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ÉTICA TEOLÓGICA

HISTÓRIA DA TEOLOGIA E DO CRISTIANISMO

LITURGIA E SACRAMENTOS

MÍSTICA E ESPIRITUALIDADE

TEOLOGIA BÍBLICA

TEOLOGIA FUNDAMENTAL

TEOLOGIA PRÁTICA E PASTORAL

TEOLOGIA SISTEMÁTICA

Recepção judaica e cristã da Bíblia


Sumário
1 O TaNaK desde o Exílio até nossos dias
2 Traduções
2.1 A Bíblia grega
2.2 Targum
3 O Talmud
4 A Bíblia cristã e sua leitura não judaica
4.1 Na Patrística
4.2 Na Idade Média
4.3 Na Modernidade
5 A reaproximação entre leitura judaica e leitura cristã
5.1 Vaticano II
5.2 O povo judeu e suas Sagradas Escrituras na Bíblia cristã
5.3 Verbum domini
6 Referências bibliográficas
O surgimento da Bíblia se deu ao longo de vários séculos, em lugares, tempos e
padrões literários diversificados (cf. Hb 1,1). Da mesma forma, também não foi acolhida
imediatamente, mas gradativamente. A composição dos textos bíblicos faz parte de um
processo que tem como principal marco histórico a dominação estrangeira sobre “o povo da
Aliança”. Foi para firmar a própria identidade e evitar a diluição cultural em meio às nações
estrangeiras que os descendentes dos hebreus empregaram o recurso de colocar por escrito
suas experiências com o Deus dos antepassados, como testemunho de fé para as gerações
posteriores.
1 O TaNaK desde o exílio até nossos dias
O estabelecimento da monarquia no antigo Israel (por volta de 1013 aC) suscitou a
presença de escribas (cf. 1Rs 4,3) na Corte real, como redatores de documentos e de crônicas
anuais sobre ações dos reis. Muitas informações, nesses anais, serviram de base para vários

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textos bíblicos posteriores (cf. 1Rs 14,19 et passim). Depois do cisma político (em torno de 931
aC), o Reino do Norte sofreu vários golpes de estado, até que, em 722 aC, os assírios tomaram
a capital Samaria e miscigenaram a população com as de outras regiões de seu império (cf.
2Rs 17). No Sul, porém, perpetuava-se no comando político a linhagem de Davi, até que a
capital Jerusalém caiu sob o poder dos babilônios. As elites políticas, religiosas e intelectuais
do Reino de Judá foram exiladas para a Babilônia a partir de 586 aC O exílio durou até 538 aC,
quando Ciro, rei da Pérsia, permitiu que os judeus voltassem para Jerusalém e restaurassem
a religião (DONNER, 1997, p.433-43)
Durante o exílio babilônico e depois dele, os judeus, tanto os exilados como os
remanescentes em Judá, consignaram em forma de livro sua experiência com Deus.
Apoio Tradições orais e litúrgicas tomaram corpo e sofreram diversas redações até culminarem em
um corpus escriturístico integrado. Esse corpus passou a ser conhecido como TaNaK, um
acróstico de suas três partes: Torá (Lei), Neviim (Profetas) e Ketuvim (Escritos). É comumente
aceito que Meliton (falecido em 180 dC), bispo de Sardes (na Ásia Menor), tenha cunhado a
Redes sociais
terminologia Antigo Testamento, para denominar os livros que o judaísmo chama de TaNaK
(SKARSAUNE, 1996, p.411-6).
A Torá também é chamada de Lei, Lei de Moisés e Pentateuco. Designa os cinco
primeiros livros da Bíblia e é considerada como os escritos fundamentais da fé judaica,
Navegação rápida porque trata da eleição, da promessa e da aliança de Deus para com os patriarcas. Os Neviim
Institucional ou Profetas narram os fatos que vão desde a morte de Moisés até a destruição do Primeiro
História da enciclopédia Templo pelo império babilônico e incluem relatos de acontecimentos, profecias, exortações,
Instituições Parceiras consolações e esperanças de um futuro promissor para o povo da Aliança. Os Ketuvim,
Índice analítico também chamados de Escritos, tem conteúdo educacional, orações, filosofias, contos
Índice alfabético edificantes, textos apocalípticos, canções e lamentos de vários tipos etc.
Contato Ao ser lida e estudada nas sinagogas judaicas, logo depois do exílio babilônico, a Bíblia
ainda não era o que é atualmente. De acordo com a maioria dos pesquisadores, a atual
ÉTICA TEOLÓGICA configuração do Antigo Testamento data de depois do ano 70 de nossa era, final do processo
HISTÓRIA DA TEOLOGIA E DO CRISTIANISMO de recepção desses escritos e a consequente fixação do conjunto dessas obras que
LITURGIA E SACRAMENTOS constituem o TaNaK. A destruição do Segundo Templo, em 70 dC, foi um dos principais
MÍSTICA E ESPIRITUALIDADE catalisadores para a definição dos livros aceitos como sagrados (lidos na liturgia da sinagoga)
TEOLOGIA BÍBLICA e dos livros reservados à leitura pessoal e não pública. A sacralidade de alguns deles foi
TEOLOGIA FUNDAMENTAL discutida, como o Eclesiastes, o Cântico dos Cânticos e Ester, e esses, após longa discussão,
TEOLOGIA PRÁTICA E PASTORAL foram finalmente aceitos como sagrados. Além desses, alguns escritos foram proibidos de ser
TEOLOGIA SISTEMÁTICA lidos por terem sido considerados como obras de grupos sectários de judeus helenistas e
Theologica Latinoamericana. seguidores de Jesus de Nazaré (BARTON, 1996, p.67-83).
Enciclopedia Digital ® é O final do processo de aceitação do TaNaK visava firmar a identidade do judaísmo e
Copyright © by Ministério da servir como medida preventiva contra desvios na interpretação da Torá. A aceitação final dos
Cultura. Fundação
livros tornou o judaísmo definitivamente uma “religião do livro”, porque é nesse conjunto de
Biblioteca
obras reconhecidamente inspiradas que o judeu de cada época interpreta sua experiência de
Nacional: ISBN 978
fé e sua identidade como povo. A aceitação do TaNaK se configura como fator de unidade
-85-61227-04-3
Av. Dr. Cristiano Guimarães, 2127 - Planalto - Belo entre os judeus espalhados entre as nações em todas as épocas.
Horizonte - MG - CEP31720 300 - Tel (31) 3115 7000 2 Traduções
2.1 A Bíblia grega
Quando os judeus estavam sob o domínio helenístico dos ptolemeus, cuja sede política
era Alexandria, no Egito, o TaNaK, escrito originalmente em hebraico, foi traduzido pelos
judeus da diáspora helenista para o grego koiné (entre o III e o I século aC). Essa versão grega,
chamada Septuaginta (LXX), fez várias mudanças nos títulos originais dos livros hebraicos e
na forma de agrupá-los, os quais foram organizados em novas seções assim distribuídas:
Pentateuco, Históricos, Hagiógrafa (do grego: escritos sagrados) e Profetas. Por causa da
mudança de uma língua semita para um idioma indo-europeu, os tradutores tiveram que
lidar com dificuldades em verter os conceitos de uma cultura para outra, portanto muitas
modificações foram inseridas também nos textos.
Como a LXX levou muitos séculos para ser terminada, enquanto o trabalho de tradução
avançava, a lista de livros se expandia. Por isso, além da tradução daqueles livros que
pertenciam ao domínio judaico do TaNaK, a versão grega também adicionou outras obras
originalmente escritas em grego.
O judaísmo rabínico (posterior ao ano 70 dC, cujo marco é a destruição do Segundo
Templo), não recebeu a Septuaginta como texto adequado para a leitura pública na liturgia
da sinagoga. Várias razões foram dadas para isso. Primeiramente, alguns erros de tradução
foram denunciados. Em segundo lugar, os textos hebraicos, em alguns casos (especialmente
o livro de Daniel), utilizados pela Septuaginta diferiam do texto hebraico declarado sagrado e
fixado. Em terceiro lugar, os rabinos queriam distinguir a tradição genuinamente judaica
daquela emergente confessada pelos seguidores de Jesus. De fato, as comunidades cristãs
dos primórdios aceitaram amplamente a LXX e fizeram dela a Escritura Sagrada para
fundamentar sua fé. Finalmente, os rabinos alegaram autoridade divina para a língua
hebraica, em contraste com o aramaico ou o grego, mesmo quando essas línguas se
tornaram idioma franco dos judeus naquela época. Entretanto, nas obras de judeus
helenistas como Fílon de Alexandria e Flávio Josefo, a LXX é considerada com igual valor que

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o texto hebraico. Também foram encontradas cópias da Septuaginta entre os manuscritos de


Qumran no Mar Morto; isso testemunha seu valor para os judeus daquele tempo (WEVERS,
1996, p.87-90).
Por volta do século II dC, vários fatores levaram a maioria dos judeus a abandonar o
uso da LXX. O principal deles foi a associação da LXX com o cristianismo, tornando-a suspeita
aos olhos das novas gerações de judeus. De fato, a maior parte dos cristãos desconhecia o
hebraico, seja porque tinham vindo do judaísmo helenista ou porque fossem gentios. Como a
LXX era a única versão grega da Bíblia até então, ela se tornou extremamente necessária para
essas pessoas e passou a ser a Bíblia do cristianismo nascente. Os escritores do Novo
Testamento, ao citarem as escrituras judaicas, utilizam-se livremente da LXX, dando a
entender que Jesus e os apóstolos a consideravam confiável. Durante as polêmicas judaico-
cristãs dos primeiros séculos de nossa era, pensou-se inclusive que os judeus tinham alterado
o texto hebraico para torná-lo diferente da tradução grega em várias passagens que eram
fundamentais para os cristãos (WEVERS, 1996, p.91).
2.2 Targum
As suspeitas levantadas contra a LXX, por causa de sua vinculação a uma religião em
conflito com o judaísmo da época, podem ter contribuído para mais ampla utilização da
tradução aramaica autorizada do TaNaK, denominada de Targum.
O Targum não era de fato uma tradução, mas se constituía como paráfrases com
explicações e ampliações dos textos do TaNaK, feitas por um intérprete autorizado, na
linguagem comum dos ouvintes, com o objetivo de atualizar o texto antigo para novas
gerações e novos contextos históricos. As principais modificações feitas pelo Targum tinham
por objetivo evitar os antropomorfismos e dar preferência à alegoria, para salvaguardar a
transcendência de Deus (RIBERA, 1994, p.218-25).
O TaNaK foi recebido pelo Targum com muita liberdade. Várias modificações foram
acrescentadas no texto, mesmo porque não houve a pretensão de substituir o texto hebraico
pelo aramaico. O texto hebraico continuou sendo lido publicamente na sinagoga e logo
depois o Targum auxiliava a compreensão dos ouvintes, visto que poucos sabiam hebraico.
Algumas tradições judaicas a partir da Babilônia aceitaram o Targum como escrito de
autoridade, ou seja, como texto sagrado ao lado do TaNaK. Isso, posteriormente, tornou-se
uma questão de debate. Somente no Iêmen ainda se usa o Targum na liturgia da sinagoga.
Apesar de todas as controvérsias na recepção do Targum para definir sua importância
e seu uso, hoje é amplamente admitido que a paráfrase aramaica é essencial para o estudo
do TaNaK, mesmo quando as comunidades judaicas não eram mais falantes do aramaico. O
fato de o Targum nunca ter deixado de ser uma fonte importante para a exegese judaica
mostra sua ampla aceitação como fonte fundamental de comentário do TaNaK. Vários
manuscritos bíblicos medievais contêm o texto hebraico e o aramaico interpolados versículo
por versículo. Esse fato tem suas raízes na exigência de utilização do Targum para estudo
privado do TaNaK lido publicamente no sábado (RIBERA, 1994, p.218-25).
3 O Talmud
O Talmud, compilação das discussões rabínicas sobre os diversos aspectos da práxis
judaica, também se posiciona sobre a recepção das Escrituras. Os comentários rabínicos do
TaNaK que compõem o Talmud são apresentados como a Torá oral dada a Moisés e
transmitida às gerações seguintes (Avot 1,1). Por isso, o Talmud, como resultado das
tradições orais de várias gerações de rabinos, é tido com igual autoridade do texto bíblico da
Torá.
No Talmud da Babilônia, no tratado sobre o Sinédrio, Sanhedrin 90a, os rabinos
discutem sobre quem participará ou não do mundo vindouro, do mundo regenerado. Nessas
discussões afirmam, entre outras coisas, que estará excluído do mundo futuro todo aquele
que não tiver a Torá como divinamente inspirada. E Rabi Akiva acrescentou que tal
aconteceria, também, a quem lesse um livro não canônico, ou seja, um dos livros entre os que
não “mancham as mãos”, i.e., que não deixam as mãos marcadas pela sacralidade. Dada a
importância de Akiva e a polêmica entre judeus e cristãos nos primeiros séculos da era
comum, esta postura mais severa também foi incluída no Talmud de Jerusalém, tratado
Sanhedrin 10a e 28a.
Entre os livros que “não mancham as mãos”, o Eclesiástico, ou Sirácida, recebeu o
tratamento mais excludente no Talmud, pois foi colocado entre as obras pertencentes aos
minim ou hereges (Tosefta Yadaim II, 13). Apesar de ter sido excluído do cânon e das
proibições com que foi cercado, o Sirácida permaneceu popular entre os judeus e é citado
frequentemente no Talmud (TREBOLLE BARRERA, 1993, p.48-9; 141-50; 159-213).
Tudo isso mostra uma atitude paradoxal, presente na compilação do Talmud, em
relação à recepção das Escrituras. Por um lado, certas obras são muito úteis para
fundamentar a práxis do judaísmo dos primeiros séculos da era comum. Por outro lado, essas
mesmas obras, como o Sírácida, são igualmente fundamentais para justificar o cristianismo.
Portanto, elas são usadas com frequência como dicta probantia pelos rabinos e são,
igualmente, declaradas proibidas como livros dos hereges.

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A posição dos compiladores do Talmud também não difere muito a respeito da LXX.
Eles têm que enfrentar o fato de que a versão grega existe e é amplamente usada pelos
judeus, visto que poucos ainda dominam a língua mater dos ancestrais. No entanto, o
Talmud não pode oficializar uma aprovação à versão grega do TaNaK por motivos
ideológicos e históricos, compreensíveis dentro do contexto no qual as tradições rabínicas
foram compiladas.
Para resolver esse impasse, os rabinos acolhem uma lenda, bastante divulgada, sobre
o surgimento da LXX. A menção a essa lenda reflete as preocupações e ansiedade dos rabinos
não só sobre a Septuaginta, mas também sobre sua própria posição, autodefinida como
transmissores da tradição mosaica, em um contexto no qual são desafiados tanto por uma
hegemonia cultural greco-romana, quanto pela existência dos judeus cristãos e judeus
helenistas, que pretendem ser os verdadeiros herdeiros dos patriarcas e profetas.
A lenda sobre o surgimento da LXX relata que o rei Ptolomeu reuniu setenta e dois
anciãos e os colocou em setenta e duas salas separadas, sem dizer-lhes por que os tinha
reunido. Depois o rei teria dito, a cada um deles em particular, que traduzissem a Torá de
Moisés. Deus, então, os inspirou de forma que todos concebessem a mesma ideia (Talmud da
Babilônia, tratado Megilla 9a).
A LXX é um fato. A lenda tal como está no Talmud traz uma ambiguidade, afirma que
“eles conceberam a mesma ideia”, mas não diz que a tradução é boa. Para os rabinos
compiladores do Talmud, a Torá jamais será traduzida de forma adequada.
Alguns textos rabínicos veem a tradução como um processo essencialmente
problemático e consideram as tentativas de realizá-lo como algo escandaloso. Intimamente
ligado a isto está a questão da precisão do texto bíblico recebido e transmitido pelos rabinos,
em relação às traduções das Escrituras, que podem, por vezes, refletir diferentes versões dos
textos no idioma original hebraico. Isso levanta questões urgentes para a teologia rabínica,
visto que, após a destruição do Templo, os rabinos não apenas escolheram os livros
sagrados, mas também o texto hebraico que melhor servia para conferir a autenticidade de
suas tradições no momento de polêmicas em que estavam vivendo (TOV, 1999, p.1-20).
Quanto ao Targum, o Talmud preocupou-se, antes de tudo, em deixar bem claro que o
texto bíblico e sua tradução eram coisas bem diferentes, sendo distinto o valor de cada um. A
legislação do Talmud a respeito do Targum vai, principalmente, manter essa distinção: o
leitor e o tradutor (metargumen, intérprete) não podem ser o mesmo (Talmud da Babilônia,
tratado Sotah 39b) e o texto bíblico tem que ser lido, enquanto a tradução deve ser feita de
memória (Talmud de Jerusalém, tratado Megilla 74d).
Contudo, ainda que a tradução (o targum) esteja claramente subordinada ao texto
bíblico, ela permitia, ao mesmo tempo, dar a conhecer a correta interpretação desse,
atualizando-o e até mesmo mudando-lhe o significado. Dessa forma, a versão aramaica
mantinha intocável o texto hebraico, considerado sagrado e, ao mesmo tempo, atualizava-o
para que respondesse aos novos desafios, sem a necessidade de modificar o texto.
Quando o Targum foi escrito, junto às funções de tradução e de atualização
desempenhou também o papel de instrumento de estudo do texto bíblico dentro do sistema
educativo rabínico, e isso então se tornou sua função primária até agora (PÉREZ, 1996, p.533-
62).
4 A Bíblia cristã e sua leitura não judaica
Durante os séculos I-VI, os judeus cristãos tiveram muitos problemas com a sinagoga e
precisaram justificar a sua fé procurando na Escritura passagens que os ajudassem a reler a
vida de Jesus. Esse tipo de leitura bíblica configurou-se como:
- tipológico: as passagens do Antigo Testamento seriam figuras e tipos das ações
messiânicas de Cristo. Ex: Mt 16,4; Lc 11,29.
- alegórico: prevaleceu o símbolo, mais que a interpretação literal ou histórica. Ex: Gl
4,22-28.
- cristológico: o mistério da salvação tem o seu único eixo em Cristo. Ex: Lc 24,25-27
(GILBERT, 1995, p.65-126).
4.1 Na Patrística
Os Padres Apostólicos procuram fundamentar na Bíblia suas doutrinas que tinham um
cunho pastoral. Os apologetas estavam às voltas com polêmicas provocadas pelos pagãos e
pelos judeus. Seu acesso à Bíblia tinha por objetivo: refutar calúnias conta os cristãos; lutar
contra costumes, mitos e ritos judaicos e pagãos; defender como verdadeiras as doutrinas
dos cristãos e rejeitar literaturas judaicas e pagãs que poderiam se contrapor ao cristianismo
(SÁNCHEZ, 1996, p.58-62).
Durante o período da patrística, a recepção da Bíblia se efetivou a partir do sentido
histórico, moral e alegórico. Histórico significa, nessa perspectiva, que cada acontecimento
fala sobre Jesus, portanto as Escrituras Hebraicas nada mais fazem que falar sobre Cristo e
sua igreja.
4.2 Na Idade Média

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Além dos sentidos conhecidos até então (literal, histórico, alegórico, moral), na Idade
Média foi utilizado também o anagógico, sentido místico que elevava o cristão até as
realidades celestiais. Como muitos eram iletrados e não podiam ter acesso à Bíblia, foi
incentivada a representação de cenas bíblicas através da pintura. À pregação caberia, então,
a missão de dar a explicação dessas representações. Fundou-se uma catequese pela imagem,
fornecendo uma consciência limitada da Bíblia, representada sem as dificuldades,
contradições, diferenças e incoerências do texto bíblico. Apesar disso, a Bíblia foi a fonte de
todo conhecimento na Idade Média, mesmo seu acesso sendo restrito a poucos (SÁNCHEZ,
1996, p.62-3; GILBERT, 1995, p.127-34).
4.3 Na Modernidade
Com a invenção da imprensa, a Bíblia tornou-se um livro acessível a quem desejasse e
pudesse possuí-lo. O texto que antes estava oculto aos olhos da maioria, logo começou a
revelar sua dificuldade, provocando dúvidas, críticas e as mais diversas interpretações.
Assim, o sentido literal, antes não muito importante, passou a ocupar a primazia. Lutero
proclama “só a Escritura”, relativizando toda a interpretação realizada até ali. E, para
completar, os Reformadores conclamaram uma volta à verdade hebraica. A partir de então,
começou um estudo crítico das Escrituras, mas a verdade hebraica tão conclamada ainda
não era uma reaproximação com a leitura judaica das Escrituras. A Bíblia ainda era recebida
sem se levar em conta suas raízes mais profundas.
5 A reaproximação entre leitura judaica e leitura cristã
A consideração das raízes hebraicas das Escrituras e a reaproximação entre a leitura
judaica e a leitura cristã teve seu início entre os católicos quando, em 1943, o Papa Pio XII
escreveu a encíclica Divino Afflante Spiritu, sobre o modo mais oportuno de promover os
estudos da Sagrada Escritura. Nesse documento, Pio XII pede que a Bíblia ocupe um lugar
central na teologia e na vida dos fiéis. Afirma a importância do conhecimento sobre o
hagiógrafo, o gênero literário, a história, as antiguidades etc.
Um acontecimento muito significativo para esta reaproximação entre judeus e
católicos na recepção das Escrituras foi a descoberta dos manuscritos de Qumran, em 1947,
que provocou certo frisson entre pesquisadores. Consequência disso foi um despertar para
pesquisas referentes aos diversos aspectos da vida judaica em torno do primeiro século da
era comum, fato que fez surgir um movimento de retorno às raízes judaicas da fé cristã.
5.1 Vaticano II
Em 1962 começou o Concílio Vaticano II, fruto de vários movimentos de renovação,
modernização e reaproximação, que vinham se desenvolvendo já há muitos anos.
Na Declaração Nostra Aetate, sobre as relações da Igreja com as religiões não cristãs,
os padres conciliares afirmam que a Igreja não deve esquecer que, por meio do povo de
Israel, “ela recebeu a Revelação do Antigo Testamento e se alimenta pela raiz de boa oliveira,
na qual como ramos de zambujeiro foram enxertados os Povos” (Nostra Aetate n.4).
O coroamento desse movimento de reaproximação no Vaticano II foi a promulgação,
no dia 18 de novembro de 1965, pelo Papa Paulo VI, da Dei Verbum, Constituição Dogmática
sobre a Revelação Divina. Nessa Constituição se reafirma a mesma postura de abertura
também presente na Nostra Aetate, quando escreveram os padres conciliares que “Deus,
desejando a salvação do gênero humano, escolheu ‘por especial providência’ o povo de Israel
e com ele estabeleceu aliança e a ele confiou suas promessas, para preparar a salvação do
gênero humano” (Dei Verbum n.14). Portanto, a revelação narrada e explicada no Antigo
Testamento é verdadeira palavra de Deus (Dei Verbum n.14), pois manifesta conhecimento a
respeito de Deus e do ser humano e o modo como todos os seres humanos são tratados pelo
Deus justo e misericordioso. “Tais livros, apesar de conterem também coisas imperfeitas e
transitórias, revelam, contudo, a verdadeira pedagogia divina” (Dei Verbum n.15).
5.2 O povo judeu e suas Sagradas Escrituras na Bíblia cristã
Em preparação para a celebração dos 50 anos da Dei Verbum, a Pontifícia Comissão
Bíblica, em 24 de maio de 2001, lançou o documento O povo judeu e suas Sagradas Escrituras
na Bíblia cristã. A questão ali levantada é sobre as relações que a Bíblia estabelece entre
judeus e cristãos, já que a Bíblia cristã é composta em sua maior parte pelas Sagradas
Escrituras do povo judeu e o Novo Testamento, no qual se expressa a fé em Jesus Cristo, está
em estreita relação com o Antigo Testamento (n.1).
O Novo Testamento não é uma novidade absoluta: está enraizado nas Escrituras do
povo judeu e lhes reconhece a autoridade divina. Esse reconhecimento é expresso de modo
implícito usando terminologias, reminiscências e citações implícitas e explícitas (n.2-4).
Proclama-se que o Novo Testamento está de acordo com as Sagradas Escrituras do povo
judeu na dupla convicção: da necessidade de que se cumpram as Escrituras e na
conformidade dos eventos do Novo Testamento com as Escrituras do povo judeu (n.6-8).
O tema da recepção das Escrituras judaicas na fé de Cristo considera, principalmente, a
unidade do plano de Deus e a noção de cumprimento, pois o Antigo Testamento se abre
progressivamente a uma perspectiva de cumprimento último e definitivo, que o cristianismo
vê como já realizado substancialmente no mistério de Cristo. Sendo assim, a contribuição da

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leitura judaica da Bíblia é muito útil, análoga à leitura cristã que se desenvolveu em paralelo
durante alguns séculos. Mas, por razões hermenêuticas, os cristãos não devem fazer a leitura
judaica da Bíblia da mesma maneira que os judeus, pois isso significaria aceitar todos os seus
pressupostos, como a autoridade do Talmud, a primazia da Torá sobre os demais livros, a
crença que o messias ainda não veio etc. Cada uma das leituras, a judaica e a cristã, é
coerente com sua visão de fé respectiva, da qual é resultado e expressão, e são mutuamente
irredutíveis. Os cristãos podem aprender com a exegese judaica, e vice-versa.
5.3 Verbum Domini
Em 11 de novembro de 2010, o Papa Bento XVI publicava a exortação apostólica pós-
sinodal Verbum Domini, que recolheu as conclusões da assembleia do Sínodo dos Bispos
celebrada no Vaticano em outubro de 2008, com o objetivo de “revalorizar a Palavra divina na
vida da Igreja”.
O objetivo do documento, esclarecia o Papa na introdução, era “indicar algumas linhas
fundamentais para uma redescoberta, na vida da Igreja, da Palavra divina, fonte de constante
renovação”. Além disso, o Papa expressou o desejo e a esperança de que a Palavra de Deus se
tornasse cada vez mais o “coração de toda a atividade eclesial”.
É precisamente dentro desse objetivo e esperança que a Verbum Domini considera a
relação entre Antigo e Novo Testamento, admitindo que essa relação é íntima e que é
necessário “fixar a atenção no vínculo peculiar que isso cria entre cristãos e judeus, um
vínculo que não deveria jamais ser esquecido” (n.43). Admitir que existe esse vínculo peculiar
“não significa ignorar as rupturas atestadas no Novo Testamento relativamente às
instituições do Antigo Testamento”. Essas rupturas existem, estão na ordem do processo
histórico e da hermenêutica constitutivos da identidade de judeus e cristãos, embora
também seja fundamental considerar “o cumprimento das Escrituras no mistério de Jesus
Cristo, reconhecido Messias” pelos cristãos (n.43).
Essa posição dos padres sinodais em relação às Escrituras hebraicas torna-se, na
Verbum Domini, o coroamento da posição oficial dos católicos de reaproximação entre
leitura judaica e leitura cristã da bíblia, quase cinquenta anos depois do Concílio Vaticano II.
Aíla Pinheiro, FCF, Brasil.

6 Referências bibliográficas
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WEVERS, John William. The Interpretative Character and Significance of the Septuagint
Version. In: SAEBO, Magne. Hebrew Bible, Old Testament: the History of Its Interpretation.
Göttingen: Vandenhoeck & Ruprecht, 1996. v.1. p.84-107.

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