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Eis que Paulo Mendes Campos se torna centenário.

O cronista, tradutor e
poeta, sobretudo poeta, chegou ao mundo via Minas Gerais, em 28 de
fevereiro, numa terça-feira de Carnaval. Sua crônica, inconteste, é
merecedora de grandes celebrações. Mas, não sendo possível dedicar mais
do que alguns parágrafos ao aniversariante, fica acertado que esta
comemoração é apenas um breve sobrevoo em torno de sua prosa – ou
melhor, de seus poemas em prosa.

Afinal, Paulo Mendes Campos é o mais poeta dos cronistas. Às


vezes, chega até a subverter a pontuação para alcançar certas imagens
líricas, quase como se escrevesse em versos. É claro que, depois da sinfonia
barulhenta do modernismo, todo cronista pôde se valer dessa saborosa
dissolução entre prosa e poesia, o que possibilitou ao texto corrido aprender
com o verso algumas noções formais, como ritmo e musicalidade. Mas,
entre seus contemporâneos, foi PMC quem abraçou essa liberdade com
mais força.

É o caso, por exemplo, da historinha da pomba e do pombo, que


combinaram de se casar “às quatro azul em ponto”, no alto da Candelária.
Ela, no horário, esperou por quinze minutos e nada – até que “arrulhou de
repente a pomba, ao distinguir indignada o pombo que chegava
caminhando pelo beiral mais alto, do outro lado”. Indignada, a pomba
perguntou se ele se esquecera do compromisso. O pombo enigmático
respondeu rimando: “A tarde tão bonita, pombinha, que era um crime voar,
vir voando”/ “A tarde tão bonita, meu amor, que eu vim andando”.
Naturalmente, um poeta. Pombo, mas poeta.

Sem jamais perder o pé da realidade, muitas vezes a crônica de Paulo


Mendes Campos namora a metafísica, como na descrição que fez de Uma
aurora doida, “tão bonita vestida de rosa”, crônica belamente lida por Bia
Paes Leme para esta nossa comemoração. Passando pela vidraça do quarto
de hotel, a aurora acordou os olhos do cronista, mas não a sua alma, “que
ficou dorme-sim-dorme-não, muito boba e semi-iluminada”. De seu
“ventre róseo” nasceram os “primeiros passarinhos matutinos”. E, da
contemplação dos pássaros, um arrebatamento: “Como às vezes, tantas
vezes, ao surgir do dia, o homem se descobre miraculosamente perdoado de
todos os crimes, crimes não, das coisas feias que cometeu e das coisas belas
que deixou de cometer”. Quem nos perdoa, não se sabe, mas deve
funcionar assim: “o sofrimento se junta, vai juntando dentro da gente,
arranhando, lacerando, doendo, até que um dia a dor é tanta que nos pune.
Então ficamos perdoados e felizes”. E daí recomeçamos de alma nova,
“passada a limpo como um exercício de escola”.

Como se vê, os sentidos são profundos e com facilidade atravessam a


barreira do habitual. Desavisado, o leitor começa no corriqueiro e, quando
viu, já alçou voos distantes. As Palavras pessoais de um cego, que
confessou desejar viver em uma cidade “cujo céu todos os dias fosse azul”,
desataram em uma multiplicidade de imagens poéticas – de repente, o
cronista entendeu “um espaço emocional extraordinário”: “o azul do céu
não é uma cor, mas uma qualidade do mundo, uma luminosidade de todos
os sentidos, uma fragrância, um ar mais delicado, um concerto de sons,
uma transparência do universo”. A impressão é que, se deixar a torneira
aberta, as imagens vão pingando até atingirmos o nirvana.

Peço perdão aos leitores órfãos de mais um carnaval adiado, mas não
dá para deixar o assunto passar. Pelo menos, a folia em questão é bem
antiga: “Eu tinha três ou quatro anos, um bigode preto e Um saco de
confete na mão. A sala rodava cheia de gente que se duelava a confete”. De
repente, uma senhora se aproximou do menino e pediu-lhe o saquinho
emprestado, prometendo devolver em dobro. A criança não aceitou a
barganha, o que não teve nenhuma importância: “com a mão direita ela
arrebatou-me os confetes, enquanto a sua esquerda me acariciava na face.
Tive vontade de chorar, mas não chorei, fiquei zanzando pela sala, de mãos
vazias, miserável”. Desolado, pensou “humildemente em apanhar um saco
de papel vazio, enchê-lo com as rodelinhas de confete espalhadas pelo
assoalho”, mas teve medo. Chegou a fazer “algumas excursões ao bosque
de pernas que se movimentavam bruscamente”, mas era enxotado pelos
adultos: “Sai daí, meu bem, você acaba se machucando”.

Encostando-se na parede, olhou desconsolado “os adultos


subitamente selvagens na sua alegria”. Tomou coragem e, com uma
“esperança subnutrida” de que a senhora se lembrasse da promessa,
aproximou-se e fez com que se esbarrassem. “Sai daí, meu bem” foi tudo o
que ouviu. “Os olhos mendigos” do menino não surtiram efeito. Abrir a
boca e simplesmente explicar a situação seria inútil, porque ele tinha “a
alma sempre pegando fogo”. Tão jovenzinho, três ou quatro anos, e “já
preferia sofrer a explicar o que se passava”. Que não economizemos, agora,
nos confetes que o aniversariante merece.

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