore, com a sentinela na zona, tudo calmo, o homem dormitava,
possivelmente nervoso com o futuro próximo.
Às 24h00, ouviram-se vários rebentamentos na zona do prisio-
neiro, a sentinela chega muito nervoso.
— Alferes, o IN entrou para libertar o prisioneiro, atiraram gra-
nadas, não tive hipóteses.
— Calma, Manuel, onde é que estavas?
— Estava a dez metros, sempre de G3 na mão, não tive possibili-
dade de enfrentar o IN.
— Tem calma, Manuel, és um bom soldado, fizeste o que podias,
sou tua testemunha, nada te vai acontecer.
— Tive medo que pensassem que eu estava a dormir.
— Ninguém pensa isso, fica em paz e vai descansar. De caminho
chama o furriel Trindade.
— OK, meu alferes.
O Trindade chegou rapidamente, com aquele sorriso cúmplice.
— Então, meu amigo, isso é que foi uma festa.
— Tudo conforme, alferes, o homem já está com os seus, pode ser
que não nos ataquem mais.
— Era bom demais para ser verdade, mas é possível.
— Amanhã chega a PIDE-DGS, vai ser bonito de ver.
— Trindade, não te preocupes, quero ver as caras desses canalhas.
— Viegas, tu é que sabes, mas prepara-te para a merda.
— Estou preparado há muito tempo, não vamos falar mais sobre
este assunto.
Sabíamos que a PIDE-DGS chegaria de helicóptero, algum chefe
de brigada mal-encarado mais uns gorilas, mas estava no mato com

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Os Soldados Perdidos

os meus soldados, portanto nada iria acontecer. Mais tarde, seria


apanhado pela secreta, e, depois se veria.
E o dia seguinte estava radioso, os soldados felizes, dentro do
possível, às 10h00 chegou o helicóptero com os “pides”, um chefe de
brigada mal-educado, a tratar os soldados por tu, a tal brutalidade
dos serviços secretos.
— Quero falar com o alferes Viegas; é urgente.
— Senhor “pide”, diga ao que vem, nós por aqui temos códigos de
tratamento. O senhor aqui não manda nada, se vier para a frente de
combate aí sim, até lá, peço-lhe contenção.
— Vimos buscar o prisioneiro.
— O prisioneiro fugiu durante um golpe de mão.
— Senhor alferes, nós conhecemo-lo muito bem, isto não vai fi-
car assim.
— Senhor inspector da PIDE — cujo nome desconhecia — isto
é um acampamento militar, a PIDE aqui não manda nada. Fugiu,
acabou.
— Vou-me queixar pessoalmente!
— Faça o favor e, pode ir andando, passe bem.
— O senhor alferes Viegas não se vai safar desta.
— Senhor inspector da PIDE, estou em combate, faça o favor de
actuar, os meus soldados gostam muito de “pides”.
— Camaradas, este senhor da PIDE está-me a ameaçar, culatra
atrás e preparem-se.
O barulho das culatras armadas veio acalmar a besta do “pide”.
— Senhor alferes, havemos de falar mais tarde…
— Passe bem, senhor inspector da PIDE, a conversa só fica adia-
da.
O “pide” foi-se embora, a bufar, o capitão veio falar comigo.
— Viegas o que é que disse ao homem?
— Que não gosto de “pides” e, que não tenho medo dele.
— Viegas, vai ter problemas graves.

97
João Viegas

— Meu capitão, mais graves do que estes, é impossível.


Depois deste período de tensão, os “pides” lá partiram tão rápido,
quanto tinham chegado. Respirava-se melhor na mata, os assassinos
tinham partido. De momento, estava o incidente sanado, haveria
consequências, bem sabia, mas, até lá, a guerra continuava na sua
dimensão própria, sem torturas e assassinatos.
Soube mais tarde que a PIDE se tinha queixado ao nosso general
Spínola mas, até ver não houve consequências de maior. O capitão
andava assustado, mas sentia-me tranquilo no meio dos meus solda-
dos. Os “pides” tinham medo da guerra, já se sabia. Mais tarde iriam
dar-me caça, mas enquanto aqui andasse não me podiam matar.
No final da manhã apareceu o Labaredas com os seus “fuzas”, de
charuto no canto da boca e com a sua risada alarve:
— Viegas, já sei que puseste o “pide” a milhas, devias ter morto
o animal.
— Infelizmente não o pude fazer, estaria lixado.
— Dá cá um abraço, os gajos vão-te limpar o sebo.
— Talvez sim, talvez não, vamos ver.
— Já eras famoso por seres doido, agora és o nosso herói.
— Obrigado Labaredas, temos que os matar, mais tarde ou mais
cedo, quanto mais cedo melhor.
— Conta comigo e com a malta para lhes limpar o sebo.
— Sim, Labaredas, a revolução tarda mas, já tenho umas dúzias
de gajos para liquidar.
— Viegas, tens que ter cuidado, os gajos têm gente em toda a
parte.
— Eu sei, meu amigo, enquanto estiver na guerra não consegui-
rão fazer nada, depois se verá.
A conversa entrou nas trivialidades do costume, as mil e uma for-
mas de matar “pides” e quejandos, mais uns copos à mistura e a re-
volução saía vencedora. Infelizmente, estávamos longe da realidade,

98
Os Soldados Perdidos

ainda tínhamos que nos safar desta guerra maldita, faltavam mais
uns mortos e muitos feridos para chegarmos a qualquer parte.
Baixámos à terra, deixámos de sonhar, só queríamos o tempo a
passar e o anúncio do dia da partida. A mim, faltava-me um ano e,
um ano de guerra é uma eternidade.
— Trindade, a partir de agora vamos aguardar a reacção do IN
quanto à fuga do guerrilheiro. Temos que estar unidos e calados.
E os dias foram passando numa aparente paz total, nem éramos
atacados pelo IN, nem atacávamos ninguém. Claro que estas infor-
mações chegaram ao conhecimento do nosso general Spínola que,
passada uma semana decidiu ir visitar Cobumba, o grande mistério
na frente de combate. Como era seu apanágio, numa segunda-feira
pelas 8h00 ouviram-se os helicópteros da escolta para-quedista a fa-
zerem um barulho de guerra inusitado.
— O general está a chegar, preparem-se para a merda que aí vem.
Todos me olhavam com ar de pena: “o alferes está lixado, isto é
por causa da PIDE-DGS”.
O “heli” do general pousou no comando da companhia, só me
deu tempo de formar o destacamento junto à bandeira, fardado com
o camuflado dos “páras” franceses, com remendos na perna esquer-
da, cheio de almofadados, nos joelhos e cotovelos, óculos rayban
verdes, com os quais não via quase nada, mas impressionaria até um
general. Preparei-me para o que lá viesse e, eis que chega um capitão
comando, adjunto do general que se dirigiu a mim e disse com voz
seca:
— Alferes Viegas, arrume as suas coisas porque vai seguir para
Bissau, já a seguir.
Entretanto, chegou um jipe com o general e seu estado-maior, o
capitão vinha num unimog, com ar assustado. Formei o destacamen-
to, prestei as honras militares, dirigiu-se a mim o major Monge, do
estado-maior, que me foi dizendo:

99
João Viegas

— Alferes Viegas, o herói de Cobumba, o homem que se recu-


sou a ser evacuado para Bissau, não obstante o ferimento na perna
esquerda. Espero que o nosso general goste de si. Estilo você tem,
escusava de marrar com os “pides”, grande cagada.
— Meu coronel, era só para lhe dizer que fiz o que tinha que ser
feito.
— A ver vamos, se o nosso general não gostar do seu estilo, vai ser
o seu fim como oficial. Boa sorte.
Quando o general se aproximava, dei as vozes de comando para
apresentar armas. A um tempo, o meu destacamento parecia um
grupo de prussianos guerrilheiros, armas a brilhar, rostos impantes
de jovens soldados orgulhosos. O general passou revista às tropas,
sempre no seu passo acelerado, olhou-me com o seu monóculo si-
nistro, parou um segundo, disse qualquer coisa ao adjunto, sorriu
subtilmente e, retirou-se para o seu estado-maior, que aguardava a
uns metros de distância. O capitão Ramos aproximou-se e só me
disse:
— Alferes Viegas, vamos embora para Bissau, você segue no
quarto helicóptero. Despeça-se dos seus homens. Fiz um discurso
curto e comovido:
— Camaradas, a Pátria é a bandeira, lutem por ela, sigo o meu
destino, até breve. De repente ouviu-se um “hurra” gritado por todos
os homens, o capitão suava, o general olhava-me atentamente, o co-
ronel dizia-me “os homens respeitam-no”, e eu lá segui com a morte
no peito, uma enorme vontade de chorar e de os abraçar a todos,
“Guiné, meu amor...”.
Nesse preciso momento, ouviram-se as sirenes dos “fuzas” que
se vinham despedir. “Siga a marinha” — era o seu grito de guerra
—, deixou todos em suspenso. O general, do alto do seu monóculo,
esboçou um sorriso. Eu só pensava: “estou fodido”. Embarquei no
helicóptero e um tenente pára-quedista disse: “estes homens gostam

100
Os Soldados Perdidos

de ti”. Pelo canto do olho ainda pude ver todos os meus soldados a
fazer continência e o furriel Trindade com a farda de ranger a dar
ordens de comando: “Hurra, hurra, hurra, pelo nosso alferes”! Der-
ramei duas ou três lágrimas. O tenente “pára” olha-me de soslaio:
“calma, camarada, o general gosta de bravos e, tu és um deles, vais
ser promovido”.
Com o helicóptero no ar, despedi-me mentalmente dos meus ir-
mãos de guerra, e lá fui rumo a Bissau, uma viagem para o desco-
nhecido. Em menos de uma hora estávamos em Bissau, no aeropor-
to de Bissalanca. Após “um rádio” recebido pelos pára-quedistas, o
tenente informou-me que seguiria num jeep para o QG, com ordem
de me apresentar a um coronel dos recursos humanos.
Quando cheguei, o coronel já me esperava, com um sorriso ras-
gado:
— Alferes Viegas, acabou a mata para si, está colocado no coman-
do-chefe, junto do nosso general Spínola, mais propriamente na 2ª
Repartição (2.ª Rep), ou seja, nos serviços secretos. Parabéns e, pode
ir apresentar-se ao chefe da Repartição.
Fiquei atordoado com a notícia, ia trabalhar com a elite do co-
mando-chefe, devo estar doido. O general não me tinha castigado
por causa dos “pides”.
Segui para o forte da Amura, sede do comando-chefe, e apresen-
tei-me ao tenente-coronel Beirão, um oficial simpático que me cum-
primentou cordialmente:
— Finalmente chegou o famoso alferes Viegas. Não sei o que o
nosso general vê em si, mas tem que ser coisa excepcional, senão não
o punha a substituir o major Santa Clara.
— Meu tenente-coronel, não faço a mínima ideia, sou só um alfe-
res do mato e, não fiz nada de especial para ser colocado aqui.
— Foi ferido em combate e ficou no posto de comando, é o su-
ficiente para o nosso general o considerar. Quanto ao resto, a sua

101
João Viegas

ficha militar é suspeita, nada de errado para além das informações


da DGS. Você é um ex-estudante de Coimbra, com ficha negra. O
resto hei-de explicar-lhe um dia.
— Certamente, meu tenente-coronel.
— Pode ir para a sua secção e apresentar-se ao comandante Ne-
mésio, depois, vai apresentar-se ao major Casanova Ferreira, chefe
da contra-informação. Após as apresentações começa a trabalhar a
sério. Boa sorte, alferes Viegas.
Estava noutra realidade, como estariam os meus soldados em
Cobumba? E a guerra estaria mais calma, ou haveria sempre a mes-
ma merda no terreno?
Nem tive tempo para pensar muito, entrei na minha secção, o
comandante Nemésio sentado à secretária, a fumar umas cachim-
badas, um sorriso simpático, mapas enormes ao longo do gabinete,
atrás da minha mesa estava o da Guiné-Conakri, à minha frente, o
do Senegal. Os outros ocupantes da secção eram o alferes Branco,
especialista no Senegal, e o furriel Francisco, que nos ajudava na dis-
tribuição de mensagens secretas. Fui recebido com simpatia, todos
me cumprimentaram cordialmente. O comandante Nemésio teve
uma breve conversa em que me explicou o que tinha a fazer, ou seja,
localizar postos na Guiné-Conakri, onde o IN tinha bases de apoio,
para depois preparar operações militares de contra-insurgência, a
fim de eliminar a actividade IN na zona.
A responsabilidade era enorme, à mínima falha de informações,
soldados portugueses morreriam em território estrangeiro, o que
provocaria conflitos diplomáticos e outras nefastas consequências.
Confesso que fiquei tão preocupado que me informei junto do al-
feres Branco e do furriel Francisco de todos os problemas que já
tivessem ocorrido. Até ao momento não havia baixas, as operações
eram levadas a cabo por comandos africanos, altamente preparados
e eficientes. Tudo dependia da fonte das informações e respectiva
confirmação da sua autenticidade.

102
Os Soldados Perdidos

Situação estranha, passei a ser um agente secreto do Exército, a


PIDE-DGS não me podia tocar. O cartão da 2ª Rep era uma arma
que eu iria utilizar, ajudando os velhos amigos de Coimbra espalha-
dos pela tropa, na Guiné.
Fui cumprimentar o major Casanova Ferreira, homem cordial
que só me fez um comentário:
— Alferes Viegas, tenho a sua ficha na contra-informação e, ain-
da estou para saber porque razão o nosso general o colocou na 2ª
Rep. Desejo-lhe muita sorte.
Feitas as apresentações voltei ao trabalho, e, em cima da secretá-
ria já tinha uma dúzia de livros do Sekou Touré para ler. Nunca pen-
sei que um ditador escrevesse tantos livros, possivelmente mandou
fuzilar o verdadeiro autor.
Nem recordo o título do livro, era uma bosta de leitura, dita pa-
triótica. Depois dessa primeira leitura, decidi não perder mais tempo
com os escritos do homem, um sanguinário ditador, que mantinha
o povo sob um controlo total. O habitual, fuzilamentos e misterio-
sos desaparecimentos. Oposição, não havia. Pudera, estavam todos
mortos. O país era rico em bauxite que ele ia vendendo aos russos,
mediante entrega de armas e conselheiros militares. O PAIGC tinha
bases de apoio na Guiné-Conakri, espalhadas ao longo da fronteira
leste. O meu trabalho era identificá-las e depois enviar as coorde-
nadas às tropas especiais que, em grupos pequenos, atacavam efi-
cazmente. Não podia haver erros, à mínima falha as nossas tropas
seriam eliminadas. Quando se aproximava da hora do almoço, o co-
mandante Nemésio virou-se para mim e lá foi dizendo:
— Alferes Viegas, está a gostar da leitura?
— Senhor comandante, isto é do pior que já li.
— Alferes, deixe estar, não leia mais nada, você já sabe o que tem
a fazer. Coordenadas certas é o mais importante. Traduza do francês
as mensagens que vamos recebendo e destaque as posições certas.
Não pode haver o mínimo erro.

103
João Viegas

— Certamente, senhor comandante, não vou falhar.


Cerca do meio dia entrou na repartição o meu velho amigo de
Coimbra, Barros Moura, um amigo ímpar, nessa altura colocado no
QG. Veio direito à minha secretária, demos um abraço e convidou-
-me para almoçar perto do comando-chefe.
— Viegas, temos muito que falar, vamos almoçar à Casa da Beira,
um restaurante perto desta zona, e pomos a conversa em dia.
— Barros Moura, vamos lá. Eu peço ao comandante Nemésio e
ele deixa-me sair já.
Na rua, matávamos saudades da crise de 69, falávamos de tudo,
menos da guerra, era bom percorrer as ruas de Bissau, sempre movi-
mentadas por pessoas alegres e coloridas, parecia que a guerra esta-
va suspensa no tempo. Enquanto conversávamos, chegámos à Casa
da Beira, um restaurante espaçoso, com mais de cinquenta mesas,
um cardápio completo e lá escolhemos um belo cozido à portugue-
sa, tinha saudades de comida caseira e bem cheirosa. Enquanto nos
sentávamos, chegou o dono do restaurante, um ex-comando na Gui-
né que veio cumprimentar o seu cliente diário.
— Senhor alferes, prazer em vê-lo e ao seu novo camarada.
— Senhor Carlos Correia, este é o alferes Viegas que trabalha no
comando-chefe e, foi meu colega em Coimbra.
— Ó Ermelinda, vem aqui conhecer mais um alferes de Coimbra.
Uma senhora espigada e sorridente, chegou quase correndo,
cumprimentou-nos e, voltou para o seu posto, na caixa registadora.
— Senhores alferes, recomendo o cozido à portuguesa, que está
pronto a ser servido.
— Venha de lá esse cozido, regado com um bom vinho alenteja-
no, disse o Barros Moura.
Chegou uma travessa fumegante, com um cozido muito bem
servido. O vinho da Vidigueira compôs a mesa. Comemos com um
apetite devorador, eu em particular, já não via cozido há um ano.

104
Os Soldados Perdidos

— Camarada, o meu trabalho é lixado, operações na Guiné-Co-


nakri, limpar as bases do PAIGC.
— Viegas, não podes falhar, depois da cena com a PIDE, estás de-
baixo de olho. Porem-te na 2ª Rep, ou seja, Serviços Secretos Milita-
res, só pode ser para a medalha ou para te levarem a tribunal militar,
tem cuidado! Grande cunha, deves ter.
— Não conheço ninguém do regime, o meu avô é só nazi, mas
não conhece ninguém, é estranho. Todos me dizem a mesma coisa.
— Cuidado, Viegas, o general é uma águia...
— Estou a fazer tudo pelas regras.
— Olha quem está sentado junto à porta da rua, o inspector da
PIDE, Palma, um assassino cruel, olha agora.
Qual não é o meu espanto quando vejo o PIDE que foi ao meu
quartel buscar o famoso prisioneiro.
— Barros Moura, é o filho da puta do PIDE que foi ao meu des-
tacamento.
— Tem cuidado com este animal, afasta-te dele o mais possível.
Comemos e bebemos como se fosse a última refeição. Terminá-
mos o almoço com uma aguardente velha, estávamos prontos para
o trabalho.
Quando já vínhamos a sair, parei para cumprimentar o PIDE Pal-
ma, ele aproveitou e foi dizendo:
— Senhor alferes Viegas, apareça lá na delegação, temos uma
conversa suspensa.
— Senhor inspector da PIDE, vá ao comando-chefe, à 2ª Rep,
onde podemos conversar em paz.
— Já me esquecia que o senhor alferes, agora, é um homem do
general.
— E tenho na minha repartição, umas histórias peludas sobre a
tortura de prisioneiros.
— Quer um conselho, alferes, nunca se meta comigo.

105
João Viegas

— Havemos de nos ver por aí, passe bem snr. Inspector da PIDE.
Já na rua, o Barros Moura chamou-me a atenção para não me
meter com os “pides”, pois eles são perigosos e vingativos.
— Tens razão, meu amigo, a partir de hoje vou andar sempre de
pistola à cintura, com a arma que me foi distribuída, uma luger.
— Não te esqueças, se fores ao Pilão leva sempre uma escolta de
amigos.
— OK, Barros Moura, eles não me vão apanhar desprevenido.
— Viegas, no comando-chefe tenta obter informações da colónia
penal do ilhéu das Galinhas, uma prisão da PIDE de onde não há
quaisquer notícias.
— Está descansado, dentro de dias já saberei tudo sobre essa pri-
são.
Despedimo-nos com um forte abraço, combinando a próxima
reunião, para quando eu tivesse dados, sobre essa famigerada prisão
da PIDE.
Quando cheguei à minha repartição, dirigi-me à contra-informa-
ção para falar com o alferes Barroso.
— Barroso, vê se encontras alguma coisa sobre a colónia penal do
ilhéu das Galinhas, nos Bijagós. É uma prisão da PIDE.
— Ok, Viegas, cuidado com o inimigo interno.
— Isto é coisa muito séria, não brinques e procura qualquer do-
cumento. Depois avisa.
Entrei na minha secção e dirigi-me ao comandante Nemésio:
— Senhor comandante, temos aí alguma informação sobre a co-
lónia penal do ilhéu das Galinhas, nos Bijagós?
— Alferes Viegas, anda a investigar prisões da PIDE? Tenha cui-
dado, nós não sabemos nada sobre isso e, é preciso ter muita cautela
com essas investigações.
— Senhor comandante, é só por pura curiosidade e conhecimen-
to pessoal.
— Alferes, não pense que me engana, isso é só mais um dos seus

106
Os Soldados Perdidos

truques para fins que nem quero saber. Cuidado, o mato está muito
perto e você está sempre sob observação.
— Mensagem recebida snr. comandante.
— Prepare a operação Koundara, ao mínimo pormenor. Não
pode haver baixas. Ponha o relatório em cima da minha secretária.
Passei a tarde a ler relatórios e mensagens, para além de consultar,
em profundidade, o mapa da zona. Sempre me interroguei como
seria possível que um grupo de cinco homens, comandados por um
sargento, fosse capaz de destroçar as bases do IN, em território es-
trangeiro? Mas estes comandos são máquinas de guerra. Até às cinco
horas aprontei a “operação Koundara” e entreguei o relatório ao co-
mandante que foi dizendo:
— Alferes, você é bom nisto, cuidado com a PIDE, não estrague
a carreira militar.
— Snr. Comandante, a minha carreira militar acaba com a guer-
ra, tenho que voltar a Coimbra para acabar o curso e reabrir o meu
grupo de teatro, o CITAC, que foi encerrado pela PIDE em 1971.
— Agora já percebi essa raiva contra os “pides”. Mas, como já lhe
disse, todo o cuidado é pouco, eles estão em todo o lado.
— Menos aqui na Repartição, penso eu.
— Também penso que não mas, tudo é possível. Entretanto, no
outro dia ouvi uma conversa de altas patentes que acham que você
devia ser promovido a tenente. Se fosse a si, aproveitava. Pode che-
gar a coronel, com mais umas comissões.
— Senhor comandante, não tenho perfil para a incompetência
dos burocratas na tropa. Já vi demasiados mortos devido a essa in-
competência.
— Espero que não me inclua nessa lista.
— Claro que não, senhor comandante. Vocês, na marinha, têm
outro estilo, são mais abertos e menos casmurros. Convivi com um
grupo de fuzileiros que morriam a dizer piadas, sem medos nem ca-
ganças, e bebiam whiski no intervalo das batalhas. Com gente desta,

107
João Viegas

nunca perderíamos a guerra. Aliás, tenho o meu irmão, formado na


Escola Naval, que é hoje um comandante fuzileiro.
— Parabéns, alferes, isto já merece um whisky da marinha, ia
dizendo enquanto abria uma gaveta de onde tirou uma garrafa de
whisky de trinta anos e serviu um pequeno copo a todos os presentes
na secção. Bebam isso depressa, para evitar surpresas. Tenho aqui
um presente para si, disse, enquanto me dava um cachimbo e um
maço de tabaco captain black. Irmão de comandante, comandante
é. A propósito, estão convidados para jantar comigo na messe de
oficiais da marinha, todos, sem excepção, o furriel também vai. A
partir das 19h00. Lá vos aguardo.
Nesse preciso instante, entrou um capitão dos comandos que
vinha buscar o relatório da Guiné-Conakri. Olhou fixamente para
mim:
— Alferes Viegas, não se lembra de mim? Fui buscá-lo ao mato,
com o nosso general. Isto é que é subir na carreira militar. Já agora
diga-me uma coisa, o prisioneiro fugiu ou deu-lhe a fuga?
— Com um ataque de morteiros, o homem conseguiu escapar, é
normal.
— Estou esclarecido. A propósito, os seus relatórios estão preci-
sos, têm salvo muitas vidas dos nossos comandos africanos. Conti-
nue assim e, qualquer dia é promovido.
Cumprimentou-me e foi falar com o comandante Nemésio sobre
as operações externas. Quando o capitão comando saiu, no seu pas-
so acelerado, o comandante veio à minha secretária e perguntou-me:
— Que história é essa dum prisioneiro em fuga?
— Senhor comandante, aprendi com os operacionais que não se
entregam prisioneiros à PIDE, para serem esquartejados até à morte.
Como tal, dei-lhe a fuga durante um ataque IN. A partir daí nunca
mais fui atacado.
— Eu faria o mesmo, muito bem. Você tem um ódio especial pela

108
Os Soldados Perdidos

PIDE, há alguma razão mais para além de lhe terem encerrado o


teatro?
— Senhor comandante, em 71, um colega de Faculdade foi de tal
forma torturado que apareceu “suicidado” na cela da António Maria
Cardoso. Tinha só 21 anos e era um estudante brilhante, uma vergo-
nha. Um dos autores foi um tal inspector Palma, o mesmo que foi de
helicóptero buscar o prisioneiro.
— Compreendo-o e respeito-o. A propósito, está na hora do jan-
tar, vamos seguir para a messe da marinha no meu volkswagen.
O comandante levou-nos para a messe da marinha no volkswagen
azul, da marinha, e, chegámos passados uns minutos. Todos ficámos
surpreendidos com o luxo da messe dos oficiais da marinha, com
decoração Nina Ricci, um paraíso em plena guerra. Esta gente tra-
tava-se bem, dava gosto ver tantas fardas brancas, a brilhar, perante
as nossas fardas, verde azeitona, do exército. Realmente, a marinha
era outra guerra.
Parecíamos uns putos no recreio da escola, plenos de tamanha
felicidade, os oficiais a cumprimentar o nosso comandante e a nós
próprios, que éramos tratados amigavelmente.
Veio um arroz de marisco a cheirar a outras vidas, antes da guer-
ra, o vinho era um verde branco de Ponte de Lima, um concerto
maravilhoso, para os nossos paladares embrutecidos, por tanta ja-
vardice comida na tropa.
Um jantar bonito, com gente boa, conversas explosivas, o coman-
dante Nemésio, um homem bom, sem caganças, estava tudo perfei-
to. Nesse preciso momento, ouviu-se uma gargalhada estridente e
ruidosa provinda da porta de entrada. Um fuzileiro de barba ruiva
acabava de entrar em cena, fardado com o camuflado de combate,
acompanhado de outro camarada de armas. Deu uma olhadela pela
sala, viu-me com o seu olhar de águia, avançou na minha direcção
com um sorriso de louco, fez continência ao comandante, deu-me
um abraço, tipo parte costelas, e gritou alegremente:

109
João Viegas

— Senhor comandante, o alferes Viegas foi nomeado fuzileiro


honorário, é mais doido que eu, em combate. E, pior ainda, bebe
mais do que eu.
Nessa altura, o comandante Nemésio mandou sentar os “fuzas”
na nossa mesa, foi só trazer duas cadeiras, os pratos e o restante.
— Senhores subtenentes, juntem-se a nós, pois a conversa está a
interessar-me.
O Labaredas não se calava, a contar as nossas peripécias militares,
perante a admiração do comandante e dos outros camaradas. Era
um desfiar dum imenso rosário, as batalhas loucas, o meu ferimen-
to ligeiro e o que se seguiu, a fuga do prisioneiro, a vinda da PIDE,
que saiu com o rabo entre as pernas, a chegada do general, que me
trouxe para Bissau, enfim, a história resumida dos longos meses em
Cobumba.
— Alferes Viegas, sempre desconfiei que você era um guerreiro
mal-empregado no seu novo serviço. Fico contente por saber que o
temos connosco.
— Senhor comandante, o Labaredas é um exagerado...
— Então agora és agente secreto? Perguntou o Labaredas, com ar
de gozo.
— Não camarada, só tenho um trabalho diferente.
— Desde que os vás matando, não quero saber qual é o trabalho.
Mais duas garrafas aterraram na mesa, o arroz de marisco já tinha
ido, o Labaredas pediu um bife malpassado para compor a fome que
trazia do mato. O outro “fuza”, o Barroso, tinha acabado de chegar ao
matadouro, calado e envergonhado, por estar na mesa dum capitão-
-tenente, pouco falava, olhava para o Labaredas a pedir ajuda.
— Este camarada, dizia o Labaredas, vai comigo para o destaca-
mento, para se fazer um homem, ou morrer, tudo depende da sorte.
Nessa altura o comandante levantou-se e disse:
— Este jantar é por minha conta, bebam o que quiserem mas, não

110
Os Soldados Perdidos

esqueçam que não estão no mato. Vou reunir-me com uns camara-
das do meu tempo.
Todos nos levantámos, em sinal de respeito, e o Labaredas tomou
conta da mesa, mandou vir uma garrafa de Johny Walker, 20 anos,
para matar saudades e eu tive que dizer:
— Esta garrafa pagamos nós.
— Estás doido Viegas, um comandante aqui, só assina um papel,
deixa-o pagar. Então agora és agente secreto?
— Não, limito-me o coordenar operações militares à Guiné-Co-
nakri, para destruir bases do PAIGC.
— Viegas, é verdade que deste a fuga ao prisioneiro?
— Claro, militar com honra, não entrega prisioneiros à PIDE! Sa-
bias que depois da fuga do guerrilheiro nunca mais fomos atacados?
— Boa, nunca fiz prisioneiros, mas agora já sei como agir.
Conversámos sobre a guerra e as nossas loucas aventuras, o fim
da comissão do Labaredas — mais seis meses e era a peluda —, ía
para casa. Eu ainda teria que ficar até junho de 1974. Foi decidido
que iríamos para o Pilão fazer a farra final. Lembrei aos camaradas o
problema do inspector da PIDE, ao que o Labaredas respondeu que
não havia problemas, porque trazia nos bolsos do camuflado duas
granadas ofensivas. Se aparecesse algum desses sacanas saía granada
e pirávamo-nos todos.
— Para além disso, trago sempre uma pistola calibre 22. Viegas,
já sabes, tiro ao alvo e será um lamentável acidente. Um inspector da
PIDE, aos porcos. O resto depois se verá.
— Sendo assim, até era bom que o cabrão aparecesse, resolvíamos
o problema com limpeza.
Ficámos todos alegres e lá seguimos em bando para o famoso
bairro das meninas, em Bissau. Uma vez chegado, o Labaredas de-
cidiu ir visitar a madame Bela, uma cabo-verdiana de olhos verdes
e pele de seda. Melhor recepção era impossível. A jovem cumpri-

111
João Viegas

mentou efusivamente o fuzileiro, depois foi beijando os restantes.


Feitas as apresentações, o Labaredas perguntou-lhe se havia “pides”
na área, ao que ela respondeu que havia dois a percorrer o bairro.
Confidenciou-me que a bela miúda era informadora do PAIGC,
o que era normal nesta guerra de guerrilha, ela tinha que colaborar
com eles, senão rebentavam-lhe com a casa. Se os bandidos da PIDE
soubessem, levavam a miúda para se divertirem e, depois manda-
vam o cadáver ao mar. Combinei com o Labaredas ter uma conversa
com a rapariga, numa sala mais reservada e, assim foi, o meu ami-
go disse-lhe quem eu era, oficial dos serviços secretos militares, que
queria informações sobre o inspector Palma e o ilhéu das Galinhas,
campo de concentração da PIDE, nos Bijagós. Quando soubesse al-
guma coisa, que se dirigisse ao comando-chefe e, pedisse para falar
com o alferes Viegas. Nunca apontar nada em papéis, pois era peri-
goso. Com tudo esclarecido, voltámos à sala, onde já se encontravam
mais mulheres, todas belas. Pagámos umas rodadas a toda a gente,
fez-se um bailarico, com música cabo-verdiana, estavam todos feli-
zes e, começou a ronda dos quartos. Coube-me a Bela, numa hora
em que perdi a noção da guerra, estava num paraíso qualquer, sem
“pides”, bombas, fardas e toda a merda anexa à guerra.
Quando saímos, fomos dormir, nós para os quartos no QG, o
Labaredas e o outro “fuza” para os da base da marinha.
Outro dia rotineiro no comando-chefe. A operação Koundara foi
um êxito. O IN destroçado por cinco comandos africanos. Os rela-
tórios secretos a seguirem para o general Spínola e para o comando
de operações. Tudo prosseguia conforme as regras. E a monotonia a
instalar-se na repartição, só com uns intervalos para umas cachim-
badas e conversas de ocasião. faltava-me a adrenalina do mato, o IN
à espreita, as emboscadas, a confusão do costume, por entre gritos
dos feridos e dos que viriam a morrer.
— Alferes Viegas, o nosso tenente-coronel recebeu um louvor do
nosso general, em nome da Repartição, pelo êxito da operação. Te-

112
Os Soldados Perdidos

mos que preparar a próxima. Escolha um alvo mais a Sul, pois o IN


anda muito activo nessa zona.
— Dentro de dias, comunicarei o alvo que escolhi.
Pus-me a pesquisar no mapa o eventual próximo alvo, o mais
perto possível da fronteira a Sul. Os quartéis do IN estavam todos a
cinquenta quilómetros, o que era longe demais para grupos de ata-
que tão pequenos.
Entretanto, chegaram mais de vinte mensagens do IN, todas em
francês, dizendo que comandante N se dirigia com dois bi-grupos,
para atacar G.
Dei um salto na cadeira e corri para o comandante Nemésio:
— Meu comandante, Guileje vai ser atacada por dois bi-grupos,
ou seja, cerca de quatrocentos homens. Vai ser um massacre. Avisem
toda a zona e mandem os aviões lançar napalm.
— Alferes, os aviões já não voam, por causa dos mísseis strela,
soviéticos. Tem a certeza de que o ataque é certo?
— Comandante, as mensagens são de ontem, os ataques já come-
çaram.
— O cmdt foi falar com o tenente-coronel, chefe da 2ª Rep, e
choveram mensagens para Guileje, que já estava sob ataque e pedia
apoio aéreo.
Foi o pandemónio na Repartição, todos a gritarem, o general Spí-
nola a entrar, com ar de alucinado:
— Se o major se render, mando-o prender...
Ao ver o grande general com um ataque de histeria pura, percebi
que a guerra estava no mau caminho, ou seja, generais histéricos
aplaudidos por coronéis cobardes, só podia dar merda. E assim foi.
Guileje não se rendeu. O seu comandante, homem digno, decidiu
retirar, para evitar o massacre dos seus homens, na verdade miú-
dos perdidos, com dezoito, dezanove e vinte anos, que tiveram três
meses de recruta num quartel qualquer, sem precaver a porcaria da
mata impenetrável, onde morriam com as mordeduras das cobras-

113
João Viegas

-minuto, as disenterias provocadas pelas águas inquinadas, o palu-


dismo e, o medo. Especialmente o medo...
Quando estava na frente de combate, vi homens a chorarem
como crianças, a pedirem-me para os levar vivos dali para fora. Em
contrapartida, os loucos de adrenalina, sobreviviam, como se Deus
existisse e os poupasse a essa morte, por ter outra para eles escolhida,
como a fome ou outra coisa sinistra... Sobrevivi porque me escondi
no whisky da marinha, nos charutos corona que sabiam a merda, na
vontade de morrer como um herói, que nunca fui, na alegria de ter
filhos que nunca soube se os veria mais tarde. Deus é assim, protege
os poetas, como Camões, para mais tarde os matar de fome, protege
os loucos, como eu, que nada sabiam de guerra, e protege os cobar-
dolas burocratas que se safavam à guerra, porque pagavam a ida de
outros, em seu lugar. Se Deus existe, anda bêbedo, como eu. Mais
uma vez, esse Ser estava ausente, quando os artilheiros russos, ao
serviço do PAIGC, assertavam as morteiradas de 122 no quartel de
Guileje. Seria um massacre, se o comandante não mandasse evacuar
para Gadamael, a caminhar pelo mato, com um pelotão comandado
por um alferes corajoso, a proteger a retirada. O sacana do Nino
Vieira, acabado de chegar da China, queria matar os portugueses
que pudesse.
Guileje caiu, para trás ficaram viaturas, caixas de munições e
abastecimentos, porque a retirada de duzentos homens exige os mí-
nimos, ou seja, armas em riste, água, muita água, rações de combate,
e força nas canelas “que os gajos vêm aí para nos limparem o sebo...”.
Em Bissau, a notícia caiu como uma bomba, uma batalha perdi-
da, na carreira do grande general, a ordem de resistir até ao último
homem não foi cumprida. “Major cobarde, soldados cobardes, vai
acontecer-vos o mesmo que aconteceu na Índia, ao general Vassalo
e Silva, preso à ordem de Salazar”.
Os verdadeiros oficiais defenderam o major, à socapa, não fosse
alguém contar ao grande general que eram derrotistas. A côrte dos

114
Os Soldados Perdidos

“spinolistas” gritava aos quatro ventos: “vergonha nacional. Major


já para a cadeia. Soldados a ferros por terem sido cobardes”, só que
nenhum deles lá estava. Um dos grandes oficiais “spinolistas”, foi de
heli-canhão a Gadamael, para insultar o major e detê-lo e, quando
as morteiradas começaram a cair em grande intensidade, meteu o
rabo entre as pernas e pirou-se para Bissau, não sem ter utilizado o
megafone, para ameaçar que fuzilava todos os que abandonassem
o quartel. Gadamael Porto era uma base sólida. Os soldados foram
para a mata — já havia caixões com os mortos; esgotaram-se os ataú-
des — duzentos de Guileje mais os cento e tal de Gadamael, tentan-
do reagrupar forças, para um contra-ataque, mas a mata engoliu-os
implacavelmente. Só com a chegada duma força importante de fuzi-
leiros é que as coisas começaram a acalmar. Depois vieram os pára-
-quedistas e os comandos. E o Nino Vieira, outro comandante de
opereta, decidiu regressar à Guiné-Conakri, antes que tivesse azar.
Ainda não era desta vez que os quartéis da fronteira com a Guiné-
-Conakri caíam nas mãos do IN. Mais tarde, haveria de falar com
sobreviventes de Guileje e Gadamael, que me confirmaram a violên-
cia com que foram tratados pelos oficiais spinolistas, com os peitos
cheios de medalhas, que outros ganharam para eles.
Com tantos problemas na frente de combate, já se sabia que a
PIDE-DGS iria atacar em Bissau, o que fez com particular violên-
cia. Centenas de prisões, com as pessoas a serem enviadas para o
ilhéu das Galinhas. O que acontecia, por lá, era segredo de estado,
com muita porrada e tortura selvática. Nessa manhã, apareceu na
repartição o meu condutor, o Mamadu, com ar assustado, para falar
comigo.
— Alferes, a Bela foi levada pela PIDE, ninguém sabe dela.
Bandidos, gritei, todos na secção ficaram a olhar para mim. Meti
o cinto com a luger, pedi ao comandante para me ausentar por pou-
co tempo, passei no armeiro, troquei a luger por uma star 45, com
cinco carregadores, mais duas granadas ofensivas, dirigi-me para os

115
João Viegas

meus aposentos onde vesti o camuflado, e fui até ao batalhão de co-


mandos para falar com o sargento Abibo.
— Sargento, a Bela foi levada pela PIDE, põe dois batedores a
procurar.
— Alferes, preciso da ordem do capitão.
Fui falar com o capitão dos comandos africanos, expliquei que
a jovem Bela era minha informadora, o sargento foi chamado e o
capitão deu a ordem directa.
Regressei à 2ª Rep e quando entrei na secção, de camuflado e pis-
tola à cinta, o comandante olhou-me intrigado e perguntou o que se
estava a passar.
— Senhor comandante, a PIDE levou uma informadora minha
que é de vital importância.
— Imagino que seja a sua amiga Bela, do Pilão. Para já, guarde
a pistola na gaveta, depois acalme-se e, não faça merda. Quanto ao
camuflado, imagino que seja para guardar umas granadas, portanto,
use o camuflado e guarde a merda das granadas. Você já não está no
mato! Ou quer voltar para lá?
— Senhor comandante, se pudesse tomava a PIDE de assalto, só
precisava de uma dúzia de homens.
— Isso sei eu. Mas evite que o tenente-coronel saiba disso, senão,
o general dá-lhe guia de marcha para o mato.
— Certamente, snr. comandante. Vou trabalhar na próxima ope-
ração.
Li dezenas de mensagens e de outros documentos secretos e, che-
guei à conclusão que a cerca de dez quilómetros da fronteira, havia
uma base do PAIGC, com um grupo de russos, que deviam ser os
famosos artilheiros que rebentaram com Guileje. Boa oportunidade
para um ajuste de contas. Informei no relatório que o grupo de co-
mandos africanos devia ser reforçado para o dobro. Nunca se sabe se
os russos seriam tropas especiais. O próprio capitão dos comandos

116
Os Soldados Perdidos

africanos foi à Repartição, para falar comigo, onde me transmitiu a


notícia de que a Bela tinha sido levada para o ilhéu das Galinhas, o
famoso campo de prisioneiros da PIDE.
— Alferes Viegas, lamento o que aconteceu à sua amiga, aqueles
gajos são umas bestas. Quanto à operação, preciso de mais porme-
nores sobre esses russos que por lá andam.
— Meu capitão, só espero que não sejam spetnazes, uns assassinos
profissionais, as melhores tropas especiais que eles têm. Quanto ao
resto do IN, cerca de cinquenta homens, entre exército da Guiné-
-Conakri e PAIGC. Mostrei-lhe no mapa a localização exacta do
quartel.
— Sim senhor, Cumbijáda, um belo sítio para arrasar. Desta vez,
levamos um grupo de apoio, mais cinco homens, por causa dos rus-
sos. Alferes, apresente os cumprimentos ao snr. comandante. Um
dia destes, peço ao nosso general para o levar connosco.
— Meu capitão, não tenho competência para acompanhar co-
mandos!
— Descanse, estou a brincar consigo.
Fiquei mais tranquilo, porque acompanhar comandos num ata-
que era algo impossível para mim. Bem me lembrava da ida a Ma-
dina do Boé, quando um pelotão de comandos africanos integrava a
missão e passou por nós em passo acelerado. O alferes dos coman-
dos só dizia: “deixem passar a morte”. Quando chegámos ao acam-
pamento do IN era só cadáveres, felizmente, só de guerrilheiros, não
havia mulheres nem crianças.
Convidei o alferes Barros e o furriel Francisco para almoçar na
Casa da Beira. Meti as duas granadas nos bolsos do camuflado, co-
loquei a pistola no cinto e lá fomos, alegremente, comer mais um
famoso cozido à portuguesa.
— Viegas, vais todo artilhado, já percebi que queres ver o “pide”.
Não te arrisques demasiado, já se fala por aí que o queres caçar, vê se
não és tu o caçado.

117
João Viegas

— Barros, não te preocupes, estes gajos têm que perceber que não
temos medo deles.
Entrámos no restaurante, todos me olharam por ir armado e de
camuflado: “mais um alferes que chegou do mato, com ar de alucina-
do”, terão pensado. Sentámo-nos, virados para a porta de entrada, a
mesa do “pide” era sempre junto à porta, para controlar as entradas
e as saídas.
Comemos que nem abades, bebemos como se fosse o último copo,
rimos alegremente, até que chegou o famigerado inspector, acompa-
nhado por dois gorilas mal-amanhados. Com o olhar fuzilou-me,
enquanto eu sorria com ar de gozo. Bebemos um whisky para com-
por, levantámo-nos e saímos, passando pela mesa do “pide”.
— Senhor alferes, vai para o mato?
— No mato continuo eu. Fazia-lhe bem passar lá uns tempos,
senhor inspector.
Saí e rimo-nos da graçola. O Barros estava preocupado.
— Viegas, cuidado com o cabrão, deitou-te um olhar assassino.
— Barros, não te preocupes, se eu pedir ajuda aos meus amigos
comandos africanos, os “pides” borram-se todos... Estive em três fren-
tes de combate e nunca por lá vi nenhum sacana desses; limitam-se a
torturar e matar os indefesos. Não te esqueças que os professores da
PIDE eram da Gestapo, vindos de propósito a pedido do Salazar.
— Acho que andas a arriscar muito, mas tu é que sabes…
— Meu amigo, isto vai acabar um dia destes, o regime está podre,
fede como um cadáver, só precisa de um empurrão para desaparecer,
de vez. Só não rebento com a sede da PIDE, porque não tenho ho-
mens operacionais. Talvez um dia haja um milagre...Vamos embora,
tenho um relatório para acabar. Tem que estar pronto amanhã.
Quando chegámos à secção, o comandante Nemésio chamou-me
à parte.
— Alferes Viegas, consta por aqui que você anda a perseguir
o inspector Palma. O nosso tenente-coronel já sabe, portanto ex-

118
Os Soldados Perdidos

plique-me o que se passa senão você corre o risco de voltar para o


mato, para uma zona péssima.
— Senhor comandante, o inspector Palma anda a ver se me apa-
nha num descuido. Eu ando calmo demais, revolta-me a prepotência
da PIDE, são uns miseráveis assassinos. Nunca mais cai o regime
para eles serem presos e condenados pelos seus crimes.
— Calma, alferes, nunca diga essas coisas fora da Repartição. O
nosso general tem um assessor que é da PIDE.
— Não sabia, mas fique descansado que vou guardar a PIDE só
para mim.
No fim da tarde entreguei o relatório ao comandante que, depois
de o ler, foi entregá-lo ao tenente-coronel. Este chamou-me ao gabi-
nete e começou por me falar do caso do inspector Palma.
— Meu tenente-coronel, este assunto vem do tempo em que esta-
va no mato e um prisioneiro fugiu, após um ataque.
— E que problema houve com uma tal cabo-verdiana do Pilão?
— Isso é um assunto lamentável, prenderem a miúda para a man-
darem para o ilhéu das Galinhas, é um acto de cobardia.
— Senhor alferes, nós não nos podemos meter em assuntos da
PIDE-DGS. Os militares não se metem em política, ouviu bem?
Quero-o fora de qualquer incidente com esses gajos da polícia po-
lítica. Também não gosto deles, mas tenho que comer e calar, como
você vai fazer a partir de agora. Não quero ter um director da PIDE-
-DGS a ligar-me, para me dizer que você tem ficha na PIDE desde os
tempos de Coimbra. Se o nosso general sabe disto, você vai direiti-
nho para o pior buraco da Guiné. Estamos entendidos?
— Certamente, meu tenente-coronel.
— O relatório está bom. A sua sorte são estes relatórios! Pode
voltar ao trabalho, mas, a partir de amanhã, não o quero ver mais de
camuflado no serviço.
Quando cheguei à secção o comandante perguntou-me pelas no-
vidades.

119
João Viegas

— Então, alferes, o que lhe queria o tenente-coronel?


— Dar-me uma piçada por causa da Bela e da PIDE-DGS. Diz
que o director da polícia política lhe ligou a dizer que eu tinha lá
ficha e, que o assunto era perigoso.
— E tem lá ficha?
— Claro, senhor comandante. Todos os estudantes da crise aca-
démica de 1969 têm ficha na PIDE.
— A sua sorte é que você é inteligente e faz cá falta, senão já esta-
va com guia de marcha para um buraco qualquer.
— Senhor comandante, o nosso tenente-coronel disse-me a mes-
ma coisa; e mais, mandou-me despir o camuflado a partir de ama-
nhã.
— Ainda bem, o camuflado aqui, dá mau aspecto.
Também não há problema, passo a trazer uma FN 6.35, com ba-
las cortadas, o efeito é sempre demolidor, pensei. E fiz, para não ser
apanhado pelo inimigo interno.
Quando saí da repartição o meu condutor, o Mamadu, esperava-
-me com a notícia de que a Rosita, irmã da Bela, me esperava no
Pilão.
— Mamadu, dá trezentos pesos à Rosita, para pagar despesas da
Luana, filha da Bela. Ao Pilão não posso ir tão cedo, há problemas.
Se houver notícias da Bela, diz-me logo.
Fiquei no QG, onde tinha o meu quarto assim como mais dois
alferes. Um deles o Lima, irmão do Lima do CITAC, gente boa,
conversava muito comigo, ávido de notícias importantes. Conspi-
rávamos todos os dias, trocando informações sobre o real estado da
guerra.
— Viegas, depois de Guileje a guerra está perdida?
— Não Lima, foi só uma batalha. Esta guerra ainda está para du-
rar, ninguém a vai ganhar, nem nós, nem eles. Não te esqueças que
temos 45.000 homens no terreno e tropas especiais muito boas. As
guerras de guerrilha nunca são ganhas pelos opositores, ou seja, nós,

120
Os Soldados Perdidos

neste caso. São guerras apoiadas pelos povos e, estes ganham sem-
pre, mais tarde ou mais cedo.
— Viegas, qualquer dia os gajos entram em Bissau.
— Lima, os guerrilheiros não podem enfrentar o nosso exérci-
to, numa batalha final. Seriam completamente derrotados e isso eles
não arriscam. A vitória, em Guileje, ficou a dever-se aos artilheiros
russos e às potentes armas pesadas que eles trouxeram. O coman-
dante do bi-grupo, um tal Nino Vieira, chegou agora da China e tem
a mania que é esperto. Vais ver que o Amílcar Cabral ainda é morto
às ordens de gente como o Nino, vaidoso e pouco inteligente.
— Tens razão, Viegas, há muitas guerras nesta guerra. Como
achas que esta merda vai acabar?
— Meu amigo, só com um golpe de Estado em Portugal, o que
não é muito viável. Já imaginaste os milhões que os banqueiros do
regime ganham, par além das altas patentes, que vivem desta mise-
rável guerra?
— É verdade, o país está falido, o povo vive miseravelmente e está
domesticado.
— Não te esqueças que há quatro mil “pides” nas ruas, a prender
e a matar pessoas, todos têm medo.
— Como sabes isso, Viegas?
— Li um documento secreto do Estado Maior, fora os cinquenta
mil informadores. Se houver um golpe de estado, todos estes gajos
têm que ser presos, ou fuzilados, senão, nunca vamos avançar para
lado nenhum. Não te esqueças que ainda há os juízes dos tribunais
plenários, que julgavam os réus enquanto estes levavam porrada da
PIDE. Esses juízes, também têm que ser julgados e condenados, ape-
sar de ser coisa quase impossível, considerando que são uma classe
corporativa, segundo as melhores regras fascistas.
— Pensas que pode haver um golpe de estado?
— É muito difícil, mas há uma nova classe de oficiais do quadro
que já questionam esta guerra inútil, esta sangria de homens jovens,

121
João Viegas

só para que o regime se mantenha, enquanto os fascistas engordam


e aumentam as suas fortunas. Digo-te, cheira a podre nas estruturas
do poder político. Só os militares podem acabar com o baile dos
vampiros. Ninguém imagina quando será mas que se prepara, podes
ter a certeza.
— Oxalá fosse rapidamente, estamos fartos desta guerra de mer-
da. Viegas, vamos jantar à messe de oficiais do QG, há um grupo de
alferes, acabados de chegar de Lisboa, que querem conhecer-te. Já és
famoso com tantas aventuras.
— Já percebi, mais miúdos para a matança, vamos lá assustá-los
um pouco.
Chegados à messe do QG, havia uma mesa com uns dez alferes.
Fizemos as apresentações do costume.
— Camaradas, pela vossa saúde, não vão para o mato armar-se
em heróis. Não vale a pena, a guerra não pode ser ganha, pois o IN é
inteligente e tem melhores armas que nós. Quem violar esta regra de
ouro, morre. Nunca abandonem os vossos soldados, a vida de todos
depende da união de cada um com o camarada do lado. Esqueçam o
que aprenderam em Mafra, aqui é tudo ao contrário. As emboscadas
são mortais. E cuidado com as malditas minas e as armadilhas. No
mato nunca fumem, cuidado com as cobras-minuto, já vi homens a
caírem logo a seguir à picada dessas putas. São verdes e pequenas,
penduram -se nos ramos das árvores e caiem sobre a cabeça das ví-
timas. Um minuto, é o tempo que leva entre a picada e começarem
a espumar uma baba branca. A Guiné não é para meninos. Com o
tempo, podem ficar apanhados, como eu e tantos outros. Se tiverem
o azar de apanharem um capitão “chico” à procura de promoção,
então é tudo muito pior. Bebam uns whiskys de 20 ou 30 anos, os da
marinha são os melhores. Nunca vão para o mato com os copos, só
fazem merda e, quem sofre são os desgraçados dos putos que vão
comandar. Não sejam fascistas no comando do pelotão, dêem umas
oportunidades à rapaziada. Um líder vai à frente dos seus homens,

122
Os Soldados Perdidos

só assim eles lhe ganham respeito. Ainda uma coisa fundamental,


nunca matar crianças, mulheres ou velhos, estamos a combater um
grupo de guerrilha que vive nas populações, só os cobardes e fas-
cistas cometem esses actos hediondos. E como apontamento final:
um militar do Exército português não entrega prisioneiros de guerra
à PIDE-DGS, pois serão torturados até à morte ou enviados para
campos de concentração. Aqui na Guiné esse campo de morte fica
no ilhéu das Galinhas, no arquipélago dos Bijagós. Se seguirem estes
conselhos podem sobreviver, não esqueçam.
— Viegas, isso é tudo verdade?
— Camarada, se queres sobreviver, presta atenção ao que vos dis-
se, o resto que vos contarem é mentira.
— Agora és dos serviços secretos?
— Sou da 2ª Rep, todos os meses faço planos para atacar bases do
PAIGC.
— És tu que comandas?
— Não, são comandos africanos que lá vão, comandados por um
sargento altamente eficiente. Grupos de oito homens limpam bases
IN com mais de quarenta homens, entre guerrilheiros do PAIGC e
tropas da Guiné-Conakri. Os melhores soldados que temos, eficien-
tes a cem por cento. Mas não esqueçam os rangers, os fuzileiros e
os pára-quedistas, tropas excepcionais que salvam o coiro às tropas
normais. Se não fosse o meu furriel ranger, o Trindade, eu nem es-
tava aqui, estaria esticado com uma bala na testa a ser comido pelas
formigas. Já chega de conversas tristes, vamos comer os belos bifes e
beber um bom vinho verde, gelado.
— Viegas, e se depois da janta fossemos até ao Pilão, para apre-
sentar as pequenas aos periquitos. Disse o Lima, com ar de gozo.
— Somos muitos, podemos ir em segurança. Disse eu. Vamos
jantar, com calma, depois arrancamos por aí abaixo até ao objectivo.
Nunca se separem, para evitar merdas.
— Viegas, dizes que pode haver merda?

123
João Viegas

— É só o bairro mais perigoso de Bissau; “pides” e paigcês” fre-


quentam a zona, por isso é que quero todos em grupo, sem grandes
bebedeiras. Há porrada todas as noites, vocês só saem da casa quan-
do for seguro.
Quando o jantar acabou, lá fomos para o Pilão, num alegre grupo
a que se juntaram mais quatro alferes chegados do mato. Dezassete
alferes, era quase um pelotão. Levei o pessoal para a casa da Rosita,
irmã da Bela, outra beleza cabo-verdiana que me beijou com ami-
zade.
— Chegou o alferes bonito com muitos amigos. Meninas fechem
as portas, hoje não entra mais ninguém. Perguntei à Rosita notícias
da Bela, que nada sabia da irmã, mas a pobre da rapariga continuava
nas mãos da PIDE-DGS, no ilhéu das Galinhas. Soube que a Luana,
filha da Bela, estava bem, aproveitei para dar à tia cem pesos.
— Rosita, trás o melhor whisky que tiveres, daquele da marinha
que o Mamadu te trouxe. Estes alferes chegaram de Lisboa e querem
festa, eu fico-me pela bebida, hoje não vou para o quarto, desculpa.
— Estás triste pela Bela?
— Estou, ela não devia ter sido presa pela PIDE-DGS. Dentro de
dias vou saber informações sobre a situação dela, depois o Mamadu
vem cá dar-te notícias.
— Está bem, alferes, agradeço a atenção e a Bela também.
— Vai trabalhar, rapariga, eu fico a beber com estes quatro alferes
do mato.
Os alferes vindos do mato estavam muito apanhados, vinham
do Norte, onde a guerra estava muito dura, falavam e choravam ao
mesmo tempo, é o costume com malta que tem medo de morrer, eu
já nem me queria lembrar do que passei no Cantanhez, a lama e o
sangue, a morte e a vida, o medo e as bebedeiras de escape. Só quem
passa por elas é que sabe o que custa ter a noção de que a vida não
vale nada. É só um intervalo entre rir e gritar com dores, pernas
perdidas com as minas e as armadilhas, o sangue a alagar as fardas

124
Os Soldados Perdidos

e a mata. Limitava-me a fazer de conta que não tinha medo, que


era um potencial herói imbatível, mentiras atrás de mentiras, risos
forçados, bebidas fortes para disfarçar o medo, já ninguém falava,
gritava-se por qualquer coisa, os copos ajudavam à coragem, já não
havia heróis como antigamente, nem Camões para exaltar os feitos
heróicos destes soldados assustados, com a morte a bailar-lhes nos
olhos, enquanto os tinham.
Era a tristeza que nos consumia a todos, “sei lá se volto para casa,
sei lá se fico estropiado, puta de guerra esta”. Antes de nós, milhares
de jovens passaram pelas mesmas angústias, vinte milhões morre-
ram na primeira guerra mundial, cem milhões na segunda, mas na
guerra de guerrilha não havia estatísticas, eram cadáveres, nos sacos
de plástico, atirados para um canto até que alguém os levasse para
o país que os viu nascer, ou ficassem enterrados perto das formi-
gas africanas que comeriam os restos mortais. “Merda das formigas,
nem nos deixam em paz, depois da morte”. E os whiskys vão-nos
toldando os espíritos, as lágrimas saltavam, por vezes, sem querer.
— Camaradas, divirtam-se com estas belas miúdas, eu fico-me
pelos copos, estou farto desta merda, dizia eu enquanto já bebia pela
garrafa, e suava que nem um porco.
— Viegas, quando te vais embora?
— Só em Junho de 1974, até lá posso voltar para o mato, ou matar
um “pide”, que era bem melhor.
— Então hoje não atacas?
— Não, malta, só copos e pensamentos de merda... Penso na puta
da guerra, nos meus mortos e feridos, na sorte que tive enquanto ou-
tros morriam ou ficavam estropiados. O que estamos a fazer aqui? A
salvar o resto do império moribundo, a esgravatar por entre ruínas,
destes países que só querem libertar-se do colonizador. Em 1640
expulsámos os espanhóis que escravizavam o povo, todos os povos
têm o direito de expulsar os opressores. Nós somos os colonizadores,
retirámos de África milhões de pessoas que escravizámos, famílias

125
João Viegas

inteiras enviadas nos navios negreiros, em condições sub-humanas.


Os mais valentes atiravam-se ao mar, para morrerem em liberda-
de. Nós somos os descendentes desses esclavagistas, herdámos os
seus horrendos crimes, o sangue de tantos mortos ficou-nos colado
à pele. Por tudo isso, quero ir-me embora desta guerra, não que-
ro ouvir dizer que mais homens morreram, ou ficaram mutilados.
Camaradas, vamos beber o último copo, já se faz tarde e a zona fica
insegura.
— Viegas, és comunista? Perguntou-me um alferes recém-chega-
do, com o medo no olhar.
— Não, nem podia ser, sou um burguês rico, herdeiro de fábri-
cas de conserva. Não tenho classe para ser comunista. É preciso ter
sofrido na pele a repressão e trabalho mal pago dos operários. Limi-
to-me a pensar pela minha cabeça e não oiço as balelas do regime
fascista, que já cansa. Vamos embora, em grupo, ninguém se afasta,
daqui a uma hora estamos nos quartos.
Saímos do bairro em passo acelerado, no tempo previsto chegá-
mos e aterrámos já meio grossos na cama.
No dia seguinte, quando cheguei ao comando-chefe, não se falava
de outra coisa, a partida do general Spínola para Lisboa para assumir
a pasta de ministro do ultramar. O general não aceitou e, a bronca
deu-se, não voltava para a Guiné e o comando estava entregue ao ge-
neral Bettencourt Rodrigues, outro homem do regime, só que com
um estilo menos vistoso. Nessa manhã, ia haver inspecção às tropas
do comando-chefe, toda a gente a dar ordens contraditórias à espera
do novo general. Pensei cá para comigo: mais um militarão da velha
guarda, da brigada do reumático. A merda iria continuar.
Qual não é o meu espanto quando vimos chegar, num grande
mercedes preto, um homem alto e sorridente, a sair da viatura para
cumprimentar todos os oficiais com um aperto de mão e a desejar
a melhor fortuna militar. Sim senhor, estilo não lhe faltava. Novos
tempos se avizinhavam, esperávamos todos que para melhor.

126
Os Soldados Perdidos

— Senhores oficiais superiores, quero um briefing dentro de uma


hora, no meu gabinete. Com os senhores alferes, falo logo a seguir,
eficiência é o que exijo. Voltem ao trabalho.
Oxalá houvesse um vento de mudança, esta guerra já cheirava
mal. Quando chegou o meu chefe directo, o comandante Nemésio
avisou-nos a todos para continuarmos a trabalhar, pois vinha aí o
general e comitiva. O general chegou, todos em sentido.
— Meus senhores, quero que os ataques à Guiné-Conakri e ao Se-
negal prossigam e que continuem com bons resultados. Ao contrário
do que dizem os derrotistas, esta guerra não está perdida.
Cumprimentou todos os militares presentes e saiu rapidamente.
Este general queria ganhar esta guerra perdida, estávamos lixados.
Confesso que ficámos desiludidos, o novo general queria conti-
nuar o trabalho do Spínola, se não houvesse novidades urgentes ia
haver muita porcaria, por estas bandas. Quando é que estes gene-
rais percebiam que não havia solução militar para uma guerra de
guerrilha? Entretanto apareceu o major da contra-informação com
a notícia que o PAIGC iria atacar Bissau, pelo Natal ou Ano Novo,
não havia a certeza. Pudera, desde que distribuíram panfletos pela
população, dizendo, “guerrilheiro, entrega a tua arma, recebes mil
pesos e um rádio”. Como o IN não é parvo, aproveitou para enviar
para a cidade, umas dezenas de guerrilheiros que entregaram as AK
47, receberam os prémios e, foram à vida. Quando descobriram que
as armas estavam estragadas, já era tarde. Neste momento, havia de-
zenas de homens preparados para atacar a capital e, como ninguém
os conhecia, nada havia a fazer, senão esperar pelo ataque. Aprovei-
tei para dizer ao comandante:
— Senhor comandante, fale com o nosso tenente-coronel para
podermos andar armados.
— Alferes Viegas, se calhar tem razão. Vou ali e já venho.
Quando regressou, trazia ordem do chefe para armar todo o pes-
soal da secção, com pistolas. Seguimos todos para o armeiro e requi-

127
João Viegas

sitámos uma pistola para cada um, foi uma festa. Havia pessoal que
não estava habituado a usar pistola, prontifiquei-me a dar-lhes umas
aulas de tiro de pistola, na carreira de tiro mais próxima. Quando
voltámos à repartição, parecíamos um grupo de pistoleiros loucos,
havia quem não tivesse a noção de como atirar, para acertar em al-
guém.
— Apontem para a área maior do corpo, hão-de acertar.
Quando voltámos ao trabalho, o comandante pediu que guardás-
semos as armas numa gaveta, voltando a pô-las à cintura aquando
da saída. A guerra estava à porta, todo o cuidado era pouco. Esta
situação veio alegrar as coisas por aquelas bandas, onde tudo era
demasiado certinho. Um pouco de medo permanente era bom para
o moral das tropas, a qualquer momento aparecia o IN, para nos
rebentar com a coragem.
Todos temiam o ataque anunciado, ataque que sabíamos que
aconteceria, se não fosse no Natal, seria no Ano Novo. Comecei des-
de logo a preparar uma ida ao Pilão para essa altura. Não atacariam
as miúdas, também suas amigas.
A noite de Natal era já amanhã. Decidi convidar cerca de dezas-
seis alferes para irmos à festa na messe do QG onde jantaríamos e,
depois se logo se veria.
A meio da manhã, tive uma visita inesperada, o furriel Trindade
e o cabo Fonseca iam a casa passar o Natal. Abraços e mais abraços.
Apresentei-os a todo o pessoal da repartição. Entretanto, o Trindade
aproveitou para se queixar do meu substituto no mato, um alferes
de cavalaria, cheio de cagança e fascista, que tratava os homens com
desprezo e arrogância.
— Camaradas, só há uma solução, numa emboscada, dêem-lhe
um tiro numa pata, e, vão ver como o animal se acalma. O melhor é
ser o Trindade a disparar, senão ainda matam o gajo.
— Está combinado, quando voltarmos, vamos cumprir a missão.
— Rapazes, vão almoçar comigo à Casa da Beira, onde há cozido

128
Os Soldados Perdidos

à portuguesa. Depois, podem ir apanhar o vosso avião.


Seguimos para o local do almoço, eu com a pistola no cinto, coisa
que intrigou os meus convidados.
— Camaradas, o PAIGC infiltrou-se na capital, a todo o momen-
to farão um ataque a alvos militares, daí as medidas de segurança.
Quando chegámos ao restaurante, ocupei a mesa dos fundos, vi-
rada para a porta, precisamente para ver entrar o sacana do inspec-
tor da PIDE. E eis que entra, ele mais dois gorilas, todos a olharam
na minha direcção, com um sorriso a sair-lhes daquelas fronhas ri-
dículas.
— Trindade, naquela mesa junto à porta, está a PIDE, representa-
da por um inspector assassino e dois capangas mal-encarados. An-
dam a ver se me apanham mas, não irei facilitar-lhes a tarefa.
O Trindade olhou para trás e sorriu, só para chatear.
— Viegas, nunca me esqueço de uma cara, se precisares de algu-
ma coisa, falo com uns rangers amigos.
— Não te metas nisto, camarada, há mais marés que marinheiros,
há-de chegar o dia.
Comemos o cozido com a alegria do costume, estava óptimo,
como sempre. O vinho era um Redondo tinto, tudo a condizer.
Quando vínhamos a sair, o “pide” perguntou-me, no gozo:
— O senhor alferes anda armado?
— Ando sempre armado, para além das granadas que trago nos
bolsos.
— O senhor alferes tem medo?
— Só de cobras que atacam pela calada...
Saímos e conduzi a rapaziada ao táxi mais próximo, para que se
dirigissem ao avião para Lisboa.
— Um abraço Viegas, quando voltar venho visitar-te e, se quise-
res, falo com a minha rapaziada dos rangers.
— Camaradas, boa viagem e gozem as vossas festas, fora da mer-
da da guerra.

129
João Viegas

“Hurra, alferes Viegas”, gritou o Trindade perante a admiração


dos passageiros.
Vi-os partir. E eu, continuei à espera de melhores dias. Quando
chegaria a minha vez de me ir embora, de uma vez por todas?
Passei a tarde a ler mapas aéreos da zona de Cumbijan, e cheguei
à conclusão que o IN andava muito activo na zona. Como tal, não
era oportuno desencadear um ataque nesta altura. Os comandos não
podiam ter baixas inúteis, tinha que ser tudo pormenorizado até ao
milímetro. Informei o comandante Nemésio da minha análise ope-
racional, ele acatou a situação e a operação foi suspensa até novas
ordens. Fiquei satisfeito, tinha acabado de salvar a vida do sargento
Abibo e dos seus cinco comandos africanos.
Quando vinha a sair, encontrei o condutor Mamadu que me in-
formou sobre a Bela e me disse que ela estava bem e que em breve
regressaria. Uma boa notícia para compor o dia.
Enquanto o Mamadu me conduzia para o QG:
— Alfero, os comandos africanos dizem que alfero tem manga de
ronco, é bom di ver.
— Só faço a minha obrigação, eles são grandes combatentes, me-
recem viver muito tempo com as suas famílias.
— Alfero, saber, sargento Abibo amigo.
— Eu sei, Mamadu, gosto dele e dos seus homens, a guerra é com-
plicada, mas com soldados assim, está no bom caminho. Brevemen-
te vai acabar.
— Alfero pensa qui sim?
— Sim, Mamadu, um dia destes vamos todos para casa.
Fui para a messe de oficiais beber uns copos com os camaradas
do costume, enquanto pensava no que tinha dito ao Mamadu. De-
pois do assassinato de Amílcar Cabral em Janeiro de 1973, o coman-
do operacional passou para o Nino Vieira, o mandante da morte de
Amílcar Cabral. O Nino era brutal e vaidoso, tinha decidido acabar
com a presença portuguesa, com a guerra total. Daí Guileje e Gui-

130
Os Soldados Perdidos

daje, dois desastres anunciados que, só não terminaram em tragédia


pela rápida intervenção das nossas tropas especiais (comandos, fu-
zileiros e pára-quedistas).
Tinha encontro marcado com dezasseis alferes sedentos, dos
quais, só quatro tinham estado no mato, tal como eu. Era Natal, pas-
sar este dia rodeado pelos oficiais superiores e suas famílias não era
bem a festa que nós queríamos, mas como a festa seria só no dia
seguinte, ainda havia tempo para combinar uma ida ao Pilão, onde a
diversão e a bebida estavam garantidas.
A rapaziada começou a chegar e quando o grupo estava reuni-
do, comecei a definir melhor a minha intenção de passar o Natal no
Pilão, rodeado pelas beldades do costume. Levaríamos o jantar. A
festa estava garantida. O meu último Natal na Guiné merecia uma
comemoração de arromba.
— Camaradas, amanhã passem pelas vossas unidades e peçam
duas granadas cada um, uma pistola e vários carregadores. Dirigir-
-nos-emos ao Pilão em formação de grupos de quatro, com uma
distância de dez metros. Cada grupo será comandado por um alferes
que tenha estado no mato, os outros não saem da formação. Em caso
de ataque do IN, responderemos com tudo, granadas ofensivas e ti-
ros em barda. Quem tiver medo não vai, mas que o diga já.
— Viegas, achas que eles podem atacar-nos?
— Se souberem que somos alferes, em excursão, não tenho dúvi-
das. Por isso é que vos quero em formação de combate. Cada alferes
do mato comanda um grupo e leva um bornal com todo o material
de guerra do grupo. Levarei duas uzis, com cinco carregadores cada
uma, para o alferes do grupo da frente, que serei eu, e outra para o
alferes do último grupo, que será quem se oferecer. Transportarei
também um “racal”, para pedir ajuda se for preciso.
— Então achas mesmo que vai haver merda?
— Ninguém sabe, mas temos que estar precavidos.
Para surpresa geral, chegaram à messe dois subtenentes dos fu-

131
João Viegas

zileiros, um deles o Labaredas, sempre a rir com aquele ar de louco


bom, o outro, um tal Menezes, com caparro atlético, menos louco
que o Labaredas, mas mesmo assim, intimidante. Levantei-me para
cumprimentar o meu amigo. E o abraço foi de partir ossos.
— Que fazes por aqui, camarada fuzileiro?
—Vim à procura do alferes mais doido que conheço. Quero ac-
ção, e só contigo a tenho por garantida.
— Amanhã temos uma expedição ao Pilão, em formação de com-
bate, porque tudo indica que o IN vai atacar a cidade.
— Boa, era mesmo disso que estava à espera. Lá estarei com mais
uns quatro fuzileiros especiais, incluindo este meu amigo, verdinho
de todo, o Menezes.
Ficou combinado que os cinco “fuzas” nos acompanhariam, com
todo o material de guerra que pudessem transportar, sem dar nas
vistas.
— Camaradas, venham eles. Com um grupo destes somos inven-
cíveis e até os partimos todos. Estou muito mais tranquilo.
Comemorámos o reforço, inesperado, com cervejolas geladas e
uma travessa de camarão. Depois pedimos tapas de presunto e de
queijo e mais umas rodadas de cerveja gelada. O jantar seria isto
mesmo. Passámos aos whiskys velhos para rematar o banquete e,
acertámos pormenores para o plano do dia seguinte: às seis da tarde,
todos reunidos na messe dos oficiais do QG, de onde partiríamos,
a pé, até ao objectivo final, o bairro do Pilão, território IN, devida-
mente controlado.
No dia seguinte despertei estremunhado, com “a boca a saber a
papel de música”. A copofonia atordoou-me.
Quando o Mamadu me foi buscar ao QG, avisei-o para comuni-
car à dona da casa do Pilão, que pelas seis e tal da tarde desse mesmo
dia ali chegariam vinte e um alferes que levavam o jantar. E que po-
dia fechar a casa a outros clientes.
O dia passou-se mornamente, sem grande apetite para o traba-

132
Os Soldados Perdidos

lho, todavia fui lendo as mensagens IN e ainda elaborei uns relató-


riozitos. Os do costume. Nada mais. Talvez por isso tivesse custado
a passar. Nunca mais chegavam as seis da tarde… Desloquei-me,
entretanto, ao armeiro do CC, pedi uma uzi com cinco carregadores
e mais seis granadas, metade ofensivas e a outra metade defensivas.
Requisitei ainda um bornal militar, para colocar o material. O guar-
da do armeiro aproveitou para me lembrar que eu já tinha demasia-
do material de guerra na minha posse.
— Senhor cabo, estamos em guerra, ou já se esqueceu do ataque
iminente?
— Senhor alferes, acha que vai haver ataque?
— Tenho a certeza, prepare-se para o que der e vier.
— Então é mesmo verdade?
— É, vamos ser atacados, se fosse a si não andaria pelas ruas, nem
hoje, nem no Ano Novo.
— Ó diabo… Estamos lixados!
— Tenha calma, homem, prepare-se e não se exponha.
Depois foi o comandante Nemésio que me perguntou onde ia
passar o Natal, tendo-lhe dito que o passaria com um grupo de vinte
e um alferes, no Pilão.
— Ao Pilão? Isso é quase zona IN, vocês estão doidos?
— Senhor comandante, escolhemos o Pilão porque se houver ata-
que de morteiros, será a partir daí, pelo que estamos protegidos e, se
possível, atacaremos directamente.
— Vocês são doidos, ou são só saudades da acção?
— As duas coisas, senhor comandante. Juntamos o útil ao agradá-
vel. Não é por acaso, que o subtenente Labaredas vai estar presente
com cinco fuzileiros especiais.
— Então já vi o que vai dar, dois oficiais do mato reunidos, só
pode dar merda. Não comecem a terceira guerra mundial!
— Senhor comandante, nós somos de paz mas, se pudermos ma-
tar saudades, assim será.

133
João Viegas

— Alferes, não me diga que vai levar o alferes Barros? Ele nunca
ouviu um tiro.
— Não se preocupe, senhor comandante, os periquitos vão en-
quadrados na coluna dos profissionais, não haverá baixas, somos
vinte e um homens, dos quais nove, altamente treinados.
— Já percebi que você vibra com estas aventuras. Só espero que
nada corra mal, senão, volta directamente para o mato. Você anda
muito acelerado, ó alferes, tenha calma.
— Senhor comandante, sou o homem mais calmo do mundo, não
vai acontecer nada de mal.
— Esperemos que não, já sabe o que acontece a seguir.
— Dê-me o benefício da dúvida. Os operacionais não podem fa-
lhar.
— Nessa sua equação, não há imponderáveis?
— Senhor comandante, imponderáveis eram as minas e as arma-
dilhas IN, com corpos estropiados pelo ar. Neste caso, só se levar um
tiro na cabeça, o resto, está tudo previsto.
— Alferes, já nem lhe digo mais nada, só lhe posso desejar boa
sorte. Pode ir almoçar, até já.
— Branco, vamos à Casa da Beira?
— Embora.
Desta vez, íamos comer uma deliciosa caldeirada de peixe, acom-
panhada por uma garrafa de Ponte de Lima, verde tinto, fresco, uma
maravilha.
— Branco, tens medo da expedição desta noite?
— Confesso que tenho, não percebo nada de armas, e a pistola só
a disparei em Mafra.
— Apontas à parte maior do corpo, hás-de acertar em algum
lado. Vai correr tudo bem, os “fuzas” são máquinas de guerra, não
te assustes.
Comemos bem, e voltámos optimistas à Repartição. Eu aguar-
dava a hora do lobo, ou seja, a ida ao Pilão com a força combinada.

134
Os Soldados Perdidos

Iria ser um Natal de arromba. Quando temos pressa de fazer alguma


coisa, o tempo é muito lento, demasiado lento. Às 17h30, metemo-
-nos no jeep, conduzido pelo Mamadu, em direcção ao QG.
— Mamadu, tens notícias de alguma coisa prevista para hoje à
noite?
— Alfero, eles são muitos e estão na cidade, à espera. Ninguém
sabe quando acontecer.
Quando chegámos à messe de oficiais do QG, já lá estavam o La-
baredas e mais cinco fuzileiros, que transportavam três sacos de té-
nis, dos grandes, com material de guerra variado.
— Camarada Viegas, trouxemos seis AK 47, com seis carregado-
res cada, para além de dez granadas defensivas e outras tantas ofen-
sivas. Se formos atacados, temos material para uma bela festa.
— Boa, camarada Labaredas, eu trago uma uzi e cinco carrega-
dores, mais dez granadas ofensivas, para além da pistola de 9mm
também com cinco carregadores. Cada um dos meus camaradas vai
trazer uma pistola e duas granadas ofensivas.
— Estamos preparados para eles. Os teus amigos estão a atrasar-
-se.
Passados dez minutos surgiram os dezasseis alferes, com os bor-
nais e respectivo material de guerra. Ao todo, éramos vinte e dois
homens com um considerável poder de fogo.
— Camaradas, quem comanda o pelotão é o camarada Labare-
das. Ninguém discute ordens do comandante.
— Viegas, vamos organizar cinco grupos de quatro elementos.
Cada grupo integra um “fuza”, que comanda. Tu vais no grupo da
frente, eu sigo no último. Ao mínimo ataque, fogo livre. É afastá-los
e matá-los. A distância entre os grupos é de cinco metros. Não es-
queçam, nenhum homem fica para trás, se houver baixas, transpor-
tamos os feridos ou os mortos. Siga a marinha, hurra...
As armas seguiam nos sacos, só se tiravam em caso de ataque. O
passo era acelerado, ainda tínhamos meia-hora de caminho. E de-

135
João Viegas

pois seria a tranquilidade, encerrados na casa das meninas.


O Labaredas tinha passado numa churrasqueira e encomendado
40 frangos assados e vinte entremeadas grelhadas, quando lá pas-
sámos recebemos a encomenda e pagámos, ficando toda a gente a
olhar para aquele grupo tipicamente militar mas, estranho de se ver,
os sacos faziam um barulho metálico, condizente com transporte de
armas.
Chegámos à casa da Bela rapidamente. Foi uma festa, as mulheres
riam de contentes, a dona da casa veio ter comigo.
— Alfero bonito, ter notícias da Bela?
— A Bela está viva, em breve volta, eu garanto.
— Mininas, a Bela está bem, palavra de alfero.
Uma risada colectiva alegrou a casa, todos pegaram numa cerveja
e beberam à saúde da rapariga ausente.
— Viva a Bela, e todas as belas desta casa, gritou o Labaredas.
— Madame, trouxe jantar de Natal e bebidas, se faltar alguma coi-
sa, depois alguém vai buscar. Camaradas, a casa é só para nós, cada
um vai pegar em cem pesos e dar a cada uma das miúdas. A patroa
leva duzentos, sou eu a pagar.
— Hurra Viegas. Música! Gritaram em uníssono os vinte e um
jovens, enquanto bebiam as cervejolas.
As mornas cabo-verdianas invadiram o espaço. Estávamos em
casa. Dezassete jovens da casa já dançavam com os mais folgazões.
— Camaradas, gritou o Labaredas, os seis que estão livres aproxi-
mem-se, temos trabalho a fazer.
O trabalho era bloquear a porta da rua, com uma mesa, fechar as
portadas das janelas — não fosse haver granadas a voar para o inte-
rior — e colocar todo o armamento em cima de outra mesa, para o
que desse e viesse. Estávamos preparados para qualquer ataque.
— Camaradas, vamos jantar, gritou o Labaredas. As mulheres
trouxeram travessas cheias de frango assado com as batatas fritas

136
Os Soldados Perdidos

e muitas cervejas, tudo aterrando em cima da mesa. Cada um se


servia à vontade. Todos sorriam nesta bela noite de Natal. Ninguém
falava das festas distantes, a decorrerem nas suas casas longínquas.
Se pensássemos demasiado nas nossas casas, corríamos o risco
de ficarmos perturbados e até endoidecer. Deixemos as famílias em
paz, estamos na guerra, só queremos que o pesadelo acabe. Até lá,
alegria e copos, muitos copos. Parecia uma festa, numa república de
Coimbra, todos a comer, a beber e a rir. A alegria estava em crescen-
do e era já notória em alguns homens.
— Camaradas, hoje não pode haver bebedeiras, estamos em mis-
são, fui dizendo, o que me valeu um apupo colectivo.
Neste momento ouviram-se três tiros, o que não era bom pressá-
gio. Todos se calaram e pegaram nas armas. Seria o momento? Uma
das raparigas saiu pela porta dos fundos e trouxe a notícia que dois
soldados davam tiros para o ar, embriagados. Era sempre a mesma
merda.
— Camaradas, ninguém sai, devem ser novatos, acabados de che-
gar, não podemos revelar a nossa posição, afirmou o Labaredas.
— Labaredas, se não os formos buscar, ainda matam alguém, ou
são mortos por um cabrão qualquer. Temos que os trazer para aqui.
Preciso de três voluntários para os ir buscar.
Logo se ofereceram os homens, incluindo o Labaredas. Saímos
pela porta dos fundos e depressa demos com eles muito bêbados, a
gritar e a ameaçar transeuntes. Aproximámo-nos com cuidado.
— Camaradas! Alferes Viegas! Guardem as armas já! Estão a dar
um triste espectáculo. Vamos embora.
Os soldados guardaram as armas e, calmamente, foram enqua-
drados no nosso grupo e conduzidos para a nossa casa. Um deles
chorava, baboso e ranhoso o outro, mais rijo, ainda estrebuchou,
mas acompanhou-nos sem mais confusões. Em casa, pedi que lhes
dessem café amargo. Tombados no chão, foram dizendo:

137
João Viegas

— Tantos oficiais! Estamos lixados!


— Sacanas, por acaso estão vivos. Se não sabem beber, bebam
água! Cá por mim entregava-os à PM, dizia o Labaredas.
— Labaredas, são periquitos, já sabem o que os espera e têm
medo. Comam frango e bebam o café. Para a próxima não vão ter
tanta sorte.
— Obrigado, alferes. Não vai participar de nós, pois não?
— Ó anormal, aqui não há chibos, tentem dormir um pouco, de-
pois vão para o vosso quartel, sem as pistolas, ou melhor, sem as
munições. Quando partem para o mato?
— Amanhã, estamos lixados.
— Já percebi, estão borrados de medo. Quanto mais medo, mais
depressa morrem, não esqueçam. Quando estiverem melhores, uma
das miúdas vai levar-vos a um táxi, para seguirem para o quartel.
Boa sorte, seus sacanas...
A festa continuou noite fora, o IN não atacaria pela certa, seria no
Ano Novo. Daí a oito dias repetiríamos a dose, com algumas novida-
des em termos de material de guerra.
— Labaredas, para a próxima vais trazer uns RPG 2, com meia
dúzia de granadas.
— Está descansado, trago dois que estão em depósito na base da
marinha. Estou mortinho por usá-los.
De repente, ouvimos umas viaturas a pararem à nossa porta,
umas porradas com o tradicional berro: “abram a porta, PM!”. Só
tivemos tempo para retirar os soldados para um dos quartos e ir eu
abrir a porta com o cartão de oficial da 2ª Rep apontado à cara de
quem viesse à frente, que por acaso era um alferes que eu bem co-
nhecia do comando-chefe, o Lopes.
— Alferes Viegas, por aqui?
— Sim, operação secreta da 2ª, estamos à espera do ataque.
Os PM entraram e, ficaram impressionados com o material de
guerra, colocado em cima de duas mesas.

138
Os Soldados Perdidos

— Vão atacar o IN?


— Claro, se eles fizerem merda levam connosco em cima. Até
temos um reforço dos fuzileiros.
— Não soubemos de nada na PM.
— Se a operação é secreta, nunca poderiam saber.
— Ah, pois.
— Sirvam-se de frango, temos que chegue, disse o Labaredas com
ar de gozo.
— Não podemos, estamos de serviço, telefonaram para a PM,
queixaram-se de tiros nesta zona e referenciaram-nos esta casa.
— Ó Lopes, estamos em missão, quanto menos barulho, melhor.
Também ouvimos tiros e fomos ver, algum bêbedo que já se pirou.
— Viegas, tenho que reportar a tua presença aqui.
— À vontade, vais ser promovido...
— Os meus homens vão fazer comentários, sabes como é.
— Eu sei, uma vez polícia, sempre polícia...
Despedimo-nos formalmente, continência de parte a parte, e ele
partiu com os seus cabeças de giz, heróis por lixarem a vida aos ou-
tros militares. Já sabia que no dia seguinte todo o comando-chefe
teria conhecimento desta incursão no Pilão.
— Camaradas, só nos faltava a PM a bater à porta, amanhã vai
haver piçadas para todos, preparem-se.
— Menos para a marinha, esses sacanas que não se metam con-
nosco! Berrou o Labaredas.
O ambiente estava carregado, o IN não atacava, a festa tinha sido
interrompida, era preciso animar as tropas. A Rosita tomou a inicia-
tiva, começou a fazer uma sessão de strip-tease, com aquele corpo
perfeito a ondular pela sala, a hipnotizar o pessoal, que batia palmas,
a rirem, como putos aparvalhados. Era o culminar da festa, as outras
miúdas aderiram à dança e a excitação libidinosa apoderou-se dos
homens, Era de esperar o que aconteceu de seguida: um incessante
rodopio para os quartos. Esta parte da festa terá durado umas duas

139
João Viegas

horas. A felicidade estampava-se em sorrisos intermináveis. Que


Natal inesquecível.
Nós do exército voltámos ao QG e os fuzileiros à base da mari-
nha. Nada de novo em Bissau, o ataque viria no dia de Ano Novo.
Combinámos o reencontro das tropas, no dia 31 de Dezembro, pelas
18h00 no QG. Os “fuzas” trariam um “RPG2”, à cautela.
No dia seguinte, quando cheguei à minha secção, já lá estava o
comandante Nemésio, com um sorriso sacana. Percebi logo que ia
haver merda.
— Sim senhor, alferes Viegas, estava na messe da marinha e sou-
be que uns fuzileiros especiais, mais um alferes do comando-chefe,
estavam numa casa de meninas, “armados até aos dentes”, prestes a
começarem a terceira guerra mundial… É verdade?
— Senhor comandante, íamos apanhar o IN com a boca na botija.
— Ah, por isso foram à casa das raparigas, as suas amigas se-
leccionadas. Você é um perigo. Agora, você e o subtenente Labare-
das juntos, são pior que napalm. O nosso tenente-coronel quer falar
consigo, prepare-se.
Bati à porta do tenente-coronel, que me mandou entrar com um
ar de gozo.
— Chegou o herói do Pilão, alferes Viegas, o homem de quem se
fala, o nosso general já sabe de tudo, ou lhe dá um louvor ou uma
porrada, a ver vamos.
— Meu tenente-coronel, atacaríamos o IN quando lançasse os
morteiros, éramos vinte e um homens, bem armados e motivados.
— Claro, presumo que a motivação eram as raparigas descasca-
das. Já o avisei que não está em Coimbra.
— Meu tenente-coronel, queria pedir autorização para repetir a
operação no fim do ano, desta vez é que vai ser.
— Ó homem, claro que não autorizo mas, também não vou proi-
bir. Se quer ser herói, vai à civil e, em queda livre. Se tiver mortos,
volta para o mato, rumo ao sul.

140
Os Soldados Perdidos

— Obrigado, meu tenente-coronel, vai orgulhar-se de nós.


— Não me agradeça, o esqueleto é seu, e desses malucos que co-
manda, você não vai levar alferes sem experiência de guerra, isso é
que está proibido. Boa sorte!
Estranhamente, o general não me chamou, estava tudo bem, tal-
vez tenha compreendido a minha atitude. Nunca o saberia, porque o
grande homem não falava com subalternos.
Quando cheguei à 2ª Rep, dirigi-me ao alferes Branco.
— Branco. Não podes ir na próxima, ordens do tenente-coronel
e, avisa os teus amigos das outras repartições que, se não passaram
pelo mato, não podem participar.
— Não é justo, Viegas, que merda.
— O homem tem razão, não quero acidentes e, assim fica tudo
bem. Comemoraremos na mesma, mas no dia 1 de Janeiro.
— Mas ficas com menos dez homens.
— Digo ao Labaredas para levar mais uns “fuzas”.
Voltei à rotina da repartição, nunca mais chegava o fim do ano.
Entretanto apareceu um cabo do hospital militar a pedir para falar
comigo, com urgência.
— Alferes Viegas, o seu amigo médico, alferes Pinto, está interna-
do com gravidade. Pediu que o fosse visitar, com urgência.
— O caso é grave?
— Gravíssimo, está na psiquiatria.
— Diga-lhe que hoje à tarde lá estarei.
— Obrigado, alferes, ele vai gostar de o ver.
Pedi autorização ao comandante Nemésio para chegar só às
15h00, o que me foi concedido, de imediato.
Quando cheguei ao Hospital Militar, deparei com a paisagem do
costume: homens sem pernas e sem braços, em cadeiras de rodas,
pelos longos corredores dos seus calvários. Uma imensa tristeza in-
vadiu-me o espírito. Podia ser eu.
Cheguei à psiquiatria quase em passo de corrida, entrei numa

141
João Viegas

imensa enfermaria, que alojava mais de trinta homens, uns a grita-


rem, outros a falarem para as paredes, outros só a chorarem, enfim,
a degradação humana desta guerra estúpida, sem fim à vista.
Destacava-se lá no fundo da imensa sala, um jovem esguio e pele
de cera, que quando me viu, correu a gritar: “meu irmão”! Abraçou-
-me a chorar: “safei-me! filhos da puta”!
— Pinto, meu irmão, ainda bem que te safaste, temos que come-
morar.
— Viegas, não posso falar muito, os cabrões controlam-me, que-
rem saber se estou mesmo doido, ou se é tudo a fingir...
— Tem calma, meu irmão, vais para casa mais cedo, as festas fi-
cam para depois.
— Tens whisky?
— Trago-te amanhã, daquele da marinha, com vinte anos.
— Boa, Viegas, o cabrão que te foi substituir é um fascista de mer-
da, só fez merda com os teus soldados.
— Já sei de tudo, vai ser fodido em breve.
— Não te esqueças da bebida, vens a que horas?
— À hora de hoje, ou seja, às 14h00, trago-te a bebida num bor-
nal. Sentes-te bem?
— Põe-te no meu lugar, um oftalmologista a cortar pernas e bra-
ços, cabrões.
— Tens razão, são umas bestas que só nos querem matar. Queres
que te traga almoço?
— Um cozido à portuguesa, se puderes.
— Está combinado, venho ter contigo e trago o almoço: cozido à
portuguesa e um tinto especial, para além do teu whisky.
— Boa, meu irmão, ajuda-me a sair daqui.
— Pinto, é só dizeres o que precisas, foder estes gajos é comigo.
Vou pedir ajuda ao meu tenente-coronel, é o chefe da 2ª Rep, um
homem do general e por conseguinte importante.
— Faz isso, camarada e meu irmão, nunca te esquecerei.

142
Os Soldados Perdidos

Quando saía, um cabo enfermeiro interpelou-me.


— Senhor alferes, conhece o alferes Pinto?
— Estive com ele no mato, sou oficial dos serviços secretos mi-
litares, quem o tratar mal, segue directamente para a pior zona de
guerra. Confio em si, cabo, para me informar do estado dele, diaria-
mente. Amanhã, venho cá almoçar com ele, numa zona tranquila,
sem ninguém à volta.
— Esteja descansado, senhor alferes, o alferes Pinto é especial, já
percebi.
— Não esqueça, protegido pela 2ª Rep Alferes Viegas.
Na tropa, quem não tem padrinhos é lixo, ou quase. Agora, o Pin-
to era da confiança da 2ª Rep, e nem os oficiais superiores se queriam
meter com esta gente.
Quando cheguei à 2ª, dirigi-me ao comandante Nemésio.
— Senhor comandante, o meu amigo, alferes Pinto, médico oftal-
mologista, a cortar pernas e braços, no mato, durante dois anos, está
mal. Internado na psiquiatria, só lida com homens aos gritos e a ba-
ter com as cabeças na parede. Se não for enviado para Lisboa, temo
que se suicide. Peço-lhe, por favor, que fale com o nosso tenente-
-coronel para que ele seja evacuado com urgência, para Lisboa.
— Alferes Viegas, vou falar com o nosso chefe, esteja descansado.
Passada meia-hora, o comandante ordenou-me que fosse falar
com o tenente-coronel.
— Quando bati à porta, o grande chefe aguardava-me, sempre
com um sorriso enigmático.
— Alferes Viegas, recebi a sua pretensão quanto ao seu amigo
médico. A partir de hoje, quero-o a almoçar com o homem, até ele
embarcar para Lisboa. Depois chame-me fascista...
— Meu tenente-coronel, nunca lhe chamei fascista.
— Não chamou, mas pensou. Escolha um restaurante simpático
e dê uma volta pela cidade. Gosto dessa atitude solidária. Se calhar
é por ser assim que o nosso general simpatiza consigo. É um sacana

143
João Viegas

com sorte. Vamos a ver se a dita sorte não acaba na passeata pelo
Pilão, no fim do ano. Está dispensado, boa sorte, e não pregue uma
bebedeira no seu amigo.
— Meu tenente-coronel, posso ir já ter com o alferes Pinto?
— Claro, homem, e obrigue-o a vestir a farda, não quero alferes a
passear de pijama, pela cidade.
Arranquei quase em passo de corrida, rumo ao hospital militar.
Quando lá cheguei, já deviam saber quem eu era, pois “bateram-me
a pala” em todos os acessos.
O Pinto já me esperava, no longo corredor da ala psiquiátrica.
Deu-me um abraço forte.
— Conseguiste Viegas!?
— Até à tua partida para Lisboa, venho buscar-te para almoçar.
Ordens de deus. Nunca mais voltas a comer esta merda que aqui te
dão. Hoje fui dispensado do serviço, só para te acompanhar numa
visita guiada. Amanhã, logo se vê.
— Porque fazes isto?
— Porque sou teu irmão, e não me esqueço o que fizeste por mim,
no mato.
— Onde vamos almoçar?
— À Casa da Beira, o melhor sítio para se comer, em Bissau.
Quando chegámos, a festa do costume, o senhor Costa e a dona
Ermelinda a cumprimentarem-me.
— Senhores alferes, é o cozido à portuguesa?
— Claro, com um vinho alentejano, do melhor.
O Pinto ria das nossas aventuras no mato. Era um prazer ver o
meu amigo a rir.
— Viegas, quando pensas que me vão mandar para casa?
— Espero que até ao fim do ano estejas do outro lado, a dormir na
tua cama. O meu chefe é o segundo no comando geral, logo abaixo
do general… Estás safo!

144
Os Soldados Perdidos

— Viegas, não sei como te agradecer.


— Pinto, salvaste-me a vida no mato, não há dívidas.
— Viegas, somos irmãos de guerra.
— Hoje ainda vou confirmar o dia exacto da tua partida.
— É assim tão cedo?
— É, mentaliza-te que quando o meu chefe quer uma coisa, é
para o dia seguinte.
— Oxalá seja assim.
Quando cheguei ao comando-chefe, tinha a visita do furriel Trin-
dade, que já regressara de férias. Abraços e mais abraços. Dei-lhe as
novidades sobre o Pinto e, convidei-o a acompanhar-me na minha
visita diária. Ficou radiante.
Seguimos os dois para o hospital militar. Quando o Pinto viu o
Trindade, agarrou-se a ele, a chorar. Eram emoções a mais.
— Pinto, estás em casa antes do fim do ano. Amanhã, dia 30 de
Dezembro, embarcarás para Lisboa. O meu tenente-coronel é um
homem de palavra.
— Só acredito quando estiver no avião. Obrigado camarada Vie-
gas.
— Meu irmão Pinto, fazes falta nos hospitais. Eu, por agora, sou
só um soldado cansado de guerra. Vamos almoçar e beber uns copos
valentes.
Seguimos para a Casa da Beira, desta vez era uma caldeirada de-
liciosa, acompanhada por um verde tinto, Ponte de Lima, a sair do
frio.
Quando disse ao snr. Costa que era a despedida do alferes médico
Pinto, ofereceram-nos o vinho.
— Pinto, a casa oferece o vinho, partes amanhã para Lisboa, feli-
cidades para ti e para a tua carreira de médico.
— Trindade, nós temos que combinar a tua actuação no dia 31 de
Dezembro, o IN vai atacar Bissau, preciso de ti e de mais uns rangers
que me arranjares.

145
João Viegas

— Viegas, eu arranjo mais uns sete rangers, diz só qual é o local


da concentração.
— QG, às 17h30, dali partiremos para o Pilão, os fuzileiros já
estarão no objectivo.
— Trindade, vamos passear com o Pinto. Ele hoje vai dormir no
meu quarto, no QG. Amanhã, vou levá-lo de jeep ao aeroporto, para
embarcar no DC6, às 08h00.Vamos passar no hospital militar para
recolher as suas coisas.
— Viegas, só tenho dois sacos da tropa, com roupa e outras mer-
das. Agradeço-te salvares-me a vida.
— Somos irmãos de guerra, hurra...
Depois de um longo passeio pela cidade, bebemos mais umas”
frescas”, junto ao mar, o Trindade seguiu para recrutar os sete ran-
gers, fomos ao hospital militar buscar os destroços do Pinto, apanhá-
mos um táxi para o QG, o Pinto sorria como um menino, bebemos
mais uns copos, sempre cerveja, aterrámos na messe de oficiais do
QG, limpámos as vistas numas miúdas bonitas, filhas de oficiais su-
periores, jantámos uma refeição ligeira, e, deitámo-nos calmamente,
nas camas militares, do imenso quarto que me estava distribuído.
No dia seguinte, o despertador tocou às 06h00. Levantámo-nos,
chamei um táxi e às 7h30 já aguardávamos o voo do Pinto. Quando
o vi partir às 8H00, em ponto, saiu-me um peso de cima dos ombros.
O meu amigo estava a salvo.
Quando cheguei ao comando-chefe, já lá estava o Trindade, para
me dar a notícia que tinha arranjado sete rangers que se comprome-
tiam a ir ter ao QG, no dia seguinte, pelas 17h30, com todo o equi-
pamento necessário, inclusive um RPG 2. Com os dois grupos de
combate prometidos pelo Labaredas, ou seja, 14 fuzileiros especiais,
já tínhamos por isso um grupo de vinte e três homens, com saudades
de guerra.
Apresentei o furriel Trindade ao comandante Nemésio que sorriu
e aproveitou para dizer umas larachas.

146
Os Soldados Perdidos

— Este é que é o famoso ranger Trindade, o braço direito do alfe-


res Viegas, na mata?
— Senhor comandante, somos uma força imbatível!
— Alferes, não há forças imbatíveis, é a adrenalina que os faz cor-
rer para a morte!
— Senhor comandante, a morte connosco anda distraída, somos
velhos amigos...
— Pois é alferes, até um dia.
— Senhor comandante, desta vez, só profissionais, não há alferes
periquitos.
— Só está a cumprir ordens do nosso tenente-coronel, e, ai de si,
se falha.
— Certamente, senhor comandante.
— Viegas, preciso do próximo relatório da operação na Guiné-
-Conakri.
— Senhor comandante, hoje ficará pronto.
— Trindade, encontramo-nos às 17h00, aqui. Depois, falaremos
sobre a operação de amanhã.
Quando o meu amigo saiu, comecei a ler todas as mensagens
sobre Cumbijada, pois não podia haver falhas. Embrenhei-me no
trabalho e comi qualquer coisa no serviço. O IN andava muito ac-
tivo na zona e qualquer falha era a morte dos comandos africanos.
Traduzi do francês mais de cinquenta mensagens, e percebi que a
guarnição mudava constantemente e que chegou a ter uma centena
de homens. A partir de certa data ficou reduzida a trinta. Mas esta
última informação tinha que ser devidamente confirmada.
— Então, alferes, não vai almoçar?
— Senhor comandante, comerei qualquer coisa por aqui; tenho
trabalho atrasado e gostaria de o terminar antes do relatório.
Para que o ataque corresse bem, tinha que ser efectuado dentro
de dois dias, no máximo. Reuni os comprovativos para o relatório e
iniciei a sua redacção.

147
João Viegas

Quando o comandante chegou, depois do almoço, já tinha as


conclusões para lhe apresentar.
— Alferes Viegas, fico contente por vê-lo empenhado neste rela-
tório.
— Comandante Nemésio, se eu falhar morrem homens nossos. O
ataque tem que ser realizado dentro de um dia ou dois, mais do que
isso é muito perigoso. A base IN é muito movimentada, e, tem esta
guarnição há já uma semana. É o momento para atacar.
— Reúna todos os papéis para levar ao nosso chefe.
— Dentro de uma hora está pronto.
Quando entreguei o relatório, o comandante foi entregá-lo ao
chefe, para ele despachar.
— Viegas, o chefe quer falar consigo.
— Alferes Viegas, porque pensa que o ataque tem que ser já?
— Meu tenente-coronel, é uma base de passagem de tropas. Neste
momento estão lá trinta homens, para a semana, ninguém sabe.
— Confio em si, vou enviar o relatório aos comandos. Entretanto,
quero fazer-lhe umas perguntas.
— Às suas ordens, meu tenente-coronel.
— Continua com essa ideia do Pilão, no fim do ano?
— Meu tenente-coronel, sabemos que um dos pontos do ataque
é precisamente o Pilão.
— Você tem cinco filhos, não tem medo de morrer?
— Tenho, mas só por azar morreria agora. Além disso, confio nos
homens que estarão comigo, 14 fuzileiros especiais e 8 rangers, uma
força imbatível.
— Já sabe, não aprovo a operação e, se for ferido, volta para o
mato.
— Calculava isso, mas nada de mal vai acontecer.
— Quer ganhar esta guerra?
— Meu tenente-coronel, ninguém vai ganhar esta guerra, temos
mais homens e, eles têm melhores armas e o povo a apoiá-los.

148
Os Soldados Perdidos

— Cuidado, alferes, essas palavras podem ser a sua morte...


— Foi assim que o grande exército francês foi derrotado no Viet-
nam, por um povo que cultivava arroz, e só queria a independência
do opressor francês.
— Você é comunista?
— Não, meu tenente-coronel, sou só um burguês com ideias pró-
prias.
— Pode ir e, já agora, boa sorte para amanhã. Vou já enviar o
relatório para os comandos.
Quando cheguei à minha secção já o furriel Trindade me aguar-
dava, acompanhado por outro ranger, para conversarmos, enquanto
jantávamos.
— Alferes, apresento-te o Manuel preto, um cabo ranger, lixado
da cabeça, da zona de Coimbra, melhor que qualquer guerrilheiro.
— Prazer, cabo Manuel, quem está com o meu furriel é gente séria.
— Alferes, o Trindade fala muito de si, devia ter sido ranger...
— Camarada, não tinha cabedal para isso, sou só um miserável
alferes de Mafra.
— Alferes, foi ferido em combate e ficou no mato, perto dos seus
homens, não é para todos.
— Só por uma razão, o whisky era melhor no mato, o resto, pura
sorte.
— Alferes, estou na operação ano novo, com o furriel Trindade.
Os outros seis camaradas, vêm mais logo.
— Senhor cabo, a operação não está completamente autorizada
pelo comando. Se alguma coisa correr mal, volto para o mato...
— Ouvi dizer que vêm mais 14 fuzileiros especiais, nada vai cor-
rer mal.
— Esperemos que não, senão estou fodido.
— Alferes estamos nisso, nada vai correr mal.
— Sendo assim, vamos comer à Casa da Beira, o melhor restau-
rante de Bissau.

149
João Viegas

— Viegas, tens uma equipa de luxo, os gajos não têm hipótese.


— Trindade, espero bem que sim, senão estou arrumado, pro-
messa feita pelo meu chefe.
— Aonde nos encontraremos, Viegas, no QG?
— Sim, todos à civil, com os bornais e respectivo material de
guerra; não pode haver confusões.
— Viegas, às 17h30, no QG, os oito rangers apresentar-se-ão ao
serviço.
— Até lá, vamos beber uns copos juntos; espero que não seja pela
última vez.
— Camarada, essas suposições dão azar…
— Está bem, Trindade, azar é um gajo cair de costas e partir algo
fundamental.
— Bebemos uns “finos” gelados e, seguimos para o QG.
Quando chegámos, já os outros sete rangers estavam na esplana-
da do bar de oficiais, a beber umas cervejolas geladas. Começámos
a delinear os planos de ataque para a operação da noite, só faltando
preparar a operação com os fuzileiros, mas estava na hora de partir-
mos para o objectivo. Cada um pegou no seu bornal, cheio, e parti-
mos em direcção ao Pilão.
Meia hora depois, chegámos à casa das miúdas, onde os “fuzas” já
estavam em amena cavaqueira. Os cumprimentos do costume, mais
uns abraços, o Labaredas com um copo cheio de whisky para come-
morar a preparação da batalha que se aproximava.
Servi-me de um copázio e começámos a preparar o plano de ba-
talha, ficou decidido que quando víssemos um morteiro em posição
de fogo, de imediato o destruiríamos, assim como a sua guarnição.
Depois, seguiríamos para o comando-chefe, para ajudar na defesa
do quartel.
Desta vez os “fuzas” tinham trazido o jantar, composto de cinco
quilos de camarão grelhado, mais uma dúzia de sapateiras e umas
cem ostras. Um manjar dos deuses. Havia champanhe no frigorífico.

150
Os Soldados Perdidos

O Labaredas fez um rápido apelo aos homens.


— Camaradas, se houver baixas, o alferes Viegas volta para o
mato, cuidado com os malucos. Vamos começar a comer e a beber,
estou com uma sede dos diabos. E a festa começou com as ostras e
dezenas de cervejas geladas. Estava lançado o mote para a bebedeira
que vinha a caminho.
— Camaradas, não acelerem muito, disse eu, temos uma batalha
pela frente, com resultados imprevistos, vamos devagar. Se o ataque
for antes da meia noite, saímos mais cedo.
— Hurra! Gritaram todos em uníssono.
As miúdas pareciam raparigas felizes, dançavam sempre a rir, a
guerra estava longe e perto, hoje era um dia de festa.
Ostras com champanhe eram um aperitivo para guerreiros lu-
náticos, que só aguardavam a hora de entrarem em combate. A Lua
cheia jogava a nosso favor, os atiradores seriam facilmente desco-
bertos.
Às 22h00 ninguém estava com os copos, os camarões grelhados
eram comidos com prazer, os gritinhos das miúdas animavam a ra-
paziada juntamente com os whiskys velhos. A festa estava no auge,
pressentíamos o perigo mas já ninguém ligava. Eis que, vem uma
das nossas amigas com a notícia de que “eles” tinham chegado. A
porrada iria começar.
— Camaradas, armas preparadas, vai sair uma secção de rangers,
com um RPG e AK 47, quando virem o morteiro a ser instalado, re-
bentem com o grupo e recolhem à base. Disse o Labaredas, sorrindo.
Às 23h00 começou o ataque das nossas tropas e os alvos destruí-
dos; os ”fuzas” a ocuparam a rua sem qualquer reacção; em forma-
ção de combate saímos da casa e retirámos para o comando-chefe,
que distava quinhentos metros.
Lá chegados, bati ao portão que se encontrava encerrado, identi-
fiquei-me e entrámos em formação. O alferes de serviço agradeceu o
reforço, pois tinha poucos homens e mal preparados. Nesse preciso

151
João Viegas

instante, caiu uma morteirada no jardim do general, um espectácu-


lo, flores a voarem com a terra arrancada.
— Camaradas, abriguem-se, vai haver mais morteiradas, gritei.
Caíram mais dois morteiros na zona do jardim, sem baixas. Está-
vamos na zona do bar, a lutar com uns copos amaldiçoados.
A guarnição do comando-chefe era só de dez homens, com um
grupo de combate da nossa qualidade, todos já riam e bebiam uns
copos, muitos copos, afinal era a passagem do ano para 1974.
No posto de rádio circulavam notícias de baixas, na cidade, tam-
bém diziam que o grupo de combate do alferes Viegas tinha des-
truído um morteiro 122 no Pilão. As notícias corriam rápidas. O
Labaredas bebia uns valentes copázios de whisky, enquanto berrava:
— Camaradas, o alferes Viegas vai ser condecorado, e, se não for,
é porque estes gajos são uns sacanas. Hurra a nós, que se lixe a “chi-
calhada”.
— Hurra... gritaram como um trovão.
A guarnição do comando-chefe olhava-nos assustada. Quem
eram estes militares barulhentos, que não temiam a morte e anda-
vam de arma em punho num dia destes?
— São tropas especiais e um alferes dos serviços secretos, gente
perigosa e louca.

Já era dia 1 de Janeiro de 1974, um ano estranho, que havia come-


çado muito bem.
Às 08h00 estava na secção, tendo sido o primeiro a entrar, mas
pudera, não me tinha chegado a deitar. O comandante Nemésio che-
gou, cumprimentou-me, e sorridente:
— Parabéns, alferes, a sua operação foi um êxito, o nosso tenente-
-coronel quer falar consigo, o louvor é certo.
— Senhor comandante, não quero louvores, fiz o que tinha a fazer.
— Se ficar no exército, tem promoção assegurada.
— Senhor comandante, vou voltar à Universidade, quero reabrir

152
Os Soldados Perdidos

o CITAC que foi fechado pela PIDE, em 1971. E concluir o curso de


Direito.
— A vida é sua, devia aproveitar esta carreira.
— Estou farto de guerra e de burocratas.
— Como eu o compreendo!
— Senhor comandante, se o regime não mudar, isto vai acabar
mal, muito mal.
— Não o quero a falar de política, na repartição
— Esteja descansado, senhor comandante.
O furriel Francisco disse-me que o chefe queria falar comigo.
Entrei no gabinete do chefe, que sorriu abertamente, para mim:
— Parabéns, alferes, foi um êxito a sua louca operação, o nosso
general ficou satisfeito.
— Meu tenente-coronel, o pessoal era do melhor, fuzileiros e ran-
gers, não tinham hipótese de responder.
— A propósito, porque veio defender o comando-chefe?
— Porque eles o iriam atacar. E não havia defesa capaz.
— Ainda não sei se você é só louco, ou sortudo.
— As duas coisas, meu tenente-coronel, sorte mais sorte... A pro-
pósito, devíamos atacar, agora, Cumbijada, é a altura ideal.
— Amanhã será o ataque.
— Meu tenente-coronel, o IN está na mesma posição, não tem
hipóteses.
— Será amanhã, alferes.
— Alferes, agora vai levar a ordem de batalha ao capitão dos co-
mandos. Entregando-me o documento secreto.
Fui ter com o condutor Mamadu que me levou ao batalhão de
comandos. Aí encaminharam-me ao capitão Santos, que me cum-
primentou com um sorriso rasgado.
— O Alferes de quem se fala, está a tomar-lhe o gosto. Fuzileiros
e rangers numa operação impensável.
— Meu capitão, aqui está a ordem para amanhã.

153
João Viegas

— Amanhã, então, terá lugar a operação Cumbijada. Você sabe


que o sargento Abibo o tem em grande conta?
— Meu capitão, o sargento Abibo é um grande homem.
— Alferes, é verdade que a sua amiga do Pilão, uma tal Bela, foi
presa pela PIDE pelo inspector que você escorraçou de Cobumba?
— Correcto e afirmativo.
— Esteja descansado que a rapariga está viva. Maltratada, mas
viva. Esses gajos são umas bestas.
— Conheço bem essas bestas.
— Alferes, temos informadores no campo de concentração, esteja
descansado.
— Agradeço, meu capitão.
— Alferes, não faça merda com o tal inspector. Eu sei o que lhe
apetece fazer, mas contenha-se.
— Por minha vontade já tinha tomado a base deles, de assalto.
— Tenha calma, pode haver novidades, em breve, depois pode
fazer o que lhe vai na alma.
— Oxalá venha o dia, depressa.
— Calma, homem, eu não lhe disse nada.
— Pensei...
— Está dispensado, não pense demais, faz-lhe mal à saúde.
— Obrigado, meu capitão.
— Está a agradecer-me por nada.
— “A sorte protege os audazes”, é a divisa dos comandos, não é?
— Claro que é! Cumprimentos, alferes.
Havia qualquer coisa no ar, pressentia-o. Será que os militares de
carreira já estavam fartos desta guerra?
Se houvesse um golpe de estado seria com os militares spinolis-
tas, os únicos com comando unificado. Com o general Spínola na
prateleira, por não ter aceite o cargo de ministro do ultramar, tudo
era possível, ninguém sabia o que poderia sair da cabeça do general
mais importante do regime. Uma coisa era certa, ninguém se atrevia

154
Os Soldados Perdidos

a calar o general. A uma ordem sua, as tropas da Guiné levantar-se-


-iam todas. O difícil seria fazer chegar os 45.000 homens a Lisboa. E
eu a sonhar com revoltas no meu país... E porque não será isto pos-
sível? A Guiné a atolar-se numa guerra que não avançava um metro,
o IN às portas de todos os quarteis, os soldados desmoralizados, os
comandantes a sentirem o fim de qualquer coisa, enfim, ganhar a
guerra a esta guerrilha bem conduzida, com material novo, melhor
que o nosso, era irreal. Só grandes batalhas, em terreno aberto, nos
podiam dar a vitória. Mas o IN actuava nas emboscadas, e quando se
atrevia a enviar mais tropas, em terreno aberto, levava com o napalm
em cima e tinha que fugir para zonas seguras. Era esta guerra suja
que não parava, enquanto os interesses económicos continuassem.
Os soldados eram só “carne para canhão”!
Quando cheguei à Repartição fui informado do sucesso da ope-
ração Cumbijada.
— Alferes, disse-me o comandante Nemésio, mais uma vitória.
Está de parabéns.
— Sr. Comandante, a vitória foi dos comandos africanos, como
é hábito.
— Nunca esqueça que é você que as prepara.
— Mas eu não tenho a coragem dos comandos, nem a prepara-
ção.
— Alferes, o capitão dos comandos africanos, está a chamá-lo ao
batalhão.
O Mamadu conduziu-me ao batalhão de comandos, onde o capi-
tão Santos me esperava.
— Mais uma operação bem delineada, parabéns, alferes. Chamei-
-o cá para lhe dar informações sobre a sua amiga Bela, que está presa
no ilhéu das Galinhas. Existe lá um destacamento do exército, com
seis homens, comandados por um furriel. Este homem tens-nos in-
formado sobre o estado da miúda, inclusive fornece-lhe ração de
combate. Ao contrário das ordens dos sacanas dos “pides”, ela e mais

155
João Viegas

duas, estão protegidas, vão comendo e bebendo, todos os dias. Estou


a pensar infiltrar um comando africano na tabanca e à mínima tenta-
tiva deles para matar as raparigas, matará ele os canalhas e foge; tem
um rádio banana para nos informar diariamente. E como o chefe da
tabanca também é da PIDE, se for preciso, mata-os a todos. Todos
no batalhão o respeitam, pois você tem salvo muitos comandos afri-
canos. O nosso coronel está a par da situação e autoriza a operação.
É o mínimo que podemos fazer por si, um verdadeiro camarada de
guerra. A sua repartição não tem que ser informada!
— Obrigado, meu capitão, estou solidário convosco e as raparigas
agradecem.
— Não diga a ninguém o que veio cá fazer. Continuamos a con-
fiar na sua competência. Boa sorte, alferes.
Saí do batalhão de comandos mais tranquilo. Trazia boas notícias
para as prisoneiras no campo de concentração da PIDE. Pelo menos
não morreriam de fome. Os comandos eram uma tropa com grande
espírito de corpo, só assim se percebiam os resultados positivos das
suas operações.
Quando cheguei à Repartição, tinha a visita do furriel Trindade.
— Viegas, o alferes que te substituiu, já coxeia, um tiro num pé. A
companhia vai embora em Março, pelo que depois venho cá visitar-
-te.
— Venha daí um abraço e muita sorte para a partida. Ainda cá
fico até Junho. Vamos almoçar mais uma caldeirada ao sítio do cos-
tume?
— Claro, meu amigo, comer e beber para adiar a morte...
Quando chegámos ao restaurante, não vimos o “pide” Palma,
possivelmente ocupado a torturar algum desgraçado.
— Trindade, vou chamar o sr. Carlos Correia, o dono do restau-
rante que, em 1967 pertenceu à 3ª companhia de comandos, sediada
em Aldeia Formosa. Durante um ataque do IN, com um bi-grupo,
ele salvou a companhia quando começou a disparar o morteiro 81,

156
Os Soldados Perdidos

sozinho, de tal forma que tiveram que o tirar do local, pois já tinha
o braço queimado depois de dezassete morteiradas. Mais uma e o
morteiro rebentaria. Há heróis destes por toda a parte mas se não
fosse o Spínola a dar-lhe um louvor já ninguém se lembraria.
— Viegas, já estou a ficar como tu, a interrogar-me sobre a utili-
dade desta guerra!
— Só interesses económicos, os bancos a roubar e o regime a
aguentar-se no fio da navalha, tudo o resto é mentira, a pátria deles
são os milhões que roubam. A nossa pátria, é sangue derramado, os
mortos rapidamente esquecidos, os estropiados físicos e mentais, os
anos de vida perdidos, para nada, tudo em vão, só o horror que nos
rodeia e, nos envenena a alma.
— Dou-te razão naquilo que dizes...
— Trindade, vou pedir-te que não levantes mais minas. Um dia
destes vais pelos ares e ninguém se vai lembrar de ti. Depois é o
costume, a tua família vai receber umas pedras no caixão e, assunto
arrumado.
— Tens razão, Viegas, vou-me deixar disso, eles que as levantem.
— É assim mesmo, camarada, eles que as levantem... Ainda por
cima agora tens mulher. Tem juízo, esta já não é a nossa guerra, é
dos pançudos que enchem as carteiras com o nosso trabalho. Basta!
Até ao fim da comissão, na mata, não faças merda, evita combates
inúteis, vem para o quartel de Bissau e espera a partida para casa. Já
lutaste demais.
— Não há dúvida que és um bom amigo, já agora, acompanha-me
à base da marinha para apanhar a próxima LDG para Cobumba.
— Claro que sim, vamos beber um último whisky. À nossa, ca-
marada!
O Trindade entrou na velha LDG “Bombarda”, rumo a Cobum-
ba, o maldito destino dos últimos guerreiros, afinal os gladiadores
do império decadente. Rezei para que nada lhe acontecesse. “Adeus,
camarada, até ao meu regresso...”. Demos um abraço de irmãos de

157
João Viegas

guerra. Saúde e alegria.


— Não arranques mais minas, sacana, safa-te desta merda, volta
para casa.
— Está descansado, camarada, que as tirem eles.
Demos mais um abraço, como se fosse o derradeiro, ele embar-
cou, juntamente com mais de cem homens, tristes, que voltavam
para a guerra. Rostos fechados, olhares no infinito, todos sonhavam
com o fim da tragédia, que nunca mais acabava.
Fiquei no cais até ao toque de largada da LDG. O Trindade a aba-
nar o quico do camuflado.
— Adeus, meu amigo, regressa são e salvo e pira-te para a tua
casa.
Em Março a companhia embarcaria para Lisboa. E eu esperaria
para dele me despedir cheio de saúde e alegria.
Regressei ao comando-chefe, com uma certa nostalgia, desejando
que tudo corresse bem e a rapaziada se safasse sem mais problemas.
Quando me sentei à mesa de secretária, o comandante Nemésio re-
parou na minha tristeza.
— Então, alferes Viegas, está triste com a partida do seu amigo
furriel?
— Snr. Comandante, tenho um mau pressentimento, não sei o
que é!
— Então os bravos da “operação fim do ano”, também têm medo?
Só se for da própria sombra.
— Comandante, tenho medo pela loucura do meu amigo. Tudo
pode acontecer com aquele camarada, já está passado há muito tem-
po.
— Tenha calma, homem, não são eles que dizem que “a sorte pro-
tege os audazes”?
— São, mas os audazes também são abatidos...
— Anime-se, comece a preparar a próxima operação. Estude o
alvo e todas as circunstâncias, estamos em guerra.

158
Os Soldados Perdidos

— Snr. Comandante, vou analisar os movimentos do IN, depois


faço o relatório. Detectei que o IN está muito movimentado junto ao
rio Cacine, possivelmente vai haver grande ataque na zona.
— Alferes, veja-me isso no prazo de dois dias, o chefe quer o re-
latório já.
— Snr. Comandante, depois de amanhã, a missão está cumprida.
— Furriel Francisco, arranja-me todas as mensagens da zona do
rio Cacine, tenho a máxima urgência. Dentro de duas horas, quero
todas as mensagens.
— Ok, Alferes.
— Furriel Francisco, isto tem urgência máxima, a operação é para
este mês.
Quando comecei a ler as mensagens IN, cheguei à conclusão que
havia cinco bi-grupos na zona, ou seja mil homens, pelo menos, o
que inviabilizava qualquer operação militar na área. Comuniquei ao
meu comandante que foi informar o tenente-coronel.
— Alferes, bom trabalho, acabou de salvar mais umas dezenas
de comandos africanos. Todas as operações estão canceladas, até a
situação melhorar. Parabéns pela sua actuação. Venha daí, comigo,
para explicar a situação ao nosso coronel, chefe de operações.
Na enorme sala de operações, com mapas da Guiné-Bissau e das
fronteiras com o Senegal e a Guiné-Conakri, estavam todos os ofi-
ciais que conduziam a guerra em todas as frentes. Aproximou-se o
coronel, chefe da repartição que, com um sorriso franco se dirigiu
a mim.
— O famoso alferes Viegas. Se este relatório estiver certo, vai ser
um corrupio em todos os quarteis da zona Sul fronteiriça.
— Meu coronel, os meus relatórios não podem falhar, o IN tem
mais de mil homens na área e a todo o momento varrerá toda a zona.
— Confio em si, enviem mensagens urgentes para todos os quar-
teis do perímetro.
— Só uma pergunta, alferes, como tem acesso às informações?

159
João Viegas

— Meu coronel, as mensagens são todas em francês, não há có-


digos.
— Alferes, já sei que tem muitos amigos nos comandos.
— Meu coronel, são tropas excepcionais, merecem todos os lou-
vores e medalhas, pelas operações que realizam.
— Alferes Viegas — disse-me o tenente-coronel — meta-se no
jeep e vá ao batalhão de comandos, pois o coronel quer falar consigo.
Cheguei num ápice, o coronel esperava-me e recebeu-me, efusi-
vamente.
— Alferes, você acabou de salvar mais um destacamento de co-
mandos africanos, quero agradecer-lhe, pessoalmente.
— É o meu trabalho!
— Você é um enigma para muita gente, para mim é um homem,
vindo directamente de Coimbra, com a cabeça cheia de revoluções,
mas no fundo, é um verdadeiro oficial do exército português.
— Meu coronel, depois da guerra só quero voltar para Coimbra,
tenho lá a minha vida, cinco filhos e a mulher.
— Alferes, vá dar uma palavra ao capitão Santos, ele está à sua
espera.
Quando o impedido me levou ao gabinete do capitão, este levan-
tou-se e deu-me um forte aperto de mão.
— Alferes Viegas, mais uma vez você trabalhou bem. Tenho no-
tícias da sua amiga Bela, que está a alimentar-se e a recuperar muito
bem. Nada de mal lhe irá acontecer. O nosso homem na tabanca está
atento. Se tivermos hipóteses extraímos a rapariga e vamos enviá-la
para qualquer destino a combinar.
— Capitão, agradeço a proposta mas é impossível, seria logo apa-
nhada, os “pides” são cães de caça e nunca deixam escapar a presa.
— Tem razão, alferes, vamos esperar por melhores dias, até lá dei-
xaremos tudo como está.
— Meu capitão, vou voltar à repartição, obrigado por tudo.
— Alferes, continue o seu bom trabalho, um dia destes vou con-

160
Os Soldados Perdidos

vidá-lo para beber um copo, algures na cidade.


— Certamente, meu capitão, é só combinar o dia.
Estávamos no fim de Janeiro, o mês seguinte traria novidades.
Em Bissau falava-se que o general Spínola estava de castigo, mas
continuava vivo e de boa saúde. Ou seriam só teorias da conspira-
ção?
Todos rezávamos para que o velho general acordasse e agitasse as
águas mornas onde adormecíamos estupidamente.
E a bomba rebentou quando o general publicou o livro “Portugal
e o Futuro”, um escândalo total com a suspensão do Spínola e do
chefe de estado-maior, general Costa Gomes, que autorizou a publi-
cação do livro. Em síntese, o general defendia a tese de que não ha-
via solução militar para a guerra colonial, apenas política. Esta tese
era defendida por quase todos os oficiais superiores spinolistas, que
eram a grande maioria, na Guiné. Eu próprio a corroborava, assim
como todos os alferes que conhecia.
Em todas as repartições se falava no livro, inclusive a 2ª Rep já
tinha o dito documento, todos o queriam ler e comentar, já se sentia
o vento da mudança, a guerra não ia aguentar muito mais.
— Alferes Viegas, bem me dizia o tenente-coronel, esta é a sua
tese, tal e qual.
— Meu tenente-coronel, neste momento sou spinolista, só falta a
mudança do regime para se concretizar a proposta e tal só será viável
com a intervenção do general.
— Não se ponha a sonhar alto, isso faz mal à saúde. Volte para o
seu trabalho, boa sorte!
— Alferes Viegas — falava-me o comandante Nemésio — agora
é confidente do chefe?
— Não snr. Comandante, foi só uma troca de palavras. Nada de-
mais.
— Você deve estar em polvorosa, com as declarações do nosso
general. Se houvesse um golpe de estado, você estava lá.

161
João Viegas

— Sem dúvida, até spinolista seria. Quero que o regime caia.


— E se o regime ganhasse?
— Iria preso, ou talvez fosse fuzilado, com muita honra.
— Você é um romântico do século dezanove.
— Snr. Comandante, vindo de Coimbra só podia ser assim, a pá-
tria primeiro, aliás, os batalhões académicos saídos de Coimbra para
a guerra peninsular gritavam: “Pátria ou Morte”; e derrotaram os
franceses.
— Alferes, o meu pai, Vitorino Nemésio teria gostado de o co-
nhecer.
— Também eu gostaria de conhecer um literato tão importante.
— Quanto à zona do rio Cacine, há ataques generalizados. Você
trabalhou bem.
— Vou actualizar as informações e já faço o relatório.
O resto do dia foi passado a ler mais mensagens do IN, cerca de
quarenta, em todas se liam as ordens para ataques generalizados a
todo o nosso território. Parecia a ofensiva do Tet, no Vietnam, só
que o PAIGC não tinha os batalhões dos vietnamitas, nem o seu
comando unificado. Eles sabiam que, se abandonassem a guerra de
guerrilha e partissem para a guerra convencional, não tinham hipó-
teses de nos derrotar. Quarenta e sete mil homens eram uma força
quase imbatível, nunca seríamos derrotados a curto prazo. Agora,
com a guerrilha permanente, apoiada pela União Soviética e pela
China, era só uma questão de tempo até à derrota. O IN já tinha os
mísseis strela, soviéticos, a força aérea só voava pela coragem dos
seus pilotos, os morteiros 122, demolidores, as armas de nova gera-
ção que iam recebendo, deixavam as guarnições expostas.
— Snr. Comandante, as coisas estão perigosas para as zonas de
Guileje, Guigaje e Gadamael, que se encontram debaixo de fogo de
artilharia pesada.
— Alferes, as operações enviaram companhias de tropas especiais
para a zona, o IN vai ser completamente derrotado.

162
Os Soldados Perdidos

— É bom saber que as Nossas Tropas (NT) se vão libertar da


pressão e mandá-los de volta à Guiné-Conakri.
E assim foi. Violentos combates duraram semanas. Os bi-grupos
do PAIGC ou retiravam ou sofreriam pesadas derrotas. Havia uma
certa agitação nos comandos operacionais, em Bissau.
O mês de Março chegou rapidamente. Nuvens escuras pairavam
sobre o comando-chefe.
De Lisboa chegavam notícias perturbadoras para o regime.
No dia 16 de Março, as tropas fieis ao general Spínola saíram das
Caldas, rumo a Lisboa, sendo paradas à entrada da cidade. Todos os
oficiais foram presos e enviados para o forte da Trafaria. Na Guiné,
sentiram-se as ondas de choque desta tentativa de golpe de estado.
No comando-chefe, em particular, devido às informações privilegia-
das, havia a certeza de que em breve ocorreria o golpe final.
A partir desta data havia reuniões diárias, em casa de certos ofi-
ciais. Já ninguém tinha medo da PIDE-DGS. Aliás, os próprios “pi-
des” andavam desaparecidos.
Na 2ª Rep, havia autênticos comícios, o comandante e o tenente-
-coronel só diziam que era preciso cautela. Nesse dia, o tenente-co-
ronel chamou-me ao gabinete para trocar umas palavras.
— Alferes, gostava de o ouvir falar sobre a evolução da situação
actual.
— Meu tenente-coronel, o regime está a chegar ao fim, começou
com um golpe de estado e assim terminará.
— E o falhanço do golpe das Caldas?
— Uma acção preparatória, o próximo será a valer!
— Não me diga que também está metido nisso.
— Sou só um alferes, ninguém me liga.
— Você é um homem perigoso, com muitos amigos.
— Meu tenente-coronel, estou muito longe de Lisboa e é lá que
tudo se passará.
— Mas você apoia um golpe de estado?

163
João Viegas

— Incondicionalmente! Toda esta guerra é um buraco sem fundo.


— Lá isso é verdade mas não podemos entregar o ultramar.
— Tal como nos conta a História, isso vai acontecer, mais tarde
ou mais cedo.
— Pode ir, obrigado pela sua frontalidade.
— É bom haver oficiais superiores com mentes abertas, agradeço
a sua confiança, meu tenente-coronel.
Quando cheguei à secção, tinha o Barros Moura à espera.
— Viegas, vamos conversar sobre o golpe de estado que aí vem.
— Sabes o que se está a passar?
— Muita coisa. Em breve o regime cairá e, tu tens que retirar to-
das as nossas fichas da contra-informação.
— Está descansado, o alferes é meu amigo mas, só depois do gol-
pe, agora é impossível.
— É isso, passado um dia, retiras todos os documentos sobre a
rapaziada.
— Considera feito! Achas que vamos ser chamados para partici-
par?
— Duvido, eles não confiam nos milicianos.
— Tenho outras informações: se as coisas correrem mal, vão en-
viar tropas da Guiné. Não te esqueças que estou nas informações e,
sei coisas que a rapaziada desconhece.
— Não me digas, que tipo de tropas?
— Tropas especiais, para alvos específicos. Aqui supervisiono
cinco comandos africanos que são máquinas de guerra, e à solta em
Lisboa, seria uma limpeza.
— E se for um golpe de direita? Nesse caso, aceito a promoção a
tenente e fico na tropa, a aguardar nova oportunidade. Não desistirei
de derrubar o regime.
— Eles querem promover-te?
— Não dizem outra coisa. Só que ainda não aceitei.
— Eles consideram-te spinolista?

164
Os Soldados Perdidos

— Possivelmente, foi o general que me pôs aqui, contra a vontade


de muitos oficiais superiores.
— Isso são boas notícias.
— Estou preparado para tudo. Sei que o mês será em Abril, em
data indeterminada.
— Tens a certeza?
— Como já te disse, aqui sabemos quase tudo. E desta vez é para
valer.
— Boa, quero ir para casa. Os meus filhos nem me conhecem.
— Todos queremos ir para casa, há tanta vida pela frente. Já tens
quantos?
— Cinco, duas raparigas e três rapazes.
— Viegas, não perdeste tempo.
— O tempo que perdemos nesta guerra vai-nos pesar na morte.
— Camarada Viegas, vou seguir para o QG, um abraço.
Despedimo-nos e segui para o meu trabalho. Entretanto, chega-
ram o furriel Trindade e o alferes Almeida, meus camaradas da fren-
te de combate, que estavam estacionados nos Adidos, à espera de
voltarem a Lisboa. Estava visto que hoje não iria fazer nada, pelo que
pedi ao comandante para me ausentar o resto da tarde.
Andámos a deambular pela cidade, bebendo uns copos e pondo a
conversa em dia. Eles estavam eufóricos, pois dali a dois dias embar-
cariam no Niassa, rumo a Lisboa. Ainda bem para os meus amigos,
em breve livravam-se desta sinistra guerra. A despedida fez-se com
uma “esporinha”, como no Alentejo se designa o copo da despedida.
Abraços e hurras e um até amanhã entre os camaradas de guerra que
acompanhei aos Adidos.
No dia seguinte recebi a visita do alferes Almeida, com ar choroso.
— Viegas, o nosso Trindade morreu ontem no quartel, atrope-
lado por uma berliet. O sacana do condutor estava bêbedo e enfiou
direito ao nosso camarada. Preciso que venhas comigo, os teus sol-
dados querem ver-te e ouvir as últimas palavras.

165
João Viegas

Dei por mim a chorar. Larguei tudo e segui para o quartel dos
Adidos.
Quando cheguei, a companhia estava formada. Dirigi-me ao meu
quarto pelotão. Os soldados choravam. Alguns abraçaram-me. O cai-
xão estava em exposição com a bandeira nacional a cobri-lo. Fui rece-
bido com honras militares, ao que retribuí com a continência. Depois,
mandei vir uma garrafa de whisky da messe, só com um copo.
— Camaradas, aqui jaz um herói de Portugal, “hurra!”. Enchi um
copo de bebida e emborquei-o de um trago. Depois, dei uma ordem:
— 4º pelotão, um passo em frente, vamos beber em homenagem
ao nosso camarada Trindade, “hurra”!
Em fila um por um, os vinte e três homens beberam a garrafa,
quase num ápice.
Chegaram, entretanto, quatro rangers do raid do ano novo.
— Alferes Viegas, viemos despedir-nos do nosso camarada Trin-
dade. Fizeram a continência, deram um passo em frente e deixaram
mais duas garrafas de whisky em cima da bandeira. Ficaram em sen-
tido, todo o tempo que demorou a cerimónia, isto é, o tempo neces-
sário para beber todo o whisky.
— Camaradas, não é vergonha um homem chorar a morte de um
homem que levantou mais de cem minas. “Hurra”!
Toda a companhia gritou em uníssono: “Hurra”! Depois o silên-
cio da morte a pairar sobre a formação militar. Uma guarda de hon-
ra, constituída por mim, pelos rangers e por mais dois camaradas,
levaram o caixão para a capela. A bandeira, levei-a comigo, confes-
so que tinha umas nódoas de whisky, coisa pouca. Ausentei-me em
companhia dos rangers. Continuaríamos a beber mas fora da zona.
Depois de algumas horas mais de cerimónia ritual, decidimos pa-
rar de beber. E a partir dali tomar apenas só café.
Os rangers ofereceram-me um crachá de honra. Gritámos mais
uns “hurras”, eu voltei para o meu quarto e eles seguiram para a sua
unidade.

166
Os Soldados Perdidos

Quando me deitei na cama, pensei: “porra, camarada, tinhas que


morrer na véspera do teu regresso a casa, já não vou beber uns copos
a Benfica do Ribatejo, que merda...”
Dei comigo a chorar, enquanto pensava nas nossas aventuras de
guerra. Puxei a minha pistola star 45 para meu lado, olhei-a inten-
samente, como se a morte me chamasse. “Não, não podia ser assim
o meu final”. A arma ali permaneceu e adormeci com as lágrimas a
correrem-me pelo rosto.
Tive um pesadelo: um mar de sangue a afogar-me; dei um salto
na cama e vi o brilho negro, metálico, da pistola a olhar-me, intensa-
mente; afastei-a de mim, não fosse haver alguma tentação a empur-
rar-me para um final triste.
Devo ter gritado com o pesadelo, uma vez que o vizinho do lado
bateu à minha porta, ruidosamente.
— Viegas, está tudo bem?
— Está, foi só um pesadelo. E abri a porta ao Gaspar, alferes à
espera de colocação em Bissau.
— Viegas, andas doente?
— Não, Gaspar, estou farto desta merda toda, farto de assistir à
morte dos amigos.
— Tem calma, Viegas, nós vamos sobreviver.
— Não quero sobreviver, quero só viver o tempo que me falta.
— Tens razão, esta chacina vai continuar.
— Gaspar, em breve vai haver um golpe de estado e nós iremos
para casa.
— Como é que sabes?
— A 2ª Rep sabe tudo e só aguarda o momento.
— Não me podes dizer mais nada?
— Não, nem preciso, estarás cá para assistir.
Estou farto desta maldita guerra, se não acabar depressa vai ser
uma verdadeira tragédia para milhares de jovens, que já deviam es-
tar em casa.

167
João Viegas

O mês de Março estava no fim, começava Abril com uma expec-


tativa enorme. A tempestade aproximava-se, só faltava saber a data.
No dia 5 de Abril, o tenente-coronel chamou-nos ao gabinete.
— Senhor comandante, snrs alferes, vamos parar a actividade da
secção externa, acabaram os ataques à Guiné-Conakri e ao Sene-
gal. Os senhores alferes vão tratar de outros assuntos, igualmente
importantes. Ficam todos a saber que durante este mês vai haver
um golpe de estado, possivelmente comandado pelo nosso general
Spínola. Esta repartição não toma partido mas, estaremos atentos a
tudo. A secção externa vai ler todas as mensagens relacionadas com
as unidades no terreno, precisamos de saber quem quer participar
no golpe, só a título informativo. Mãos à obra, meus senhores.
— Meu tenente-coronel, qual é o papel da PIDE-DGS?
— Alferes Viegas, a PIDE-DGS anda aos papeis, não sabe nada,
nem nós lhes vamos dizer. Trata-se de um assunto exclusivamente
militar. O exército não passa informações à PIDE, nem o contrário
se aplica.
— Meu tenente-coronel e se os “pides” prenderem algum oficial
golpista?
— Alferes, impensável, íamos buscar o oficial pela força e, os “pi-
des” não querem isso.
— Se houver um golpe de estado, a guerra acaba, tenho a certeza.
— Alferes, acaba, de certeza. Já chega de guerra.
— Meu tenente-coronel. Ainda bem que o general Spínola escre-
veu o “Portugal e o Futuro”, os militares de carreira vão aplicar as
teses do general.
— Viegas, você está eufórico, não é?
— Ficarei feliz quando o regime desaparecer.
— Tenho que lhe dar razão, mas vamos “dar tempo ao tempo”
para ver o que vai acontecer. Disse o tenente-coronel, com um sor-
riso largo.
— Espero que não seja como o golpe das Caldas!

168
Os Soldados Perdidos

— Alferes, o nosso general sabe o que faz.


— Meu tenente-coronel, os golpistas têm que usar armas pesadas.
— Alferes, não se preocupe, eles sabem o que fazem. Nós limi-
tamo-nos a assistir e ajudar no que pudermos. Agora podem ir in-
vestigar as mensagens no “território operacional”, para detectarmos
qualquer envolvimento de unidades.
Já instalados na secção, começámos a consultar todas as men-
sagens das unidades militares. Ninguém sabia de nada, a vida cor-
ria normalmente. Só as zonas encostadas às fronteiras Norte e Leste
continuavam a ser atacadas intensamente. Oxalá o golpe de estado
fosse rápido, caso contrário poderá haver desastres lamentáveis.
Nessa tarde fui convocado para ir ao quartel dos comandos, para
falar com o capitão Santos.
Quando cheguei ao gabinete, o capitão mandou sair todos os que
estavam na sala e só depois me expôs o assunto.
— Alferes Viegas, temos uma informação fidedigna de que vai
haver um golpe de estado em Lisboa.
— Meu capitão, posso confirmar que a 2ª Rep está com o golpe de
estado, que será spinolista. Não temos é data.
— Alferes, o Regimento de Comandos está com o golpe, pode
informar o seu tenente-coronel.
— Meu capitão, com os comandos o golpe já é vitorioso.
— Alferes, desta vez os golpistas vão utilizar tanques e carros de
combate. De outra forma não vão conseguir tomar a capital.
— Tenho a certeza, meu capitão, se forem derrotados vão parar
à Trafaria, onde já estão os oficiais do golpe de Março, e isso é im-
pensável.
— Alferes, a 2ª Rep tem controlado a PIDE-DGS?
— Meu capitão, temos a PIDE-DGS sob escuta, há já muito tem-
po. Eles andam muito calmos.
Quando cheguei à 2ª Rep, estava lá o Barros Moura para falar
comigo.

169
João Viegas

— Viegas, ouvi dizer que vem aí outro golpe de estado, é verdade?


— Além de ser verdade é já este mês, avisa a rapaziada e, podes
afirmar que esta repartição está com o golpe.
— São boas notícias, a malta vai ficar eufórica! E novidades da
PIDE-DGS?
— Neste momento estão sob escuta dos nossos serviços, à míni-
ma porcaria são arrasados. O nosso tenente-coronel está empenha-
do neste golpe. Se alguma coisa correr mal, vamos lutar até ao fim.
Além disso, os comandos estão com o golpe, o que garante a vitória.
— Vou já avisar a malta, e, dizer-lhes para se prepararem.
— Cuidado com os comentários.
— OK, Viegas, se precisarem de gente, já sabes.
— Barros Moura, com os comandos, tomamos Bissau sem luta,
ninguém se vai opor.
— Tens razão, avisa-me para qualquer coisa. Então, e se a PIDE-
-DGS sair?
— A PIDE é ocupada pelos comandos e, os bandidos vão ser in-
ternados num quartel, possivelmente nos Adidos. Só espero que al-
gum fuja, para lhe darmos caça. Informa-me de tudo o que se passar
no QG, é muito importante.
Depois do meu amigo partir, fui falar com o comandante que, por
sua vez, me levou ao gabinete do tenente-coronel.
— Meu tenente-coronel, o regimento dos comandos da Amadora
está com o golpe. O batalhão já sabia que se prepara alguma coisa,
e dei mais umas informações colaterais, o que os deixou muito ani-
mados.
— Alferes, vejo que está feliz. Agora só é preciso aguardar pelo
momento da verdade e, aguentar firme.
— Meu tenente-coronel, se me derem ordens para resistir, reúno
um grupo de militares da minha confiança e resisto até à morte.
— Menos, alferes, menos. Ninguém sabe o que vem aí e, você só
fala em guerra.

170
Os Soldados Perdidos

— A História ensina-nos que, sem sangue, não há golpes de es-


tado.
— Este pessoal de Coimbra sonha com sangue. No seu caso, eu
respeito porque você esteve na frente de combate mas, se evitarmos
mortes será bem melhor. Volte para o seu posto e vigie-me essas
mensagens.
— Meu tenente-coronel, para derrubar este regime, só pela força.
Eles nunca se renderão, já que o 28 de Maio também foi um golpe de
estado musculado.
— Percebo o que quer dizer, mas os tempos são outros e toda
esta guerra alterou mentalidades. Eu não me considero um oficial
fascista. Pode ir alferes, faça o seu trabalho bem feito e, aguardemos
o futuro.
Mais uma montanha de mensagens ocupava a minha secretária.
Uma se destacava: “anormal movimentação de tropas em unidades
militares de Lisboa”. Será que chegará o almejado dia? Imediatamen-
te levei a mensagem ao comandante Nemésio que, a foi comunicar
ao tenente-coronel. Quando voltou do gabinete do chefe, limitou-se
a dizer:
— Alferes Viegas, ainda não é desta. A mensagem foi enviada
pela 2ª Rep de Lisboa. Nada de novo a reportar.
— Ando nervoso, nunca mais acontece o que tanto desejamos.
— Tenha calma, alferes, cuidado com o coração.
— Senhor comandante, faz-se tarde para o grande dia!
— Já sabemos que vai chegar, nada de emoções exageradas.
— Gostava de estar em Lisboa, a comandar um pelotão opera-
cional.
— Possivelmente é mais útil por estas bandas, alferes.
— Oxalá! Sei que vai acontecer e quero participar na queda deste
regime podre.
— Esteja descansado, alferes, talvez tenhamos que marchar para
Lisboa.

171
João Viegas

— Senhor comandante, seria mau sinal, mas se tiver que ser, va-
mos embora.
E o resto do dia passou sem quaisquer novidades apesar das mui-
tas mensagens mas nenhuma com informação especial.
No dia seguinte, quando cheguei ao comando-chefe, percebi
grande agitação. Na porta de armas, o alferes da PM disse-me, ale-
gremente:
— Viegas, um golpe de estado em Lisboa, a guerra vai acabar.
O meu coração deu um salto, corri para a minha repartição. O
comandante, veio direito a mim e abraçou-me.
— Alferes, o governo caiu. Agora é só aguardar as novidades de
Lisboa que hão-de seguir-se. Mantenha-se no seu posto, enquanto
esperamos ordens superiores.
Os oficiais superiores começaram a entrar e a sair do gabinete
do tenente-coronel, alguns com ar carrancudo, outros sorridentes,
a guerra ia acabar de vez, as tropas regressavam a casa. A grande
questão era, quando viria o fim desta matança inútil?
À grande pergunta, isto é, o que se irá passar com as tropas na
mata, ninguém sabia responder.
Chegavam centenas de mensagens da 2ª Rep de Lisboa. Já se sabia
que o comandante operacional era um tal major Otelo Saraiva de
Carvalho, antigo responsável pela contra-informação da 2ª Rep de
Bissau. O golpe de estado do dia 25 de Abril ia acabar com a guerra.
Em breve voltaríamos para casa. A alegria estampava-se na maioria
dos rostos, só os oficiais fascistas andavam de trombas, com medo
da incerteza. O nosso tenente-coronel estava bem disposto, sorria
quando me via e, cumprimentava todo o pessoal, alegremente. O
nosso chefe estava com o golpe, sempre o soube.
Conforme iam chegando mais pormenores relativamente à evo-
lução da situação, ficamos a saber que o capitão Salgueiro Maia, um
oficial da Escola Prática de Cavalaria, de Santarém, avançou para
Lisboa com uma coluna de tanques e outra constituída por jovens

172
Os Soldados Perdidos

voluntários da sua companhia. Era preciso ter coragem para avan-


çar destemidamente para a toca do lobo. Não houve resistência, os
ministérios ocupados, o Marcelo Caetano escondeu-se no quartel
da GNR do Carmo, mas rendeu-se ao general Spínola, como seria
de prever. Era preciso ser valente para enfrentar o regime com uma
companhia de cavalaria, com alguns tanques e uma centena de jo-
vens sem experiência de guerra. Honra seja feita ao capitão Salguei-
ro Maia, o herói do momento.
As notícias chegavam em catadupa, cinco pessoas morreram as-
sassinadas pela PIDE-DGS quando se manifestavam em frente à sua
sede, na rua António Maria Cardoso. Os assassinos da polícia polí-
tica tinham que manchar o momento de glória, mas o novo regime
deixou-os escapar. Que se saiba, ninguém foi julgado e condenado
por mais este crime. Contradições dum golpe de estado incompleto.
O governador da Guiné, general Bettencourt R., não dava si-
nais de vida, ou seja, vimo-lo chegar ao seu gabinete e ninguém
o incomodou. Silêncio absoluto. Na Guiné, a rotina: a guerra não
parava no território; a zona do rio Cacine continuava debaixo de
fogo.
Quanto à PIDE-DGS, estavam calados que nem ratos. Ninguém
os via na rua. Aguardávamos notícias sobre o seu futuro próximo.
Fui almoçar à Casa da Beira, só para controlar o inspector Palma.
Não apareceu, nem ninguém da dita corporação policial. No fim
do dia do trabalho, havia reuniões no QG com oficiais de todos os
ramos das forças armadas. Todos estavam com o golpe de estado,
só se aguardavam ordens sobre o futuro da guerra, que tardavam
demasiado. O MFA controlava o país, os militares da Guiné esta-
vam com o golpe, só faltavam as medidas urgentes para concretizar
o fim da guerra, com honra. O PAIGC não tinha ganho a guerra, só
controlavam o espaço aéreo, com os mísseis strela 3, mas, mesmo
assim, havia corajosos pilotos que não tinham medo de ser abati-
dos e voavam para salvar os feridos no terreno. E os nossos jovens

173
João Viegas

continuavam a morrer perante tanta hesitação dos comandantes.


Estava tudo errado, afinal que golpe de estado é este?
Já no início de Maio, foi dada a ordem para a extinção da PI-
DE-DGS, os comandos internaram todos os agentes “pidescos” no
quartel do Adidos, e, foi dada a ordem para fechar o campo de con-
centração do Ilhéu das Galinhas, nos Bijagós, libertando e transpor-
tando os prisioneiros para Bissau. Tive o privilégio de ser convidado
para fazer parte do grupo de assalto juntamente com os comandos
africanos, entre os quais se destacava o sargento Abibo e os seus oito
camaradas. Dois helicópteros voaram para o objectivo, o comandan-
te da força, era um alferes comando, o Mateus, jovem valente e que
não estimava os bandidos da polícia política. Os “helis” aterraram
no ilhéu, vimos homens a fugirem para o mato, os “pides”. Eu ia
armado até aos dentes: G3, pistola; e granadas. Os comandos, como
sempre, assustadores: MG 42 a tiracolo; os bandidos tinham todas
as razões para fugirem, sabiam que a morte se aproximava. Fomos
recebidos por uma secção do exército, seis homens comandados por
um furriel assustado.
— Senhor alferes, o que se passa? Perguntou-me.
— Senhor furriel, viemos libertar os prisioneiros e, só espero que
nada de maior lhes tenha acontecido, que vocês não tenham feito
merda com eles, caso contrário sereis imediatamente presos.
— Meu alferes, só cá estão três mulheres e quatro homens.
— Furriel vá já buscar os prisioneiros. E o que é feitos dos “pides”?
— Quando viram os “hélis”, fugiram para o fim da ilha.
— Deixe-os estar, mais tarde virá uma embarcação para os apa-
nhar. Permanecereis aqui até que alguém vos venha buscar.
— Certamente, meu alferes, disse o furriel com cara de medo.
— Quando chegaram os prisioneiros, a Bela à frente da coluna,
com um sorriso enorme, abraçou-me apaixonadamente e chorou,
convulsivamente:

174
Os Soldados Perdidos

— Alferes bonito, eu sabia que me vinhas salvar. E beijava-me o


rosto. Os comandos olhavam com um ar sorridente.
As outras duas raparigas, beijaram-me as mãos e gritaram de ale-
gria. Os quatro homens abraçaram-me com umas lágrimas à mistu-
ra. Todos estavam felizes. O sargento Abibo deu a ordem de retirada.
— Vamos embora, está na hora.
Os “hélis” começaram a trabalhar, a guarnição militar estava
assustada, seguimos rumo a Bissau. Voávamos por cima do mar,
para evitar os mísseis strela. Em pouco tempo chegámos ao destino.
Pousados em Bissalanca, segui para o Pilão com os ex-prisioneiros
da PIDE-DGS. A alegria era esfusiante, todos a falarem ao mesmo
tempo. Enfim, livres das garras dos carrascos. Em casa da prima da
Bela, era a festa. Música crioula animava a casa, a Bela de mão dada
comigo. Estava feliz, bebi uns whiskys com a euforia de missão cum-
prida, enquanto as outras miúdas partiam para as suas casas, bem
com os quatro homens, que desapareciam no turbilhão do Pilão. Dei
dinheiro à Bela para comprar roupas novas e se alimentar devida-
mente. A filha, a Luana, já estava em Cabo Verde, na casa dos fami-
liares. Brevemente a Bela se lhes juntaria. Em Bissau, nada de novo,
estava feliz, tinha salvo esta jovem bonita. Agora era o afiar das facas
e, a caçada aos “pides” ia começar.
Quando cheguei à repartição, fui de imediato chamado ao tenen-
te-coronel.
— Alferes Viegas, o seu amigo inspector Palma fugiu dos Adidos.
Você vai já ao batalhão de comandos, o capitão Santos quer falar
consigo.
Em pouco tempo estava nos comandos, a falar com o capitão:
— Alferes, o Palma fugiu, você vai reunir com o grupo do sargen-
to Abibo, tem uma semana para caçar esse gajo perigoso. Se não se
render, vai ser abatido, ordens superiores.
Depois de falar com o sargento, ficou combinado que o grupo
de caça ao inspector ia andar à civil, armas escondidas em coldres,

175
João Viegas

prontas a serem utilizadas. Para além disso, o capitão destacou mais


um pelotão para a caçada final. Assisti à triangulação que o capitão
montou. O “pide” Palma ia ser apanhado brevemente. Com estes he-
róicos combatentes não tinha quaisquer hipóteses. No Pilão havia
fotografias do homem mais procurado da Guiné mas, de certeza que
o homem evitaria esta zona. Tínhamos que ir para a outra, a mais
fina da cidade, onde tinha bons amigos. Passados dois dias, uma pa-
trulha à civil viu passar o “pide” num mercedes dum amigo. Dado o
alarme, a área foi cercada por um pelotão de comandos. Aguardou-
-se a chegada de um alferes comando, com um megafone apelou à
rendição do homem e, eis que ele saiu com um ar arrogante. Quando
o alferes lhe deu ordem de prisão, o “pide” puxou duma uzi e, foi
imediatamente abatido. Morreu como um homem, honra lhe seja
feita.
Não houve ondas de choque pela morte do “pide”. Tudo normal
na frente de combate. O PAIGC não aparecia na capital, talvez des-
confiasse da veracidade do golpe de estado em Lisboa.
Andava morno o clima político. Na Guiné, quase não se fala do
golpe de estado. Na guerra, continuavam os ataques junto à fronteira
da Guiné-Conakri. As tropas especiais estavam na zona. Eu tinha
que começar a arrumar uns assuntos pendentes, porque em Junho
partiria para Lisboa.
Andava preocupado com o destino das tropas africanas. Quando
o PAIGC entrasse na Guiné perseguiria e mataria todos os colabo-
radores dos portugueses. Falei com o cmdt Nemésio e, ele explicou-
-me que só as tropas especiais seriam evacuadas. Os outros estavam
entregues à sua sorte. É sempre assim, nestas situações, os soldados
rasos do império que fossem negros, não tinham qualquer impor-
tância.
Por esta altura e, inesperadamente, o PAIGC organizou uma ma-
nifestação de rua com umas centenas de pessoas. Fui chamado ao
comando de operações e deram-me o cargo de comandar um pe-

176
Os Soldados Perdidos

lotão para parar a dita manifestação. De imediato, perguntei quais


as ordens e, um coronel disse-me para abrir fogo, se estivesse aflito.
Reagi com prontidão.
— Meu coronel, se me permite, eu não vou disparar contra a mul-
tidão, nos termos do regulamento militar.
— Já a formiga tem catarro, você dispara para parar o IN.
— Meu coronel, vou disparar por cima das cabeças, pelo que o
pelotão tem que ter operacionais do mato.
— Alferes, pretensão concedida. Vá tomar conta do pelotão.
Quando cheguei ao exterior do comando-chefe, já lá estava o pe-
lotão, os homens com ar assustado, o medo era real.
— Camaradas, vamos parar a manifestação, sem mortos. Os me-
lhores atiradores dêem um passo em frente. Não quero que atirem
a matar, quem o fizer, será julgado em tribunal militar, cuidado. Os
atiradores disparam a meio metro da cabeça mais alta. Mandei for-
mar o pelotão em linha, a cem metros da porta d’armas do comando-
-chefe. A manifestação aproximava-se ruidosamente. Coloquei um
jeep à frente do pelotão, para baralhar os manifestantes e proteger
os homens. Entretanto, puxei dos binóculos e apontei aos manifes-
tantes, para controlar eventuais armas na área, o que me obrigaria a
tomar outras contra-medidas. Felizmente, não havia infiltrados no
grupo, era mesmo uma manifestação pacífica.
Passada uma hora de gritaria, com uns tiros a meio metro de al-
tura das cabeças, o grupo dispersou e destrocei o pelotão, tendo re-
gressado ao quartel do comando-chefe. Quando cheguei, tinha uma
ordem do coronel de operações para me dirigir ao seu gabinete.
— Alferes Viegas, você resolveu o assunto com limpeza, dou-lhe
os parabéns.
— Meu coronel, não foi preciso matar ninguém, mas se houvesse
atiradores misturados, esses seriam abatidos.
— Eu sei que você é competente e, só por essa razão, foi escolhido
para resolver o problema. Esperemos que isto não se repita por parte

177
João Viegas

da população, caso contrário a situação poderá agudizar-se.


— Meu coronel, penso que não vão repetir a manifestação, mas se
tal acontecer, cá estamos para o que for preciso.
— Alferes, pode seguir para a sua repartição.
Quando cheguei, todos me cumprimentaram efusivamente. O
tenente-coronel chamou-me ao gabinete.
— Alferes, já sei do teste a que foi sujeito, aproveito para lhe dar
os parabéns.
— Meu tenente-coronel, fiz só o que tinha a fazer. Também tive
muita sorte, pois era tão só uma manifestação pacífica. Se houvesse
armas, era uma chatice, haveria tiroteio.
— Alferes, não se esqueça que em Junho vai para casa, não se
exponha muito, pois pode ter azar.
Voltei à rotina normal, elaborando relatórios sobre a situação no
território, almoçava na Casa da Beira, bebia uns copos com os ami-
galhaços, enfim, ocupava o tempo o melhor possível.
E o tempo passou depressa. No dia 15 de Junho, o meu chefe
dispensou-me para as despedidas. E os abraços aos bons camara-
das foram muitos, os copos em catadupa, uma histórica despedida à
Guiné. No dia seguinte, pelas oito horas da manhã, embarcaria num
DC 6, a caminho de Lisboa. Visitei a amiga Bela. Foi uma festa.
— Alferes bonito, vieste visitar-me.
— Bela, vim despedir-me, amanhã vou partir para Lisboa.
— Vou ficar sem o meu alferes bonito?
— Vais, minha Bela, meu amor, tenho que voltar para os meus
filhos.
Começou a chorar suavemente, parecia uma menina triste e bela,
como só ela. Fiquei comovido, afinal ela era a última pessoa de quem
me queria despedir.
— Vou-te dar a minha direcção, quando precisares de alguma
coisa, ajudar-te-ei.
— João, só te queria a ti, nada mais.

178
Os Soldados Perdidos

— Minha Bela, vou seguir a minha vida, mas tens sempre um


lugar nela.
— Não aguento a tua ausência, meu amor. Volta depressa.
— Bela, nunca te vou esquecer mas, tenho a minha vida suspensa,
tenho que voltar para acabar o curso e trabalhar. Vou deixar-te al-
gum dinheiro para que, se assim o entenderes, possas voltar a Cabo
Verde.
— João, só te quero a ti. Se te fores embora, vou morrer a pensar
em ti.
— Meu amor, és imortal, o nosso amor vai manter-te viva para
sempre.
— Meu alferes bonito dá-me uma fotografia tua para trazer junto
ao coração.
— Vou dar-te esta foto, tirada na selva de Cobumba.
Beijou a fotografia e guardou-a debaixo da almofada. Parecia um
anjo bom a embalar-me nos braços esbeltos, os olhos verdes embar-
cavam-me na derradeira aventura, corpos colados a entoarem can-
ções antigas e suaves. Amor verdadeiro, que poucas vezes se sente
numa vida inteira. Bela, meu amor, o meu coração ficava na Guiné,
nos braços duma mulata, deusa do amor. Quem em tempo de guerra
não teve uma paixão, será um guerreiro incompleto.
Às cinco da manhã acordei, com o meu corpo colado ao da mi-
nha bela. Foi uma noite inesquecível, com lágrimas de amor e de dor,
de adeus. Que parasse o tempo por séculos. Levantei-me suavemen-
te, dei-lhe um beijo na boca, ela acordou e, não queria deixar-me
partir, chorando convulsivamente.
— Tenho que ir, meu amor, o avião não espera.
— Vais-me escrever?
— Nunca te vou esquecer, vais receber muitas cartas e, se precisa-
res de alguma coisa, escreve-me. Adeus, minha Bela.
Quando cheguei à rua, todas as raparigas, já levantadas, deram-
-me um beijo de despedida.

179
João Viegas

— Alferes bonito, não te esqueças de nós.


— Miúdas, tomem conta da Bela. Adeus, até um dia...
Já na rua, aproximaram-se três africanos, um dos quais com uma
boina preta com uma pequena estrela vermelha. Reconheci-o logo,
era o meu prisioneiro em Cobumba, que tinha libertado das garras
da PIDE-DGS.
— Alferes Viegas, estávamos à tua espera para te conduzir em
segurança, até à saída do Pilão. Sou o Jamir Baldé, comandante dum
bi-grupo que aguarda, neste local, a ordem de ataque. Estes dois ho-
mens são a minha escolta. Vamos alferes, já viu a sua rapariga, nós
tomamos conta dela. Alferes, diz aos comandantes para não deixa-
rem os homens virem ao Pilão, isto já é zona de guerra.
— Comandante Baldé, como sabias o meu nome?
— Nós também temos serviços de informação. O nome do alfe-
res que me salvou a vida e nos derrotou em Cobumba era para nós
importante.
— Foi a merda do napalm que vos afastou do arame, de outra
maneira seríamos nós os derrotados.
— Se não fosse a guerra podíamos ser amigos.
— Alferes, somos inimigos mas, temos códigos de honra.
— Comandante, a guerra sem honra é uma javardice.
— Alferes, quando chegaste ao Pilão, já sabíamos que ias para
casa da Bela. Por essa razão, decidi dar ordens aos meus homens
para se afastarem da zona. Sabemos que o alferes se vai embora ama-
nhã, pelas oito horas da manhã, não podíamos deixar que houvesse
problemas.
— Meu amigo, desejo-vos a melhor sorte. Se precisares de alguma
coisa, escreve-me para Coimbra, e, dei-lhe a minha direcção.
Ele sorriu, e disse:
— Quem sabe, camarada, se não apareço em Coimbra, disse ele
a sorrir.
Quando cheguei ao meu quarto ao QG, acordei o alferes Branco

180
Os Soldados Perdidos

e pedi-lhe que avisasse o tenente-coronel que não era aconselhável


a ida de militares ao Pilão, por causa da permanência dum bi-grupo
na zona.
— Viegas, como é que sabes?
— Fui escoltado pelo comandante do bi-grupo até à zona segura.
— Não tiveste medo?
— Tive, mas o comandante do IN, foi o homem que salvei em
Cobumba. Não te esqueças, avisa o nosso chefe para ele alertar as
operações.
Pelas sete da manhã chegou o meu condutor, o Mamadu, que me
levou até ao aeroporto, na máxima aceleração. Quando lá cheguei, já
lá estavam dez alferes eufóricos, a guerra tinha acabado, para nós. Só
esperávamos que o velho DC 6 não caísse pelo caminho. Abri uma
garrafa de whisky que foi consumida num ápice, estávamos prontos
para a viagem. Por entre conversas de ocasião, lá entrámos para o
avião que nos levaria para fora daquela guerra. O que nos esperava
em Lisboa, ninguém sabia, apenas que havia uma certa confusão, os
profissionais da política regressavam dos exílios, os militares volta-
vam da guerra e eram por vezes acusados de assassinos. Por acaso
nunca aconteceu comigo, pois a resposta seria letal.
De Cabo Verde zarpámos para Lisboa, num voo conturbado, com
muita agitação e o avião a tremer por todos os lados.
— Calma, camaradas, esta merda ainda não vai cair desta vez,
berrou um alferes armado em engraçado.
Às 16h00 chegámos a Lisboa, todos meio enjoados com tantos
abanões na lata velha a que chamavam avião. Saímos directamente,
sem qualquer revista às bagagens, pudera, a fina flor das forças ar-
madas chegava da guerra. Abraços de alegria, algum barulho, com
hurras e outros berros militares, despedimo-nos ruidosamente e
cada um seguiu o seu destino.
Apanhei o comboio para Coimbra. Estava nervoso, os miúdos já
nem me reconheceriam.

181
João Viegas

Quando cheguei à estação B, fui à casa de banho vestir o camufla-


do de combate, marcado com umas manchas de sangue, coloquei o
coldre com a pistola luger, óculos rayban, cabelo rapado à escovinha,
parecia um implacável militar da guerra colonial. Até os polícias me
batiam a pala. Apanhei um táxi e, parei na AAC, subi ao teatro de
bolso do CITAC, cuja porta ainda estava fechada com o selo da PI-
DE-DGS. Apareceu o velho Chico, muito assustado.
— Dr. Viegas, já voltou da guerra!? Tínhamos saudades suas.
— Chico, então ninguém abriu esta porta?
— Estavam à sua espera.
— Vou rebentar a porta e, tu vais mudar a fechadura, à minha
responsabilidade, dando-lhe dinheiro para o efeito.
Quando abri a porta, constatei que a sala estava vazia, nem um
cabo, nem uma lâmpada, nem colunas de som, todo o equipamento
saqueado. A PIDE-DGS queria mesmo acabar com o CITAC, mas
azar o deles, pois tudo recomeçaria para infernizar a cabeça dos sala-
zarentos escondidos nos cargos públicos, que o golpe de estado não
tinha conseguido limpar com eficácia.
Peguei nas duas malas de viagem com pouca roupa, três uzis e
seis carregadores, meia dúzia de livros e segui para casa, desejoso de
ver a família. Estava nervoso, como se fosse para uma batalha. Qual
será a reacção dos meus filhos?
Quando cheguei a casa, os putos a gritarem, os mais velhos a
olharem muito sérios para mim:
— Pai?
— Sim, sou o vosso pai, cheguei da guerra.
Os mais pequenos choravam, talvez com medo, ao verem um ho-
mem estranho, com uma farda de combate, óculos escuros e bron-
zeado, como um mercenário. Sentei os meus filhos ao colo, tentei
brincar com eles e, de repente, sorrisos infantis inundavam a sala,
todos felizes à minha volta. Perdi tanta coisa, será que conseguiria

182
Os Soldados Perdidos

adaptar-me à minha nova realidade? Dois anos é muito tempo, tinha


que recomeçar a minha vida do zero.
Olhei pela janela do quarto e a nostalgia invadiu-me: tempos pas-
sados em Coimbra, tempos passados na Guiné, a ferida da guerra
ainda aberta. Como se lida com esta realidade?
Pouco tempo aguentei em casa, tive que sair para ver a rapaziada
amiga. Passei pela AAC e, não vi nenhuma cara conhecida. Fui aos
cafés da Praça da República e, por lá encontrei velhos camaradas do
meu tempo, como o Ramires, grande fotógrafo, que me apresentou
uns jovens que queriam reabrir o CITAC: o Archer, o Aires, o Licas-
tro, o Ruivo, o Vasco.
Informei-os que já tinha aberto a porta do teatro de bolso do CI-
TAC, só me restava ir ao reitor, pedir ajuda para a reabertura do
Organismo Autónomo. Levei-os ao teatro de bolso, aproveitei para
pedir as chaves ao Chico. Puderam comigo certificar-se que a sala
estava completamente vazia. Tinha sido tudo roubado.
— Amigos, temos que reequipar o nosso teatro e pô-lo a fun-
cionar. Os camaradas presentes ofereceram-se para irem ao reitor
e seguimos todos para a reitoria, onde pedi audiência ao reitor, o
prof. Dr. Teixeira Ribeiro, um homem bom, meu antigo professor
de Finanças.
Fomos recebidos de imediato, o velho professor sorriu para mim.
— Senhor aluno Viegas, ainda bem que já regressou da guerra. O
que pretendem?
— Senhor reitor, o CITAC foi assaltado pela PIDE-DGS e, tudo
roubaram. Só queríamos pô-lo a funcionar, mas precisamos do
apoio da reitoria e da Fundação Calouste Gulbenkian.
— Quanto à reitoria, podem contar com todo o apoio. Façam um
orçamento detalhado do que precisam e, irei providenciar para que
adquiram todo o material necessário. Entretanto, vou nomear uma
comissão administrativa, com o snr. Viegas como presidente. Só as-
sim podem movimentar dinheiro para reorganizar o CITAC.

183
João Viegas

Mais alguma conversa de circunstância, o reitor era um bom ho-


mem, um verdadeiro democrata, da geração do Salazar. Seria um
grande reitor, num momento em que vários professores fascistas
tinham que ser saneados. Ainda nesse dia, recebi em casa, um tele-
grama que me nomeava presidente da comissão administrativa do
CITAC.
Convoquei uma reunião com os voluntários para a reabertura
do Organismo Autónomo e, compareceram o Aires, o Ruivo e o Li-
castro. Os outros amigos não estavam disponíveis para actuarem,
no momento. Reuniões atrás de reuniões, fizemos um inventário de
todo o material necessário e entregámo-lo ao reitor. De imediato,
este mandou entregar-nos um cheque de cem mil escudos, que levá-
mos ao banco. Seria o reinício do nosso CITAC.
Fomos a uma loja na baixa da cidade encomendar 20 projectores,
100 metros de cabos, um piano de luz, tudo material que brevemente
chegaria de Lisboa. Entretanto, fizemos uma reunião para organizar
um plano de actividades. Assim que o material chegasse, começaría-
mos com os ensaios das peças previamente escolhidas. Logo que se
soube da reabertura do CITAC tivemos umas dezenas de inscrições
por parte de jovens dinâmicos que queriam viver a nova história do
Organismo Autónomo.
Quando todo o material encomendado chegou, realizámos reu-
niões diárias para começar os ensaios. Como era um elemento com
experiência teatral, combinámos que ia começar a preparar os fu-
turos actores, com exercícios. Era uma festa, ver renascer o grande
grupo de teatro da Academia de Coimbra. Todos felizes por estarem
a fazer história. O CITAC mexia com a Academia. Os candidatos a
actores chegavam todos os dias. Passado um mês, já tínhamos mais
de trinta elementos. Em 1974 começámos com duas peças, o “Mu-
seu” e a “Resistência”, material curioso para reabilitar a nossa capa-
cidade teatral.

184
Os Soldados Perdidos

Até ao fim do ano o registo foi este: muito trabalho na instalação


do material de luz e de som. Renascia das cinzas o grande CITAC.
Os subsídios foram repostos. Estava tudo a postos para recomeçar a
fazer história. Para além de João Viegas, havia o Aires, o Licastro, o
Fernando Ruivo, a Lai, o Carlos Marques, o Henrique Vaz Duarte, o
Artur, o Jerónimo, a Linda, a Isabel. Todas as noites havia exercícios
teatrais, e infindáveis reuniões para definir as peças a encenar.
No dia seguinte, pelas seis da manhã, levantava-me para seguir
para Figueiró dos Vinhos, às sete. Depois das aulas, voltava a Coim-
bra, pelas seis da tarde. O CITAC era o meu destino, onde ficava até
às tantas da manhã. O teatro ajudava-me a esquecer a guerra, se é
que isso era possível.
Até ao final de 1974, foi assim, depois, em 1975, tudo foi mais
acelerado, o CITAC começou a produzir peças. As inscrições dos
jovens continuavam. No grupo os ensaios sucediam-se. Entretan-
to alguns alunos do liceu José Falcão pediram um encenador, para
montar uma peça no liceu. João Viegas foi o escolhido para o efeito
e, em Janeiro de 1975, começaram os ensaios de “A Excepção e a
Regra“ de Bertold Brecht. Uma geração de jovens de 16 e 17 anos
começou a fazer teatro, de tal forma que seriam a próxima e brilhan-
te geração do CITAC. O Jorge Humberto, a Olga, o Bandeirinha, o
Peixoto, o Parada, o Nando, o Artur Corte Real. O Peixoto. A peça
tinha sessões diárias, duras e rijas, conforme as lições do grande en-
cenador Ricard Salvat, que eu tinha recebido em 1970. Entretanto,
juntou-se ao grupo um músico prazenteiro, Henrique Canelhas, que
fez música ao vivo, puro Brecht, de uma forma genial.
No dia da estreia, em pleno teatro de Gil Vicente, o tradutor de
Brecht, Prof. Dr. Paulo Quintela, aplaudia e dizia alto e em bom som:
“Isto é Brecht”. Foi um êxito que motivou a inscrição no CITAC de
muitos outros jovens, que imprimiram uma viragem fundamental
no Grupo, que nunca mais parou. Aliás, foi este grupo que manteve
o CITAC de pé, nos anos próximos.

185
João Viegas

Em 1975, escolhida a peça, “Guilherme Tell tem os olhos tristes”


de Alfonso Sastre, foi um ano precioso para o novo CITAC. O elenco
contava com o Paulo Archer, eu próprio, o Henrique Vaz Duarte,
a Linda, a Lai, o Rui Damasceno, o Artur, o Antero, o Jerónimo, o
Aires, o Licastro, a Isabel. Os ensaios acabavam às tantas da ma-
drugada, sempre o velho problema das encenações colectivas. En-
tretanto, chegou a Coimbra o Leandro Vale, um dos fundadores do
CITAC que trabalhava no Centro Cultural de Évora, com o grande
Mário Barradas. Convidámo-lo para encenar. A peça e os ensaios
começaram a andar muito mais eficientes. Com a peça terminada,
após meses difíceis, concluímos que era uma obra de arte e, fomos
convidados para dar espectáculo em Évora, seguindo depois para
Aljustrel e outras vilas Alentejanas.
O CITAC estava de volta com as grandes peças de teatro, desta
vez com um encenador a sério, o sucesso estava garantido. Em Maio
seguimos na camioneta da AAC rumo a Évora. A estadia foi uma
festa, lanche e jantar especial, muitos copos à mistura, ensaio geral
fraquito. A estreia foi um desastre, correu tudo mal, um autêntico
fiasco. O Mário Barradas berrava nos bastidores
Seguimos para as minas de Aljustrel, para um espectáculo numa
grande sala na Sociedade Recreativa das Minas. Quase 400 pessoas,
entre mineiros e familiares enchiam o enorme recinto. As pessoas
batiam palmas incessantemente, algumas choravam, de emoção.
Um grupo de mineiros cantou “A Internacional”. Continuavam as
palmas, depois, invadiram o pequeno palco para nos abraçarem.
— Camaradas, grande peça. Obrigado por se lembrarem de nós.
Um velho mineiro, pele enrugada pelo pesado trabalho nas mi-
nas, chorava emocionado. “Obrigado, obrigado”, dizia.
Ofereceram-nos um jantar na Sociedade, febras com migas e uma
açorda alentejana, regadas por um bom vinho de Borba. Tudo per-
feito, mas tínhamos que voltar para Coimbra, o autocarro da AAC
era necessário no dia seguinte.

186
Os Soldados Perdidos

Despedidas calorosas, umas lágrimas suspensas, abraços de par-


tir ossos, palmas e mais palmas, momentos inesquecíveis no Alente-
jo profundo. “Adeus, adeus”, em breve nos voltaríamos a ver. Nessa
noite dormi na sala da direcção do CITAC, pelas sete da manhã,
tinha que partir para Figueiró dos Vinhos, as aulas não esperavam.
Tive que me dedicar mais às aulas, teatro até às tantas não era efi-
ciente. Decisão tomada depois de termos levado a peça até à herdade
da Torre Bela, ocupada pela LUAR, antiga propriedade da família
real, com 20.000 hectares, toda murada. Anos mais tarde, seria com-
prada pelo “patriota” angolano Eduardo dos Santos, por 20 milhões
de contos.
Fui-me afastando, gradualmente, do teatro. Tinha que resolver
um grave problema na Escola de Figueiró dos Vinhos. Com a che-
gada dos retornados, havia famílias a viver em tendas de campismo,
em difíceis condições. Os alunos ressentiam-se das condições de
vida. Fui falar com o Juiz da Comarca, meu velho colega e amigo de
Faculdade, a quem pedi para investigar se não haveria instalações na
área, com condições para albergar toda a gente.
Passado pouco tempo descobrimos o sítio ideal, a herdade do
Prazo, propriedade do BNU, ou seja, utilizada pelos gerentes desse
banco para passarem as suas férias. Havia um edifício central, com
cozinha e cantina, para além de uma enorme sala de estar. Depois
havia mais dez vivendas com seis quartos cada, o que dava para mui-
tas famílias.
Num dia marcado, procedemos à ocupação do local, sem quais-
quer confusões. As pessoas estavam felizes por terem nova casa,
sabendo que era provisória. Já alguns dos refugiados se tinham
mudado para essas casas quando somos avisados que o COPCON
acompanhava uns autocarros de excursão com um grupo de geren-
tes do BNU para reocuparem o local. Apelei aos ocupantes para se
acalmarem. Alguns queriam recebê-los com caçadeiras. Fiz o meu
discurso de guerra e provei que contra jovens maçaricos de dedo no

187
João Viegas

gatilho, não havia defesa possível. Só conversando se evitaria uma


tragédia.
No dia seguinte chegou uma berliet com vinte homens, bem ar-
mados. A comandar a força militar vinha um sargento que eu co-
nhecia da Guiné.
— Sargento Gaspar?
— Quem é o senhor?
— Ex-alferes Viegas, mata do Cantanhez, 1973.
— O nosso alferes, o herói de Cobumba, venha daí um abraço.
Abraçámo-nos efusivamente e eu aproveitei para lhe explicar a
situação. Após uns minutos de hesitação, o sargento pegou no me-
gafone e deu uma ordem aos membros do BNU presentes: podem
voltar para o Porto, o COPCON fica aqui em missão.
Pedi ajuda ao sargento para utilizar a berliet e, mais uns voluntá-
rios para ajudarem na mudança dos poucos bens das pessoas.
Em pouco tempo estava feita a mudança e todos felizes com as
novas casas provisórias. O meu amigo Juiz enviou um documento
judicial que todos tinham que assinar, “título provisório de ocupa-
ção de casa particular, por um período de um ano”. Todos sabiam
que só podiam permanecer no local por esse período, tendo que de-
volver as casas, em bom estado, ao seu proprietário. Fizemos uma
almoçarada convívio com os soldados e os ocupantes das casas, uma
alegria desmedida.
Entretanto, soube através do sargento que os fascistas estavam
estacionados num quartel da Guardia Civil, junto à fronteira, com
cerca de oitocentos homens, a treinar para a invasão do nosso país.
Fiquei animado, ia voltar para a guerra. Passados poucos dias, apa-
receu um alferes ranger, na Escola.
— Professor, tu és o alferes Viegas?
— Já fui, agora sou só professor.
— És tenente, na reserva, estás convocado para a defesa da Pátria.
— Diz-me o que posso fazer?

188
Os Soldados Perdidos

— Vão chegar dez rangers para montar um perímetro. Contamos


com a tua ajuda.
— E onde entro eu?
— Dentro de dois dias chega uma berliet com os homens e uns
bidões de duzentos litros com armamento fundamental. Escolhe um
local para guardar o material.
— Conheço o sítio ideal. Os homens ficam alojados aonde?
— Somos rangers, ficamos a viver na mata.
— Para quando a invasão?
— Tenho ordens para te deixar um “rádio banana” e assim poder
avisar-te na hora.
— Os fascistas vão cair que nem tordos. Mostra-me o local para a
instalação do paiol e onde poderemos acampar.
Indiquei-lhe a zona ideal para as respectivas instalações, ele apro-
vou o sítio e, avisou-me que daí a três dias chegavam uma berliet,
com os dez homens, e outra viatura pesada com um catrapiler, para
cavar o improvisado paiol.
Eu estava a viver numa velha casa, no meio da floresta, empres-
tada pelo pai de um aluno que já se tornara meu amigo. Para evitar
as idas e vindas diárias entre Figueiró e Coimbra, a casa servia de
acampamento provisório para mim e, mais tarde foi adoptada pelos
rangers como QG operacional. Andava feliz, mais uma batalha imi-
nente, só não queria assistir a uma guerra civil que nunca traz nada
de bom ao povo, massacrado pelos combatentes.
Todos os dias sonhava com as batalhas futuras. Felizmente o
IN tinha um comando de coronéis, perfeitamente bêbados, que se
entretinham no hotel Velasquez, em Madrid, com umas bailarinas
espanholas, de castanholas e tudo o mais. Os meses em que esperá-
mos a invasão foram muito animadores para mim e para os rangers,
íamos bebendo uns copos em reuniões militares altamente secretas.
Andava feliz com o regresso à guerra.
Num dia incerto, apareceram duas berliet tapadas e, um grande

189
João Viegas

camião transportando um caterpiller. Acabavam de chegar 25 ran-


gers, um pelotão completo e, um célebre capitão dos comandos, “o
Maneta”, Jorge Carneiro, um herói das batalhas no Sul da Guiné,
onde perdeu o braço esquerdo, andando com um braço de ferro que
impressionava qualquer um. Nesta altura era instrutor de rangers em
Lamego, um valente, com um vozeirão de trovoada total. Dirigiu-se
a mim.
— Tenente Viegas?
— Não sou nada, só professor.
— Dizes tu, para nós és tenente, pois foste promovido pelo nosso
general Spínola.
— Não aceitei a promoção!
— Para nós és tenente e patriota. Vais participar na batalha que aí
vem com o teu verdadeiro posto, no final ainda recebes uma meda-
lha ou és enterrado com honras militares. Pessoal, arranjem um fato
de macaco preto e uma boina preta para o nosso tenente, que vai ser
meu assessor militar. Se morrermos os dois, será uma honra. Hurra,
tragam já uma garrafa de whisky velho para comemorar a promoção
do nosso tenente.
Bebemos num copo de metal cheio, já sentia o saudoso cheiro
da guerra, ainda por cima ao lado dum capitão comando, lendário.
Enquanto bebíamos, o caterpiller abria um buraco de quatro metros
de profundidade para colocar os cinco bidões de duzentos litros,
cheios de material de guerra, envolvido em plástico rijo, dentro de
massa consistente, para não enferrujar. O capitão mandou formar o
pelotão ranger, a bandeira nacional foi hasteada na minha casa no
pinhal, os homens ouviram o discurso do seu comandante-geral.
— Camaradas, estamos em estado de prontidão, aqui o IN não
passa, tenham a honra de lutar pela Pátria, como sempre fizeram.
Temos ao nosso lado o tenente Viegas, o azar dele é ser da tropa ma-
caca, mas não se iludam, é um valente que devia ter sido comando.

190
Os Soldados Perdidos

Hurra!!! “Vem morte, vem, montada nas asas do vento, lentamente.


Vem morte, vem!” Hurra!, o que foi repetido por todos os militares.
Depois desta intervenção, chamou o alferes ranger Abreu e deu-
-lhe ordem para levar uma berliet a Lamego, para pedir três canhões
sem recuo 106, com três homens por cada canhão, com 45 granadas
altamente explosivas e incendiárias. O IN não passaria com tanto
poder de fogo. Ainda lhe pediu para trazer um jeep, única forma de
batermos território.
— Viegas, vamos falar com o sargento da GNR, vou-lhe pregar
um cagaço.
Seguimos para o posto da GNR, quando o capitão comando se
apresentou, os quatros homens do posto levantaram-se, com conti-
nência.
— Sou o capitão Jorge Carneiro, dos comandos, este é o meu ad-
junto, tenente Viegas. Sargento Garcia, vamos ser invadidos, em bre-
ve, este posto tem como missão evacuar a população da Vila, para
Coimbra, quando eu lhe der a ordem.
— Meu capitão, às suas ordens!
— Não esqueça, o nosso tenente é o meu adjunto, ordem dele é
minha. Bom dia a todos.
Depois do susto pregado ao sargento e restantes GNR, seguimos
para a minha Escola, onde apresentei o capitão a alunos e professo-
res; surpresa geral, o prof Viegas era tenente. Pus uma licença sem
vencimento por quinze dias, depois seguimos à nossa vida. À saída
ouvi os miúdos gritarem: “viva o capitão, viva o tenente, e viva a gen-
te”, soltei uma risada estridente, enquanto os alunos batiam palmas.
Andava feliz com a guerra no horizonte.
Quem é que gosta de guerra.? Estaria doente?
Passados dois dias, chegou a berliet com os três canhões sem
recuo 106, mais uma arca frigorífica com alimentos vários, para o
pessoal desenjoar as rações de combate. Além disso, havia também
uma bateria de cozinha militar, já podíamos comer refeições quen-

191
João Viegas

tes, para além de uma tenda onde funcionaria a cozinha. Os rangers


andavam a capinar à volta da casa, limpando o pinhal. O jeep estava
estacionado, o que deixou o capitão satisfeito.
— Viegas, vamos dar uma volta no jeep. Alferes Abreu, venha
connosco.
Corremos o pinhal à procura dos locais adequados para os ca-
nhões sem recuo. O capitão decidiu abater pinheiros para termos
posições de tiro seguras. Ao lado do espaldão de artilharia seria
montada uma MG 42, para evitar merdas. Estava tudo preparado
para enfrentar o IN, se eles passassem a zona de contenção, os ran-
gers iam para a guerra de guerrilha para eliminar os sobreviventes.
Os que se rendessem seriam poupados e feitos prisioneiros, os ou-
tros seriam todos abatidos.
Passados uns dias, os bombeiros vieram visitar o improvisado
quartel e pedir ao capitão o caterpiller, emprestado, para desmatar
uma extensa zona de pinhal. Montaram um pequeno gerador junto
ao nosso poço, equipado com mais de cem metros de mangueira,
para podermos apagar eventuais fogos na área. Convidaram os mi-
litares para uma almoçarada no quartel de bombeiros, no domingo
seguinte.
A minha licença sem vencimento estava quase a acabar, em breve
voltaria às aulas. Combinei com o capitão que na próxima semana
voltaria à Escola, ao que ele retorquiu:
— Vais para as aulas mas, se houver necessidade, vamos buscar-
-te.
— Está combinado.
No domingo fomos almoçar ao quartel dos bombeiros umas fe-
bras grelhadas com batatas fritas, mais uns enchidos e outras coisas
boas. Foi um banquete, os bombeiros simpáticos e incansáveis. O
capitão teve que dar uma ordem para ninguém beber mais nada,
pois estávamos em guerra.
No dia seguinte, voltei às aulas, aplaudido por todos os alunos,

192
Os Soldados Perdidos

foi uma festa de recepção espantosa, todos me abraçavam. Estava


contente por voltar às aulas, os alunos faziam perguntas sem fim. Foi
um dia feliz, tudo voltava ao normal, entretanto, tinha combinado
com o capitão que ele iria comigo até Coimbra, para conhecer o meu
mundo. As aulas correram animadas e o tempo voava com tanta fe-
licidade. Às quatro da tarde, chegou o capitão Jorge Carneiro, mais
uma salva de palmas dos alunos. Arrancámos a alta velocidade no
meu simca 1300, mais uma salva de palmas e acenares dos miúdos
eufóricos, era uma festa. “Até amanhã, meninas e meninos, até ao
meu regresso”.
Passada hora e meia chegámos a Coimbra, onde fui direito a casa
para ver os miúdos. Eles olhavam, com ar assustado, para o capitão.
Quase choravam de medo, o que era normal com um personagem
tão estranho. Saímos de casa rumo ao CITAC, onde a rapaziada fi-
cou surpreendida com a nossa visita.
— Viegas, o que te aconteceu?
— Perguntem ao capitão Jorge Carneiro, comandante de rangers
na zona de Figueiró. Estamos à espera duma invasão fascista pela
fronteira Leste, mas descansem porque por nós não passarão.
Apresentei o pessoal ao capitão, figura esta que a todos impressio-
nou: três cruzes de guerra ao peito e um vozeirão de comandante de
tropas de elite. Enfim, um figurão teatral. Comecei por lhe mostrar
o meu pequeno arsenal guardado nos bastidores do teatro de bolso.
Quando chegámos às granadas, deu um berro.
— Viegas, então as granadas não estão desmontadas? Queres ma-
tar esta malta toda?
Começou a desmontar as granadas, separando os detonadores
que guardou numa caixa, para irem para outro lado, neste caso, na
sala da direcção. As granadas ficavam só com o trotil, logo, inofensi-
vas. Quando viu as três kalashnikov, pegou numa e disse:
— Esta é minha. E pô-la a tiracolo.
Depois seguimos para o café Tropical, reduto das tertúlias acadé-

193
João Viegas

micas e não só. Quando chegámos, estavam lá sete MRPP que nos
começaram a insultar: “Assassinos!”. Sem lhes dar tempo, o capitão
Carneiro dirigiu-se à mesa onde estavam os meninos maoistas, tirou
o braço de ferro e começou a “aviá-los”. O líder ficou com o nariz
partido, eu limitava-me a dar-lhes um pontapé no rabo e pô-los na
rua. Os meninos e meninas todos tratados com as porradas do ca-
pitão maneta, choravam baba e ranho, deitados pelo passeio, cheios
de sangue e lágrimas. Quando chegou a polícia, o capitão pô-los em
sentido e só lhes disse para chamarem a ambulância. Foi tudo muito
rápido, sentámo-nos na mesa antes ocupada pelos “meninos”, pedi-
mos uma garrafa de whisky e aguardámos a os “citaquianos” que vie-
ram assistir à porrada já divulgada nos corredores da AAC. Saíram
umas rodadas de “imperiais” e a alegria a todos contagiou. O capitão
lembrou-me que tínhamos que partir para Figueiró: “a guerra não
espera”.
— Camarada Carneiro, proponho que durmamos no CITAC, te-
mos lá uns colchões de praia.
— Aprovado, camarada, assim bebemos à vontade. Alvorada às
seis da manhã.
A noitada prosseguiu em festa rija em rodadas contínuas, as “im-
periais” jorravam sem cessar, todos estavam alegres. Tínhamos que
nos levantar às seis da manhã, partimos às três, já devidamente tol-
dados. Todos ajudaram a encher os dois colchões de praia. Cama
pronta, deitámo-nos vestidos.
— As seis da manhã, já estávamos a lavar a cara na casa de banho.
Seguimos para Figueiró dos Vinhos, sempre a acelerar, era urgente
fazer o ponto de situação com as tropas no terreno. Às sete e meia
estávamos na base de operações, os rangers faziam patrulhas a 500
metros do local. Sorriam e batiam-nos a pala. A guerra voltava ao
normal, despedi-me do pessoal e, segui para as aulas.
— Capitão, vais almoçar comigo?
— Não, hoje vens cá tu almoçar com a rapaziada.

194
Os Soldados Perdidos

— Combinado, às 13h00 cá estarei.


As aulas seguiram rotineiras, aos miúdos que perguntavam so-
bre a batalha eminente, eu respondia que as tropas estavam a postos
para o ataque final. Se os inimigos viessem todos seriam evacuados
para Coimbra, ninguém corria perigo.
Depois das aulas segui para a base, onde todos estavam em activi-
dade frenética. O capitão veio abraçar-me e meteu-me no jeep para
verificarmos todos os postos avançados, dois canhões sem recuo já
estavam nas suas posições, um de cada lado da estrada, o terceiro ca-
nhão ficaria na estrada principal, atrás de uma improvisada barreira
de pinheiros, que já estavam cortados e aí colocados. Para evitar ata-
ques pelos flancos, equipas de cinco homens treinavam emboscadas
no pinhal, movendo-se a uma velocidade controlada. Estes rangers
eram incríveis, autênticas máquinas de guerra. Estava tudo prepara-
do, eu fiquei encarregado de comandar o ataque frontal com o ter-
ceiro canhão sem recuo. Apanhava a coluna principal e matava-os a
todos com granadas altamente explosivas e incendiárias, os primei-
ros cem homens iam arder como barrotes.
O almoço era rancho melhorado, uma cerveja a cada homem,
tempos de guerra, comemos com apetite, tinha aulas da parte da
tarde. Depois do almoço fui para a Escola e levei um “rádio banana”
para transmissões rápidas com o comando. Durante as aulas o rádio
ficava em cima da minha secretária, para espanto dos alunos.
Passou mais uma semana sem incidentes, num determinado dia
recebi uma mensagem: “Invasão adiada, inimigo em fuga”. Na tarde
desse radioso dia, chegaram as duas berliets com os 34 rangers e um
jeep com o capitão e o alferes. Desmontaram em passo acelerado e for-
maram em frente à escola. Todos os alunos e professores saíram para
vêr o espectáculo da formação militar, os oficiais à frente, os soldados
em formação perfeita. Ouviu-se o vozeirão do capitão Carneiro:
— Tenente Viegas, os rangers te saúdam, Hurra, Hurra, Hurra.
Toda a formação em continência à qual respondi e dei o grito

195
“Hurra”, apanágio dos rangers, antes das batalhas. Desci a escadaria,
cumprimentei todos os militares com forte aperto de mão, ao capi-
tão dei um abraço de irmão de guerra.
A uma ordem deste todos embarcaram nas viaturas e partiram.
“Hurra, Hurra, Hurra”. Fiquei calado a assistir à partida dos meus
camaradas de guerra, estava comovido como se tivesse perdido a
última batalha.
Quando entrei na Escola, fui à casa de banho e chorei, estava tris-
te de morte. Enxuguei os olhos o melhor que pude e voltei à sala de
aula. Uma menina loirinha e olhar inteligente, que estava na carteira
da frente, olhou muito séria para mim e disse:
— Professor, estiveste a chorar?
— Catarina, os homens não choram!
A menina levantou-se, veio ter comigo e deu-me um abraço, di-
zendo:
— Professor, não estejas triste, nós gostamos muito de ti.
Guiné meu amor!
“Adeus até ao meu regresso...”
Fernando de Magalhães
Santiago (Cabo Verde) A
João Viegas
AAC / CITAC
Coimbra

Julho de 2018

Camarada João Viegas, sou o Fernando de Magalhães, adjunto do


teu camarada fuzileiro especial Labaredas, que te amava como a um
irmão. Não me esqueço que eras respeitado pelos teus soldados, que
choravam de medo enquanto enfrentavas a morte de frente, como os
guerreiros de antanho. Corpo franzino, loiro como o jovem Camões,
eras amado por todos, quase um imortal.
Conheci-te na batalha de Cobumba, a correr de vala para vala,
enquanto as granadas dos morteiros caíam por toda a parte. Eu sei
que não eras poeta, escrevias nas nuvens a tua audácia ao perigo. A
morte era tua amiga, poupou-te à prova final, eras mesmo imortal.
Sempre a sorrir, animavas os soldados quando tinham medo. Agora
que preparas um romance sobre esta merda sinistra que foi a guerra
colonial, queria dizer-te umas palavras, talvez as últimas, pois estou
velho e doente: escreve, conta a verdade, ninguém quer saber de nós,
os gladiadores do império.
Sei que ofereceste o original desse livro a uma namorada, em Lis-
boa, porque ela perdidamente te amava, só não sabia que tinhas dei-
xado a alma na Guiné, como todos nós, perdidos nas bolanhas e no
sangue, que ainda hoje nos tira o sono.
Camões morreu de fome, e o teu e o nosso destino está marcado.
A nossa guerra começa a apagar-se da memória.

197
João Viegas

Chegámos a ser 650.00 homens, nas três frentes de guerra, traí-


dos pelo império de chulos que sempre nos governaram. Uma vez,
uma única vez, te vi chorar, tinhas perdido três homens do canhão
sem recuo, tu próprio estavas ferido, bebias whisky da marinha, de
vinte anos, a tua imortalidade era a de Aquiles. Aqui não morrerias,
de certeza. Já tinhas cinco filhos todos bebés e nunca te vi chorar por
eles, apenas gritar: “Guiné, meu amor”.
Ainda hoje acordo a suar e a lembrar-me das batalhas inúteis
que travámos, e grito contigo: ”Guiné, meu amor”. Sei que já tens 70
anos, estás velho, como eu, e o fim aproxima-se, sem que ninguém
queira saber de nós. Quanto mais depressa morrermos melhor. Se
tivéssemos vinte anos propunha-te um novo golpe de estado, com
mortos, muitos mortos, todos os corruptos da política a serem fuzi-
lados. O nosso belo país está entregue a bandidos que se governam
despudoradamente. Viegas, escreve o romance, caga nestes filhos-
-da-puta, fala a verdade, só a verdade! Se valerá alguma coisa para a
literatura, pouco importa, porque nós ainda valemos alguma coisa!

Fernando de Magalhães

Post-scriptum:

Escrevo-te da ilha de Santiago, para onde vim no barco que her-


dei de meu avô, o “Argos”. Aqui conheci o amor da minha vida, a
Luana, filha duma tal Bela, do Pilão, que te amava sem limites. Uma
vez, entrei na casa delas e vejo a fotografia dum jovem alferes, meio
aloirado, em tronco nu, a ler à entrada da tua tenda, na selva de Co-
bumba.
Contaram-me a história dum alferes que a seguir ao 25 de Abril,
aterrou no ilhéu das Galinhas, campo de concentração da PIDE,
armado até aos dentes, acompanhado por um comando africano,

198
Os Soldados Perdidos

o sargento Abibo, para libertar uma jovem cabo-verdiana de olhos


verdes como o mar, a Bela, que aí se encontrava presa. Os “pides”
fugiram como se fosses a peste, pois querias dizimá-los.
Quando pegaste ao colo a jovem, magra e triste, os vossos lábios
colaram-se à vista do mar que crescia com as vossas lágrimas.
Mas nem sei quem mais te amava, se a mãe ou a filha.
Foste o cavaleiro da lenda.
Ambas já morreram, com o maldito cancro. Mas infelizmente eu
continuo vivo e só, por isso decidi partir no “Argos” para os Mares
do Sul.
Se chegares a tempo, partiremos juntos, whisky não faltará, nem
tabaco de cachimbo.

Fernando de Magalhães

199
EPILOGO

Para preparar a minha viagem fui falar com o Rui Damasceno,


meu amigo de há 45 anos, o melhor actor de teatro de Coimbra e
quiçá a nível nacional. Expus-lhe o projecto da viagem aos Mares do
Sul e convidei-o para a aventura.
— Viegas, então achas que eu me ia meter com dois “apanhados”
da Guiné, que estão fartos de viver sem a adrenalina da guerra?...
Mas pensando bem, talvez precise também eu de adrenalina, pelo
que pode ser uma boa ideia acompanhar-vos nessa aventura.
— Se tivermos azar, não há regresso.
— Quero lá saber, já tenho os filhos criados.
Deixei a tipografia do Damasceno, dirigi-me à tasca do Zé Ralha,
rainha das tascas de Coimbra, e falei-lhe da viagem.
— Camarada Viegas, leva-me contigo, preciso de uma aventura
para descansar o espírito.
— Ralha, podemos não voltar, vai ser duro.
— Quero lá saber, vamos embora.
No dia 3 de Dezembro de 2018, partimos para a ilha de Santiago,
levando a minha gata-preta, cega do olho direito, com quem já vivia
há 14 anos, Anita Garibaldi de seu nome, minha camarada de vida e
de morte. Abandoná-la, nunca. Levava comigo apenas um saco, com
alguma roupa e uma dúzia dos meus livros seleccionados, entre os
quais a obra completa de Camões.
Chegados à cidade da Praia, lá estava o meu amigo Fernando de
Magalhães, cabelo e barba branca, tal como eu, dois velhos comba-
tentes prestes a realizarem a última façanha. Deu-me um abraço de
velho camarada de guerra, riu-se quando viu a caixa onde vinha a
gata.
— Então, vens acompanhado?

201
João Viegas

— Apresento-te a minha gata, Anita Garibaldi, minha compa-


nheira há 14 anos, o meu amigo do teatro Rui Damasceno e o Ralha,
grande pescador à linha e combatente em Angola. Vêm fazer a últi-
ma viagem.
— Qual última qual carapuça! Não me chame Magalhães se não
encontrar a rota que o meu antepassado seguiu.
— De acordo, camaradas, vamos lá ver isso.
Seguimos no jeep willys amarelo, do meu amigo, para o barco,
o “Argos”, que estava ancorado numa doca de pesca. Era um belo
barco todo em madeira, com 15 metros de comprimento. O interior
estava impecável, tudo a brilhar.
— Viegas instala a gata, e diz-lhe para não me borrar o barco.
— Tenho que comprar uma caixa e areia, para além da ração.
— Vamos almoçar à tasca dum velho fuzileiro na Guiné. Prepa-
rem-se para o desembarque.
O Magalhães ofereceu um boné de fuzileiro a cada um, pare-
cíamos velhos guerrilheiros. Chegámos à parte velha da cidade da
Praia, uma maravilha, um povo bonito, uma cidade colorida. Quan-
do aportámos ao restaurante “Tubarão”, fomos recebidos por um
homem com um metro e noventa, só músculos, cabelo branco, um
sorriso contagiante.
— Comandante (disse ele dirigindo-se ao Magalhães), boa sur-
presa, temos uma caldeirada especial, como comíamos na Guiné.
— Gasparão, apresento-te o ex-alferes Viegas, o amor da nossa
Bela, mais um camarada poeta de Coimbra, o Damasceno e, o Zé
Ralha, pescador à linha conceituado e dono da melhor tasca da ci-
dade à beira do Mondego.
— É uma honra conhecer o alferes “bonito” da Bela. Ela morreu
com a tua fotografia ao peito e a chamar por ti. A vossa história de
amor já é uma lenda na cidade da Praia. Há mornas a contar a vossa
história. Hoje ao jantar estarão presentes as amigas da Bela, para
além duns músicos e declamadores.

202
Os Soldados Perdidos

Atacámos a caldeirada com um apetite devorador, um vinho


branco bem frio, conversas e histórias várias, risadas estridentes.
Combinámos a jantarada que teria lugar pelas oito, com convidados
especiais, as amigas da Bela e artistas vários. O Damasceno aprovei-
tou para recitar Camões “Erros meus”. Vários clientes se aproxima-
ram, pagámos uma rodada a todos, a festa estava a começar. Chegou
um cabo-verdiano de cabelo branco.
— Tu é que és o alferes que libertou a Bela do campo de concen-
tração?
— Sou o ex-alferes Viegas, venha daí um abraço!
— Alferes, fui do PAIGC, combati contra os “tugas” mas, todos
conhecemos a história do homem que libertou o comandante Baldé
e, mais tarde, a Bela. Todos te respeitávamos, hoje venho à festa em
tua honra. Sou o Casimiro, estou na minha terra e respeitamos o
Gasparão, ex-fuzileiro português. Obrigado alferes Viegas!
— Casimiro, éramos inimigos, sem o sermos. Depois da inde-
pendência, foi a merda do costume, todos os homens que comba-
teram ao nosso lado, foram fuzilados com as respectivas famílias.
Uma vergonha para o PAIGC. Safaram-se os grandes chefes, o povo
continua na miséria.
— Alferes, tive que sair da Guiné, quando eles começaram a per-
seguir os cabo-verdianos.
— Camarada Casimiro, desejo-te as melhores felicidades e, tens
aqui um amigo, para o que precisares.
Abraçámo-nos, rimos, bebemos mais uns copos, o jantar previa-
-se de arromba.
— A todos os camaradas, um hurra aos valentes que tombaram
na guerra, dum lado e do outro, liberdade sempre! (gritei com o
copo ao alto).
Era bom de ver, os velhos inimigos a beber juntos, homenagem
póstuma aos milhares de mortos, nos dois lados da guerra. O Ca-
simiro e o Gasparão abraçados e a derramarem lágrimas de afecto

203
João Viegas

militar, irmãos de guerra. Só quem por lá passou, sabe o que isso é!


— Camaradas, gritei eu, temos que comprar ração para a gata,
areia e, uma caixa. Vamos embora, até às oito.
Despedimo-nos, fomos a uma mercearia ali perto, depois segui-
mos para o barco, no jeep amarelo do Magalhães A gata Anita, de-
pois de uma cagada no chão, miou e, correu para a ração.
— É bem feito, disse eu, estava cheia de fome.
Limpei a porcaria, o chão do barco era sagrado. O Casimiro que
nos acompanhava, ria-se alegremente.
— Afinal, que viagem vão vocês fazer? A caminho dos mares do
Sul, cheira-me mal! Vão morrer neste barco pequeno.
— Casimiro, se morrermos, é o destino dos velhos guerreiros.
— Camarada Viegas, podiam ficar na cidade da Praia, tinham
tudo o que precisassem.
— Casimiro, temos que ir para os mares do Sul, é o destino dos
últimos poetas!
— Já percebi, camarada Viegas, queres ir para perto da Bela. Ela
sempre esperou por ti. Sigam o destino, ela vos aguarda. Se não mor-
rerem, voltem para a cidade da Praia, estaremos à vossa espera.
— Obrigado, amigo Casimiro, só voltaremos se os deuses assim
o entenderem.
— Camaradas, vou buscar uma garrafa de grogue ao meu barco
de pesca. Coisa de marinheiros (acrescenta o Casimiro).
O Magalhães impôs-se.
— Qual grogue? Não podemos engrossar-nos antes do jantar.
— De acordo, disse eu, leva a garrafa para o jantar.
Entretanto, o Casimiro convidou-nos para ir visitar a coopera-
tiva de pesca “Alvorada”, da qual era o presidente. Tinham quatro
barcos de pesca, comprados a Portugal. Quase todos os membros da
cooperativa eram ex-guerrilheiros do PAIGC, só os mais jovens não
tinham nada a ver com isso.

204
Os Soldados Perdidos

Quando chegámos aos barcos, os ex-guerrilheiros cumprimenta-


ram-me cordialmente. Tínhamos sido inimigos, com honra. O Da-
masceno ria-se muito.
— Viegas, que guerra foi essa em que os inimigos se cumprimen-
tam como velhos amigos?
— Damasceno, éramos todos jovens, não ficou ódio entre nós.
Como não podia deixar de ser, bebemos um copo de rum cabo-
-verdiano, o grogue, uma delícia, como aperitivo para o jantar.
Fomos até ao Argos, a gatinha lá estava, deitada na minha cama,
toda contente. O Casimiro riu-se ao ver uma gata preta.
— Gato preto dá sorte, afasta os maus espíritos. Vocês vão voltar
para a cidade da Praia.
O Magalhães limitou-se a dizer:
— Estou farto de dizer a estes camaradas que a viagem vai ser
uma peluda.
— Se não morrermos, fico na cidade da Praia.
— Camaradas, propus, vamos dar uma volta pela cidade velha,
junto à fortaleza.
Com o Casimiro a cicerone, fomos conhecendo as velhas ruelas
da cidade velha, cheia de recordações dos portugueses, Perto da for-
taleza estava o restaurante do Gasparão, uma parreira carregada de
belas uvas, a dar a sombra desejada às mesas pintadas de azul que
compunham a esplanada do restaurante, “o tubarão”.
Quando lá chegámos, já lá estavam cinco belas mulheres, a Lara,
a Rita, a Marlene, a Patrícia e a Maria. Feitas as apresentações, sentá-
mo-nos à mesa, a Lara aproximou-se de mim e agarrou-se aos meus
ombros num gesto de ternura. Começava bem este jantar. As outras
jovens, a Rita e a Marlene e a Patrícia juntaram-se ao Magalhães, ao
Damasceno e ao Ralha, respectivamente, tendo optado por se senta-
rem ao lado deles.
O jantar chegou: ostras com limão, lagostas, santolas, camarão ti-
gre, tudo acompanhado por um verde tinto de Ponte de Lima, gelado.

205
João Viegas

Enquanto comíamos os manjares maravilhosos, as jovens riam


muito e, espalhavam a alegria pela mesa. A Lara não me largou mais.
— João, não vás nessa viagem, fica aqui comigo, vamos ser felizes
como o foste com a Bela.
— Minha amiga bonita, o meu destino está nos mares do Sul,
agora não é tempo para o amor.
— Não acredito, já gosto de ti como se te conhecesse há muitos
anos, fica...
— Não posso, a viagem começa amanhã.
— Esta noite vais ficar comigo, lá no barco do teu amigo.
— Combinado, minha amiga bonita, quando acabarmos o jantar,
seguimos.
Deu-me um beijo que me deixou zonzo, uma pele tão suave como
uma nuvem. Reparei que o Damasceno se tinha agarrado à Marlene,
beijavam-se intensamente e, o Rui gritou:
— Camaradas, estou apaixonado, os meus mares do Sul ficam
aqui.
— Traidor, gritei, conjuntamente com o Magalhães e o Ralha.
Deixa-te de merdas e avança connosco.
— Seus sacanas, militares doidos, estou a brincar, vou na viagem
mas, apetecia-me ficar aqui, com esta mulher bonita.
— Não podemos, são os códigos de honra a falar, já vivemos o
suficiente, está na hora de falarmos com os mares do Sul (disse o
Magalhães, com o seu vozeirão).
— Já percebi, querem morrer, mas eu quero viver o que me falta.
— Ninguém vira a costas ao IN, vamos todos enfrentar o destino
(disse eu). Se violarmos o juramento, seremos amaldiçoados para
sempre.
— Que merda, quem me manda meter com malucos (disse o Da-
masceno, sorrindo).
— Camaradas, vamos comer em paz, a decisão do Damasceno vai
ser resolvida quando estivermos no barco.

206
Os Soldados Perdidos

O Gasparão deu o grito de guerra, “siga a marinha”, nós gritámos


o hurra de combate, o Damasceno ria-se perdidamente, enquanto
beijava a Marlene que o agarrava com força. Estava o baile arma-
do. Aquilo só podia acabar bem, muito bem. O vinho esgotou-se
após a sexta garrafa, tivemos que mandar vir um branco do Minho,
também gelado, outro Ponte de Lima, verde branco, outra delícia. A
mariscada parecia a maresia a esgotar-se, por entre risadas colectivas
e graçolas estúpidas. O tempo parou, já era meia-noite quando o jan-
tar acabou, mais uns whiskys e uns cafés para fazer de conta.
Acabado o jantar, seguimos para o “Argos” devidamente acasa-
lados. Eu e a Lara, seguíamos à frente, o Damasceno e a Marlena a
seguir, devidamente enrolados, o Magalhães e a sua Rita, o Ralha e
a Patrícia, no fim. Chegados ao barco, a gata “Anita” escondeu-se, os
casais procuraram os respectivos ninhos de amor, estava instalada a
grande confusão.
O belo corpo dourado, os olhos azuis, a perfeição das formas,
estava perante uma obra de arte. Mergulhei em águas profundas, o
amor a inundar o espaço. O êxtase, a alegria, a tristeza, tanto amor
para dar e receber.
— João, vais mesmo partir para os mares do Sul?
— Lara, ficava já aqui mas, isso seria trair os camaradas. Amanhã,
partiremos.
— Como posso convencer-te a ficar comigo?
— Não podes, a viagem é inevitável!
— Tenho tanta pena, queres mesmo morrer?
— Se morrer, cumpre-se o destino.
— João, ainda podes ser feliz, fica comigo.
— Minha bela amiga, sou feliz com a minha solidão.
— Vais morrer sozinho!
— Só, mas acompanhado pelos meus fantasmas.
— Tenho pena de te perder.
— Ninguém sabe o que vai acontecer nesta viagem, minha amiga.

207
João Viegas

O mais certo é voltarmos intactos. Se isso acontecer, prometo que


venho viver para a cidade da Praia.
— Espero que isso aconteça, mas vocês são ex-militares malucos,
parece que querem morrer...
— Lara, quando éramos jovens só sobrevivemos à guerra, por
pura sorte, o resto é história.
— Vamos amar-nos, deixa tudo o resto para trás das costas.
Um vulcão brotou daquela cama, o barco abanava alegremente,
risos e gritos de prazer, era a ilha dos amores de Camões. As horas
passaram sem dar por isso, todas as camas ocupadas, ninguém se le-
vantava, era a influência do clima tropical e de tanto amor a navegar.
Cerca das onze da manhã, o Magalhães ligou a sirene da marinha,
uma javardice que obrigou ao levantamento geral. Voaram impropé-
rios: “sacana, a malta precisa de descansar”.
— Vamos almoçar ao Tubarão, hoje há caldeirada e muita vinha-
ça. Camaradas, só embarcamos amanhã, rumo ao nosso destino.
Hoje, há festa de despedida, “siga a marinha”!
Nesta altura entrou o Casimiro com uma caixa de peixe fresco e o
Gasparão com uma caixa de rum de Cabo-Verde, o grogue. O peixe
foi para a arca, o grogue, arrumado a um canto. As mulheres iam-
-se levantando, mais ou menos descompostas, todos se riram com o
embaraço delas. O Magalhães atirou-se ao mar, dando o exemplo ao
resto do pessoal. Passados uns minutos estávamos a nadar no ocea-
no Atlântico, de onde saímos rapidamente quando nos avisaram
para termos cuidado com os tubarões.
Subimos para bordo, enquanto o Casimiro e o Gasparão riam de-
salmadamente, os tubarões não vinham ao porto de pesca. Quando
as miúdas saíram do mar, com os belos seios ao léu, houve um mo-
mento de silêncio, só quebrado pelo Gasparão.
— Os nossos marinheiros dos mares do Sul raptaram as mais be-
las da cidade e, mesmo assim hesitam em ficar no paraíso. Não sei se
vocês vão conseguir navegar nesta casca de noz.

208
Os Soldados Perdidos

— Sou descendente do grande Fernão de Magalhães, em cascas


de noz navegavam os aventureiros de Quinhentos, nós navegamos
num barco pequeno, mas robusto.
A Lara meteu-se no belo vestido de flores, com botões à frente,
sem roupa interior, era um espanto e uma tentação. Belas gazelas,
de braço dado com os marinheiros de cabelos brancos. A felicidade
escorria pelas ruas da cidade, os velhos apaixonados pelas sereias, ou
seria só o canto final?
Era bonito de se ver, tanta alegria a percorrer a velha cidade. A
Lara sussurrava-me ao ouvido:
— João, fica comigo, vamos ser muito felizes.
— Miúda bonita, a decisão das nossas vidas está tomada.
— Tenho pena se não te voltar a ver, muita pena.
Sentados à mesa do restaurante, o Magalhães deu o grito de or-
dem:
— Camaradas, durante dois dias vai haver forte tempestade na
zona, segundo informações dos pescadores. Aproveitem o descan-
so porque depois de amanhã, seguiremos viagem pela madrugada,
rumo ao Brasil.
Houve um sururu na mesa, as miúdas a agarrarem-se aos amigos,
uma certa nostalgia invadiu-nos, só quebrada pela iguaria que nela
aterrou: uma cataplana perfumada.
O Magalhães alvitrou um passeio, para depois do almoço, no seu
jeep amarelo, pela ilha de Santiago, com as belas amigas como cice-
rones na despedida. A Lara começou a cantar a morna “É tão doce
morrer no mar” e os rostos fecharam-se numa certa tristeza que en-
sombrou o repasto.
Neste instante entrou o Paulão da viola, ex-guerrilheiro do
PAIGC, que dedilhou a música tão bonita da canção que a Lara can-
tava.
— Ó Gasparão, esqueceste-te do teu velho amigo? Estes almoços,
sem música, não sabem a nada. Vim dar um abraço ao alferes da

209
João Viegas

Bela e, agradecer-lhe por ter libertado o meu comandante Baldé que


ia ser entregue à PIDE-DGS.
Levantei-me para abraçar este camarada de guerra que quase me
partiu os ossos.
— Agora já percebi por que razão a Bela se apaixonou por ti. Pa-
reces um velho navegador, mas as mulheres seguem-te como se ti-
vesses mel, ou talvez seja por causa desse olhar triste, pendurado no
infinito.
— Camarada Paulão, é uma honra abraçar um dos guerrilheiros
do comandante Baldé.
— Camarada Viegas, vou cantar uma lengalenga cabo-verdiana,
dedicada aos amores da Bela e de um certo alferes português:

Chegou um alferes valente


Do outro lado do mar.
Veio para matar os mouros,
Mas, o amor o fez parar.
Bela a mulher, Belo o olhar,
Bela de olhos verdes,
Como a beleza do mar.

— Bonito de se ouvir, obrigado, camarada.


Antes de começar o almoço, chegou mais um elemento, o Joãozi-
nho das Viagens, dono duma agência de viagens-aventura: “Viagens
do Mundo”. Nome pomposo para viagens num velho unimog da
guerra colonial, o nosso “camelo das picadas” que, neste caso, seria o
camelo das estradas. A viatura toda pintada de azul, com o desenho
de um tubarão azul, nas laterais, os bancos duvidosos, com sistema
de segurança, para que os passageiros não caíssem nas curvas, en-
fim, uma lata velha e típica, que se destacava no turismo aventura da
zona. Já era uma aventura embarcar naquilo.
O Gasparão apresentou o personagem e, comunicou que à tarde

210
Os Soldados Perdidos

haveria lanche nas montanhas da ilha. O nosso passeio ia ser mais


uma excursão de malucos à conquista da terra. Iríamos ao Pico do
António, que distava cerca de trinta km da cidade da Praia. Quando
o Casimiro chegou, ficámos a saber que a tempestade só duraria esse
dia e, por conseguinte, no seguinte poderíamos seguir, calmamente,
para o Brasil. Só as miúdas ficaram tristes com a notícia. Um nave-
gador não pode ficar muito tempo em terra.
— Navegadores, daqui ao Brasil são 2500 milhas náuticas, uma
distância simpática (disse o Casimiro).
O Magalhães berrou:
— O que é isso para marinheiros experimentados? Vamos almo-
çar, estou cheio de fome e sede.
Dado o mote, atacámos a cataplana; salve-se quem puder. A fome
era muita e no dia seguinte partiríamos para o Brasil. E depois seria
a grande viagem.
Foi uma autêntica festa, o almoço, onde a cataplana voava acele-
radamente. Acabou num instante; vieram mais umas febras grelha-
das. Nesta altura interveio o Casimiro:
— Camaradas, agora vamos experimentar o vinho tinto da ilha
de Santiago, o “Manécon”, uma delícia, para o lanche. É o que vamos
levar na viagem, para além do vosso rum.
O vinho tinto da ilha foi apreciado pelos melhores especialistas,
quer dizer, todos os bêbedos presentes.
— Aprovado. Isto é uma pomada medicinal. Foi a conclusão geral
e unânime.
E o almoço lá prosseguiu na maior alegria, o último antes da
grande viagem para os mares do Sul. As belas mulheres estavam tris-
tonhas, os nossos amigos já diziam umas piadas, sem graça, o que as
deixava ainda mais tristes.
O Casimiro falou com um ar sério:
— Os nossos navegadores vão partir amanhã. Se voltam ou não,
só o mar o saberá. Lara, canta-nos outra vez aquela canção “é tão

211
João Viegas

doce morrer no mar.”


Com o Paulão à viola, Lara cantou com a sua voz de anjo, as lágri-
mas a escorrerem-lhe pelo rosto, todos ficámos comovidos. Beijei-
-lhe os cabelos que cheiravam a mar, uma lágrima bailou-me peri-
gosamente, os navegadores não choram, morrem a insultar o tempo.
Quando a canção acabou, Lara levantou-se e beijou-me num bei-
jo imortal, por menos, já se tinham feito guerras.
— João, meu amor, volta para os meus braços, estou à tua espera.
A cena de amor foi aplaudida por todos, talvez o vinho tenha
despoletado sentimentos de tristeza.
— Minha Lara bonita, se morrer é a pensar em ti, já vale a pena,
mas talvez regressemos.
— Mas porquê irem para os mares do Sul? O mar é todo igual.
— Não, meu amor os mares do Sul são o velho cemitério dos poe-
tas tristes, como é o nosso caso.
— Ao menos, deixa a gata comigo, seria uma memória boa.
— A gata Anita Garibaldi é a reencarnação da grande guerrilhei-
ra, mulher do Giusepe Garibaldi, o guerrilheiro dos dois mundos. A
Anita morreu, de armas na mão, a lutar contra a tirania, em Itália.
Eu gostava de ter tido a coragem do Garibaldi, só me resta o amor
da minha Anita e, agora, o teu doce amor. O Paulão vai compor uma
nova canção sobre esta viagem dos novos argonautas.
O Gasparão interveio:
— Camaradas, já chega de tanta tristeza, vamos lá fazer a excur-
são ao pico do António.
Todos os camaradas se reuniram no exterior do restaurante, ficou
combinado que o unimog das “viagens do mundo” seria o primeiro
da coluna, com a sua cor azul e, um tubarão pintado, símbolo de
bom augúrio, embarcando cinco elementos, corajosos passageiros,
nos bancos mal-amanhados e presos por duvidosos parafusos, que
já tinham visto melhores dias. No jeep willys, do Magalhães iam os
navegadores e respectivas namoradas, tudo ao molho e fé em deus,

212
Os Soldados Perdidos

o Viegas, o Ralha e o Damasceno sentados no banco detrás, com a


Lara, a Patrícia e a Marlene ao colo, respectivamente, enquanto a
Ritinha acompanhava o comandante, meio descascada, motivo de
gargalhadas sonoras. No Land Rover do Gasparão, outra lata velha
cheia de buracos de ferrugem graças à maresia, seguiam o próprio
Gasparão, o Paulão da viola e os restantes passageiros e companhei-
ros de folia, o Antonino “metralha” (por só falar em metralhadoras,
como se ainda estivesse na guerra), o Joaquim “rpg”, outro louco da
guerra.
Era uma estranha coluna de viaturas, toda a gente se virava para
apreciar o espectáculo, buzinas a tocar ruidosamente, alguns polícias
a baterem a pala aos ocupantes das viaturas esquisitas. Saímos da
cidade e, fizemo-nos à estrada para o pico do António. O caminho
era deslumbrante, do lado direito o imenso mar verde, agitado e em
plena tempestade com ondas enormes que nos faziam prever a futu-
ra viagem. Era assustador, veremos se conseguimos escapar. Com as
curvas e a trepidação, os vestidos das miúdas abriram-se completa-
mente, visão deslumbrante para os ocupantes de jeep, que provocou
uma reacção quase orgástica nos elementos do grupo. Uma loucura,
os ocupantes das outras viaturas batiam palmas desenfreadamente,
as deusas davam um espectáculo nunca antes visto, o que viria a
seguir era uma incógnita. O unimog abrandou a marcha para que
os ocupantes pudessem observar o espectáculo. Uns javardos, bem-
-dispostos, que só queriam ver, de perto, tanta beleza junta. Afinal,
tinham razão, estas mulheres eram monumentos à perfeição.
As viaturas aceleraram rumo ao pico, os cinco km do destino fo-
ram feitos rapidamente. Quando chegámos, as raparigas abotoaram
os ousados vestidos. Toda a gente estava bem-disposta e encantada
com o lugar, de árvores frondosas, a rodear um conjunto de mesas
e bancos de pedra, com um grelhador em pedra. Com a chegada do
Land Rover do Gasparão, descarregámos as caixas com bons bifes
e costeletas, mais uns pacotes de batatas fritas e muita fruta, para

213
João Viegas

além do carvão. O assador de serviço era o Gasparão, mais o An-


tonino metralha e o Joaquim “rpg”, um grupo de guerra, altamente
eficiente. Todos ocuparam os postos de acção, para que o repasto
não demorasse muito.
Os carvões começaram a arder e menos de meia-hora depois já
havia brasas para assar as carnes. Um delicioso cheiro impregnou o
ar, enquanto o Paulão da viola tocava umas mornas e outras músicas
bonitas. Era uma festa, todas as pessoas em festa, a verdadeira festa
de despedida dos navegadores. O Casimiro veio ter comigo.
— Camarada Viegas, amanhã nós vamos à pesca pelas 5 horas.
Passaremos pelo vosso barco para vos acordar, depois, seguiremos
juntos, durante algumas milhas, até entrar na zona do rumo ao Bra-
sil.
— Agradeço, camarada, vai ser uma grande viagem.
— A vossa viagem é perigosa, têm que ter muito cuidado, nesta
altura do ano.
— Há tempestades?
— Muitas e violentas; todo o cuidado é pouco.
Depois da prolongada merenda, partimos para o nosso barco,
com uma comitiva ruidosa de fim de festa; as viaturas buzinavam
quando entrámos na cidade da Praia. O “ARGOS” aguardava-nos,
esbelto, mais parecendo uma pequena, contudo forte, escuna.
Quando pisámos o convés, as miúdas fizeram escorregar os vesti-
dos, corpos de deusas a emoldurar a paisagem. Mais um forte aplau-
so de todos os mirones que na verdade aguardavam o momento.
Rapidamente aterrámos nos beliches, havia tempestade nos cor-
pos, foi um facto do outro mundo, sabíamos que era o derradei-
ro encontro, tínhamos que aproveitar ao máximo. Amávamo-nos
como nunca tinha acontecido, era amor derradeiro.
O barco balançava como se fosse uma tempestade, e era, uma
tempestade de amor sem fim, já que o próprio fim estava perto. Num
coro de gemidos e gritos, o barco destacava-se na frota ancorada na-

214
Os Soldados Perdidos

quele porto. Nem as gaivotas se atreviam a poisar naquela estranha


embarcação, passando ao largo, assustadas com a barulheira.
A noite passou num ápice, às cinco da manhã entrou em cena o
Casimiro, com risadas estridentes.
— Então os navegadores querem dormir? Está tudo a acordar!
As miúdas saíram das camas a rir desalmadamente, com a nudez
radiosa dos seus corpos de ninfas, o Casimiro só ria, o pessoal come-
çou a vestir-se rapidamente.
— Camaradas navegadores, o barco tem combustível que chegue?
— Está cheio até às bordas.
— Já verificaram todos os instrumentos de navegação?
— Casimiro, vai haver tempestade?
— Preparem-se para uma depressão forte a dez milhas da costa,
com ondas de sete metros. Trouxe-vos duas caixas de comprimidos
para o enjoo, assim vão aguentar sem se vomitarem todos.
Depois de muitas lágrimas de crocodilo, as jovens foram à sua
vida e, nós preparámos o barco para a viagem. Apontaríamos para o
Rio de Janeiro, talvez com uma breve paragem em Porto Alegre (Rio
Grande do Sul), cidade bonita, por onde andou o meu herói Giusepe
Garibaldi. Depois dessa paragem seguiríamos para a fase derradeira,
ou seja, à descoberta do caminho de Fernão de Magalhães.
Com os dois barcos do Casimiro à nossa frente, fomos levados
até à zona de pesca deles, onde o mar já mostrava algum nervo-
sismo. Vestimos os fatos para a chuva sob coletes salva-vidas, e
preparámo-nos para prosseguir viagem. E mais se agitou, com
vagas sucessivas que nos assustavam; não fossem os comprimi-
dos para o enjoo haveria sinfonia de vómitos pela certa. No dia
seis de Dezembro partimos rumo ao Rio de Janeiro, aonde cal-
culávamos arribar dentro de 15 dias a uma velocidade média de
dez nós/h. Cortávamos as vagas com a força do motor de 300cv,
azimute apontado ao Sul, seguíamos a bom ritmo, não fosse o
medo das ondas. Lembrei-me então dum poema do grande cata-

215
João Viegas

lão anarquista, Jesús Lizano, que tem como tradutor o camarada


Carlos d’Abreu:

o capitão / não é o capitão / o capitão / é o mar

Coragem não nos faltava, mas o medo era bastante, consideran-


do as ondas de sete metros, que são já para nós tempestade. Para
os pescadores de alto-mar será normal. O homem do leme era um
valente, nem a chuva a fustigar-lhe o rosto o faziam desviar os olhos
da linha do horizonte, era um ser orgulhoso do seu ascendente Fer-
não de Magalhães. Continuou sozinho no leme durante o resto do
dia e, quando houve almoço, o Ralha levou-lho, e ele, no seu posto,
o comeu. Já era um verdadeiro navegador. Com o fim da manhã
a chegar, parou a chuva, as ondas acalmaram, o sol despontou ra-
diante. O Magalhães decidiu abrir a grande vela latina pedindo-nos
colaboração para a tarefa. Com o vento de feição a embarcação na-
vegava à bolina e a toda a brida, rumo ao Sul. Que beleza, parecia
uma pequena caravela com uma estranha guarnição de loucos. Hou-
ve distribuição de grogue para animar a rapaziada.
Galopávamos as ondas mais pequenas, parecendo que fazíamos
surf. O Ralha pescava alegremente e o peixe começou a picar, ele
era quase-profissional da pesca à linha, tirocinante nas falésias da
Figueira da Foz, com mais uns castiços dos copos, cujo resultado
final acabava na tasca “do Ralha”, pois está claro, por entre doidos
bons e bêbedos de primeira linha, enfim a fina flor duma certa boé-
mia coimbrã. Em pouco tempo içara seis peixes jeitosos, o suficiente
para garantir o almoço, que seria acompanhado com uma boa vi-
nhaça e uns grogues pós-refeição. E que viessem os Mares do Sul.
Às treze horas já o peixe estava grelhado e por isso nos deslocá-
mos para a zona do leme com uma mesa desdobrável e bancos, para
almoçar em companhia do Magalhães, o nosso homem do leme. Por
entre larachas e uns copos de vinho, restaram as espinhas, com o

216
Os Soldados Perdidos

timoneiro sempre atento ao mar.


No dia 21 de Dezembro aproximávamo-nos do Rio de Janeiro.
— Camaradas, amanhã por esta hora entraremos na barra da
Guanabara, onde abasteceremos de combustível, água e alguns
mantimentos, sobretudo fruta, muita fruta. Entretanto manteremos
a vela latina, que o vento está de feição.
Depois do almoço, a tripulação aproveitou para se bronzear. Até a
gata Anita estava ao sol, confortavelmente deitada. Estava tudo bom
demais, o sol trouxe alegria aos navegantes, por entre larachas e gri-
tos de guerra, seguíamos para o Rio de Janeiro.
De repente o Magalhães usou o apito para chamar a tripulação e
gritou:
— Camaradas, isto não é uma praia. Aqui só a gata Anita pode
apanhar sol, vocês têm que trabalhar. Toca a fazer limpeza, quero o
convés do barco a brilhar.
O comandante mandava e nós obedecíamos. Durante várias horas
tudo esfregámos, lavámos e polimos e deixámos a brilhar. Já éramos
marinheiros e estávamos contentes com o resultado do suadouro.
O barco navegava a boa velocidade, os peixes-voadores sauda-
vam-nos, o mar estava sereno e belo. Percebia agora a razão da céle-
bre frase dos marinheiros de Quinhentos: “navegar é preciso, viver
não é preciso”. À miséria social vivida no reino restava a aventura das
longas viagens marítimas, buscando a sorte.
Veio-me à memória a canção, “como é belo morrer no mar, nas
ondas verdes do mar”.
Porque nos dirigíamos para os Mares do Sul, recordei um texto
de Luis Sepúlveda sobre a célebre “confraria dos mares do Sul”, diri-
gida por um tal Manuel Alentejano, grupo de piratas cruéis que tra-
balhavam numa espécie de cooperativa, onde os lucros eram equi-
tativamente repartidos, deixando de lado sempre um quinhão para
nos portos distribuir pelos miseráveis. Agiam de forma contrária
dos políticos, roubavam os ricos para repartir com os pobres.

217
João Viegas

O timoneiro estava exausto e eu substituí-o até à hora do jantar.


— Só tens que olhar para a bússola e seguir sempre nesta posição.
Amanhã avistaremos a cidade dos cariocas e entraremos na barra.
Foi o Magalhães passar pelas “brasas”, depois de longas horas ao
comando do barco.
Às sete horas, o Ralha apresentou o jantar: bifes com pimenta e
alho, uma das suas especialidades, acompanhados por um belo tinto.
— Camaradas, o Viegas foi um bom timoneiro, estamos na rota
certa. Amanhã, chegaremos ao Rio de Janeiro, antes da hora previs-
ta.
O entardecer incendiava o horizonte, o pôr-do-sol morria no
mar, o barco navegava calmamente, parecia uma pena a esvoaçar
pelos campos do meu país. A viagem seguia rápida, espero que o
Brasil não esteja muito longe.
— No dia seguinte, pelas 8h víamos a baía da Guanabara, a bela
e enorme baía, com uma base da Marinha de Guerra e outras do-
cas, de pesca e de recreio. Vimos aproximar-se a alta velocidade um
barco de borracha com três fuzileiros navais. Encostaram-se à nossa
embarcação, pediram autorização para subir a bordo, e comunica-
ram-nos que o comandante do porto estava à nossa espera na doca
da Marinha. Um dos fuzileiros tomou o comando do Argos e levou-
-nos até à doca. O capitão de mar-e-guerra, Cavalcanti de seu nome,
aguardava-nos com rasgado sorriso, era um homem simpático e
cordial.
— Senhores navegadores, é uma honra receber marinheiros por-
tugueses. Aqui estão em porto seguro. A Marinha de Guerra brasi-
leira oferece-vos o abastecimento de combustível e o mais que pre-
cisem.
— Senhor comandante, aceite os nossos cumprimentos e agra-
decimentos pela recepção e hospitalidade. Para além do combustí-
vel necessitámos de água e muita fruta, quanto ao resto, há de tudo
(afirmou o Magalhães).

218
Os Soldados Perdidos

— Senhores navegadores, vou destacar um militar para vos


acompanhar na visita à cidade. Ao meio-dia, estejam na messe da
Marinha. São meus convidados para o almoço.
Deixámos as instalações portuárias a pé, seguindo o fuzileiro
Leónidas, um cafuzo cambuta e de sorriso safado, que nos levaria
a nosso pedido a uma pastelaria onde pudéssemos comer um pas-
tel de nata e tomar café. Perguntou-nos então o guia se preferíamos
ir a um bar da Praça Mauá, logo ali, ou a uma confeitaria famosa,
não muito longe, a que chamam de “Colombo”. E depois para uma
esplanada na Praça XV, ao lado do Paço “Impériau” e à sombra do
“Cabrau”, estátua gémea da existente junto ao Jardim da Estrela, em
Lisboa.
Estava visto que não era preciso lembrar ao vera-cruciano mari-
nheiro que um navegador nos trópicos se afoga primeiro em terra
com cerveja (“estupidamentche” gelada como qualquer brasileiro
recomenda), antes de se afogar no Mar.
E assim tomaríamos contacto com o centro histórico da “cidade
maravilhosa” cantada nos carnavais.
— Se a gente pegar a avenida barão do Rio Branco, passar pelo
Largo da Carioca, Cinelândia, retornar um pouco e pegar a Ouvidor
até a Rua Primeiro de Março, vocês podem ver os principais monu-
mentos desta zona do Rio (afirma o camarada acompanhante).
Aceitámos o desafio desde que o passeio não fosse muito longo
porque precisávamos de cafeína primeiro, e bebida depois, com cal-
ma, para mitigar a falta dela nos próximos dias.
Durante o percurso foi-nos o “brazuca” apontando exuberantes
edifícios: da Biblioteca Nacional primeiro — que encerra tesouros
que o medricas do João VI trouxe para o Rio quando fugiu dos fran-
ceses e aqui deixou — e o quase vizinho Theatro Municipal, ambas
construções dos primórdios do século XX; depois o famoso Museu
Nacional de Belas Artes que contém igualmente obras levadas pela
Corte para o Rio; o Real Gabinete Português de Leitura, que ficava

219
João Viegas

nas proximidades — e este gostaríamos de ter visitado por ser uma


instituição criada e mantida pela comunidade portuguesa — em es-
tilo neo-manuelino, considerada uma das Bibliotecas mais bonitas
do mundo, inaugurada em 1887.
Mas nós queríamos a Confeitaria Colombo. Queríamos, digo
bem, pois à porta chegados, atirei um impropério ao safado do cafu-
zo, considerando que estávamos na presença de um bar para a bur-
guesia reluzente.
— Aqui não entro, camarada! Desistimos do pastel de nata e do
café, leva-nos para um bar decente.
E não foi preciso esperar pela Praça XV, que estava já ali, depois
do Arco do Teles. Na rua do Ouvidor tínhamos esplanadas quantas
quiséssemos. Lá abancámos, bebemos e petiscámos.
Os cariocas olhavam para estes estranhos portugueses, com bo-
nés de fuzileiro, acompanhados por um “fuza” brasileiro.
— São portugueses? Perguntavam os mais atrevidos.
— Somos navegadores portugueses, de passagem para os mares
do Sul mas quisemos visitar a cidade que foi capital do império por-
tuguês.
— É, dá pra perceber que é um grupo “legau di portugas”. Então
vocês têm que visitar o Corcovado.
— Qual Corcovado qual carapuças, cristo-rei temos também em
Almada e já chega. Nós queremos é ver mulheres bonitas.
O Leónidas só dizia que éramos convidados de honra do snr. Co-
mandante do Porto, heróis da guerra em África, pessoas muito im-
portantes, aumentando ainda mais a curiosidade.
Comprámos uma caixa de pastéis de nata para o comandante e
saímos apressadamente, pois a manhã passara num ápice. No regres-
so ao porto, pelo calçadão, os nossos olhos deleitavam-se com os
belos corpos de mulheres que connosco cruzavam, tão belas quanto
a cidade. Pelo caminho ainda parámos num botequim para beber
água de coco e suco de cana, bebidas agradáveis, vitaminadas, adoci-

220
Os Soldados Perdidos

cadas naturalmente, e muito frescas do gelo picado. A vista era des-


lumbrante, a baía em pano de fundo, o Pão-de-Açucar mais além, a
saudação de alguns transeuntes.
Pelas onze e meia estávamos de regresso à capitania para almo-
çarmos com o comandante, tendo passado antes pelo barco, para
recolher o livro que pensara em oferecer-lhe: a biografia de Camões,
escrita pelo mestre Aquilino Ribeiro, uma obra de arte. Entretan-
to, constatámos que os abastecimentos já estavam a bordo. Grande
comandante! Quando o capitão-de-mar-e-guerra chegou, sentámo-
-nos à mesa, onde foi servido rodízio à brasileira, com várias carnes
grelhadas na brasa, acompanhadas por uma bela salada e um vinho
alentejano com rótulo da Adega Mayor, reserva do comendador
2014.
O comandante queria perceber a razão da nossa estranha viagem,
cabendo a explicação ao Magalhães.
— Senhor comandante Cavalcanti, primeiro as apresentações: eu
sou o ex-subtenente fuzileiro, Fernão de Magalhães, descendente do
grande navegador português, e combati na Guiné-Bissau contra o
PAIGC; o meu camarada Viegas, ex-alferes do exército esteve comi-
go nessa guerra; o Damasceno é actor em Coimbra e, dos melhores
do país; aqui o amigo Ralha combateu em Angola. Decidimos en-
frentar os mares do Sul, só para podermos morrer em paz. Nenhum
de nós quer morrer num hospital ou internado num lar de idosos,
queremos dar o último grito em liberdade.
— Já percebi, os senhores querem morrer como heróis.
— Mais como poetas a cantar a liberdade (disse eu).
— Meus senhores, vamos ao almoço, disse o comandante en-
quanto servia o vinho.
— Senhor comandante (disse eu), permita que lhe ofereça uma
caixa com pasteis de nata para a sua esposa e, uma biografia de Luís
de Camões, escrita por Aquilino Ribeiro para si, para além de agra-
decer o abastecimento do barco. Bem-haja.

221
João Viegas

— Meus senhores, vamos então atacar o almoço. Espero que gos-


tem.
— A carne desfazia-se na boca, tão bem grelhada que estava, e o
vinho, fazia jus aos mais perfeitos entre os portugueses.
A conversa foi amena e agradável, o comandante convidou-nos a
voltar ao Rio de Janeiro aquando do regresso. Nós anuímos com um
grande ponto de interrogação.
— Qual é o vosso próximo porto?
— Senhor comandante, seguimos directos ao nosso destino, sem
mais paragens.
— Se vão seguir o Destino desejo-vos a melhor sorte do mundo.
— Senhor comandante, queremos partir às seis da manhã e pe-
díamos que nos enviasse um fuzileiro para nos conduzir para fora
do porto.
— OK, fique descansado, vou dar ordens nesse sentido!
Despedimo-nos com cumprimentos calorosos. O Magalhães deu
o grito de guerra dos fuzileiros: “Siga a Marinha”! Todos sorríamos e
saímos rumo à nossa embarcação, onde tínhamos decidido dormir
uma sesta até à hora do jantar. Estávamos demasiado cansados e, os
próximos dias seriam duros, com as tempestades previstas.
Quando chegámos ao barco, tivemos que arrumar as ofertas
do comandante, no meio delas havia uma caixa com whisky velho
“grande comandante”. Abrimos logo uma garrafa e, sentados nas ca-
deiras de praia fumamos umas cachimbadas e charutadas enquanto
saboreávamos aquele whisky de grande qualidade.
— Camaradas, aproveitem o momento, porque daqui a dois dias
o mau tempo vai dar-nos que fazer. Vamos descansar um pouco
(disse o Magalhães).
A tarde foi passada a dormir, pelos vistos estávamos mais cansa-
dos do que julgávamos. Nem saímos para jantar nem nos apeteceu
cozinhar. As frutas e o whisky oferecido foram suficientes.
Depois, fomos p’rá cama. A minha gata encostou o focinho ao

222
Os Soldados Perdidos

meu e ronronou. Às seis da manhã fomos acordados pela sineta de


bordo, tocada pelo fuzileiro Leónidas que sorria enquanto acordá-
vamos, estremunhados.
— Senhores navegadores, está na hora de levantar ferro, o mar
está hoje de feição, o que não acontecerá amanhã, pois se prevê uma
borrasca de NE que vai apanhar vocês em cheio à latitude de 30º e
praticamente até ao Rio de la Plata.
Assumiu o camarada fuzileiro o leme, fazendo de piloto de barra.
Alguns navios nos saudavam com as suas sirenes.
Adeus, cidade maravilhosa, adeus Brasil, que o Destino nos
aguarda em mares revoltos.
Quando deixámos a Guanabara e entrámos em alto-mar, encon-
trámos mar-chão e um sol radioso.
— Mares do Sul, aí vamos nós.
Levantámos a vela latina e o barco deslizava como se levado pelas
nuvens. Mas à latitude de Porto Alegre como previsto, sobretudo de
Rio Grande, o temporal apanhou-nos.
A nave estremecia, subia e descia as vagas. As rajadas de vento
Norte fustigavam-nos empurrando-nos brutalmente para o nosso
Destino. A vela estava completamente enfunada, a madeira rangia,
mas a navegação prosseguia, agora mais afastados da costa, para evi-
tar surpresas desastrosas. A nossa voz mal se fazia ouvir com o rugir
do vento.
— Camaradas, vistam os coletes salva-vidas e não se deixem cair
ao mar, que a água aqui é fria e molhada.
Mas a tempestade foi-se afastando para o interior do subconti-
nente deixando-nos incólumes.
— Os ventos e as ondas estão sempre do lado dos navegadores
mais competentes (atirou-nos o nosso capitão).
E quando ao lusco-fusco nos demos conta, já tínhamos deixado
para trás o Brasil.
— Olhem a estibordo e verão Montevideu (informou o Maga-

223
João Viegas

lhães). Sabeis que as caravelas portuguesas começaram cedo a visitar


o Rio da Prata e até fundaram a Colónia de Sacramento, em frente a
Buenos Aires?
Entretanto o Ralha, pescador inveterado, lançou a cana, pois
considerava que em cima da água, o pescado não poderia faltar nas
refeições principais. Sentou-se na zona do leme, cana esticada e o
peixe a picar, a picar e, engoliu o anzol um peixe grande, a avaliar
pela excitação do nosso pescador. E assim foi: garoupa grelhada para
o jantar, com verduras frescas e um branco de Reguengos. No final,
o charuto e o whisky da praxe, seguido por um vinho fino, oferta do
camarada Abreu. A noite foi calma, avistando-se na costa luzes de
cidades longínquas. O dia amanheceu com sol radioso e nós apro-
veitámos para nos aquecer, pois lá mais para Sul poderia esconder-
-se, se o mau tempo regressasse.
— Camaradas (diz o Magalhães), aproveitem para descansar du-
rante a tarde, porque à noite haverá turnos, aos pares, no leme. O
mau tempo daqui a nada está aí outra vez. Olhem para aquelas nu-
vens… Baixem a vela enquanto ligo o motor.
— Às suas ordens capitão. Arriar a vela, gritámos!
Assim navegámos rumo às sinistras nuvens e sorridentemente a
tripulação se preparou para descansar enquanto havia tempo.
Deixei-me ficar para trás e o Magalhães notou, aproximou-se e
perguntou:
— Viegas, vejo-te com ar preocupado…
— Não é nada meu amigo, olho apenas para as nuvens no hori-
zonte.
— É só mais uma tempestade. O Fernão de Magalhães por esta
altura mais aflito se viu, pois navegava na incerteza de encontrar
passagem para o Pacífico.
E ali permanecemos, à conversa.
— Viegas, vai acordar a rapaziada e que venham p’ra cima com os
coletes vestidos.

224
Os Soldados Perdidos

— Camaradas, toca a levantar, ponham os coletes, vem lá borras-


ca da grossa.
Todos assim fizeram e ocuparam os seus postos. O mar foi-se al-
terando e ondas gigantes atiravam-se contra o casco da embarcação,
fazendo-a estremecer com o impacto. Parecia que estávamos num
carrossel. Sinais de enjoo fizeram-se sentir em alguns membros da
tripulação. De repente, uma chuva intensa começou a fustigar-nos,
obrigando-nos a vestir os oleados. O nosso comandante atravessa-
va as ondas com coragem e, até gozávamos de alguma alegria pela
inesperada montanha-russa no mar. A certa altura o miar da minha
gata. Dirigi-me ao beliche onde sabia que se encontrava e vi-lhe o
olho esquerdo muito aberto, a fitar-me, com medo no olhar.
— Anita o amigo está aqui. Afaguei-a e voltou a adormecer. Os
gatos são espertos e afáveis, mas só quem com eles convive, é capaz
de os entender.
Aproveitei e levei whisky para a amurada. Os camaradas agrade-
ceram e a garrafa foi saltando de uns queixos a outros.
O mar começou a acalmar, a chuva parou, a luz do sol rompeu
as nuvens, o vento convidou-nos a içar a vela e a desligar o motor,
navegando à bolina, a uma velocidade razoável. Seguíamos o nosso
Destino, alegremente, com a costa Argentina a estibordo, acidentada.
Numa certa zona chegámos mesmo a descortinar a linha-férrea do
velho Expresso Patagónico. Adeus grande Luis Sepúlveda, até um dia.
Quando avistámos o grande farol da Patagónia, o Magalhães pe-
diu-me para pôr um “cd” de Wagner, passando a embarcação a ser
embalada pela “Cavalgada das Valquírias”. Aquela música inspirado-
ra era fundamental para o resto da viagem. Passado o farol, rumá-
mos a estibordo e vimos a enorme praia que nos engalanava a visão.
Lembrei-me da batalha de Cobumba, duzentos guerrilheiros a
tentarem conquistar o destacamento de trinta jovens assustados. Só
o napalm resolveu o problema: dezenas de corpos a arder, homens a
gritar e a morrer. “Guiné, meu amor!”, ouvi-me a gritar. Todos olha-

225
João Viegas

ram para mim com ar assustado.


Depois uma onda enorme ou melhor, uma onda assassina, com
trinta metros de altura, surgiu do nada, onda de sangue e napalm
que nos iria engolir pela merda que fizemos na guerra.
O Magalhães virou a proa à onda, para tentar passar para o outro
lado, o motor ligado e a toda a velocidade. Quando estávamos quase
a atingir o pico, ela dobrou, de repente, e a seguir só o silêncio...
No dia 1 de Janeiro de 2019, um grupo de pescadores da Pata-
gónia dirigiu-se à praia e espantou-se ao ver um barco encalhado e
tombado na areia. Correram para o local e constataram que a em-
barcação, afora o mastro que fora arrancado pela base, não estava
muito destruída. Dentro da cabine encontraram o cadáver de um
homem, cabelo branco encaracolado e, perto dele, uma gata-preta
tendo na coleira o nome de Anita Garibaldi.
— Parece que estão a dormir, disse Juan Guevara de La Serna,
parente do famoso Che, e poeta de renome.
— Estão em paz, comentou outro.
Fizeram uma chamada a pedir ajuda e, passada uma hora chega-
ria uma carrinha da polícia.
Entretanto, abriram os armários e descobriram o depósito das
vinte garrafas de whisky velho, que, rapidamente foi dividido pelos
cinco pescadores. Junto ao cadáver da gata estava um cachimbo de
espuma do mar com a representação do deus Neptuno, parecia que
a gata o segurava com as patas.
— Camaradas, disse o poeta, este é para mim, sou o único que
fuma cachimbo. Procurem tabaco, dava-me jeito. Noutro armário
estavam guardados trinta pacotes de tabaco de cachimbo, captain
black. Este é o barco onde viajavam os navegadores portugueses, ver-
dadeiros Argonautas. Merecem uma homenagem condigna, vamos
abrir uma garrafa e beber um trago em sua honra.
E assim foi, cada um com seu copo beberam bem, sempre a lou-
var a coragem dos homens que vieram para os mares do Sul, num

226
Os Soldados Perdidos

barco de 15 metros. O poeta guardou o Diário de Bordo escrito pelo


Fernando de Magalhães.
— Reparem, camaradas, o comandante do barco chamava-se Fer-
nando de Magalhães, o navegador que deu a volta ao mundo, por esta
rota e descobriu o estreito que leva o seu nome. Proponho a criação de
uma Nova Confraria dos Mares do Sul, aqui inaugurada com a bênção
da bebida que os argonautas portugueses nos trouxeram.
Não esqueçam que a primeira Confraria dos Mares do Sul era
constituída por piratas duros, comandados pelo português Manuel
Alentejano, que assaltavam os navios espanhóis e portugueses que
circulavam na zona e já tinham espírito comunitário. Esta Nova
Confraria terá espírito libertário nos termos da pura Anarquia. Va-
mos ajudar quem mais precisa, ao grito de SAÚDE E LIBERDADE!
— Aprovado, gritaram em uníssono os cinco jovens amigos que
trabalhavam numa quinta de um deles, Manuel de Lorca, consagra-
do advogado que herdou a granja do seu pai, vítima da ditadura fas-
cista que governou a Argentina entre 1966 e 1973. Aliás, os cinco
viviam na aldeia do Fim do Mundo, a cujo termo a quinta pertencia.
A única mulher do grupo, Mia Maestrina, bailarina em Buenos Ai-
res, namorada de Juan Guevara, bela miúda morena com o fogo da
revolução a incendiar-lhe os olhos castanhos de seda.
O quarto elemento era Giovanni Gallardo, um arquitecto acaba-
do de sair da Universidade, que acompanhava os seus amigos nas
longas pescarias na praia do Fim do Mundo. Em relação ao quinto
jovem, o médico Durruti, talvez descendente do grande anarquista
espanhol com o mesmo nome morto pelos fascistas no assalto a Ma-
drid, por também ele levar um mundo novo no coração.
A Nova Confraria dos Mares do Sul só poderia ser composta por
estes cinco amigos e camaradas de sonhos. Só eles poderiam ter des-
coberto o barco Argos e a história dos seus marinheiros.
No interior da embarcação, descobriram uma caixa com vinte mil
euros, roupas boas e outras preciosidades. Tudo guardaram, antes

227
João Viegas

que a polícia chegasse e aqueles haveres roubasse, pois hábitos anti-


gos não se perdem.
Com a chegada da polícia, comandada pelo sinistro sargento Car-
rasco, fascista do antigo regime militar, autor de dezenas de mortes
e desaparecimentos, mandado para a vila do Fim do Mundo para
lhe salvarem a pele, tal como em Portugal os políticos fizeram com
os assassinos da PIDE reintegrados na Função Pública, sem serem
sequer julgados pelos seus crimes.
O sargento, com o bigode à Hitler, manápulas de torturador, olhos
pequenos, testa mínima, um autêntico animal perigoso, começou a
gritar com toda a gente:
— Que mierda, me han despertado por esto? Dónde está el cadáver?
Dirigiu-se para o local onde estava o corpo, deu um arroto de
besta, espiolhou os bolsos à procura de alguma coisa, tirou a cartei-
ra, leu o nome.
— Damasceno, que raio de nome tem este português de merda,
era de certeza comunista.
Depois de abrir armários e gavetas, só encontrando bugigangas,
deu outro berro:
— Y vosotros, no habéis robado nada?
— Ó sargento Carrasco, respeito, sou advogado e vou reivindicar
a posse do salvado, nos termos da Lei.
— Depois de pagarem a respectiva taxa, sim, podem levantar esta
merda de barco.
O cadáver foi metido num saco preto, que mais parecia para o
lixo, e levado pelos dois polícias que acompanhavam o sargento.
— Que mierda! Tenemos que llamar al consulado portugués que
venga a rescatar el cuerpo. Que mierda!
Felizmente que a gata Anita tinha sido delicadamente embrulha-
da pela Mia, num belo lenço de seda guardado num saco e poisado
no Land Rover, juntamente com as roupas e livros que eles tinham
salvado da cupidez dos polícias.

228
Os Soldados Perdidos

Depois da partida dos bófias os jovens reuniram-se junto ao bar-


co e o Manuel lançou a ideia de o poderem rebocar para a quinta,
para o restaurarem e com ele darem início à nova Confraria dos Ma-
res do Sul. A proposta foi imediatamente aceite e seguiram então em
direcção à quinta.
A casa da quinta era uma habitação de estilo andaluz, com pá-
tio rodeado pelos cómodos. A sala principal era enorme, paredes
forradas de livros, uma lareira grande, lenha ao lado, uma mesa de
madeira, comprida, onde comiam e faziam as reuniões decisivas das
suas vidas. Havia cinco quartos, uma casa de banho extensa, uma
cozinha bem bonita, com flores nas janelas e tudo muito arrumado.
Mão de mulher governava esta espécie de república coimbrã.
Todos os salvados foram levados para cima da mesa. A música de
Beethoven enchia a casa. Os livros chamaram a atenção de todos, a
obra completa de Luís de Camões, num único livro em papel de bí-
blia, uma maravilha. A obra completa de Mário de Sá-Carneiro, que
ninguém do grupo conhecia. A fotobiografia de António Nobre e o
seu livro Só, uma raridade de outro escritor português desconhecido.
Os jovens ficaram contentes com tantas novidades literárias. En-
tretanto, Mia segurou o cadáver da gata Anita, ainda embrulhado no
lenço de seda e transportou-o para o jardim, na frente da casa, com
um grande canteiro de rosas vermelhas. Precisamente no meio dele
cavou um buraco e enterrou a gata, com todo o cuidado. Colocou
uma cruz de madeira e uma pequena lápide com os dizeres que ela
própria manuscreveu:

Aquí yace la gata Anita Garibaldi,


compañera de vida y muerte
de los argonautas portugueses
que murieron camino a los mares del sur,
paz a las almas de todos ellos.

229
João Viegas

Umas lágrimas bailaram-lhe nos olhos, chorou sentidamente,


enquanto pensava: “Homens que foram valentes, desvalidos depois,
mas que continuaram lutando pelos seus sonhos”.
Reunidos em casa, gizaram o plano de transporte da embarcação
e concluíram que só os vizinhos da granja próxima os poderiam aju-
dar, pois possuíam tractor e reboque. Assim foi.
Chegados ao local, todos trabalharam com afinco e, passado pou-
co mais de uma hora, o barco estava em cima do reboque, alçado
com a força de macacos-hidráulicos. Na quinta foi a embarcação
deixada num enorme celeiro e posteriormente inspeccionada por
um carpinteiro de barcos de pesca, que se encarregaria do conserto.
Antes do almoço, foram os quatro amigos presenteados com uma
garrafa de grogue para cada um. Começava a festa, que o cheiro
emanado desde um enorme grelhador, dizia estarem a ser assadas
suculentas carnes. A mesa grande sob um toldo esticado entre três
exemplares de araucária, o fóssil vivo da Patagónia, já estava posta,
com a ajuda de todos, quando surge a Mia com uma caixa de sete
botelhas de vinho do Douro, com 14% de volume.
Os convidados bateram palmas, ante tamanhas iguarias.
— Camaradas, os navegadores portugueses tratavam-se bem.
Viva a Liberdade!
— Viva! Gritaram todos os presentes.
As carnes fumegantes aterraram nos pratos, acompanhadas por
couves cheirosas e o almoço começou sob os melhores auspícios.
Comeram e beberam quanto quiseram, a alegria da juventude supe-
ra (quase) tudo.
Manuel Lorca anunciou que se tudo corresse bem, queria que no
dia 9 de Maio de 2019 o barco voltasse ao mar, na doca de pesca da
vila: nesse dia convidaremos todos, excepto o sargento Carrasco —
José Carrasco Verdugo de su nombre completo — responsável directo
pela morte de meu pai, Manuel de La Paz y Lorca, um homem bom
e de bons costumes, professor de História. Assassinado por ordem

230
Os Soldados Perdidos

do ditador Juan Carlos Ongania em 1967, às mãos do torturador


Carrasco. Viva a Liberdade!
— VIVA!
Grito que ecoou pela Terra do Fogo com a ajuda do tinto durien-
se.
— Mia — pediu o Juan Guevara — vamos fazer uma bandeira da
Nova Confraria dos Mares do Sul, num pano preto de cetim. Todos
os presentes estão convidados para integrarem esta Confraria.
— Sim. Gritaram os convidados: Viva a Confraria!
O animado almoço prolongou-se até às três da tarde, com muitas
saúdes e gritos de Liberdade. O heróico povo argentino sofreu na
pele o peso dum fascismo miserável, mas não desistiu de reconquis-
tar a liberdade e, quando isso aconteceu, generais e seus acólitos dei-
xavam para trás um rasto de milhares de mortos e desaparecidos. O
movimento de revolta iniciou-se com as “puebladas”, destacando-se
o Cordobazo (em Córdoba) e o Rosariazo (em Rosário). Enquanto
os ditadores criavam uma solução para se escaparem, promovendo
em 1973 eleições pseudo-livres, ganhas pelo candidato peronista. A
Liberdade venceu, sobre os cadáveres de pessoas de todas as idades,
em especial de jovens mentes brilhantes cujos corpos desaparece-
ram, lançados ao mar, ou enterrados em valas comuns em locais se-
cretos. Ainda nos dias de hoje, milhares de mães vestidas de branco
vão manifestar-se a Buenos Aires, para que os corpos dos filhos lhes
sejam devolvidos, “As Mulheres de Branco”. Ficou combinado entre
todos os presentes que os sobreviventes do Cordobazo e do Rosaria-
zo, seriam convidados de honra para o lançamento do Argos, a 9 de
Maio de 2019.
Entretanto, a Mia falou com um artesão local que já preparava a
bandeira da “Nova Confraria dos Mares do Sul”, a fio dourado e pra-
teado em fundo preto, com dois punhais cruzados e os dizeres SIC
SEMPER TYRANNIS, ou seja, o destino dos tiranos está na ponta
do punhal.

231
João Viegas

Mais uma vez nada aconteceu aos verdugos do regime fascista,


todos a viverem em liberdade, quando devia ter funcionado o pelo-
tão de fuzilamento. A História repete-se demasiadas vezes, infeliz-
mente.
No dia 9 de Maio de 2019, uma mesa enorme, junto ao porto de
pesca, albergava todos os jovens e seus convidados, ou seja, pesca-
dores e habitantes da vila do Fim do Mundo, mais os sobreviventes
anti-fascistas de Rosário e de Cordoba, que foram transportados em
várias camionetas alugadas pelos cinco jovens anarquistas As carnes
fumegavam nos grelhadores. O ambiente era de festa: o Argos reen-
trava nas águas, agora da doca de pesca, com a ajuda dos pescadores
locais. A bandeira preta da NOVA CONFRARIA DOS MARES DO
SUL, com a máxima SIC SEMPER TYRANNIS, ondulava orgulhosa-
mente, enquanto se repetia o grito de LIBERDADE!
Nesse ínterim começou a ouvir-se o som duma concertina que
tocava precisamente o “Tango de la Libertad”, em homenagem aos
navegadores portugueses. A letra era de Juan Guevara, a música de
Rui Arias, que também cantava com a sua voz possante; no tablado
dançava a Mia com a beleza de mulher guerreira acompanhada por
Juan Guevara. Já havia lágrimas nos duros rostos dos lobos do mar,
afinal homenageavam quatro portugueses que demandaram o Fim
do Mundo e aí morreram.
Quando o tango acabou, todos aplaudiram com os olhos emba-
ciados. Os cerca de trezentos sobreviventes de Rosário e Córdoba
gritaram LIBERDADE, com a força das amarras quebradas. O jovem
alcalde, também de lenço vermelho ao pescoço, símbolo da resistên-
cia anti-ditadura, comunicou ao povo presente que a praia do Fim
do Mundo se passaria a chamar Praia dos Navegadores Portugueses.
Os seus nomes seriam perpetuados numa lápide a colocar à entrada
da praia, em tempo próximo. Aplausos recebeu a notícia, podendo
agora iniciar-se a comezaina.

232
Os Soldados Perdidos

Soube-se dias depois que o sargento Carrasco havia fugido para


Buenos Aires, fugindo ao punhal da vingança.
A Câmara Municipal ia ceder um belo e velho edifício para nele
se instalar a sede da Nova Confraria. As obras seriam da responsa-
bilidade do colectivo. Entretanto Juan Guevara anunciou que neste
prédio haveria um posto clínico, chefiado pelo Dr. Durruti, que daria
consultas grátis aos pescadores e suas famílias, enquanto o advogado
Manuel Lorca se ocupava do apoio jurídico pro bono. A Mia pron-
tificou-se a organizar um Banco Alimentar para ajudar as famílias
mais carenciadas, pedindo voluntários para o efeito. Mais de cem
pessoas se ofereceram para ajudar, para além do próprio Presiden-
te da Câmara Municipal que se disponibilizou em conseguir verbas
para o efeito. Todos batiam palmas e se abraçavam neste renascer da
Vila do Fim do Mundo. O edil chamou ao palanque os dez polícias
da terra, cumprimentou um a um e, nomeou, provisoriamente, o
mais graduado, cabo Garcia, para chefe do posto, sendo largamente
aplaudido. Todos os homens da autoridade foram convidados para
o repasto, com abraços e vivas, agora que o sargento Carrasco estava
a milhas.
Cerca de mil pessoas ocupavam as várias mesas, setecentos habi-
tantes locais e mais os trezentos de Córdoba e de Rosário. As bandei-
ras da Argentina e da Confraria ondulavam ao vento acompanhada
pela bandeira de Portugal que foi retirada do barco. Esta bandeira
tinha a característica de estar furada por balas das batalhas de Co-
bumba.
Algures, nas nuvens, alguém vislumbrou os rostos sorridentes
dos quatro portugueses que continuavam a viagem para lá dos Ma-
res do Sul e pareciam dizer: valeu a pena a viagem!
A determinado momento, o advogado Lorca pediu a palavra para
comunicar que estava disposto a criar uma Cooperativa de Pesca e
nela se organizarem os homens do mar, bem como uma Cooperativa
de Agricultores para que estes vissem melhorar tanto as suas produ-

233
João Viegas

ções como o seu escoamento. Ambas as propostas foram aplaudidas


ruidosamente, seguidas do estrondoso grito de LIBERDADE.
No dia seguinte ao repasto teve início a formalização das ditas
Cooperativas que começaram a laborar com a preciosa ajuda do di-
nheiro dos navegadores portugueses.
Passado um ano, os pescadores já possuíam um camião com rede
de frio, para venderem o pescado por toda a costa da Terra do Fogo.
Quanto aos agricultores, também tinham já uma viatura equipada
com frio, para a venda dos excedentes, pela mesma rota.
À entrada da Vila estava uma placa anunciando: SALUD Y LI-
BERTAD. Uma nova vila nasceu pela vontade dos homens. Estava
erradicada a pobreza. A harmonia, a justiça e a igualdade reinavam.
A Nova Confraria promovia ainda actividades culturais várias, como
o teatro, a dança, a música. É tão fácil contribuir para a felicidade do
Povo, desde que o bem-estar social e cultural seja disseminado. A
polícia pouco trabalho tinha, sem crimes notórios ou actividades
perniciosas, talvez esta fosse a localidade mais segura de toda a Ar-
gentina. Com o passar dos tempos, a Vila do Fim do Mundo come-
çou a ser visitada por libertários de todas as idades, alguns mesmo
para nela se instalarem e integrarem naquele falanstério.

234
POSFÁCIO

viajo sempre
em direcção a ti
porque o meu destino
é o teu porto

porto-destino
de passageiro
clandestino

vislumbrarei esse cais


ao largo
por ser mercadoria
de aduana contornada
e sem guia

parto sempre
com a certeza
de aportar um dia
a essa doca
de chegada
e aos errantes
destinada

errantes
por mares conhecidos
mas sempre novos

235
e é a clareza do azul
das águas
que me permite
sentir o teu olhar

mar e horizonte
na bitácula da
agulha tremulante
com azimute traçado
e alvo à vista

sempre-viva
sempre-verde
sempre-noiva
sempre-luz
sempre-porto

de honra
franco e seguro

és abrigo guinéu
cretcheu refúgio

é nele que embarco


antes e depois
do macaréu

levando sempre
esse porto comigo

Carlos d’Abreu

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