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atrai e repele a um tempo, será, talvez, a última obra literária sobre a
guerra colonial escrita por um ex-combatente.
O stress provocado pela brutalidade e pela violência da guerra,
pelo que viveram durante aqueles mais de dois anos, uma interrup-
ção brutal na sua vida em construção, na continuidade das suas vi-
das profissionais, no amanho do campo, nos estudos, despertou em
muitos combatentes mobilizados como carne para canhão, a neces-
sidade e a vontade incontida de pôr no papel, tanta vez numa abor-
dagem literária sem filtro, como quem respira, a realidade nua, bru-
tal, sem contemplações, quase sem narrativa organizada, um grito,
um berro tão violento quanto a própria guerra que o determinava.
Uma condenação sem apelo, saída do coração, da chaga aber-
ta para sempre, do coto ainda mais provocador que inferiorizante
como foi, aliás, o caso de um dos personagens reais, como são quase
todos, senão todos, os que habitam esta obra tão singela e tão pode-
rosa. Refiro-me ao Jorge Carneiro, militar e combatente de eleição e
um revolucionário genuíno.
Assim foi a verdadeira aprendizagem daquela guerra para a ge-
ração que lhe sucedeu, pela pena de escritores que nunca o tinham
sido ou que não constavam (ainda…) do main stream da literatura,
a arte a brotar das profundas feridas que lhes marcaram a alma, quer
pelo que viram fazer quer pelo que fizeram e nunca pensaram ser
capazes de fazer, quer pelo que sofreram na verdadeira solidão dos
que enfrentam a morte iminente.
Em “Os Soldados Perdidos” encontramos a revelação profunda
do humano pela exposição visceral dos soldados na sua permanente
procura da sobrevivência física e anímica numa realidade cuja es-
sência lhes escapa mas que vão aprendendo a dominar, a cada dia
que passa no confronto com o inesperado, por vezes com o indizível.
Uma inteligência prática e uma capacidade inata de resistência
constroem o seu mundo possível servindo-se da própria hierarquia
que os sujeita.
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O cotejo, que me atrai, de duas obras tão diferentes mas tão pró-
ximas como são “Nó Cego”, a obra-prima que se impõe como o re-
quiem da guerra colonial e “Os Soldados Perdidos” de João Viegas,
decorre de, nesta última, termos um invulgar e poderoso enlace en-
tre a veemente e sistemática condenação da guerra, e desta guerra
em particular, a condenação frontal dos assassinos de voz meiga que
a impõem por métodos brutais, totalitários e terroristas e a explícita
e por vezes entusiástica celebração, mesmo exaltação, das qualidades
militares daqueles que são forçados ao combate que está presente em
“Nó Cego”.
Será uma característica de todas as guerras esta contradição,
eventualmente percorrerá todas as obras, mas aqui encontramo-la
no centro da narrativa. Aqui não se trata de uma constatação amar-
ga. É uma forma muito bela, quase ingénua, de como se celebra a
vida e a sua precariedade.
Falo-vos de um belo livro. Um belo livro caracterizado pela sim-
plicidade narrativa que nos põe no centro da acção, por vezes qua-
se frenética, mobilizados também nós “ao serviço da pátria” como
ainda hoje sem qualquer pejo se diz daqueles que foram vítimas do
fascismo e enviados para matar os seus irmãos de sofrimento, ainda
mais brutal e depois, calhando, morrer.
Um estilo lesto e vivíssimo, sem rodriguinhos nem apaziguado-
res nem moralistas, sem complicações ficcionais, com a limpidez e
a força da realidade crua, acompanha a acção do alferes miliciano
Viegas, como tantos outros arrancado aos seus filhos, sem direito a
beneficiar da figura de “amparo”, por razões que conhecemos, pois
ele fazia política e propaganda subversiva insidiosa contra a guerra
colonial transformada na linha principal de ataque ao fascismo.
Feita a travessia do sofrimento, da contradição angustiante entre
a consciência anti-fascista e anti-colonial e a consciência mobiliza-
dora, tornada necessidade, de que tinha que levar os seus homens
de volta para casa, fosse onde fosse e de que para isso tinha que sa-
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ber estar à altura, ele, saído de uma instrução precária, militar fei-
to à pressa, carne para canhão, eis o nosso alferes miliciano Viegas
que escapou por entre os pingos da chuva, de volta ao seu CITAC,
entretanto assaltado, roubado, encerrado e destruído pela PIDE, de
volta ao encontro dos colegas e camaradas para o fazer renascer e
com ele repercutir na arte a paz e a liberdade conquistadas. A beleza
dos jogos de amor desprendido, simples e divertido com Bela, a jo-
vem informadora do PAIGC como todos sabiam, mas que oferecia
momentos de prazer único naquelas paragens, fê-lo sofrer genuina-
mente quando foi presa pela PIDE e desterrada para um campo de
concentração, o Ilhéu das Galinhas, no arquipélago dos Bijagós.
Mas teve o prazer de ser o primeiro a receber o seu abraço emo-
cionado e sentir correndo pela sua face as lágrimas de alegria e de
emoção e de amor com que Bela se encolheu, feliz de novo, nos seus
braços numa festa à liberdade de ambos e de ambas as pátrias.
A narrativa da experiência do alferes miliciano Viegas, desde o
embarque no DC-6 para a Guiné, “o paraíso de todos os medos”
até ao regresso a casa, dois anos depois de ser encharcado, sem avi-
so, pelo seu próprio suor, pegajoso e mórbido, com que Bissau na
“época das chuvas” saúda os que mal assomam à porta do avião no
aeroporto da Bissalanca, até dois meses depois do 25 de Abril, quan-
do regressa à ”Metrópole” é um palpitante hino à alegria de viver
através das picadas da morte.
João Viegas fá-lo com uma entusiástica e quase absurda delicade-
za, que se esconde por detrás da adopção sistemática da linguagem
vulgar e rude dos homens na fronteira do suportável. Somos tocados
profundamente pela sensibilidade esclarecida dum sentido crítico
irredutível decorrente da sua inteligência de artista.
A sempre presente condenação do fascismo e da guerra colo-
nial não prejudica a naturalidade com que, nela metido até aos ca-
belos, fosse simplesmente um soldado camarada dos homens que
comandava desenvolvendo uma relação de grande fraternidade e
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compreensão com cada um, assumindo naturalmente com grande
espontaneidade a capacidade de comando entre camaradas, esta-
belecendo uma hierarquia muito própria alicerçada nos humanos
valores e interesses comuns: enfrentar as condições adversas, en-
frentar aqueles que os obrigaram a designar por inimigos e que, na
elementaridade radical da luta pela sobrevivência, foram forçados a
agir como se assim fosse.
O Alferes Viegas e os seus homens construíram um núcleo in-
vencível, e não me refiro às vicissitudes do combate, porque simples-
mente foram levados ao entendimento de que a sua vida e a sua hu-
manidade essencial se enraizavam não tanto na eficácia do combate
ao inimigo, que, reconheçamos, não era muita, mas na fraternidade
e solidariedade que souberam construir.
E uma das coordenadas determinantes foi a compreensão de que
a tragédia se combate com a alegria da camaradagem e que a cora-
gem para a viver também pode nascer da própria acção.
Em “Os Soldados Perdidos” o autor, ele mesmo o alferes mili-
ciano Viegas, subverte pela forma como age e se relaciona com os
seus homens, os cânones da hierarquia contrapondo-lhe, em pleno
teatro de operações, a solidariedade e a fraternidade que constituem
a verdadeira camaradagem. E mesmo a base da eficácia operacional
possível.
João Viegas consegue, na pessoa do alferes Viegas, pôr em prática
os ensinamentos de “A Arte de Ser Chefe” de Gaston Courtois —
curiosamente um sacerdote francês ligado ao movimento dos tra-
balhadores católicos — estudada na Academia Militar, mas tão só,
para tantas vezes serem postos de parte pelo carreirismo, pela opção
do mando em vez do comando, pela pusilanimidade do carácter que
fornece à burocracia todo o seu poder e pelo cretinismo militar, para
parafrasear Lenine quando classifica o cretinismo parlamentar.
Na sua hostilidade radical à guerra e à hierarquia, o alferes Viegas,
por amor dos seus homens e não à pátria dos fascistas, capitalistas e
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latifundiários que, ainda hoje, roubam ao povo a sua pátria para lhe
imporem a deles, revela-se um verdadeiro comandante, encostando
às tábuas a hierarquia que sempre tentou submete-lo às suas regras
estritas sem realmente o conseguir.
Um verdadeiro comandante sempre na primeira linha a enfrentar
os perigos que a todos ameaçavam. Ele próprio, ferido em combate e
evacuado para de novo voltar por exigência sua para junto dos seus
homens, os camaradas a quem pertencia e que comandou nas mais
diversas situações ora abrigando-se do tiro dos guerrilheiros ora
correndo de peito aberto sobre eles como o exemplo dos soldados
africanos sob o seu comando o obrigava.
Mas bom bom eram, quando a sorte o proporcionava e surgia
a oportunidade, aquelas boas bebedeiras catárticas conjuntamente
com a ida às meninas nas povoações já organizadas de acordo com o
cânone colonizador. E para esses momentos de absoluta entrega ao
prazer não importava arriscar de novo a vida numa emboscada ou
no rebentamento de uma mina. A vida é nossa, vale mais arriscá-la
porque nos sabe bem do que sob o látego infernal da hierarquia.
Viegas irá, já na última fase da comissão ser colocado no Esta-
do Maior do comando-chefe por decisão directa do general Spínola,
que antes de ser chefe dos bombistas do MDLP no intento abstruso
de fazer ajoelhar a democracia, esquecido de que há formas mais
eficazes como ficou provado, foi um comandante militar de prestígio
apesar de condenado a perder a guerra já perdida logo que começou.
Aí, as capacidades de Viegas para analisar as diversas componen-
tes do movimento das tropas baseado nos serviços de informações
tornaram-no indispensável.
Sublinhe-se que os serviços de informações militares estavam
organizados de acordo com a estrutura da NATO a que o governo
fascista de Salazar aderiu orgulhosamente para a defesa comum das
nações democráticas da Europa, decerto com a garantia de que tais
democracias, não apoiariam, como sucedeu, o movimento demo-
crático que timidamente eclodiu em Portugal na sequência da der-
rota do nazi-fascismo em 1945.
Isto quer dizer que a capacidade de obter informações sobre os
movimentos do inimigo estavam praticamente a cargo das unida-
des militares no terreno e, essencialmente, dependente da PIDE e
sua vasta rede de bufos. Tal colocava a PIDE numa situação relativa-
mente privilegiada que sustentava uma certa arrogância quando em
contacto com as unidades combatentes.
O alferes Viegas, quando ainda no comando operacional do seu
pelotão teve ocasião de confrontar uma dessas ratazanas da PIDE
dando a fuga a um guerrilheiro de que o pide, o inspector Palma, se
arrogara o direito de se apoderar para o torturar e extorquir infor-
mações, mostrando serviço.
As relações entre os militares e as polícias políticas foram sempre
conflituais, o que se pode atribuir à frequente actividade política e
golpista desenvolvida pelos militares, aliás na tradição revolucioná-
ria desde o afrontamento a Beresford que custou a vida ao General
Gomes Freire de Andrade. O próprio 28 de Maio de Gomes da Costa
teve, no seu desencadear, uma percepção dos interesses populares
à flor da pele naturalmente esmagados logo de seguida pela forças
do capital e dos senhores da terra organizadas em torno de Salazar.
Outras tentativas, várias, de derrubar os fascistas, envolveram civis
e, sempre, militares até ao assalto ao quartel de Beja, em 1961, para
proclamar o legítimo presidente da República, o General Humberto
Delgado.
Nesta sua nova actividade acompanha de perto o movimento dos
Capitães, a aproximação ao PAIGC e as dificuldades inerentes ao
encontro de forças beligerantes durante treze anos e que agora se
confrontavam ainda mas para encontrarem a melhor forma de se
darem as mãos.
O Movimento dos Capitães a caminho de se tornar Movimento
das Forças Armadas para atenuar a radicalidade do golpe, enquanto
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iam morrendo soldados e guerrilheiros esforçava-se por se libertar
da estratégia spinolista de manter o império esgotado e apodrecido.
De regresso à vida de cidadão finalmente livre face ao poder,
porque livre foi sempre perante si próprio, de cidadão politicamen-
te comprometido e empenhado e não apenas cidadão sobrevivente
duma guerra que lhe não dizia respeito mas o confrontou nas suas
mais profundas convicções, de regresso à sua actividade profissional
num Portugal liberto do fascismo mas ainda e sempre sob ameaça
dos “irredentistas”, o professor não descurou a defesa material da
liberdade conquistada.
Agora já na sua escola, em Figueiró dos Vinhos, participou en-
tusiasmado na preparação da resistência à possibilidade de uma in-
cursão de um forte grupo terrorista que se constituía do lado de lá
da fronteira, na Espanha franquista. A experiência humana e opera-
cional ganha na luta contra a liberdade a que fora obrigado, estava
agora pronta para a defender até às últimas consequências.
Duas personagens fundamentais, para além, naturalmente, do al-
feres Viegas, lui même, balizam todo o conceito estético, humanista
e ético de “Os Soldados Perdidos”. São elas o Furriel Trindade for-
mado na escola dos Rangers, formando combatentes com elevado
grau de eficácia. Ele será o verdadeiro instrutor, o protector durante
os combates, o companheiro seguro de tropelias, o amigo e compa-
nheiro de todos os momentos.
E o comandante do destacamento de fuzileiros, o explosivo ruivo
Labaredas, pronto para acorrer em auxílio sempre que necessário
no combate ou na festa com que os combatentes celebram o estarem
vivos.
Estas duas personagens, na vivíssima simplicidade com que são
descritas, expressam afinal, e de forma tão real, a complexidade ra-
dical da vida das tropas especiais, neste caso os “ranger” e os “fuzos”.
Eles assumem como sua própria natureza, como justificação do pró-
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prio acto de combater numa guerra odiosa, uma superioridade mo-
ral não em relação ao inimigo que desse são próximos, talvez mes-
mo irmãos, numa ética própria, mesmo quando não percebida, que
tantas vezes sublima a violência, até quando extrema, no combate
que apenas fisicamente os opõe. Trata-se pelo contrário de uma su-
perioridade que os faz permanecer, vivos ou mortos, uma acusação
eterna às bestas engomadas que lhes impuseram a maior das violên-
cias: tirar a vida aos seus próprios irmãos.
A burocracia virtuosamente assassinada, a hierarquia metamor-
foseada no desfrute da fraternidade, da solidariedade, da camarada-
gem.
A humanidade manifestando-se em toda a sua beleza no “paraíso
de todos os medos”.
A abnegação e o medo, eis o ser humano na sua totalidade.
Ao longo da leitura destas páginas senti-me contigo meu caro João
Viegas. A acompanhar-te nas picadas, nas bebedeiras, nos combates,
no estremecimento angustiado perante a tua luta pela vida quando
ficaste gravemente ferido, a construir contigo, com o Trindade, com
o Labaredas e a malta toda, pretos e brancos, a caminhada que me ia
pôr do lado daqueles com que afinal iria identificar-me e unir forças
para liquidar, ainda que só daquela vez, o inimigo comum. Ele aí está
ainda e sempre, neste seu actual avatar pandémico de que somos
todos iguais à brava.
Fiquei feliz por me teres escolhido para escrever estas linhas e
pelo que me fizeste reviver tão bem acompanhado.
Belo livro!
Obrigado, um grande abraço.
Mário Tomé
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NÃO VISTE
QUE LÁPIDES E FLORES
PARTILHAM O MESMO MAPA?
É ASSUNTO TEU
NAUFRAGAR EM TERRA.
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Não era todos os dias que se era convocado, à força, para ir ajudar
a guerra das tropas do império. Orgulho desmedido para alguns,
muito poucos, chatice para outros mais divertidos e, um enorme
medo para a grande maioria dos privilegiados. O meu caso estava
entre estes últimos, não tenho vergonha em dizê-lo.
A viagem começou com um aperto de mão entre a meia dúzia de
alferes, tão assustados como eu e, como não podia deixar de ser, co-
meçámos por comprar uma garrafa de whisky, que se revelou meio
esquisito, o que naquelas circunstâncias, de sede muita e medo tam-
bém, pouco importou. Atacámos o líquido com a sede dos vulgares
mortais e passado pouco tempo estávamos todos já mais ou menos
contentes. Essa alegria forçada revelou-se muito importante na evo-
lução da própria viagem, pois resultou na utilização ruidosa dos fa-
mosos sacos para vomitar.
Parecia que íamos para uma alegre excursão, algures num paraíso
tropical, em busca das tataranetas ninfas camonianas. A porcaria da
viagem nunca mais terminava, as anedotas iam-se esgotando com
a bebida, que se esgotou entretanto. Com o passar das horas, a es-
tremecer com os solavancos daquela lata velha, não havia graça que
resistisse e, as piadas já não tinham pilhéria nenhuma.
Dormir durante o voo só à custa da bebedeira que acalentava as
almas. As horas passavam intermináveis, já dormia quando chegá-
mos a Bissau, pelas 8 da manhã. A porta do avião abriu-se e fomos
invadidos por um calor brutal e uma luz intensa que nos atravessou
o corpo como um choque eléctrico, provocando-nos um suor pega-
nhento que ensopou a camisa — porcaria de farda — e um cheiro
estranho embalou-nos o olfacto.
Bissau…, uma luz incrível a inundar a cidade, um aeroporto ex-
cêntrico rodeado por enorme matagal. Quando dele saímos, uma
longa estrada de asfalto e cheia de lombas conduziu-nos ao famoso
quartel-general (QG), local onde o nosso destino seria decidido por
um oficial superior, de preferência mal-encarado, olhar de sapo pa-
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suiço. Aprendi que o melhor remédio era mesmo não pensar nas
minas, pois se uma rebentasse com o unimog, era viagem certa para
a tragédia, corpos pelo ar, membros decepados a bailar pelo chão,
sangue a ensopar a mata, helicópteros que tardavam a chegar, solda-
dos aos gritos e a chorar, cadáveres queimados como barrotes.
Infelizmente, assisti a essas cenas vezes demais e, recordo o cheiro
a carne queimada e a sangue. Aliás, esse cheiro fica-nos gravado na
alma para o resto da vida…
A rotina num acampamento militar é mesmo uma grande chati-
ce. Como não há nada para fazer, viam-se casinos a funcionar em to-
das as camaratas-abrigo, as cervejolas meias frescas a escorregarem
pelas gargantas ressequidas, a sede infernal, sempre a sede, porque
beber água, só com desinfectante e a saber a bosta era insuportável.
Por isso mesmo optei por encher um dos cantis com whisky e “coca-
-cola” e, ia disfarçando a bebedeira conforme podia.
E os dias arrastavam-se ao ritmo do calor, suados e chatos, com
um peso enorme a vergar a vontade de adiar tudo o mais tempo
possível. Aliás, já a própria vida estava adiada.
Fiquei a comandar o 4º pelotão, dada a morte recente do alferes
titular, o Oliveira, que teve o azar de ir no lugar do morto, numa
coluna a Bafatá.
Quando me foi entregue o pelotão, destacou-se um jovem, o fur-
riel Trindade, de operações especiais, uma espécie de anjo-da-guar-
da, já que ele sabia mesmo de guerra, era valente e atrevido, e senti
logo amizade por aquele jovem guerreiro que estava em toda a parte,
especialmente onde a minha vida corresse perigo.
Éramos irmãos de guerra, partilhávamos os copos, as miúdas,
as inúmeras emboscadas para as quais nos enviavam. Em privado,
tratávamo-nos por tu, no pelotão havia a cadeia do comando. Eu só
avançava depois dele me dizer se era mais ou menos seguro.
A rotina diária era montar emboscadas bem longe do destaca-
mento, sempre com um picador africano à frente da coluna, eu co-
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ros. Neste momento o fogo começou a diminuir de intensidade,
mas para evitar surpresas, decidi avançar para a zona da embos-
cada, mato a dentro, até que chegámos ao local que tinha servido
de apoio às metralhadoras pesadas, local identificado por milhares
de cartuchos no chão, à mistura com sangue e rastos de fuga. Vol-
támos à picada, e, constatei que o Trindade tinha feito o mesmo
na sua ala, pelo que ocupámos as viaturas. Na GMC tive que afas-
tar o cadáver do camarada Simões que por azar tinha levado mais
uns tiros no tronco. Foi deitado cuidadosamente na parte detrás da
viatura, coberto com um pano de tenda, assumi o volante e mandei
avançar o Costa para o meu lado.
— Atenção camaradas, já viram que estes gajos nos querem lim-
par o sebo, atenção e abram fogo ao mínimo alarme. Conduzi o mais
rápido que podia e, só passada uma hora chegámos ao quartel. Con-
fusão instalada, todos a gritarem, a contar aos homens que ficaram,
a tragédia de ter perdido mais um amigo. O capitão lá veio pedir-me
satisfações e pormenores do ocorrido. Dei-lhe todas as informações
e, retirei-me para o meu quarto na casamata, já com o Trindade a
meu lado.
— João, não fiques triste, as mortes acontecem, não tiveste culpa.
— Porra Trindade, logo tinha que acontecer com aquele infeliz,
pai de família com dois filhos. Estou farto desta merda.
Deitei-me na cama, a ler mais umas páginas da biografia de Che
Guevara. Porra, o que aquele homem passou para libertar a América
Latina, na canga dos piores ditadores.
Quando se libertará o meu país da canga do herdeiro do “botas”
e dos seus apaniguados? Só com uma intervenção militar será possí-
vel, mas isso vai demorar muito tempo.
Este dia não era como os outros, havia muita tristeza estampa-
da nos rostos de todos os homens, eu cirandava pelo quartel, olhos
perdidos na mata, uma vontade enorme de sair dali. Encontrei o
alferes Almeida, outro bom camarada, comandante do 3º pelotão,
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sos cabos, enquanto seguiam com a berliet e três pelotões para o pos-
to de comando situado no cimo duma picada. Cabia-me comandar o
destacamento do rio, situado a quinhentos metros da margem, junto
a uma pequena tabanca de Balantas. A tarefa era instalar uma base
operacional, rodeada de arame farpado e, abrir valas para abrigos
individuais onde nos defenderíamos dos ataques do IN. As nossas
instalações seriam tendas de campismo onde teríamos que viver nos
próximos tempos. A minha sorte era ter o furriel Trindade por perto
já que ele era perito em montar esse tipo de bases operacionais. Em
Mafra não nos ensinavam essas coisas. Quando chegámos ao nos-
so destino, ou seja, ao local onde iríamos montar o destacamento,
estava um soldado do comando a guardar todo o material que nos
tinha sido destinado: tendas; caixas várias com munições; uma arca
frigorífica a petróleo, de dois metros; um canhão sem recuo 106, e
respectivas munições; três metralhadoras MG 42; grades de cerveja
para colocar na arca; umas garrafas de whisky; pacotes de tabaco;
uma caixa de charutos espanhóis; e vário material para preparar a
instalação da base.
O Trindade veio ter comigo:
— Alferes, temos que marcar o perímetro e colocar estacas para
pôr o arame farpado, entretanto, há que montar as tendas e instalar
armas pesadas nos pontos mais fracos.
— Vamos começar furriel, avisa os homens que temos que abrir
os abrigos até à noite e fazer tudo o que dizes.
As ordens foram dadas e, os trinta homens começaram por mon-
tar as tendas em zona de acampamento, uma tenda para cada dois
homens e uma tenda grande para as refeições e centro de comando.
Quando começámos a escavar os abrigos decidiu-se que o melhor
era fazê-los colectivos, por secções de armas. A terra era dura que
nem cornos, o calor deixava os homens cansados rapidamente, a
arca a petróleo já estava instalada ao abrigo duma árvore grande,
várias grades de cerveja aguardavam a oportunidade de serem con-
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zileiros é porque têm outro grupo de ataque que se dirige para cá,
dá ordem de fogo ao canhão sem recuo, com granadas explosivas e
incendiárias, pelo menos podemos ver o fogo de artifício e assustar
os sacanas.
— Fogo à peça, apontem naquela direcção, vamos rebentar com
os gajos.
Ouviu-se o barulho de saída de morteiros, ”poc, poc,” e duas mor-
teiradas atingiram o centro do acampamento, sem provocar baixas.
— Abriguem-se, chegaram os gajos.
O pessoal começou a correr em direcção aos abrigos, só as G3 à
vista, todos à espera de avistar o IN para poder abrir fogo à vontade,
conforme eu tinha ordenado.
Enquanto estava no abrigo, “enviei um rádio” ao Labaredas a pe-
dir um ponto de situação.
— Camarada, a situação está controlada, IN derrotado no arame
farpado, pedimos ajuda à força aérea, os FIAT a caminho, abriguem-
-se, siga a marinha...
Fiquei contente com a notícia, isso explicava o avanço para cima
de nós, depois da derrota nos “fuzas”, vinham tentar a sorte com o
exército, sempre pior preparado. Avisei o capitão do ponto de si-
tuação, preparámo-nos para o ataque dos FIAT, já sabíamos que ia
haver napalm, coisa feia de se ver, toda a mata à nossa frente ia arder
como uma tocha e, os sobreviventes só tinham que se pirar para bem
longe.
Passados poucos minutos ouvimos o barulho dos aviões a chegar
e gritámos:
— Boa, estamos safos.
A mata começou a arder, o cheiro de gasolina a queimar deixou-
-nos mais calmos pois o IN tinha mesmo que fugir, se queria escapar
sem ser totalmente dizimado.
As labaredas limparam toda a zona, num ritual de morte impres-
sionante, o napalm que atingiu parte do rio, pôs as águas a arder, um
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— Hurra, hurra...
Todos sentados à mesa no pequeno almoço revigorante, cafetei-
ras de café já com açúcar, casqueiros vários cheios de manteiga até
às bordas. Comiam com alegria como se fossem para um passeio ao
campo. Assim eram estes valentes jovens, abandonados nas frentes
de combate para as promoções de altas patentes que precisavam de
mais umas medalhas para o seu glorioso currículo militar. Mais uma
guerra estúpida a exigir o sacrifício dos seus melhores filhos, como
aliás todas as guerras.
Às cinco e meia da manhã seguimos para o comando da com-
panhia, em fila de um, como deve ser numa coluna militar na mata
cerrada, o mínimo barulho possível, sem cigarros para que o IN não
cheirasse o tabaco, e chegámos conforme o previsto. Toda a com-
panhia já estava formada à nossa espera, as continências da praxe,
pelotão apresentado, o capitão falou com o seu ar de grande coman-
dante:
— Homens, sabeis que vamos fazer uma operação perigosa, ou
seja, vamos montar uma emboscada às picadas que o IN utiliza para
se deslocar para os ataques. O 4º pelotão do alferes Viegas vai à fren-
te, a seguir ao picador africano, os restantes seguem em fila, sem
qualquer barulho, e quando eu encontrar o sítio ideal montamos
uma emboscada para destroçar o IN. O 3ºpelotão, do alferes Almei-
da, segue para o destacamento do rio para substituir o 4º pelotão.
Não toquem nos barcos porque foram armadilhados.
O 3º pelotão deslocou-se para o meu destacamento, onde só ti-
nha ficado uma secção para manobrar o canhão sem recuo, os ou-
tros seguiram picada fora comigo à frente, logo a seguir ao picador,
os restantes homens em fila silenciosa, com o furriel Trindade a dar
instruções aos homens. Os restantes pelotões seguiam atrás, com o
capitão no meio da coluna. Andámos, andámos, até que o capitão
deu ordem de alto à coluna e ordenou para montar emboscada numa
zona da mata cerrada, com ligeira elevação para precaver surpresas,
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o que não estava mal pensado. Todos deitados de barriga para baixo,
armas apontadas em frente, quem quisesse mijar tinha que o fazer
nas calças, ninguém se levantava a propósito de nada. E as horas co-
meçaram a passar lentas demais, o suor a escorrer pelo corpo todo,
passada uma hora, depois duas, até que chegados à terceira hora sem
novidades, o capitão decidiu voltar à base o mais depressa possível.
Naquele dia estávamos com sorte, nada se tinha passado, o IN
andava por outras paragens ou soube de alguma coisa e evitou o
confronto.
Chegámos ao quartel o mais rápido possível, havia contentamen-
to no rosto de todos, alegria, direi mesmo.
— Quero o pessoal em formatura; Trindade, vai desarmadilhar os
barcos, hoje vamos à pesca.
Todos formaram rapidamente, podia haver novidades.
— Camaradas, hoje vamos pescar para o almoço, encham os bol-
sos de granadas e quinze de vós acompanhai-me. O furriel Trindade
já foi desarmadilhar os barcos. Arranjem pranchas de madeira para
colocarmos no lodo e não nos sujarmos todos. Atenção, não quero
ninguém dentro de água, por causa dos crocodilos.
Quinze voluntários se apresentaram, instantaneamente. Tive que
dispensar outros que já estavam a mais. Dirigimo-nos para o rio com
as quatro pranchas e os três motores dos barcos. O Trindade já tinha
desarmadilhado a zona, pelo que pusemos os motores e deslocámos
os sintex para a água, desta vez a escorregar pelas pranchas. Avisei
o furriel para comunicar ao capitão que ia haver pesca, pelo que os
rebentamentos eram para isso mesmo. Entretanto mandei um rádio
aos “fuzas” a avisar o que ia acontecer.
Barcos para a água — gritei —, embarquem logo, sem pôr os pés
na lama, vamos para o meio do rio.
Com os barcos em movimento, tripulações de cinco homens
em cada barco, fomos para o meio do rio e começámos a pesca-
ria. Cada barco mandava duas granadas, cachões se elevavam da
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— A única coisa que eu queria era o fim desta guerra e, que fos-
semos todos para casa.
— Então camarada Viegas, sai daqui antes que fiques deprimido.
Os “fuzas” querem oferecer-te uma almoçarada bem regada.
— Labaredas, quero ir-me embora o mais depressa possível, por
mim ia já hoje, mas o Pinto ainda não sabe se fico com ou sem perna.
— Sou só teu médico, a perna não vai sair, está descansado e, se
continuares a melhorar, podes ir para o teu destacamento dentro de
dois dias, com muletas, é claro.
— Chiça, muletas?
— Sim, Viegas, muletas para não esforçares a perna esquerda, se-
não arriscas-te ao pior, infecção e perna cortada.
— Alferes, daqui a dois dias venho cá buscá-lo, o pessoal tem
saudades e, eu também.
— OK Trindade, mas não quero comissão de recepção à chegada.
Para despedida, proponho um copázio do whisky, da marinha,
que eu trago no cantil, hurra.
Um copo de metal com uma boa dose de whisky foi distribuído
por todos, tinha uma sede mortal e a bebida escorregou que nem
água das pedras; o corpo com vontade de se levantar e partir para o
destacamento, apoiado pelos camaradas; para já era impossível.
Entretanto o Pinto decidiu mostrar o buraco da bala, a todos, ti-
rou o penso, constatou que a ferida não apresentava coloração anor-
mal, deu-me uma palmada no ombro e disse a sorrir:
— Viegas, se isto continuar a correr tão bem, dentro de dois ou
três dias podes ir andando para a tua tenda, apesar de considerar
estupidez se o fizeres.
— Ó furriel Trindade, tome conta deste maluco, à mínima dor
quero-o logo aqui; fica à sua responsabilidade.
— Senhor alferes Pinto, o nosso alferes Viegas é muito difícil de
controlar, mas cá estarei com ele de volta se houver algum azar.
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E a manhã passou com a rapidez das coisas boas, mais umas pia-
das do costume, sessão interrompida pela decisão do Labaredas em
voltar ao seu destacamento.
— Camaradas, tenho que voltar, há “fuzas” à espera do coman-
dante. Quando o Viegas voltar à base, fazemos uma festarola das
antigas.
— Obrigado pela tua visita, camarada mais doido que eu, sou
imortal e não sabia.
— Não abuses da sorte, já gastaste uma vida, não sei, nem quero
saber quantas te sobram.
Abraços e sorrisos, os meus amigos lá voltavam à guerra, enquan-
to eu suava de tristeza naquela enfermaria improvisada.
Com o apoio dumas muletas levantei-me e, comecei a andar pela
zona da companhia, visitei o alferes Almeida, o Mendonça, o Lima,
os soldados cumprimentavam-me, tudo me parecia estranho, queria
voltar ao meu destacamento o mais depressa possível, fui falar com
o capitão.
— Meu capitão, já estou bom, quero voltar à base.
— Calma, alferes Viegas, só o alferes Pinto pode determinar
quando você pode seguir.
— Vou falar com o Pinto para resolvermos isto.
Falei com o médico, insisti na alta que me foi dada na hora, com o
conselho de mudar o penso todos os dias e ver a cor da ferida.
— Meu capitão, o alferes Pinto já me deu alta, posso seguir para
o destacamento?
— Alferes, se se sente melhor pode seguir, alguém vai levá-lo no
meu jeep.
— Obrigado, meu capitão.
— Não me agradeça, sabe que alguma coisa pode correr mal, mas
não vale a pena dizer-lhe mais nada.
Lá consegui partir, o eterno cantil do whisky, uma golada pelo
caminho, o destacamento não me aguardava, vieram todos dar-me
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era uma questão de sorte. A morte corria a mata à procura dos aza-
rados e levava-os, como quem não quer a coisa, suave e traiçoeira-
mente, enquanto os homens soltavam os últimos suspiros.
A noite corria tranquila, por vezes íamos ver o prisioneiro atado
à árvore, com a sentinela na zona, tudo calmo, o homem dormitava,
possivelmente nervoso com o futuro próximo.
Às 24h00, ouviram-se vários rebentamentos na zona do prisio-
neiro, a sentinela chega muito nervoso.
— Alferes, o IN entrou para libertar o prisioneiro, atiraram gra-
nadas, não tive hipóteses.
— Calma, Manuel, onde é que estavas?
— Estava a dez metros, sempre de G3 na mão, não tive possibili-
dade de enfrentar o IN.
— Tem calma, Manuel, és um bom soldado, fizeste o que podias,
sou tua testemunha, nada te vai acontecer.
— Tive medo que pensassem que eu estava a dormir.
— Ninguém pensa isso, fica em paz e vai descansar. De caminho
chama o furriel Trindade.
— OK, meu alferes.
O Trindade chegou rapidamente, com aquele sorriso cúmplice.
— Então, meu amigo, isso é que foi uma festa.
— Tudo conforme, alferes, o homem já está com os seus, pode ser
que não nos ataquem mais.
— Era bom demais para ser verdade, mas é possível.
— Amanhã chega a PIDE-DGS, vai ser bonito de ver.
— Trindade, não te preocupes, quero ver as caras desses canalhas.
— Viegas, tu é que sabes, mas prepara-te para a merda.
— Estou preparado há muito tempo, não vamos falar mais sobre
este assunto.
Sabíamos que a PIDE-DGS chegaria de helicóptero, algum chefe
de brigada mal-encarado mais uns gorilas, mas estava no mato com
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ainda tínhamos que nos safar desta guerra maldita, faltavam mais
uns mortos e muitos feridos para chegarmos a qualquer parte.
Baixámos à terra, deixámos de sonhar, só queríamos o tempo a
passar e o anúncio do dia da partida. A mim, faltava-me um ano e,
um ano de guerra é uma eternidade.
— Trindade, a partir de agora vamos aguardar a reacção do IN
quanto à fuga do guerrilheiro. Temos que estar unidos e calados.
E os dias foram passando numa aparente paz total, nem éramos
atacados pelo IN, nem atacávamos ninguém. Claro que estas infor-
mações chegaram ao conhecimento do nosso general Spínola que,
passada uma semana decidiu ir visitar Cobumba, o grande mistério
na frente de combate. Como era seu apanágio, numa segunda-feira
pelas 8h00 ouviram-se os helicópteros da escolta para-quedista a fa-
zerem um barulho de guerra inusitado.
— O general está a chegar, preparem-se para a merda que aí vem.
Todos me olhavam com ar de pena: “o alferes está lixado, isto é
por causa da PIDE-DGS”.
O “heli” do general pousou no comando da companhia, só me
deu tempo de formar o destacamento junto à bandeira, fardado com
o camuflado dos “páras” franceses, com remendos na perna esquer-
da, cheio de almofadados, nos joelhos e cotovelos, óculos rayban
verdes, com os quais não via quase nada, mas impressionaria até um
general. Preparei-me para o que lá viesse e, eis que chega um capitão
comando, adjunto do general que se dirigiu a mim e disse com voz
seca:
— Alferes Viegas, arrume as suas coisas porque vai seguir para
Bissau, já a seguir.
Entretanto, chegou um jipe com o general e seu estado-maior, o
capitão vinha num unimog, com ar assustado. Formei o destacamen-
to, prestei as honras militares, dirigiu-se a mim o major Monge, do
estado-maior, que me foi dizendo:
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de ti”. Pelo canto do olho ainda pude ver todos os meus soldados a
fazer continência e o furriel Trindade com a farda de ranger a dar
ordens de comando: “Hurra, hurra, hurra, pelo nosso alferes”! Der-
ramei duas ou três lágrimas. O tenente “pára” olha-me de soslaio:
“calma, camarada, o general gosta de bravos e, tu és um deles, vais
ser promovido”.
Com o helicóptero no ar, despedi-me mentalmente dos meus ir-
mãos de guerra, e lá fui rumo a Bissau, uma viagem para o desco-
nhecido. Em menos de uma hora estávamos em Bissau, no aeropor-
to de Bissalanca. Após “um rádio” recebido pelos pára-quedistas, o
tenente informou-me que seguiria num jeep para o QG, com ordem
de me apresentar a um coronel dos recursos humanos.
Quando cheguei, o coronel já me esperava, com um sorriso ras-
gado:
— Alferes Viegas, acabou a mata para si, está colocado no coman-
do-chefe, junto do nosso general Spínola, mais propriamente na 2ª
Repartição (2.ª Rep), ou seja, nos serviços secretos. Parabéns e, pode
ir apresentar-se ao chefe da Repartição.
Fiquei atordoado com a notícia, ia trabalhar com a elite do co-
mando-chefe, devo estar doido. O general não me tinha castigado
por causa dos “pides”.
Segui para o forte da Amura, sede do comando-chefe, e apresen-
tei-me ao tenente-coronel Beirão, um oficial simpático que me cum-
primentou cordialmente:
— Finalmente chegou o famoso alferes Viegas. Não sei o que o
nosso general vê em si, mas tem que ser coisa excepcional, senão não
o punha a substituir o major Santa Clara.
— Meu tenente-coronel, não faço a mínima ideia, sou só um alfe-
res do mato e, não fiz nada de especial para ser colocado aqui.
— Foi ferido em combate e ficou no posto de comando, é o su-
ficiente para o nosso general o considerar. Quanto ao resto, a sua
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— Havemos de nos ver por aí, passe bem snr. Inspector da PIDE.
Já na rua, o Barros Moura chamou-me a atenção para não me
meter com os “pides”, pois eles são perigosos e vingativos.
— Tens razão, meu amigo, a partir de hoje vou andar sempre de
pistola à cintura, com a arma que me foi distribuída, uma luger.
— Não te esqueças, se fores ao Pilão leva sempre uma escolta de
amigos.
— OK, Barros Moura, eles não me vão apanhar desprevenido.
— Viegas, no comando-chefe tenta obter informações da colónia
penal do ilhéu das Galinhas, uma prisão da PIDE de onde não há
quaisquer notícias.
— Está descansado, dentro de dias já saberei tudo sobre essa pri-
são.
Despedimo-nos com um forte abraço, combinando a próxima
reunião, para quando eu tivesse dados, sobre essa famigerada prisão
da PIDE.
Quando cheguei à minha repartição, dirigi-me à contra-informa-
ção para falar com o alferes Barroso.
— Barroso, vê se encontras alguma coisa sobre a colónia penal do
ilhéu das Galinhas, nos Bijagós. É uma prisão da PIDE.
— Ok, Viegas, cuidado com o inimigo interno.
— Isto é coisa muito séria, não brinques e procura qualquer do-
cumento. Depois avisa.
Entrei na minha secção e dirigi-me ao comandante Nemésio:
— Senhor comandante, temos aí alguma informação sobre a co-
lónia penal do ilhéu das Galinhas, nos Bijagós?
— Alferes Viegas, anda a investigar prisões da PIDE? Tenha cui-
dado, nós não sabemos nada sobre isso e, é preciso ter muita cautela
com essas investigações.
— Senhor comandante, é só por pura curiosidade e conhecimen-
to pessoal.
— Alferes, não pense que me engana, isso é só mais um dos seus
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truques para fins que nem quero saber. Cuidado, o mato está muito
perto e você está sempre sob observação.
— Mensagem recebida snr. comandante.
— Prepare a operação Koundara, ao mínimo pormenor. Não
pode haver baixas. Ponha o relatório em cima da minha secretária.
Passei a tarde a ler relatórios e mensagens, para além de consultar,
em profundidade, o mapa da zona. Sempre me interroguei como
seria possível que um grupo de cinco homens, comandados por um
sargento, fosse capaz de destroçar as bases do IN, em território es-
trangeiro? Mas estes comandos são máquinas de guerra. Até às cinco
horas aprontei a “operação Koundara” e entreguei o relatório ao co-
mandante que foi dizendo:
— Alferes, você é bom nisto, cuidado com a PIDE, não estrague
a carreira militar.
— Snr. Comandante, a minha carreira militar acaba com a guer-
ra, tenho que voltar a Coimbra para acabar o curso e reabrir o meu
grupo de teatro, o CITAC, que foi encerrado pela PIDE em 1971.
— Agora já percebi essa raiva contra os “pides”. Mas, como já lhe
disse, todo o cuidado é pouco, eles estão em todo o lado.
— Menos aqui na Repartição, penso eu.
— Também penso que não mas, tudo é possível. Entretanto, no
outro dia ouvi uma conversa de altas patentes que acham que você
devia ser promovido a tenente. Se fosse a si, aproveitava. Pode che-
gar a coronel, com mais umas comissões.
— Senhor comandante, não tenho perfil para a incompetência
dos burocratas na tropa. Já vi demasiados mortos devido a essa in-
competência.
— Espero que não me inclua nessa lista.
— Claro que não, senhor comandante. Vocês, na marinha, têm
outro estilo, são mais abertos e menos casmurros. Convivi com um
grupo de fuzileiros que morriam a dizer piadas, sem medos nem ca-
ganças, e bebiam whiski no intervalo das batalhas. Com gente desta,
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esqueçam que não estão no mato. Vou reunir-me com uns camara-
das do meu tempo.
Todos nos levantámos, em sinal de respeito, e o Labaredas tomou
conta da mesa, mandou vir uma garrafa de Johny Walker, 20 anos,
para matar saudades e eu tive que dizer:
— Esta garrafa pagamos nós.
— Estás doido Viegas, um comandante aqui, só assina um papel,
deixa-o pagar. Então agora és agente secreto?
— Não, limito-me o coordenar operações militares à Guiné-Co-
nakri, para destruir bases do PAIGC.
— Viegas, é verdade que deste a fuga ao prisioneiro?
— Claro, militar com honra, não entrega prisioneiros à PIDE! Sa-
bias que depois da fuga do guerrilheiro nunca mais fomos atacados?
— Boa, nunca fiz prisioneiros, mas agora já sei como agir.
Conversámos sobre a guerra e as nossas loucas aventuras, o fim
da comissão do Labaredas — mais seis meses e era a peluda —, ía
para casa. Eu ainda teria que ficar até junho de 1974. Foi decidido
que iríamos para o Pilão fazer a farra final. Lembrei aos camaradas o
problema do inspector da PIDE, ao que o Labaredas respondeu que
não havia problemas, porque trazia nos bolsos do camuflado duas
granadas ofensivas. Se aparecesse algum desses sacanas saía granada
e pirávamo-nos todos.
— Para além disso, trago sempre uma pistola calibre 22. Viegas,
já sabes, tiro ao alvo e será um lamentável acidente. Um inspector da
PIDE, aos porcos. O resto depois se verá.
— Sendo assim, até era bom que o cabrão aparecesse, resolvíamos
o problema com limpeza.
Ficámos todos alegres e lá seguimos em bando para o famoso
bairro das meninas, em Bissau. Uma vez chegado, o Labaredas de-
cidiu ir visitar a madame Bela, uma cabo-verdiana de olhos verdes
e pele de seda. Melhor recepção era impossível. A jovem cumpri-
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— Barros, não te preocupes, estes gajos têm que perceber que não
temos medo deles.
Entrámos no restaurante, todos me olharam por ir armado e de
camuflado: “mais um alferes que chegou do mato, com ar de alucina-
do”, terão pensado. Sentámo-nos, virados para a porta de entrada, a
mesa do “pide” era sempre junto à porta, para controlar as entradas
e as saídas.
Comemos que nem abades, bebemos como se fosse o último copo,
rimos alegremente, até que chegou o famigerado inspector, acompa-
nhado por dois gorilas mal-amanhados. Com o olhar fuzilou-me,
enquanto eu sorria com ar de gozo. Bebemos um whisky para com-
por, levantámo-nos e saímos, passando pela mesa do “pide”.
— Senhor alferes, vai para o mato?
— No mato continuo eu. Fazia-lhe bem passar lá uns tempos,
senhor inspector.
Saí e rimo-nos da graçola. O Barros estava preocupado.
— Viegas, cuidado com o cabrão, deitou-te um olhar assassino.
— Barros, não te preocupes, se eu pedir ajuda aos meus amigos
comandos africanos, os “pides” borram-se todos... Estive em três fren-
tes de combate e nunca por lá vi nenhum sacana desses; limitam-se a
torturar e matar os indefesos. Não te esqueças que os professores da
PIDE eram da Gestapo, vindos de propósito a pedido do Salazar.
— Acho que andas a arriscar muito, mas tu é que sabes…
— Meu amigo, isto vai acabar um dia destes, o regime está podre,
fede como um cadáver, só precisa de um empurrão para desaparecer,
de vez. Só não rebento com a sede da PIDE, porque não tenho ho-
mens operacionais. Talvez um dia haja um milagre...Vamos embora,
tenho um relatório para acabar. Tem que estar pronto amanhã.
Quando chegámos à secção, o comandante Nemésio chamou-me
à parte.
— Alferes Viegas, consta por aqui que você anda a perseguir
o inspector Palma. O nosso tenente-coronel já sabe, portanto ex-
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neste caso. São guerras apoiadas pelos povos e, estes ganham sem-
pre, mais tarde ou mais cedo.
— Viegas, qualquer dia os gajos entram em Bissau.
— Lima, os guerrilheiros não podem enfrentar o nosso exérci-
to, numa batalha final. Seriam completamente derrotados e isso eles
não arriscam. A vitória, em Guileje, ficou a dever-se aos artilheiros
russos e às potentes armas pesadas que eles trouxeram. O coman-
dante do bi-grupo, um tal Nino Vieira, chegou agora da China e tem
a mania que é esperto. Vais ver que o Amílcar Cabral ainda é morto
às ordens de gente como o Nino, vaidoso e pouco inteligente.
— Tens razão, Viegas, há muitas guerras nesta guerra. Como
achas que esta merda vai acabar?
— Meu amigo, só com um golpe de Estado em Portugal, o que
não é muito viável. Já imaginaste os milhões que os banqueiros do
regime ganham, par além das altas patentes, que vivem desta mise-
rável guerra?
— É verdade, o país está falido, o povo vive miseravelmente e está
domesticado.
— Não te esqueças que há quatro mil “pides” nas ruas, a prender
e a matar pessoas, todos têm medo.
— Como sabes isso, Viegas?
— Li um documento secreto do Estado Maior, fora os cinquenta
mil informadores. Se houver um golpe de estado, todos estes gajos
têm que ser presos, ou fuzilados, senão, nunca vamos avançar para
lado nenhum. Não te esqueças que ainda há os juízes dos tribunais
plenários, que julgavam os réus enquanto estes levavam porrada da
PIDE. Esses juízes, também têm que ser julgados e condenados, ape-
sar de ser coisa quase impossível, considerando que são uma classe
corporativa, segundo as melhores regras fascistas.
— Pensas que pode haver um golpe de estado?
— É muito difícil, mas há uma nova classe de oficiais do quadro
que já questionam esta guerra inútil, esta sangria de homens jovens,
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sitámos uma pistola para cada um, foi uma festa. Havia pessoal que
não estava habituado a usar pistola, prontifiquei-me a dar-lhes umas
aulas de tiro de pistola, na carreira de tiro mais próxima. Quando
voltámos à repartição, parecíamos um grupo de pistoleiros loucos,
havia quem não tivesse a noção de como atirar, para acertar em al-
guém.
— Apontem para a área maior do corpo, hão-de acertar.
Quando voltámos ao trabalho, o comandante pediu que guardás-
semos as armas numa gaveta, voltando a pô-las à cintura aquando
da saída. A guerra estava à porta, todo o cuidado era pouco. Esta
situação veio alegrar as coisas por aquelas bandas, onde tudo era
demasiado certinho. Um pouco de medo permanente era bom para
o moral das tropas, a qualquer momento aparecia o IN, para nos
rebentar com a coragem.
Todos temiam o ataque anunciado, ataque que sabíamos que
aconteceria, se não fosse no Natal, seria no Ano Novo. Comecei des-
de logo a preparar uma ida ao Pilão para essa altura. Não atacariam
as miúdas, também suas amigas.
A noite de Natal era já amanhã. Decidi convidar cerca de dezas-
seis alferes para irmos à festa na messe do QG onde jantaríamos e,
depois se logo se veria.
A meio da manhã, tive uma visita inesperada, o furriel Trindade
e o cabo Fonseca iam a casa passar o Natal. Abraços e mais abraços.
Apresentei-os a todo o pessoal da repartição. Entretanto, o Trindade
aproveitou para se queixar do meu substituto no mato, um alferes
de cavalaria, cheio de cagança e fascista, que tratava os homens com
desprezo e arrogância.
— Camaradas, só há uma solução, numa emboscada, dêem-lhe
um tiro numa pata, e, vão ver como o animal se acalma. O melhor é
ser o Trindade a disparar, senão ainda matam o gajo.
— Está combinado, quando voltarmos, vamos cumprir a missão.
— Rapazes, vão almoçar comigo à Casa da Beira, onde há cozido
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— Alferes, não me diga que vai levar o alferes Barros? Ele nunca
ouviu um tiro.
— Não se preocupe, senhor comandante, os periquitos vão en-
quadrados na coluna dos profissionais, não haverá baixas, somos
vinte e um homens, dos quais nove, altamente treinados.
— Já percebi que você vibra com estas aventuras. Só espero que
nada corra mal, senão, volta directamente para o mato. Você anda
muito acelerado, ó alferes, tenha calma.
— Senhor comandante, sou o homem mais calmo do mundo, não
vai acontecer nada de mal.
— Esperemos que não, já sabe o que acontece a seguir.
— Dê-me o benefício da dúvida. Os operacionais não podem fa-
lhar.
— Nessa sua equação, não há imponderáveis?
— Senhor comandante, imponderáveis eram as minas e as arma-
dilhas IN, com corpos estropiados pelo ar. Neste caso, só se levar um
tiro na cabeça, o resto, está tudo previsto.
— Alferes, já nem lhe digo mais nada, só lhe posso desejar boa
sorte. Pode ir almoçar, até já.
— Branco, vamos à Casa da Beira?
— Embora.
Desta vez, íamos comer uma deliciosa caldeirada de peixe, acom-
panhada por uma garrafa de Ponte de Lima, verde tinto, fresco, uma
maravilha.
— Branco, tens medo da expedição desta noite?
— Confesso que tenho, não percebo nada de armas, e a pistola só
a disparei em Mafra.
— Apontas à parte maior do corpo, hás-de acertar em algum
lado. Vai correr tudo bem, os “fuzas” são máquinas de guerra, não
te assustes.
Comemos bem, e voltámos optimistas à Repartição. Eu aguar-
dava a hora do lobo, ou seja, a ida ao Pilão com a força combinada.
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com sorte. Vamos a ver se a dita sorte não acaba na passeata pelo
Pilão, no fim do ano. Está dispensado, boa sorte, e não pregue uma
bebedeira no seu amigo.
— Meu tenente-coronel, posso ir já ter com o alferes Pinto?
— Claro, homem, e obrigue-o a vestir a farda, não quero alferes a
passear de pijama, pela cidade.
Arranquei quase em passo de corrida, rumo ao hospital militar.
Quando lá cheguei, já deviam saber quem eu era, pois “bateram-me
a pala” em todos os acessos.
O Pinto já me esperava, no longo corredor da ala psiquiátrica.
Deu-me um abraço forte.
— Conseguiste Viegas!?
— Até à tua partida para Lisboa, venho buscar-te para almoçar.
Ordens de deus. Nunca mais voltas a comer esta merda que aqui te
dão. Hoje fui dispensado do serviço, só para te acompanhar numa
visita guiada. Amanhã, logo se vê.
— Porque fazes isto?
— Porque sou teu irmão, e não me esqueço o que fizeste por mim,
no mato.
— Onde vamos almoçar?
— À Casa da Beira, o melhor sítio para se comer, em Bissau.
Quando chegámos, a festa do costume, o senhor Costa e a dona
Ermelinda a cumprimentarem-me.
— Senhores alferes, é o cozido à portuguesa?
— Claro, com um vinho alentejano, do melhor.
O Pinto ria das nossas aventuras no mato. Era um prazer ver o
meu amigo a rir.
— Viegas, quando pensas que me vão mandar para casa?
— Espero que até ao fim do ano estejas do outro lado, a dormir na
tua cama. O meu chefe é o segundo no comando geral, logo abaixo
do general… Estás safo!
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sozinho, de tal forma que tiveram que o tirar do local, pois já tinha
o braço queimado depois de dezassete morteiradas. Mais uma e o
morteiro rebentaria. Há heróis destes por toda a parte mas se não
fosse o Spínola a dar-lhe um louvor já ninguém se lembraria.
— Viegas, já estou a ficar como tu, a interrogar-me sobre a utili-
dade desta guerra!
— Só interesses económicos, os bancos a roubar e o regime a
aguentar-se no fio da navalha, tudo o resto é mentira, a pátria deles
são os milhões que roubam. A nossa pátria, é sangue derramado, os
mortos rapidamente esquecidos, os estropiados físicos e mentais, os
anos de vida perdidos, para nada, tudo em vão, só o horror que nos
rodeia e, nos envenena a alma.
— Dou-te razão naquilo que dizes...
— Trindade, vou pedir-te que não levantes mais minas. Um dia
destes vais pelos ares e ninguém se vai lembrar de ti. Depois é o
costume, a tua família vai receber umas pedras no caixão e, assunto
arrumado.
— Tens razão, Viegas, vou-me deixar disso, eles que as levantem.
— É assim mesmo, camarada, eles que as levantem... Ainda por
cima agora tens mulher. Tem juízo, esta já não é a nossa guerra, é
dos pançudos que enchem as carteiras com o nosso trabalho. Basta!
Até ao fim da comissão, na mata, não faças merda, evita combates
inúteis, vem para o quartel de Bissau e espera a partida para casa. Já
lutaste demais.
— Não há dúvida que és um bom amigo, já agora, acompanha-me
à base da marinha para apanhar a próxima LDG para Cobumba.
— Claro que sim, vamos beber um último whisky. À nossa, ca-
marada!
O Trindade entrou na velha LDG “Bombarda”, rumo a Cobum-
ba, o maldito destino dos últimos guerreiros, afinal os gladiadores
do império decadente. Rezei para que nada lhe acontecesse. “Adeus,
camarada, até ao meu regresso...”. Demos um abraço de irmãos de
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Dei por mim a chorar. Larguei tudo e segui para o quartel dos
Adidos.
Quando cheguei, a companhia estava formada. Dirigi-me ao meu
quarto pelotão. Os soldados choravam. Alguns abraçaram-me. O cai-
xão estava em exposição com a bandeira nacional a cobri-lo. Fui rece-
bido com honras militares, ao que retribuí com a continência. Depois,
mandei vir uma garrafa de whisky da messe, só com um copo.
— Camaradas, aqui jaz um herói de Portugal, “hurra!”. Enchi um
copo de bebida e emborquei-o de um trago. Depois, dei uma ordem:
— 4º pelotão, um passo em frente, vamos beber em homenagem
ao nosso camarada Trindade, “hurra”!
Em fila um por um, os vinte e três homens beberam a garrafa,
quase num ápice.
Chegaram, entretanto, quatro rangers do raid do ano novo.
— Alferes Viegas, viemos despedir-nos do nosso camarada Trin-
dade. Fizeram a continência, deram um passo em frente e deixaram
mais duas garrafas de whisky em cima da bandeira. Ficaram em sen-
tido, todo o tempo que demorou a cerimónia, isto é, o tempo neces-
sário para beber todo o whisky.
— Camaradas, não é vergonha um homem chorar a morte de um
homem que levantou mais de cem minas. “Hurra”!
Toda a companhia gritou em uníssono: “Hurra”! Depois o silên-
cio da morte a pairar sobre a formação militar. Uma guarda de hon-
ra, constituída por mim, pelos rangers e por mais dois camaradas,
levaram o caixão para a capela. A bandeira, levei-a comigo, confes-
so que tinha umas nódoas de whisky, coisa pouca. Ausentei-me em
companhia dos rangers. Continuaríamos a beber mas fora da zona.
Depois de algumas horas mais de cerimónia ritual, decidimos pa-
rar de beber. E a partir dali tomar apenas só café.
Os rangers ofereceram-me um crachá de honra. Gritámos mais
uns “hurras”, eu voltei para o meu quarto e eles seguiram para a sua
unidade.
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— Senhor comandante, seria mau sinal, mas se tiver que ser, va-
mos embora.
E o resto do dia passou sem quaisquer novidades apesar das mui-
tas mensagens mas nenhuma com informação especial.
No dia seguinte, quando cheguei ao comando-chefe, percebi
grande agitação. Na porta de armas, o alferes da PM disse-me, ale-
gremente:
— Viegas, um golpe de estado em Lisboa, a guerra vai acabar.
O meu coração deu um salto, corri para a minha repartição. O
comandante, veio direito a mim e abraçou-me.
— Alferes, o governo caiu. Agora é só aguardar as novidades de
Lisboa que hão-de seguir-se. Mantenha-se no seu posto, enquanto
esperamos ordens superiores.
Os oficiais superiores começaram a entrar e a sair do gabinete
do tenente-coronel, alguns com ar carrancudo, outros sorridentes,
a guerra ia acabar de vez, as tropas regressavam a casa. A grande
questão era, quando viria o fim desta matança inútil?
À grande pergunta, isto é, o que se irá passar com as tropas na
mata, ninguém sabia responder.
Chegavam centenas de mensagens da 2ª Rep de Lisboa. Já se sabia
que o comandante operacional era um tal major Otelo Saraiva de
Carvalho, antigo responsável pela contra-informação da 2ª Rep de
Bissau. O golpe de estado do dia 25 de Abril ia acabar com a guerra.
Em breve voltaríamos para casa. A alegria estampava-se na maioria
dos rostos, só os oficiais fascistas andavam de trombas, com medo
da incerteza. O nosso tenente-coronel estava bem disposto, sorria
quando me via e, cumprimentava todo o pessoal, alegremente. O
nosso chefe estava com o golpe, sempre o soube.
Conforme iam chegando mais pormenores relativamente à evo-
lução da situação, ficamos a saber que o capitão Salgueiro Maia, um
oficial da Escola Prática de Cavalaria, de Santarém, avançou para
Lisboa com uma coluna de tanques e outra constituída por jovens
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micas e não só. Quando chegámos, estavam lá sete MRPP que nos
começaram a insultar: “Assassinos!”. Sem lhes dar tempo, o capitão
Carneiro dirigiu-se à mesa onde estavam os meninos maoistas, tirou
o braço de ferro e começou a “aviá-los”. O líder ficou com o nariz
partido, eu limitava-me a dar-lhes um pontapé no rabo e pô-los na
rua. Os meninos e meninas todos tratados com as porradas do ca-
pitão maneta, choravam baba e ranho, deitados pelo passeio, cheios
de sangue e lágrimas. Quando chegou a polícia, o capitão pô-los em
sentido e só lhes disse para chamarem a ambulância. Foi tudo muito
rápido, sentámo-nos na mesa antes ocupada pelos “meninos”, pedi-
mos uma garrafa de whisky e aguardámos a os “citaquianos” que vie-
ram assistir à porrada já divulgada nos corredores da AAC. Saíram
umas rodadas de “imperiais” e a alegria a todos contagiou. O capitão
lembrou-me que tínhamos que partir para Figueiró: “a guerra não
espera”.
— Camarada Carneiro, proponho que durmamos no CITAC, te-
mos lá uns colchões de praia.
— Aprovado, camarada, assim bebemos à vontade. Alvorada às
seis da manhã.
A noitada prosseguiu em festa rija em rodadas contínuas, as “im-
periais” jorravam sem cessar, todos estavam alegres. Tínhamos que
nos levantar às seis da manhã, partimos às três, já devidamente tol-
dados. Todos ajudaram a encher os dois colchões de praia. Cama
pronta, deitámo-nos vestidos.
— As seis da manhã, já estávamos a lavar a cara na casa de banho.
Seguimos para Figueiró dos Vinhos, sempre a acelerar, era urgente
fazer o ponto de situação com as tropas no terreno. Às sete e meia
estávamos na base de operações, os rangers faziam patrulhas a 500
metros do local. Sorriam e batiam-nos a pala. A guerra voltava ao
normal, despedi-me do pessoal e, segui para as aulas.
— Capitão, vais almoçar comigo?
— Não, hoje vens cá tu almoçar com a rapaziada.
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“Hurra”, apanágio dos rangers, antes das batalhas. Desci a escadaria,
cumprimentei todos os militares com forte aperto de mão, ao capi-
tão dei um abraço de irmão de guerra.
A uma ordem deste todos embarcaram nas viaturas e partiram.
“Hurra, Hurra, Hurra”. Fiquei calado a assistir à partida dos meus
camaradas de guerra, estava comovido como se tivesse perdido a
última batalha.
Quando entrei na Escola, fui à casa de banho e chorei, estava tris-
te de morte. Enxuguei os olhos o melhor que pude e voltei à sala de
aula. Uma menina loirinha e olhar inteligente, que estava na carteira
da frente, olhou muito séria para mim e disse:
— Professor, estiveste a chorar?
— Catarina, os homens não choram!
A menina levantou-se, veio ter comigo e deu-me um abraço, di-
zendo:
— Professor, não estejas triste, nós gostamos muito de ti.
Guiné meu amor!
“Adeus até ao meu regresso...”
Fernando de Magalhães
Santiago (Cabo Verde) A
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AAC / CITAC
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POSFÁCIO
viajo sempre
em direcção a ti
porque o meu destino
é o teu porto
porto-destino
de passageiro
clandestino
parto sempre
com a certeza
de aportar um dia
a essa doca
de chegada
e aos errantes
destinada
errantes
por mares conhecidos
mas sempre novos
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e é a clareza do azul
das águas
que me permite
sentir o teu olhar
mar e horizonte
na bitácula da
agulha tremulante
com azimute traçado
e alvo à vista
sempre-viva
sempre-verde
sempre-noiva
sempre-luz
sempre-porto
de honra
franco e seguro
és abrigo guinéu
cretcheu refúgio
levando sempre
esse porto comigo
Carlos d’Abreu
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