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Poética da memória fluída


Tau Golin

Os Golin e os Torres, minhas famílias de existência, tinham sentenças formativas,


axiomas de orientação cotidiana, talvez assustadores para a pedagogia contemporânea: Não era
vergonha andar remendado, mas sujo; jamais ter vício que não pudesse sustentar; antecipar-se
ao frio e a fome (cuidados elementares); e retirar das forças naturais/animais a energia corpórea
e mental. Em minha infância e adolescência, esses “princípios” apareciam como normas
demonstráveis pragmaticamente, ou através de rituais de passagem.
Enquanto vivemos, nossa experiência tem memórias e tempos, nem sempre em
cronologia progressiva e simétrica. Invariavelmente, mesmo quando adultos, introduzimos em
nosso cotidiano “memórias” fragmentadas que contribuem no sentido de nossa existência. No
espectro de seu paradoxo fragmentado, a memória tende a uma “totalidade” múltipla e seletiva.
Devido a sua instrumentalização, nossas escolhas influenciam decisões e compreensões em
tempos distintos. Entretanto, a seletividade da memória quase sempre passa por uma
intervenção construtiva e se manifesta como autoria representativa. Não é unicamente a
projeção de uma visualização sensitiva do passado. Da perspectiva da formação do indivíduo, a
memória é o fenômeno de uma “lembrança” recriada que, em grande parte, é “resgatada” na
versão de imagem.
Como o passado é o objeto da Memória e da História, por óbvio, existem colaboração e
conflito na complementaridade dessas duas áreas metodológicas do conhecimento. No senso
comum, a Memória é altamente vitoriosa sobre a História, pois opera na consagração do status
quo, seletiva e dependente dos donos do poder. Ela milita na sua legitimação. Mas na
intimidade individual tem efeito psicológico. Talvez, em demasiada síntese, poderíamos situar a
Memória no espaço do “vivido”, e a História no do “compreendido”, na cognição do longo
tempo, com seus sentidos sociais e individuais. Todavia, é difícil perceber as fronteiras entre a
historicidade da Memória e o memorialismo da História, pois estão em constante dialética
humana.
No seria exagero dizermos que os indivíduos possuem diversas “idades”, as quais
terminam operando em tempos diferentes de suas existências, realizando combinações conexas.
A primeira e irredutível noção é que estamos adstritos ao tempo biológico. A materialidade
mamífera nos submete ao drama vida-morte. Essa condição influencia nos tempos das escolhas,
no ritmo e no espaço que desejamos às coisas. Já o tempo-memória cultural propicia a
elasticidade pela abrangência da erudição. Como seres da cultura, podemos transitar pela
civilização, com idades de séculos, caímos em buracos negros existenciais, emergimos na
Antiguidade, andamos pelas aldeias medievais, em alguns casos, com mais desenvoltura que em
nossas cidades interioranas. Nela produzimos o devir utópico, que nos expande ao futuro.
O tempo da memória identitária é uma oferta de espaços criativos de identificações e
tipificações. Estamos no mundo expostos ao poderoso calendário de normas, comportamentos,
hábitos, costumes e particularidades atribuídas ao pertencimento pré-estabelecido, afirmado e
recriado a cada celebração e suas variáveis estéticas cívicas. Consequentemente, a formação da
indispensável memória simbólica é um embate de superação das identidades coletivizantes. Sua
estratificação, na expressão mais absoluta, configura a alienação do tempo sem-memória, onde
os indivíduos parecem-ser, em um mundo de real-consumo (o ser estimulado na polaridade do
estímulo-resposta). Existe uma espécie de ingresso confortante no revir, na militância das
indústrias culturais clubísticas, cívicas e religiosas tradicionalistas recriadas em mitos fundantes.
O tempo dogmático é o da memória manipulada por um dogma, religioso, monoteísta,
hegemonizante, intolerante, considerando-se legitimada na ancestralidade de uma divindade, de
um herói a-histórico, ou de uma ideologia teleológica.
Pode-se perceber também o tempo-memória político-cidadão, quando o indivíduo
supera condicionamentos familiares, regionais e nacionalistas, e coloca-se na reciprocidade
identificativa dos vínculos históricos-políticos, da utopia humanista, da alteridade solidária. É o
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tempo para edificar os nossos monumentos, dando historicidade e vivência aos acervos
selecionados no lastro do processo civilizatório e das culturas humanizantes.
Nas interfaces dos fragmentos eletivos do tempo-existência está a problemática
memória familiar. Nela, o nexo da herança conflita o vazio-conforto da modernidade, a
necessidade de se autoconstruir individualmente sob a pressão da neurose e da esquizofrenia do
divã do espelho identitário. Nesse dilema, cada um elabora o seu capital simbólico, o seu
patrimônio pessoal, a sua identidade.
Na seleção do passado elegem-se modelos gentílicos, literários e tipos sociais
familiares.
Não sendo o sucedâneo de lembranças concretas, a memória se forma na fronteira, no
entre-lugar em que se pode fazer a ligação “coerente” das eleições que formam a identidade,
com suas referências positivas ou tormentos. A modernidade atribuiu ao indivíduo o dilema da
sua própria construção.
Como parte da sociedade dos indivíduos, a memória também aparece através de
“matrizes” que “reproduzem”, de antemão, as pessoas. Contemporaneamente, a mais
problemática é a da “raça”, atribuindo-lhes um valor superior pelo determinismo biológico. A
da “etnicidade”, em espaços sociais, a exemplo do Rio Grande do Sul, pode conduzir à
duplicidade ilusória, dentro da aritmética que separa os indivíduos como somas de partes: teuto-
rio-grandenses, ítalo-gaúchos, afro-gaúchos, etc. Ora, a mestiçagem e a cultura não são
“somas”, mas outras totalidades construídas na experiência histórica. Por essa razão, a
“etnicidade” tem se prestado para a instrumentalização e a farsa, contribuindo para a hegemonia
de um padrão de pastiche gentílico gauchesco, a parte central e permanente das supostas etnias
imutáveis.
Todos esses fenômenos não derivam “naturalmente” do passado. Eles são aspectos do
indivíduo moderno, cujas identidades são construídas pelas suas ações cotidianas, onde estão
em tensão a memória, a tradição e a modernidade (muitas vezes, afirmação ou
rompimento/negação da “origem”). Mas, de qualquer forma, a identidade é uma condição da
modernidade. Por essa razão, a memória contemporânea é canibal e conta com inúmeros
instrumentos para alterar os sentidos. É também seletivo-vingativa pelo mecanismo
manipulatório do “eu” simbólico (pretensamente autêntico, herdeiro natural, legítimo) e o
“outro” (falso, estrangeiro, não-legítimo, ameaçador dos “valores” hegemônicos). Por isso, a
memória, tomada como combustível identitário gentílico, revela traço ideológico-militante e se
organiza como força coercitiva. A pior identidade – porque alveja o outro com o estigma do não
pertencimento - é aquela que adquire o aspecto de imagem através da militância dogmática pós-
moderna do parecer-ser.
Com alguns espaços em comum, a Memória e a História constroem seus acervos e
monumentos. Poderíamos compreender preliminarmente esse nexo na seguinte representação:

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Em parte, a minha compreensão da questão da memória decorre de alguns dos meus


acervos e monumentos referenciados nos paradigmas familiares.
Meu avô, Luigi Golin, de quem herdei o primeiro nome, Luiz, chegou de Gambellara
(Itália) aos seis anos. Meu bisavô, Lorenzo, agricultor e “marceneiro de Vicenza”, havia
viuvado e, em 1891, resolveu, aos 49 anos, tentar a vida no Brasil, comprando uma colônia de
terra perto de Farroupilha, no fluxo de formação da Colônia Princesa Isabel, no atual município
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de Bento Gonçalves, Rio Grande do Sul. Trouxe quatro filhos e, um quinto, Carlos Alberto,
com dois anos de idade, foi impedido de embarcar pelo serviço médico do porto sob o
argumento de que morreria na travessia do Atlântico. Carlos quedou-se com a família materna,
permaneceu na Itália, transformou-se em marinheiro mercante, andou por todos os continentes,
passou pela costa brasileira diversas vezes, mas nunca conseguiu se encontrar com os irmãos.
Giulio, Elvira, Luigi e Emma estavam entronizados pelos sertões pioneiros do sul. Durante a
Segunda Guerra permaneceu prisioneiro no Canadá. Dele recebi meu segundo nome, Carlos.
O bisavô Lorenzo, “italiano-moreno”, forte, de 1.80 de altura, não suportou a viuvez.
Depois de dois anos de trabalho duro, construção da casa e móveis com seu talento de
marceneiro do Vêneto, foi sendo vencido, progressivamente, pela melancolia da perda
irreparável da mulher. Consta que realizava costumeiras sangrias e, certo dia, morreu na lavoura
enquanto capinava. Diz-se na época e se manteve a versão na família de que Lorenzo “morreu
de tristeza”, algo que aparece na literatura especializada como depressão. Prefiro acreditar que
meu bisavô “morreu de amor”, a mais nobre das mortes diagnosticada pela vivência de uma
saudade.
Os filhos foram separados sob a coordenação de um padre católico e distribuídos entre
famílias de colonos “italianos”. Nesse processo, perderam-se da terra, das economias e do
trabalho nela investidos. Ao meu avô Luigi, com nove anos, coube a triste sina de ser “dado” a
um casal de colonos pertencente aquela estirpe disseminada de famílias “italianas” que adotam
“crianças” para explorar mão-de-obra infantil, inclusive pelos parentes próximos. Assim, Luigi
foi condenado a quatro anos de trabalhos que poucos homens suportariam, espancamentos
comuns aos animais de tração, alimentação com restos de comida e, ainda, obrigado a longas
sessões de orações noturnas para ir dormir agradecendo a Deus pela vida que ganhara. Tratado
como besta nos fundões da colônia submersa na floresta, Luigi foi encorpando na adolescência,
ganhando compleição física; os dias nos cabos do machado e da enxada lhe desenvolveram as
espaldas. A robustez física implicou nas primeiras olhadas de semblante firme para seus
verdugos, inclusive sob as tundas de relho. Mesmo com ele dormindo sob cadeado no paiol dos
porcos, o casal passou a trancar a casa por dentro.
Quando chegou aos 13 anos, meteu um facão na cintura e ninguém mandou tirá-lo. Certa
noite, depois da reza, retirou-se para o paiol. Aguardou o lampião apagar na casa colonial,
juntou suas poucas roupas, calçou as chinelas de couro e entrou no breu da mata. Até o devoto
casal perceber sua ausência, procurar a autoridade e iniciar as buscas tinha que estar o mais
longe possível. Andou a noite inteira temendo os animais, os tigres, os leões baios e as cobras.
Lanhado e esfarrapado, amanheceu em uma clareira. Encostou-se em uma árvore e, estafado,
dormiu. Acordou com o cincerro de uma mula madrinha. Vinha chegando um caboclo biriba,
tropeando sua tropa de mulas e burros. Apeou, cumprimentou o piá, fez o fogo. Quando a
comida ficou pronta, convidou o guri sestroso. Aos poucos, foram trocando palavras esparsas,
até que o biriba perguntou o que ele fazia naqueles cafundós. Luigi confessou-lhe a sua pequena
e dramática história.
O tropeiro destinou-lhe uma mula. Começava ali o acaboclamento de meu avô, facilitado
pelo fenótipo de “italiano moreno”. Assim que pode comprou roupas como as do biriba que lhe
empregara: bombachas serranas, botas, esporas, guaiaca, tirador e chapéu de aba larga; faca,
facão, trabuco e espingarda. Desbravou os planaltos rio-grandense e catarinense, tropeou pelo
pampa. Tropa passou a ser o seu negócio, além de atividades diversas. Rapagão, tentou a vida
em Porto Alegre. Se percebeu a Belle Época foi como açougueiro no Mercado Público. Levou
vida de porto e arrabaleira na capital. Mas não se sabe por qual motivo, retomou a vida de
tropeiro, misturada com outras profissões. Tipo mundano, quando conheceu Regina Capitâneo
pelas bandas de Dois Lajeados não era bem visto pela família da pretendida. Mas quando
mostrou aos “cunhados” como se trabalhava, como se derrubava e tirava pinheiros da floresta,
alguns medidos pelo abraço de dez homens, na tração das parelhas das mulas, esta “ética” do
trabalho concedeu-lhe o casamento.
Mas Luigi era um andejo da necessidade e do estilo de vida. Alguém entre o colonato e o
caboclo, da utopia pela propriedade da terra e do arrendamento. Os lombos das mulas e dos
cavalos lhe mantinham a liberdade de não trabalhar para os outros, o sentimento de quem manda
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no seu destino. Seu movimento era a geografia, o acampamento, a sabedoria da travessia de


tropas nos violentos rios planaltinos, do contrato para tirar boi bravio do mato com seus
cachorros chimarrões-brasinos. Quando o capitalismo iniciou nova fase através da
industrialização dos frigoríficos, Luigi Golin, assim como muitos outros tropeiros, tinha a
sabedoria para reunir e conduzir o gado para a matança. Sua vida de fronteiriço entre os mundos
da colonização e do caboclo, da propriedade e do comerciante, da família e do largar-se mundo
afora, da casa e da bodega, colocava-o em todos os lugares.
Assim que casou com a bela Regina, também italiana morena, talvez com origem no
Oriente Médio, estabeleceu-se em Linha Colombo (Guaporé) com bodega, salão de baile e
negócios de animais. Regina costurava para fora e para vestir os filhos. Em 1909 nasceu
Celestina, abrindo caminho para quatro filhas encordoadas – Maria, Elvira e Anita. A seguir, a
leva dos machos foi iniciada com Lourenço, homenagem ao Lorenzo pioneiro. Depois, Alberto
(lembrança do irmão italiano Carlos Alberto). E mais duas meninas, Anita e Oliva.
Quando as meninas chegaram na “idade de dançar”, vendeu a bodega e o salão e montou
colônia em Viadutos. Enquanto a nona Regina trabalhava a terra com os filhos que ia
produzindo, Luigi tropeava. Quando em casa, preferia à bodega a lavoura, da qual se livrou
montando uma ferraria, mas que era tocada mais pelos filhos. A mão de obra era farta, pois na
sequência nasceram Santo, Etelvino, Leonel (meu pai, em 1928), Antônio, Lídia e Lídio (que
tomara o lugar do Lídio que morreu criancinha em 1929). Sete mulheres e oito homens. A
família também abatia animais e produzia salames, copas, lingüiças, embutidos, etc. Tal
conhecimento colocou os Golin em pontos estratégicos da linha de produção dos frigoríficos.
Não se sabe por qual mistério, mesmo transitando entre lavouras, tropas e frigoríficos, os
homens inauguraram uma geração de jogadores de futebol. Quando fui concebido, meu pai
trabalhava no frigorífico Nacional e jogava no Glória de Carazinho. Décadas mais tarde, o tio
Antônio, ex-atleta e juiz de futebol, sugeriu o nome de Glória para um time que estava em
formação em Vacaria.
Carazinho foi a encruzilhada fronteiriça da minha existência. O acaso está na minha
gênese – e faria parte decisiva na minha vida -, pois o jovem, atlético e operário Leonel Golin
estava “recolhido” ali depois de engravidar uma colega em Capinzal, de cuja relação nasceu
Jair, irmão impressionantemente parecido com meu pai, que conheci somente quando adulto.
Certo dia, Leonel conheceu Zayra Torres dos Santos, da longínqua campanha de São Gabriel,
que estava morando em Carazinho com os padrinhos para ficar afastada de um namorado
indesejado. Casaram e quando eu estava para nascer, meu pai retornou para o frigorífico Ouro,
em Capinzal. Com outros irmãos passou a capataziar toda a linha de produção: abate, produção,
embalagem, serraria, águas e limpeza. Operários-atletas com destacadas atuações nos times do
Vasco e do Arabutã. O caçula Lídio, ao jogar no time da Marinha no Rio de Janeiro, chegou a
atuar pelo Fluminense.
Através da Zayra tive minha compleição pelo-duro. Minha vó Laura nascera da união de
Antônio Torres e Susana Mariana. No início do século XX, o castelhano Torres, vindo da região
de Taquarembó, enfurnou-se no interior de São Gabriel. Era um sujeito magro, ágil, que logo
fizera fama pelos cavalos e alambrados que empreitava para construir. Comprou fazendola em
Von Bock, localidade por onde cruzara a estrada de ferro. Com os trilhos viera minha bisavó, de
origem belga-francesa. A filha Laura veio a se casar com o ferroviário Ricardo Santos,
adicionando traços luso-brasileiros e seus cruzamentos em minha mãe.
Quando nasci, estava no entre-lugar desta mestiçagem, no espaço privilegiado do
múltiplo. Até os 12 anos vivi entre os pioneiros do vale do Rio do Peixe, no centro-oeste
catarinense, e a pampa fronteiriça sul-rio-grandense. Eram os elos e os conflitos entre todos os
mundos, aproximação e estranhamentos, inclusive na sonoridade estranha dos sotaques. Quando
meu pai morreu aos 38 anos, fui morar em São Gabriel com minha vó Laura Torres, que havia
viuvado com filhos pequenos e se fez matriarca, rodeada de netos, achegados e muitas crianças
adotivas. Seu pátio era frequentado pelos necessitados atrás de um prato de comida. Como
parteira, enfermeira e aborteira transitava entre as esferas das classes sociais. Com ela andei de
charrete ou fubica pelos rincões, pelas ruelas das vilas e pelos sobrados da oligarquia. Manteve-
se soberba, briguenta e altaneira até morrer, velha e inválida. No fim da vida dormia na “cama
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de consultas” que herdara de seu médico empregador e cúmplice, traída por uma aposentadoria
de salário mínimo como faxineira e a sonegação dos papéis de sua casa. Seu enterro encheu as
ruas. Uma multidão emergiu das vilas para chorar a sua morte.
Em São Gabriel descobriram a minha fraude educacional. Como que eu havia passado no
Exame de Admissão, que dava o direito de ingressar no ginásio, e sequer sabia “ler direito”?
Realmente, a pujança da natureza em que vivia bloqueava qualquer interesse pelos livros. Aos
sete anos tentaram me alfabetizar com uma cartilha, ilustrada com um piá sonso, cujo método
decorria da frase: “Ivo viu a uva”. Ora, eu via a uva nos pereirais, nas colheitas, no trabalho de
mutirão dos colonos, na confraternização da labuta e seus saraus fraternos, de música, dança e
descanso. Aqueles modelinhos de cartilha não geravam empatia em guri que ajudava a pegar
sucuri. Eu era o auxiliar do meu tio Alberto, fornecedor do Instituto Butantã, e que formou, sob
os cuidados da minha prima Bidi, pintora e escultora talentosíssima, mais tarde levada ao
suicídio por um marido estúpido e a orientação do vigário de plantão, a mais bela e temerosa
coleção de cobras expostas em vidros de conservação em seu galpão-atelier. Desde o primeiro
ano de colégio, gazeava, para ir nadar no rio do Peixe, há quinhentos metros da frente da minha
casa. Nadava pelado para não molhar os calções e me denunciar. Muitas vezes, minha mãe
descobria o esconderijo das roupas e, furtivamente, as levava para casa. O castigo era voltar
pelado, o que se fazia depois que escurecia para fugir das caçoadas.
Enquanto tentavam me alfabetizar no colégio religioso Mater Dolorum conheci a
segregação de classes e o racismo. A única aluna negra era filha de um operário do frigorífico,
que estava com uma das cotas das bolsas mantidas pela empresa. Era o tempo das mesas de dois
lugares. Salete, mesmo com nome de santa, sentava sozinha no fundo. Uma professora-freira
tirava proveito disso para disciplinar a turma de brancolas e sentar com ela passou a ser parte da
sua lista de temíveis castigos. Ela era linda, uma negrinha afro-indiática, com quem crescera
brincando e fazia o trajeto diário de um quilômetro até o colégio. Passei a esculhambar ainda
mais, de modo que aos castigos de ajoelhamento em grãos de milho, chapéu de cartolina de
burro e posição de crucificado com livros nas palmas das mãos, foi acrescido o de sentar com
ela. De certa maneira, atingia o objetivo de protegê-la. Passei a ser o alvo dos colegas como
“namorado de negra”, frase que gritavam em coro nos perseguindo pelas ruas adjacentes. E o
pau comia. A coisa tomava vultos de tragédia quando eu contava com o reforço dos amigos
Pipo, Mazzo e Mancha Negra, além do meu cachorro Tupi, um chimarrão-brasino cruzado com
pastor alemão. Acho que se formou ali a minha primeira “trinca”, termo denominativo de um
trio, mas que designava um bando com fins guerreiros.
Em algum lugar do meu subconsciente, religião ficou associada à dor e morte!
Livro didático não seduzia um piá que vivia no múltiplo espaço do frigorifico, dos
colonos da serra, do rio do Peixe, das matas, dos animais tenebrosos e do encantamento dos
índios kaingang, cuja música descia dos montes e era levada pelo vento a serpentear pelo vale.
Foi justamente nesta floresta inóspita e encantadora que eu penetrei sozinho até seu cume mais
alto, com um facãozinho e meu arco de flechas certeiras. Tinha dez anos quando descobri que
aquela conversa de “doença ruim”, pronunciada em dialeto vêneto nos serões da família,
significava que meu pai estava condenado por um câncer no pulmão. O chá da casca do ipê roxo
aparecera como remédio milagroso e era necessário buscá-lo com a ilusão de quem resgata a
vida desde o desconhecido. Por mais de um ano e meio meu pai tentou a cura em hospitais de
Curitiba, Florianópolis e Porto Alegre (Conceição e Cristo Redentor). Na fase derradeira, uma
cirurgia praticamente o partiu ao meio, com um talho desde o peito até a metade das costas,
contornando as costelas. Minha mãe, bela e jovem, trilhou essas via crucis para escudá-lo,
enquanto minha nona Regina tomava conta da casa e de quatro netos.
A doença de meu pai me fez “homem” repentinamente. Preparei-me para substituí-lo.
Um pragmatismo foi desfazendo o clone de Tarzan, de Zorro, de chefes guerreiros. Todo
ritual de passagem dos Golin não causava mais medo, parecia-me coisa para crianças, para meus
irmãos e primos. Meu arco-e-flecha perdeu sua ludicidade e se transformara em instrumento
para a caça e pesca. O desafio de montar um acampamento na beira do rio e deixar uma criança
o defendendo durante a noite inteira, enquanto os adultos sumiam propositadamente, era visto
como algo natural. Quando chegava tropa para abate, com touro de manada bravio, que vinha
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pela estrada quebrando cercas, invadindo pátios, eu me apresentava para o ritual do sangue
imposto pelo tio Etelvino, enquanto primos e outros piás eram pegos na marra. Ao sangrar o
bicho, uma canequinha ia sendo cheia para a gurizada beber, alguns a cabresto. Nesse ritual
anímico acreditava-se que todas as virtudes do touro seriam incorporadas pelos piás em
formação.
Continuava requisitado pelos times de futebol, tinha momentos de glória ou frustrações
aos domingos atuando pelo Botafogo. Minha trinca continuava desesperando as mães na descida
da enchente do rio do Peixe. Fui destituído de auxiliar do acrobata náutico que aparecera para o
show de saltos da ponte de concreto aos domingos, atividade interrompida por um tio e levado
para casa pela orelha e a promessa de uma tunda se continuasse treinando com aquele maluco e
saltando da copa dos sarandis da barranca. Mantinha a posição de líder dos “pé-de-porco” do
bairro operário do frigorífico nas peleias de bodoque, flecha, espada e corpo-a-corpo com os
“bundinhas” do centro e com os “abobreiros” do Ouro, do outro lado do rio. Nesses momentos
de alteridade, era “porongueiro” de Capinzal. Espaços de defesa da identidade, estimuladas por
diversas formas, que levaram muitos para o hospital.
Por sugestão de uma tia beata, guri ordinário tinha que prestar serviço na casa canônica.
E, assim, virei coroinha com a fina flor dos “desajustados” e alguns “abobados da reza”. O
armário de índex possivelmente não tinha nenhuma obra filosófica de questionamento do
criacionismo. Guardava variada coleção de sacanagens, com ilustrações que fazia a festa dos
punheteiros, cujos exemplares surrupiávamos enquanto o vigário sesteava com famosa devota
da paróquia. Na função de fabricante do corpo de Cristo em uma maquineta, eu enchia os bolsos
de hóstias para consagrar com as colegas debaixo das escadas durante profanações cheias de
medos e estímulos. Nesse ambiente, os sermões do padre contra algum filme transformaram-nos
em cinéfilos. No porão de casa, montávamos peças de teatro, com esquetes adaptados para
nossas vidas e inspirados nos filmes. A idéia de cobrar ingressos me levou às sessões extras na
minha criação de coelhos, recebendo em espécies ou moeda, para assistir as cópulas nas gaiolas.
Por questões morais, com sessões exclusivas para meninos e meninas.
Tal comportamento herético tornou brevíssima minha atividade intermediária entre os
homens e Deus.
Mas aos poucos, o senso de hombridade motivava o preenchimento das ausências
temporárias do pai para tratamento. Conhecia a regra da “mesada” somente nos meses do ano
que passava com minha vó em São Gabriel. Em Capinzal, para as tardes sem aulas e finais de
semana engraxava sapatos (para vergonha de alguns) nas bodegas do Seu Arlindo e do João
Vicente, e vendia picolé em uma carrocinha para a dona Amante. Para a semana, em um tempo
em que a madeira para os fogões era vendida em metro, organizei um grupo de lenhadores
mirins. De “instrumento de produção” carregávamos somente uma lima de afiar, pois toda casa
possuía cavalete, serrote e machado em seu pátio. Desdobrávamos a lenha: dois no serrote e um
no machado produzindo as achas. Na família, essas atividades pareciam desafios para ver se
agüentávamos o repuxo. O trabalho, o remo dos botes e as travessias a nado do rio, além do
futebol, nos davam compleição física.
Quando minha mãe ou nona não estavam, ao final da tarde, fazia um caipirinha, sentava
na varanda e assumia banca de homem.
Fui avisado da morte de meu pai dois dias depois de completar 12 anos. Era de tarde e eu
estava de molecagem em um circo onde fazia trabalhos gerais, atuava como boxeador
adolescente e gineteava terneiros, em troca de ingressos. Novamente a assimetria imperfeita do
mundo determinaria outro caminho para a minha vida. Os adiantamentos de salário para
tratamento de saúde e outras dívidas do meu pai não foram perdoadas pelo frigorífico Ouro, o
qual ajudara a organizar e transformar em uma potência. Minha mãe teve que assumir o serviço
de limpeza, destinando parte de seu salário para pagar as pendências.
O tio Dileto, gerente-proprietário, casado com a irmã de meu pai, certo dia me desafiou.
Disse-me que, com o passar do tempo, o barranco que contornava o frigorífico havia desabado e
estava soterrando a cerca. Era necessário desobstruir a vala. “Pois, empreito o serviço”. No final
da tarde, enquanto a piazada, ao relento, comia fatias de batata-doce grelhadas em uma chapa de
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fogão velho em torno do fogo de chão, contei-lhes sobre aquela oportunidade. “Preciso de dez
homens”. O empreiteiro recém tinha feito doze.
Era um trabalho de lascar. Toda a tarde juntava gente para assistir o esfalfamento da
gurizada. Uma vanguarda de três picaretas, uma segunda linha de pás e uma retaguarda de
carrinhos de mão para transportar a terra. Os operários do frigorífico, invariavelmente, tiravam
sarro daqueles que já estavam “se peidando”. As defecções eram preenchidas por outros
voluntários e a obra ia progredindo. À noite, depois de comer, jogava-me de bruços na cama de
colchão de crinas e metia as mãos em uma bacia de salmoura depositada no chão.
Neste ínterim, a vó Laura chegou a Capinzal demarcando o seu perfil na estação férrea.
Cheia de malas, o desavisado chefe de trem resolveu apressá-la, “ajudando” com um
lançamento de sua bagagem na plataforma da estação. Atrás dos volumes desceu ele com uma
bofetada e não se sabe com quantas bolsadas pela cabeça e lombo, além de incontáveis
impropérios gauchescos. Ele jamais poderia imaginar que naquela bolsa branca de parteira de
campanha tinha, além de outros instrumentos, uma faca prateada e um revólver 38 niquelado,
que já cometera alguns estragos pela fronteira e vilas gabrielenses.
Em casa viu o neto aos frangalhos para manter a “hombridade”. No outro dia, invadiu o
escritório do “poderoso” tio Dileto, meteu-lhe os cachorros – que não pensasse que seus netos
não tinham ninguém por eles! – e, semanas depois, me embarcou com ela para São Gabriel em
uma jornada de três dias de trem. Mais tarde resgatou minha irmã de 12 anos de serviçal na casa
de uma tia. E, a seguir, aliviou meus dois irmãos menores da minha mãe para que pudesse
trabalhar até pagar a dívida. Minha mãe viuvou com 31 anos e corroeu seu corpo nos produtos
de limpeza a base de soda do frigorífico. Pagou até o último centavo e, depois, retornou à
querência. Tentou a sorte alguns anos em Santa Maria, onde montou pensão de estudante,
trabalhou de cozinheira e costurou para fora. Mas, regressou definitivamente para São Gabriel.
Da convivência com meu pai aprendi noções axiomáticas que se converteram em
princípios formativos. “Nunca tenha vício que não possa sustentar”, era uma de suas sentenças.
E nunca fumei sequer um cigarro em súcia. Com ele conheci a gravidade das consequências dos
atos, o destino das pessoas dependente da sua (ir)responsabilidade em uma prova de fogo. Em
1964, no advento do golpe militar de 1º de abril, fiz nove anos no dia 25. Enquanto procuravam
membros do grupo dos 11 vinculados ao trabalhismo, um clima de medo e silêncio tomara as
casas operárias. Naquela conjuntura, pescamos uma tartaruga gigante. Ao anoitecer, a levamos
para casa em um saco de estopa. Pintamos seu casco com tinta alumínio fosforescente. Meu pai
escreveu uma frase em vermelho dando vivas ao regime deposto. E na próxima noite,
cúmplices, a largamos novamente no rio. Durante dias, foi a única manifestação subversiva
movimentando-se sobre as pedras e vista em perspectiva privilegiada da ponte pênsil que ligava
Capinzal e Ouro.
Talvez, mais que lições, Leonel Golin me deu um método: todo sacrifício do pai era para
que o filho não fosse como ele. Negar-se afirmativamente no filho, que deveria ser mais, ou
diferente! Todo esforço era para salvar os filhos da condenação da fábrica. Do pai se levaria
conceitos humanos, especialmente morais. Não existe nada mais revolucionário do que um pai
que se interdita através do filho, que não faz da sua condição de classe um projeto de
especulação ideológico-política e de eternização. Anos mais tarde, quando me enfurnei em um
galpão de estância para estudar Marx, entendi a amplitude da lição proletária de meu pai.
Em minha infância, os livros não tinham sentido. Por isso, fui aprender a ler mesmo lá
pelos 12 anos. O reino da necessidade se abateu sobre mim quando tive que ingressar no ginásio
dos Irmãos Maristas em São Gabriel. A deficiência seria recuperada nas férias. O Bráulio, meu
primo-irmão, diariamente me tomava a leitura. Quando em casa, a vó Laura circulava por perto
e, quando eu gaguejava, ela destrancava a lição com um laçaço de guardanapo de cozinha
molhado. De modo que leitura tinha algo de tortura.
Exceto às cartilhas escolares, não me lembro de qualquer lugar para livros nas casas de
minha mãe e vó, sequer da Bíblia.
Mas, no primeiro ginasial, misturei sentimentos e agrados à professora de religião, uma
mulata pequena, harmoniosamente delicada e gentil, e me esforcei para ser notado. Comecei a
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frequentar a biblioteca pública e, certo dia, correspondi a um trabalho com a resenha dos dois
volumes de José, de Thomás Mann.
A minha vida de contemplação e vivência na natureza se transformava em concentração
abstrata. Na vila Capiotti pulsava o campo e a cidade. A família Torres estava espalhada pela
campanha. Minha vó era o pólo urbano. Circulava entre esses mundos, enfurnava-me pelos
rincões entre campeiros e domadores, jogava futebol, nadava no Vacacaí (inclusive com saltos
acrobáticos de cima da ponte da vila Maria). Certo dia, ao natural, a crise montou-me seu
cenário. Juntamente com os primos e alertados pela vó, que tinha fonte segura desde o
consultório médico, monitorávamos defensivamente o comportamento de um padre pedófilo
que gostava de tomar a lição dos alunos, colocando-os confortavelmente, nas preliminares, no
seu colo. A orientação (inclusive do tio Zifa, que não gostava de padre) era tocar o braço se
fôssemos chamados.
Tínhamos um colega que durante a reza da manhã em sala de aula costumava bolinar
alguém enquanto o padre fingia estar em transe, de cabeça baixa. Não levou muito tempo,
chegou a minha vez. Mas, ao sentir a mão na bunda, não permaneci em posição devocional.
Botei-lhe um direto no meio da cara. Então, fomos os dois para o castigo. E a seguir,
encaminhados para a conversa pegajosa com o tal pedófilo. Ao chegar à ante-sala, pulei a janela
e fui contar para a vó Laura, cujo consultório fica há uma quadra. Como era de seu costume,
meteu os cachorros nos padres. E como o tal piá abusado era filho de família abastada, com
contribuições beneméritas para o educandário, fui expulso. Assim, antes do verão, estava de
“férias”. Possibilidade de matrícula ginasial somente no colégio estadual Quinze de Novembro
no próximo ano.
Não lembro se nesta época já tinha o apelido de Cigano. A casa da vó tinha conexão de
fundos com a tia Zayda. Entrava-se por um lado da quadra e saia no outro. Ao lado, um imenso
terreno baldio servia de espaço para o acampamento dos grupos de ciganos. O da cigana Maria
era o mais freqüente. Somente a minha vó atendia as mulheres. As duas matriarcas eram
íntimas, cúmplices, e costumávamos frequentar as festas mágicas e suntuosas do “bando”.
Tínhamos os da nossa geração como amigos e não era incomum andar com eles pelas ruas. Mas,
com um primo, também tenteávamos as ciganinhas. E a pendenga ganhou corpo. Não se
brincava com cigano. O Glênio, namorado de uma prima, era boxeador. Tinha disputado o título
gaúcho, e nos treinava no fundo da sua serralheria. Mas, com tais desafetos, os punhos não
bastavam. Começamos a fabricar pequenas adagas também em sua oficina. Não levou muito
tempo, em um anoitecer, fomos emboscados e nos atracamos no ferro. Por sorte, os apartadores
eram em número suficiente para não resultar em desgraça, além das escoriações e pontaços.
Ao cabo, minha fama estava feita.
Enquanto folgava, assistia os treinos de vôlei comandados pelo professor Ilo. Ao abrir o
novo ano letivo no Quinze ingressei na equipe e, aos poucos, fui sendo voluntariamente seu
“auxiliar”. Quando fui expulso novamente por uma brincadeira no recreio, quando, em um dia
de chuva, enfeitei a sala com as sombrinhas coloridas das meninas, ele ficou do meu lado. E
continuei acompanhando-o nos treinamentos no ginásio das freiras. Ao meio dia, com atletas
que viriam a jogar nos principais times do Brasil, competíamos em vôlei de dupla no Tênis
Clube. Por algum motivo, acredito que o sistema 5-1 surgiu em São Gabriel e fui um dos
primeiros levantadores. Equipes que nos enfrentavam ainda no 4-2 eram invariavelmente
batidas. Expulso dos únicos dois ginásios da cidade teria de aguardar a maioridade para fazer os
exames do Madureza/Supletivo. Completamente livre, tive tempo para vagar e ser autodidata.
A biblioteca pública foi me dando o acervo cultural para preencher os dias. História,
literatura, artes e filosofia estavam entre as áreas preferidas. Logo comecei a comprar livros,
abdicando de outros consumos. Em uma tábua nivelada com dois tijolos, minha biblioteca
iniciou a ser formada com duas obras: Incidentes em Antares, de Érico Veríssimo, e Vontade de
potência, de Nietzsche, adotado precocemente como espécie de livro de cabeceira, em uma
leitura muito particular, fundamentada na experiência. Dele tirava a lição de que a vontade se
constituía na potência para negar a minha condição social, e o que eu seria dependia
absolutamente das minhas atividades. Nietzsche condenou o que restava de expiação cristã, e
me responsabilizou pela minha vida. Talvez tenha sido o meu primeiro autor preferencial. Com
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ele cheguei ao deísmo e, logo, ao ateísmo. Nada que o tio Etelvino já não tenha feito a sua
maneira no enterro do meu pai, quando tomou umas pingas e saiu para o pátio desafiando Deus
para descer de sua magnificência e lhe explicasse como matava um homem daquele enquanto
tanto jaguara continuava vivo e fazendo danos, sem deixar de olhar para alguns presentes.
Os livros e as artes me levaram à boemia. E, obviamente, a contradição com o esporte
de alta performance, inclusive de promissor-consagrado talento para o futebol. E assim, a
melhor concentração era o ritual de comer um filé a cavalo, com sobremesa de gemada batida
com conhaque, antes de começar a fuzarca da madrugada.
Aos 17 anos, passando umas férias, assumi como treinador do combinado feminino da
seleção de vôlei das cidades de Capinzal e Ouro; concomitantemente, no cargo de diretor, abri o
primeiro jornal local de circulação periódica. Era o terrível ano de 1972, e não faltou alguém
para fazer uma suposta conexão entre a publicação e a guerrilha do Araguaia. E... mais uma vez,
o acaso mudou minha vida. Fazendo o meu primeiro trabalho free-lancer para o Correio do
Povo, com a cobertura do trem romeiro para Marcelino Ramos, fui sugado nos escombros de
um descarrilamento. Sobrevivi aos mortos pela condição de atleta. Transferido para tratamento
em uma clínica de Santa Maria, preenchi o ócio da convalescença com leituras para esquecer as
coceiras do corpo engessado e os ensaios do Teatro Universitário Independente, onde meu
primo-irmão Bráulio, cursando Medicina, atuava como ator e diretor.
Logo, estava atuando e escrevendo para teatro e fazendo crítica de cultura para os
jornais. Uma pesquisa para escrever um musical sobre Sepé Tiaraju, em que Os Tapes fariam a
trilha, mergulhou-me na história e nos seus debates. Desde então, delineou-se a tríade da minha
existência: esportes, artes e jornalismo/história.
Além da capacidade de abstrar, os elementos naturais constituíram uma espécie de forja
do adulto e sempre foram paradigmas constantes. Na circularidade do fogo aqueci as amizades
eternas. A terra sentida como espaço aberto; sua propriedade (ou qualquer outro imóvel), por
significar a redução da mobilidade, produz-me a sensação de morte. A antinomia do ar, a
claustrofobia, e o prefiro sempre na forma de vento. Em essência, a água é a minha matéria de
vida fluída, onde me sinto em movimento e liberdade. Foi a água que convidou o guri nadador e
remador a passar ao estágio de velejador. Meu destino associou-se a sua substância líquida, com
a vida valendo a pena radicalizada pela iminência da morte. Assim, a memória e seus tempos, os
espaços e seus elementos ligaram-se essencialmente a minha poética.

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