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AULA UNIFA: ESTADO NACIONAL, FORÇAS ARMADAS E

INDUSTRIALISMO

Gostaria de tratar aqui acerca da intricada relação entre

Estado Nacional, forças armadas e industrialismo. Começarei

de trás para frente.

A revolução industrial provocou uma revolução nos meios de

militares e nas formas de combate. Técnicas tradicionais de

combate se tornaram obsoletas com o desenvolvimento de

novas tecnologias associadas aos meios militares. Para

dominar a nova tecnologia empregada nos campos de batalha

era preciso disciplina e treinamento contínuo. A

profissionalização da carreira das armas se torna,

portanto, indispensável, para fazer a guerra industrial

moderna.

Assim, mudanças organizacionais significativas começaram a

ser produzidas nos meios militares, no sentido de uma maior

profissionalização do corpo de oficiais, antes oriundos das

classes tradicionais, a nobreza.


Esse movimento começa já nos idos do século XIX – o século

da grande transformação industrial -, e os países pioneiros

nessa empreitada são a Prússia e a França. Ambos os países

terão teóricos estrategistas importantes – a Prússia,

Clausewitz; a França, Jomini.

Mas a grande revolução na maneira de se pensar e fazer a

guerra se dá efetivamente com a I Guerra Mundial – marco

decisivo da guerra moderna. Até a Primeira Guerra, o corpo

de oficiais era ainda formado por nobres. Pode-se dizer que

as sociedades europeias eram até então ainda tradicionais.

Haja vista um caso interessante. O arquiduque Francisco

Ferdinando, herdeiro do Império Austro-húngaro, era casado

com uma nobre de segunda linha, e por isso não podia se

apresentar ao lado dela em cerimônias oficias na Europa.

Ele vai então acompanhado da esposa a Sarajevo, na Bósnia,

onde era detentor do cargo de inspetor geral das tropas

austríacas, para passar em revista as suas tropas, quando é

assassinado por um jovem separatista que protestava contra

o imperialismo austro-húngaro.

Qual foi então o impacto do industrialismo para as

sociedades do século XIX e início do século XX?


Primeiro, no campo das inovações tecnológicas,

naturalmente. Até a Revolução Industrial, a distância

horária entre duas cidades europeias era a mesma do tempo

do Império Romano no seu auge. Durante dois mil anos nada

mudou praticamente. O grande salto se deu com a navegação a

vapor e o trem – à base de carvão queimado.

A revolução industrial não poderia deixar de ter resultados

no campo militar. Ela ampliou o espaço do campo de batalha

e o tempo de duração da guerra. A tecnologia de comida

enlatada alimentava os soldados por mais tempo; as

ferrovias e os navios a vapor transportavam milhares de

soldados de um lugar a outro distante.

Mas um segundo aspecto da revolução industrial impactou

decisivamente sobre o modo de pensar e fazer a guerra. Foi

o seu aspecto social, relacionado à quebra de barreiras

hereditárias à mobilidade social dos indivíduos. O que isso

significa? Que no universo social tradicional todos os

indivíduos são herdeiros da pobreza ou da riqueza dos seus

antepassados; enquanto que, nas sociedades industriais,

modernas, a posição social dos indivíduos não é pré-

determinada. A pobreza e a riqueza de um indivíduo deixam

de ser um destino.
A despeito das diferenças de oportunidade entre ricos e

pobres, a estratificação social não é automática ou

acachapante. O esforço pessoal e o mérito, pelo menos em

princípio, passaram a decidir a condição social futura dos

indivíduos, no lugar de valores e costumes tradicionais. O

acesso à riqueza continuou restrito a um número reduzido de

pessoas, mas deixou de ser exclusividade dos bem nascidos.

Qual é o efeito dessa revolução no campo militar? A

carreira das armas, como outras tantas, se abriu ao

talento, deixando de estar estritamente vinculada a

determinados indivíduos pela sua extração social.

Assim, indivíduos não vinculados às elites tradicionais

passaram a alcançar o alto oficialato em virtude de seus

próprios méritos. O poder do dinheiro ou do nome de família

passa a não mais influir sobre a composição do oficialato,

que se abre a todas as classes sociais, mas se caracteriza,

notadamente, como de classe média.

O primeiro país no mundo a abolir as restrições de classe

para ingresso no oficialato foi a Prússia, que já no início


do século XIX abriu as escolas preparatórias de oficiais

aos não aristocratas.

É na Prússia que surge o primeiro Estado-maior, bem como as

primeiras escolas de altos estudos militares. Décadas mais

tarde, outros países, a começar pela França, vão copiar os

passos da Prússia.

Ademais, com a revolução dos meios de combate, que se deu

na esteira do industrialismo, a guerra se tornou uma

empreitada mais complexa que passava a demandar preparo

técnico e experiência. Até a Primeira Guerra Mundial era

comum ver altos oficiais sem preparo técnico e experiência

à frente de operações militares.

A figura do oficial militar de carreira é relativamente

recente na história. A figura do combatente militar, do

guerreiro, é tão antiga quanto a humanidade. Mas a figura

do oficial de carreira profissional é uma característica

das sociedades industriais.

Como observou um importante sociólogo, Émile Durkheim, na

sociedade industrial há um número incontável de profissões,


de especialistas, fruto de uma divisão do trabalho social

cada vez mais expansiva. Nela, os indivíduos são obrigados

a desenvolver habilidades especificadas, na medida em que

cada um é parte da divisão do trabalho que lhe compete.

O oficial militar de carreira é um especialista como outros

tantos profissionais. Na etapa industrial, a guerra deixa

de ser uma tarefa simples, para amador, e passa a exigir,

cada vez mais, especialidade, preparo.

A figura do oficial moderno nada tem a ver com a figura do

guerreiro medieval, por exemplo. O guerreiro medieval é um

aristocrata amador ou um mercenário. Combatia por um ideal

de honra ou pela busca do enriquecimento. É um aventureiro.

Já o oficial militar serve ao Estado e, em última

instância, à sociedade. Seu dever é matar ou morrer em nome

da sociedade que lhe institui o poder das armas. Ao

contrário do guerreiro mercenário, que compreende a guerra

como um negócio lucrativo e que coloca à venda os seus

serviços, o oficial moderno é orientado pelo senso de dever

para com a sociedade.

Suas motivações não são de ordem pessoal. Combate não em

nome deste ou daquele senhor, como o guerreiro mercenário


ou o vassalo feudal, mas por um poder impessoal, o Estado,

a nação. Guerreia, mata e morre em nome desse ente coletivo

que ele representa.

Embora sirva à sociedade não pertence a ela, mas ao Estado.

Se distingui do civil tanto pelo treinamento diferenciado

que recebe – é treinado para fazer uso racional da

violência - quanto pela farda e as insígnias do posto que

ocupa.

A guerra industrial só pode ser empreendida pelo poder

estatal. Já que os seus custos se tornaram excessivamente

onerosos para os grupos privados. Antes, na Antiguidade e

na Idade Média, os combatentes arcavam com os custos

pessoas de armamentos e suprimentos. Não por acaso a guerra

era uma atividade exclusiva das classes superiores. Logo, o

número de combatentes ficava sempre aquém do número de

homens em condições físicas de guerrear.

O número de combatentes era insignificante se comparado ao

dos exércitos modernos, baseados no sistema de conscritos,

ou seja, de alistados. O serviço militar, antes exclusivo

das classes aquisitivas (que tinham a posse dos meios


bélicos, como cavalos, armaduras, armas), é estendido assim

às classes inferiores.

O sistema de conscritos passa a permitir o acesso às armas

a todos os homens que pudessem marchar e lutar. O primeiro

exército de conscritos é o exército revolucionário francês,

criado pela república francesa após a queda da monarquia de

Luís XVI.

Concluindo essa primeira parte, é importante observar que o

impacto da industrialização no meio militar não se limitou

ao aprimoramento dos artefatos bélicos. Repercutiu de forma

muito mais importante, como nós vimos, no estabelecimento

de uma nova cultura organizacional, baseada na meritocracia

e no profissionalismo.

No Brasil, a profissionalização da carreira militar se deu

dentro de uma perspectiva modernizadora da sociedade. A

industrialização nacional era vista nos meios militares

reformistas como essencial para o aprimoramento técnico e

profissional da própria corporação, sem o que não estaria

ela apta para a “guerra moderna”.


Outro ponto importante que eu gostaria de comentar aqui é o

militarismo, um fenômeno política comum na América Latina,

contrário ao profissionalismo militar, e por sua vez,

ligado à ausência de economias industriais no

subcontinente.

O militarismo pode ser entendido como participação ativa

dos militares nas decisões políticas.

Esse fenômeno na América Latina esteve associado às guerras

de independência e às desordens subsequentes.

Durante as lutas coloniais que correram pelo século XIX

adentro, as elites nativas, com raras exceções, formaram

exércitos para se contrapor às potências colonizadoras.

Após a independência, as elites dos países latino-

americanos não puderam desmontar o aparato militar recém-

criado, do qual agora dependiam para manter a ordem e o

controle internamente. Ademais, esses exércitos, embora

concebidos como expressão do poder dos grupos que os havia

convocado, ganharam autonomia e, paradoxalmente, se

tornaram uma ameaça à nova classe política, pelo fato óbvio

de possuírem armas.
Na América Latina independente, os guardiões da nova ordem

se constituíram ao mesmo tempo, paradoxalmente, como fonte

de desordem. O militarismo estrutural foi o preço pago

pelas elites dos países latino-americanos para dispor,

sempre que necessário, de um poder armado a seu serviço

contra eventuais ameaças internas.

No Brasil, a dificuldade do Império de controlar o vasto

território nacional obrigava à administração central a

conceder poder armado a líderes locais para aplacar

rebeliões, já que a ausência de estradas de ferro e de um

sistema de comunicação dificultava a atuação das forças

armadas regulares.

Essa relação ambígua impediu que a classe política

aportasse recursos na modernização do aparato militar. O

descaso da elite política em relação aos militares levou os

oficiais de maior consciência política a buscar por sua

própria conta a superação do atraso tecnológico e econômico

da sociedade.

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