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HISTÓRIA DA

TEOLOGIA DA
REFORMA

Professor PhD. Silas Barbosa Dias

GRADUAÇÃO

Unicesumar
Reitor
Wilson de Matos Silva
Vice-Reitor
Wilson de Matos Silva Filho
Pró-Reitor Executivo de EAD
William Victor Kendrick de Matos Silva
Pró-Reitor de Ensino de EAD
Janes Fidélis Tomelin
Presidente da Mantenedora
Cláudio Ferdinandi

NEAD - Núcleo de Educação a Distância


Diretoria Executiva
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James Prestes
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Diretoria de Graduação e Pós-graduação
Kátia Coelho
Diretoria de Permanência
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Gerência de Produção de Conteúdo
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Gerência de Processos Acadêmicos
Taessa Penha Shiraishi Vieira
Gerência de Curadoria
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Supervisão de Produção de Conteúdo
Coordenador
Nádila Toledo de Conteúdo
Roney de Carvalho
Designer Educacional
Agnaldo Ventura
Projeto Gráfico
Jaime de Marchi Junior
José Jhonny Coelho
C397 CENTRO UNIVERSITÁRIO DE MARINGÁ. Núcleo de Educação a
Arte Capa
Arthur Cantareli Silva
Ilustração Capa
Bruno Pardinho
232 p.
Editoração
“Graduação - EaD”.
Ana Eliza Martins
1. História. 2. Teologia . 3. Reforma 4. EaD. I. Título. Qualidade Textual
Ludiane Aparecida de Souza
ISBN 978-85-459-1226-2
CDD - 22 ed. 270
CIP - NBR 12899 - AACR/2

Ficha catalográfica elaborada pelo bibliotecário


João Vivaldo de Souza - CRB-8 - 6828
Impresso por:
Em um mundo global e dinâmico, nós trabalhamos
com princípios éticos e profissionalismo, não so-
mente para oferecer uma educação de qualidade,
mas, acima de tudo, para gerar uma conversão in-
tegral das pessoas ao conhecimento. Baseamo-nos
em 4 pilares: intelectual, profissional, emocional e
espiritual.
Iniciamos a Unicesumar em 1990, com dois cursos
de graduação e 180 alunos. Hoje, temos mais de
100 mil estudantes espalhados em todo o Brasil:
nos quatro campi presenciais (Maringá, Curitiba,
Ponta Grossa e Londrina) e em mais de 300 polos
EAD no país, com dezenas de cursos de graduação e
pós-graduação. Produzimos e revisamos 500 livros
e distribuímos mais de 500 mil exemplares por
ano. Somos reconhecidos pelo MEC como uma
instituição de excelência, com IGC 4 em 7 anos
consecutivos. Estamos entre os 10 maiores grupos
educacionais do Brasil.
A rapidez do mundo moderno exige dos educa-
dores soluções inteligentes para as necessidades
de todos. Para continuar relevante, a instituição
de educação precisa ter pelo menos três virtudes:
inovação, coragem e compromisso com a quali-
dade. Por isso, desenvolvemos, para os cursos de
Engenharia, metodologias ativas, as quais visam
reunir o melhor do ensino presencial e a distância.
Tudo isso para honrarmos a nossa missão que é
promover a educação de qualidade nas diferentes
áreas do conhecimento, formando profissionais
cidadãos que contribuam para o desenvolvimento
de uma sociedade justa e solidária.
Vamos juntos!
Seja bem-vindo(a), caro(a) acadêmico(a)! Você está
iniciando um processo de transformação, pois quando
investimos em nossa formação, seja ela pessoal ou
profissional, nos transformamos e, consequentemente,
transformamos também a sociedade na qual estamos
inseridos. De que forma o fazemos? Criando oportu-
nidades e/ou estabelecendo mudanças capazes de
alcançar um nível de desenvolvimento compatível com
os desafios que surgem no mundo contemporâneo.
O Centro Universitário Cesumar mediante o Núcleo de
Educação a Distância, o(a) acompanhará durante todo
este processo, pois conforme Freire (1996): “Os homens
se educam juntos, na transformação do mundo”.
Os materiais produzidos oferecem linguagem dialógica
e encontram-se integrados à proposta pedagógica, con-
tribuindo no processo educacional, complementando
sua formação profissional, desenvolvendo competên-
cias e habilidades, e aplicando conceitos teóricos em
situação de realidade, de maneira a inseri-lo no mercado
de trabalho. Ou seja, estes materiais têm como principal
objetivo “provocar uma aproximação entre você e o
conteúdo”, desta forma possibilita o desenvolvimento
da autonomia em busca dos conhecimentos necessá-
rios para a sua formação pessoal e profissional.
Portanto, nossa distância nesse processo de cresci-
mento e construção do conhecimento deve ser apenas
geográfica. Utilize os diversos recursos pedagógicos
que o Centro Universitário Cesumar lhe possibilita.
Ou seja, acesse regularmente o Studeo, que é o seu
Ambiente Virtual de Aprendizagem, interaja nos fóruns
e enquetes, assista às aulas ao vivo e participe das dis-
cussões. Além disso, lembre-se que existe uma equipe
de professores e tutores que se encontra disponível para
sanar suas dúvidas e auxiliá-lo(a) em seu processo de
aprendizagem, possibilitando-lhe trilhar com tranqui-
lidade e segurança sua trajetória acadêmica.
CURRÍCULO

Professor PhD. Silas Barbosa Dias


Silas Barbosa Dias,

Ph.D, é doutor em teologia sistemática pela Free University Amsterdam.


Mestre em teologia Reformada pela Free University Amsterdam. Mestre
em Estudos Ecumênicos pela Université de Geneve (Suiça). Licenciado em
Filosofia, Bacharel em Teologia.

Para informações mais detalhadas sobre sua atuação profissional, pesquisas


e publicações, acesse seu currículo disponível no seguinte endereço:
<lattes:http://lattes.cnpq.br/1806309179088653>.
APRESENTAÇÃO

HISTÓRIA DA TEOLOGIA DA REFORMA

SEJA BEM-VINDO(A)!
Olá, amigo(a)! Bem-vindo(a) a nossa disciplina de História da Teologia da Reforma, no
Bacharelado em Teologia da Unicesumar. É um grato privilégio compartilhar com você,
neste fascinante caminho da teologia, conceitos teóricos e motivadores como resultado
de uma pesquisa em minha carreira acadêmica.
Meu desejo é que este estudo possa estimulá-lo(a) a compreender melhor um dos mo-
mentos mais sublimes da história da Igreja e a formação de seu pensamento constituti-
vo, com a finalidade de você criar sua própria apreciação da tradição Reformada.
Infelizmente, o espaço e o tempo de que dispomos para o estudo do conteúdo e as
vertentes do assunto não permitem que todos temas sejam incluídos. O interesse e a
tarefa de um docente é buscar temas que possam inspirar e levar a um aprendizado
mais eficaz, dentro do tempo que este curso dispõe. Espero, assim, motivá-lo(a) para um
progredir constante, com leituras e pesquisas que encorajo que as façam.
Nesta disciplina, selecionei para nosso trabalho um conjunto de cinco temas, que cons-
tituem cinco unidades subdivididas em tópicos que julguei relevantes e imprescindíveis
para seu aprendizado acadêmico.
Nossa ênfase aqui é dar os aspectos históricos que afetaram de alguma maneira a cons-
trução dos pensamentos reformados. Noutro momento você estudará tópicos da pró-
pria teologia reformada, aqui serão apontados temas rapidamente, pois o propósito
desta disciplina é abrir essa porta para o mundo reformado desde o contexto histórico.
Espero que esta disciplina, com seus temas estudados, seja um trabalho conjunto abenço-
ador, e que juntos possamos crescer no conhecimento da sola scriptura, da sola gratia, da
sola fide e, sobretudo, do solus Cristus. Que o Senhor nos capacite e habilite para esta tarefa.
Na unidade um estudaremos a Gestão e a História da Reforma protestante, pois o pensa-
mento reformado não pode ser compreendido sem a história e o contexto em que se deu.
A seguir, na segunda unidade, a ênfase será ligar a história com o que pode ser conheci-
do como o “ethos” reformada, ou seja, aos grandes temas que caracterizaram o jeito de
ser reformado.
Na unidade três é preciso apontar o pensamento reformado construído desde os gran-
des reformadores, Zwinglio, Calvino e outros e como aconteceu o desenvolvimento do
pensamento reformado.
Seguindo na mesma linha a unidade quatro, visa observar de forma a esclarecer do que
veio após Calvino, a expansão e a difusão do pensamento reformado no mundo e como
chegou ao Brasil.
Finalmente, a unidade cinco busca apontar o impacto e a natureza reformada e para
onde caminha diante dos desafios contemporâneos.
Soli Deo Gloria! (somente a Deus a Glória)l
Bons Estudos!
09
SUMÁRIO

UNIDADE I

GESTAÇÃO E HISTÓRIA

15 Introdução

16 O Contexto do Tempo

21 A Gênese de uma Época

26 Os Contextos Teológicos

30 Lutero e seu Protesto

36 Questões Teológicas Fundamentais

44 Outras Reformas

52 Considerações Finais

57 Referências

58 Gabarito

UNIDADE II

HISTÓRIA E ETHOS REFORMADOS

61 Introdução

62 A Majestade da Glória de Deus Versus a Idolatria

66 Propósitos Divinos na História e Ética da Santidade

74 Pregação e Pastoral

83 Do Conhecimento de Deus e da Valorização Humana

90 Da Realeza de Cristo e da Oração


10
SUMÁRIO

97 Considerações Finais

102 Referências

103 Gabarito

UNIDADE III

DOS TEÓLOGOS E DO PENSAMENTO REFORMADO

107 Introdução

108 Rupturas por um Novo Paradigma

114 Lutero, os Radicais e Zwinglio

122 João Calvino – Teologia da Majestade de Deus.

125 Aspectos do Pensamento Teológico Reformado

130 Desenvolvimento Teológico

133 Considerações Finais

138 Referências

139 Gabarito

UNIDADE IV

A TEOLOGIA REFORMADA APÓS CALVINO

143 Introdução

144 Calvino e o Calvinismo

151 Controvérsias Pós-Calvino


11
SUMÁRIO

157 Calvinismo na Holanda e o Sínodo de Dort

166 O Movimento Puritano e a Confissão de Westminster

171 A Teologia Reformada no Brasil

176 Considerações Finais

182 Referências

183 Gabarito

UNIDADE V

O IMPACTO E A NATUREZA DA TRADIÇÃO REFORMADA

187 Introdução

188 Uma Atitude Nova Diante do Mundo

196 Max Weber

199 A Reforma, a Política e as Ciências Sociais

207 Exemplo Prático de Conteúdo Teológico

215 O Caráter Escatológico da Igreja e suas Marcas

222 Considerações Finais

228 Referências

229 Gabarito

230 Conclusão
Professor PhD. Silas Barbosa Dias

I
UNIDADE
GESTAÇÃO E HISTÓRIA

Objetivos de Aprendizagem
■ Apresentar a gestação histórica da tradição reformada.
■ Expor e discutir o contexto em que foi gerada a reforma e o lugar
recursivo das 95 teses de Martinho Lutero.
■ Debater as difusões do pensamento reformado pós Calvino.

Plano de Estudo
A seguir, apresentam-se os tópicos que você estudará nesta unidade:
■ O Contexto do Tempo
■ A Gênese de uma Época
■ Os Contextos Teológicos
■ Lutero e seu Protesto
■ Questões Teológicas fundamentais
■ Outras reformas
15

INTRODUÇÃO

Reforma é uma palavra curiosa. Tem o sabor de “mudança” sobre ela - re-forma.
Menos frequentemente associada à “revolução”. Contudo, quando Martinho
Lutero protestou contra certas práticas da Igreja Católica em 1517 e tentou refor-
mar, ele, sem saber, desencadeou uma das maiores revoluções já conhecidas.
Esta unidade explica como este bem-intencionado monge de uma pequena
cidade na Alemanha rearranjou a arquitetura espectro religiosa no mundo oci-
dental. Começaremos explicando o contexto de um tempo, o Século XV, e a
Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.

queixa que Lutero fez protestando contra tudo o que não vinha das Escrituras.
Em seguida, devemos descrever o próprio protesto que Lutero expressou
com tamanha clareza e grandeza. Precisamos, com isso, dar os primeiros passos
para dentro da teologia Reformada, pois não podemos falar em teologia refor-
mada, sem antes olhar para a reforma.
Naquele período, não é importante apenas ver os protestantes em protesto,
mas ver também como foi a contra-reforma, ou seja, qual a reação Romana contra
eles. Ver os Reformadores vindo com a força gloriosa de uma teologia substan-
ciada na Palavra e no Espírito Santo.
Finalmente, precisamos, além de repassar por uma galeria de heróis refor-
mados, também compreender algo mais, o futuro da própria teologia reformada.
Qual o caráter essencial da mudanças que Lutero desencadeou, em especial quanto
a um novo conceito de salvação - pela fé. Tema que foi o coração da revolução
implementada por Martinho Lutero.
Com estas sementes, nasce o mundo moderno, uma nova forma de pensar
acontece – cria-se de fato uma nova civilização. Esta é a história: a reforma e os
reformadores criaram uma civilização.
Entendi algo único e expresso nessa assertiva de um teólogo reformado bra-
sileiro, Godoy Sobrinho: “Teologia é um falar de Deus, na Sua presença e para
a sua Glória, na Igreja, com a Igreja e pela Igreja”.

Introdução
16 UNIDADE I

Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.
O CONTEXTO DO TEMPO

Will Durant (1957, p. 283), historiador filosófico, descreve que


[...] em Março de 1517, o Papa Leão X promulgou a mais célebre de
todas as indulgências. Leão, filho de Lourenço, o Magnífico, era agora
chefe da família Mêdici, o qual sustentará a Renascença em Florença;
era literato, poeta, cavalheiro, bondoso e generoso, apaixonado pela li-
teratura clássica e pela arte delicada.

A moral de Leão X era boa em meio à imoralidade, sua natureza, inclinada para
uma alegria simpática e autêntica, deu exemplo de felicidade a uma cidade, que
um século antes tinha sido decadente e desolada. Todos os erros dele foram
superficiais, exceto sua superficialidade.
Leão X fazia pouca distinção entre os bens de sua família e os da Igreja e
gastou os fundos do papado com poetas e guerras discutíveis. Era normalmente
tolerante: apreciou a sátira contra os eclesiásticos no Elogio da Loucura de Erasmo
e executou com interrupções esporádicas o acordo tácito pelo qual a Igreja da
Renascença concedia liberdade considerável a filósofos, poetas e sábios que se
dirigiam, geralmente em latim, à minoria letrada, mas que deixavam inalterada
a fé insubstituível das massas.

GESTAÇÃO E HISTÓRIA
17

Leão X era filho de banqueiro e estava acostumado a gastar dinheiro rapida-


mente, sobretudo com os outros. Herdou de Júlio II os cofres papais repletos e
esvaziou-os antes de morrer. Talvez não se importasse muito com a imponente
basílica que Júlio planejara e iniciara, mas a velha igreja de São Pedro estava
incapaz de conserto, tinham-se gasto imensas quantias com a nova e seria uma
desgraça para a Igreja deixar abortar aquele empreendimento majestoso.
É possível que, com alguma relutância, oferecesse a indulgência de 1517 a
todos os que quisessem contribuir para a despesa da conclusão do grande tem-
plo. Os governantes da Inglaterra, Alemanha, França e Espanha protestaram que
Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.

esses países estavam sendo sugados de suas riquezas, que as economias nacio-
nais estavam transtornadas pelas campanhas frequentes para canalizar dinheiro
para Roma, onde os reis eram poderosos.
Leão era prudente: concordou em que Henrique VIII retivesse um quarto
dos lucros na Inglaterra; adiantou um empréstimo de 170.000 ducados ao rei
Carlos I (mais tarde imperador Carlos V) contra as coletas em expectativa na
Espanha; e Francisco I deveria ficar com parte da quantia levantada na França.
A Alemanha recebeu tratamento menos benigno, pois não tinha monar-
quia forte para negociar com o Papa. Entretanto, o imperador recebeu a modesta
quantia de três mil florins das receitas, e os Fugger deveriam retirar das cole-
tas os 20.000 florins que tinham emprestado a Albrecht de Brandemburgo para
pagar o Papa por sua confirmação como arcebispo de Mogúncia.
Infelizmente essa cidade perdera três arcebispos em 10 anos (1504-1514) e
pagará duas vezes pesados emolumentos de confirmação. Para livrá-Ia de pagar
uma terceira vez, Albrecht fez um empréstimo (DURANT, 1957).
Então, Leão concordou que o jovem prelado dirigisse a distribuição das indul-
gências em Magdeburgo e Halbersradt, assim como em Mogúncia. Um agente dos
Fugger acompanhava cada um dos pregadores de Albrecht, verificava as despe-
sas, receitas e conservava uma das chaves do cofre forte que guardava as quantias.
Durant (1957) escreveu que o principal agente de Albrecht era Johann Tetzel,
frade dominicano que conseguira habilidade e fama como coletor de dinheiro. Desde
1500, sua ocupação principal tinha sido dispor das indulgências. Geralmente, nes-
sas missões, o agente recebia auxílio do clero local: quando entrava em uma cidade,
uma procissão de padres, magistrados e leigos piedosos recebia-o com bandeiras,

O Contexto do Tempo
18 UNIDADE I

velas e cantos, e carregava a bula de indulgências sobre uma almofada de veludo ou


de tecido dourado, enquanto os sinos das igrejas badalavam e os órgãos tocavam.
Apoiado desse modo, Tetzel usava uma fórmula impressionante, uma indul-
gência completa àqueles que confessassem seus pecados e contribuíssem de acordo
com suas posses para a construção da nova igreja de São Pedro:
Que Nosso Senhor Jesus Cristo se apiede de ti, e te absolva pelos méritos
de Sua Santíssima Paixão. E eu, por Sua autoridade, e a de Seus benditos
Apóstolos Pedro e Paulo, e do santíssimo Papa, a mim concedida e trans-
mitida nestas partes, absolvo-te, primeiro de todas as censuras eclesiásti-
cas, seja qual for o modo com que incorreste nelas, e em seguida de todos

Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.
os teus pecados, transgressões e excessos,por mais enormes que sejam, e
até dos que são reservados ao julgamento da Santa Sé; e até onde se esten-
derem as chaves da Santa Igreja, redimo-te de todo o castigo que mereças
no purgatório em nome delas, e te reintegro nos santos sacramentos da
Igreja [...] e naquela inocência e pureza que possuías no batismo; de modo
que quando morreres os portões do castigo estarão fechados, e os portões
do paraíso de delícias estarão abertos; e se não morreres agora, esta graça
continuará em plena força quando estiveres a ponto de morrer. Em nome
do Pai, e do Filho, e do Espírito Santo! (DURANT, 1957, p. 284).

Este negócio esplêndido estava em harmonia com a concepção oficial das indul-
gências para os vivos. Tetzel estava outra vez dentro da letra de suas instruções
arquiepiscopais quando dispensou a confissão preliminar se o contribuinte apli-
casse a indulgência a uma alma do purgatório.
Não há dúvida de que Tetzel, segundo o que considerava como suas ins-
truções autorizadas, declarou, como doutrina cristã, que não se exigisse nada
além de uma oferta em dinheiro para se obter a indulgência para os mortos, não
havendo qualquer necessidade de contrição ou confissão.
Também ensinava, de acordo com a opinião então vigente, que uma indul-
gência podia ser aplicada a qualquer alma com efeito infalível. Partindo deste
princípio, não há dúvida de que sua doutrina era virtualmente aquela do drás-
tico provérbio: “Logo que o dinheiro soa, a alma do fogo do purgatório voa”,
(DURANT, 1957, p. 285)
No entanto, é preciso ser justo quanto a isso, afirmando que a bula papal de
indulgência não dava qualquer sanção a este propósito. Era uma vaga opinião esco-
lástica, e não uma doutrina qualquer da Igreja. Myconius, frade franciscano, talvez
hostil aos dominicanos, ouviu Tetzel agir e contou, a respeito desse ano de 1517:

GESTAÇÃO E HISTÓRIA
19

É incrível o que esse monge ignorante disse e pregou. Deu cartas se-
ladas que declaravam que até os pecados que um homem tencionava
cometer seriam perdoados. O papa, dizia ele, tinha mais poder do que
todos os Apóstolos, todos os anjos e santos, mais até do que a própria
Virgem Maria; pois estes eram todos subordinados a Cristo, mas o papa
era igual a Cristo [...] (DURANT, 1957, p. 285 ).

Isto é provavelmente exagero, mas que tal descrição pudesse ser feita por uma
testemunha ocular, sugere a antipatia que Tetzel despertou.
Hostilidade semelhante aparece no comentário citado ceticamente por Lutero,
o qual contava que Tetzel dissera em Halle que mesmo uma pessoa que tivesse
Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.

violado a Mãe de Deus, a indulgência teria apagado seu pecado.


Tetzel obteve certificados das autoridades civis e eclesiásticas. Era um vendedor
entusiasta, mas não inteiramente sem consciência.Teria escapado à história se não
tivesse se aproximado demais das terras de Frederico, o Sábio, eleitor da Saxônia.
O conflito surge porque Frederico, o Sábio, não queria ver os valores saírem
da Alemanha. Desta forma, conservou as quantias e aplicou-as na Universidade
de Wittenberg. Nada de deixar a moeda da Saxônia emigrar. Notadamente, talvez
devido ao que se contava das hipérboles de Tetzel, proibiu a pregação da indul-
gência de 1.517 em seu território. Mas Tetzel aproximou-se tanto das fronteiras
que o povo de Wittenberg cruzava os limites para obter a indulgência.
Vários compradores levaram essas “cartas papais” a Martinho Lutero, pro-
fessor de teologia na universidade, e pediram-lhe para atestar sua eficácia. Ele
recusou. A recusa chegou aos ouvidos de Tetzel, que denunciou Lutero.
O grande erro de Tetzel foi ter subestimado a combatividade do professor,
pois Lutero compôs rapidamente em latim as 95 teses, que intitulou Disputa para
o Esclarecimento da Virtude das Indulgências.
Lutero não considerava suas proposições heréticas, nem elas eram indubi-
tavelmente assim. Ele ainda era um católico fervoroso que não tinha ideia de
transtornar a Igreja, seu objetivo era refutar as afirmativas extravagantes que se
faziam a respeito das indulgências e corrigir os abusos que tinham se multipli-
cado em sua distribuição.
Sentia que a saída fácil e a disseminação mercenária das indulgências tinham
enfraquecido a contrição que o pecado devia despertar, que estas fizeram do pecado um
assunto trivial a ser resolvido num balcão de negócios, por um mercador de perdões.

O Contexto do Tempo
20 UNIDADE I

Ele admitia a autoridade do papa em absolver o penitente confesso das penas


terrestres impostas pelos homens da igreja, mas na opinião de Lutero, o poder
do papa de livrar as almas do purgatório, ou diminuir o período de castigo lá,
dependia não do poder das chaves - que não ia além do túmulo - mas da influ-
ência intercessora das orações papais, que podiam ou não ser ouvidas. Ainda
mais, argumentava Lutero, todos os cristãos participavam automaticamente do
tesouro de merecimentos ganho por Cristo, mesmo sem a concessão de tal par-
ticipação por uma carta papal de indulgência.
De acordo com Durant (1957, p. 285), Lutero desobrigava os papas da res-

Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.
ponsabilidade pelos excessos dos pregadores, mas acrescentava perfidamente que
Esta pregação desenfreada de perdões transforma em problema nada
fácil, até para homens sábios, salvar a reverência devida ao papa das
[...] perguntas astutas da laicidade, a saber: Por que o papa não esvazia
o purgatório em nome do amor sagrado e da necessidade cruel das al-
mas que ali estão, se ele redime um [...] número de almas em nome do
dinheiro miserável com que construirá uma igreja?

Começa uma verdadeira revolução no Ocidente. Ao meio-dia de 31 de outubro de


1517, Lutero afixou 95 teses na porta principal da igreja do castelo de Wittenberg.
O costume de anunciar publicamente as teses, que o proponente se oferecia
para defender contra todos os desafiadores, era um velho costume das univer-
sidades medievais, e a porta que Lutero usou para sua proclamação tinha sido
empregada regularmente como quadro dos boletins acadêmicos.
Acrescentou a essas teses um convite amável:
Devido ao amor pela fé e ao desejo de trazê-Ia à luz, as seguintes propo-
sições serão discutidas em Wittenberg sob a presidência do reverendo
padre Martinho Lutero, Doutor de Humanidades e Teologia Sacra, e
Coadjutor do Ordinário sobre tais ciências nesse lugar. Pelo que pede
que os que estiverem incapacitados de comparecer e debater oralmente
o façam por carta (DURANT, 1957, p. 286).

Para certificar-se de que essas teses seriam amplamente entendidas, Lutero fez
circular uma tradução alemã entre o povo. Com um audácia que lhe era caracte-
rística, enviou um exemplar dessas teses ao arcebispo Albrecht. Delicada, piedosa
e involuntariamente - a Reforma tinha começado.

GESTAÇÃO E HISTÓRIA
21

A GÊNESE DE UMA ÉPOCA

Qual foi a gênese desse homem que gerou


uma época? Que circunstâncias de here-
ditariedade e ambiente tinham moldado o
obscuro monge, que habitava numa cidade
com uma população de três mil pessoas?
O pai dele, Hans, era anticlerical severo,
áspero, irascível; a mãe era mulher tímida
Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.

e modesta, muito dada à oração.


Precisamos dar uma olhada na formação aca-
dêmica de Lutero. Na escola, em Mansfeld, onde havia
muitos açoites e muito catecismo, Martinho foi açoitado 15 vezes em um dia
por declinar erradamente um substantivo. Aos 13 anos foi enviado a uma escola
secundária mantida por uma irmandade religiosa de Magdeburgo e aos 14 anos
foi transferido para a escola de São Jorge, em Eisenach.
Em 1501 seu pai, que ia prosperando, mandou-o para a Universidade de
Erfurt. O currículo concentrava-se em torno da teologia e da filosofia, que ainda
era escolástica; mas o nominalismo de Ockham tinha triunfado ali, e é provável
que Lutero tenha observado a doutrina de Ockham, de que os papas e os con-
cílios podiam errar.
Achou o escolasticismo de qualquer maneira tão desagradável que cumpri-
mentou um amigo por “não ter de aprender o esterco que era oferecido” como
filosofia (DURANT, 1957, p. 287).
Havia alguns humanistas em Erfurt, e foi muito ligeiramente influenciado
por eles, que não se preocuparam com ele quando o viram preocupado com o
outro mundo.
Aprendeu um pouco de grego e menos hebraico, porém, leu os principais
clássicos latinos, e, em 1505, recebeu o grau de Doutor de Humanidades. O
pai, orgulhoso, enviou-lhe como presente de formatura uma edição luxuosa do
Corpus iuris (corpo jurídico) e ficou satisfeito quando o filho começou a estu-
dar direito. De repente, após dois meses desse estudo, para desgosto do pai, o
jovem de 22 anos resolveu ser monge.

A Gênese de uma Época


22 UNIDADE I

A decisão exprimia a contradição de seu caráter. Vigoroso até ao ponto da


sensualidade, visivelmente constituído para uma vida de instintos normais, e,
assim mesmo, sugestionado pelo lar e pela escola na convicção de que o homem
é pecador por natureza e de que o pecado é uma ofensa ao Deus onipotente e
punitivo, a nunca, em pensamento ou na conduta, conciliar a seus impulsos natu-
rais com os credos adquiridos.
Tendo passado presumivelmente pelas habituais experiências eróticas e
fantasias da adolescência, não podia considerá-Ias como etapas de desenvolvi-
mento, mas as encarava como as manobras de Satanás empenhado em arrastar

Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.
as almas à condenação irremediável. A concepção de Deus que lhe tinha sido
incutida quase não continha qualquer elemento de ternura e a figura conso-
ladora de Maria tinha pouco lugar naquela teologia de medo. Jesus não era
o filho amante que não podia recusar coisa alguma a Sua mãe, era o Jesus do
Juízo final, tantas vezes representado nas igrejas, o Cristo que ameaçara os
pecadores com o fogo eterno.
O pensamento insistente do inferno obscurecia um espírito intensamente
religioso para esquecê-lo no sabor e na torrente da vida. Um dia, quando
regressava da casa do pai para Erfurt, em Julho de 1.505, foi surpreendido
por uma tempestade tremenda. O raio brilhou perto dele e bateu em uma
árvore próxima.
Pareceu a Lutero um aviso de Deus, de que a menos que dedicasse seus pen-
samentos à salvação, a morte haveria de surpreendê-lo sem confissão, e, assim,
estaria condenado. Onde poderia viver uma vida de devoção salvadora? Somente
onde quatro paredes excluíssem, ou a disciplina ascética sobrepujasse, o mundo,
a carne e o diabo: somente em um mosteiro. Fez um voto a Santa Ana de que se
sobrevivesse a essa tempestade, se tornaria monge.
Havia 20 claustros em Erfurt. Escolheu um que era conhecido pela fiel obser-
vância das regras monacais - o dos Eremitas de Santo Agostinho, ou Agostinianos.
Reuniu os amigos, bebeu e cantou com eles pelo que disse ser a última vez, e,
no dia seguinte, foi recebido como noviço em uma cela de mosteiro. Executava
as tarefas mais baixas com orgulho e humildade. Declamava as orações em uma
repetição auto-hipnotizadora, num cubículo frio, jejuava e flagelava-se, na espe-
rança de expulsar os demônios do corpo.

GESTAÇÃO E HISTÓRIA
23

Eu era um monge piedoso, e observava tão estritamente o regulamento


de minha ordem que [...] se algum dia um monge entrou no céu de-
vido à vida de frade, então eu também deveria entrar lá [...] Se tivesse
durado mais tempo, terme-ia torturado até morrer de vigília, orações,
leituras e outros trabalhos [...] (DURANT, 1957, p. 288).

Uma vez, tendo ficado sem aparecer durante vários dias, uns amigos forçaram a
cela e encontraram-no desmaiado no chão. Tinham levado um alaúde; um deles
tocou-o; Lutero despertou e agradeceu-lhes. Em setembro de 1506 fez os votos irre-
vogáveis de pobreza, castidade e obediência e, em maio de 1507, ordenou-se padre.
As leituras que Lutero fazia dos místicos alemães, principalmente de Tauler,
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deram-lhe a esperança de saltar o abismo terrível entre uma alma naturalmente


pecaminosa e um Deus justo e onipotente. Depois, caiu-lhe nas mãos um tratado
de João Huss, e as dúvidas doutrinárias vieram juntar-se ao turbilhão espiritual.
Perguntava a si mesmo por que um homem que era capaz de escrever de maneira
tão cristã e tão vigorosamente fora queimado.
Um dia, em 1508 ou 1509, ficou impressionado com uma sentença da Epístola
de Paulo aos Romanos (1.17): “O justo viverá por fé”. Lentamente, essas palavras
conduziram-no à doutrina da justificação, isto é, tornar-se justo e, portanto, sal-
var-se do inferno, não pelas boas obras, que nunca poderiam bastar para reparar
pecados contra uma divindade infinita, mas somente pela fé completa em Cristo
e em sua expiação pela humanidade.
Em Agostinho, Lutero encontrou outra idéia que talvez lhe tenha renovado
o terror: de que Deus, mesmo antes da criação, destinara para sempre algumas
almas à salvação e o resto ao inferno (predestinação); e que o eleito tinha sido
escolhido pelo livre-arbítrio de Deus para ser salvo pelo divino sacrifício de
Cristo. Isso chegou ao que conhecemos como a salvação pela fé.
Em 1508, devido à recomendação de Staupitz, foi transferido para um mos-
teiro agostiniano em Wittenberg, ao posto de instrutor de lógica e física, e depois
professor de teologia, na universidade. Wittenberg era a capital setentrional, pou-
cas vezes, residência de Frederico, o Sábio. Um contemporâneo considerava-a
uma cidade pobre, insignificante, de casas de madeira pequenas, velhas e feias.
Lutero descreveu os habitantes como bêbados, grosseiros e dados à orgia des-
medida. Tinha a fama de ter os maiores bebedores da Saxônia e era considerada
a província mais beberrona da Alemanha.

A Gênese de uma Época


24 UNIDADE I

Um quilômetro e meio a leste, dizia Lutero, terminava a civilização e princi-


piava a barbárie. Ali, principalmente, permaneceu até o fim de seus dias. Devia
ter-se tornado a esta altura um monge exemplar, pois, em outubro de 1510, ele
e um companheiro frade foram enviados a Roma em missão misteriosa para os
Eremitas de Santo Agostinho. A primeira reação que teve ao avistar a cidade foi
a de temor piedoso. Prostrou-se, ergueu as mãos e gritou: “Salve, sagrada Roma!”.
Cumpriu todas as devoções de um peregrino, inclinou-se respeitosamente
diante das relíquias santificadas, subiu a Scala Santa de joelhos, visitou uma série
de igrejas e ganhou tantas indulgências que quase desejou que seus pais estives-

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sem mortos para que pudesse livrá-los do purgatório. Visitou o Fórum Romano,
mas parece que ficou insensível ante a arte da Renascença com que Rafael, Miguel
Ângelo e uma centena de outros principiavam a adornar a capital.
Entretanto, dez anos mais tarde, e ainda mais nas reminiscências às vezes
imaginosas de suas conversas íntimas da velhice, descreveu a Roma de 1510 como
“uma abominação”. Os papas, piores do que imperadores pagãos, e a corte papal
“servida à ceia por 12 moças nuas” (DURANT, p. 289).
É muito provável que não tivesse entrado nos altos círculos eclesiásticos, não
tendo conhecimento direto de sua moralidade indubitavelmente fácil.
Para compreendermos esse processo que iria atingir os reformadores,
depois do regresso a Wittenberg (fevereiro de 1511), Lutero avançou rapida-
mente na escala pedagógica e tornou-se vigário-geral provincial de sua ordem.
Dava cursos sobre a Bíblia, pregava regularmente na igreja paroquial e desem-
penhava as funções do cargo com habilidade e devoção. Disse um destacado
erudito católico:
Suas cartas oficiais respiravam profunda solicitude pelos hesitantes. Sim-
patia amável pelos caídos; revelavam toques profundos de sentimento
religioso e um raro senso prático, embora não despojadas de conselhos
que contêm tendências não ortodoxas [...] (DURANT, 1957, p. 289).

A peste que assolou Wittenberg em 1516 encontrou-o corajosamente em seu


posto que, apesar do interesse dos amigos, não quis abandonar. Lentamente,
durante esses anos (1512-1517), suas idéias religiosas foram-se afastando das
doutrinas oficiais da Igreja. Principiava a falar em “nossa teologia”, em oposição
à que era ensinada em Erfurt.

GESTAÇÃO E HISTÓRIA
25

Em 1515 atribuiu a corrupção do mundo ao clero, que entregava ao povo


máximas e fábulas de invenção humana em demasia, e não a palavra das Escrituras
de Deus. Em 1516 descobriu um manuscrito alemão anônimo, cuja piedade mís-
tica apoiava de tal maneira sua opinião - de que a alma dependia absolutamente
da graça divina para sua salvação -, que o editou e publicou como Theologia
Germanica. Censurava os pregadores de indulgências por se aproveitarem da
simplicidade dos pobres. Em sua correspondência particular principiou a iden-
tificar o Anticristo da Primeira Epístola de João com o papa.
Em julho de 1517, convidado pelo duque Jorge, da Saxônia Albertina, para
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pregar em Dresden, afirmou que a simples aceitação dos méritos de Cristo garantia
a salvação do crente. O duque lamentou que essa importância da fé de preferên-
cia à virtude “só serviria para tornar o povo presunçoso e rebelde” (DURANT,
1957, p. 289-290). Três meses depois desafiava o mundo a debater as 95 teses
que apregoara na igreja de Wittenberg.
É preciso voltar um pouco e olhar em 1500, quando a Europa estava em vias de
viver as incríveis mudanças. O sistema feudal, que era sinônimo da Idade Média,
estava quebrando. Um Novo Mundo acabava de ser descoberto nas Américas,
enquanto os europeus navegavam pelo resto do mundo.
A invenção recente de Guttenberg, a imprensa, e o crescimento rápido do
número de habitantes das cidades, foi uma revolução em si, que ajudou gran-
demente o protestantismo de Lutero. Não se pode pensar em Reforma sem o
advento da imprensa. Todos esses eventos colocam pressões, sobre a ordem esta-
belecida, em três contextos: cultural, político e religioso.

A Gênese de uma Época


26 UNIDADE I

OS CONTEXTOS TEOLÓGICOS

Vários contextos poderiam ser colocados nesta conexão com o contexto teoló-
gico que gestou o pensamento da Reforma Protestante, vejamos:

O CONTEXTO CULTURAL

Sem dúvida, o elemento mais importante no contexto cultural da reforma

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Protestante foi o Renascimento. O “renascimento” da cultura, que havia come-
çado em torno de 1350 A.D. e que mudou a forma como as pessoas viram o
mundo, surgindo uma nova cosmovisão.
Os nomes Leonardo da Vinci e Michelangelo significavam grandeza na
arte, diferente de tudo que o mundo já havia conhecido antes. Surgem os avan-
ços dramáticos na arquitetura, escultura, literatura, músicas e em outros meios
artísticos e intelectuais.
De maneira coletiva, essas mudanças, eventualmente, produzem uma nova
consciência cultural, e constrói-se uma nova civilização em todo o continente,
sobretudo, por trás dessas revoluções artísticas, com substanciais mudanças na
forma como os seres humanos se veem e veem seu lugar no mundo.
Um fato registrado pelos historiadores vem compor o contexto geral. Os
muçulmanos apertaram o cerco em torno de Constantinopla, eventualmente,
capturando em 1453, milhares de clérigos cristãos, acadêmicos e artistas que por
essa razão fugiram em busca de segurança na Europa.
Eles trouxeram consigo os tesouros da Antiga Grécia, que havia sido preser-
vada na região bizantina do Império (o antigo Império Romano Oriental), mas
que tinha sido perdida pelo ocidente após a queda do Império Ocidental, cen-
trado em Roma.
Nesta riqueza cultural incluem os manuscritos das obras dos maiores pen-
sadores e duas idéias especialmente importantes: a da razão como um processo
para a compreensão do mundo; e do lugar do ser humano no mundo.

GESTAÇÃO E HISTÓRIA
27

A razão, é claro, tinha sido central para todo o empreendimento grego. Toda
a disciplina da filosofia dependia da certeza de que a realidade poderia ser conhe-
cida por meio de um processo sistemático de investigação.
Por sua vez, a ciência foi outra das grandes contribuições do mundo grego.
Via o valor da razão, pois entendia que diante do universo era lícito que suas leis
poderiam ser desvendadas pelo processo da razão.
Esse dom supremo da Grécia, de ter arrancado o ser humano das algemas
dos mythos, para o mundo, era visto como o universo governado por deuses
caprichosos; a filosofia, por sua vez, vai afirmar o universo do Logos, governado
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por realidades previsíveis.


A segunda grande ideia recuperada da Grécia foi o lugar dos seres huma-
nos no mundo. Foi a partir do pensamento grego que os seres humanos tinham
aprendido a assumir a responsabilidade de seu próprio destino.
A literatura grega - de Homero a Sófocles - mostrou seres humanos cada vez
mais diferentes dos Deuses, até mesmo desafiando os deuses.
Assim, nasce a consciência política, pois somente um mundo onde os seres
humanos pudessem governar valeria a pena. Portanto, a invenção grega da
democracia, é exigida e afetará toda Igreja protestante, de maneira especial a
tradição reformada.
Essa idéia de seres humanos como atores centrais no mundo veio a ser conhe-
cida durante o Renascimento como “Humanismo”. Foi uma idéia radical, não
menos importante em 1.500 d.C do que em 500 a.C. A razão e o humanismo
criaram enormes desafios para a Igreja Católica. Contudo, se os ignorasse, seria
deixada para trás a maior revolução cultural dos últimos mil anos. Por outro
lado, se os imitasse, suas crenças ficariam contaminadas, pois a razão é o oposto
da fé, e o homem dificilmente é igual a Deus.
A Igreja, no entanto, extasiada como era pelo poder secular, abraçou
essas duas idéias, incorporando-as à sua teologia fundamental. Ao fazê-lo,
lançou as sementes de sua própria eventualidade. Aqui, a liberdade humana
e o poder de escolher seu destino fazem brotar uma nova civilização, conti-
nuemos a seguir.

Os Contextos Teológicos
28 UNIDADE I

O CONTEXTO POLÍTICO

Há três elementos essenciais no contexto político de O tempo que condicionou o


desdobramento e o resultado da Reforma Protestante. Estes são o poder da Igreja
Católica, o facto do Sacro Império Romano e dois conflitos exteriores, entre o
Império e os Valois franceses e o império e os turcos otomanos.
Primeiro, com relação à Igreja, o imperador romano Constantino se con-
verteu ao cristianismo em 315 d.C. Ele casou com o poder secular do Império
Romano, com a autoridade espiritual da Igreja Cristã. Quando Roma caiu, em 476

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a.D., o Império Ocidental desapareceu, mas a Igreja realizou, assumindo muitas
das responsabilidades seculares que tinham sido suportados pelo Império. Na
verdade, na “escuridão” de mil anos que se seguiu à queda de Roma, a Igreja foi
quase a única força civilizadora no mundo ocidental. Por volta de 1300, a Igreja
se tornou a instituição mais poderosa da Europa. Porém, enquanto os grupos de
Reforma Protestante deram à Igreja um enorme poder, esse mesmo poder tor-
nava inevitável que a igreja se enredasse em conflitos políticos.
Em segundo lugar, tem-se a questão do Santo Império Romano. Em cima
de um retalho de quase 400 feudal “principalidades” no que é a Alemanha
de hoje em dia o reino dinástico Sacro Império dos Habsburgos. O resultado
foi uma “nação” alemã (como mais tarde o chamaria) efetivamente subordi-
nada à Igreja Católica e ao Império. Isso deixou o povo alemão maduro para
qualquer tipo de alívio ou reforma, religiosa ou política. Portanto, quando
Martinho Lutero acusou a Igreja de corrupção e o Papa de ser o Anti-Cristo,
príncipes alemães abraçaram rapidamente sua história. Quando ele articu-
lou uma doutrina, fazendo a Igreja subordinada ao Estado, eles lutaram por
ela. A nova interpretação de Lutero proporcionou aos príncipes alemães uma
posição política e econômica para desafiar tanto a Igreja Católica como os
Habsburgo Imperiais.
Finalmente, o Império estava sendo desafiado por forças externas e teve de
aplacar príncipes Protestantes para manter uma fronteira unificada contra dois
poderosos inimigos. O primeiro desses inimigos foi a dinastia Valois, o poder
dominante da França. A guerra havia se espalhado entre os Habsburgo espa-
nhóis e os franceses Valois, na Itália em 1494.

GESTAÇÃO E HISTÓRIA
29

O CONTEXTO RELIGIOSO

À medida que o poder secular da Igreja crescia, sua integridade espiritual diminuía.
Em muitos aspectos, ela se tornara pouco mais do que qualquer outro reino terrestre.
O poder e a riqueza com as outras monarquias. A Reforma Protestante da
Europa. Em três áreas em particular, a igreja tinha abandonado a disciplina espiri-
tual que tinha feito uma força organizadora tão poderosa após a queda de Roma.
Primeiro, a teologia da Igreja havia se tornado diluída à medida que estendia
seus ensinamentos para se manter atualizada com as tendências culturais de seu
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tempo. Como observado anteriormente, incorporou os ideais gregos de razão e


humanismo em seus ensinamentos básicos. Igualmente, aceitou a veneração dos
santos e a adoração da Virgem Maria e havia proliferado todos os rituais e cele-
brações como dispositivos para unir as pessoas a seus ministérios, mas também
para arrecadar dinheiro das doações que as acompanhavam. Todas essas práti-
cas tiveram o efeito de enfraquecer os ensinamentos centrais da Igreja.
Em segundo lugar, a Igreja oficial, do sacerdote local, e até o próprio Papa
tornaram-se frouxos e corrompidos. O ideal da Igreja sustentava que os líde-
res deveriam ser exemplares do homem cristão: sábio, simples. Em vez disso, o
clero - e, certamente, os oficiais superiores da autoridade da Igreja - eram fre-
quentemente aristocratas e ricos. Contra a política da Igreja do celibato, eles
constantemente mantinham as mulheres como concubinas. Contra seus votos de
pobreza, os funcionários em Roma viviam em opulência decadente, extorquindo
dinheiro dos paroquianos. Em vez da humildade cristã, eles se conduziram com
o ódio de César. Todas estas práticas tiveram o efeito de reduzir a autoridade
moral da Igreja nos olhos do povo que deveria servir.
Finalmente, o próprio papado tornou-se pouco mais do que uma vasta ope-
ração de fazer dinheiro, vendendo “escritórios”, ou posições da igreja, para os
licitantes mais altos, a fim de usá-los como raquetes de coleção, manipulando-
-os por meio de doações.
Aos bispos, foi permitido que mantivessem vários escritórios ao mesmo
tempo, efetivamente cobrando impostos com base em tributos religiosos. E, na
mais funesta operação, a que provocaria o protesto de Lutero, venderam “indul-
gências”, concessões de remissão de pecados baseadas em pagamentos à Igreja.

Os Contextos Teológicos
30 UNIDADE I

Por todas essas razões, então, culturais, políticas e religiosas, a estatura moral
das autoridades caíram grandemente aos olhos dos povos da Europa. Todos con-
cordaram que a reforma era desesperadamente necessária. Na verdade, algumas
das vozes mais insistentes e autoritárias para a reforma surgiram da própria
Igreja, por exemplo, do holandês Erasmo (1446-1536). Suas condenações das
práticas da Igreja eram tão mordazes e persistentes que foi dito dele: “Ele pôs o
ovo que Lutero chocou”. As únicas perguntas eram como a reforma começaria
e que forma tomaria. As respostas vieram na segunda década do século XVI.

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LUTERO E SEU PROTESTO

Não há reformadores sem Lutero, e não


há teologia em Lutero sem sua vida.
Não haveria Reforma Protestante sem
os protestos e reformas de Martinho
Lutero. Menos óbvio é o papel que Lutero
desempenhou em seus desafios à Igreja.
Lutero nasceu e viveu na Saxônia, parte
do Império Romano Holandês.
João Huss (1369-1415) tinha desafiado muitas doutrinas da Igreja. Criticou o
poder papal e propôs que a Igreja fosse liderada por conselhos de crentes, pois era
um precursor do Sacerdócio de Todos os Crentes de Lutero. Huss também inves-
tiu contra a corrupção da Igreja, escrevendo contra os pagamentos à confissão, à
missa, ao sacramento, a uma bênção, a enterros, a serviços funerários e orações.
Lutero, escrevendo cem anos mais tarde, ecoaria muitas das condenações
de João Huss, que foi morto depois de uma promessa de passagem segura para
um conclave da Igreja para defender suas idéias. O passado pessoal de Lutero
também era significativo para seu protesto, pois ele era uma pessoa sensível,
arruinada com dúvidas sobre sua dignidade aos olhos de Deus.

GESTAÇÃO E HISTÓRIA
31

O grande tema será a questão da Salvação. Lembrem-se que Lutero, diante


da tempestade e da morte do amigo, temia por sua vida e exclamou: “Santa Ana
me proteja. Eu vou me tornar um monge!”. Ele cumpriu sua promessa e entrou
na ordem Dominicana, onde iniciou um intenso estudo dos Evangelhos. Esforços
ainda mais intensos foram feitos para tentar limpar-se de seus pecados percebi-
dos. Não funcionou. Lutero se desesperou cada vez mais, por julgar-se incapaz
de se tornar digno aos olhos de Deus.
Era necessária uma completa reforma na relação do ser humano com Deus.
O homem deveria render todas as suas boas obras e lançar-se na misericórdia
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de Deus, ter fé completa na bondade de Deus e na obra de Cristo. Esta trans-


formação, ancorada na fé, se tornaria conhecida como a Doutrina da Salvação
somente pela Fé, o pilar central da teologia protestante desde Lutero.

A PROVOCAÇÃO IMEDIATA

Ao trazermos mais alguns pontos do que foi aquela provocação em 1517, quando
o Papa Leão X começou a angariar dinheiro para concluir a construção da Basílica
de São Pedro em Roma, percebemos o quanto as indulgências eram um dispo-
sitivo inventado por primitivos para conseguir contribuições de paroquianos.
Lutero os chamou de “os doutrinadores da graça barata”.
Eles trabalhavam do seguinte modo: os papas declaravam que os santos
anteriores possuíam mais “méritos” do que os necessários para efetuar a sua res-
surreição e declaravam que esse excesso coletivo de méritos era armazenado em
um “tesouro de méritos” no céu, de onde o Papa poderia extrair para remeter
os pecados, desde que as pessoas pagassem. Era uma paródia da união estreita
da Igreja com o dinheiro.
As indulgências podiam ser compradas para cobrir quase todas as aplicações
comuns, incluindo os pecados de luxúria, orgulho, infidelidade conjugal, deso-
nestidade, relacionados a transações comerciais, e assim por diante. Tratava-se de
um esquema fantástico, sem custos, que premeia a culpa dos membros da Igreja
e a pretensão do Papa de poder redimir os pecados. No entanto, para Lutero, teo-
logicamente, foi escandaloso demais e revoltante.

Lutero e seu Protesto


32 UNIDADE I

AINDA SOBRE AS NOVENTA E CINCO TESES

Em resposta, Lutero escreveu o que seria um dos documentos mais importan-


tes da história do mundo ocidental: as noventa e cinco teses. Aconteceu no dia
de todos os Santos (Dia das Bruxas de atual), em 1517, quando Lutero pregou o
documento à porta da igreja de Wittenberg, na Alemanha, convidando-o a deba-
ter a questão com ele, pessoalmente ou por carta.
Naquelas noventa e Cinco Teses, Lutero apresentou suas objeções às indul-
gências. Primeiro, Lutero mostra, teologicamente, o desrespeito à fé. Na Tese

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66, zombou: “As Indulgências são as redes com as quais a Igreja pesca para os
homens” (Carlos Klein, 2014, p. 170).
Combatia categoricamente o que se chamava de Tesouro de Méritos. Pois a
Salvação era um presente de Deus, e somente Dele, e qualquer mérito associado
a Ele era um desrespeito descomunal a Deus.
Na Tese 33, Lutero declarou que “Os homens devem estar em guarda contra
aqueles que dizem que os perdões do Papa são este dom inestimável de Deus,
que o homem é reconciliado com Ele” (Carlos Klein, 2014, p. 167).
Na Tese 34, segue dizendo: “Porque estas graças de perdão se referem ape-
nas às penas designadas pelo homem” (Klein, 2014, p. 167).
Em seguida, Lutero zombou da pretensão do Papa de ter jurisdição sobre
o purgatório, afirmando na Tese 82: “Por que o Papa não esvaziou o purgató-
rio? Por causa do amor santo e da extrema necessidade das almas que estão lá”
(Klein, 2014, p. 171).
Mas o mais importante é que as indulgências induziram o estado de espírito
errado por parte do pecador, disse Lutero. Em vez de uma atitude de contrição,
elas promovem negociações e negociações - dificilmente os estados de ânimo
calculados para promover o arrependimento.
Na Tese 49, Lutero declarou: “Os cristãos devem acreditar que os perdões
do Papa são prejudiciais, pois perdem o Temor do Senhor” (Klein, 2014, p. 168).
Em outras palavras, se um pecador acreditava que poderia simplesmente
comprar a sua vida sem a compra de uma indulgência, havia pouca probabili-
dade de ele mudar radicalmente seu comportamento. As indulgências, portanto,
só serviam para seduzir os homens já fracos em um comportamento cada vez

GESTAÇÃO E HISTÓRIA
33

mais perigoso e destrutivo. Eles eram exatamente o oposto do que a Igreja deve-
ria fazer por seu rebanho.
Além de condenar as indulgências, Lutero também usou as Noventa e Cinco
Teses para reiterar os ensinamentos essenciais da Bíblia sobre a correta conduta
de cristã.
Na Tese 43, ele escreveu: “Os cristãos devem ser ensinados de que aquele
que dá aos pobres ou ajuda os necessitados faz um trabalho melhor do que com-
prar perdões” (Klein, 2014, p. 168). Complementa ainda com a Tese 45, quando
afirma que “os cristãos devem entender que aquele que vê um homem necessi-
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tado e passa por ele, e dá o seu dinheiro para perdões, compra não as indulgências
do Papa, mas a indignação de Deus”.
Na Tese 94, Lutero diz: “os cristãos devem ser exortados a serem diligentes
em seguir a Cristo, sua Cabeça, através de penas, mortes e inferno”.
Lutero conclui na 95ª tese: “Podemos assim, estar confiantes de entrar no céu
através de muitas tribulações, e não através da garantia da paz, (op. cit. Klein,
2014, p.172).
Lutero tinha pretendido que suas teses fossem o sujeito do debate monás-
tico, e cravá-las na porta da catedral era simplesmente a maneira convencional
de convidar a debater essa dúvida.
Graças à imprensa emergente, a partir das proximidades de Nuremberg, as
teses foram distribuídas amplamente por toda a Saxônia, ou seja, foi o momento
em que uma questão acadêmica estreita e eficaz tornou-se a chave inicial de toda
controvérsia pública.

A ESCALADA DO PROTESTO

Outra consideração que precisamos fazer é sobre a escalada do protesto, que acon-
teceu de maneira imediata, pois o assunto explodiu, indo para além da questão
das indulgências e passando para a questão da autoridade da Igreja.
A questão, portanto, tornou-se: quem tem autoridade para falar pela Igreja e,
portanto, por Deus? A resposta para esta pergunta era simples se considerarmos
o contexto. O monge de Wittenberg tinha influência quase nula, era um monge de

Lutero e seu Protesto


34 UNIDADE I

nível bastante baixo, num lugar um tanto remoto da cristandade, longe do centro
teológico de alta mentes de Roma. Logo, se o Papa declarasse as indulgências como
espiritualmente sólidas, então, Wittenberg deveria submeter-se à autoridade papal.
Mas Lutero não reconsiderou e, em vez disso, intensificou seu ataque. As
noventa e Cinco Teses originais tinham se concentrado apenas nas indulgên-
cias. Lutero agora atacava a doutrina da autoridade papal - a idéia de que ao Papa
deve ser obediente, não importa o quê.
O Papa respondeu acusando Lutero de heresia, com oposição aberta à auto-
ridade da Igreja, e ordenando seu silêncio. Contudo, Lutero era protegido pelo

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reitor do mosteiro de Wittenberg e pelo príncipe local, Frederico, o Sábio.
As tensões políticas entre a Alemanha e Roma começaram a entrar em jogo.
Em 1520, Lutero foi chamado para ir a Roma para se explicar ao Conselho dos
Cardeais. Em vez disso, publicou dois dos mais incendiários documentos de todo
o caso. Em sua Carta Aberta à Nação Cristã, a Nação Alemã, ele exortou os prín-
cipes alemães a rejeitarem a autoridade da Igreja em Roma.
Para transmitir o quão inflamatório era o documento, é necessário citá-lo:
É uma coisa horrível e terrível que o governante da cristandade, que se assoma
como vigário de Cristo, vive em um esplendor tão grande que nenhum rei ou
imperador pode igualar e até mesmo aproximar-se.
Eles sustentam que o Papa está acima dos anjos no céu e tem autoridade
sobre eles. Estas são realmente as próprias palavras do Anticristo. A Itália e a
Alemanha tem muitos ricos testemunhos e beneficências.
Em vez de uma subordinação secular à Igreja, Lutero argumentou que deveria
haver o outro caminho: a Igreja deveria ser colocada sob a autoridade do prín-
cipe local, refletindo a admoestação de Jesus em dar a César o que é o de César,
e a Deus o que é de Deus.
Cada príncipe deve ser capaz de escolher qual religião seria praticada em
seus próprios domínios. A incompetência local, buscando uma justificativa para
uma maior independência, gostava dessa idéia e apoiava Lutero, não apenas con-
tra Roma, mas também contra o Império Católico.
Mais tarde, em 1520, Lutero publicou Cativeiro Babilônica, em que afirmava
que a Igreja Católica tinha sido roubada pelo anticristo, mas manteve o controle
dos sacramentos.

GESTAÇÃO E HISTÓRIA
35

Ele negou a legitimidade de todos os sacramentos, exceto o batismo e a


comunhão, os dois que realmente apareceram no Novo Testamento. Entretanto,
declarou a doutrina da transubstanciação, em que o sacerdote é posto para trans-
formar pão e vinho no corpo e sangue de Cristo, era “magia”, uma referência
provocadora do paganismo medieval. Este foi um ataque frontal sobre a legiti-
midade da prática central da Igreja.
Ao ler a obra, Erasmo dizia que a cisão era inevitável e, na verdade, foi. Após
a publicação desses folhetos, Lutero foi comandado a comparecer perante a Dieta
Imperial em Worms para explicar-se e reconsiderar. Ele recebeu vários dias para
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considerar e reconsiderar suas ações, mas, no final, permaneceu convicto, afir-


mando: “minha consciência é cativa da Palavra de Deus” (DURANT, 1957, p. 303).
A partir da grandeza desta declaração, vale a pena citar um longo trecho,
apresentado também na obra de Durant A História da Civilização:
Uma vez que Vossa Majestade e vossas excelências desejam uma res-
posta simples, responderei sem pormenores [...]. A menos que eu seja
convencido pelo testemunho das Sagradas Escrituras ou pela razão
evidente (não aceito a autoridade de papas e de concílios, pois eles se
contradizem uns aos outros), minha consciência é cativa da Palavra de
Deus. Não posso e não quero retratar-me de coisa alguma, pois ir con-
tra minha consciência não é direito nem seguro. Que Deus me ajude.
Amém (DURANT, 1957, p. 303).

Essa posição de Lutero cunha não apenas a fidelidade dos protestantes à Palavra,
mas de todos os Reformadores.
Lutero foi excomungado, expulso da Igreja e condenado como um após-
tata, que renunciou aos ensinamentos da Igreja, mas continuou sua cruzada, o
“Protesto”, dando origem a uma nova forma de cristianismo, que acabaria por
ser benigna.
Em 1522, ele publicou a primeira versão do Novo Testamento em língua
alemã, o que por si só, foi um acontecimento explosivo, pois devido à invenção
da impressão, feita por Guttenberg, na Alemanha, há poucas décadas, o povo ale-
mão, que era o mais letrado do mundo, podia ler por si mesmo que muitas das
reivindicações para a autoridade espiritual feitas pela Igreja Católica, incluindo
cinco dos sete santos e a posição do próprio Papa, não foram mencionados em
nenhum lugar da Bíblia.

Lutero e seu Protesto


36 UNIDADE I

Em 1526, Lutero escreveu uma versão em língua alemã da missa onde os paro-
quianos atuavam. Em 1534, publicou uma tradução alemã do Antigo Testamento,
envolvendo as missas cristãs em hinos, ensinamentos bíblicos e práticas juvenis.
De fato, Lutero repudiou o papel do sacerdócio clerical - outro assalto à Igreja
- e declarou que o próprio povo constituía um “sacerdócio de todos os crentes”.
Em todas estas formas, Lutero “democratizou” o cristianismo, tornando-o aces-
sível a todas as pessoas. Lutero morreu em 1546.

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A AMPLITUDE DO PROTESTO

As Reformas e as impugnações dos protestantes à autoridade papal são visíveis


no início da Reforma Protestante, mas elas são, de fato, apenas causas “pró-
ximas” - a faísca que acendeu um pingo de pólvora que já estava pronto para
explodir. Em seu coração, a Reforma foi uma revolução na teologia - na com-
preensão humana de Deus.
Simplesmente, disse Lutero, a Igreja Católica havia se infectado com o paga-
nismo por sua associação com o Humanismo Renascentista e tinha errado em
sua compreensão essencial da natureza de Deus. Como resultado, tinha traído seu
dever fundamental: agir como dignos pastores para as almas dos seres humanos.

QUESTÕES TEOLÓGICAS FUNDAMENTAIS

Nas aulas seguintes, veremos o Ethos da Teologia Reformada. No entanto, no


momento, apenas à guisa de introdução, vamos pontuar brevemente alguns pontos.

GESTAÇÃO E HISTÓRIA
37

Lutero acreditava que a síntese medieval de Tomás de Aquino era profun-


damente falha. A grande obra de Tomás de Aquino, Summa Theologica, criara
um amálgama de teologia cristã e filosofia grega, esta última baseada nos ensi-
namentos de Aristóteles. Foi a tentativa da Igreja de assimilar a influência grega
que chegou à Europa antes da Renascença, acomodando a razão como uma das
maneiras de conhecer o mundo e, portanto, Deus. Mas, Lutero rejeitou como
uma mesclar de idolatria.
Na visão de Lutero, Deus estava tão acima do ser humano, era incognoscí-
vel, pela razão ou por qualquer outro método. Tentar “conhecer” ou “entender”
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Deus, por meio dos exercícios de razão, era como um besouro tentando “saber”
ou “entender” o ser humano, apenas mexendo suas antenas.
Lutero criticava também conceitos de Agostinho, dizendo que ele tomou os
ensinamentos de Paulo e os misturou com a cosmologia de Platão. Entendia que
o cristianismo de Agostinho era indelevelmente platônico: um universo onde o
Deus ideal permeia toda a existência com sua natureza manifesta.
Na mente de Lutero, Deus era fundamentalmente diferente do homem, como
os homens são dos vermes. As tentativas de diminuir o abismo que os separava,
fazendo com que os homens se dirigissem para Deus com razão ou boas obras,
era uma afronta ao próprio Deus.
Se o homem só tivesse fé na graça infinita de Deus, poderia ter uma chance
de salvação, pois não estava nas mãos do homem a propiciação, a quantidade
de boas obras ou de apaziguamento, uma vez que nada tão grosseiro como uma
indulgência poderia mudar a decisão de Deus sobre a salvação do homem.
Aqui firmam-se as soteriologias Luterana e também Reformada. Na verdade
o que queria Lutero era voltar a um tempo mais simples, quando as pessoas pra-
ticavam um cristianismo mais “autêntico”. Ele queria voltar antes de Tomás ter
trazido Aristóteles, mesmo antes de Agostinho e seu abraço indireto a Platão.
Lutero queria que o cristianismo voltasse para o Deus de Paulo, um Deus que
era infinitamente poderoso, o Deus dos judeus de quem Paulo havia emergido.
Era o cristianismo do Deus da cristandade, antes de a conversão de Constantino
ter corrompido a Igreja com os laços seculares do Império. E, o mais importante,
era o Deus de Jesus antes de se tornar corrompido pelos ensinamentos pagãos da
Grécia. Lutero era um buscador dos fundamentos originais da fé cristã.

Questões Teológicas Fundamentais


38 UNIDADE I

PROCESSOS TEOLÓGICOS SECUNDÁRIOS

De acordo com Robert Freeman (2013), uma vez que a compreensão de Lutero
sobre a natureza de Deus foi aceita, muitos dos ensinamentos secundários da
doutrina cristã também entraram em questão.
Os três pontos mais importantes destas questões secundárias foram as idéias
de Justificação, Predestinação e Escritura como a fonte da autoridade da fé.
Primeiro, de acordo com Lutero, a justificação (salvação) foi realizada somente
pelo ato da fé por parte do crente, e mesmo então somente pela graça de Deus.

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Não estava no controle do ser humano.
A autoridade de Lutero para esta doutrina foi, entre outras, o texto do Novo
Testamento, Efésios 2. 8-9: “Pela Graça sois salvos, por meio da fé. E isto não
vem de vós, é dom de Deus; Para que ninguém se glorie”. Em outras palavras, a
salvação não poderia ser alcançada pela doação de dinheiro à igreja, pela com-
pra de indulgências ou por qualquer outra boa obra. Em vez disso, somente a fé
do crente em Jesus Cristo serviria para torná-lo digno do céu. E, mesmo assim,
dependia de Deus se uma pessoa pecadora seria ou não admitida.
Esta doutrina da Salvação pela fé, como veio a ser conhecida, levou a uma
segunda importante implicação: a Predestinação. De acordo com Lutero, uma vez
que a salvação era inteiramente uma questão da vontade de Deus, o ser humano
não poderia fazer nada para efetuar seu próprio destino final. Estava inteiramente
nas mãos de Deus. Nota-se que isso é diferente da idéia grega de destino, em que os
homens desempenham um papel em seu próprio destino, e da idéia da Igreja de “boas
obras”, onde as doações de uma pessoa podem assegurar suas chances de salvação.
Aqui tudo é graça. A própria fé não é a causa, mas a resposta, caso contrário,
indiretamente, a justificação se dá por meio de obras. Não temos fé na fé, mas fé
na graça. Salvos pela graça, mediante a fé. Esta proclamação tornou-se um dos
pilares da teologia, tanto Luterana, quanto Reformada.
Finalmente, Lutero acreditava que a única fonte de conhecimento em Deus
era a própria Escritura, não havendo lugar para interpretação por papas ou
sacerdotes. Essa doutrina ficou conhecida como “Sola Scriptura” (as Escrituras
somente). Produziria massas de cristãos que lêem a Bíblia, o sacerdócio de todos
os crentes, um dos revolucionários princípios de Lutero.

GESTAÇÃO E HISTÓRIA
39

QUESTÕES TEOLÓGICAS E DIFUSÃO

Nos chama atenção a forma que Robert Freeman (2013) aponta questões teoló-
gicas que produziram ataques diretos, correspondentes à Igreja.
Primeiro, a justificação pela Fé questionou a eficácia dos Sacramentos. Se a
salvação de uma pessoa era apenas uma questão de fé (e da vontade de Deus),
então muitos dos ritos sagrados da igreja papal eram inúteis, simplesmente dis-
positivos místicos feitos pela Igreja para manter os paroquianos no ritual escravo.
Lutero reduziu os sacramentos de sete para dois, conservando apenas os
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que foram registrados: o batismo e a comunhão. Esta denúncia dos sacramen-


tos atacou diretamente o fundamento do poder da Igreja - sua capacidade de
melhorar as chances de um ser humano entrar no céu. Lutero colocou em jogo
o caráter sacramental da Igreja.
Em segundo lugar, a predestinação atacou o fundamento das finanças da
Igreja. Se o destino de uma pessoa fora determinado por Deus, não havia utilidade
em doar dinheiro à Igreja. Da mesma forma, boas obras, tais como o dinheiro de
doação para a construção de catedrais, eram igualmente inúteis para a salvação.
As indulgências, uma das maiores fontes de dinheiro da Igreja, foram positiva-
mente atingidos por esses motivos discutidos.
Finalmente, a insistência de Lutero em afirmar que a única fonte de conheci-
mento religioso veio das Escrituras atacou o papel da Igreja como intermediário
entre o ser humano e Deus. Isto era o que Lutero pretendia.
A Igreja havia sustentado que tinha acesso especial a Deus por meio do Papa,
designado como “o Vigário de Cristo na Terra”. A Igreja Católica interferia com
a comunhão direta de um ser humano com Deus e, portanto, era destrutiva a
pregação da Reforma quanto a esse quesito.
O fato, tanto dos Protestantes quanto dos reformadores, é que a teologia
ensinada minou as fundamentações do poder da Igreja, suas finanças e sua rei-
vindicação de legitimidade celestial – tirou a chave da mão do Papa.
Lutero tinha começado com a esperança de apenas reformar os ensinamentos
da Igreja a respeito das indulgências. Mas, antes que terminasse, sua Reforma se
transformou em um desafio de vida e morte para a própria existência da Igreja.
Começou uma revolução, e, mais do que isso, na verdade, uma nova civilização
é construída no mundo.
Questões Teológicas Fundamentais
40 UNIDADE I

O PROTESTO DIFUNDE E A IGREJA RESPONDE

É importante compreendermos que este processo foi o pano de fundo para a


construção de uma teologia Reformada. Para a Igreja Católica, havia apenas
uma interpretação do cristianismo, e a autoridade em todos os assuntos era
o Papa. Entretanto, no cristianismo de Lutero e dos Reformados, cada pes-
soa é um sacerdote.
Neste sentido, toda pessoa tem o direito de falar diretamente com Deus.
Como resultado, emergiram muitas vezes várias interpretações diferentes,

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que, dentro da liberdade cristã imprimida pela Reforma, fez surgir várias
correntes de fé. Voltaremos a esta questão mais adiante, por enquanto uma
breve apresentação.
A primeira das alternativas à visão proposta por Lutero foi a visão do teó-
logo suíço, Ulrich Zwinglio, de Zurique. Embora treinado como um sacerdote
católico como Lutero, Zwinglio era mais humanista do que Lutero. Robert
Freeman diz que Zwinglio mantinha uma correspondência com Erasmo de
Roterdã antes que Lutero escrevesse as noventa e cinco teses. Zwinglio negava
a autoridade do Papa em questões de interpretação literária, confiando, como
Lutero, apenas na Escrituras.
Também como Lutero, ele estava contra o que ele chamou de elementos
supersticiosos da prática da Igreja, incluindo Indulgências. Mas Zwinglio dife-
ria de Lutero em vários assuntos importantes, e as diferenças significavam uma
ruptura do Protestantismo, que acabaria se tornando sua marca.
Zwinglio diferia com Lutero sobre a questão da Predestinação, acredi-
tando que os homens tinham livre arbítrio com os quais poderiam afetar suas
chances de salvação.
Argumentava Zwinglio, que sem o livre arbítrio não haveria nenhum incen-
tivo para os homens fazerem escolhas morais corretas. Este era um ponto de
discordância teológica dentro da própria Igreja. Fica claro que isso vinha do pas-
sado humanista de Zwinglio.
Podemos, desde já, adiantar que tanto o pelagianismo quanto o armenia-
nismo têm uma forte influência do humanismo. No caso do armenianismo do
humanismo renascentista – a história registra isso.

GESTAÇÃO E HISTÓRIA
41

Zwingli também diferia com Lutero na questão comunhão. A Igreja Católica


ensinava e ensina que durante o ato de comunhão há a transubstanciação, ou
seja, o pão e o vinho são transformados em corpo e sangue de Cristo.
Lutero fez uma mudança nisso, acreditou que havia uma “Presença Real”
de Jesus na celebração do sacramento - consubstanciação. Zwinglio foi ainda
mais longe em dessacralizar a cerimônia, ensinando que ela era apenas um sím-
bolo do sacrifício de Cristo. Segundo Carlo Jeremias Klein (2005), em sua tese
de doutorado, esse modelo Zwingliniano é o utilizado pelas igrejas brasileiras.
Lutero acreditava que a igreja deveria estar sob a autoridade secular do
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Estado, para evitar as tentações e cismas entre seus membros. Zwinglio acreditava
que a sociedade deveria ser uma teocracia, que a igreja e o Estado deveriam ser
indistinguíveis, ou seja, a mesma instituição. Zwinglio morreu em 1531 levando
Zurique a uma batalha com os católicos suíços.
Se Zwinglio foi considerado o primeiro inovador depois de Lutero, certa-
mente o mais consequente e assertivo reformador foi João Calvino. Calvino era
um advogado francês que vivia na Suíça. Ele usou seu conhecimento da lei para
construir um modelo de governo da igreja que, em última instância, teria tanta
influência sobre o protestantismo quanto os ensinamentos teológicos de Lutero.
Sua grande obra, conhecida como Institutas da Religião Cristã, publicada pela
primeira vez em 1536, tornou-se um tratado teológico da tradição reformada.
Segundo Freeman (2013, p. 33),
Calvino foi mais longe do que o trabalho de Aquino, pois acabou usan-
do a teoria política para fundir a organização da igreja com princípios
bíblicos. Ele prescreveu regras e procedimentos de como administrar
uma igreja protestante, como manter a pureza das práticas, e como trei-
nar o clero, educar os leigos e muito mais.

Sua obra tornou-se o “manual de operação” para a maioria das igrejas protestan-
tes fundadas ao longo do século seguinte. Desta forma, enquanto a contribuição
de Lutero foi o ímpeto que iniciou o protestantismo, foi João Calvino que tor-
nou possível a sua propagação de maneira ampla.
A teologia de Calvino diferiu das teologias de Lutero e a de Zwinglio. Ele
acreditava que a Igreja e o Estado deveriam ser separados, mas coiguais, uma
aproximação que facilitava a adaptação a novas políticas.

Questões Teológicas Fundamentais


42 UNIDADE I

Sua ideia de comunhão da ceia estava entre o literalismo de Lutero e o sim-


bolismo de Zwinglio. Afirmava uma Presença Real que ocorre onde o praticante
tem fé genuína. O modelo de Calvino foi o que se espalhou mais amplamente
pelo norte da Europa e América.
Calvino acreditava que o sinal de uma pessoa que fora “escolhida” por
Deus era a conduta moral externa. Isso levou a manifestações ostentatórias de
moralidade, por exemplo, o austero e extremismo que caracterizaram os anti-
gos americanos - os peregrinos. Os huguenotes franceses, que se rebelaram
contra a monarquia católica no final do século XVI, eram calvinistas.

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O protestantismo se espalhou rapidamente e para longe, especialmente
pelos países do norte da Europa. Contudo, foi duramente resistida pela Igreja
Católica, cuja autoridade, riqueza e posição nos tribunais da Europa esta-
vam em risco. A Igreja montou uma defesa vigorosa, uma reforma parcial de
suas práticas e um ataque agressivo ao protestantismo. A defesa e a Reforma
passaram a ser conhecidas como Reforma Católica, enquanto o ataque foi
chamado de Contra-reforma.
A força mais importante na Reforma Católica foi a Concílio de Trento, con-
sagrado em 1545, na cidade italiana de Trento, para rever as doutrinas e práticas
da Igreja, a fim de torná-la mais resistente contra o apelo do protestantismo.
O Concílio era muito conservador, afirmando quase todas as práticas
católicas históricas, incluindo os sacramentos, indulgências, boas obras
e a veneração dos santos. Afirmou a teologia de Tomás de Aquino, com
sua visão otimista do homem, contra a de Agostinho e Lutero e sua visão
mais pessimista.

O MUNDO OCIDENTAL MODERNO

A Reforma Protestante foi revolucionária muito além do domínio imediato da


religião. Seus efeitos se espalharam na cultura, política, economia e no relacio-
namento do homem com o mundo físico.

GESTAÇÃO E HISTÓRIA
43

O individualismo surgiu como um ideal ocidental na Grécia, mas já tinha sido


perdido durante a Idade Média. O protestantismo, juntamente com o Humanismo
do Renascimento, reviveu a ideia. No protestantismo, o foco do conhecimento
religioso não é a Igreja, o papa ou a tradição, mas o indivíduo e sua própria com-
preensão das Escrituras.
A alma de uma pessoa não é salva por sacramentos, indulgências ou boas
obras, mas pela sua fé singular. Desse modo, o indivíduo tornou-se mais impor-
tante do que qualquer membro do clero; de fato, mais importante até mesmo que
nobres ou reis, pois o indivíduo tinha acesso à salvação eterna, já que os nobres
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e reis só recorreram ao mundo material.


Com o passar do tempo, a tensão entre a igreja e o estado tornou-se grande
nos séculos após Lutero. Protestantes, especialmente calvinistas, foram ensina-
dos a serem inovadores, trabalhadores, sóbrios e econômicos, o melhor para
construir visível evidência de sua dignidade nos olhos de Deus.
Então, como não tinham necessidade de “bons trabalhos” (já que a salva-
ção era preordenada por Deus), não tinham razão para dar dinheiro à Igreja. O
resultado foi o excesso de frutos de seu trabalho acumulado como “capital” em
seus negócios, tornando-se um poderoso fundamento de um novo ordenamento
econômico, que derrubou o feudalismo medieval.
Outro ponto foi o surgimento das ciências, fruto que surgiu indiretamente da
Reforma Protestante. O resultado foi que o mundo não era mais divino e incognos-
cível, mas sim mundano e cognoscível, precisamente porque não estava saturado
com Deus. E com os homens agora tendo o poder de descobrir as verdades por
si mesmos, eles descrevem sua dependência da autoridade para o conhecimento.
O resultado foi que, assim como os homens consultaram as Escrituras e usa-
ram a fé para entender o mundo espiritual, agora podiam entender o mundo físico.
Essas mudanças - um mundo mundano, distinto de Deus, e os homens capacita-
dos para descobrir as verdades por si mesmos - logo levaram à invenção da ciência.
Não é um acidente que as nações que abraçaram o protestantismo - Inglaterra,
Suécia, Alemanha, Holanda e Dinamarca - foram as que experimentaram o maior
desenvolvimento da ciência.

Questões Teológicas Fundamentais


44 UNIDADE I

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OUTRAS REFORMAS

O teólogo de Oxford, Alister McGrath, em sua obra Teologia Histórica chama


atenção para um esclarecimento dos termos. Ele afirma que
o termo ‘Reforma’ é usado com vários sentidos e pode ser proveitoso fa-
zer uma distinção entre eles. Sua definição pode ser constituída de quatro
Elementos: luteranismo; a igreja reformada, chamada com freqüência de
‘calvinismo’; a ‘Reforma radical’, conhecida até hoje como ‘anabatismo’; e
a ‘contra-Reforma’ ou Reforma católica (MCGRATH, 2007, p. 177).

Em seu sentido mais amplo, o termo Reforma é usado para se referir aos qua-
tro movimentos. Também é usado num sentido mais restrito, para indicar a
“Reforma protestante”, excluindo a Reforma católica. Nesse caso, refere-se aos
três movimentos protestantes observados anteriormente.
Em várias obras acadêmicas, porém, o termo “Reforma” é usado para se
referir àquilo que, por vezes, é chamado de “Reforma magisterial” ou “Reforma
principal”, em outras palavras, a Reforma associada às igrejas luterana e refor-
mada (inclusive o anglicanismo), excluindo assim, os anabatistas.
Convém explicar a designação incomum “Reforma magisterial”. Essa
expressão chama atenção para a maneira como os principais reformadores se
relacionavam com as autoridades seculares como os príncipes, magistrados e
conselhos municipais.
Esses três sentidos da palavra “Reforma” serão encontrados no decorrer das
leituras de obras que tratam da teologia cristã. A designação “Reforma magiste-
rial” indica os dois primeiros sentidos do termo (que abrange o luteranismo e a

GESTAÇÃO E HISTÓRIA
45

igreja reformada), considerados em conjunto, enquanto a designação “Reforma


radical” se refere ao terceiro (o anabatismo).
McGrath (2007, p. 177-182), comenta sobre o termo “protestante”:
esse termo é proveniente do resultado da Dieta de Speyer (fevereiro de
1529), que votou contra a tolerância ao luteranismo na Alemanha. Em
abril do mesmo ano, seis príncipes e catorze cidades alemãs protesta-
ram contra essa medida opressora, defendendo a liberdade de consci-
ência e o direito das minorias religiosas.

O termo “protestante” vem desse protesto. Portanto, não é estritamente correto


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aplicar a designação “protestante” a indivíduos antes de abril de 1529 ou falar


de acontecimentos anteriores a essa data como parte da “Reforma protestante”.
O termo “evangélico” aparece na literatura como referência às facções refor-
madoras em Wittenberg e outros lugares (por exemplo, na França e na Suíça)
antes dessa data.

A REFORMA LUTERANA

A Reforma luterana é associada especificamente aos territórios alemães e à influ-


ência pessoal profunda de um indivíduo carismático - Martinho Lutero.
O reformador alemão se concentrou em tratar da doutrina da justificação,
que constituía o cerne do seu pensamento religioso. A Reforma luterana foi, a
princípio, um movimento acadêmico que se dedicou, acima de tudo, a reformar
o ensino de teologia na Universidade de Wittenberg.
A universidade não era uma instituição importante, e as reformas introduzi-
das por Lutero e seus colegas dentro do corpo docente não atraíram muita atenção.
Foram as atividades pessoais de Lutero - como a publicação das Noventa e Cinco
Teses (em 31 de outubro de 1517) - que atraíram interesse considerável e chamaram
a atenção de um público mais amplo para as idéias que circulavam em Wittenberg.
As Noventa e Cinco Teses representavam um protesto contra a prática da
venda de indulgências, visando levantar fundos para a reconstrução da basílica de
São Pedro em Roma. A teoria por trás da venda de indulgências é confusa, mas,
ao que parece, se baseava na idéia de gratidão do pecador pelo perdão de pecados.

Outras Reformas
46 UNIDADE I

Ao receberem a garantia de que seus pecados haviam sido perdoados pela


igreja agindo em nome de Cristo, os pecadores absolvidos teriam o desejo natural
de expressar sua gratidão de maneira prática. Aos poucos, a doação de dinheiro
para instituições de caridade e diretamente para fundos da igreja passou a ser
vista como a forma normal de expressar a apreciação por esse perdão.
É preciso observar que isso não era visto como a compra de perdão pelo
pecador. A oferta em dinheiro era resultante do perdão, e não uma condição
para ele. Mas, no tempo de Lutero, esse costume se encontrava distorcido e havia
adquirido uma conotação completamente equivocada. Ao que parece, as pes-

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soas acreditavam que as indulgências eram uma forma rápida e fácil de comprar
o perdão dos pecados.
Lutero protestou. O perdão era uma questão de mudança de relacionamento
entre o pecador e Deus, e não uma oportunidade de especulação financeira. A
idéia do perdão pela graça havia se corrompido na idéia de compra do favor de
Deus. Estritamente falando, a reforma luterana só teve início em 1522, quando
Lutero voltou para Wittenberg depois de seu isolamento forçado em Wartburg.
Lutero havia sido condenado por “falsidade doutrinária” pela Dieta de Worms
em 1521. Temendo que ele corresse perigo de morte, certos defensores influen-
tes do reformador transferiram-no, em segredo, para o castelo conhecido como
Wartburg até que a ameaça à sua segurança tivesse cessado. Durante essa ausên-
cia, Andréas Bodenstein von Karlstadt, um dos colegas acadêmicos de Lutero
em Wittenberg, começou um programa de reforma nessa instituição que pare-
cia ter se degenerado a um estado caótico.
Na verdade, o programa de reforma de Lutero foi muito mais conservador
do que aquele associado a seus colegas reformadores como Zwinglio. Ademais,
ficou muito aquém do sucesso esperado. O movimento permaneceu obstinada-
mente ligado aos territórios alemães - com exceção da Escandinávia - e nunca
chegou a conquistar os centros de poder estrangeiros que pareciam estar tão
prontos para aderir às suas idéias.
A Reforma calvinista, responsável pela constituição das igrejas reforma-
das (como a igreja presbiteriana), se encontrou em acontecimentos ocorridos
dentro da Confederação Suíça. Enquanto a Reforma luterana teve suas origens
num contexto acadêmico, a igreja reformada deve suas origens em uma série de

GESTAÇÃO E HISTÓRIA
47

tentativas de reformar a moral e o culto eclesiástico (mas não necessariamente


sua doutrina) de acordo com um padrão mais bíblico.
Segundo McGrath (2007), é preciso enfatizar que, apesar de Calvino ter dado
a esse estilo de Reforma a sua configuração definitiva, suas origens remontam
a reformadores mais antigos como Zwinglio e Heinrich Bullinger, sediados em
Zurique, a principal cidade da Suíça.
Apesar de a maioria dos primeiros teólogos reformados, como Zwinglio,
serem provenientes de um contexto acadêmico, seus programas de reforma não
foram de natureza acadêmica. Antes, foram dirigidos à igreja em cidades suíças
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como Zurique, Berna e Basiléia.


Enquanto Lutero estava convicto de que a doutrina da justificação era de
importância central para o seu programa de reforma social e religiosa, os pri-
meiros pensadores reformados demonstraram relativamente pouco interesse na
doutrina em geral, quanto mais em uma doutrina específica. Seu programa de
reforma foi institucional, social e ético, semelhante em vários sentidos às reivin-
dicações de reforma provenientes do movimento humanista.
Costuma-se considerar que a consolidação da igreja reformada teve início
depois da morte de Zwinglio em combate (1531) com a estabilização da Reforma
de Zurique sob a coordenação de seu sucessor, Heinrich Bullinger, e que se encer-
rou com o surgimento de Genebra como seu centro de poder e de João Calvino
como seu principal porta-voz na década de 1550.
A mudança gradativa de poder dentro da igreja reformada (inicialmente
de Zurique para Berna, depois de Berna para Genebra) ocorreu no período de
1520 a 1560, estabelecendo, por fim, a predominância da cidade de Genebra, de
seu sistema político (republicanismo) e de seus pensadores religiosos (inicial-
mente Calvino e, depois de sua morte, Teodoro Beza) dentro da igreja reformada.
Esse processo foi consolidado pela fundação da Academia de Genebra (em
1559), uma instituição voltada para o treinamento de pastores reformados. O
termo “calvinismo” costuma ser usado para se referir às idéias religiosas da igreja
reformada. Apesar de ainda ser amplamente empregado na literatura relacionada
à Reforma, trata-se de uma prática desestimulada nos dias atuais. “Está cada vez
mais claro que a teologia reformada do século 16 se valeu de outras fontes além
das idéias do próprio Calvino” (MACGRATH, 2007, p. 182).

Outras Reformas
48 UNIDADE I

Chamar o pensamento reformado do final do século XVI e do século XVII


de “calvinista” sugere que era,essencialmente baseado no pensamento de Calvino
e o consenso atual é de que as idéias de Calvino foram modificadas sutilmente
por seus sucessores.
Atualmente, o termo “reformado” é considerado preferível para se referir às
igrejas (especialmente na Suíça, Países Baixos e Alemanha) ou aos pensadores
religiosos (como Teodoro Beza, William Perkins e John Owen) que se basea-
ram no livro texto religioso célebre de Calvino As Institutas da Religião Cristã,
ou ainda, para os documentos eclesiásticos (como o conhecido Catecismo de

Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.
Heidelberg) com base nessa obra.
Das três alas que constituíram a Reforma, protestante-luterana, reformada
ou calvinista e anabatista, a ala reformada se mostrou particularmente impor-
tante para os países de língua inglesa.
O puritanismo, que ocupa uma posição preeminente na história in-
glesa do século 17 e é fundamental para as idéias religiosas e políticas
da Nova Inglaterra no século 17 e depois, é uma forma específica de
Cristianismo reformado (MACGRATH, 2007, p. 181).

A fim de entender a história religiosa e política da Nova Inglaterra ou as idéias


de escritores como Jonathan Edwards, por exemplo, é preciso compreender pelo
menos alguns dos conceitos teológicos e parte da visão de mundo religiosa do
puritanismo subjacente às suas atitudes sociais e políticas.

A REFORMA RADICAL (ANABATISMO)

MacGrath, ainda trata o que chamou de Reforma radical. O termo “anabatista”


significa literalmente “aquele que rebatiza” e se refere àquele que foi, possivel-
mente, o aspecto mais distintivo da prática anabatista: a insistência de que somente
aqueles que haviam feito uma confissão pessoal e pública de fé podiam ser bati-
zados (MCGRATH, 2007, p. 182).
Ao que parece, os anabatistas surgiram ao redor de Zurique como resultado
das reformas de Zwinglio nesta cidade, no início de 1520. O grupo se formou
em torno de indivíduos (dentre os quais podemos citar Conrad Grebel) que

GESTAÇÃO E HISTÓRIA
49

argumentavam que Zwinglio não estava sendo fiel aos seus próprios princípios
reformadores. Ele pregava uma coisa e praticava outra.
Apesar de Zwinglio professar fidelidade ao princípio de sola scriptura “somente
pelas Escrituras”, Grebel argumentava que ele mantinha várias práticas que não
eram sancionadas nem ordenadas pelas Escrituras - inclusive a do batismo de
crianças, o vínculo estreito entre a igreja e a magistratura e a participação dos
cristãos nas guerras.
O princípio de sola scriptura foi radicalizado por pensadores como Grebel
de modo a definir que os cristãos reformados só deviam crer e praticar aquilo
Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.

que era ensinado explicitamente nas Escrituras. Assustado com essa reação,
Zwinglio a considerou um movimento de desestabilização que visava separar a
igreja reformada de Zurique de suas raízes históricas e romper sua ligação com
a tradição cristã do passado.
Vários elementos em comum podem ser observados dentro das diver-
sas linhas do movimento anabatista: uma desconfiança geral das autoridades
externas; a rejeição do batismo de crianças em favor do batismo de cristãos
adultos; a posse comum de propriedades; e uma ênfase sobre o pacifismo e
não-resistência.
Com relação a esse terceiro ponto: em 1527, os governos de Zurique, Berna
e Saint Gallen, acusaram os anabatistas de crer que “nenhum cristão pode pagar
ou cobrar juros ou honorários sobre uma soma de capital; que todos os bens tem-
porais são livres e comuns e que todos têm pleno direito de propriedade sobre
esses bens” (MCGRATH, 2014, p. 28). Por esse motivo, o anabatismo é cha-
mado Reforma radical.

Diversos contextos geraram a Reforma no Século XVI. A teologia tem um


locus social, político, econômico e religioso. Em sua opinião, qual foi o fator
mais determinante que deu origem à Reforma?

Outras Reformas
50 UNIDADE I

A REFORMA CATÓLICA

Esse termo também foi usado para se referir ao reavivamento dentro do catoli-
cismo no período posterior ao início do Concílio de Trento (1545). Nas obras
acadêmicas mais antigas, o movimento é chamado com frequência de “Contra-
Reforma”. Como o termo sugere, a igreja católica romana desenvolveu meios de
combater a Reforma protestante visando limitar sua influência.
No entanto, está cada vez mais claro que, em parte, a igreja católica romana
se opôs à Reforma reformando-se também internamente a fim de remover aquilo

Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.
que justificava as críticas protestantes.
Nesse sentido, o movimento foi uma reforma da igreja católica e, ao mesmo
tempo, uma reação à Reforma protestante. As mesmas preocupações por trás da
Reforma protestante no norte da Europa se manifestaram na renovação da igreja
católica, especialmente na Espanha e Itália.
O Concílio de Trento, o elemento principal da Reforma católica, esclare-
ceu os ensinamentos católicos acerca de várias questões confusas e introduziu
mudanças há muito necessárias na conduta do clero, disciplina eclesiástica, edu-
cação religiosa e atividade missionária.
Esse movimento dentro da igreja foi fortemente estimulado pela reforma
de várias das ordens religiosas mais antigas e pela fundação de outras ordens
(como a dos jesuítas).
A ecologia teológica desde a Reforma é digna de muito mais estudo. Aqui,
apenas pontuamos para que você veja a imensa riqueza de discussão teológica
que surge em um dos mais criativos e controversos períodos da história humana.
Para que você possa compreender de forma desafiadora que toda teologia
é interpretação, ou seja, uma tarefa hermenêutica, avancemos em nosso curso
certos de que o pensamento da reforma é para nós hoje um permanente desa-
fio de constante reforma.

GESTAÇÃO E HISTÓRIA
51

Motivos que conduziram à Reforma luterana


- O insucesso dos concílios reformadores (Constança, Basileia, Florença,
Latrão) no que diz respeito à «reforma da Igreja na sua cabeça e nos seus
membros»;
- A substituição de uma economia natural por uma economia monetária; a
descoberta da imprensa, o desejo de uma formação cultural à escala univer-
sal e de maior conhecimento da Bíblia;
Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.

- O centralismo absolutista da Cúria, a sua vida dissoluta, a sua política finan-


ceira desenfreada e a sua resistência visceral a qualquer reforma.
- Por fim, as indulgências para a reconstrução da Basílica de S. Pedro, o que
foi visto, na Alemanha, como o cúmulo da exploração curial.
- Uma crise profunda da teologia, da Igreja e da sociedade medievais e uma
incapacidade total de solução.
Lutero foi capaz de canalizar, através da sua intuição, e de uma forma inspi-
rada, a ânsia religiosa do fim da Idade Média. Sem Martinho Lutero não teria
sido possível a Reforma na Alemanha!
Fonte: Kung (1999, p. 125-126).

Ao terminarmos essa unidade, fica um desafio permanente a você: que o tema


da Reforma e seus contextos sejam desafiadores a você, caro(a) aluno(a), pois
novas perguntas devem surgir em busca de novas vertentes.

Outras Reformas
52 UNIDADE I

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Na verdade, é impossível fornecer, em espaço limitado, a grandeza dessa gênese


da Reforma Protestante. Também é impossível para nós pensarmos numa histó-
ria da teologia da reforma sem nos adentrar pelos parâmetros que construíram
o transfundo cultural dessa nova forma de ver as Escrituras, a fé e a Revelação
de Deus em Jesus Cristo.
A teologia hoje precisa desses fundamentos da fé. Deve, por um lado, ser
teologia reprodutiva, isto é, uma teologia que dialogue com o passado; por outro

Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.
lado, no entanto, precisa ser teologia produtiva, interpretativa diante de novos
contextos, respondendo às questões de seu tempo.
Fica claro para nós que Lutero não procurou reduzir o papel da razão na
religião, substituindo-a pela fé, mas, em vez disso, acabou ajudando a levantar
a razão à posição mais elevada na ciência, de tal forma que causou uma verda-
deira revolução teológica, que começou pela Europa e atingiu o mundo inteiro,
e não obstante a isso, já tem atravessado cinco séculos.
Ele queria purificar o cristianismo do humanismo pagão do renascimento e,
por essa razão, fez do indivíduo o ator principal do mundo ocidental. Ele deto-
nou o materialismo grosseiro do Papa e, ainda que inadvertidamente, acelerou
a ascensão do progresso econômico do mundo – é o que em teoria complexa
chama-se ecologia da ação. Nunca se sabe como uma ação funciona em sua
recursividade. Faz-se uma coisa e o resultado é outro.
A influência dos reformadores sobre a fundação da América é particularmente
pungente não apenas do ponto de vista da religião, mas da própria formatação
cultural de uma civilização, inclusive o estrito individualismo competitivo visto.
Quando aquelas Noventa e Cinco Teses foram pregadas na porta da Catedral
de Wittenberg, uma nova prática foi afirmada - a liberdade de expressão. Com
a publicação da Bíblia em alemão foi promulgada para todos a liberdade cristã.
O mundo moderno nasceu.
Esses pressupostos colocados tornam-se fundamentais para vermos na pró-
xima unidade o Ethos (o jeito de ser) da teologia reformada.

GESTAÇÃO E HISTÓRIA
53

1. A reforma teve a ver com um homem que considerava suas instruções autori-
zadas. Ele declarou como doutrina cristã que não se exigia nada além de uma
oferta em dinheiro para se obter a indulgência para os mortos, sem que hou-
vesse qualquer necessidade de contrição ou confissão. Também ensinava, de
acordo com a opinião então vigente, que uma indulgência podia ser aplicada a
qualquer alma com efeito infalível. Partindo deste princípio, não há dúvida de
que sua doutrina era virtualmente aquela do drástico provérbio: “Logo que o
dinheiro soa, a alma do fogo do purgatório voa”. A partir da afirmação anterior,
é correto o que se afirma em:
a) O texto está a falar de Lutero.
b) O texto está a falar do Papa.
c) O texto está a falar de Tetzel.
d) O texto está a falar de Zwinglio.
e) O texto está a falar dos príncipes alemães.
2. Notadamente, talvez devido ao que se contava das hipérboles de tal vendedor,
foi proibido a pregação da indulgência em 1517 em território germânico. No
entanto, tal pregador aproximou-se tanto das fronteiras que o povo de Wit-
tenberg cruzava os limites para obter a indulgência. Vários compradores leva-
ram essas “cartas papais” a Martinho Lutero, professor de teologia na universi-
dade, e pediram-lhe para atestar sua eficácia. Ele recusou. A recusa chegou aos
ouvidos do enviado do papa, que denunciou Lutero. O grande erro deles foi ter
subestimado a combatividade do professor, pois Lutero reagiu. O que ele fez?
a) Lutero compôs rapidamente em grego as 105 teses, que intitulou Disputa
para o Esclarecimento da Virtude das Indulgências.
b) Lutero rasgou rapidamente em todas as 95 teses, que intitulava de Disputa
para o Esclarecimento da Virtude das Indulgências.
c) Lutero aceitou rapidamente todas as cartas papais sobre as Virtudes das In-
dulgências.
d) Lutero compôs vagarosamente em as teses, esperando no que ia dar esse
assunto.
e) Lutero compôs rapidamente em latim as 95 teses, que intitulou Disputa para
o Esclarecimento da Virtude das Indulgências.
54

3. Lutero escreveu o que seria um dos documentos mais importantes da história


do mundo ocidental. Aconteceu no dia que antecede o dia de todos os San-
tos, em 1517, Lutero pregou o documento à porta da igreja de Wittenberg, na
Alemanha, convidando-o a debater a questão com ele, pessoalmente ou por
carta. Lutero apresentou suas objeções às indulgências. Primeiro, Lutero mos-
tra, teologicamente, o desrespeito à fé. Escreve: “As Indulgências são as redes
com as quais a Igreja pesca para os homens”. Qual foi este documento escrito
por Lutero?
a) As confissões de Augsburg.
b) As noventa e cinco teses.
c) As novenas recriadas para combate das heresias.
d) As idéias inovadoras do renascimento.
e) A defesa dos príncipes alemães contra o Papa.
4. Analise as assertivas a seguir:
I. Lutero procurou reduzir o papel da razão na religião, substituindo-a pela fé,
mas, por isso, acabou eliminando a razão à posição mais baixa na ciência.
II. Ele queria purificar o cristianismo do humanismo pagão do renascimento e,
por essa razão, fez do indivíduo o ator principal do mundo ocidental.
III. A influência dos reformadores sobre a fundação da América é particular-
mente pungente.
IV. A publicação da Bíblia em alemão foi promulgada para a liberdade cristã.
a) Apenas I e II estão corretas.
b) Apenas II e III estão corretas.
c) Apenas I está correta.
d) Apenas II, III e IV estão corretas.
e) Nenhuma das alternativas está correta.
5. Descreva sobre os fatores de contexto que propiciaram a gênese da Reforma
protestante.
55

Reforma Protestante
No início do século XVI, muito tempo depois que a Europa começara a ficar descontente
com a Igreja Católica, Martinho Lutero fomentou a Reforma Protestante. Professor e pre-
gador na Alemanha, Lutero estudou a fundo os textos religiosos. Sua primeira divergên-
cia com a Igreja Católica dizia respeito à prática da indulgência, que consistia na tradição
católica de perdoar os pecados. Nessa época, a absolvição estava à venda. Em troca de
dinheiro, a sentença do doador no purgatório era reduzida. Lutero contrapôs-se à noção
da compra da salvação, por considerá-Ia extremamente prejudicial à fé.
Em 1517, afixou suas 95 teses na porta da igreja do Castelo de Wittenberg, desafiando
a Igreja Católica e a legitimidade do papa, assim como a prática das indulgências. Para
Lutero, a Igreja perdera de vista suas doutrinas originais, aquelas que provinham direta-
mente do texto bíblico, e criara uma separação desnecessária entre clero e fiéis.
Ao afixar as 95 teses, desencadeou um grande debate, que logo alcançou o restante da
Alemanha, a Suíça, a Áustria, a Inglaterra e a Escócia. Enquanto a discussão se dissemina-
va, os escritos de João Calvino, entre outros, alimentavam ainda mais a dissensão entre
o populacho europeu.
Quando as várias crenças dos reformadores começaram a coincidir, com o passar do
tempo, a religião protestante tomou forma. No cerne dessa fé reformista estava a cren-
ça de que a única autoridade religiosa era a própria Bíblia, e não o papa. Essa crença
revolucionava a estrutura da Igreja e enfatizava que os indivíduos podiam se relacionar
diretamente com Deus sem a mediação dos padres.
Os protestantes acabaram por se dividir em várias ramificações, como os luteranos, os
calvinistas e os anabatistas, enquanto os católicos lançavam a Contra-Reforma, tornan-
do mais conservadores.
FATOS ADICIONAIS
1. Quando tinha 22 anos, Martinho Lutero estava voltando para a escola durante uma tempes-
tade. Tendo um raio caído perto dele, Lutero exclamou: “Socorro, santa Ana! Vou tornar-me um
monge”. Ele sobreviveu e cumpriu a promessa, trocando a escola de direito por um mosteiro.
2. A Reforma Protestante viu-se ainda mais fortalecida quando o rei da Inglaterra, Henrique
VIII, rompeu com a Igreja Católica, em 1529. O rei auto proclamou-se chefe da Igreja da
Inglaterra, o que lhe permitiu se divorciar de sua esposa, a rainha Catarina, algo que o papa
não autorizaria.
3. Apesar de não existirem evidências das 95 teses originais, muitos especialistas acreditam
que a lendária afixação na porta da igreja não é tão inverossímil. Naquela época, as portas
da igreja universidade eram utilizadas para a divulgação de notícias, como os quadros de
avisos de hoje.

Fonte: Kidder (2008).


MATERIAL COMPLEMENTAR

Lutero
Ano: 2003
Sinopse: Lutero é um filme alemão, produzido em 2003, dirigido por Eric Till.
No papel principal, Joseph Fiennes. O filme cobre a vida do grande reformador
Martinho Lutero(1483–1546), desde que ele tornou-se um monge até a
Confissão de Augsburgo (1530).
Comentário: o filme é emocionante e dramático. Levará você a entender o
que Lutero fez pela igreja Cristã e quão libertador deve ter sido sair de debaixo
da tirania de um poder imperial religioso daquela época. Além disso, é muito
revigorante ver um filme em que a Bíblia e o amor por Cristo são mostrados sem ironia ou humor.
57
REFERÊNCIAS

DURANT, W. A Reforma. Rio de Janeiro: Record, 1957 (História da Civilização; v. 6).


FREEMAN, R. The Protestant Reformation. Palo Alto: Kendal Lane Publishers, 2013.
MCGRATH, A. Teologia Histórica. São Paulo: Cultura Cristã, 2007.
KIDDER, David S.; OPPENHEIM, Noah. O livro do Sabe Tudo. Campinas: Verus, 2008.
KUNG, H. Teologia a Caminho: Fundamentação para o Diálogo Ecumênico. São
Paulo: Paulinas, 1999.
GABARITO

1. C.
2. E.
3. B.
4. D.
5. Contexto econômico, político e religioso. O aluno deve desenvolver esses fatores
contexto que propiciaram e deram as formatações para a ação dos reformadores
- como um tempo certo, na hora e pessoas certas.
Professor PhD. Silas Barbosa Dias

HISTÓRIA E ETHOS

II
UNIDADE
REFORMADOS

Objetivos de Aprendizagem
■ Compreender a grandeza epistemológica da tradição reformada.
■ Resumir em vários tópicos as construções da teologia reformada.
■ Entender o propósito de Deus para o viver cristão desde a reforma.
■ Aplicar os vários temas à vida humana e à sociedade.

Plano de Estudo
A seguir, apresentam-se os tópicos que você estudará nesta unidade:
■ A Majestade da Glória de Deus versus a idolatria
■ Propósitos Divinos na História e Ética de Santidade
■ Pregação e Pastoral
■ Do Conhecimento de Deus e da Valorização Humana
■ Da Realeza de Cristo e da Oração
61

INTRODUÇÃO

É simplesmente maravilhoso esse território da teologia reformada, a qual tem


uma epistemologia e uma hermenêutica própria, que redirecionam a vida e a
integra ao propósito supremo do Criador.
Se pudéssemos e quisermos ser bem estritos, diríamos que toda teologia
reformada pode ser colocada em três máximas: Soberania de Deus, Realeza de
Cristo e Valorização da dignidade humana.
Partindo destas três máximas, iremos direcioná-las em nove pontos, lan-
Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.

çando mão de nove princípios citados por John Leith, em sua obra Tradição
Reformada, a partir das quais dialogamos com outros autores.
Tenho convicção de que encontraremos diferenças e até contradições entre
autores, mas a tradição reformada é como uma casa com pessoas diferentes. Sendo
assim, podemos notar princípios fundamentais que perpassam todas as correntes
teológicas, e estas formam uma identidade mais confiável desta epistemologia.
Pelo menos nove ênfases têm dado forma de maneira significativa, ao que
conhecemos como o estilo reformado de ser cristão. A maioria dos livros sobre
a Reforma, até meados do Século XX, apresentam-se apologéticos, ora em rela-
ção ao catolicismo, ora em relação aos reformadores.
O que faremos nessa aula, é apontar princípios que foram construídos pela
tradição reformada e que, podem e devem ser utilizados por todo o cristianismo.
Entendemos que a Tradição Reformada tem uma inequívoca contribuição a dar
á humanidade. Redescobrir seus princípios superam apenas os aspectos religio-
sos, chegam à vida em todas as suas vertentes.
O que faremos nessa aula, é apontar pelo menos cinco tópicos para clarifi-
car as dimensões da visão reformada, em suas vertentes do que podemos chamar
de um “Ethos” reformado.
Falar sobre o jeito de ser da Teologia Reformada, é falar da majestade da
Glória de Deus contra toda e qualquer idolatria; consiste em enfatizar os pro-
pósitos Divinos na história; priorizar a pregação numa pastoral viva com um
púlpito fiel; e, finalmente com a maior de todas as verdades, a realeza de Jesus e
a vida de oração. É isto que estudaremos agora.

Introdução
62 UNIDADE II

A MAJESTADE DA GLÓRIA DE DEUS VERSUS


A IDOLATRIA

A majestade de Deus é o centro de


onde emanam todas as demais dou-
trinas de/da tradição reformada. Tudo
para a glória e o louvor de Deus. NEle
nos movemos e nEle existimos, tudo
foi Criado em Cristo e para a Cristo.

Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.
Soli Deo Gloria é o grande lema de
todos os teólogos reformados há quase
cinco séculos.
A tradição reformada tem sido
sempre identificada com a soberania
de Deus e a predestinação. Embora
tenham fracassado todos os esforços
para se definir, no calvinismo, uma
doutrina central da qual as outras
seriam deduzidas, pode-se levantar a
hipótese de que o tema fundamental da teologia calvinista, que serve como um elo
de ligação para todos os outros, é a convicção de que cada ser humano se defronta
a todo instante como o Deus vivo. O fim principal do ser humano é glorificá-lo.
Dizer que a visão de Deus é o bem maior do ser humano é fazer que a finali-
dade principal da vida seja a contemplação, ainda que preparada pela atividade e
acompanhada da ação. Afirmar que a soberania de Deus está em primeiro lugar
significa tornar a atividade obediente superior à contemplação, embora muita
teoria seja necessária à ação. A glória de Deus e seus propósitos no mundo são
mais importantes do que a salvação da alma de alguém. A salvação pessoal pode
se tornar um ato muito egoísta.
De acordo com o calvinismo, os seres humanos são religiosos não para a
satisfação de necessidades ou para obtenção de sentido na vida, mas porque
Deus criou e os chamou para servi-lo. Karl Barth (ANO apud LEITH, 1997, p.
112) assim se expressou:

HISTÓRIA E ETHOS REFORMADOS


63

parece-me que, se quisermos conservar as ordens do Novo Testamento,


têm de dizer: Deus ordenava e escolhia as pessoas para seu trabalho
temporal e eterno, e, consequentemente, para a vida eterna. Não se po-
dia perder a noção de serviço. No Novo Testamento, ninguém vinha à
Igreja simplesmente para ser salvo e feliz, mas para ter o privilégio de
servir ao Senhor.

Esta ênfase em Deus como criador e Senhor dá profundidade à vida. Ele pensa
cada ser humano antes de chamá-lo à existência e dar-lhe sua individualidade,
identidade e nome. Nossa existência está fundamentada na eternidade, e sua fina-
lidade é a glória de Deus. Por isso, o cristão vive na segura confiança de que Deus
Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.

é maior do que todos os batalhões da terra e de que a vida está subordinada a ele.
Deus é o criador dos céus e da terra, o qual sustenta todas as coisas e as governa
segundo o seu querer. Deus é energia, força e vida. Ele é propósito, intenção e
vontade. É o Senhor Deus, que “vem cheio de força”, “que mediu a água do mar
com as conchas das mãos e o céu com os dedos,” e diante do qual “as nações do
mundo não são nada e não têm nenhum valor”, (Isaías 40.10,12,17). Deus atua
poderosamente na história para realizar seu desígnio. Para os reformados o fim
principal do ser humano é glorificar a Deus.
Um dos teólogos reformados, H. R. Niebuhr, apresenta as características
deste tema contrastando-o com outro que tem grande influência na comunidade
cristã, ou seja, a visão de Deus. Tomás de Aquino fez uma declaração clássica a
respeito dessa maneira de entender a vida cristã. Com quem concluímos que a
felicidade última do ser humano consiste somente na contemplação de Deus, ou
seja, em viver em Seu propósito.
Niebuhr observou que o atributo divino que impressionou Calvino não foi a
perfeição eterna da bondade, beleza e verdade, mas a vigorosa realidade e poder
de Deus. Dizer que a visão de Deus é o bem maior do ser humano é fazer com
que a finalidade principal da vida seja a contemplação, ainda que preparada pela
atividade e acompanhada da ação.
Afirmar que a soberania de Deus está em primeiro lugar significa tornar a
atividade obediente superior à contemplação. Embora muita teoria seja neces-
sária à ação. O princípio da visão sugere que a perfeição do objeto visto é amada
acima de tudo; o princípio da soberania indica que a realidade e poder do ser
que exige obediência são postos em primeiro lugar.

A Majestade da Glória de Deus Versus a Idolatria


64 UNIDADE II

O primeiro termo também pode ser interpretado no sentido de que a iniciativa


está com aquele que busca ver, enquanto que o objeto é entendido de forma passiva.
A crítica que a tradição faz ao catolicismo, e hoje podemos fazer a um grande
número de igrejas ditas evangélicas, é que têm se inclinado sempre para um
humanismo cristão, que acredita que a razão é quase suficiente, ainda que não
o bastante, para penetrar a verdade divina.
O termo “reino de Deus” põe toda a ênfase na iniciativa divina. A distin-
ção não deve ser exagerada a ponto de obscurecer a concordância fundamental
entre a visão e o reino no cristianismo. Quer digamos “Visio dei” ou “regnurn

Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.
dei”, “Deus em primeiro lugar”, na frase de Thomas More. Se o fim ou o começo
for destacado, Deus permanece tanto no fim como no começo.
A própria vida de Calvino ilustra este ponto. Ele achava que estava mais
preparado, pela sua natureza e inclinação, para ser um “scholar” (significa um
estudioso exemplar). Todavia, ele se dedicou totalmente à tarefa da organização
da igreja, aos desafios da política civil e eclesiástica e ao trabalho pastoral não
somente de Genebra, mas também de todo o protestantismo reformado.
Quando Farel invocou o julgamento de Deus e Bucer fez com que se lem-
brasse de Jonas, Calvino não hesitou em aceitar responsabilidades desagradáveis.
Sua carta a Farel, quando retomou a Genebra em 1.541, revela as dimensões pes-
soais de sua teologia:
No que se refere à minha pretendida maneira de proceder, sinto que, se
tivesse uma escolha à minha disposição, nada me seria menos agradável
do que seguir seu conselho. Mas quando me lembro que não pertenço
a mim mesmo, eu ofereço meu coração, apresentando-o como um sa-
crifício ao Senhor. Não existe, pois, motivo para sua apreensão de que
conseguirá somente ouvir palavras agradáveis. Nossos amigos estão de-
terminados e fazem promessas sinceras. De minha parte, afirmo que não
tenho outro desejo senão o de que, abandonando qualquer consideração
pessoal, eles possam buscar somente o que é mais importante para a gló-
ria de Deus e o progresso da Igreja. Embora não seja eu muito inventivo,
não procuro pretextos para fugir habilmente, de modo a me desculpar
frente às pessoas e mostrar que não tenho culpa. Estou bem consciente,
contudo, que tenho de me defrontar com Deus, diante do qual astuciosas
justificações não podem ser sustentadas. Por isso eu submeto minha von-
tade e meus sentimentos, vencido e subjugado, à obediência de Deus”,
(Op.cit. por John Leith, Tradição Reformada, p. 11-113)

HISTÓRIA E ETHOS REFORMADOS


65

A ênfase na majestade e senhorio de Deus sempre tem sido um tema da teolo-


gia reformada, mas com variações. O crescente conhecimento e consciência do
ambiente físico da existência humana, bem como as mudanças nas formas da
experiência cristã, produzem modificações teológicas.
No tempo do Iluminismo e do Grande Despertamento espiritual (aviva-
mento), Jonathan Edwards se expressou a respeito da maneira pela qual a graça
de Deus o capturou de um modo diferente do de Calvino.
Ele deu uma ênfase no fato de que pensar em Deus como criador dá sen-
tido à vida do ser humano. Não somos vítimas da história universal, somos
Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.

vidas sob a realidade da vida de Deus e em Deus, viver na vontade de Deus é


o núcleo da vida.Ele pensa cada ser humano antes de chamá-Io à existência,
somos uma idéia de Deus.
Eis a grande e maior verdade crida e pregada pela tradição reformada: Nossa
existência está fundamentada na eternidade e sua finalidade é a glória de
Deus. Por isso, o cristão vive na segura confiança de que Deus é maior do que
todos os batalhões da terra e de que a vida está subordinada a ele.
No Livro de Oração Comum, Calvino expressa a dialética da vida cristã, a
realidade complexa que ele entendia: “No tempo da prosperidade, enche nosso
coração de gratidão e, nos dias tenebrosos, não fracasse a nossa confiança em
ti”, (Op. Cit. J. Leith, A Tradição, p. 114.).

CONTRA A IDOLATRIA

Para os Reformados, somente Deus é suficientemente grande para receber lealdade


máxima e total de pessoas, sem destruir o que é realmente humano. Qualquer
outra lealdade, quando se torna absoluta, é abortiva e destrutiva.
Um dos pontos que distinguia Calvino dos demais reformadores, por exem-
plo de Lutero, era por um lado sua ênfase na majestade de Deus e por outro,
seus ataques contra toda forma de idolatria. Para ele o coração humano é um
fábrica de ídolos.

A Majestade da Glória de Deus Versus a Idolatria


66 UNIDADE II

O ponto de partida do ser humano não é a sua própria existência, mas a


verdade do criador ou Senhor. Portanto, qualquer esforço para domesticar a
Deus, para moldá-lo com as pessoas acham que ele deve ser, para prendê-lo sob
a forma de algum objeto finito e determinado, a fim de controlá-lo, deve ser fir-
memente repudiado.
A consequência prática desta polêmica contra a idolatria foi uma iconoclas-
tia que questionou todas as realizações humanas e que recusou lealdade total
a qualquer pessoa ou projeto. A marca central da dependência de Deus é viver
uma vida de independência de tudo menos de Deus.

Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.
A polêmica reformada foi sempre contra toda e qualquer idolatria. Sempre
a idolatria destrói a dignidade humana. Para os reformadores somente Deus é
suficientemente grande e digno de receber lealdade total do ser humano, sem
destruir sua verdadeira humanidade. Deus ou é nossa busca suprema, e nossa
preocupação última, ou viveremos numa religiosidade degenerativa.

PROPÓSITOS DIVINOS NA
HISTÓRIA E ÉTICA DA SANTIDADE

Para Calvino a criação é o teatro da glória de Deus.


Ele é o Criador e governante, é Senhor da história
e da natureza. João Calvino se destaca na vida da
igreja como alguém que teve mais consciência do
que qualquer outra pessoa do poderoso trabalho
de Deus na história e do chamado divino ao seu
povo para serviço no mundo.
O calvinismo é, de fato uma democracia de
santos, eleitos de Deus, mas também auto-esco-
lhidos, vistos que a consciência do indivíduo é a

HISTÓRIA E ETHOS REFORMADOS


67

testemunha última de sua eleição. O crente reformado é o responsável por seu


mundo. É um soldado em batalha, na conquista do mundo, na vitória sobre
a carne e o diabo.
Deve viver como um instrumento eleito por Deus para cumprir seus pro-
pósitos na história. A intenção de Calvino em Genebra não era simplesmente
a de salvar almas, mas a de reformar a cidade segundo a Palavra de Deus. Leith
diz que na a Escócia e Inglaterra, a comunidade reformada procurou edificar a
ideia da Nova Jerusalém.
Os puritanos que foram à Nova Inglaterra não estavam simplesmente bus-
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cando a liberdade para cultuar a Deus como desejavam. Eles estavam indo para o
deserto com a missão de estabelecer uma sociedade cristã e demonstrar à decadente
sociedade europeia as possibilidades de uma comunidade cristã altamente ética.
Richard Niebuhr argumentou, de forma convincente, que esta consciência
da poderosa atividade soberana de Deus pela implantação do reino de Cristo
e, finalmente, a vinda desse reino é o motivo mais característico do movimento
cristão na América.
Walzer sustenta que foram os calvinistas os primeiros que transferiram do
príncipe para o santo a ênfase do pensamento político, e, então elaboraram uma
justificação teórica para a ação política independente. O que Calvino disse a respeito
do santo, outros homens poderiam dizer, mais tarde, sobre o cidadão: o mesmo
senso de virtude cívica, de disciplina e de dever está por detrás dos dois termos.
Os santos se consideravam como instrumentos divinos. Eles tratavam cada
obstáculo como manifestação das muitas artimanhas do diabo e juntavam toda
sua energia, imaginação e arte para vencê-Ia.
Deve ficar bem claro que Calvino não se considera um “agente de mudanças”,
mas um servo de Deus. O reino de Deus, e não uma utopia humana; a glória de
Deus, e não o humanitarismo, eram seus objetivos, embora ele insistisse que o
amor ao próximo era o mais legítimo teste de ortodoxia e doutrina.
Estou de acordo com a ideia de que João Calvino criou uma civilização. Ele
provocou movimentos que mudaram a sociedade porque ele uniu sua própria
teologia e suas ênfases peculiares, com uma consciência do mundo moderno.
Fred Graham afirmou de forma muito apropriada:

Propósitos Divinos na História e Ética da Santidade


68 UNIDADE II

“O que ele fez foi permanecer, mais firmemente do que qualquer ou-
tro pensador de seu tempo, dentro deste novo mundo ... Ele apoiou
a cidade e suas atividades. Ele não se desgostava com os negócios e o
comércio, como os religiosos medievais ... E ele tinha o instinto certo
para perceber o lugar da religião nessa nova época e para refrear os
piores impulsos do seu tempo utilizando a Palavra de Deus e a disci-
plina piedosa ... Nem Calvino, nem os huguenotes, nem os puritanos
da Velha e da Nova Inglaterra chegaram a pensar que as riquezas eram
boas ou que os negócios eram sagrados. Mas eles decidiram viver neste
mundo e fizeram o máximo para atrelá-lo à Palavra de Deus.” (Op. cit.
Leith, 1997, p. 119).

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Roland Bainton, um perspicaz historiador da igreja, sintetizou o modo de ser calvinista:
Os antigos calvinistas de maneira alguma se inquietaram demais ou con-
sumiam suas energias na preocupação com a salvação. Este ponto serve
para destacar o calvinismo do catolicismo e do luteranismo ... Sua mis-
são era estabelecer uma teocracia, no sentido de uma santa comunidade,
na qual cada membro deveria fazer com que a glória de Deus fosse sua
única preocupação. Não uma comunidade governada pela igreja ou pelo
clero. Nem mesmo de acordo com a Bíblia, interpretada num sentido
literal, porque Deus é maior do que um livro, ainda que este contenha a
sua Palavra. A santa comunidade deveria apresentar aquele paralelismo
entre igreja e estado, que tinha sido o ideal da Idade Média e de Lutero,
mas que nunca se concretizará e que só poderia se tomar uma realidade
numa comunidade muito seleta, na qual leigos e clérigos, governantes da
cidade e ministros, todos juntos, estivessem imbuídos mesmos propósi-
tos elevados. Calvino compreendeu isso melhor do que qualquer outra
pessoa no século XVI, (op. cit. Leith, p. 119).

Os cristãos reformados, segundo a tradição dos profetas, sempre crêem que Deus
usa os Ciros do mundo para realizar sua vontade. Não podemos falar dessa visão
reformada sobre a história sem se referir a Abraham Kuyper (1.837 - 1.920), um
calvinista holandês, formulou com clareza a visão da comunidade em termos
dos princípios reformados.
Kuyper acreditava intensamente que toda a existência é vivida sob a sobera-
nia de Deus, mas que diferentes áreas, tais como o Estado, a igreja, o casamento
e a educação, são independentes umas das outras. A grandeza de Kuyper na
Holanda é reconhecida a tal ponto, que se diz não poder mais ser contada sua
história sem ligar a este crente reformado.

HISTÓRIA E ETHOS REFORMADOS


69

ÉTICA

A teologia tem a ver com a vida. Sem vida a teologia é um trabalhar com palha.
Ninguém será salvo pelas boas obras, diria Calvino, mas também pode-se dizer
que ninguém será salva sem as boas obras, ou seja, não pelas, mas para as boas
obras. Vida cristã é engajamento ético. Essa ação ética, essa teologia e prática são
sempre na tradição reformada, dois lados da mesma moeda.
João Calvino insistia que os cristãos devem demonstrar seu cristianismo por
meio de uma vida de santidade. Enquanto que uma exposição dos dez manda-
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mentos era característica da maior parte dos catecismos, os reformados deram


uma atenção muito detalhada a tal exposição tanto em seus catecismos como
na teologia sistemática.
A vida cristã é, por outro lado, justificação pela graça através da fé e, por
outro, santificação. Em outras palavras, salvação é tanto perdão quanto renova-
ção, tanto graça de Deus que se manifesta como misericórdia quanto graça de
Deus que se mostra como poder.
A perfeita unidade destes dois aspectos da experiência de salvação é a arte
da vida cristã, a qual nunca é facilmente conseguida. Alguns são tentados a valo-
rizar demais a experiência de perdão. Além disso, é a graça barata que aceita
o perdão e se recusa a trabalhar pela perfeição, assim como o Pai que está nos
céus é perfeito.
Outros valorizam demais a santificação. Esquecem-se de que a salvação é
pela graça e não pelos méritos e de que o ser humano é pecador tanto em seus
melhores quanto em seus piores atos.
John Leith (1997, p. 122) cita o seguinte texto:
“Embora a santificação esteja inseparavelmente ligada à justificação,
elas são diferentes. Na justificação, Deus imputa a justiça de Cristo; na
santificação, seu Espírito infunde graça e capacita para exercitá-la. Na
justificação, o pecado é perdoado. Na santificação, ele é subjugado.
A justificação liberta igualmente todos os crentes do castigo divino de
uma forma tão perfeita que eles nunca são condenados nesta vida. A
santificação não é igual em todos, nem é alcançada de forma perfeita
por ninguém. Sempre pode haver crescimento no rumo da perfeição.”

Propósitos Divinos na História e Ética da Santidade


70 UNIDADE II

Vida cristã é assim um prática do viver uma nova vida, a qual consiste na trans-
formação em Jesus Cristo.
A tradição reformada insistia no fato de que o cristão deve demonstrar sua
fé através de uma vida de compromisso e santidade.
O objetivo da vida cristã, é a de obedecer à Palavra de Deus aliando-se com
sua vontade. A vida cristã é, por um lado, justificação pela graça através da fé e,
por outro, santificação. Em outras palavras, salvação é tanto perdão quanto reno-
vação, tanto graça de Deus que se manifesta como misericórdia quanto graça de
Deus que se mostra como poder.

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A perfeita unidade destes dois aspectos da experiência de salvação é a arte da
vida cristã, a qual nunca é facilmente conseguida. Embora a santificação esteja
inseparavelmente ligada à justificação, elas complementares. Na justificação,
Deus aplica a justiça de Jesus Cristo; na santificação, o Espírito Santo capacita a
viver uma nova vida.
O perigo neste assunto tem sido não manter a complexidade entre os dois
pontos, resultando no legalismo, no qual sempre acaba faltando a graça – é onde
a maioria tem caída.
Outro perigo é cair na autojustificação, especialmente quando o pecado é
reduzido à sensualidade, que é mais controlável do que o orgulho ou a apatia,
especialmente na velhice. Uma terceira conseqüência tem sido o obscurantismo,
quando a vontade de Deus é identificada prematuramente com algum padrão
humano de conduta.
Estejamos consciente de que o equilíbrio adequado entre perdão e santi-
dade não é algo simples na vida cristã. Os erros da comunidade reformada têm
se manifestado principalmente no lado da santificação.
Contudo, este fato não deve obscurecer o vigor da tradição que tem insis-
tido em afirmar que o cristão não é somente uma pessoa perdoada, mas também
uma pessoa ética. Esta ênfase tem reflexos na teologia, no culto e na organização
da igreja. Manifesta-se especialmente no “ethos” da vida da igreja.
A pessoa eleita é chamada a uma vida de serviço e de obediência. O indiví-
duo perdoado é convocado a viver segundo a lei de Deus, depois de ter ouvido
as palavras confortadoras da liturgia e a declaração de perdão.

HISTÓRIA E ETHOS REFORMADOS


71

Que nos fique bem claro de que acima de todas as coisas, os cristãos refor-
mados se preocupam com a ética, com a lei e com a moralidade da fé. Para a
tradição reformada, santificação é acima de tudo viver e participar na transfor-
mação de Jesus Cristo.

ERUDITIO ET PIETAS.

A tradição humanista do século XVI imprimiu uma marca indelével sobre todo
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o futuro da tradição reformada. Em todos os lugares em que a comunidade refor-


mada se estabeleceu, surgiram escolas ao lado dos templos não somente para ensino
da Bíblia ou para ensinar a ler a Bíblia e outras habilidades relacionadas com o seu
estudo, mas também todo o elenco das artes liberais, para libertar o espírito humano.
Além disso, a teologia reformada tem sido sempre cuidadosa no estudo his-
tórico das fontes da fé, especialmente da Bíblia e da intenção de Jesus Cristo para
o cristão e a igreja. A Academia de Genebra era, em muitos aspectos, a coroa-
ção do trabalho de Calvino na cidade. Suas raízes estavam nas Institutas e nas
ordenanças da igreja.
Em sua grande obra As Institutas, Calvino escreveu que as pessoas aprofun-
dar sempre nos segredos da sabedoria divina.
Nas Ordenanças, ele declarou: A função própria dos doutores é a instrução
do fiel na verdadeira doutrina, para que a pureza do evangelho não seja corrom-
pida nem pela ignorância nem pelas más opiniões. Tendo em vista a situação
atual, nós sempre incluímos aqui auxílios e as instruções para a manutenção da
doutrina de Deus e para defesa da igreja contra prejuízos que possam ser cau-
sados por falhas de pastores e ministros.
Desde o início, os reformados defenderam a educação como uma das obri-
gações cristãs. Valorizaram os estudos de linguagem, leitura, redação e oratória.
Deram grande importância a clareza, lógica e para precisão no procedimento mental.
A instrução catequética demonstra simplesmente uma paixão geral por
conhecimento. Livros e panfletos solidamente escritos, sermões estudados e pre-
gados em estilo simples, sem ostentação de saber, foram marcas indispensáveis
das comunidades reformadas.

Propósitos Divinos na História e Ética da Santidade


72 UNIDADE II

Para João Calvino, a linguagem sem o devido uso da inteligência deve ser
muito desagradável a Deus. O que percebemos na teologia reformada, é que o
bom uso da inteligência, honra a Deus. E que a ciência venha de onde vier, se for
a verdade para o bem comum, é um produto que deve gerar um glorificar a Deus.
Ao encararmos esse assunto, descobrimos que Zuínglio recebeu uma edu-
cação humanista de primeira qualidade na preparação para o sacerdócio. João
Calvino também era um humanista e um “scholar’’ antes de se tornar um refor-
mador. A tradição humanista do século XVI, imprimiu uma marca indelével
sobre todo o futuro da tradição reformada.

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Em todos os lugares em que a comunidade reformada se estabeleceu, sur-
giram escolas ao lado dos templos não somente para o ensino da Bíblia ou para
ensinar a ler a Bíblia e outras habilidades relacionadas com o seu estudo, mas
também todo o elenco das artes liberais, para libertar o espírito humano – no
Brasil não foi diferente. Exemplo, Mackenzie. Dois nomes se destacaram na his-
tória da educação reformada no Brasil, Eduardo Carlos Pereira e Erasmo Braga.
A teologia reformada tem sido sempre cuidadosa no estudo histórico das
fontes da fé, especialmente da Bíblia e da intenção de Jesus Cristo para o cristão
e a igreja. A Academia de Genebra era, em muitos aspectos, a coroação do tra-
balho de Calvino na cidade.
Dizia que a função própria dos doutores é a instrução do fiel na verdadeira
doutrina, para que a pureza do evangelho não seja corrompida nem pela igno-
rância nem pelas más opiniões.
Acreditava que é necessário educar as próximas gerações, para que não se
deixe a igreja deserta para nossos filhos, um colégio deve ser instituído para ins-
truir as crianças, preparando-as para o ministério e para o governo civil.
O sermão era um exercício intelectual e uma disciplina mental que tinha um
significativo impacto cultural. Todavia os reformados não eram intelectualistas.
Calvino fazia advertências contra a curiosidade e a especulação. A aprendizagem

HISTÓRIA E ETHOS REFORMADOS


73

unida à piedade tinha grande qualidade pragmática e utilitária. Para ele dois
polos andavam juntas, eruditio et pietas – erudição e piedade.
Avida mental a serviço de Deus tinha um valor especial para a igreja. Calvino
fez com que o conhecimento, assim como o compromisso pessoal, se tomasse
uma condição para a admissão à comunhão da mesa.
Na sua carta a Somerset a respeito da reforma da igreja na Inglaterra, Calvino
não deixou dúvida alguma sobre a importância da instrução catequética:
Acredite-me, Monsenhor, a igreja de Deus não se preservará sem um
catecismo, que é como a semente que impede o bom grão de morrer e
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que se multiplica de tempo em tempo. Portanto, se vós desejais construir


um edifício que permaneça, e que não caia logo, providencie para que as
crianças sejam instruídas com um bom catecismo, que lhes mostre sucin-
tamente, numa linguagem adequada à sua tenra idade, no que consiste o
verdadeiro cristianismo. Este catecismo também servirá a dois propósi-
tos, a saber, como uma introdução para o povo todo, de modo que cada
um possa aproveitar o que será pregado, e também para capacitar todos
a discernir quando uma pessoa presunçosa apresenta doutrina estranha.

Deveras, eu diria que seria bom, e até mesmo necessário, fazer com
que os pastores e os curas ficassem presos a certas formas escritas, para
suplementar a ignorância e as deficiências de alguns, bem como para
melhor manifestar a conformidade e concordância entre todas as igre-
jas. E, em terceiro lugar, para eliminar toda pretensão de introdução de
alguma excentricidade ou nova doutrina por parte daqueles que procu-
ram somente entregar-se a tolas fantasias. (Leith, J., p. 125)

A instrução catequética demonstra simplesmente uma paixão geral por conhe-


cimento. Livros e panfletos solidamente escritos, sermões estudados e pregados
em estilo simples, sem ostentação de saber, foram marcas indispensáveis das
comunidades reformadas.
Como afirmou João Calvino em suas obras de que uma linguagem sem o
intelecto deve ser muito desagradável a Deus. Tenho que concordar, pois crer é
também pensar com a inteligência da fé. Uma fé que pensa é uma razão que crê.

Propósitos Divinos na História e Ética da Santidade


74 UNIDADE II

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PREGAÇÃO E PASTORAL

Como um teólogo e pastor reformado sou um apaixonado pela arte da pregação.


Estou de acordo com James Nichols, o qual afirmou que a reforma foi o maior
reavivamento da pregação na história da igreja.
Existe boa base para esta avaliação. A reforma começou em Zurique, quando
Zuínglio encarregou-se de pregar sobre o livro de Mateus. A pregação estava no
próprio centro da reforma em Genebra, com sermões programados para as dife-
rentes horas do domingo e para a maioria dos dias da semana.
Na sua famosa carta a Somerset, Calvino destacou a pregação ao lado da
educação catequética. Havia pouca pregação na Inglaterra, temia Calvino, e a
maior parte dela, criticava ele, era lida de um texto escrito:
A pregação não pode ser sem vida, mas viva, para ensinar, para exortar,
para reprovar ...Vós estais também consciente, monsenhor, a respeito
de como Paulo falado poder vivo e da energia com que eles tinham de
pregar,para que fossem aprovados como bons e fiéis ministros de Deus.
Não deviam dar demonstração de retórica,somente para conquistarem
estima para si mesmos.Mas o Espírito de Deus tinha de falar através
de suas vozes, operando com poderosa energia. (Op. cit. Leith, p.126).

HISTÓRIA E ETHOS REFORMADOS


75

Apesar de Calvino mesmo gastar pouco tempo na preparação de seus sermões, a


pregação foi a parte mais importante de seu trabalho. Para o Reformador a pre-
gação da Palavra o meio de graça mais importante da Igreja, Ele cria no poder
transformador da pregação da Palavra.
Com tal finalidade, Calvino pregou mais de 3.000 sermões durante seus 55
anos de vida. Algumas vezes, a comunidade reformada ousou falar da prega-
ção como Palavra de Deus. Bullinger declarou, na Segunda Confissão Helvética,
que: “Quando esta Palavra de Deus é agora pregada na igreja por pregadores
realmente vocacionados, nós cremos que a própria Palavra de Deus é pregada e
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recebida pelos fiéis”. (op. cit. Leith, 126).


d Todavia, os reformados tomavam cuidado para não aprisionar o Espírito
de Deus a palavra pregada, como julgavam que os luteranos faziam. Bullinger
escreveu nas Décadas, um livro de sermões, a quem ele quis dar conhecimento
e fé, a eles enviou mestres, pela Palavra de Deus, para lhes pregar fé verdadeira.
Não está no poder, vontade, ou ministério humano conceder fé. Não existe
na palavra falada pela boca humana capacidade para gerar a fé. Mas a voz do ser
humano e a pregação da Palavra de Deus nos ensinam a verdadeira fé, o que Deus
quer e nos ordena crer. Pois Deus mesmo sozinho, enviando seu Santo Espírito
às mentes e corações, os abre, persuade nossas mentes, e faz com que nosso cora-
ção creia naquilo que nós, pela sua Palavra e ensino, aprendemos a crer.
Algumas vezes, Calvino empregou uma linguagem que pareceu prender o
Espírito à pregação da Palavra. O ministro, dizia ele, é a própria boca de Deus.
Entretanto, como Bullinger, Calvino sabia que a pregação é a Palavra de Deus
somente numa relação de subordinação. E ele insistia,como poucos, na sua
exposição da doutrina da predestinação que o Espírito não estava amarrado à
pregação. Deus é soberano. Mas isso não diminuía o valor que Calvino atribuía
à pregação como meio usual da graça e do poder de Deus.
A sua posição está muito bem resumida nesta declaração das Institutas: Em
primeiro lugar, o Senhor nos ensina e nos instrui pela sua Palavra. Em segundo
lugar, confirma-a por meio dos sacramentos. Finalmente, Ele ilumina nossas
mentes com a luz do seu Espírito Santo e abre nossos corações para que a Palavra
e os sacramentos os penetrem. De outra maneira, somente ouviríamos e vería-
mos, mas não seríamos absolutamente afetados interiormente.

Pregação e Pastoral
76 UNIDADE II

O puritanismo também foi um movimento de pregação. Como Calvino, o


puritano tinha grande confiança no poder da palavra escrita e falada. Trabalhou
para chegar a um estilo apropriado à pregação da Palavra de Deus.
Este estilo era simples, mas não era ineficaz nem sem imaginação. Era pla-
nejado para ser entendido e para mover o ouvinte, o que, segundo as evidências,
acontecia de maneira notável.
A reação contra o estilo adornado, engenhoso e retórico dos ortodoxos angli-
canos tornou-se uma marca da conversão puritana. O estilo de pregação dos
puritanos era simples e poderoso, na tradição de Calvino. Sua influência durou

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muito tempo na Grã-Bretanha e nos Estados Unidos, onde foi temperado pelo
reavivamento da fronteira.
A pregação era também o grande tema dos dois mais conhecidos teólogos
reformados do século XX, Emil Brunner e Karl Barth. Ambos se consideravam pre-
gadores e escreveram sua teologia para pregadores. Brunner pregava para grandes
congregações no Fraumünster, em Zurique, e Barth apreciava pregar nas cadeias.
John Leith afirma que Reinhold Niebuhr, um dos grandes pregadores do
século XX, diz, em seu diário, que teve de decidir muito cedo, em seu ministério,
se ele seria um “atraente” pregador. Resolveu contra tal idéia, preferindo pregar
sermões rústicos e simples que a tradição reformada tanto admira. A pregação
é para a tradição reformada a lógica em chamas.
A pregação é não apenas indispensável para o cristianismo, mas essencial.
O cristianismo é existencialmente uma religião da Palavra de Deus. Baseado na
pregação a Igreja se sustenta ou cai. O pregador é um cativo da Palavra de Deus.
Resgatar o verdadeiro lugar da pregação no mundo atual deve ser a maior
preocupação da Igreja – e é esta uma indescritível contribuição da tradição
reformada. O homem moderno está sem gravidade, tem dito os psicanalistas. A
humanidade tem adoecido coletivamente. Há um desassossego no ar.
Vivemos com uma sensação neste início de Século de que o futuro ainda não
nasceu e o presente está confuso. Vivemos num intervalo de tempo com uma
sociedade em transição de paradigmas. Há uma certeza desinstalada no mundo
atual, vivemos procurando uma ilha de certeza num oceano de incertezas.
Este é a meta da Teologia Reformada, colocar-se como teologia pública á
caminho em meio às incertezas da vida humana. Para nós da tradição reformada,

HISTÓRIA E ETHOS REFORMADOS


77

temos um pressuposto básico: o fato da teologia não pode prescindir nem de sua
fonte, nem do contexto cultural para o qual deve comunicar-se.
Atualmente, somos carentes de uma Teologia da pregação que trabalhe em prol
do Reino de Deus no mundo e em prol do mundo no Reino de Deus. Desafio nesta
parte da aula, que teólogos e ministros reformados redescubram seu destino em Deus.

PASTORAL
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A teologia é eminentemente prática. Jesus Cristo é o fundamento de toda teolo-


gia prática. Podemos desde a tradição reformada dizer que a teologia é prática e
por ser prática é cristológica em suas raízes e pastoral em sua expansão.
Ser teologia prática e pastoral significa dizer que a situação vivencial é con-
frontada com a revelação de Deus, e assim é viva e pastoral. Essa visão reformado
é um permanente chamado à missão da igreja num mundo secularizado e plu-
ralista onde somos desafiados a viver.
Segundo John Leith, João Calvino acreditava que a organização da comu-
nidade cristã tinha uma importância decisiva para alimentar a vida de fé e
obediência. Por isso os elementos humanos, como as estruturas da igreja e os
procedimentos de culto, são meios de graça e devem ser adequados para o tra-
balho do Espírito Santo.
O que nos impressiona ainda hoje é que por darem essa importância à
construção institucional da igreja, nem Calvino nem seus sucessores foram indi-
ferentes às estruturas – na verdade consideravam-nas essências. Todavia, eles
não as consideravam importantes por si mesmas, mas como meios de graça – à
serviço do Reino de Deus.
Ao lermos Leith em sua obra Tradição Reformada, vemos que o centro da
preocupação de Calvino com a organização da igreja está no trabalho pastoral
e na “cura de almas”. Calvino não somente inscreveu o ofício de pastor na sua
estrutura eclesiástica, como também ele mesmo era acima de tudo, um pastor.
Na ordem oficial para a existência da igreja em Genebra, providenciou que os
pastores se responsabilizassem pela visitação aos prisioneiros e enfermos, e pela
instrução catequética e exame dos fiéis antes da administração da Ceia do Senhor.

Pregação e Pastoral
78 UNIDADE II

A confissão de pecados e a promessa de perdão, que estão na liturgia do


domingo, podem também ocorrer no encontro entre os cristãos e, em particu-
lar, no trabalho pastoral dos ministros.
Os diáconos foram constituídos para o ministério da compaixão para com
os necessitados. Mas o trabalho pastoral não é somente o de confortar os afli-
tos, declarar perdão aos culpados e ajudar os enfermos e necessitados. Sua tarefa
principal é a renovação da vida segundo a imagem de Cristo.
O trabalho pastoral tem como propósito não somente propiciar conforto,
mas também redirecionar a vida. Pastorear desde a tradição reformada é levar

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pessoas a andarem em Deus, descobrindo seu propósito na vida de Deus.
Na sua volumosa correspondência, Calvino exercitou o cuidado pastoral
em toda a Europa, confortando e desafiando os cristãos ao serviço heróico, exi-
gente e perigoso do Deus Todo-poderoso.
Quem escreve sobre esse aspecto pastoral, sobretudo, em Calvino é Jean-
Daniel Benoit, no substancioso estudo Calvino - Pastor de Almas. Nesta obra
Benoit conclui que Calvino era primeiramente um pastor e, em segundo lugar,
um teólogo, ou melhor, que ele era teólogo para ser um pastor.
Também chegou à conclusão de que não foi como pastor, nem como teó-
logo, nem como organizador da igreja, nem ainda como personalidade poderosa
que Calvino teve influência significativa na história. Pois em seu cuidado com as
almas, Calvino não somente estava preocupado com a salvação dos indivíduos,
mas também com o avanço do reino de Jesus Cristo.
John Leith afirma que Calvino acreditava que a organização da comunidade
cristã tinha uma importância decisiva para alimentar a vida de fé e obediência.
Elementos humanos, como as estruturas da igreja e os procedimentos do culto,
são meios de graça e devem ser adequados para o trabalho espírito. Por isso, nem
Calvino nem seus sucessores foram indiferentes as estruturas.
Todavia, eles não as consideravam importantes por si mesmas, mas com
meio de graça. Para Calvino a igreja como organização tinha uma meta uní-
voca a cura de almas.
Calvino, por essa razão era um pastor com profunda visão pastoralo. Na
ordem oficial para a existência da igreja em Genebra, providenciou que os
pastores se responsabilizassem pela visitação aos prisioneiros e enfermos, e

HISTÓRIA E ETHOS REFORMADOS


79

pela instrução catequética e exame dos fiéis antes da administração da Ceia


do Senhor.
A confissão de pecados e a promessa de perdão, que estão na liturgia do
domingo, podem também ocorrer no encontro entre os cristãos e, em particu-
lar, no trabalho pastoral dos ministros.
Os diáconos foram constituídos para o ministério da compaixão para com
os necessitados. Mas o trabalho pastoral não é somente o de confortar os aflitos,
declarar perdão aos culpados e ajudar os enfermos e necessitados.
Reiteramos: O trabalho pastoral tem como propósito não somente propor-
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cionar conforto, mas também redirecionar a vida – e Cristo é a nossa vida.


Então, a partir da tradição reformada, a própria vida foi reformada, e seres
humanos começaram a descobrir que há um modo diferente de agir que dá resul-
tado na vida existencial. Viver é compromisso pastoral com o próximo.

VIDA DISCIPLINADA E SIMPLICIDADE.

A disciplina pessoal era uma característica dos primeiros reformadores qualquer


que fosse a sua convicção e como ocorre com a maior parte das pessoas reali-
zadoras. Mas, mesmo dentre as pessoas mais disciplinadas, Calvino se destaca,
não somente na sua obra pessoal, mas também em sua insistência de que a dis-
ciplina deve caracterizar a vida e a comunidade cristã.
Ele procurou fazer da disciplina uma parte da estrutura da vida organizada
da igreja. A disciplina, para um cristão reformado significa o âmago de sua exis-
tência ao alinhar sua vida com Deus e seu propósito eterno, somente assim será
leal verdadeiramente.
Max Weber, o sociólogo alemão, e Ernest Troelsch, o historiador do ensino
social das igrejas, ficaram impressionados com a auto-disciplina dos calvinis-
tas aplicada ao trabalho.
Os calvinistas primitivos também eram reservados na exibição de sentimen-
tos ou piedade pessoal. Calvino e seus seguidores eram adeptos da disciplina em
particular e no culto público. A vida reformada nunca pode ser reduzida á pie-
dade privada, mas não existe sem ela.

Pregação e Pastoral
80 UNIDADE II

A disciplina da tradição reformada, tinha uma conotação diferente, pois


devia se acolhida como graça que liberta e não como punição, por isso alegre e
carregada de energias vivas.
De acordo com Leith, nos primeiros anos do movimento reformado,
Zurique diferiu da Genebra de Calvino no campo da disciplina. Bullinger
temia que o procedimento de Calvino resultasse numa “tirania papal”. Ele
mantinha a disciplina separada da Ceia do Senhor, deixando-a a cargo dos
magistrados cristãos.
Como J. Wayne Baker sustentou na obra Heinrich Bullinger and the Covenant:

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The Other Reformer Tradition (Henrique Bullinguer e o Pacto: A Outra Tradição
Reformada, 1980), Bullinger desenvolveu uma forma alternativa para a comu-
nidade cristã com sua doutrina da soberania do magistério.
Interessante ao falarmos sobre disciplina é o conceito conectado com econo-
mia, ou o fator econômico. Foi John T. McNeill quem descobriu que economia
é uma palavra que descreve adequadamente o puritano.
Certamente ela designa bem a vida pessoal de Calvino e dos membros
da igreja. Mas nem Calvino nem os puritanos eram ascetas tentando fugir do
mundo mau. Eram ascetas ou disciplinados, naquilo que acreditavam ser o uso
econômico de um mundo bom. Eles exultavam na vitalidade da existência, mas
também criam que desejos momentâneos deviam deixar de ser atendidos, algu-
mas vezes, em favor de um bem posterior.
Numa vida disciplinada havia e há lugar para diversão e mesmo para a frivo-
lidade. Mas tal lugar se insere numa ordem mais ampla. Max Weber, o sociólogo
alemão, e Ernst Troeltsch, o historiador do ensino social das igrejas, ficaram
impressionados com a autodisciplina dos calvinistas aplicada ao trabalho.
Essa tem sido uma das influências da tradição reformada nas igrejas
Americanas e brasileiras, o trabalho é visto como uma celebração da glória de
Deus, um fator intrínseco à fé. Trabalho dignifica o ser humano.
Para as pessoas educadas segundo os princípios calvinistas, viver preguiço-
samente à custa de uma herança recebida consiste em um grande pecado; seguir

HISTÓRIA E ETHOS REFORMADOS


81

uma vocação sem um objetivo definido e que não rende lucro material parece
uma tola perda de tempo e energia; e o fracasso no aproveitamento de todas as
oportunidades de obtenção de lucro material indica indiferença para com Deus.
Eis um dos motivos de João Calvino ter rejeitado os mosteiros, e fazer do
mundo inteiro o lugar da vida disciplinada e da busca de objetivos que têm sua
finalidade em Deus e sua causa na terra. O que vemos é o trabalho visto como
vocação humana, como respeito à vida. Desperdício é pecado. Lutero uma vez
afirmou: Bens que não estão a serviço da vida, são bens roubados.
Desde a visão reformada, a disciplina aplicava-se não simplesmente à pro-
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dutividade nos negócios e no trabalho, mas também à reforma política e social.


Os calvinistas primitivos também eram reservados na exibição de sentimentos
ou piedade pessoal. Calvino e seus seguidores eram adeptos da disciplina em
particular e no culto público.
A vida reformada nunca pode ser reduzida à piedade privada, mas não existe
sem ela. A prática da disciplina na tradição reformada, especialmente aquela
aplicada por Calvino e pelos puritanos, não era um peso ou punição, era uma
cura. Era uma maneira de vida que visava a libertação e a liberação das energias
e das vitalidades da vida da fé.
Hoje a vida disciplinada é uma celebração da espiritualidade cristã. Há algum
tempo Richard Forster (1983) escreveu, Celebração da Disciplina, um livro niti-
damente reformado, contemporâneo e que retoma a espiritualidade como um
modo transformador de vida. Esse livro foi aclamado como um dos 10 livros
mais importantes produzidos no Século XX.
Nele o autor Classifica as disciplinas em três movimentos do Espírito
Santo. Mostra como cada uma delas contribui para uma vida espiritual equi-
librada e genuína. Para Richard Forster (1983), as disciplinas interiores levam
os famintos de Deus a uma transformação autêntica. As disciplinas exteriores
são um reflexo das prioridades do Reino de Deus em seus filhos. E as discipli-
nas comunitárias lembram-nos de que é na comunhão entre os cristãos que
nos aproximamos mais de Deus.

Pregação e Pastoral
82 UNIDADE II

SIMPLICIDADE

A Cristologia afirma que a vida de Jesus sempre foi de maneira intensa marcada
pela simplicidade, desprovido de estabilidade financeira, (Mateus 8:18-20).
É na simplicidade que encontramos o caminho da excelência: em sua pro-
fissão, optou por dignidade e simplicidade, (Marcos 6:3). Simplicidade é um
tema que sempre aparece nos escritos de Calvino e foi uma característica de
sua prática.
Ele se opunha a toda redundância. Era um inimigo da ostentação, da pompa,

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da complicação desnecessária. Seu estilo era simples e direto. Combatia gastos e
consumos inúteis, sendo contra outras formas de desperdício. A simplicidade está
intimamente relacionada com a ênfase de Calvino na autenticidade e sinceridade.
Qualquer atividade ou expediente que esconde a realidade deve ser rejeitado.
Para John Leith, a simplicidade era um princípio geral de João Calvino. Ele
aplicava a simplicidade na liturgia, no governo e no estilo de vida. Ele utilizava
a simplicidade no estilo literário e esta aplicação serve bem para ilustrar como a
simplicidade moldava sua própria vida, e, até sua morte. Pediu aos seu compa-
nheiros que o sepultassem num túmulo anônimo – simplicidade.
No início de sua vida profissional, quando escreveu seu comentário aos
Romanos (1.539), delicadamente Calvino decidiu escrever seu comentário com
“brevidade lúcida”, e não hesitou em censurar o velho e distinto Bucer por sua
verborragia e falta de clareza.
Calvino aborda o problema do estilo com maior detalhe em seu comentá-
rio ao texto de 1 Coríntios 1.20 “Onde está o sábio? Onde está o escriba? Onde,
o inquiridor deste Século? Porventura, não tornou Deus louca a sabedoria do
mundo?”. Segundo sua compreensão, o método de Paulo pregar era simples e o
apóstolo era contra os “ministros maus e infiéis” de Corinto, que buscavam se
promover com a exibição de palavras e máscaras de sabedoria humana.
A simplicidade do Evangelho era desfigurada. Os próprios Coríntios esta-
vam sentindo cócegas com uma tola afeição por um estilo que parecia elevado.
Todavia, Calvino não rejeitava a eloqüência humana. Deus é seu autor. Todos
devem se regozijar nela, mas somente quando for utilizada para transmitir a

HISTÓRIA E ETHOS REFORMADOS


83

verdade de descobrir a realidade. Ela não é um fim em si mesma. A eloqüência


pode entrar no caminho da verdade. “Numa maneira simples e não rebuscada
de fazer um discurso, a majestade da verdade deve brilhar de modo mais cons-
pícuo”. A linguagem é a serva da verdade e da realidade.
A simplicidade está muito perto da sinceridade. Ela elimina os ornamen-
tos, as ostentações, as artimanhas e as pretensões que obscurecem o que é real.
Excelência é ver a grandeza nas pequenas coisas. É encantar-se com a arte
de viver e render-se cada vez mais diante da grandeza do universo e seu Criador
engajado com a vida.
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DO CONHECIMENTO DE DEUS E DA VALORIZAÇÃO


HUMANA

Ao lermos as Institutas, escritas por João Calvino, imediatamente seremos surpre-


endidos com um tema da correção entre o conhecimento de Deus e de nós mesmos.
Numa palavra diria: Conhecer a Deus implica em conhecermos a nós mesmos.

Do Conhecimento de Deus e da Valorização Humana


84 UNIDADE II

Intimamente relacionado com o princípio de acomodação, pelo qual apren-


demos que todo o nosso conhecimento de Deus nos vem condicionado às nossas
capacidades, está o princípio de correlação. Por ele aprendemos a correlação
íntima que existe entre o conhecimento de Deus e o de nós mesmos. As primeiras
palavras das Institutas descrevem esta dupla relação em todo o conhecimento, cor-
relação esta que é um dos fundamentos da concepção de Deus, segundo Calvino.
Quase a totalidade de nossa sabedoria verdadeira e sólida, consiste de duas partes:
o conhecimento de Deus e de nós mesmos. Mas, como estes dois estão entrelaçados
de vários modos, não é fácil determinar qual dos dois precede ou produz o outro.

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Em primeiro lugar, nenhum ser humano pode olhar para si mesmo, mas
deve imediatamente voltar-se para a contemplação de Deus, em Quem ele vive e
se move. É claro que nenhum homem pode chegar ao verdadeiro conhecimento
de si mesmo sem ter primeiro contemplado a face de Deus e, então descido ao
exame de si mesmo.
Essa visão de Calvino, que caracteriza nesse assunto o pensamento reformado,
seria dizer que, ao encontrar Cristo encontrei comigo, ou melhor, dizendo, encon-
trei meu verdadeiro eu. Numa paráfrase de Agostinho, Deus é meu endereço.
O conhecimento de nós mesmos leva-nos a olhar para Deus e, este conhe-
cimento pressupõe que já O contemplamos. Nós nunca contemplamos a Deus
antes de nos vermos a nós mesmos, porque, como foi observado, não podemos
chegar a um conhecimento claro e sólido de Deus, sem uma apreensão mútua
de quem realmente somos.
Conforme Edward Dowey (FERREIRA, 2003, p. 182):
“na teologia de Calvino, Deus não é jamais uma abstração que se re-
laciona com uma humanidade em abstrato, mas Deus é o Deus do
homem, cuja face está voltada para nós e, cuja pessoa e vontade são
conhecidas. E, correspondentemente, o homem é sempre descrito em
termos de sua relação com este Deus conhecido: o ser humano criado
por Deus, revoltado contra Deus, ou, redimido por Deus. Assim, toda
asserção teológica tem uma correlata antropológica e, vice-versa”.

O conhecimento de “nós mesmos” é um termo que Calvino usa por sinédo-


que, para todo o conhecimento que o homem tenha da criação. O homem é um
microcosmo do universo, no qual as marcas da ação criativa de Deus se acham

HISTÓRIA E ETHOS REFORMADOS


85

em maior concentração e em qualidade superior ao que se encontra em outras


formas de vida. Realmente, o conhecimento do homem, bem como de outras
partes do mundo criado, é um tipo de conhecimento que diz respeito a Deus. (
FERREIRA, 2003, p. 183).
Pela correlação, não queremos dizer que Calvino acha duas classes de conhe-
cimento no mundo: uma que diz respeito unicamente a nós mesmos, e outra a
Deus; nem, pelo contrário, queremos dizer que conhecimento de nós mes-
mos e do mundo, é idêntico ao conhecimento de Deus; a criação não é Deus.
Pelo mero fato de conhecer, o ser humano é levado a olhar além de si
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mesmo e além do objeto da sua percepção. Quando, como resultado do pecado,


o homem não olha para Deus, de nenhum modo substitui esta relação, cur-
vando- se ao ídolo, como o demonstram a universalidade da religião e da
filosofia religiosa. A religião - verdadeira ou falsa - é co-extensiva com os seres
que a conhecem.
Dowey diz que João Calvino pode, com perfeita consistência, dizer que não
só o culto a Deus mas também, a razão são qualidades que distinguem o homem
da criação bruta. É fato que todo conhecimento implica conhecimento de Deus,
isto é, todo conhecimento é “Theonomous”. O pecado em si, que é um afasta-
mento de Deus por parte de todos os aspectos da criação, não é uma separação
cabal e completa de Deus. O pecado ocorre na presença de Deus. Na pior das
condições, ele redunda finalmente, em glorificação do Senhor por meio do per-
dido. ( Dowey, p. 183).
Satanás e todos os pecadores, apesar de terem se revoltado contra Deus,
estão numa relação com Deus que não é inteiramente negativa. Se pecado impli-
casse na completa ignorância de Deus, o homem não estaria “sem excusa”. A
hipocrisia não pode chegar ao ponto “da mente não ter mais nenhuma cons-
ciência da sua culpa na presença de Deus”. Se o pecado causasse uma relação
completamente negativa entre Deus e a criatura, o resultado seria autonomia
- o ser humano não seria mais um mero homem e, satanás seria um segundo
Deus. Mas, toda a revolta contra Deus ocorre, tanto dentro da onipotência
divina, como dentro do campo da responsabilidade da criatura, responsabili-
dades está baseada no conhecimento.

Do Conhecimento de Deus e da Valorização Humana


86 UNIDADE II

Dowey ao tratar do assunto, expõe o caráter existência de todo o nosso conhe-


cimento de Deus. (Dowey, p. 184).
Na teologia calvinista, o conhecimento de Deus não é nunca separado
da responsabilidade religiosa moral, ou, mais exatamente, o conhecimento
de Deus não é nunca separado da resposta que o homem dá através do culto
e da obediência quando Deus a ele se revela. Falando ainda do encontro
com Deus através da criação ou das Escrituras, Calvino sempre usa o termo
“conhecimento” em conjunção como amor ou ódio, misericórdia ou ira de
Deus, e bem assim, a resposta total do homem em confiança ou medo, obe-

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diência ou desobediência.
É costume de muitos escritores chamar esta característica do conhecimento
de Deus na teologia de Calvino de “prática” querendo dizer da qualidade não
especulativa, e aspecto útil deste conhecimento para o crente.
Citado por E. Dowey, Lobstein faz particularmente, uma boa apresentação
do assunto, escrevendo: “O conhecimento de Deus é, não algo puramente teórico
mas, uma experiência prática, tendo a ver com toda a personalidade humana,
solicitando todas as energias da consciência e do coração, pondo em movimento
todas as faculdades espirituais”. ( Dowey, p. 184).
Um termo mais adequado parece-me que é corrente, tanto na filosofia como
na teologia sob influência de Kierkegaard, que é “existencial”. Por este termo que-
remos dizer que o conhecimento de Deus determina a existência do conhecedor.
Igualmente, Dowey cita H. R. Mackintosh, o qual descreve o pensamento
existencial como o modo de pensar que diz respeito, não somente ao inte-
lecto, mas à toda personalidade do homem que a percebe e a adota. Pensar
existencialmente portanto, é pensar não como um expectador das supremas
saídas da vida e da morte, mas como alguém que é obrigado a tomar decisão
quanto a estas saídas. “Isto me preocupa infinitamente, aqui e agora” é o seu
tom determinante, levando de roldão tudo que é puramente teórico ou acadê-
mico.(E. Dowey, p. 185).
Não é preciso muito para convencermo- nos de que o conceito reformado
calvinista de conhecimento religioso pertence àqueles que podem ser classifi-
cados como existenciais.

HISTÓRIA E ETHOS REFORMADOS


87

VALORIZAÇÃO HUMANA

Sou fruto de uma igreja reformada, minha memória está povoada de três máxi-
mas teológicas reformadas, proclamadas por um pastor nitidamente reformado,
Jonas Dias Martins – ainda ecoa em meus ouvidos ele declarando: Soberania de
Deus, Realeza de Cristo, Valorização da dignidade humana.
De todos os pontos esse terceiro é o que mais me intrigava, pois os demais
eram mais notórios em todos os pregadores, mas esse terceiro somente o Jonas
Martins falava.
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Esse humanismo social dos reformadores foi um ponto relevante na vida da


Igreja e a construção não apenas de uma igreja institucional, mas de uma civili-
zação que afetou povos e nações.
Os seres humanos de todas as épocas souberam, no entanto, que são algo
mais do que animal; e é, francamente, uma curiosa espécie de ciência, a que não
vê mais aquilo que distingue o homem da máquina, bem como do animal. O
animal possui entendimento, mas não tem juízo. Tem um começo de civiliza-
ção, mas nenhuma cultura. Tem curiosidade e sabe uma porção de coisas, mas
não tem ciência. Brinca, mas não possui arte. Forma um rebanho, mas não uma
sociedade. Tem o castigo, mas não tem consciência. Conhece a superioridade
de um ser humano, mas nada sabe do Senhor do mundo.
O teólogo reformado, Emil Brunner assim descreve o ser humano:
“Ele é algo diferente que o animal, assim como este é outra coisa que a
planta. Mas, afinal, que é o homem? Se não é um animal, talvez seja um
deus? Isto parece loucura. Tal loucura, entretanto, hoje está muito difun-
dida entre nós. Em última análise, dizem muitos, homem e Deus são a
mesma coisa. A razão humana é a mesma coisa que a razão divina. A es-
sência da alma é idêntica à divindade. Sim, pensando bem, essa loucura é
uma idéia sedutora. Não está “Deus em nós?” Não só os velhos filósofos
pagãos, como também muitos modernos, e até muitos dos pensadores
clássicos, afirmam que o homem, “em última essência”, é deus. Apesar
disso, está errado. O homem não é deus porque é criação de Deus. Por
isso não é divino, “em última essência”, porque em essência é pecador.
Mas como é possível que duas hipóteses tão antagônicas do homem fos-
sem defendidas por todos os tempos até hoje: o homem: um animal; o
homem: um deus? A Bíblia dá-nos uma resposta a esta pergunta, porque
nos diz o que o homem é de fato. (Brunner, Emil, Nossa Fé, p. )

Do Conhecimento de Deus e da Valorização Humana


88 UNIDADE II

A primeira afirmação teológica sobre o ser humano é que Deus criou o ser
humano. O humano tão bem como a minhoca, a areia do mar, a lua e o sol, é
criatura de Deus. Isso significa: Ele é o que é porque Deus fê-lo assim. Tem a sua
vida, a sua existência e suas particularidades do Criador, assim como os milha-
res de animais receberam as suas características das mãos do Senhor.
Brunner afirma que se Deus, para criar o ser humano aproveitou ou não uma
evolução de milhões de anos, isso interessa ao cientista, não à fé.
Ao afirmarmos que “Deus criou o homem”, não estamos a negar, com isso,
que o ser humano descende de pais humanos. Deus usa pais humanos para criar

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o homem. Ele é, em primeiro lugar, um membro deste mundo terreno, que vem
e vai, que se forma e transforma.
O ser humano é pó do pó. Mas como pó, maravilhosamente criado por
Deus, de forma mais esplêndida do que as plantas e os animais. É um ser criado
para um propósito eterno. Deus colocou a eternidade no coração do homem –
diz as Escrituras.
Fazemos coro com o teólogo reformado quando afirma: A Bíblia diz que
Deus criou o homem à sua imagem. Afirma isso só do homem e de nenhuma
outra criatura. O fato de ser ele imagem de Deus distingue-o do restante de toda
criação, fazendo-o, de alguma forma, semelhante ao Criador. Pois o que expres-
saria essa palavra “imagem” senão qualquer semelhança? E a Bíblia menciona
ainda outra razão dessa semelhança, dizendo: Deus lhe soprou o seu fôlego de
vida nas narinas. Então passou a ser alma vivente (Gn 2,7). O que distingue o ser
humano de toda criatura é que ele tem parte nos pensamentos de Deus.
O ser humano precisa de ter esse juízo de sua existência. Aí está o juízo, ao
invés do simples entendimento, que o animal tem. O homem pode projetar os
seus pensamentos à eternidade e ao infinito – ele sabe que foi criado para algo
mais, há um sentido de propósito em sua existência.
Devido a tudo isto é preciso dizer uma terceira coisa: Deus criou toda cria-
tura pela sua palavra. Somente o homem ele não criou, apenas, pela sua palavra,
mas também, para e em sua palavra – afirma Brunner. Vale dizer: Deus criou
o homem assim que pode perceber a palavra divina. Este é o juízo propria-
mente dito. Somente ali, onde o homem nota algo da palavra de Deus, ele é

HISTÓRIA E ETHOS REFORMADOS


89

verdadeiramente homem. Preciso repetir isso, somente na Palavra de Deus o


ser humano é realmente humano. Como um peixe na água. Somente ali é ple-
namente peixe, somente em Deus é plenamente humano.
Nós somos pessoas humanas pela noção da palavra do Criador. Se, por exem-
plo, alguém não tivesse consciência, não seria um ser humano, mas um monstro.
A consciência é de alguma forma a noção da voz do Senhor criador.
Eis uma assertiva reformada, provocativa: O ser humano é feito assim por
Deus, um ser como consciência, que se torna humano somente quando reco-
nhece o Criador, quando aceita a palavra divina, e a repete, como um soldado
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repete a ordem recebida. O homem deve dizer: Sim, tu és meu Deus. Deus lhe
diz: Tu és meu! Cabe ao homem dizer: Sim, eu sou teu. Só quando disser isto em
seu íntimo, tornar-se-á de fato plenamente humano. Antes disso é, de qualquer
maneira, algo, um it, um senti sentido, muitas veze apenas mais um monstro.
A psicanálise diz que somos espelhos. Teologicamente dizemos que Deus nos
criou à sua imagem, como espelhos que refletem a imagem dele. Isso significa que
temos nossa qualidade de ser humano por aquilo que nos deixamos dizer a Deus.
O ser humano, entretanto, foi criado na palavra, ou seja: ele pode dizer sim
ou não àquilo para que Deus o criou, àquilo que Deus lhe diz como finalidade
de sua criação. Torna-se homem ou monstro. O mistério do homem é, precisa-
mente, este: a liberdade de dizer sim ou não a Deus.
A imagem que o Senhor quer é a seguinte: seres humanos que o amam,
porque ele os amou primeiro; humanos que lhe respondem em fé, por reco-
nhecimento espontâneo, porque a primeira palavra foi sua. O mistério do ser
humano é o mistério da fé. Eis o grande lugar da dignidade humana na tradição
reformada. Atualmente a teoria complexa fala em reforma humana, que é pre-
ciso refazer a condição humana, descobrir uma sustentabilidade onde impere o
respeito e o cuidado.
A humanidade tem adoecido coletivamente. Psiquiatras fazem coro ao dizer
que a humanidade pegou o caminho errado. Psicanalistas falam do ser humano
atual como um ser em caos, um ser sem gravidade. Lugar privilegiado para a
teologia de tradição reformada expressar o seu ETHOS, da valorização da dig-
nidade humana.

Do Conhecimento de Deus e da Valorização Humana


90 UNIDADE II

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DA REALEZA DE CRISTO E DA ORAÇÃO

O teólogo W. Pannenberg, em sua perspectiva reformada aplica uma tese alta-


mente significativa em sua Cristologia, diz ele: Visto ser o filho de Deus por meio
de sua dedicação a Deus Pai, Jesus é o soberano escatológico para quem todas as
coisas são, a fim de que todas as coisas sejam também por meio dele, (Pannenberg,
W., Jesus, God and Man, Westminster Press, Philadelphia, 1977, p. 365).
Pannenberg aponta que a participação do homem Jesus no Senhorio
Onipotente de Deus sobre a criação é o aspecto coroador da união de Deus e do
homem em Jesus. O efeito da união de Jesus com o Pai, enquanto Filho, é a sua
exaltação para participar no Senhorio de Deus.
Na verdade, o Jesus pré-pascal não proclamou sua própria realeza ou senho-
rio, mas a soberania vindoura do Deus de Israel que ele chamava de Pai. Estava na
linha da mesma esperança do Antigo Testamento. Ele pregava o senhorio de Deus.
A transição para a pregação da Igreja Primitiva é normal à luz da ressurrei-
ção. Essa ressurreição havia confirmado que ele tinha autoridade mostrando que o
futuro escatológico cumpria-se nele; ele se tornava em pessoa a realidade da salva-
ção escatológica futura. Ele já reina agora a partir do futuro de Deus. Para a tradição
reformada afirmar essa realeza é conseqüência natural desta grandeza divina.

HISTÓRIA E ETHOS REFORMADOS


91

A participação do Jesus ressurreto no Senhorio Onipotente de Deus signi-


fica senhorio não apenas sobre a Igreja, mas sobre o mundo. Jesus é um resumo
escatológico, e como tal Jesus Cristo estabelece a unidade do universo. Com
isto estamos dizendo que o mundo material não possui sua unidade sem o ser
humano e este humano somente o é na realeza de Cristo.
O cosmos não é uma unidade já estabelecida, como o queriam os gregos. É
através do ser humano que o cosmo recebe sua unidade. O homem governa esse
mundo e faz dele o seu mundo. E é aí que o ser humano é a imagem de Deus:
criando o seu mundo com o que encontra. O senhorio do ser humano sobre o
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mundo é aquela atividade que estabelece a unidade. E isso só acontece na uni-


dade da humanidade em si.
Neste sentido, a história de Jesus, na base da qual a humanidade é reunida
numa só história, é a consumação da unidade do mundo. E assim a humanidade
em sua história, com todo o universo material encontra unidade ao se relacio-
nar com Jesus o Cristo de Deus. Desde esta visão, Pannenberg aponta e afirma
a criação do mundo através de Jesus Cristo.
À luz do eschaton que já começou na ressurreição de Jesus, certas percep-
ções preliminares são possíveis a respeito do plano divino para a história. Efésios
e as teologias paulina e lucana da história falam do plano divino para a história
levando-a a Jesus Cristo.
Essa visão cristológica da soberana realeza de Cristo, lança uma ponte para
se alcançar a percepção do senhorio de Jesus sobre o mundo, expressa na fórmula
da criação de todas as coisas são somente para ele, mas também “através dele”.
Cada criatura recebe dele a sua iluminação final, o seu lugar definitivo, a
sua última definição no contexto total da criação. A criação deve ser entendida
como um ato eterno de Deus na eternidade, muito embora o que ele cria tenha
começo temporal e um tornar-se (vir a ser) temporal.
A realeza de Cristo embora escatológica, já pode ser vivenciada. Claro que
sabemos que o eterno ato criador de Deus será inteiramente revelado no tempo, pri-
meiramente no eschaton. Somente no eschaton a criação será entendida a partir da
perspectiva de sua realização escatológica e não da perspectiva do começo do mundo.
E como Jesus antecipa o eschaton é somente nele que nós podemos ver a essên-
cia das coisas e das pessoas – ele em sua realeza é o sentido da vida e da história.

Da Realeza de Cristo e da Oração


92 UNIDADE II

A realeza de sua vida, e na sua dedicação ao Pai e à sua missão para com a
humanidade é também de certo modo, exemplar para a estrutura de todos os
eventos individuais. Tudo o que existe só é uma transição para algo que ainda
não é; nada existe para si mesmo.
Na cristologia uma verdade precisa ser enfatizada, todas as declarações têm
um sentido inesgotável de mistério. A riqueza da glória de Jesus Cristo sobressai
a toda especulação feita ao longo dos séculos. A riqueza de imagens metafóricas
mostra a reserva de sentido conceitual em cada página das Escrituras. Cristo é
o momentum inesgotável da Revelação de Deus.

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Essa riqueza da Realeza de Jesus Cristo, o Rei do Reino, permanece em neces-
sidade de expansão e de compreensão crescente à luz do futuro escatológico.
Somente o eschaton mostrará em forma final o que aconteceu na ressurreição
de Jesus dentre os mortos.

O FALSO PROFETA (Por Karl Barth)


O falso profeta é o pastor que agrada todo mundo. Seu dever é dar testemu-
nho de Deus, mas ele não o vê e nem o prefere, porque vê muitas outras coisas.
Retira-se sempre quando devia avançar. Compraz-se em ser chamado pre-
gador do Evangelho, condutor espiritual e ser­vidor de Deus, mas só serve
aos homens.
Ele sabe que, desde agora e para sempre, os caminhos que não começam
em Deus não são caminhos verdadeiros, mas não quer se incomodar nem
incomodar os outros. (...)
Sabe que seu dever consiste em proclamar que Deus quis uma nova vonta-
de, uma nova vida, porém deixa reinar o espíri­to do medo, do engano, de
Mamon, da violência - a muralha construída pelo povo (Ez. 13.10). (...)
Ele disfarça-o pintando com as cores suaves e consoladoras da religião para
o contentamento de todo mundo. Eis aí o Falso profeta!
Fonte: Barth, 2000.

HISTÓRIA E ETHOS REFORMADOS


93

DA ORAÇÃO

Quando alguém fala de tradição reformada, vem a mente basicamente João


Calvino, e, inevitavelmente se pensa na predestinação. Grande engano, pois este
não é e nunca foi o tema central de Calvino. Surpreendentemente, a oração é o
capítulo mais longo das Institutas. João Calvino chamou a oração de o principal
exercício da fé, mediante a qual recebemos diariamente os benefícios de Deus.
Este foi um tema que sempre me impressionou em Calvino, a espiritualidade,
em especial o tema da oração. Ele era criticado por ser um jejuador inveterado.
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Orava e levava o povo a orar, para que não houvesse uma única casa em Genebra,
sem que ali tivesse alguma pessoa orando.
Quanto ao tema da oração, vamos usufruir da contribuição de Timothy
George (Teologia dos Reformadores, 1994. p. 227), afirma que “no princípio,
Calvino enfrentou uma questão levantada por suas próprias pressuposições teo-
lógicas: se a vida cristã inteira, desde o primeiro passo até a perseverança final,
é dom de Deus, por que orar então?”
Não podemos simplesmente continuar com nossas atividades no conheci-
mento seguro de que Deus tomará conta de tudo, independentemente de nossas
orações? Os que pensam dessa forma, Calvino dizia, não entendem o propósito
pelo qual Deus ordenou a oração - não é tanto por sua causa, quanto pela nossa.
Calvino condenava a hipocrisia daqueles que
“acreditam no rompimento dos tímpanos de Deus [...] para persuadi-lo
do que querem” .(Op.cit. Timothy George, p. 228). Para Calvino, os
fiéis não oram para contar a Deus o que ele não sabe, para pressioná-lo
em suas tarefas ou apressá-lo quando demora, mas sim a fim de aler-
tar a si mesmos para buscá-Io, para exercitar a fé meditando em suas
promessas, livrando-se de suas cargas ao se elevarem a seu íntimo.[...]

O que vemos nesse reformador é o seguinte: Mantenha esses dois pontos - nossas
orações são previstas por ele em sua liberdade; contudo, o que pedimos, conse-
guimos pela oração.
João Calvino apresentou quatro regras de oração para guiar o cristão em
suas “conversas com Deus”. Vejamos:

Da Realeza de Cristo e da Oração


94 UNIDADE II

A primeira regra de oração é que nos aproximemos reverentemente de


Deus, que elaboramos nossas orações devida e corretamente. Isso significa que
devemos evitar o tipo de leviandade e frivolidade que recorre a Deus como uma
espécie de amigo celeste, o “homem lá de cima”. Achegar-se verdadeiramente à
presença divina é ser movido pela majestade de Deus.
Nem devemos usar palavras vãs ou ostentadas.
“Quando oramos com uma intenção séria, a língua não ultrapassa o co-
ração, nem o favor de Deus é obtido por uma torrente vazia de palavras,
mas sim, os anseios que o coração devoto envia como setas são aqueles

Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.
que chegam aos céus.”, (Op. Cit. In Timothy George, 1993, p. 228).

Essa regra também significa que não exigiremos arrogantemente de Deus nada
mais do que ele permite, mas, como as Escrituras ensinam, pediremos tudo de
acordo com sua vontade.
A segunda regra de oração é que oremos com uma percepção sincera de
necessidade, e penitentemente. A oração é mais do que murmúrios piedosos.
Deve vir do coração, “das profundezas”, como disse o salmista.
Os verbos que Calvino empregou para descrever a oração verdadeira fri-
sam este princípio: na oração ansiamos, desejamos, temos fome, sentimos sede,
buscamos, pedimos, suplicamos, clamamos. E o elemento de arrependimento
também não deve estar ausente de nossas orações. Esse é um dos pontos que
precisamos urgentemente recobrar em nossos dias.
Deus não estabeleceu a oração para arrogantemente nos envaidecer perante
ele ou valorizar grandemente nossas próprias coisas. A oração serve para con-
fessarmos, lamentarmos nosso trágico estado; Como as crianças lançam seus
problemas sobre seus pais, assim é conosco diante de Deus.
Essa percepção do pecado estimula-nos, incita-nos, desperta-nos a orar. A
terceira regra da oração segue a segunda: devemos abandonar toda a confiança
em nós mesmos e humildemente suplicar perdão. Todo o propósito da oração,
e na verdade da vida cristã inteira, é a glória de Deus.
Isso significa que qualquer um que se põe diante de Deus para orar deve em
verdadeira humildade abdicar “de todo pensamento da própria glória, despir-
-se de toda noção de dignidade [própria], enfim, afastar-se de toda confiança de

HISTÓRIA E ETHOS REFORMADOS


95

si [mesmo]”, (Institutas, III, XX, 8). É apropriado, então, que comecemos nossa
oração confessando nossos pecados e reivindicando a promessa de perdão.
A quarta regra é que oremos com esperança confiante: “assim prostrados e
subjugados de verdadeira humildade, sejamos, não obstante, animados a orar, com
segura esperança de alcançar resposta”, (Institutas, III, XX, 11). Calvino chegou
a ponto de dizer que a única oração aceitável a Deus nasce da presunção da fé.
A base real de nossa esperança, obviamente, é o objeto para o qual nossas
orações se dirigem: oramos a nosso Pai celeste, o Pai de todas as misericórdias,
o Deus de todo o conforto; oramos por meio de Jesus Cristo, seu Filho e nosso
Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.

Senhor, em quem todas as promessas de Deus são confirmadas e cumpridas; ora-


mos por meio do Espírito Santo, que é nosso mestre na oração e que “suscita em
nós confiança, desejos, suspiros, a conceber os quais de modo nenhum seriam
suficientes as forças de [nossa] natureza (Institutas, III, XX, 5).
Essas quatro regras servem para guiar cada crente em sua oração íntima,
mas também se aplicam às orações comuns da igreja. De fato, Calvino afirmava
que a parte principal de seu culto é o momento da oração.
Ele não tinha paciência com aqueles que alegavam que podiam adorar tão
bem em casa quanto na igreja. A oração pública deve ser simples, direta, não as
“orações vazias” dos hipócritas. O canto também pertence ao ministério da ora-
ção, embora ele advertiu que não devemos estar mais atentos à melodia do que
ao sentido espiritual das palavras.
E, obviamente, a oração deve ser oferecida no vernáculo, não em grego entre
os latinos, nem em latim entre os franceses ou ingleses, mas na língua cotidiana,
compreendida pela assembléia inteira. Em 1.536, Calvino já havia descrito o
papel da oração na adoração a Deus:
Astuta, traiçoeira, desatenta é a mente que pensa sobre Deus, se não for
exercitada por fala e canto devotos.
A glória de Deus deve brilhar nas diversas partes de nosso corpo, e
em especial na língua, criada para cantar, declarar, contar, proclamar,
a louvor de Deus.
E a tarefa principal da língua é, nas orações públicas oferecidas na as-
sembléia dos crentes, com uma voz comum, com uma única boca, glo-
rificar a Deus juntos, adorá-Io juntos num só espírito, numa só fé. (Op.
cit. Timothy George, p. 229).

Da Realeza de Cristo e da Oração


96 UNIDADE II

Vemos assim que para a tradição reformada essa relação da vida e da teoria sem-
pre andavam juntas. A fé cresce sempre na comunhão dos redimidos.

Agora que você sabe quais as características fundamentais da tradição refor-


mada, pense o quanto isto tem sido pregado e ensinado na igreja em geral.
Fonte: O autor.

Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.
Assim findamos mais um de nossos tópicos, um tema que apaixona quem por
Deus tem sua paixão - quanto o nosso amor a Deus seduz a razão, nasce a teolo-
gia. Esse é o princípio que encontramos em todo itinerário da teologia reformada.








HISTÓRIA E ETHOS REFORMADOS


97

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Para os reformadores, fé e confissão, palavra e ato, devem andar juntas. Deus


redimiu mulheres e homens, velhos e jovens, altos e baixos, chamando a todos
a serem filhos de Deus, para dar a eles a maior alegria que alguém possa expe-
rimentar. Chamados para glorificar e servir a Deus pelo reconhecimento e pela
reivindicação de um viver cheio de desafios e dons, agindo em todo ser, em cada
aspecto da existência humana. O dom é Deus em Cristo, vivificado no coração
humano pelo Espírito Santo.
Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.

Para os reformadores fé e a oração sempre foram centrais na relação com


Deus, e tanto uma quanto a outra devem ser atitudes interiorizadas. Vemos nessa
assertiva que para eles sempre andavam juntas, a piedade e a erudição, a fé e a
ética, a espiritualidade e a vida.
Temos já visto em nosso curso que para os Reformadores do Século
XVI, tanto em seu primórdio, na Europa, quanto posteriormente em muitos
tempos e lugares, fé e adoração, oração e doutrina, sempre devem estar inti-
mamente entrelaçados.
De fato, embora a teologia de Calvino fosse visto, primeiramente, como
muito intelectual, ele em si mesmo colocava maior peso no coração; coração e
cabeça devem andar juntas, mas o coração é mais importante.
Para eles, era bem conhecida a insistência no ensino, na pregação e na cate-
quese, com um fim único, primário, revivificar o relacionamento do povo de Deus
com Deus. Outro ponto fundamental era o engajamento com o corpo de Cristo.
Para os reformadores nenhum cristão é um cristão à parte do Corpo de Cristo
– nenhum cristão, o pode ser sem a Igreja, corpo de Cristo, comunidade dos que
crêem. A igreja sempre foi visto como a mãe em cujos seios fomos nutridos. Essa
valorização do cognitivo e do constitutivo da vida cristã eram marcas da histó-
ria da teologia da reforma em todos dos tempos. Avancemos.

Considerações Finais
98

1. Sobre a tradição Reformada, é correto dizer:


a) A tradição reformada aponta como essencial as doutrinas escolásticas.
b) A ação essencial do ser humano é crer ser predestinado.
c) O fim principal do ser humano é glorificar a Deus.
d) A ação divina inutiliza a responsabilidade humana.
e) Tudo na tradição reformada baseia-se na doutrina da eleição.
2. A majestade de Deus é o centro de onde emanam todas as demais doutrinas
da Tradição Reformada. Tudo para a glória e louvor de Deus. Soli Deo Gloria
é o grande lema da teologia reformada. Desse modo, julgue as afirmações a
seguir:
I. A felicidade última do ser humano consiste apenas na contemplação de
Deus, isto é, viver segundo a racionalidade.
II. A soberania de Deus em primeiro lugar torna a atividade obediente superior
à contemplação.
III. O termo Reino de Deus põe toda ênfase na ação humana.
IV. Ênfase na majestade e senhorio de Deus é um tema da Teologia Reformada.
A partir das afirmativas apresentadas anteriormente, assinale a alternativa cor-
reta:
a) Apenas I e II estão corretas.
b) Apenas II e IV estão corretas.
c) Apenas I está correta.
d) Apenas II, III e IV estão corretas.
e) Nenhuma das alternativas está correta.
3. Contra a idolatria, é correto afirmar:
a) Para Lutero, o coração é fábrica de ídolos.
b) Calvino não distinguia em nada de outros Reformadores.
c) Para Calvino, a ênfase estava na majestade de Deus.
d) A marca central da dependência de Deus é viver uma vida de dependência
de tudo, mesmo de Deus.
e) O ponto central do ser humano é sua existência.
99

4. Sobre a ética, é correto afirmar:


a) A teologia nada tem a ver com a ética.
b) A vida cristã é demonstrada somente pela eleição.
c) Vida cristã é uma prática do viver uma vida regrada nas doutrinas santas.
d) O cristão deve demonstrar sua fé através da vida.
e) A pessoa eleita é chamada à passividade.
5. A partir dos conteúdos vistos em nossos estudos, assinale verdadeiro (V) ou
falso (F):
( ) A tradição humanista do século XVI imprimiu uma marca indelével sobre
todo o futuro da tradição reformada.
( ) A fé reformada tem sido sempre cuidadosa no estudo histórico das fontes
da fé, especialmente a Bíblia e o estudo clássico dos filósofos clássicos.
( ) Para João Calvino, a linguagem sem o devido uso da inteligência deve ser
muito desagradável a Deus.
A partir das afirmativas apresentadas anteriormente, assinale a alternativa que
apresenta, respectivamente, a sequência correta:
a) V, V, F.
b) F, F, V.
c) F, F, F.
d) V, F ,V.
e) V, V, V.
100

Eclesiologias da reforma e o mundo moderno


Anteriormente, observamos como reformadores tais como Lutero e Calvino estabelece-
ram uma nova visão acerca do que significa ser uma igreja cristã, eliminando qualquer
necessidade de continuidade institucional com a igreja medieval. Há dois - e apenas
dois - elementos essenciais numa igreja cristã: a pregação da Palavra de Deus e a admi-
nistração apropriada dos sacramentos.
Embora sinais de continuidade histórica com a igreja apostólica fossem bem-vindos, o
mais importante era a continuidade com o ensino apostólico. Isso abriu o caminho para
uma das características mais marcantes do protestantismo atual nos Estados Unidos e
em todo lugar - a proliferação radical de “igrejas”.
Os críticos católicos do protestantismo em geral indicam suas tendências inatas de se-
paração, as quais consideram como falta de cuidado com a unidade fundamental da
igreja. Essa “característica de família” do protestantismo atual pode ser remontada às
eclesiologias de Lutero e Calvino.
Com o auxílio da visão retrospectiva, pode-se perceber agora que elas estabeleceram
as bases conceituais que incentivaram pessoas empreendedoras a organizarem suas
próprias congregações, e até denominações, quando se fazia necessário se separar das
antigas comunidades.
Embora essa doutrina distintiva e característica da Reforma quanto à igreja date das dé-
cadas de 1520 e 1530, sua total importância só se tornou clara nos séculos 19 e 20. Essa
eclesiologia capacita indivíduos empreendedores, em geral motivados pela visão de
uma forma específica de ministério, a iniciar suas próprias congregações, ou até mesmo
suas próprias denominações. Pode bem haver uma única igreja universal, à qual perten-
cem todos os cristãos; porém, há inúmeras igrejas locais. Cada uma delas incorpora uma
ideia distinta do que significa ser cristão, frequentemente adaptando-se às especificida-
des de uma situação cultural local ou tendo sido modelada por uma controvérsia cuja
relevância teológica e poder emocional definham a cada ano que passa.
Não é injusto sugerir que a visão protestante da igreja desencadeou um processo darwi-
nista de competição e sobrevivência, gradualmente eliminando igrejas mal adaptadas e
assegurando que as sobreviventes sejam bem apropriadas para as necessidades e opor-
tunidades do momento. Esse modo de perceber as coisas permite ao protestantismo de
hoje lidar com rápidas mudanças culturais e sociais, o que frequentemente faz com que
as igrejas fiquem presas às realidades de uma era passada.
Pastores e pregadores empreendedores podem facilmente reformular a visão do evan-
gelho, adaptando-a às novas situações - de modo bem semelhante ao modo como vi-
sões mais antigas foram adaptadas às suas situações. Desse modo, poderão evitar que o
protestantismo fique preso numa “bolha temporal”.

Fonte: McGrath (2014, p. 300-301).


MATERIAL COMPLEMENTAR

O Pensamento da Reforma
Alister E. MacGrath
Editora: Cultura Cristã
Sinopse: este livro pretende explicar as ideias da Reforma e como elas afetaram
sua época e a nossa.
Comentário: a Reforma é uma das áreas de estudo mais fascinantes disponíveis
ao historiador. Nesta obra McGrath surpreende a todos ao mostrar aspectos
contemporâneos do que foi a Reforma para a história e a cultura da humanidade.
De fato foi uma mudança de paradigma, a criação de uma nova cultura.

Material Complementar
REFERÊNCIAS

BARTH, Karl. A Proclamação do Evangelho. São Paulo: Novo Século, 2000.


GEORGE, Timothy. Teologia dos Reformadores. São Paulo: Vida Novas, 1994.
LEITH, John H. A Tradição Reformada. São Paulo: Pendão Real, 1997.
FOSTER, Richard. Celebração da Disciplina. São Paulo: Vida, 1983.
McGRATH, Alister. O Pensamento da Reforma. São Paulo: Cultura Cristã, 2014.
PANNENBERG, W. Jesus, God and Man. Westminster Press, Philadelphia, 1977.
103
GABARITO

1. C.
2. B.
3. C.
4. D.
5. D.
Professor PhD. Silas Barbosa Dias

DOS TEÓLOGOS E DO

III
UNIDADE
PENSAMENTO REFORMADO

Objetivos de Aprendizagem
■ Apresentar as rupturas que se deram no Século XVI e que
propiciaram o contexto para a Reforma.
■ Conhecer o desenvolvimento das rupturas doutrinárias em conexão
com personagens que criaram a história, Erasmo e Zwinglio.
■ Resumir de forma assertiva a teologia da majestade da glória de Deus
em João Calvino.
■ Conceituar aspectos cognitivos da teologia reformada.
■ Descrever o desenvolvimento do pensamento teológico reformado.

Plano de Estudo
A seguir, apresentam-se os tópicos que você estudará nesta unidade:
■ Rupturas por um Novo Paradigma
■ Lutero, os Radicais e Zwinglio
■ João Calvino – Teologia da Majestade de Deus
■ Aspectos do pensamento teológico reformado
■ Desenvolvimento teológico
107

INTRODUÇÃO

Esta é uma unidade muito importante por tratar de um tema da história do pen-
samento cristão. Uma fundamental questão, que precisamos enfrentar sempre,
é a de como o pensamento foi construído. Em nosso caso, a teologia reformada
tem pressupostos básicos que foram sendo construídos.
Como já dissemos anteriormente, não se pode começar com os teólogos
ditos reformados sem passarmos pela construção teológica feita por Martinho
Lutero e Melanchton.
Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.

É pontual para a história da teologia reformada e da igreja em geral a expe-


riência de um monge agostiniano em sua cela monástica, Martinho Lutero. Ele
não apenas ensinou doutrinas diferentes, outros já o haviam feito, como Wyclif,
mas também levou a um movimento de ruptura, algo antes não conseguido por
outros contestadores. Fato notório é que o único homem que realmente conse-
guiu essa ruptura, e com ela transformou a face da terra, foi Lutero.
Falar de Lutero é falar sobre um dos poucos profetas da igreja cristã. Sua
grandeza é tremenda, mesmo se limitada por alguns traços de sua personalidade
e de desenvolvimentos posteriores de seu pensamento.
A proposta de Lutero foi a de um cristianismo purificado, que ao ser oriundo
da Reforma, conseguiu se estabelecer nos mesmos termos da tradição romana,
graças a ele. Por isso, devemos estudá-lo a partir deste ponto de vista.
Portanto, quando falamos de Lutero não estamos nos referindo ao teólogo
que produziu, o luteranismo. Muitos outros contribuíram para esse fim, mais
do que Lutero, como Melanchton. Estamos falando do homem que produziu a
ruptura do sistema romano e este ponto é fundamental para toda construção
da teologia reformada.
Sua grandeza não deve ser medida em comparação com o luteranismo, pois
este já é outra coisa. O luteranismo tem estado associado, historicamente, à orto-
doxia protestante e a movimentos políticos, até mesmo ao conservadorismo
prussiano, e tantas outras.

Introdução
108 UNIDADE III

RUPTURAS POR UM NOVO PARADIGMA

Essas rupturas aconteceram em face de três


desvirtuamentos do tipo de cristianismo pre-
sente na religião católica romana, e com isso
criou-se um novo paradigma religioso.
O que significa a palavra “religião” neste
contexto? Quer dizer nada mais do que um
outro tipo de relacionamento pessoal entre

Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.
o homem e Deus - entre o homem e Deus e
entre Deus e o homem.
Por isso a reunião das igrejas não tem
sido possível apesar dos tremendos esforços,
desde o século dezesseis até hoje. Pode-se
fazer acordos a respeito de doutrinas, mas
diferentes religiões não entram em acordo!
Ou adotamos a relação protestante para com
Deus ou a católica. Não se pode ter as duas.
Não se pode entrar em acordo a esse respeito
– são dois paradigmas.
Examinemos, em primeiro lugar, o propósito. A doutrina protestante pre-
tende dar ao homem a bem aventurança eterna, salvando-o da punição eterna.
As alternativas são o eterno prazer no céu ou o eterno sofrimento no inferno.
Alcança-se tal propósito por meio dos sacramentos (objetivo), nos quais a
graça mágica e divina fica de um lado, e a liberdade moral produtora de méritos,
do outro. A graça mágica é completada pela lei ativa, e a lei ativa é completada
pela graça (subjetiva).
O caráter quantitativo transparece também em termos de mandamentos éti-
cos. São de dois tipos: mandamentos e conselhos – mandamentos para todos os
cristãos; e conselhos, com o pleno jugo de Cristo, apenas para os monges e, par-
cialmente, para os sacerdotes. Por exemplo, o amor aos inimigos é conselho de
perfeição, e não mandamento para todos.

DOS TEÓLOGOS E DO PENSAMENTO REFORMADO


109

A ascese é conselho de perfeição só para alguns. As punições divinas também


são quantitativas. A punição eterna é para os pecados mortais, a do purgatório
para os pecados leves e a recompensa do céu, para as pessoas que já estão no
purgatório e, às vezes, para os santos ainda na terra.
O sistema católico baseia-se num relacionamento objetivo, quantitativo e
relativo entre Deus e homem, com a finalidade de trazer ao homem a felicidade
eterna. A estrutura básica é essa: objetiva, não pessoal; quantitativa, não quali-
tativa; relativa e condicionada, não absoluta.
O que nos leva a outra proposição: o sistema romano envolve certo geren-
Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.

ciamento divino-humano, representado e tornado real pelo gerenciamento


eclesiástico. Sob tais condições jamais alguém poderia saber se seria salvo, pois
jamais se pode fazer o suficiente; ninguém podia receber doses suficientes do
tipo mágico da graça, nem realizar número suficiente de méritos e de obras.
Como resultado desse estado de coisas, havia muita ansiedade no final da
Idade Média. As pessoas não conseguiam encontrar a misericórdia de Deus e se
livrar da má consciência. A arte do período expressa intensamente essa ansiedade,
que também é vista nas exigências de peregrinações cada vez mais frequentes,
no colecionamento e adoração de relíquias, nas repetições dos “padre-nossos”,
na dádiva de dinheiro, na compra de indulgências, na acese autotorturante e em
qualquer outra coisa que pudesse livrar as pessoas da culpa. Vale a pena olhar
com interesse para essa época, muito embora seja difícil entendê-la.
Lutero vivia num mosteiro com essa mesma ansiedade, em face da culpa
e da ameaça da condenação. Foi por causa dela que se internou no mosteiro e
foi também por sua causa que descobriu que nenhuma quantidade de práticas
ascéticas conseguia dar às pessoas a certeza da salvação num sistema de relati-
vidades, quantidades e coisas. Estava sempre com medo do Deus ameaçador, do
Deus punitivo e destruidor e perguntava: “onde posso encontrar o Deus miseri-
cordioso?”. A Reforma começou a partir daí e da ansiedade subjacente.
O que tinha Lutero a dizer contra o ponto de vista quantitativo, objetivo e
relativo de Roma? Dizia que a relação do homem para com Deus era pessoal. Era
uma relação de tipo Eu-Tu, sem qualquer mediação de pessoas ou coisas, esta-
belecida pela aceitação da mensagem da aceitação, que era o conteúdo da Bíblia.

Rupturas por um Novo Paradigma


110 UNIDADE III

Não se trata de determinado estado objetivo no qual se está. Trata-se de uma


relação pessoal que Lutero chamava de “fé”, não fé sujeita à crença em alguma
coisa ou doutrina, mas aceitação do fato de sermos aceitos. Qualitativa, não
quantitativa. Ou a pessoa se separa de Deus ou não. Não há graus quantitativos
de separação ou de não-separação.
No relacionamento entre pessoas pode-se dizer que há conflitos e ten-
sões, mas à medida que a relação é de confiança e amor, é qualitativa. Não é
quantitativa. Da mesma forma, é incondicionada e não condicionada, como
no sistema romano.

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Não se chega mais perto de Deus trabalhando-se mais pela igreja ou mor-
tificando-se o próprio corpo, mas apenas e unicamente ao se unir com ele. Se
alguém não se une a Deus, permanece separado dele. Um dos casos é incondicio-
nalmente positivo; o outro, incondicionalmente negativo. A Reforma redescobriu
as categorias incondicionais da Bíblia.
O perdão dos pecados ou a aceitação não se restringem apenas ao batismo
realizado no passado, mas constantemente necessário. O arrependimento mani-
festa-se em todas as relações com Deus e em todos os momentos.
Os elementos mágicos e legalistas desaparecem porque graça é comunhão
pessoal de Deus com o pecador. Não há qualquer possibilidade de mérito, ape-
nas a necessidade de aceitação. Não há nenhum poder mágico oculto em nossas
almas capaz de nos tornar aceitáveis, mas somos aceitos apenas no momento
em que aceitamos a aceitação de Deus. Portanto, rejeitam-se as atividades sacra-
mentais como tais.
Fica claro que os sacramentos persistem, mas significando coisa completamente
diferente. E as práticas ascéticas são rejeitadas para sempre porque são incapa-
zes de nos dar qualquer certeza. Neste ponto permanece certo mal-entendido.
A certeza é esta: se temos Deus, nós o temos. Se nós observássemos a nós
mesmos, considerando nossas experiências, pesando nossos atos de ascese e
medindo nossa moral, só chegaríamos à certeza se fôssemos extremamente auto-
complacentes ou cegos.
Para os reformadores, a única e absoluta punição é o desespero da separa-
ção de Deus. Consequentemente, a única graça é a união com Deus. Só isso!

DOS TEÓLOGOS E DO PENSAMENTO REFORMADO


111

Lutero reduziu a religião cristã a essa extrema simplicidade. Adolph von Harnack
(1851-1930), grande historiador do dogma, chamou Lutero de gênio da redução.
Lutero acreditava que reproduzia o ensinamento do Novo Testamento, espe-
cialmente de Paulo. Embora sua mensagem contenha a verdade de Paulo, não
reproduz tudo o que Paulo ensinou. A situação enfrentada por Lutero determi-
nou o que utilizou de Paulo, isto é, a doutrina da justificação pela fé, que era a
defesa do apóstolo contra o legalismo. Contudo, Lutero não desenvolveu a dou-
trina paulina do Espírito. Naturalmente, não a negou; até mesmo a mencionou,
muito embora sem lhe dar a mesma ênfase.
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O que nos chama atenção é o caráter crítico de Tillich à Lutero, quanto a esta
questão do Espirito – diz: E por isso a doutrina do Espírito de “estar em Cristo”,
a doutrina do “novo ser”, veio a ser um dos pontos mais fracos da doutrina de
Lutero da justificação pela fé.
Em Paulo, a situação é diferente. Paulo estabelece três centros em seu pen-
samento, elaborando um triângulo e não um círculo. Em primeiro lugar, temos
sua consciência escatológica, com a certeza de que em Cristo a escatologia se
realiza e começa a nova realidade. Em segundo lugar, a doutrina do Espírito, sig-
nificando que o reino de Deus apareceu e que o novo ser de Cristo já nos é dado
aqui e agora. Em terceiro lugar, Paulo se defende criticamente do legalismo por
meio da justificação pela fé. Lutero aceitava essas três posições, naturalmente,
mas a doutrina escatológica nunca foi realmente entendida por ele.

RUPTURA DOS SACRAMENTOS

Toda tradição evangélica, luterana e reformada, é devedora de Lutero. A rup-


tura de Lutero foi provocada externamente pelo sacramento da penitência. Há
dois principais sacramentos na Igreja Romana: a missa, que é parte da Ceia do
Senhor, e o sacramento da penitência, de caráter subjetivo, relacionado com o
indivíduo, com função predominantemente educativa. Este sacramento poderia
ser chamado de sacramento da subjetividade, em contraste com a missa, pree-
minentemente sacramento da objetividade.

Rupturas por um Novo Paradigma


112 UNIDADE III

A vida religiosa da Idade Média movimentava-se entre esses dois pólos.


Embora Lutero atacasse a missa, não centralizava nela a sua crítica. Sua
principal contenda tinha a ver com os abusos relacionados ao sacramento da
penitência. Esses abusos vinham das diferentes partes do sacramento: contri-
ção, o ato de confissão dos pecados, a declaração do perdão e a satisfação pela
culpa. O primeiro e último elementos eram os mais perigosos.
A contrição: arrependimento em si, mudança de mente. Era substituída
pela aflição, que era o medo da punição eterna; e arrependimento, segundo
Lutero, inspirado pela ameaça iminente do patíbulo. Assim, sem qualquer

Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.
valor religioso.
A satisfação: era também perigosa, não só porque os pecados seriam per-
doados por merecimento, por meio de obras de satisfação, mas principalmente
porque os penitentes tinham que realizar tais obras porque o pecado ainda per-
manecia neles depois do perdão.
O fato decisivo era, então, a humilde submissão às satisfações exigidas pelo
sacerdote. O sacerdote impunha ao communicandus qualquer tipo de reparação,
às vezes tão difíceis que as pessoas tinham medo de ter de cumpri-Ias.
A igreja, por sua vez, cedia a esse temor em termos de indulgências, que
eram também sacrifício. Era preciso sacrificar certas parcelas de dinheiro para
a compra das indulgências. Adquirindo-as, os penitentes não mais precisavam
cumprir as penas determinadas pelo confessor.
Segundo o pensamento popular, essas satisfações apagavam a consciência
de culpa. Pode-se dizer que se procedia a certo tipo de comércio da vida eterna.
Qualquer um podia comprar indulgências e livrar-se dessa forma de todas as
penas, tanto aqui na terra como no purgatório. Tais abusos levaram Lutero a
repensar o sacramento da penitência.
E chegou a conclusões completamente contrárias às da Igreja Romana.
Suas críticas levaram-no não apenas aos abusos, mas à sua origem no âmbito
da doutrina. E, por isso, Lutero escreveu suas famosas Noventa e Cinco Teses
em Wittenberg.
A primeira delas tornou-se fórmula clássica do cristianismo reformado:
“Nosso Senhor e Mestre, Jesus Cristo, ao dizer “arrependei-vos”, desejou que a
vida inteira dos fiéis fosse penitência”. Queria dizer que o ato sacramental era

DOS TEÓLOGOS E DO PENSAMENTO REFORMADO


113

apenas a forma em que se expressava uma atitude muito mais universal. O impor-
tante era a relação com Deus.
O que os reformadores trouxeram não foi nova doutrina, mas nova forma de
relacionamento com Deus. Essa relação não se expressava num comércio entre
Deus e homem, mas era pessoal e penitente, em primeiro lugar. E, em seguida,
relação de fé. Para Martinho Lutero o arrependimento está sempre presente em
qualquer relacionamento humano com Deus.
Lutero não atacava, na ocasião, o sacramento da penitência em si. Até mesmo
acreditava que as indulgências poderiam ser toleradas. Entretanto, não se con-
Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.

formava com o centro de onde vinham todos esses abusos. Essa era a questão
fundamental da Reforma.
Depois dos ataques de Lutero, as consequências seguiram-se naturalmente.
O dinheiro das indulgências só poderia ter valor em relação às obras impostas
pelo papa, isto é, às penas canônicas.
Os mortos no purgatório não poderiam ser libertados pelo papa, esse pode-
ria apenas orar por eles; não tinha poder sobre a morte. O perdão dos pecados
era ato divino e tanto o papa como qualquer outro sacerdote apenas podia decla-
rar o que Deus já fizera.
Não há nenhum outro tesouro além da obra de Cristo de onde as indulgên-
cias poderiam sair. Nenhum santo poderia realizar obras supérfluas, porque é
dever humano fazer tudo o que for possível.
O poder das chaves, que é o poder dos pecados, é concedido por Deus aos
discípulos que permanecem com ele. As únicas obras de satisfação são obras de
amor; todas as outras não passam de invenção arbitrária da igreja. Não há tempo
nem espaço para elas, porque na vida real precisamos ter consciência dessas obras
de amor que nos são exigidas a cada momento.
De acordo com a teologia da reforma, a única satisfação possível é a que fez
Cristo, não a nossa. O purgatório não passa de ficção da imaginação humana
sem qualquer fundamentação bíblica.
Fato é que o Papa não aceitou essas categorias absolutas de Lutero. E surgiu
o conflito de Lutero com a igreja. Mas deixemos claro que a cisão não começou
aí. Lutero esperava reformar a igreja, os papas e os sacerdotes. Mas o Papa e os
sacerdotes não queriam ser reformados.

Rupturas por um Novo Paradigma


114 UNIDADE III

Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.
LUTERO, OS RADICAIS E ZWINGLIO

Vejamos o lugar da relação teológica entre o pensamento que surge desde a rea-
lidade reformada e os radicais daquela época. É nesse contexto de conflitos de
ideias que surgem pensadores em sua relevância.

CONFLITO COM ERASMO DE ROTERDAM

Erasmo de Roterdam representava o humanismo da época. Lutero e Erasmo


foram amigos, no início. Mas logo se separaram. Ao se atacarem mutuamente,
criaram uma brecha entre o protestantismo e humanismo que até hoje não se
fechou, apesar dos esforços de Zwinglio, nas primeiras décadas do século XVI.
Erasmo era humanista e cristão, nunca se mostrou antireligioso. Considerava-se
melhor cristão do que qualquer papa. Mas, enquanto humanista, distinguia-
-se dos profetas em:
Em primeiro lugar, Lutero não conseguia aceitar o distanciamento não
existencial de Erasmo, nem sua falta de paixão pelos conteúdos religiosos, nem
mesmo sua atitude erudita em face dos conteúdos da fé cristã. Sentia em Erasmo
a ausência de compromisso com o que lhe parecia ser a preocupação suprema.

DOS TEÓLOGOS E DO PENSAMENTO REFORMADO


115

Em segundo lugar, Erasmo se mostrava cético em sua pesquisa, como em


geral os cientistas precisam ser perante as tradições e palavras que interpretam.
Lutero não aceitava o ceticismo. Precisava de formulações de caráter absoluto
em relação às coisas fundamentais.
Em terceiro lugar, Lutero era um radical tanto em questões políticas como
em outras. Erasmo se adaptava com mais facilidade às situações políticas – não
em seu próprio favor, mas para alcançar a paz na terra.
Em quarto lugar, Erasmo demonstrava atitude fortemente educativa. O
desenvolvimento do indivíduo em termos educacionais era o que lhe inte-
Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.

ressava. Desde então, todos os humanistas têm-se dedicado com paixão à


causa educacional.
Em quinto lugar, a crítica de Erasmo era sempre racional sem qualquer
agressividade revolucionária.
A discussão entre Lutero e Erasmo acabou se concentrando na questão da
doutrina da liberdade da vontade. Erasmo acreditava na liberdade humana;
Lutero não.
Tillich explica que nenhum deles duvidava da liberdade psicológica humana.
Não achavam que o ser humano fosse igual à pedra ou ao animal. Sabiam que
o ser humano era essencialmente livre e que era humano apenas à medida que
era livre. No entanto, a partir daí chegaram a conclusões opostas.
Erasmo achava que essa liberdade era válida até mesmo na relação com Deus,
que os seres humanos poderiam ajudar Deus e colaborar com ele para a salva-
ção. Para Lutero essa colaboração não era possível. Apagava a honra de Deus e
de Cristo e fazia do homem o que ele não era.
Por isso, Lutero começou a falar da “vontade escravizada”. Dizia que o livre
arbítrio estava “escravizado” e que era ridículo afirmar que a pedra não tem
livre arbítrio. Para ele, somente os que possuem livre arbítrio é que podem
ter a vontade escravizada, isto é, escravizada pelas forças demoníacas da rea-
lidade. Lutero acreditava que só se podia ter certeza na justificação pela fé e
que nenhuma contribuição humana à salvação poderia nos dar consolo. Para
Lutero, Erasmo negava o significado de Cristo e, finalmente, a honra de Deus.
Essa posição de Lutero afetará de forma positiva toda construção da teolo-
gia reformada.

Lutero, os Radicais e Zwinglio


116 UNIDADE III

Vemos então as diferenças fundamentais entre as duas atitudes. Os huma-


nistas empenhavam-se em análises descomprometidas e suas sínteses só podiam
ser de tipo moralista e não de tipo profético, que tudo vê unicamente à luz de
Deus. Até hoje essas duas correntes estão em conflito. Não somente no mundo
secular, mas até no intra eclesiástico.

THOMAS MÜNTZER

Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.
No dizer de Tillich (2007), quase todas as ênfases de
Lutero foram bem recebidas pelos evangélicos radi-
cais. Contudo, eles foram além, pois sentiam que
Lutero ficara no meio do caminho.
Em primeiro lugar, atacaram a doutrina de
Lutero a respeito da Escritura. Deus não falará apenas
no passado, tornando-se mudo no presente. Sempre falou; fala nos corações ou nas
profundezas de qualquer ser humano preparado para ouvi-lo por meio de sua pró-
pria cruz. Um nome que surgiu nesse período foi Müntzer.
Thomas Müntzer, o mais criativo do evangélicos radicais, acreditava que o
Espírito podia sempre falar por meio de indivíduos. No entanto, para se receber
o Espírito, era preciso participação na cruz. Ele afirmava que Lutero pregava um
Cristo doce, e que devemos também pregar o Cristo amargo, o Cristo que nos
chama a carregar a sua cruz.
A cruz, podemos dizer, representava a situação limite. Era externa e interna.
Surpreendentemente, Müntzer expressa esta ideia em termos existencialistas
modernos. Quando percebemos a finidade humana, desgostamo-nos com a tota-
lidade do mundo e nos tornamos pobres de espírito. O homem é tomado pela
ansiedade de sua existência de criatura e descobre que a coragem é impossível.
Nesse momento Deus se manifesta e ele é transformado.
Quando isso acontece, o homem pode receber revelações especiais. Pode ter
visões pessoais não apenas a respeito de teologia como um todo, mas também

DOS TEÓLOGOS E DO PENSAMENTO REFORMADO


117

sobre assuntos de vida diária. Acreditavam que Lutero, continuava meio, cató-
lico romano. Sentiam-se os eleitos.
Você já deve ter feito as ligações dessa forma de pensar com muitos grupos
sectários atuais. A própria mensagem da cruz se parece muito com a de Müntzer.
Muitos chegam até a uma morte do eu, egocídio radical. Algo para refletirmos,
teologicamente, hoje.
O que se observa nos movimentos evangélicos radicais é a ênfase na pre-
sença do Espírito divino e não nos escritos bíblicos como tais. O Espírito pode
se presentificar em qualquer pessoa a qualquer momento e lhe aconselhar sobre
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o que deve fazer nos afazeres cotidianos.


Lutero tinha uma posição diferente, seu sentimento básico era da ira de
Deus, do Deus que julga. Portanto, quando menciona a presença do Espírito,
relaciona-a com o arrependimento e com a luta pessoal, que não permitem ter
o Espírito como posse. Essa era a diferença entre os reformadores e todas as ati-
tudes perfeccionistas e petistas.
Para Paul Tillich (2007), a segunda maneira de como a teologia da Reforma
difere da teologia dos movimentos Evangélicos radicais tem a ver com o signi-
ficado da cruz.
Para os reformadores, a cruz é o evento objetivo da salvação e não mera
experiência pessoal da criatura humana. Portanto, a participação na cruz, em
termos de fraqueza humana ou de esforço moral para a superação dessa fra-
queza, não era o verdadeiro problema tratado pela Reforma. Naturalmente,
pressupunha-se tudo isso.
É muito interessante atualmente observarmos que essas duas matizes ainda
podem ser vistas – a linha da teologia da Reforma, sublinhando alguns a objetividade
da salvação por meio da cruz de Cristo e outros a tomada da cruz sobre suas vidas.
Não são aspectos contraditórios, mas, como na maioria dos problemas
da existência, é mais uma questão de ênfase do que de exclusividade. Os mais
influenciados pela tradição da Reforma dão mais ênfase à objetividade da cruz
de Cristo, enquanto os que vêm da tradição evangélica, dão mais ênfase à tomada
da cruz sobre si mesmos, a cruz da miséria.

Lutero, os Radicais e Zwinglio


118 UNIDADE III

Em terceiro lugar, em Lutero a revelação depende sempre da objetividade


da revelação histórica registrada nas Escrituras, e não no mais profundo da alma
humana. Lutero acusava a crença dos sectários sobre a possibilidade da reve-
lação imediata na situação humana real, fora da revelação histórica escrita na
Bíblia, de ser mero orgulho.
Em quarto lugar, Lutero e toda a Reforma, incluindo Zwinglio, acentuaram
o batismo infantil como símbolo da graça proveniente de Deus, significando que
ela não depende de nossa reação subjetiva. Lutero e Calvino acreditavam que
o batismo era um milagre divino. O importante é que Deus inicia a ação, coisa

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que pode muito bem acontecer antes de qualquer responso humano. O tempo
que vai do evento do batismo até o momento indefinido da maturidade não tem
a menor importância diante de Deus.
O batismo é a oferta divina do perdão, a que a pessoa sempre deve retomar.
O batismo de adultos, por outro lado, acentua a participação subjetiva com a
capacidade do homem maduro para a decisão. Lutero e os outros reformadores
preocupavam-se com a maneira como as seitas se isolavam reivindicando ser a
verdadeira igreja e serem seus membros os eleitos.
Finalmente, a última diferença refere-se à escatologia. A escatologia da
Reforma levava os reformadores a negar a crítica revolucionária dirigida ao
estado que encontramos nos movimentos sectários. A escatologia da Reforma,
a respeito do iminente reino de Deus, era verticalista sem qualquer interesse na
linha horizontal que, por assim dizer, era deixada ao diabo.

HULDREICH ZWINGLIO.

Pensar na história da reforma exige enfatizarmos um


dos mais significativos pensadores da época, Zwinglio.
É muito relevante a forma que Tillich (2007) descreve
criticamente Zwinglio. Este não teve a mesma origi-
nalidade de Lutero e dependia, em parte, do grande
reformador alemão. Não é fácil descrever o caráter de
seu cristianismo. Foi também bastante influenciado

DOS TEÓLOGOS E DO PENSAMENTO REFORMADO


119

pelos humanistas, mantendo-se amigo de Erasmo até o fim de sua vida. Nem ele
nem Melanchthon se separaram de Erasmo, como Lutero fez.
De fato, eram ao mesmo tempo humanistas e cristãos. Eram cristãos huma-
nistas. Especialmente Zwinglio. A autoridade das Escrituras em Zwinglio se
baseava no apelo da Renascença: volta às fontes! A Bíblia é a revelação de Deus.
“Deus quer ser ele mesmo o mestre” (TILLICH, 2007, p. 254). Lutero jamais
teria dito uma coisa dessas. Para Lutero Deus era muito mais poderoso do que
mestre. A diferença fundamental é que Zwinglio tinha uma doutrina do Espírito
bastante desenvolvida em contraste com Lutero e os outros reformadores. “Deus
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pode conceder a verdade, por meio do Espírito, também aos que não são cris-
tãos” (TILLICH, 2007, p. 254).
A verdade sempre é dada pelo Espírito a quem quer que seja, e o Espírito
se faz presente mesmo sem a palavra da Bíblia. Essa doutrina representava, de
certa forma, a libertação do fardo bíblico com que Lutero sobrecarregava o povo.
Interessante e intrigante é essa assertiva de Tillich: Lutero ensinava uma
forma dinâmica de vida cristã. Zwinglio e também Calvino ensinavam, ao con-
trário, uma forma estática. Fé era saúde psicológica. As pessoas psicologicamente
equilibradas podem ter fé e vice-versa.
Para Lutero, a fé era dinâmica, com altos e baixos. Para Zwinglio, era muito mais
humanisticamente equilibrada. Assemelhava-se à ideia burguesa de saúde. ‘’A fé
cristã é sentida na alma do crente, como a saúde no corpo” (TILLICH, 2007, p. 256).
Conforme Tillich, a reforma suíça sintetiza a Reforma e o humanismo.
Calvino, que estudaremos mais adiante, dependia tanto de Lutero como de
Zwinglio, mas, apesar de ter preferido Lutero, até certo ponto, nunca deixou de
demonstrar em seus escritos a erudição clássica, no estilo e no conteúdo, oriunda
de sua educação humanista.
Entretanto, onde quer que a teologia liberal tenha aparecido, desde o século
dezessete até o dezenove, esteve sempre mais na linha de Zwinglio do que de
Calvino. Conforme já mencionado, Zwinglio acreditava na ação direta do Espírito
na alma humana, normalmente por meio da Palavra da Bíblia e que, não obstante,
Deus podia agir extraordinariamente por meio de pessoas que nunca tiveram
qualquer contato com a mensagem cristã, por meio de adeptos de outras religi-
ões e por meio de humanistas.

Lutero, os Radicais e Zwinglio


120 UNIDADE III

Lutero e Zwinglio divergem também na doutrina dos sacramentos (TILLICH,


2007, p. 257). O debate entre Zwinglio e Lutero, em Marburgo, em 1529, deixava
claro o contraste entre dois tipos de experiência religiosa, a mística e a intelectual.
Zwinglio achava que o sacramento é “sinal seguro ou selo”, que, como qual-
quer símbolo, serve para nos despertar a memória; ao participar no sacramento
expressamos nossa vontade de pertencer à igreja. O Espírito divino age ao lado
dos sacramentos e não por meio deles. Trata-se de um sinal obsequioso, como
um distintivo. É um símbolo inspirador, mas nada tema ver com a fé e a salvação
subjetivas, dependentes apenas da predestinação. Na controvérsia eucarística, o

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ponto em questão parecia, na superfície, não passar de mera questão de tradução,
mas na verdade o que estava em jogo era um espírito diferente. A discussão girava
em torno da palavra “é”, na frase: “Este é meu corpo” (TILLICH, 2007, p. 257).
Os humanistas costumavam interpretar esse “é” como “significa” ou “quer
dizer”. Lutero entendia que tinha que ser interpretado literalmente: o corpo de
Cristo estava literalmente presente. Segundo Zwinglio o corpo de Cristo se fazia
presente à contemplação da fé, mas não per essentiam et realiter (por essência e
em verdade). “O corpo de Cristo é comido quando cremos que foi morto por
nós”. Tudo passa para o lado objetivo. Representa um evento do passado. Não
é um evento presente. O evento presente é meramente subjetivo, na mente do
fiel. Cristo se faz, certamente, presente na mente, com seu Espírito, mas não na
natureza (TILLICH, 2007, p. 257).
A mente só pode ser alimentada pela mente, ou o espírito pelo espírito, mas não
pela natureza física. Zwinglio mantinha contra Lutero que o corpo de Cristo estava
no céu circunscrito, isto é, num lugar definido. Dessa forma, o corpo de Cristo era
uma coisa individual; não participava na infinidade divina. Assim como qualquer
homem com seu corpo, Cristo era finito, mantendo-se separadas as duas naturezas.
A Ceia do Senhor era memória e confissão, mas não comunhão pessoal com
alguém realmente presente. Lutero dava ênfase na realidade da presença, e, para
ressaltar essa ideia, inventou a doutrina da onipresença do corpo elevado de Cristo.
A presença de Cristo se repetia, pois, em todas as celebrações da Ceia do Senhor.
Identificavam-se a pessoa histórica e a pessoa sacramental. Para explicar,
Lutero dizia: “Onde se põe Deus, aí também se põe a humanidade; não se pode
separar um sem cortar do outro; Deus e homem são uma só pessoa”. É do demônio

DOS TEÓLOGOS E DO PENSAMENTO REFORMADO


121

afirmar-se que o caráter divino do Cristo corpóreo não passa de símbolo ou


metáfora. Lutero rejeitava completamente a ideia de que a divindade de Cristo se
separara de sua humanidade no céu. Até mesmo no céu estão juntas. Expressou
essa ideia na doutrina profunda e fantástica da ubiquidade do corpo de Cristo
ou da onipresença do corpo de Cristo subido ao céu.
Ao final desse debate sobre a Ceia do Senhor, os reformadores chegaram a
certo acordo. Negaram a doutrina da transubstanciação; muito embora não con-
seguissem concordar a respeito da ubiquidade da presença de Cristo.
Segundo Tillich (2007, p. 258), a grande
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diferença espiritual tinha a ver com o sentido religioso de natureza.


Segundo o pensamento de Zwinglio, a natureza é controlada e sujeita a
cálculo por causa da regularidade de suas leis. O naturalismo dinâmico
de Lutero, ao contrário, desvenda até mesmo os abismos demônicos da
natureza e não se interessa por nenhuma lei da natureza.

Duas frases latinas expressavam essas diferenças. A fórmula luterana rezava:


finitum capax infiniti - o finito é capaz do infinito. A fórmula reformada dizia:
finitum non capax infiniti - o finito não é capaz de conter o infinito. Essa dife-
rença fundamental apareceu primeiramente na cristologia e depois se estendeu
à vida sacramental inteira e às relações com a natureza.

Lutero, os Radicais e Zwinglio


122 UNIDADE III

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JOÃO CALVINO – TEOLOGIA DA MAJESTADE DE DEUS.

Há mencionamos anteriormente o que centralizou o ethos, ou o caráter da tra-


dição reformada. No entanto, agora iremos mostrar essa construção dentro da
história do pensamento cristão, em especial dialogando com Paul Tillich (2007).
Sabemos que o centro de onde emanam todas as demais doutrinas de Calvino
é a doutrina de Deus. Alguns acham que sua doutrina fundamental é a da pre-
destinação. Essa opinião é facilmente refutável, uma vez que na primeira edição
das Institutas, a doutrina da predestinação não havia nem mesmo sido desen-
volvida. Foi só nas edições posteriores que passou a ocupar espaço proeminente.
Pode também ser refutada a partir de ângulos até mesmo mais importantes.
A doutrina de Deus é sempre o elemento fundamental em qualquer teolo-
gia. Para Calvino, a doutrina central do cristianismo é a da majestade de Deus.
Ensinou a correlação entre miséria humana e majestade divina, pois somente a
partir da miséria humana podemos entender a majestade divina, e vice-versa,
apenas à luz da majestade divina é que entendemos a miséria humana.
Por outro lado, Calvino desenvolveu curiosa teoria do simbolismo cristão.
Os símbolos são significações da essência incompreensível de Deus. Acreditava
que os símbolos devem ser momentâneos, prontos a desaparecer e a se negar.
Não são a coisa em si.

DOS TEÓLOGOS E DO PENSAMENTO REFORMADO


123

Para Calvino, a religião sempre foi fábrica de ídolos. Portanto, o cristão e o


teólogo precisam estar alertas contra essas tendências idólatras prontas a inter-
ferir no seu relacionamento com Deus.
Calvino se “opôs ao uso de quadros nas igrejas e a qualquer coisa que pudesse
desviar a mente do Deus transcendente” (TILLICH, 2007, p. 260). É por essa
razão que as igrejas calvinistas se caracterizam por espaços sagrados sem imagens.
O que se deu com os profetas e depois com os maometanos dá-se agora
com os reformadores. O calvinismo pode ser considerado um movimento ico-
noclasta, destruindo ídolos e todas as representações pictóricas, sob a alegação
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de que nos desviam de Deus.


A ideia de que a mente humana é “fabricadora de ídolos” é uma das mais pro-
fundas afirmações feitas sobre o nosso pensamento a respeito de Deus - revela a
grandeza teológica de Calvino. Até mesmo a teologia mais ortodoxa não passa,
muitas vezes, de mera idolatria.
Tillich diz que a situação humana é descrita por Calvino em termos muito
mais negativos do que por Lutero. “Por causa de nossa tendência natural à hipo-
crisia, qualquer aparência vã de retidão contenta-nos muito mais do que a própria
realidade” (TILLICH, 2007, p. 261). E a realidade é o nosso pecado. O homem
não suporta sua realidade. Não se vê como é.
Como dizemos atualmente, o homem é ideológico a respeito de si mesmo.
Produz imagens irreais sobre o seu próprio ser. Trata-se de ataque radical à situ-
ação humana, embora corresponda a Deus enquanto o Deus da glória. Quando
Calvino se refere ao Deus de amor, sempre o faz no contexto dos eleitos. É para
eles que Deus revela seu amor.

PROVIDÊNCIA E ELEIÇÃO DIVINA

Algumas centenas de anos antes do surgimento do deísmo, na Inglaterra,


Calvino advertia contra essa ideia. Em lugar dessa ideia, acreditava num
Deus que governava e dirigia o mundo de tal maneira que todo o movimento
dependia dele. O deísmo não passava de desejo carnal destinado a afastar
Deus de nosso meio.

João Calvino – Teologia da Majestade de Deus.


124 UNIDADE III

Se Deus permanece sentado em seu trono, sem se preocupar com o mundo,


o mundo fica somente nosso. Era o que queriam o iluminismo e a sociedade
industrial. Não toleravam um Deus constantemente envolvido com o mundo.
Precisavam de um Deus que tivesse iniciado o mundo, mas que ficasse de fora,
sem perturbar os comerciantes em suas transações e os criadores da indústria.
Calvino repudiava essa ideia: ‘’A fé tem que penetrar mais além”. Deus é o
preservador perpétuo do mundo, “não por meio de certa atividade universal que
põe em movimento a máquina do mundo, bem como todas as suas partes, mas
por meio de seu sustento particular e providencial que nutre e mantém tudo o

Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.
que fez” (TILLICH, 2007, p. 263).
Na verdade, tudo isso pressupõe um processo divino dinâmico dentro das
próprias leis dadas por Deus. Sabia que a doutrina da lei natural corria o perigo
de alijar Deus do centro da realidade. Calvino afirmava então que todas as coi-
sas possuíam caráter instrumental: são instrumentos que Deus sempre utiliza.
Quem chama essa doutrina de panteísmo não sabe o que o termo significa.
Contudo, se a chamarmos de pan-en-teísmo estaremos certos, pois significa que
todas as coisas estão em Deus. Atualmente essa visão é bem nítida na teologia
de Moltmann, teólogo reformado.
Relacionada com essa doutrina da providência, vinha a da predestinação.
Predestinação é providência relacionada com o fim último do ser humano. É a
providência que conduz o ser humano pelos caminhos da vida até seu destino
final. Assim, a predestinação nada mais é do que a implicação lógica da realiza-
ção última da providência.

ELEIÇÃO, ASSUNTO INQUIETANTE

Minhas leituras em Calvino ao longo dos anos, tem me feito ver Calvino com
outros olhos. Tive aulas em Amsterdam com Willem Balke, um dos maiores
especialistas em João Calvino de todos os tempos. Ele me disse que a ênfase de
Calvino nunca foi a predestinação, mas o Espírito Santo e a Palavra.
O que quer dizer essa doutrina da predestinação? A questão por trás desta
doutrina é: por que nem todas as pessoas recebem a mesma possibilidade de

DOS TEÓLOGOS E DO PENSAMENTO REFORMADO


125

aceitar ou de rejeitar a verdade do evangelho? Nem todos têm a mesma possi-


bilidade histórica, pois nunca ouviram falar de Jesus; nem todos têm a mesma
possibilidade psicológica, uma vez que vivem numa condição que não conse-
guem nem mesmo entender o significado da pregação.
A resposta para isso é a providência divina, que, como já vimos, no que diz
respeito ao nosso destino eterno, chama-se predestinação. No momento em que
o cristianismo dá ênfase na singularidade de Cristo, é preciso questionar o por-
quê de muitas pessoas nunca terem ouvido a respeito dele e, ainda, o porquê de
aquelas que ouviram falar dele terem se tornado tão pré-condicionadas a essa
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pregação que não lhes comunica sentido algum.


Este assunto precisa ser refletido adequadamente dentro da Teologia
Sistemática. Aqui, nosso propósito é o aspecto construtivo do tema dentro da
história da tradição reformada.
Sendo assim, continuemos observando o seguinte: há um outro lado nesta
doutrina. Os que fazem essas perguntas recebem a certeza da salvação porque a
predestinação torna a salvação completamente independente das oscilações de
nosso ser humano – isso é fabuloso no sentimento dos filhos da reforma.
O desejo de certeza de salvação é a segunda razão para a doutrina da predes-
tinação em Paulo, Agostinho, Lutero e Calvino. Não podiam encontrar certeza
ao sondarem a si mesmos, porque a fé era sempre fraca e mutável. Só encontra-
vam essa certeza fora deles, na ação de Deus – a isto, chamam graça.

ASPECTOS DO PENSAMENTO TEOLÓGICO REFORMADO

Para Lutero, a vida nova é a alegre reunião com Deus; para Calvino, o cumpri-
mento da lei de Deus. Assim, o sumário da vida cristã é auto-negação, ou seja,
que, ao aprender que não se pertence a si mesmo, submete-se, em seguida, à
soberania e ao governo da razão, para, por fim, submetê-Ia a Deus.

Aspectos do Pensamento Teológico Reformado


126 UNIDADE III

O que descreve a vida cristã para Calvino não são os altos e baixos de Lutero,
o êxtase e o desespero. Para Calvino, a vida cristã é uma linha ascendente, que
sobe mediante estágios metódicos.

A INFLUÊNCIA DE PLATÃO

Há ainda dois outros elementos na doutrina da vida cristã de Calvino: o mundo,


que o é lugar de nosso exílio; e o corpo, que não passa de prisão da alma, sem

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qualquer valor. São palavras bem mais na tradição de Platão do que do Antigo
ou do Novo Testamento. Contudo, Calvino negava que tivesse qualquer ódio à
vida. Sua ascese não era do tipo romano, que tendia a vida ou o corpo por meio
de exercícios físicos; era o que Max Weber e Ernst Troeltsch chamavam de asce-
tismo intramundano. Essa ascese possuía duas características: limpeza e lucro
por meio do trabalho.
A limpeza era entendida como sobriedade, castidade e temperança e teve tre-
mendas consequências na vida das pessoas nos países calvinistas. Expressava-se
em extrema limpeza externa e identificava o elemento erótico com a sujeira. Essa
deturpação do erótico contrariava os princípios da Reforma, mas era consequ-
ência natural da ética de Calvino.
A segunda característica desse ascetismo intramundano era a atividade no
mundo para produzir instrumentos e ferramentas, com os quais se alcançava
lucro. É o que Max Weber chamou de “o espírito do capitalismo”, em sua obra A
ética protestante e o espírito do capitalismo.
Tillich (2007) assim coloca esse assunto: essa doutrina tem sido tão mal
entendida que preciso fazer algumas considerações a respeito. Para muita gente,
grandes pensadores como Max Weber e Ernst Troeltsch teriam afirmado que o
calvinismo produziu o capitalismo.
Então, essas pessoas querem ensinar a Weber, que foi, provavelmente, o maior
pensador do século XIX nos campos da sociologia e dos estudos humanísticos, o
que ele certamente já sabia. Pensam que lhe ensinam novidades afirmando que o
capitalismo já existia antes de Calvino, especialmente na planície da Lombardia,

DOS TEÓLOGOS E DO PENSAMENTO REFORMADO


127

ao norte da Itália, nas cidades alemãs do norte e do sul, em Londres etc.


O que Weber realmente afirmou é que havia qualquer coisa no espírito da
ética calvinista, e de certas éticas sectárias relacionadas com o calvinismo, voltada
aos propósitos do investimento, importante elemento da economia capitalista.
Nas economias pré-capitalistas, os ricos ostentavam suas riquezas em
estilos luxuosos de vida, construindo castelos, mansões e belas residên-
cias aristocráticas. O calvinismo, porém, mostrou que a riqueza poderia
ser usada de outra forma. Havia, por um lado, as dotações; e, por outro, os
novos investimentos. As economias capitalistas alimentam-se da transfor-
Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.

mação do lucro em investimentos, gerando aumento da produção, em vez


do desperdício desse lucro em estilos luxuosos de vida. Era isso o que Max
Weber queria dizer.
Se vocês não acreditam no acerto das análises de Weber, posso lhes dizer que
na Alemanha Oriental, antes das catástrofes do século vinte, as cidades protes-
tantes eram ricas, e as católicas, pobres. É provável que os pobres fossem mais
felizes do que os ricos. Mas as cidades e capitais, influenciadas pelo calvinismo,
produziram o capitalismo na Alemanha. As cidades influenciadas pelos católi-
cos e pelos luteranos não acompanharam as tendências calvinistas.
Para que essa visão acerca das análises de Weber possa ser validada, pode-
mos observar a Alemanha Oriental antes das catástrofes do século XX, que,
apresentava um cenário em que as cidades protestantes eram ricas, enquanto
aquelas católicas eram pobres. É provável que os pobres fossem mais felizes do
que os ricos, mas as cidades e capitais influenciadas pelo calvinismo produziram
o capitalismo na Alemanha. Já as cidades influenciadas pelos católicos e pelos
luteranos não acompanharam as tendências calvinistas.

A ECLESIOLOGIA

A doutrina da igreja de Calvino assemelha-se a de Lutero; a igreja é o lugar onde


se prega e onde os sacramentos são corretamente administrados. Entretanto,
Calvino estabelece radical distinção entre a igreja empírica e a invisível.

Aspectos do Pensamento Teológico Reformado


128 UNIDADE III

Para Lutero a igreja invisível é apenas a qualidade espiritual da igreja visível,


para Calvino a igreja invisível é o corpo dos predestinados em todos os períodos
da história, nem sempre dependente da pregação da Palavra. Essa ideia prende-se
à doutrina do Espírito Santo, em Zwinglio e Calvino. O Espírito opera também
fora da mensagem cristã e é, portanto, universalmente ativo.

OS SACRAMENTOS E A DISCIPLINA

Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.
A diferença entre a doutrina de Calvino e a de Lutero é que em vez de duas mar-
cas, doutrina e sacramentos, como ensina Lutero, a igreja, para Calvino, tinha
três: doutrina, sacramentos e disciplina.
Para Calvino, o elemento mais importante era a disciplina. Para ele, a dou-
trina salvadora de Cristo é a alma da igreja, desta forma a disciplina tece os
segmentos que reúnem os membros da igreja, ao mesmo tempo em que os con-
serva cada qual em seu lugar.

OS OFÍCIOS DA IGREJA

Na igreja, podemos observar quatro ofícios: pastores ou ministros, doutores ou


mestres, presbíteros e diáconos. Os pastores e os presbíteros são os ofícios mais
importantes. Todos procedem da ordem divina, sendo, portanto, necessários;
derivam-se da Bíblia.
Nesse status misturado, a igreja sempre conserva em seu interior, uma
comunidade de santificação ativa. Essa comunidade é criada pela igreja e se
manifesta na Ceia do Senhor. É por isso que a recepção da Ceia vem sempre
precedida de disciplina.
Não entraremos na discussão pormenorizada da doutrina calvinista dos
sacramentos – é um campo para a teologia sistemática. O mais importante, no
entanto, é a preocupação de Calvino de mediar entre Lutero e Zwinglio. Não
queria que a Ceia do Senhor fosse apenas uma refeição comemorativa; queria
a presença de Deus, mas não uma presença derivada da superstição e magia,

DOS TEÓLOGOS E DO PENSAMENTO REFORMADO


129

como achava encontrar na doutrina de Lutero, na qual até mesmo os descren-


tes comiam o corpo de Cristo.
Sobre a Ceia, Calvino acentuou a presença espiritual de Cristo. Segundo
Tillich (2007), é fundamental ver o humanismo social de João Calvino, que, por
ser humanista, concedeu ao Estado muito mais funções do que Lutero.
Lutero dava ao Estado apenas uma função: suprimir o mal e preservar a socie-
dade do caos. Calvino desenvolveu as ideias humanistas de bom governo, de ajuda
ao povo etc. No entanto, Calvino jamais chegou ao extremo de afirmar, como
certos movimentos sectários, que o Estado poderia ser o próprio reino de Deus.
Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.

Eis uma das mais contundentes afirmações de Paul Tillich (2007): Calvino
salvou o protestantismo de ser devastado pela Contra-Reforma. O calvinismo
transformou-se, logo, num tremendo poder internacional fortalecido por alian-
ças entre os protestantes do mundo todo.
Outro elemento importante no calvinismo é a possibilidade da revolução.
Calvino, assim como Lutero, também achava que as revoluções contrariavam a
lei de Deus, mas admitiu uma exceção que veio a ser decisiva para a história da
Europa Ocidental. Entendia que, embora os cidadãos individuais não devessem
ter permissão para iniciar a revolução, os magistrados menos graduados poderiam
fazê-lo sempre que a lei natural, a que todos se submetem, começasse a ser violada.

O LUGAR DAS ESCRITURAS

Desde muito sabemos que as Escrituras ocupam lugar central nos cultos refor-
mados. Todos os crentes da tradição reformada gozam de alta reputação quanto
à seriedade dos estudos das Escrituras.
A doutrina da autoridade das Escrituras, em Calvino, é importante porque
incentivou o surgimento do amor pela Bíblia, presente em todos os grupos pro-
testantes. A Bíblia, para Calvino, era a lei da verdade. A Bíblia deve, pois, ser
obedecida acima de qualquer outra coisa.
A Bíblia inteira teria sido escrita “a partir da boca de Deus”, desaparecendo
qualquer distinção entre o Antigo e o Novo Testamento. Essas ideias ainda per-
sistem em todos os países calvinistas.

Aspectos do Pensamento Teológico Reformado


130 UNIDADE III

DESENVOLVIMENTO TEOLÓGICO

Examinaremos agora o ritmo do desenvolvimento da teologia reformada nos


últimos séculos. Como se desenvolveram algumas das doutrinas?
Tal conhecimento é importante não apenas do ponto de vista histórico, mas
também porque os elementos criados nesse período estão profundamente envol-
vidos com as nossas mentes, almas e corpos. Tillich (2007) afirma que embora
não nos seja possível oferecer uma história da teologia protestante, podemos
mostrar as várias correntes presentes em seu desenvolvimento.

Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.
O culto reformado tem algumas características:
Integridade: uma volta às origens bíblicas. Calvino afirmava: “Não somos
livres para escolher à vontade tudo o que não está ordenado nas Escrituras.
Inteligibilidade: a Reforma promoveu a tradução da Bíblia e sua utilização
na pregação no idioma do povo.
Simplicidade: as cerimônias religiosas da época eram pomposas, com um
ritual complicado. A Reforma promoveu a simplicidade, para que todos pu-
dessem entender (inteligibilidade).
Sacerdócio universal: a celebração litúrgica, antes da Reforma, era feita
pelo sacerdote; o povo assistia o que era realizado por ele. A Reforma pro-
moveu a participação do povo no culto, valorizando, especialmente, o cân-
tico congregacional.
Edificação: a celebração litúrgica da época anterior à Reforma era um fim
em si mesmo. A Reforma estabeleceu que o culto tem de estar vinculado à
vida em sociedade, promovendo transformações éticas e morais, estando
ligado à prática da justiça.
Fonte: Lacerda (2017, p. ).

DOS TEÓLOGOS E DO PENSAMENTO REFORMADO


131
Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.

ORTODOXIA

A corrente, surgida imediatamente depois da Reforma, é conhecida pelo nome


de ortodoxia. Trata-se de movimento maior e mais sério do que o assim chamado
fundamentalismo nos Estados Unidos. O fundamentalismo resultou de uma rea-
ção no século XIX, não passando de forma primitivizada da ortodoxia clássica.
A ortodoxia clássica relacionou-se com uma grande teologia. Poderíamos
chamá-Ia de escolástica protestante, com todos os refinamentos e métodos que
a palavra “escolástica” inclui.
É a sistematização e a consolidação das ideias da Reforma, desenvolvidas
em contraste com a Contra-Reforma. A teologia ortodoxa foi, e ainda é, a base
sólida de onde emanaram todos os desenvolvimentos posteriores, tenham sido
eles - como foram em geral - dirigidos contra a ortodoxia ou meras tentativas
de restaurá-Ia.
A teologia liberal, até hoje, tem sido dependente da ortodoxia, contra a qual
constantemente se rebela. O pietismo também dependeu da ortodoxia, querendo
transformá-Ia em subjetivismo. Movimentos de restauração, no passado e no
presente, tentam recuperar o que teve vida no período da ortodoxia.

Desenvolvimento Teológico
132 UNIDADE III

Tillich (2007, p. 273) diz que “não se pode entender pensadores como
Schleiermacher ou Ritschl, o liberalismo americano ou a teologia do evangelho
social, sem se conhecer a ortodoxia”. Sem essa base, não saberemos contra o que
essas teologias se dirigem ou de que dependem.

RAZÃO E REVELAÇÃO

Vamos considerar agora os princípios do pensamento ortodoxo. Entre os principais,


encontra-se a relação com a filosofia, assunto bastante debatido no protestantismo.

Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.
Lutero não estava muito inclinado a aceitar qualquer coisa que viesse da
razão. Na realidade, não era assim. É verdade que se referiu, muitas vezes, contra
os filósofos, até mesmo com desprezo e fúria, mas tinha em mente os escolás-
ticos e seu mestre, Aristóteles. Contudo, nas famosas palavras pronunciadas na
Dieta de Worms, afirmou que não voltaria atrás a não ser que fosse refutado
pelas Santas Escrituras ou pela razão.
Lutero não era irracionalista. Rebelava-se contra quaisquer tentativas de
transformação da substância da fé pelas categorias da razão. A razão não pode-
ria salvar ninguém; ela precisava ser salva. Tornou-se imediatamente claro que
a teologia não poderia ser ensinada sem o auxílio da filosofia e que as categorias
filosóficas devem ser utilizadas, conscientemente ou não, no ensino do que quer
que seja. Por essa razão, Lutero não impediu Melanchton de se relacionar com
Aristóteles e de utilizar diversos elementos da filosofia dos pais gregos.

Agora que estudamos estes princípios teológicos e históricos da formação


do pensamento reformado, reflita sobre qual tem sido o lugar das Escrituras
no ensino da igreja hoje.

Assim, que sejamos fiéis a estes grandes desafios postos pela tradição reformada,
que só será possível se tivermos claro nosso chamado, cultivar um caráter cris-
tão e conectar com sabedoria nossa cultura.

DOS TEÓLOGOS E DO PENSAMENTO REFORMADO


133

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Fato conclusivo para a teologia reformada é que toda caminhada da fé depen-


deu dessa realidade viva, o papel e o lugar das Escrituras e o lugar do Espírito
Santo. Estão aqui os pilares que fizeram da tradição reformada o ícone teológico
mais forte na história humana. João Calvino viveu uma vida de espiritualidade
comprometida, um viver que integrava piedade e erudição. Estudar sua espiri-
tualidade é tema ainda aberto e inesgotável.
Em nossos estudos continuaremos a ver o que aconteceu no pós-calvinismo.
Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.

Afinal o que realmente veio a acontecer com os teólogos dos séculos seguintes,
em especial aqueles do século XX. Quais são as grandes vertentes atuais, que aca-
bam de alguma forma influenciando os púlpitos evangélicos contemporâneos.
Vemos, principalmente em nossa pátria, a perda de uma identidade refor-
mada. Cresce tanto um superficialismo quanto uma ausência cristológica nas
pregações e articulações teológicas. Por exemplo, as composições musicais
são mais intimistas do que transformadoras. Mais um lugar de ausência dos
grandes princípios da reforma. Há um humanismo exacerbado, um cristia-
nismo sem Cristo.
Um ponto que precisamos enfatizar na teologia reformada, com muita clareza
e determinação, é que necessitamos de uma profunda teologia pneumatológica
e bíblica. A reforma tem dado uma prioridade na pregação da Palavra.
Devemos proporcionar para as futuras gerações essa perspectiva – somos a
religião da Palavra, da supremacia da Palavra de Deus, sobre toda razão, sobre
toda tradição e sobre toda experiência.
Tanto Emil Brunner quanto Karl Barth, pontuaram a necessidade da teolo-
gia enfatizar a realidade do Espírito Santo. Estamos nesse século convencidos
que este será o grande tema da teologia. Como igreja, filhos da reforma, deve-
mos enfatizar tanto a realidade da Palavra quanto a realidade do Espírito Santo.
Somente assim cumpriremos com clareza a força de nosso chamado.

Considerações Finais
134

1. Sobre Calvino e o Calvinismo, é correto o que se afirma em:


a) João Oecopampadius apoiou Lutero e sua teologia da justificação somente
pela fé.
b) Wolfgang Fabricius Capito foi o defensor de John Huss em Basileia.
c) Pedro MartireVermigli sofreu influência de Lutero na Alemanha.
d) Jerome Zanchi foi um discípulo de Pedro Martire Vermigli.
e) A doutrina da predestinação de Zanchi é exposta muito claramente em seu
trato Carta Cristã à Nobreza Alemã.
2. Com base nos conteúdos apresentados em nossos estudos, julgue as asserti-
vas a seguir como (V) para Verdadeira e (F) para Falsa:
( ) Beza foi chamado por Lutero para ensinar na academia de Wittenberg.
( ) A teologia de Beza é muito similar à de Zanchi.
( ) Beza chegou muito próximo de incitar todos os súditos de tiranos à rebelião.
A partir das afirmativas apresentadas anteriormente, assinale a alternativa que
apresenta, respectivamente, a sequência correta:
a) V, V, F.
b) F, V, V.
c) F, F, F.
d) V, F, V.
e) V, V, V.
3. Sobre o Calvinismo na Holanda e o Sínodo de Dort, julgue as afirmativas a seguir:
I. Foi na Holanda, no começo do século XVI, que ocorreu um dos mais impor-
tantes desenvolvimentos da ortodoxia calvinista.
II. Armínio era Luterano e, de fato, rejeitou alguns pontos fundamentos de Calvino.
III. Sobre a predestinação, Armínio começara discordando do supralapsarianis-
mo extremo de Gomarus.
IV. Armínio alega que o primeiro decreto absoluto de Deus a respeito da salva-
ção do homem pecador é aquele pelo qual ele decretou designar Seu Filho,
Jesus Cristo, como Mediador.
135

A partir das afirmativas apresentadas anteriormente, assinale a alternativa correta:


a) Apenas I e II estão corretas.
b) Apenas II e IV estão corretas.
c) Apenas I está correta.
d) Apenas I, III e IV estão corretas.
e) Nenhuma das alternativas está correta.
4. Com base nos conteúdos apresentados em nossos estudos, assinale a alterna-
tiva correta:
a) O primeiro artigo dos Remonstrance trata da graça resistível.
b) Sobre a predestinação, Dort afirma que a eleição é totalmente condicional.
c) Segundo o Remonstrance, Jesus morreu de modo limitado a alguns eleitos.
d) Sobre a graça irresistível, Dort e o Remonstrance concordam plenamente.
e) Foi o Sínodo de Dort que tornou a doutrina da perseverança dos santos uma
marca necessária da verdadeira fé cristã.
5. Com base nos conteúdos apresentados em nossos estudos, julgue as asserti-
vas a seguir como (V) para Verdadeira e (F) para Falsa:
( ) Os puritanos não planejaram destruir a Igreja Anglicana.
( ) Outros, dentre os primeiros puritanos sustentaram que o verdadeiro gover-
no da igreja deveria ser presbiteriano.
( ) Embora o movimento Puritano teve profundas raízes nas várias correntes
reformadoras do princípio do século XVI, muito breve ele se tornou inteira-
mente associado ao Calvinismo.
A partir das afirmativas apresentadas anteriormente, assinale a alternativa que
apresenta, respectivamente, a sequência correta:
a) V, V, F.
b) F, V, V.
c) F, F, F.
d) V, F, V.
e) V, V, V.
136

Princípio bíblico
Os monumentos a Lutero mostram-no sempre com a Bíblia na mão. A imagem não é
muito boa porque a Igreja Católica está certa ao afirmar que já havia biblicismo na Idade
Média. Já afirmamos também a existência desse biblicismo no final dessa época. Vimos
que a crítica radical de Ockham, o nominalista, à igreja, baseava-se na Bíblia. Entretanto,
o princípio bíblico significava outra coisa para Lutero. Na teologia nominalista, a Bíblia
era a lei da igreja que podia ser utilizada contra a própria igreja, mas não deixava de
ser lei. Na Renascença, a Bíblia é a fonte da religião verdadeira, editada pelos melhores
filósofos, como Erasmo. Essas eram as duas atitudes dominantes: a legalista, do nomina-
lismo, e a doutrinária, do humanismo. Nenhuma delas conseguiu arrasar com os funda-
mentos do sistema católico. Para isso era necessário um novo princípio.
Lutero conservava certos elementos nominalistas e humanistas em seu ensino.
Valorizava altamente a edição do Novo Testamento feita por Erasmo e muitas vezes caiu
no legalismo nominalista em sua doutrina da inspiração, ao afirmar que cada palavra
da Bíblia havia sido inspirada pelo ditado de Deus. É o que se vê na sua doutrina da
Ceia do Senhor, apoiada numa interpretação literalista de certa passagem bíblica. Mas,
além disso, Lutero interpretava as Escrituras em harmonia com a sua nova compreensão
da relação do homem com Deus. Essa posição aparece em seu conceito da “Palavra de
Deus”. Esse é o termo mais empregado na tradição luterana e na teologia neo-reforma-
da de Barth e outros. Mas não nos ajuda muito. O próprio Lutero dava a esse termo seis
sentidos diferentes.
Lutero afirmava que a Bíblia era a palavra de Deus - mas sabia muito bem o que dizia.
Mas quando queria realmente expressar o que pensava, dizia que na Bíblia se encontra-
va a palavra de Deus, a mensagem de Cristo, a expiação, o perdão dos pecados e a dá-
diva da salvação.Deixava bem claro que a Bíblia continha a palavra de Deus no sentido
em que transmitia a mensagem do Evangelho. Mas entendia que essa mensagem existia
antes da Bíblia, na pregação dos apóstolos. Como Calvino diria mais tarde, Lutero enten-
dia que os livros da Bíblia eram uma situação de emergência, posto que necessários. Por
isso, o que importava era o conteúdo religioso; a mensagem era objeto de experiência.
“Se eu sei o que creio, conheço o conteúdo das Escrituras, pois
elas não contêm outra coisa a não ser o Cristo”. As Escrituras são o critério da verdade
apostólica.

Fonte: Tillich (2007, p. 241).


MATERIAL COMPLEMENTAR

As Institutas
João Calvino
Editora: Cultura Cristã
Sinopse: obra clássica da Reforma Protestante do Século XVI. O impacto do
pensamento teológico da Reforma não seria o mesmo sem esta obra de João
Calvino. Todo estudioso sério necessita de uma leitura acurada das Institutas.

Material Complementar
REFERÊNCIAS

LACERDA, G. Estandarte. Revista Teologia e sociedade, n. 11, ano 125, nov., 2017.

TILLICH, Paul. História do Pensamento Cristão. São Paulo: Aste, 1997.


139
GABARITO

1. D.
2. B.
3. D.
4. E.
5. E.
Professor PhD. Silas Barbosa Dias

A TEOLOGIA REFORMADA

IV
UNIDADE
APÓS CALVINO

Objetivos de Aprendizagem
■ Apresentar as dimensões ocorridas após o século XVI que atingiram a
Europa e a América.
■ Conhecer os inícios do desenvolvimento reformado nos países
baixos.
■ Entender o desenvolvimento de algumas das controvérsias vividas
pela tradição reformada.
■ Desenvolver a inserção da tradição reformada em solo brasileiro.
■ Surpreender-se com a primeira confissão de fé feita no Brasil.

Plano de Estudo
A seguir, apresentam-se os tópicos que você estudará nesta unidade:
■ Calvino e o calvinismo
■ Controvérsias pós Calvino
■ Calvinismo na Holanda e o Sínodo de Dort
■ O movimento puritano e a Confissão de Westminster
■ A teologia reformada no Brasil
143

INTRODUÇÃO

Depois de estudarmos em nossa unidade anterior um pouco do desenvolvimento


dos fundamentos históricos e do ethos, ou natureza da tradição reformada, e a
grandeza teológica dos maiores pais reformadores, nossa meta, nessa unidade, é
observar a teologia reformada após João Calvino. Tendo em vista que já foi dito
que a teologia dos primeiros reformadores era como uma cachoeira viva a fluir
de maneira empolgante, enquanto o que veio depois foi uma sequidão e rigidez
de pensamento. É claro que isso é mais dito do período conhecido como esco-
Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.

lasticismo protestante.
No século XIX e XX, vimos o ressurgimento de um tempo altamente cria-
tivo, mas também carregado de doutrinas que muito provocaram negativamente
a tradição reformada. Fato é que o caminho ainda está em aberto, assim, há um
maravilhoso mundo pela frente, e a teologia reformada é de novo desafiada a pre-
parar um povo para uma teologia séria e comprometida com o Reino de Deus,
sob a realeza de Cristo, a soberania de Deus e a valorização do ser humano.
Nesta unidade intentamos apresentar o desenvolvimento da teologia refor-
mada, pós-Calvino, analisando o que foi construído teologicamente nos países
com forte influência reformada, em especial a Suíça e a Holanda. Ainda temos
que ver o chegar dessa tradição na América e em nossa pátria.
Todos temos ao longo dos tempos falado sobre igualdade e liberdade. O que
precisamos saber é que as idéias modernas de igualdade e liberdade de escolha
foram grandemente avançadas pela Reforma Protestante.Podemos dizer que
isto provém da forte insistência de Lutero de que não existe distinção espiritual
diante de Deus entre o clero e o leigo. A doutrina do sacerdócio universal de
todos os santos afirmava que todos os crentes são iguais, todos são igualmente
cristãos e todos são sacerdotes.

Introdução
144 UNIDADE IV

CALVINO E O CALVINISMO

Caríssimo(a) aluno(a), nesta aula continua-


remos a caminhar por esta incrível aventura
que é o mundo reformado. Você já deve ter
se perguntado o que ocorreu naquele perí-
odo após João Calvino. Nesta unidade somos
desafiados a descobrir as dimensões inspira-
doras daqueles séculos seguintes.

Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.
Veremos então como a teologia reformada,
a qual o nome “Calvinismo” foi aplicado com
crescente frequência, se desenvolveu em várias
partes da Europa - Suíça, Alemanha, Holanda,
França, Escócia e Inglaterra, nessa ordem.
É inegável para todos a grandeza de Calvino como um teólogo, organizador
e líder eclesiástico, no entanto, é necessário também enfatizar a contribuições
de outros reformadores.
Este é claramente o caso de Zwinglio, que foi, sem dúvida alguma, o pri-
meiro grande teólogo reformado e é geralmente obscurecido por Calvino. Após
o Consenso de Zurique, em 1549, como os pontos de vista de Calvino sobre a
eucaristia foram crescentemente aceitos pelo Protestantismo Suíço, a teologia
de Zwinglio recuou para os bastidores.
Há ainda um ponto crucial, muito do “Calvinismo” posterior estava mais
perto de Zwinglio do que de Calvino. Um exemplo é a questão dos sacramentos.
Em sua tese de doutorado sobre os sacramentos, Jeremias Klein afirma que na
Ceia do Senhor, as igrejas de tradição reformada seguem o conceito de Zwinglio
e não o de Calvino.
Outro ponto, foi a doutrina da predestinação, que Zwinglio discutirá em
conexão com a providência e a criação, enquanto Calvino a colocará dentro da
estrutura da Soteriologia. Como veremos, isto resultou no desenvolvimento de
uma doutrina “calvinista” da predestinação que foi muito além da própria dou-
trina de Calvino. Já tivemos oportunidade de mostrar a influência de Bucer sobre
Calvino, especialmente na eucaristia e eclesiologia.

A TEOLOGIA REFORMADA APÓS CALVINO


145

João Oecolampadius (1482 - 1531)

Foi o reformador de Basiléia, que apoiou Zwinglio tanto em sua teologia quanto
na política externa. Seus estudos patrísticos e bíblicos foram uma contribuição
importante tanto para Calvino quanto para outros teólogos reformados.

Wolfgang Fabricius Capito (1478 - 1541)

Defensor de Bucer em Estrasburgo, uma pessoa erudita que possuía doutorado


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em Medicina, Direito e Teologia, e que foi ativo em espalhar a teologia reformada


no sul da Alemanha. Uma grande parte do suposto Calvinismo que os Luteranos
deploravam naquela região era na realidade o trabalho de Capito.
A partir disso, é possível perceber que Calvino teve um grande número de
precursores, cujos trabalhos finalmente afluíram para a grande corrente, geral-
mente, chamada de Calvinismo.
Em uma descrição do movimento da teologia reformada, além de Calvino,
durante o século XVI, quatro nomes despontam como os mais importantes
e representativos: Pedro Martire Vermigli, Jerome Zanchi, Teodoro Beza e
Zacarias Ursinus.

Pedro Martire Vermigli (1499 - 1562)

Foi um nativo de Florença que sofreu a influência de João Valdés, em Nápolis.


Após diversas tentativas mal sucedidas da Reforma na Itália, ele fugiu para Zurique
e então para Estrasburgo, onde se tornou professor de Teologia. Em 1547, diante
do pedido do Arcebispo Cranmer, ele foi para a Inglaterra servir como profes-
sor de Teologia em Oxford.
É possível que seus pontos de vista tenham influenciado o Prayer Book
(Livro de Oração) de 1552, bem como os quarenta e dois Artigos do ano
seguinte. Em 1553, ele retomou para Estrasburgo e três anos mais tarde se
tornou professor de Hebraico em Zurique. Ele permaneceu neste posto até
sua morte em 1562.

Calvino e o Calvinismo
146 UNIDADE IV

A importância de Pedro Martire Vermigli para o desenvolvimento da orto-


doxia reformada repousa mais na questão da metodologia do que no conteúdo
efetivo. A razão para isso, é que, embora no conteúdo de sua teologia Vermigli
fosse muito próximo de Calvino e Bucer, sua metodologia mostrava a influên-
cia de Aristóteles em uma medida muito maior do que qualquer outro teólogo
reformado do seu tempo.
Ele despendeu oito anos de estudo em Pádua, e a Universidade desta cidade
italiana foi o centro de um grande reavivamento do Aristotelianismo. Ainda
na Itália, ele estabeleceu uma escola em Lucca, onde tanto a Escritura quanto

Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.
Aristóteles eram estudados, num esforço para produzir a reforma da igreja.
Foi nessa escola que Zanchi recebeu grande parte de sua formação teológica.
Posteriormente, quando Pedro Martire foi professor em Estrasburgo, ele incluiu
entre os assuntos que ele explicava a obra Ethics (Ética) de Aristóteles.
Assim, Pedro Martire Vermigli introduziu na teologia reformada uma abor-
dagem metodológica que teria profunda influência no desenvolvimento posterior
dessa teologia.
Enquanto Calvino começou a partir da revelação concreta de Deus e sempre
reteve um tremendo senso do mistério da vontade de Deus, a teologia reformada
posterior tendeu mais e mais a caminhar dos decretos divinos para os decretos
particulares de um modo dedutivo.
Assim, embora o próprio Pedro Martire não entrasse em tal debate, a con-
trovérsia posterior entre infralapsarianos e supralapsarianos foi o resultado do
método que ele introduziu na teologia reformada.
A mesma abordagem metodológica é a razão pela qual os teólogos reformados
posteriores colocaram a doutrina da predestinação sob a seção da doutrina de Deus,
abandonando assim a prática de Calvino de colocá-Ia sob o título da Soteriologia.

Jerome Zanchi (1516 - 1590)

Gonzales, ao escrever, afirma que Jerome também foi um italiano e um discípulo


de Pedro Martire Vermigli. Em 1550, poucos meses após Vermigli deixar a Itália,
Zanchi foi forçado a fazer o mesmo por temer por sua vida. Após uma breve estada
em Genebra, ele se tornou um professor de Teologia em Estrasburgo, onde ele

A TEOLOGIA REFORMADA APÓS CALVINO


147

permaneceu quase onze anos. Durante a maior parte desse tempo, ele foi visto
com desconfiança pelos líderes religiosos luteranos mais rigorosos da cidade.
A pressão foi tal que ele finalmente subscreveu a Confissão de Augsburgo,
embora declarando que ele a estava interpretando “de forma ortodoxa”.
Foi lá que ele escreveu a maioria dos seus trabalhos teológicos, relacionados
com questões tais como predestinação e a doutrina da Trindade. Pelo exposto,
deveria ser claro que Zanchi não era uma pessoa excessivamente dada a orto-
doxias rígidas ou um caçador de hereges. Ele também era por demais amante da
paz para isso. E ainda, quando se trata dos seus pontos de vista sobre predesti-
Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.

nação, ele também se envolveu no processo de esquematização que caracteriza


a diferença entre Calvino e os calvinistas posteriores.
A doutrina da predestinação de Zanchi é exposta muito sistematicamente
em seu tratado A Doutrina da Predestinação Absoluta Declarada e Afirmada.
Logo no início, Zanchi declara que a base para a doutrina da predestina-
ção é o pré-conhecimento de Deus, pois Deus é e sempre foi tão perfeitamente
sábio, que nada nunca iludiu, ilude ou pode iludir seu conhecimento. Ele sabia,
desde toda a eternidade, não somente o que Ele próprio intenta fazer, mas tam-
bém o que Ele inclinaria e permitiria a outros fazerem.
A onisciência divina, junto com a divina onipotência, implica que tudo - e
não somente o destino eterno dos seres humanos - foi predestinado por Deus.
Tudo o que vier a acontecer, acontece em virtude desta absoluta e onipotente
vontade de Deus, que é a causa primária e suprema de todas as coisas.
Dentro deste contexto, “predestinação” significa não somente a decisão divina
pela qual alguns são salvos e outros não, mas também o preceito divino sobre
todas as coisas pela qual todos os eventos são pré-determinados.
À luz de tais premissas, a doutrina tipicamente calvinista da expiação de
Cristo, restrita, não pode ser refutada: “Como Deus não deseja que cada indiví-
duo da humanidade seja salvo, ele também não deseja que Cristo deva morrer
própria e imediatamente por cada indivíduo da humanidade; daí segue que,
embora o sangue de Cristo, por sua própria dignidade intrínseca, fosse suficiente
para a redenção de todos os homens, ainda, como consequência da designação
de seu Pai, ele o derramou intencionalmente, portanto, eficaz e imediatamente
somente pelos eleitos.

Calvino e o Calvinismo
148 UNIDADE IV

De modo importante, após ter estabelecido com uma lógica fria e inexorá-
vel as doutrinas da dupla predestinação e da expiação limitada, Zanchi se volta
para a tarefa de tentar mostrar o valor pastoral e devocional destas doutrinas. O
que temos aqui não é, portanto, um racionalismo frio e desumano. No entanto,
ainda permanece o fato que Zanchi mudou a doutrina de Calvino da predesti-
nação, não tanto em seu conteúdo, mas no seu tom, tornando-a uma doutrina
que pode ser inferida da natureza de Deus, ao invés de uma pela qual o teólogo
tenta expressar a experiência da graça.

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Teodoro Beza (1519 - 1605)

Gonzalez escreve que Beza foi chamado por Calvino para ensinar na Academia
de Genebra e, após a morte de Calvino, se tomou um líder do movimento refor-
mado, tanto em Genebra quanto em toda a Suíça. Embora fosse um capaz erudito
no Novo Testamento (sua edição do Novo Testamento em Grego que estabeleceu
novos padrões para o estudo e a crítica textual), ele nos interessa aqui principal-
mente como um teólogo. Como tal, seus principais trabalhos foram Confissão
da Fé Cristã (1560) e Tratados Teológicos (1570-1582).
A teologia de Beza é muito similar à de Zanchi. Embora alegando não ser
mais do que um intérprete e continuador dos pontos de vista de Calvino, ele os
distorce de forma sutil e decisiva. Por exemplo, ele também colocou a doutrina
da predestinação sob a seção do conhecimento, vontade e poder divinos e assim,
tende a confundi-Ia com pré-determinismo.
Como Zanchi, ele insistiu na teoria da expiação limitada novamente, uma
conclusão que podia ser inferida de algumas premissas de Calvino, mas que o
próprio Calvino recusou fazer.
A ordem da Igreja Presbiteriana, que Calvino e outros haviam desenvolvido
em Genebra, mas que nunca alegaram ser essencial, Beza afirmou ser requerida
pelo ensino claro da Escritura.
Calvino, além de Lutero, ao declarar o direito de resistir a governadores tira-
nos, insistia na doutrina tradicional de que tal resistência é uma prerrogativa

A TEOLOGIA REFORMADA APÓS CALVINO


149

e obrigação das autoridades menores, e que indivíduos não devem assumir


isso para si mesmos.
Beza chegou muito próximo de incitar todos os súditos de tiranos - o que
para ele significava governadores católicos - à rebelião. Em resumo, então, Beza
foi de muitas maneiras um expoente claro e consistente da Teologia de Calvino,
mas esta própria clareza e consistência significavam que ele perdeu uma grande
parte do senso de mistério e frescor que era encontrado no trabalho de seu ante-
cessor. Para ele, a Bíblia se tornou uma série de proposições, todas igualmente
inspiradas e, portanto, todas igualmente importantes. Estas proposições foram
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reunidas no sistema de teologia calvinista.


O que nos parece interessante observar é o fato de que onde Calvino sempre
se recusou a detalhar uma doutrina clara e precisa - a inspiração da Escritura,
supralapsarianismo, expiação limitada, etc. - Beza simplesmente levou o sistema
calvinista até suas últimas conseqüências.
O que nos parece interessante observar é que o detalhamento de uma dou-
trina clara e precisa, a partir da inspiração da Escritura, supralapsarianismo,
expiação limitada, etc., anteriormente recusado por Calvino, foi simplesmente
levado por Beza até suas últimas consequências no sistema calvinista.

Zacarias Ursinus (1534-1583)

Outro nome pouco conhecido por todos foi Zacarias Ursinus, que passou a
maior parte de sua juventude em Wittenberg, onde foi um discípulo e amigo
de Melanchthon. Ele também mostra que, mesmo com referência à doutrina da
eucaristia, Beza se posiciona entre Calvino e os Calvinistas posteriores.
Ele viajou extensivamente, e suas visitas à Suíça podem ter fortalecido suas
inclinações para o ponto de vista “calvinista” sobre a Ceia do Senhor. De qual-
quer modo, quando as controvérsias que estudamos anteriormente irromperam
no meio luterano, ele foi acusado de ser um calvinista disfarçado e, finalmente,
foi forçado a buscar refúgio no Palatinado, para onde foi chamado pela inter-
venção de Pedro Martire Vermigli.

Calvino e o Calvinismo
150 UNIDADE IV

Na medida em que a distância entre luteranos e calvinistas aumentou, espe-


cialmente quanto à questão do modo da presença de Cristo na eucaristia, Ursinus
foi convocado, juntamente com Gaspar Olevianus, para compor o que finalmente
se tornou conhecido como o Catecismo de Heidelberg (1563), que se tornou a
confissão de fé da Igreja Reformada Alemã.
Ursinus permaneceu num contrato inteligente com Vermigli, Zanchi e
Beza. Isso, obviamente, teve a ver em grande parte com as condições política e
eclesiástica do Palatinado, em que era necessário ser moderado. Entretanto, de
qualquer modo, ele não foi apenas menos dogmático do que seus contemporâ-

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neos calvinistas, mas ele parece mesmo ter entendido Calvino pelo menos em
alguns pontos - melhor do que eles o fizeram.
Assim, por exemplo, o Catecismo de Heidelberg - que os estudiosos concor-
dam ser na maioria seu trabalho - não tenta provar a predestinação como uma
consequência da natureza de Deus, mas, ao contrário, colocam-na após a dou-
trina da igreja, como uma expressão da experiência da salvação.
Comentando o Catecismo, Ursinus novamente não tenta provar o que essa con-
fissão diz, relacionando a predestinação aos atributos divinos - como Zanchi o faz
claramente -, pelo contrário, tenta mostrar a importância pastoral da predestinação.
Em relação à reprovação, ninguém deve determinar nada com certeza, nem
a respeito de si mesmo ou de outrem antes do fim da vida, pois as razões pelas
quais ele ainda não é convertido podem mudar antes que ele morra. Por isso, nin-
guém pode decidir acerca de outros, que eles sejam réprobos, mas deve esperar
pelo melhor. A respeito de si mesmo, entretanto, cada um deve crer com cer-
teza que é um dos eleitos; pois nós temos um mandamento universal para que
todos se arrependam e creiam no evangelho?
Assim, pouco após a morte de Calvino - e mesmo antes - sua teologia estava
sendo esquematizada por teólogos tais como Vermigli, Zanchi e Beza, apesar do
fato de haver também um Ursinus que parece ter entendido algo do dinamismo
e novidade do sistema de Calvino. Este processo de enrijecimento, que se esta-
beleceu tão cedo, foi ajudado posteriormente durante o século 17 por várias
controvérsias em que o Calvinismo se encontrou envolvido.

A TEOLOGIA REFORMADA APÓS CALVINO


151

CONTROVÉRSIAS PÓS-CALVINO

Justos Gonzales (2004) nos brinda com uma


belíssima exposição sobre o pensamento cons-
trutivo da teologia reformada ao mostrar o que
aconteceu em alguns países. Podemos afirmar que a história da construção e
transformação cultural desses países tem o toque dos reformados, ou melhor
dizendo, da teologia reformada.
Voltaremos nossa atenção agora para estas controvérsias e desenvolvimento
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posterior do Calvinismo. Primeiro, nós estudaremos a história posterior do


Calvinismo na Suécia e Alemanha. Então, nós nos voltaremos para a Holanda,
onde eventos, cuja importância merece consideração separada, estavam ocor-
rendo. Isto será seguido por uma breve seção sobre a forma muito interessante
que o calvinismo francês assumiu.
Finalmente, estudaremos a história do Calvinismo na Grã Bretanha - pri-
meiro na Escócia e então na Inglaterra. O Calvinismo na Suíça e Alemanha traz
o documento teológico mais importante e influente produzido após a morte de
Calvino, a Segunda Confissão Helvética.
Como já notamos, o Consenso de Zurique de 1549, com o qual Calvino
e Bulinger concordaram, uniu as forças do Calvinismo e Zuinglianismo em
uma única tradição reformada. No entanto, esse Consenso nunca se torna-
ria uma declaração confessional geralmente aceita pelos vários ramos da
Igreja Reformada.
Essa distinção ficou reservada para a Segunda Confissão Helvética, que, falando
estritamente, não foi composta por um calvinista, mas pelo zuingliano Bullinger.
Bullinger escrevera a maior parte do texto desta confissão em 1561, mas este
não lhe deu ampla circulação, até que ele foi requisitado por Frederico Ill, Eleitor
do Palatinado, para preparar a uma confissão reformada similar à que os lutera-
nos haviam apresentado ante a Dieta de Augsburgo.
Quando Bullinger recebeu a requisição do Eleitor, ele sentiu que o texto que
escrevera diversos anos antes seria uma resposta adequada, e, portanto, o enviou
ao Eleitor, que, simultaneamente, o enviou a Genebra e a Berna, com o obje-
tivo de receber as reações e avaliações das igrejas reformadas naquelas cidades.

Controvérsias Pós-Calvino
152 UNIDADE IV

Após algumas correspondências e algumas pequenas mudanças - especifica-


mente no prefácio, que foi inteiramente reescrito -, a Segunda Confissão Helvética
foi aceita e assinada por quase todas as igrejas reformadas na Suíça (1566). As
exceções mais importantes foram Neuchâtel, que subscreveu dois anos mais tarde,
e Basiléia, que não subscreveu a Confissão até o século seguinte. No mesmo ano
de sua publicação, ela foi adotada pelo Sínodo Escocês em Glasgow e, no ano
seguinte, a Igreja Reformada Húngara a subscreveu.
A Confissão Polonesa, promulgada pela Igreja Reformada da Polônia, em
1570, não é mais do que uma revisão da Segunda Confissão Helvética. A Reforma

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francesa não a aceitou como sua confissão de fé, e a razão para isso foi simples-
mente que eles já tinham sua própria confissão. Portanto, em 1571, no sínodo
de La Rochelle, eles declararam a Segunda Confissão Helvética como uma ver-
dadeira confissão da correta doutrina cristã.
A Segunda Confissão Helvética, escrita por Bullinger - que, estritamente
falando, não era um calvinista -, com o propósito de conciliação, foi em mui-
tos aspectos uma influência do movimento na direção da ortodoxia calvinista
rígida. De fato, a maioria das áreas onde esta confissão foi promulgada evitou
as consequências mais extremas daquela ortodoxia. Não há dúvida de que este
é um documento reformado, com forte influência calvinista.
A Ceia do Senhor é entendida, de acordo com o Consenso de Zurique, em
termos tipicamente calvinistas. Sobre a predestinação, esta confissão está posi-
cionada entre o próprio Calvino e os expoentes dentre os calvinistas posteriores,
pois ela coloca esta doutrina, como eles o fazem, no final da doutrina de Deus,
de forma que ela se parece quase como um prefácio à doutrina da salvação.
Portanto, a doutrina da predestinação da Segunda Confissão Helvética pode
ser considerada como um elo entre o próprio Calvino e os calvinistas posterio-
res. Outro ponto em que a Segunda Confissão Helvética aparece como uma ponte
entre Calvino e a ortodoxia calvinista é a doutrina da inspiração da Escritura.
Ele não começou sua teologia com uma discussão dessa inspiração. De fato, ele
nunca discutiu a inspiração bíblica plenamente e ele nem parece ter estado cons-
ciente dos perigos do extremo literalismo bíblico
A Segunda Confissão Helvética, por outro lado, começa seu primeiro capítulo
proclamando que a Santa Escritura é a Palavra de Deus, totalmente inspirada

A TEOLOGIA REFORMADA APÓS CALVINO


153

por Ele. Esta mudança na estrutura da teologia, novamente, não parece afetar
grandemente o conteúdo desta Confissão, mas é o começo de uma tendência de
apresentar a Bíblia como o livro dos decretos divinos de onde a teologia é extra-
ída de seu texto como uma série de proposições.
Como veremos posteriormente, neste aspecto, a Segunda Confissão Helvética
é precursora da Confissão de Westminster. Na própria Genebra, entretanto, a
influência de Beza foi grande, e, por meio dele, sua própria forma de Calvinismo
ganhou terreno em outras partes da Suíça.
Isso pode ser visto nos casos de Samuel Huber e Claude Aubery. Samuel
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Huber acusou o pastor Abraão Musculus, que ensinou a forma supralapsariana


da predestinação, indo aquém do que Calvino ensinara. Ele também criticava
Beza por ter escrito que a praga era contagiosa e que era lícito para os cristãos
fugir dela. Após uma série de debates, que não é necessário relatar aqui, ele foi
condenado pelo Grande Concílio de Berna em 1588 - o mesmo Grande Concílio
que, duas décadas antes, proibiu toda discussão sobre os decretos divinos e baniu
as Institutas da Academia de Lausanne.
O caso de Claude Aubery foi teologicamente diferente, mas o resultado foi
o mesmo. Os pontos de vista que ele sustentava eram similares àqueles de André
Osiander, isto é, que a justificação não é a imputação da justiça divina, mas que
Cristo, de alguma forma, habita ou “é inerente” a nós, e é sua justiça em nós que
Deus vê. Ele também foi condenado na mesma data e pelas mesmas autorida-
des, parcialmente por meio da influência de Beza e da autoridade de Calvino.
Assim, o poder do Calvinismo - e especialmente do Calvinismo como Beza o
entendia - estava se expandindo por toda a Suíça, onde esta expansão fora origi-
nalmente resistida por muitos. Após a morte de Beza, os líderes mais importantes
da ortodoxia calvinista na Suíça foram Benedito e Francisco Turretin, pai e filho.
Benedito Turretin ou Turrettini (1588-1631) era um italiano de nascimento
e foi parte da mesma escola do predestinacionistas extremados que já encontra-
mos representados em Vermigli e Zanchi. Ele foi útil para ganhar o suporte da
Suíça Reformada para as decisões do Sínodo de Dort, que condenou os armi-
nianos e que estudaremos posteriormente - ponto fundamental para nossa aula.
Entretanto, deve ser notado que nos seus últimos anos ele advogou leniência e
moderação com os armenianos.

Controvérsias Pós-Calvino
154 UNIDADE IV

O filho de Benedito, Francisco (1623-1687)

Foi provavelmente o mais importante teólogo sistemático da ortodoxia calvinista


no Continente. Embora ele tenha feito parte das controvérsias levantadas pela
teologia, provinda de Saumur na França. Sua obra mais famosa foi publicada
em três volumes, entre 1679 e 1685, que são, provavelmente, os mais sistemáti-
cos e completos tratados sobre a teologia dogmática no campo reformado após
as Institutas de Calvino, e um breve exame de partes do seu Loci será suficiente
para mostrar a natureza do Calvinismo Continental do século 17.

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Após uma série de prolegomena, que são muito similares ao que seria encon-
trado em qualquer outra teologia escolástica, Turretin se volta para a questão
da autoridade da Escritura. Sua preocupação aqui é mostrar que a Escritura é a
única autoridade da teologia cristã e que a tradição não deve ser colocada lado
a lado com ela.
Esta é a teologia protestante tradicional, que Turretin deriva dos reforma-
dores do século XVI. Ele, então, prossegue discutindo detalhes tais como se a
Septuaginta é inspirada ou não e se o texto da Escritura, de alguma forma, foi cor-
rompido pela tradição manuscrita. Em ambos os casos sua resposta é negativa.
Entretanto, é importante destacar que seu argumento com referência à possível
corrupção do texto está baseado na autoridade do próprio texto: deve-se afirmar
que o texto da Escritura foi preservado em sua pureza primitiva, porque negá-
-Ia seria uma negação da providência divina.
De fato, Deus desejou revelar-nos na Escritura todas as coisas que são neces-
sárias para nossa salvação e também que não houvesse outra revelação além
daquela. Se Deus, então, permitisse que o texto da Palavra revelada fosse cor-
rompido pelos copistas, esta seria uma falha da providência.
Esta maneira de colocar a doutrina da Escritura no começo da teologia sis-
temática e então prosseguir para definir e esclarecer a absoluta inerrância da
Escritura é típica do Calvinismo posterior, e não encontrada no próprio Calvino.
Esta tendência alcançou seu ápice no Consenso Helvético de 1675, composto por
Turretin e dois outros teólogos, que alegavam que as vogais e pontos do texto
hebraico eram divinamente inspirados e, portanto, inerrantes.

A TEOLOGIA REFORMADA APÓS CALVINO


155

Quando se trata da doutrina da predestinação, Turretin é típico do


Calvinismo posterior. Seu pai foi um ardente defensor dos decretos de Dort.
Agora, em suas Institutiones, François coloca a doutrina da predestinação preci-
samente onde nós temos visto outros Calvinistas ortodoxos a colocarem: após a
doutrina de Deus, quase como um corolário extraído da natureza divina. Como
no caso de outros que já estudamos, como Zanchi, Vermigli e outros, isto sig-
nifica que esta discussão da predestinação se torna mais um exercício de ler a
mente de Deus do que uma proclamação da sua graça não merecida. Assim, ele,
como a maioria dos calvinistas posteriores, foi impelido à questão da ordem dos
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decretos divinos e se Deus decretou ou não a queda.


Calvino não havia entendido ser adequado discutir estas questões em detalhes,
pois elas parecem estar além dos limites do mistério. Turretin e muitos outros como
ele devotam longas páginas a estas questões. Sua conclusão é que o supralapsaria-
nismo - a opinião daqueles que sustentam que o decreto da eleição e reprovação
foi anterior ao decreto a respeito da queda - é “repugnante para a base da salvação”.
Sua própria posição é que Deus decretou primeiro criar a humanidade;
segundo, permitir a queda; terceiro, eleger alguns da massa de perdição, enquanto
permitindo a outros permanecer em sua corrupção e miséria; quarto, enviar
Cristo ao mundo como o mediador e salvador do eleito; e, finalmente, chamar
estes para a fé, justificação, santificação e final glorificação.
Este é, estritamente falando, o entendimento original do infralapsaria-
nismo. O que Turretin está dizendo não é que Deus decretou a predestinação
após o evento da queda ou mesmo que Deus não decretou a queda - embora por
um decreto permissivo ao invés de um decreto ativo - mas, ao contrário, que na
ordem dos decretos divinos, a predestinação segue a queda, e não vice-versa.
Um uso posterior do termo infralapsarianismo, entretanto, se tornaria ambí-
guo, pois ele viria a significar tanto a visão aqui esposada por Turretin quanto a
opinião de que o decreto da eleição segue o pré-conhecimento de Deus da queda
- ou, às vezes, mesmo a queda real.
Quanto à questão se Cristo morreu ou não por toda a humanidade, Turretin
segue a visão calvinista então estabelecida de que ele morreu apenas pelos eleitos,
embora sua morte teria sido suficiente em si mesma para a redenção de todos,
se Deus o tivesse assim desejado.

Controvérsias Pós-Calvino
156 UNIDADE IV

Em praticamente todas as outras questões, incluindo a da maneira da pre-


sença do Senhor na Ceia, seus pontos de vista são tipicamente calvinistas. É
importante, entretanto, que ele devota à Ceia do Senhor muito menos espaço e
atenção do que para algumas das questões a respeito da predestinação e expiação
limitada. Este é um sinal de algo geralmente verdadeiro na ortodoxia calvinista,
a saber, que a questão da Ceia do Senhor, que foi originariamente a principal
marca de distinção do Calvinismo, logo foi obscurecida por questões sobre a
predestinação, expiação limitada, depravação total e outras semelhantes.
Ainda em outro ponto, Turretin é um expoente típico da ortodoxia protes-

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tante, em seu estilo escolástico e metodologia. Aqui, novamente, encontramos as
infindáveis e sutis distinções, esboços rígidos, sistematização rigorosa e a aborda-
gem proposicional que haviam sido características do Escolasticismo Medieval
posterior. Portanto, há ampla razão para chamar Turretin e seus contemporâ-
neos de “protestantes escolásticos”.
Este tipo de Calvinismo rígido não continuaria inalterado, mesmo em
Genebra, tal fato pôde ser visto quando Jean-Alphonse Turretin, o filho de
Francisco, liderou uma reação liberal que, em 1725, seria bem-sucedida em
ver os decretos de Dort, bem como os da Segunda Confissão Helvética, aboli-
dos em Genebra.
A história do Calvinismo na Alemanha durante os séculos XVI e XVII é pra-
ticamente coexistente devido à complicada história política daquela nação. Não
podemos contar essa história aqui. Contudo, é suficiente dizer que o Calvinismo
esteve constantemente sobre pressão na Alemanha, pois a medida de tolerância
que fora concedida ao Luteranismo não se aplicou a ele.
Gonzales (2004, p. 282) diz que as regiões cuja a influência de Calvino fora
forte – especialmente Estrasburgo - finalmente se uniram às fileiras da confissão
luterana. À luz destas circunstâncias, o centro mais importante do Calvinismo
durante o século XVI foi o Palatinado e sua capital Heidelberg, onde, devido a
condições políticas particulares, a fé reformada foi favorecida pelo Eleitor.
A obra Catecismo de Heidelberg logo se tomou o documento mais carac-
terístico do Calvinismo Alemão. Os teólogos de Heidelberg, entretanto, foram
frequentemente acusados por outros calvinistas de terem introduzido inovações
em sua teologia. Neste aspecto, Tomas Erastus é importante.

A TEOLOGIA REFORMADA APÓS CALVINO


157

Tomas Erastus (1524-1583)

Precisamos estudar Erastus, que é um professor de medicina na Universidade de


Heidelberg, nascido na Suíça, membro do consistório da igreja. Ele foi Zuingliano
na Teologia, ele tentou neutralizar a influência do Luteranismo na teologia da
eucaristia, e do Calvinismo em assuntos da ordem eclesiástica.
Em 1570, ele foi acusado de Socinianismo e excomungado pela igreja em
Heidelberg. Sua fama, entretanto, deriva de um trabalho publicado postuma-
mente consistindo em uma série de teses sobre excomunhão. Neste trabalho ele
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sustentou que era a tarefa das autoridades civis punir os cristãos que pecavam e
que a própria igreja não tinha autoridade para excomungar.
Finalmente, seu nome se associou com o ponto de vista de que o Estado deve
ser soberano sobre a igreja, mesmo em questões de disciplina eclesiástica - uma
opinião que recebeu o nome de “Erastianismo”.

CALVINISMO NA HOLANDA E O SÍNODO DE DORT

Não se pode estudar a história do pensamento


reformado sem falar no que aconteceu na
Holanda. A história deste país e da Reforma
estão conectadas fortemente.
Foi na Holanda, no começo do século
XVI, que ocorreu um dos mais importantes
desenvolvimentos da ortodoxia calvinista, que
se centralizou nos ensinos de Jacó Armínio
e seus seguidores e no Sínodo de Dort, que
finalmente os condenou.
Armínio (1560-1609) era holandês e sua formação teológica aconteceu prin-
cipalmente na Universidade de Leyden e em Genebra. Ele foi um calvinista,
embora rejeitasse alguns pontos fundamentais dos ensinos de Calvino.

Calvinismo na Holanda e o Sínodo de Dort


158 UNIDADE IV

Embora “Arminiano” viesse a ser um sinônimo de anticalvinismo, a razão para


isso não é que Armínio fosse oposto aos ensinos de Calvino em geral, mas que
tanto ele quanto o Calvinismo ortodoxo centralizaram de tal forma sua atenção
nas questões da predestinação, expiação limitada e congêneres, que eles perde-
ram de vista o fato que a controvérsia, ao invés de ser um debate entre calvinistas
e anticalvinistas, era uma discordância entre dois diferentes grupos profunda-
mente influenciados por Calvino.
Como um jovem acadêmico calvinista, Armínio foi influenciado pelos pontos
de vista de Dirck Koornhert, que achou que a doutrina da predestinação ensi-

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nada pelos calvinistas rigorosos era inaceitável e uma negação da justiça de Deus.
Estudando as objeções de Koornhert, Armínio convenceu-se de que ele
estava correto em muitos pontos. Isso, entretanto, não teria causado nenhuma
grande controvérsia se Armínio, quatro anos mais tarde (1603), não tivesse sido
apontado como professor de Teologia em Leyden, onde seus pontos de vista logo
colidiram com os do seu colega Francisco Gomarus (1563-1641).
Tudo, portanto, começa em Leyden, lugar em que atualmente é um centro
cultural dos mais nobres na Holanda. Gomarus não foi apenas um calvinista
rigoroso, mas também um supralapasariano.
De acordo com ele, Deus decretou a eleição de alguns e a reprovação de
outros, e então decretou permitir a queda como a maneira pela qual essa eleição
e reprovação aconteceriam. Além disso, após a queda, toda a natureza humana
está totalmente depravada; e Cristo morreu apenas pelos eleitos.
Sua reação aos ensinos de Armínio não demorou a chegar, e sua ira foi exa-
cerbada quando, após a morte de Armínio (1609), a cadeira vaga foi preenchida
por Simon Bisschop (1583-1643), cujas convicções seguiram as mesmas linhas
gerais daquelas de Armínio.
Quando Gomarus - que não estava mais em Leyden - e seus seguidores ten-
taram fazer pressão para promover a remoção de todos os arminianos de suas
posições como professores, quarenta e seis pastores assinaram o Remonstrance
(1610). Este foi um documento, provavelmente composto por João Uyttenbogaert
- embora por vezes atribuído a Bisschop - que rejeitou tanto o supra quanto o
infralapsarianismo, a doutrina que o eleito não poderia cair da graça e a teoria
da expiação limitada, isto é, que Cristo não morreu por todos.

A TEOLOGIA REFORMADA APÓS CALVINO


159

Em todos estes pontos, os remonstratenses - como eles foram chamados após


esta época - estavam simplesmente tomando uma posição com o que fora os ensinos
de Armínio, e por esta razão eles são apropriadamente chamados de arminianos.
Assim, para entender seus pontos de vista, será melhor fazer uma pausa e declarar
o que Armínio ensinara com referência aos pontos principais do debate.
Sobre a predestinação, Armínio começara discordando do supralapsaria-
nismo extremo de Gomarus, mas concluíram que o infralapsarianismo também
incorreu em erro. Embora seja verdade que em muitos pontos ele era um racio-
nalista, pode-se salientar que seus oponentes também foram racionalistas no
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sentido de tentarem provar a predestinação como uma consequência da natureza


de Deus. Além disso, Armínio estava profundamente preocupado com que qual-
quer doutrina da predestinação fosse cristocêntrica e servisse para edificar o fiel.
Argumentando contra a extrema forma de predestinação supralapsariana,
ele apresentou duas razões, dentre muitas outras das quais ele discordava:
1. Pois esta predestinação não é aquele decreto de Deus pelo qual Cristo é
apontado por Deus para ser o Salvador, o Cabeça e o fundamento daque-
les que serão feitos seus herdeiros da salvação. Ainda, esse decreto é o
único fundamento do Cristianismo.
2. Pois a doutrina da predestinação não é aquela doutrina pela qual, por
meio da fé, nós, como pedras vivas, somos edificados em Cristo, a única
pedra de esquina, e inseridos nele como os membros do corpo são uni-
dos a sua cabeça.
Sua própria doutrina da predestinação, então, discorda com o que estava sendo ensi-
nado pelos Gomaristas em dois pontos básicos. Primeiro, ela é mais rigidamente
cristocêntrica - ponto em que ele se aproximou mais de Calvino do que de Gomarus.
Segundo, predestinação é baseada no pré-conhecimento de Deus da fé futura do eleito.
Assim, Armínio alega que o primeiro “decreto absoluto de Deus a respeito da
salvação do homem pecador é aquele pelo qual ele decretou designar seu Filho,
Jesus Cristo, como Mediador”.
O segundo e o terceiro decretos divinos foram que Deus salvaria aqueles
que se arrependessem e cressem, e que Deus providenciará os meios pelos quais
tal arrependimento e crença seriam feitos disponíveis. Então, Armínio chega
ao quarto decreto, que mostra claramente o que ele entende por predestinação.

Calvinismo na Holanda e o Sínodo de Dort


160 UNIDADE IV

Destes, segue o quarto decreto, por meio do qual Deus determinou salvar e
condenar certas pessoas em particular. Este decreto tem seu fundamento no pré-
-conhecimento de Deus, pelo qual ele conheceu desde toda a eternidade aqueles
indivíduos que, por meio da sua graça preventiva, creram e perseveraram por
meio de sua graça subsequente, de acordo com a administração anteriormente
descrita daqueles meios que são adequados e próprios para a conversão e a fé;
e, por esse mesmo pré-conhecimento, ele semelhantemente conheceu aqueles
que não creram e perseveravam.
Os calvinistas rígidos estavam certos quando eles reivindicaram que o enten-

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dimento de Armínio da predestinação destruiu o próprio objetivo daquela
doutrina, a saber, que ninguém possa ser capaz de se orgulhar de sua própria
salvação. De fato, se a causa da nossa eleição é o pré-conhecimento de Deus do
nosso arrependimento e fé, segue-se que o fator determinante em nossa salva-
ção é a nossa própria resposta ao chamado do evangelho, isto é, nossa própria
fé, e não a graça de Deus.
Para evitar estas consequências, Armínio recorreu ao que ele chamou “graça
preventiva”. De acordo com ele, esta graça preventiva (ou precedente) foi conferida
a todos por Deus, e essa graça é suficiente para crer, apesar de nossa corrupção
pecadora, e, consequentemente, para nos salvar.
A diferença entre o eleito e o réprobo repousa, então, em que alguns crêem
e outros não, e também que Deus sempre antevê qual será a decisão de cada um.
Portanto, a graça suficiente para salvação é conferida ao Eleito e ao não-Eleito;
de forma que, se desejarem, eles podem crer ou não, e podem ser salvos ou não.
A graça, então, não é irresistível, como os Gomaristas insistiam. Isso, em con-
trapartida, implica no fato de que Cristo morreu por toda a raça humana e que
a doutrina da expiação limitada deve ser rejeitada.
O ponto em disputa é: se é possível dizer verdadeiramente que, quando Deus
desejou que seu próprio Filho se tornasse um homem e morresse pelos pecados,
ele o desejou com esta distinção, que ele deveria assumir, apenas por alguns, a
natureza humana que ele teve em comum com todos os homens; que ele deve-
ria sofrer somente por uns poucos a morte, que poderia ser o preço para todos

A TEOLOGIA REFORMADA APÓS CALVINO


161

os pecados de todos os homens, e pelo mesmo primeiro pecado que todos igual-
mente cometeram em Adão.
Finalmente, Armínio argumentou que, precisamente porque a graça não é
irresistível, é possível perder a salvação. Esta opinião pareceu especialmente inju-
riosa para aqueles calvinistas que sentiam que o grande benefício da doutrina da
predestinação era a segurança da salvação que decorria dela.
Quando o Remonstrance foi publicado, toda a controvérsia ficou envolvida
num conjunto de questões políticas e sociais. A maioria das províncias marítimas,
especialmente a burguesia, que era numerosa e poderosa naquelas províncias,
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tomaram a posição arminiana.


As classes baixas rurais, bem como aqueles das ilhas, que viviam da pesca,
apoiaram o Calvinismo rígido de Gomarus, e foram acompanhadas nesta posi-
ção por diversos estrangeiros exilados para quem a pureza da fé era essencial.
Assim como as províncias marítimas apoiaram João Barneveldt em sua oposi-
ção ao poder crescente de Maurício de Nassau, os arminianos contaram com o
apoio de Barneveldt, enquanto Maurício era a favor dos Gomaristas.
Quando Roterdã optou pela posição remonstratense, Amsterdã, que há
muito era sua rival, assumiu a posição oposta. De qualquer forma, em 1618,
Maurício de Nassau e seu partido tinham consolidado seu poder, e, portanto,
quando o Sínodo de Dort foi convocado estava claro que ele condenaria a posi-
ção remonstratense.
Para ver como Dort respondeu às várias doutrinas remonstratenses, devere-
mos tomar cada uma delas, mostrar a posição da Remonstrance e então mostrar
o que Dort decidiu sobre o assunto.

A TULIP
T – total depravação.
U – eleição incondicional (Unconditional election).
L – expiação limitada (limited atonement).
I – irresistível graça.
P – perseverança dos santos.

Calvinismo na Holanda e o Sínodo de Dort


162 UNIDADE IV

Vejamos primeiramente quais foram os artigos dos Remonstrances.


O primeiro artigo do Remonstrance trata da predestinação. Ele não a nega, pelo
contrário, a afirma. Ele nem mesmo ataca o supralapsarianismo, embora o estilo seja
tal que uma interpretação infralapsariana pareça mais natural, pois é dito que por um
decreto do eterno e imutável Deus determinou salvar, da raça humana que caíra em
pecado” aqueles que seriam salvos, e deixar sob o pecado “o contumaz e incrédulo.
Assim, o que o Remonstrance faz neste ponto é simplesmente explicar a predes-
tinação de tal forma que ela pudesse ser entendida em termos infralapsarianismo, e
também pudesse ser interpretada como o resultado, não da iniciativa de Deus, mas

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do pré-conhecimento divino a respeito daqueles que creriam e dos que não creriam.
A resposta de Dort para este entendimento da predestinação não deixa
margem para dúvida. A eleição é totalmente incondicional e, portanto, não está
baseada em pré-conhecimento, mas apenas na decisão soberana de Deus.
A boa vontade de Deus é a única causa desta eleição graciosa. Isto não con-
siste que Deus, ao antever todas as qualidades possíveis das ações humanas,
tenha escolhido algumas destas como uma condição da salvação, mas que Lhe
agrada adotar para Si mesmo algumas pessoas da massa comum de pecadores
como um povo peculiar, de acordo com o que está escrito.
O segundo ponto do Remonstrance, seguindo novamente os ensinos de
Armínio, afirmou que Jesus morreu por todos os homens e por cada um deles de
tal forma que Ele obteve tudo para eles, por meio de sua morte na cruz, redenção
e perdão de pecados. O que foi discutido não foi a quantidade dos que seriam
salvos, mas se a morte de Cristo fora ou não por toda a humanidade.
Contra este ponto de vista, o Sínodo de Dort afirmou a distinção feita ante-
riormente por Gomarus e outros calvinistas, entre a suficiência dos méritos de
Cristo em si mesmos e sua eficácia segundo a vontade divina. Assim, a morte de
Cristo “é de excelência e valor infinitos, abundantemente suficiente para expiar os
pecados de todo o mundo”. Mas ainda, “foi da vontade de Deus, que Cristo pelo
sangue da cruz [...] redimisse efetivamente [...] todos aqueles, e apenas aqueles,
que foram escolhidos desde a eternidade” (GONZALES, 2004, p. 288).
Esta é a doutrina da expiação limitada, que se tornaria uma das marcas
distintivas do Calvinismo ortodoxo posterior. Sobre a questão da depravação

A TEOLOGIA REFORMADA APÓS CALVINO


163

total, tanto os remonstratenses quanto o Sínodo de Dort têm sido frequente-


mente mal interpretados.
Os remonstratenses efetivamente afirmaram que o ser humano no estado de
apostasia e pecado, não pode, por si mesmo, pensar, desejar ou fazer qualquer
coisa que seja verdadeiramente boa.
Dort, por outro lado, afirmou que permaneceu no ser humano, desde a queda,
um vislumbre de luz natural, pelo qual ele ainda possui algum conhecimento de
Deus, das coisas naturais e da diferença entre o bem e o mal.
Isso não quer dizer que eles concordaram inteiramente sobre a questão. Mas
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sua divergência foi muito mais sutil do que a mera questão se os seres humanos
são ou não totalmente depravados. A diferença foi que, enquanto o Remonstrance
recusara a conectar tal depravação humana com a graça irresistível, Dort esta-
beleceu tal conexão, pois somente uma graça que é irresistível pode mudar o
coração de um pecador totalmente depravado.
Acerca da questão da graça irresistível, entretanto, os dois grupos discor-
daram totalmente. O Remonstrance disse que no que diz respeito ao modo de
operação desta graça, ela não é irresistível. Contra tal alegação, o Sínodo de Dort
afirmou que a depravação da humanidade é tal que Deus precisa mudar a von-
tade para levar qualquer um para a fé.
A fé, portanto, deve ser considerada como um dom de Deus, não por conta
do que está sendo oferecido por Deus ao homem, para ser aceita ou rejeitada
ao seu prazer, mas porque é, na realidade, conferida, exalada e infusa nele; nem
mesmo porque Deus confere o poder ou habilidade para crer, e então espera
que o homem possa, pelo exercício de seu próprio livre arbítrio, consentir com
os termos da salvação e efetivamente crer em Cristo, mas porque ele que traba-
lha no homem tanto o querer quanto o realizar, e, de fato, tudo em todos produz
tanto a vontade para crer quanto também o ato de crer.
Finalmente, quanto à questão da perseverança dos santos, os remonstraten-
ses foram novamente mal interpretados. Eles não alegaram que tal doutrina fosse
incorreta. Eles nem mesmo a atacaram. O que eles de fato fizeram foi recusar-
-se a ensinar a doutrina oposta - a possibilidade de cair da graça ou “apostatar”
-, sem uma prova escriturística mais profunda.

Calvinismo na Holanda e o Sínodo de Dort


164 UNIDADE IV

Obviamente, tal declaração implica que eles não estavam totalmente con-
vencidos sobre a teoria da perseverança dos santos. No entanto, claramente, eles
não fizeram da teoria oposta um dos pilares de sua teologia. Foi o Sínodo de
Dort que tornou a doutrina da perseverança dos santos uma marca necessária
da verdadeira fé cristã, e assim levou, posteriormente, os arminianos a defender
a possibilidade de cair da graça. As palavras de Dort não deixam dúvida quanto
à importância da doutrina da perseverança:
A mente carnal é incapaz de compreender esta doutrina da perseve-
rança dos santos,e a certeza por conseguinte, que Deus revelou abun-

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dantemente em sua Palavra, para a glória do seu nome e a consolação
das almas piedosas, e que ele imprime sobre os corações dos fiéis.
Satanás a abomina; o mundo a ridiculariza; os ignorantes e hipócritas
abusam e os hereges se opõem a ela. Mas a esposa de Cristo sempre
a tem amado ternamente e constantemente defendido-a como um
tesouro inestimável; e Deus, contra quem nem conselho nem força
podem prevalecer, a disporá para continuar nesta conduta até o fim
(GONZALEZ, 2004, p. 289).

Em resumo, a controvérsia arminiana e o resultante Sínodo de Dort são um


outro episódio no processo pelo qual a teologia da Reforma foi esquematizada
numa ortodoxia rígida. Pelos padrões do século XVI, Armínio e os remons-
tratenses teriam sido vistos como calvinistas, tanto pelos católicos quanto
pelos luteranos.
Sua doutrina da eucaristia, bem como sua compreensão da natureza da igreja,
foram tipicamente calvinistas. E, ainda, em menos de um século, a doutrina
da predestinação - que Lutero advogou, pelo menos tão ardentemente quanto
Calvino - se tornaria a pedra angular do Calvinismo ortodoxo.
Esta mudança é vista como de maior importância quando se leva em conta
que a contribuição mais importante de Calvino para a teologia protestante foi
precisamente que ele não focou sua atenção primariamente em questões sote-
riológicas, como Lutero o fizera.
Antes de deixarmos a Holanda, dois outros importantes teólogos holande-
ses merecem uma menção específica devido à sua influência, muito além dos
limites do seu país, que são Hugo Grotius e João Cocceius.

A TEOLOGIA REFORMADA APÓS CALVINO


165

Grotius (1583-1645) foi um arminiano e, em geral, um defensor da tole-


rância e da moderação. Por esta razão, e também porque sua própria nação foi
dividida por amargas lutas políticas e religiosas, ele passou a maior parte da sua
vida no exílio. Seus dois escritos mais influentes foram Sobre a verdade da Fé
Cristã (1622) e Sobre a Lei da Guerra e da Paz (1625).
O primeiro desses trabalhos foi uma exposição das doutrinas básicas da fé
cristã, baseando-as tanto quanto possível na Teologia Natural e, de qualquer
modo, enfatizando a tradição cristã comum, ao invés das várias posições confes-
sionais. Por esta razão, ele ganhou um alto grau de popularidade, especialmente
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dentre aqueles engajados no trabalho missionário.


O segundo, tratado sobre a guerra e a paz tenta basear a lei das nações na
Teologia Natural e, portanto, constitui um elo significativo na cadeia da vitória
para a lei internacional moderna.
Grotius desenvolveu uma interessante teoria da expiação, afirmando que a
razão porque Cristo sofreu não para foi pagar pelos pecados da humanidade ou
nos dar um exemplo, mas, para mostrar que, embora desejando nos perdoar,
Deus ainda considerava a transgressão da lei divina uma ofensa séria que não
poderia ficar sem consequências.
João Cocceius (1603-1669) é um teólogo reformado descoberto no Brasil. É
empobrecedora a ignorância a respeito de teólogos dessa envergadura, pois ape-
nas aqueles que leem mais sobre a teologia do pacto, sabem de sua existência no
histórico teológico. Ele desenvolveu, em sua obra Summa doctrinae defoedere et
testamento dei, uma declaração clássica do que veio a ser conhecido como teo-
logia do “pacto” ou teologia “federal”.
De acordo com este ponto de vista, o princípio hermenêutico que deve ser-
vir de ponto de partida para a interpretação da Escritura é que Deus estabelece
um relacionamento pactual com a humanidade. Este relacionamento está base-
ado num pacto preexistente entre o Pai e o Filho. Na criação, Deus estabeleceu
com Adão um pacto de obras.
Após a queda, Deus estabeleceu um novo pacto da graça, que tem duas fases:
o Antigo e o Novo Testamento. Esta perspectiva, que foi um desenvolvimento
posterior de posições anteriormente sustentadas por Ursinus, foi, mais tarde,
comum entre os puritanos.

Calvinismo na Holanda e o Sínodo de Dort


166 UNIDADE IV

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O MOVIMENTO PURITANO E A CONFISSÃO
DE WESTMINSTER

Falar na construção teológica dos chamados teólogos reformados coloca como essen-
cial um acurado estudo do movimento puritano. Esse ponto é fundamental para ser
estudado, pois de novo há muitos procurando se pautar pela cosmovisão puritana.
Fato é que o acordo de Elizabete não satisfez um vasto número de pessoas pie-
dosas e zelosas na Inglaterra que sentiram que a tarefa da Reforma não fora levada
adiante tanto quanto deveria ter sido. Aquelas pessoas queriam purificar a igreja
de todas as crenças e práticas não bíblicas, eles foram chamados de “Puritanos”.
A essência do desacordo entre os primeiros puritanos e os anglicanos pode
ser vista em uma carta que o bispo Grindal escreveu a Bullinger, em 1566, em que
ele diz que é inacreditável quanto esta controvérsia sobre coisas sem importância
tem perturbado nossas igrejas, e ainda, em grande medida, continua a fazê-lo.
O que não era importante para o bispo era a verdadeira essência do Evangelho
para aqueles que insistiam em uma reforma total e criam que ela requeria ade-
são rigorosa às práticas do Novo Testamento em todo aspecto.
Os puritanos não planejaram destruir a igreja anglicana. Pelo contrário, eles
concordaram com o Anglicanismo que deveria haver uma igreja estatal. Seu alvo
original não era abolir a união anglicana entre igreja e Estado, nem mesmo criar

A TEOLOGIA REFORMADA APÓS CALVINO


167

outra igreja ao seu lado. O que eles tentaram fazer, a princípio, foi promover uma
mudança radical na igreja estabelecida da Inglaterra. Apesar disto, estes advoga-
dos de reformas mais profundas eram subversivos aos interesses do acordo de
Elizabete em mais de uma maneira.
Muitos deles aderiram a uma teologia da aliança que sustentava que, de
acordo com a Escritura, Deus entra em um pacto com um povo, que deve
obedecer tais pactos para que o acordo seja mantido. Esta teologia do pacto
também teve seus advogados continentais em Ursinus, no século XVII, e em
João Cocceius.
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Mas o que a fez particularmente subversiva na Inglaterra foi que muitos puri-
tanos chegaram à conclusão que o próprio Estado existe em uma forma de um
pacto. Isto, em contrapartida, poderia servir como uma base para tentar modi-
ficar, ou mesmo, mudar radicalmente a estrutura do governo. Embora este traço
revolucionário fosse quase irreconhecível - se é que estava presente para os pri-
meiros puritanos, ele finalmente custaria a cabeça de Carlos I.
Outros, dentre os primeiros puritanos, sustentaram que o verdadeiro governo
da igreja deveria ser presbiteriano, e que o episcopado deveria ser abolido. Alguns
tomaram uma posição intermediária e aceitaram ordenação pelo episcopado,
mas não teriam o controle da congregação a menos que fossem chamados para
isso. Outros, ainda, foram mais longe, e havendo se tornado convencidos de
que a igreja estabelecida nunca seria reformada da forma que a Palavra de Deus
requeria, formaram suas próprias igrejas separadas.
Uma dessas pessoas foi Robert Browne (1550 - 1633), anteriormente um
membro puritano do clero, que perdera seus privilégios junto à igreja anglicana
por causa de suas idéias puritanas. Em 1581, Browne fundou a primeira igreja
congregacional em Norwich, na Inglaterra, e se tornou seu pastor.
Este e diversos casos similares foram o começo do movimento separatista
que, no século seguinte, se tornaria uma das forças religiosas mais significativas
na Inglaterra. No entanto, já no século XVI, estas várias tentativas de mudar a
política da igreja não foram vistas com simpatia pelas autoridades Elisabetanas,
pois elas alienariamos mais conservadores e também destruiriam a íntima cola-
boração entre igreja e Estado que era um dos alvos da política de Elizabete.

O Movimento Puritano e a Confissão de Westminster


168 UNIDADE IV

Embora o movimento Puritano tenha tido profundas raízes nas várias correntes
reformadoras do princípio do século XVI, muito breve ele se tornou intima-
mente associado ao Calvinismo. Isto se deu parcialmente devido à morte de Maria
Tudor, que ocasionou o retorno do exílio de muitos que haviam buscado refúgio
em Genebra, Frankfurt e outras cidades onde a influência de Calvino era grande.
Ele foi mais fortalecido por muitos discípulos que Martin Bucer adquirira
em Cambridge, onde ensinara durante o reinado de Eduardo VI.
Os puritanos procuravam interpretar o acordo de Elizabeth como uma medida
intermediária entre Roma e Genebra ou - o que pareceu ser o mesmo - entre

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Roma e o Cristianismo escriturístico. Então, parcialmente, devido ao sucesso
da Reforma na Escócia, e à forma que a igreja protestante tomou naquele país
vizinho, os puritanos se tornaram crescentemente convencidos de que a forma
presbiteriana de governo era parte do Cristianismo escriturístico.
Como verdadeiros calvinistas, os puritanos defendiam a doutrina da predes-
tinação. Para eles, entretanto, pelo menos nos estágios iniciais do movimento, a
doutrina da predestinação não era algo a ser extraído ou concluído a partir da
natureza de Deus, mas uma expressão da experiência da graça. Predestinação
não era algo que poderia ser entendido por todos crentes e incrédulos, ao con-
trário, era uma doutrina mencionada dentro do contexto da fé.
Esta doutrina da eleição de forma alguma produziu a quietude ou a compla-
cência que muitos detratores da predestinação alegaram ser sua consequência
necessária. Pelo contrário, os puritanos estavam convencidos de que Deus os
elegeu, não somente para a salvação eterna, mas também para colaborar com o
plano divino para a humanidade.
Portanto, o ativismo - algumas vezes o sucesso nessa atividade - se tornou
um sinal de eleição. Nenhum tempo, dinheiro ou energia devia ser desperdi-
çado em questões frívolas que pareciam ter pouco a ver com a seriedade do
propósito divino. Como muitos desses puritanos eram membros da classe
média emergente, estes pontos de vista logo se tornaram conectados com as
economias capitalistas emergentes da Inglaterra e suas colônias americanas e
contribuíram para elas.
Embora todos os puritanos concordassem quanto à necessidade de
conformar a ordem da igreja com o Cristianismo escriturístico, logo se

A TEOLOGIA REFORMADA APÓS CALVINO


169

desenvolveram entre eles vários pontos de vista quanto ao conteúdo exato


de tal Cristianismo. Muitos permaneceram fiéis à perspectiva presbiteriana.
Mas outros - Browne entre eles - sentiram que a organização da igreja no
Novo Testamento era congregacionalista, e que o presbiterianismo, portanto,
era apenas outra concessão.
Outros ainda foram mais longe e reivindicaram que Calvino e os principais
reformadores haviam concedido muito à tradição. A igreja do Novo Testamento,
que eles reivindicaram, era estritamente uma comunidade de crentes, unidos
por uma aliança entre eles e com Deus. Esta igreja tinha que ser livre de todas
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as ligações com o Estado, que não era uma comunidade voluntária. Seus mem-
bros tinham que fazer uma escolha pessoal para pertencer a ela e, portanto, só
poderiam se juntar a ela quando adultos.
Consequentemente, o batismo infantil foi rejeitado. Dada a necessidade de
se conformar com a prática escriturística em cada detalhe, finalmente, apenas
o batismo por imersão foi aceito por estes grupos, que receberam o nome de
“Batistas”. Enquanto os assim chamados batistas gerais rejeitaram a compreensão
calvinista rigorosa da predestinação, outros - os batistas particulares - permane-
ceram calvinistas nesse aspecto.
As esperanças puritanas aumentaram quando se tornou crescentemente evi-
dente que Elizabete seria sucedida por James VI da Escócia. Estas esperanças,
entretanto, foram abaladas quando James recusou-se a conceder os pedidos de
uma petição moderada tipicamente puritana - ele concordou somente em auto-
rizar uma nova versão da Bíblia, e o resultado foi a versão King James de 1611.
Logo se tomou claro que James não encorajaria nenhum movimento que
moldasse a igreja mais maleável da Inglaterra à semelhança da quase intratável
igreja da Escócia. Na época em que James foi sucedido por seu filho, Carlos I, o
descontentamento entre os puritanos estava prestes a alcançar seu ponto de ebu-
lição. As políticas religiosas de Carlos foram sem sabedoria.
Na Escócia, seu pai conseguira sobrepujar o Presbiterianismo patrocinando
a nobreza. Carlos agora inverteu a política de James e o Presbiterianismo mais
uma vez ganhou o apoio da aristocracia. Na Inglaterra, ele colocou Guilherme
Laud como seu principal conselheiro em assuntos religiosos e, finalmente, o tor-
nou arcebispo de Canterbury.

O Movimento Puritano e a Confissão de Westminster


170 UNIDADE IV

Laud foi um homem honesto e piedoso que estava convencido que a nova
onda puritana devia ser interrompida e que a igreja da Inglaterra devia, de
alguma maneira, fazer as pazes com Roma. Ele próprio não era um católico-ro-
mano, mas suas aberturas em relação à Igreja Católica Romana foram tais que
lhe foi oferecido o chapéu de cardeal. Ele também foi firmemente anticalvinista
e, consistentemente, favoreceu aqueles que haviam sido acusados de inclina-
ções arminianas.
Por todas estas razões ele foi muito antipatizado pelo partido Puritano. Como
o Parlamento era, em certa medida, forma favorável à posição puritana, Carlos

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o pôs de lado em 1629. Entretanto, em 1638, a Escócia se revoltou em resposta
à sua tentativa de forçá-Ia a adotar uma uniformidade na adoração.
Em 1640, o rei foi forçado a convocar o Parlamento com o objetivo de requerer
seu apoio para a guerra com a Escócia. O Parlamento então aproveitou a opor-
tunidade de promover a posição puritana. Dentre os muitos atos deste “Longo
Parlamento”, o mais importante para a história da doutrina cristã foi sua con-
vocação da Assembleia de Westminster, um grupo de cento e cinquenta e uma
pessoas cuja tarefa era aconselhar o Parlamento em questões religiosas.
Esta assembleia que aconteceu em 1647 produziu, entre outros documentos,
a famosa Confissão de Westminster e os Catecismos Menor e Maior. O Catecismo
menor contém 107 perguntas, com respostas bem objetivas e simples, algumas
com apenas uma frase. A meta desse modelo é ser objetivo e conciso. Estes docu-
mentos - especialmente a Confissão - se tornaram uma das marcas oficiais do
Calvinismo presbiteriano.
Considero, então, esta a mais importante e genial de todas as perguntas: qual
o fim principal do homem? Ela tem como resposta o seguinte: o fim principal
do homem é glorificar a Deus e gozá-lo para sempre.
O que é fundamental nesta confissão é a ênfase permanente de que deve-
mos ter uma vida em conformidade com a vontade de Deus em todas as áreas
da vida. Por isso, há uma parte determinante, na qual, é explanada a realidade
objetiva e prática dos dez mandamentos.
No entanto, não se trata de um legalismo, mas de uma aplicação de princí-
pios para a vida humana. Para os teólogos reformados, desde Westminster, viver
a vida cristã somente é possível no viver para Cristo, o viver em Jesus Cristo e

A TEOLOGIA REFORMADA APÓS CALVINO


171

isso na força e graça do Espírito Santo. Somente nessa força da graça é possível
realizar a vontade do Pai de acordo com as Escrituras.
Na mesma linha está o catecismo maior da Confissão de Fé, de Westminster,
que tem um cunho mais abrangente e com detalhes teológicos. Contém 197
perguntas e respostas, com frases elaboradas e muitas até bem complexas. Essa
confissão tem sido base para pregações e ensino catequético da Igreja Reformada,
pois aborda os conteúdos a serem ensinados ao povo de Deus.
O que é fundamental no catecismo maior, é o fato de que a vida cristã é fruto
incontestável da graça de Deus no poder do Espírito Santo, somente em Jesus
Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.

Cristo poderemos viver uma vida de vitória.


Eles, ao refletirem a teologia reformada, intentaram prepara um guia bem
claro, objetivo e elaborado, aplicando a Palavra de Deus à vida. Por essa razão
continua a ser uma guia valioso e sério para o pensamento e modo de vida do
crente reformado.

A TEOLOGIA REFORMADA
NO BRASIL

Conforme escreveu Carlos Jeremias Klein


(2014), a presença de calvinistas no Brasil,
no século XVI, é bem documentada por
Jean de Léry (1534-1611), em Viagem à
terra do Brasil, bem como por Jean Crespin,
em A tragédia de Guanabara, ambos
contemporâneos da tentativa de implan-
tação da “França Antártica” no Brasil,
sob o comando de Nicolau Durand de
Villegagnon. Jean de Léry (1972, p. 21-22)
narra o início do projeto:

A Teologia Reformada no Brasil


172 UNIDADE IV

Em 1555, um senhor Villegagnon, cavaleiro da Ordem de Malta, tam-


bém conhecida por Ordem de São João de Jerusalém, desgostoso da
França e também da Bretanha onde residia então, manifestou a vários
personagens notáveis do reino o desejo, que de há muito alimentava,
não só de retirar-se para um país longínquo onde pudesse livremente
servir a Deus, de acordo com o evangelho reformado, mas ainda prepa-
rar um refúgio para todos os que desejassem fugir às perseguições, que
de fato eram terríveis nessa época que muitas pessoas de todos os sexos
e condições viam por toda parte seus bens confiscados por motivos
religiosos e eram mesmo, não raro, queimadas vivas em obediência a
editos dos reis e decisões do Parlamento.

Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.
Villegagnon conseguiu de algumas pessoas influentes, huguenotes (calvinistas),
entre eles Gaspard de Coligny, apoio para seu empreendimento. O rei Henrique
II, esperando obter vantagens nessa expedição, ordenou que fossem dados a
Villegagnon dois navios bem aparelhados e dez mil francos para as despesas.
Atraindo marinheiros e artesãos, Villegagnon partiu da França, em maio de
1555, e chegou ao Brasil em novembro. Os navios acabaram aportando em uma
ilha, para desembarque de pessoas, bagagens e artilharia. Nessa ilha, Seregipe, foi
construído o Forte Coligny. Villegagnon, ao enviar de volta os navios com cargas,
mandou cartas ao Almirante Gaspard de Coligny, na França, e a Calvino, para
Igreja de Genebra, solicitando ministros da fé reformada para a “França Antártica”.
Ao receber as suas cartas e ouvir as notícias trazidas, a Igreja de Genebra
rendeu, antes de mais nada, graças ao Eterno pela dilatação do reino de Jesus
Cristo em país tão longínquo, em terra estranha e entre um povo que ignorava
inteiramente o verdadeiro Deus.
O Almirante Coligny escreveu a Felipe de Corguilheray, senhor Du Pont, ora
residindo perto de Genebra, que empreendeu a viagem ao Brasil, com os pasto-
res, artesãos e operários solicitados.
A Igreja de Genebra decidiu enviar os pastores Pierre Richier e Guilherme
Chartier, de 50 e 30 anos, respectivamente. Jean Léry escreveu que após convites,
algumas pessoas apresentaram-se para acompanhar Du Pont e os dois ministros:
Pierre Bourdon, Mattieu Verneuil, Jean du Bourdel, André Ia Fon, Nicolas Denis,
Jean Gardien, Martin David, Nicolas Raviquet, Nicolas, Jacques Rousseau e Jean
de Léry, que afirmou: “[...]que tanto pela vontade de Deus como por curiosidade
de ver o mundo fiz parte da comitiva” (LERY, 1972, p. 24).

A TEOLOGIA REFORMADA APÓS CALVINO


173

Os reformados partiram de Genebra, em 16 de setembro de 1556, embarca-


ram no porto de Honfleur em 19 de novembro. A viagem durou cerca de quatro
meses no mar, chegando ao porto Coligny no dia 7 de março de 1557. Foram
recebidos com festas e os ministros apresentaram a Villegagnon suas creden-
ciais assinadas por Calvino.
Aos ministros e seus companheiros pediu [Villegagnon] estabeleces-
sem o regulamento e a disciplina da Igreja, seguindo a forma da de
Genebra, à qual ele prometeu, em plena assembléia, submeter-se e bem
assim toda a sua companhia. Quanto ao governo civil, formou Ville-
gagnon um Conselho, constituindo-o de dez pessoas das mais respeitá-
Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.

veis, e cujo presidente era ele próprio, (CRESPIN, 1917, p. 30).

Em 10 de março de 1557, foi realizado um culto, dirigido por Pierre Richier.


Foi o primeiro culto protestante realizado no Brasil e, possivelmente, nas
Américas. Foi cantado o Salmo 5 e lido o Salmo 27. 4, base do sermão. No
dia 21 deste mês, um domingo, foi celebrada a Ceia do Senhor. “Villegagnon
foi o primeiro a apresentar-se à Mesa do Senhor e, de joelhos, recebeu o pão
e o vinho do ministro, fazendo, então, duas preces em alta voz” (CRESPIN,
1917, p. 34, n. 22).
A celebração da Ceia do Senhor evidenciou algumas divergências entre
Villegagnon, Jean Cointac (acadêmico da Sorbonne) e os ministros sobre o uso
de pão sem fermento e de vinho misturado com água. Alguns dias depois, em
uma pregação de Richier sobre o batismo, a sua crítica à introdução de sal, óleo
e saliva escandalizou Villegagnon,
que contraditou o ministro perante a congregação, sustentando que
os que haviam feito tais acréscimos eram melhores que Richier e seus
companheiros e que ele, Villegagnon, não estava disposto a abrogar o
que se observara há mais de mil anos para aceitar uma nova cerimônia
calvinista (CRESPIN, 1917, p. 36).

Os reformados, diante da impossibilidade de superar as divergências e exerce-


rem sua missão no Brasil, decidiram voltar à Europa, embarcando em um navio
com destino à França, carregado de pau-brasil e de outros produtos, no dia 4 de
janeiro de 1558. Após alguns dias de viagem, o navio apresentou vazamentos e
o capitão liberou quem quisesse voltar à terra firme.

A Teologia Reformada no Brasil


174 UNIDADE IV

Voltaram Jean du Bourdel, Matthieu Verneuil, Pierre Bourdon, André Ia Fon,


alfaiate, e Jacques le Balleur. Villegagnon os acusou de traição e deu prazo de
doze horas para a apresentação de respostas às questões que formulou. Jacques
le Balleur fugiu para o litoral paulista. Para escrever as respostas, foi escolhido o
mais idoso, Jean du Bourdel, que, conquanto leigo, possuía sólidos conhecimen-
tos históricos e teológicos, além de conhecer o latim. Assim nasceu a primeira
Confissão de fé brasileira, a Confissão de Fé de Guanabara, escrita com tinta de
pau-brasil, em latim, em 1558.
Villegagnon, com o texto de Bourdel em mãos, acusou os quatro líderes refor-

Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.
mados de heresia, condenando-os à morte. André Ia Fon, instado a se retratar
perante Villegagnon, “condescendeu em declarar que não desejava ser perti-
naz e obstinado em suas idéias calvinistas e, enfaticamente, se comprometia a
retratar, quando lhe provassem os seus erros pela Palavra de Deus” (CRESPIN,
1917, p. 80-81). Villegagnon considerou aceitável a palavra de Ia Fon e ordenou
ao carrasco que o deixasse ir em paz. Todavia, Ia Fon ficou cativo, como alfaiate
do almirante e da colônia.
No dia 9 de fevereiro de 1558, Jean de Bourdel, Matthieu Verneuil e Pierre
Bourdon foram atirados, amarrados, às águas da baía de Guanabara. Foram os
primeiros mártires da fé reformada no Novo Mundo.
Quanto a Jacques le BaIleur, que fugiu para Capitania de São Vicente, reco-
nhecido pelos jesuítas, foi encaminhado a Salvador, na Bahia, sede do governo
de Mem de Sá. Uma versão consta que ficou preso durante oito anos, depois
enviado ao Rio de Janeiro, onde foi enforcado como herege, estando presente,
na execução, o Pe. José de Anchieta. Outra versão, que consta nas Cartas jesuí-
ticas III (obras digitalizadas da Biblioteca Nacional de Lisboa), afirma que, em
meados de 1563, avocada a causa pelo cardeal D. Henrique, Balleur (Bolés) foi
remetido ao Reino, na nau Barrileira. Entregue às autoridades da Inquisição em
Lisboa, teria se retratado e aderido à Igreja Católica, em 1564.
O que nos fica muito claro nestes relatos, é que a inserção do protestantismo
no Brasil se deu de maneira muito controvérsia e difícil, quando as doutrinas,
ainda em formação, causaram profundas divisões. O livre pensamento adotado
pela tradição reformada foi criativo de uma lado, mas também carregado de pos-
sibilidades beligerantes.

A TEOLOGIA REFORMADA APÓS CALVINO


175

O professor Dr. Carlos Jeremias Klein é um pesquisador precioso da tradição


teológica e tem nos brindado com excelentes reflexões históricas, frutos de
exaustivas pesquisas, sempre vindo a preencher essa lacuna para aqueles
que querem saber mais. Ele advoga em toda sua obra que o cristianismo,
em especial a teologia reformada, moldaram a cultura ocidental. Defende
que devemos atualizar nossa hermenêutica, ouvindo vozes da reforma ain-
da pouco conhecidas no Brasil, por exemplo, Zwinglio e os reformadores
radicais. Há ainda muito a aprender. Encorajo você, caro(a) aluno(a), a pro-
Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.

gredir nas pesquisas.


Fonte: o autor.

Você percebe, a medida que caminhamos, a grandeza e influência que o pensa-


mento reformado tem em nossa cultura. Nossas igrejas criaram escolas, hospitais
e outras organizações humanitárias. Isto é um desafio que nos faz prosseguir em
nossas pesquisas.

Agora que você compreendeu a realidade da história da teologia reformada


no Brasil, faça uma análise pessoal de quanto essa tradição de fé tem in-
fluenciado sua fé pessoal.

A Teologia Reformada no Brasil


176 UNIDADE IV

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Em todo o mundo, o movimento reformado foi carregado de controvérsias, e até


mesmo guerras, não somente de palavras, mas também de violência. Por outro
lado, temos a riqueza inesgotável que este movimento trouxe às nações.
As igrejas reformadas, desde o século XVI, têm produzido várias confissões
reformadas com amplo conteúdo, sempre reafirmando os princípios basilares
da fé reformada.
É preciso relembrar que, dentre todas as confissões da fé reformadas, das sete

Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.
mais adotadas pelas várias denominações, ao longo do tempo, são três as que mais
se destacam e operam de maneira mais unida. São conhecidas e longamente estu-
dadas por aqueles que buscam aprofundar a teologia e suas vertentes – a Segunda
Confissão Helvética, a Confissão Heidelberg e a Confissão de Westminster. No
Brasil, esta última tem ganhado por séculos um lugar privilegiado.
A reforma foi a volta aos princípios de fé da Igreja primitiva e dos pais apos-
tólicos. A teologia da reforma foi essencialmente um movimento visando a
atualização das grandes verdades da fé, mas foi também uma teologia da visão do
glorioso futuro escatológico em Jesus Cristo. Ao afirmar a verdade do tudo para
a Glória de Deus, privilegiou-se a realidade de Jesus Cristo como Rei e Senhor.
Com certeza, ao olharmos teologicamente para a tradição reformada e sua
construção teológica ao longo dos tempos, não hesitamos em afirmar que o
Reino de Deus está chegando, que o Rei está diante de nós e que o juiz que virá
é nosso Salvador, aquele que deu sua vida por nós.
Ao descrevermos a histórica da teologia reformada, não estamos diante de
um deserto, mas sim diante de um oceano inesgotável de possibilidades – nosso
Senhor está vivo, ele é aquele que veio em glória e virá para reinar eternamente.
Não nos esqueçamos da herança litúrgica da Reforma, que sempre nos faz
recordar com convicção de que somos criados e chamados para o louvor do Deus
vivo que espera por nós. Somente a Ele a glória.

A TEOLOGIA REFORMADA APÓS CALVINO


177

1. Sobre Calvino e o Calvinismo, é correto afirmar:


a) João Oecopampadius apoiou Lutero e sua teologia da justificação somente
pela fé.
b) Wolfgang Fabricius Capito foi o defensor de John Huss em Basiléia.
c) Pedro MartireVermigli sofreu influência de Lutero na Alemanha.
d) Jerome Zanchi foi um discípulo de Pedro Martire Vermigli.
e) A doutrina da predestinação de Zanchi é exposta muito claramente em seu
trato Carta Cristã à Nobreza Alemã.
2. A partir dos nossos estudos, assinale (V) para Verdadeiro e (F) para Falso.
( ) Beza foi chamado por Lutero para ensinar na academia de Wittenberg.
( ) A teologia de Beza é muito similar à de Zanchi.
( ) Beza chegou muito próximo de incitar todos os súditos de tiranos à rebelião.
Com base nas afirmativas apresentadas, assinale a alternativa que apresenta,
respectivamente, a alternativa correta:
a) V, V, F.
b) F, V, V.
c) F, F, F.
d) V, F, V.
e) V, V, V.
3. Sobre o Calvinismo na Holanda e o Sínodo de Dort, julgue as afirmativas a seguir:
I. Foi na Holanda, no começo do século XVI, que ocorreu um dos mais impor-
tantes desenvolvimentos da ortodoxia calvinista.
II. Armínio era Luterano e, de fato, rejeitou alguns pontos fundamentos de Calvino.
III. Sobre a predestinação, Armínio começara discordando do supralapsarianis-
mo extremo de Gomarus.
IV. Armínio alega que o primeiro decreto absoluto de Deus a respeito da salva-
ção do homem pecador é aquele pelo qual ele decretou designar Seu Filho,
Jesus Cristo, como Mediador.
178

A partir das afirmativas apresentadas anteriormente, assinale a alternativa correta:


a) Apenas I e II estão corretas.
b) Apenas II e IV estão corretas.
c) Apenas I está correta.
d) Apenas I, III e IV estão corretas.
e) Nenhuma das alternativas estão corretas.
4. A partir dos estudos apresentados, assinale a alternativa correta:
a) O primeiro artigo dos Remonstrance trata da graça resistível.
b) Sobre a predestinação, Dort afirma que a eleição é totalmente condicional.
c) Segundo o Remonstrance, Jesus morreu de modo limitado a alguns eleitos.
d) Sobre a graça irresistível, Dort e o Remonstrance concordam plenamente.
e) Foi o Sínodo de Dort que tornou a doutrina da perseverança dos santos uma
marca necessária da verdadeira fé cristã.
5. A partir dos nossos estudos sobre o movimento puritano, assinale (V) para Ver-
dadeiro e (F) para Falso.
( ) Os puritanos não planejaram destruir a Igreja Anglicana.
( ) Outros, dentre os primeiros puritanos, sustentaram que o verdadeiro gover-
no da igreja deveria ser presbiteriano.
( ) Embora o movimento Puritano tenha tido profundas raízes nas várias cor-
rentes reformadoras do princípio do século XVI, muito breve ele se tornou in-
teiramente associado ao Calvinismo.
A partir das afirmativas apresentadas anteriormente, assinale a alternativa correta:
a) V, V, F.
b) F, V, V.
c) F, F, F.
d) V, F, V.
e) V, V, V.
179

A disseminação das idéias de lutero


O arcebispo Alberto de Mogúncia queixou-se ao papa das ações de Lutero, mas o pon-
tífice descartou a questão como de caráter local. Lutero, contudo, havia questionado a
autoridade do papa, e a disputa se travou em torno desta questão mais ampla.
Ao mesmo tempo, as teses de Lutero, que pregara na porta da Igreja, tinham sido publi-
cadas e estavam circulando. Suas idéias obtiveram apoio público, e ele tornou-se um he-
rói quase instantaneamente. Andar nas ruas passou a ser para Tetzel uma ação perigosa.
O regente local, o eleitor Frederico da Saxônia, decidiu proteger Lutero. Frederico estava
cansado de ver papas italianos interferindo em assuntos alemães e gostava de desagra-
dar o arcebispo.
Foi assim que a Reforma veio a ser uma explosiva mistura de religião e política. O objeti-
vo de Lutero era purificar a Igreja católica romana e preservar sua verdade. Porém muito
rapidamente foi levado de roldão pelos eventos, e sua nova visão tornou-se a reforma
espiritual e moral de todo o mundo cristão. Ainda assim, nem Lutero nem seu colega
Filipe Melanchthon pensaram que estavam fundando uma nova Igreja.
Na Dieta de Augsburg, em 1518, Lutero recusou-se a negar suas visões. Deram-lhe como
escolha a autoridade do papa ou a rebelião - ele preferiu a última. Seus amigos tiveram
de tirá-lo às escondidas de Augsburg à noite temendo por sua segurança.
Em 1519, foi debater em Leipzig com um habilidoso homem chamado John Eck. Eck
o pôs contra a parede: escolher a Bíblia ou Roma. Lutero escolheu a Bíblia. A partir de
então, não havia caminho de volta.
Em 1520, aproximadamente, Lutero era famoso. Seus panfletos em alemão e latim eram
diretos e de fácil leitura, e muitos os liam.
Em 15 de junho de 1520, Roma publicou a Bula Exsurge Domine, condenando Lutero
como herege. Ordenou-se aos cristãos fiéis que queimassem seus livros. A resposta de
Lutero foi queimar a Bula, um documento papal, diante de uma multidão.
Carlos V, o sacro imperador romano, queria a paz. Ele sabia que não podia permitir
a formação de uma Igreja alemã nacional sem provocar uma divisão em seu próprio
reino, e assim convocou Lutero. Na Dieta de Worms de 1521, Lutero declarou diante
do imperador: “A não ser que se prove que estou errado, por meio das Escrituras ou
da razão evidente, sou prisioneiro de consciência da Palavra de Deus. Não posso me
retratar e não vou fazê-Io, ir contra a consciência não é seguro nem certo. Deus me
ajude. Amém”.
Um mês mais tarde, Lutero foi banido e declarado fora-da-lei. Escondeu-se num castelo
chamado Wartburg. Ali, começou a traduzir a Bíblia para o alemão. Completou essa pro-
digiosa tarefa em 1534, e sua tradução ajudou a moldar a língua alemã.
180

A Bíblia e os hinos de Lutero tornaram-se importantes na Reforma. Ele acreditava que to-
dos deveriam poder ler a Bíblia, dos mais elevados aos mais humildes. Antes, a Bíblia era
em latim e destinada apenas a clérigos e estudiosos. Com sua tradução para o alemão e
sua publicação por meio da imprensa, agora todo cristão poderia lê-Ia.
Além de reformar determinadas práticas centrais, Lutero pretendia reformar a prática da
Igreja. Ele não aprovava a existência de monges e freiras, nem do celibato que impedia
os padres de se casar. O próprio Lutero desposou uma ex-freira chamada Katharina, com
quem teve vários filhos.
A vigorosa posição tomada por Lutero nos levantes camponeses de 1524-1525 fortale-
ceu o poder dos príncipes alemães. A Alemanha dividiu-se. Depois de 1524, teria havido
uma guerra civil se Roma tivesse tomado mais medidas para silenciar Lutero.
Na Dieta de Speyer, de 1529, os príncipes que concordavam com a Reforma de Lutero
divulgaram um “protesto” contra o imperador e os príncipes católicos. Desse “protesto”
vem a palavra “protestante”.
Fonte: Raeper e Smith (2007, p. 150-152).
MATERIAL COMPLEMENTAR

Harmonia das Confissões Reformadas


Joel R. Beeke e Sinclair B. Ferguson
Editora: Cultura Cristã
Sinopse: esta obra de referência única terá valor permanente e prático para
os que estudam a Tradição Reformada. Pela primeira vez, sete importantes
confissões são abordadas de forma a dialogar e a compreender os aspectos
complexos que tecem uma interpretação da fé cristã.

Material Complementar
REFERÊNCIAS

CRESPIN, J. A Tragédia de Guanabara ou História das protomartyres do Chris-


tianismo no Brasil (Século XVI), (trad. Domingos Ribeiro), Rio de Janeiro: Pimenta
de Mello, 1917.
GONZALEZ, J. L. Uma História do Pensamento Cristão, v. 3. São Paulo: Cultura Cris-
tã, 2004.
KLEIN, C. J. História e Pensamento da Reforma, Londrina: Eduel, 2014.
LÉRY, J. Viagem à terra do Brasil, (trad. Sérgio Milliet), São Paulo: Martins/Usp, 1972.
RAEPER, W.; SMITH, L. Introdução ao Estudo das Idéias, São Paulo: Loyola, 2001.
183
GABARITO

1. D.
2. B.
3. D.
4. E.
5. E.
Professor PhD. Silas Barbosa Dias

O IMPACTO E A NATUREZA

V
UNIDADE
DA TRADIÇÃO REFORMADA

Objetivos de Aprendizagem
■ Entender o lugar do pensamento reformado no mundo novo e
moderno que surgiu.
■ Compreender os apontamentos feitos por Max Weber sobre o
pensamento da reforma e o espírito do capitalismo.
■ Inserir na discussão do tema um exemplo teológico, a Igreja.
■ Concluir o assunto desde uma visão escatológico.

Plano de Estudo
A seguir, apresentam-se os tópicos que você estudará nesta unidade:
■ Uma atitude nova diante do mundo
■ Max weber
■ A Reforma, a política e as ciências sociais
■ Exemplo prático de conteúdo teológico
■ O caráter escatológico da igreja e suas marcas
187

INTRODUÇÃO

Estudar esse assunto é saber que é inesgotável a grandeza da tradição reformada


em sua ampla relevância conceitual.
Esta unidade final explora alguns dos modos de como as ideias religiosas
da Reforma exerceram impacto significativo na História, seja ao estabelecerem
bases para novas atitudes e cosmovisões ou ao afastarem obstáculos intelectu-
ais a esses desenvolvimentos.
Para essa tarefa somos devedores a vários estudiosos da Reforma, mas, em
Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.

especial, para a finalidade aqui colocada, duas fontes me parecem essenciais.


Traçamos a trajetória de algumas das idéias e valores desenvolvidos durante
o período, considerando seu impacto de longo tempo na cultura ocidental.
Acreditamos que os Reformadores expressaram uma nova teologia enquanto
frisaram uma nova forma de vida.
Sem dúvida é possível e sábio afirmar que os reformadoras trouxeram os
pressupostos de uma nova cultura, a qual impactou toda uma civilização – na
verdade, foi criada uma nova maneira de ver o mundo.
Como veremos, há bons argumentos para sugerir que a Reforma injetou um
impulso criativo distintivo na História, com importantes resultados para o for-
mato do nosso mundo atual.
Muito da superficialidade de alguns escritos históricos dos anos recentes se
deve, sem dúvida, ao fato de não perceber-se o quanto dos valores, das atitudes e
das ações repousam sobre bases do modo de pensar. Pensar e estudar a História
é muito mais do que apenas compreender as ideias.
Com isso, podemos afirmar que as ideias são afetadas pela História, pelo
contexto das realidades. No entanto, é verdadeiro dizer que a descrição histó-
rica também é afetada pelas ideias. Há uma complexidade de interação entre
ideias e contexto – é nessa confluência que se pode descrever a história da teo-
logia reformada.
Seguimos então a proposta de explorar, desde a teologia, algumas das con-
sequências estruturais e culturais das ideias desenvolvidas na época da Reforma
e nos momentos seguintes da história humana.

Introdução
188 UNIDADE V

Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.
UMA ATITUDE NOVA DIANTE DO MUNDO

Olá, caro(a) aluno(a), estamos findando nosso curso, e nesta unidade iremos abordar
temas relevantes quanto à reforma, na busca de uma resposta sobre o impacto que
a história da tradição reformada teve sobre o mundo em várias de suas vertentes.
Que impactos poderiam ser vistos no mundo moderno? Já observamos
como os reformadores, tais como Lutero e Calvino, estabeleceram uma nova
visão acerca do que significa ser uma igreja cristã, eliminando qualquer neces-
sidade de continuidade institucional com a igreja medieval. Há dois - e apenas
dois - elementos essenciais numa igreja cristã: a pregação da Palavra de Deus e
a administração apropriada dos sacramentos.
Embora sinais de continuidade histórica com a igreja apostólica fossem bem-
-vindos, o mais importante era a continuidade com o ensino apostólico. Isso
abriu o caminho para uma das características mais marcantes do protestantismo
atual nos Estados Unidos e em todo lugar - a proliferação radical de “igrejas”.
Os críticos católicos do protestantismo em geral indicam suas tendências
e as consideram como falta de cuidado com a unidade fundamental da igreja.
Essa “característica de família” do protestantismo atual pode ser remontada às
eclesiologias de Lutero e Calvino.

O IMPACTO E A NATUREZA DA TRADIÇÃO REFORMADA


189

Com o auxílio da visão retrospectiva, pode-se perceber agora que elas esta-
beleceram as bases conceituais que incentivaram pessoas empreendedoras a
organizarem suas próprias congregações, e até denominações, quando se fazia
necessário se separar das antigas comunidades.
Embora essa doutrina distintiva e característica da Reforma quanto à igreja
date dos anos de 1520 e 1530, sua total importância só se tornou clara nos sécu-
los XIX e XX. Essa eclesiologia capacita indivíduos empreendedores, em geral,
motivados pela visão de uma forma específica de ministério, a iniciar suas pró-
prias congregações, ou até mesmo suas próprias denominações.
Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.

Pode bem haver uma única igreja universal, à qual pertencem todos os cris-
tãos; porém, há inúmeras igrejas locais. Cada uma delas incorpora uma ideia
distinta do que significa ser cristão, frequentemente adaptando-se às especificida-
des de uma situação cultural local ou tendo sido modelada por uma controvérsia
cuja relevância teológica e poder emocional definham a cada ano que passa.
Não é injusto sugerir que a visão protestante da igreja desencadeou um
processo darwinista de competição e sobrevivência, gradualmente eliminando
igrejas mal adaptadas e assegurando que as sobreviventes sejam bem apropria-
das para as necessidades e oportunidades do momento.
Esse modo de perceber as coisas permite ao protestantismo atual lidar com
rápidas mudanças culturais e sociais, o que, frequentemente, faz com que as igre-
jas fiquem presas às realidades de uma era passada.
Pastores e pregadores empreendedores podem facilmente reformular a visão
do evangelho, adaptando-a às novas situações - de modo bem semelhante à
maneira como as visões mais antigas foram adaptadas às suas situações. Desse
modo, poderão evitar que o protestantismo fique preso numa “bolha temporal”.
Recentemente, muitos estudos observaram como a maioria dos líderes inte-
lectuais e espirituais do cristianismo medieval era composta por homens que
levavam uma vida monástica, isolada de muitas das duras realidades do coti-
diano pelos muros de seus monastérios e conventos.
O protestantismo escolheu habitar o mundo mais perigoso da cidade e do
mercado, expondo seus pensadores a pressões e problemas que seus ancestrais
católicos não tiveram que considerar.

Uma Atitude Nova Diante do Mundo


190 UNIDADE V

É extremamente importante reconhecer que os luminares intelectuais da pri-


meira fase do protestantismo - Martinho Lutero, Ulrico Zuínglio, Martin Bucer,
Henrique Bullinger e João Calvino - viveram, pensaram e escreveram num con-
texto urbano. No entanto, a transição que empreenderá desde o monastério para
o mercado de trabalho era ousada.
Segundo McGrath (2014, p. 286),
[...] o protestantismo estava exposto exatamente aos perigos, ameaças e
problemas que haviam gerado o surgimento do movimento monástico em
primeiro lugar. Como o cristianismo poderia manter sua integridade se

Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.
então estava imerso nos desafios do mundo, sendo confrontado por eles?

Se a primeira atitude foi característica de muito do cristianismo medieval, a


segunda dominou o pensamento daqueles reformadores. Os reformadores tes-
temunharam uma notável reviravolta nas atitudes quanto à ordem secular.
O cristianismo monástico, que foi a fonte de praticamente todos os melhores
escritos espirituais e de teologia cristã da Idade Média, tratava o mundo e os que
nele viviam e trabalhavam com certo grau de desdém. Os verdadeiros cristãos
devem se afastar do mundo e entrar na segurança espiritual de um monastério.
Contudo, para os reformadores, a verdadeira vocação de um cristão está
em servir a Deus no mundo – esse paradigma é fundamental para entendermos
o pensamento da reforma. Os monastérios eram irrelevantes para essa tarefa.
Uma teologia da cidade surge. A verdadeira tarefa e missão da vida do cris-
tão está nas cidades, nos mercados e no mundo do comércio, dentro do mundo
secular, não no esplêndido isolamento da cela monástica – a teologia reformada
propõe um enfrentamento da vida como ela é.
É impossível exagerar a importância dessa mudança de cosmovisão. Pode-se
pensar que o cristianismo monástico era apenas um componente - e talvez nem
mesmo o componente mais significativo - do cristianismo medieval. Apesar disso,
muito do que se indica na literatura como “cristianismo medieval” na verdade
se trata do cristianismo monástico; com frequência demais, a vida cotidiana e as
idéias dos cristãos no mundo mais amplo não era levada em conta.
O cristianismo monástico dessa época fazia muitas críticas aos cristãos que
optavam por permanecer no mundo e declinavam de seguir a vida religiosa em

O IMPACTO E A NATUREZA DA TRADIÇÃO REFORMADA


191

suas várias formas. Considerava-se o viver no mundo cotidiano como uma opção
de segunda categoria. Além disso, essa opção era vista como um absurdo espi-
ritual que poderia levar a todo tipo de degeneração espiritual. Uma ilustração
tornará esse ponto mais claro. O escrito mais famoso do movimento geralmente
conhecido como Devotio.
Imitatione Christi, de Thomas à Kempís, foi escrita por volta de 1425. O
título completo desta obra, em nossa língua, é “A Imitação de Cristo” e ao des-
prezo pelo mundo. Uma resposta positiva a Jesus Cristo é vista como vinculada
a uma resposta negativa ao mundo (McGRATH, 2014, p. 288).
Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.

Para Kempis, cultivar uma atitude desapegada ou negativa para com o mundo
é um sinal de maturidade espiritual. Durante a Idade Média, os monastérios se
tornaram cada vez mais isolados das pessoas comuns.
Apegados de maneira cada vez mais firme ao moribundo mundo medie-
val, os monastérios pareciam incapazes de se relacionar com o novo interesse
dos leigos pela religião e com o avanço tecnológico da imprensa. As abordagens
monásticas à vida cristã passaram a ter um impacto cada vez menor fora dos
monastérios, até mesmo no clero. A vida cotidiana dos leigos era, em geral, pra-
ticamente intocada pelo que acontecia dentro dos muros monásticos. As atitudes
monásticas acerca da vida cristã objetivavam um estilo de vida e cosmovisão
completamente estranhos aos leigos.
McGrath aponta que,
[...] com a Reforma, os centros formadores da vida e pensamento cris-
tão gradualmente se transferiram dos monastérios para os mercados,
na medida em que as grandes cidades da Europa se tornavam o berço
e o cadinho de novas maneiras do pensar e agir cristãos. Espelhadas
nesse movimento estão as mudanças políticas, sociais, econômicas e
eclesiásticas que estão no centro da formação da cultura ocidental mo-
derna (McGRATH, 2014, p. 288).

A Reforma principal rejeitou o impulso monástico de abandonar o mundo - mas,


primariamente, com base em considerações teológicas, não sociais.
McGrath (2014, p. 288-289), nos chama a observarmos brevemente duas
dessas considerações teológicas: “uma nova ênfase nas doutrinas da criação e
da redenção e uma recuperação da idéia da vocação do cristão”.

Uma Atitude Nova Diante do Mundo


192 UNIDADE V

UMA NOVA ÊNFASE NAS DOUTRINAS DA CRIAÇÃO E DA


REDENÇÃO

Pode-se dizer que a teologia de Calvino, que afirma o mundo de modo impres-
sionante, se baseia na declaração da total distinção ontológica entre Deus e
o mundo, embora negue a possibilidade de separar os dois. O tema distinto,
mas não separado, que sustenta tantos aspectos da teologia de Calvino, rea-
parece na sua compreensão do relacionamento do cristão com a sociedade.
O conhecimento do Deus Criador não pode ser isolado do conhecimento

Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.
de sua criação.
Espera-se que os cristãos demonstrem respeito pelo mundo, interesse por
ele e que se comprometam com ele devido à sua lealdade, obediência e amor
por Deus, que os criou. O mundo não tem uma reivindicação direta à lealdade
cristã; é uma reivindicação indireta, baseada no reconhecimento da relação sin-
gular de origem que existe entre Deus e sua criação. Ao se respeitar a natureza
como criação divina, está se adorando a Deus, não a natureza.
Assim, ser um cristão não significa, e, de fato, não pode significar, renunciar
ao mundo; pois renunciar ao mundo é renunciar ao Deus que o criou de forma
tão maravilhosa. Embora caído, o mundo não é mau. O cristão é chamado a tra-
balhar no mundo de modo a redimir o mundo. O compromisso com o mundo é
um aspecto vital da concretização da doutrina cristã da redenção. Deixar de se
comprometer com o mundo e de trabalhar nele equivale a declarar que ele não
pode e não deve ser redimido.

UMA RECUPERAÇÃO DA IDEIA DA VOCAÇÃO DO CRISTÃO

Compreender esse ponto nos é fundamental, devido a um pieguismo cristão que


tem destruído a ação das pessoas na vida. A idéia monástica de vocação exigia
deixar o mundo para trás. Os crentes são “chamados para fora” do mundo. Os
reformadores repudiaram vigorosamente essa idéia. As pessoas são chamadas,
em primeiro lugar, para serem cristãs e, em segundo lugar, para viverem sua fé
numa esfera bem definida de atividades no mundo.

O IMPACTO E A NATUREZA DA TRADIÇÃO REFORMADA


193

Por isso, pode-se julgar o impacto do pensamento da Reforma nesse sen-


tido, no fato de que o termo latino vocatio, “vocação”, agora passou a significar
“uma atividade ou carreira secular”. Por trás desse hábito atual se encontra uma
idéia que alcançou ampla aceitação na Reforma do Século XVI: a de que o cris-
tão é chamado para servir a Deus no mundo.
Essa ideia, junto com a doutrina central do sacerdócio de todos os cren-
tes deu uma nova motivação vital para ações fiéis comprometidas no mundo
cotidiano. Como já vimos, os reformadores rejeitaram a distinção medieval
vital entre “sagrado” e “secular”. Não há diferença genuína de posição entre
Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.

a ordem “espiritual” e “temporal”, penso que no Brasil ainda precisamos rea-


firmar esta verdade.
Todos os cristãos são chamados para serem sacerdotes, e esse chamado se
estende ao mundo cotidiano. Eles são chamados a purificar e santificar sua vida
cotidiana a partir do seu interior. Lutero afirma esse ponto de maneira breve: “O
que parecem ser obras seculares na verdade são louvores a Deus e representam
uma obediência que muito o agrada” (McGRATH, p. 289).
Assim esse ponto precisa ser mais desenvolvido, visto que é um aspecto vital
da ética de trabalho protestante - sem dúvida uma das contribuições mais signi-
ficativas da Reforma para a formação da cultura ocidental.

QUAL ERA A ÉTICA PROTESTANTE DO TRABALHO?

Para apreciarmos a relevância do surgimento da ética do trabalho protestante,


precisamos compreender o intenso desgosto com que se considerava o trabalho
na tradição cristã inicial, ilustrada pelos escritores monásticos.
Para Eusébio de Cesareia, a perfeita vida cristã era a de servir a Deus, incon-
taminada pelo trabalho físico. “Quem escolhia uma vida de trabalho era um
cristão de segunda categoria’’ (McGRATH, p. 290). Viver e trabalhar no mundo
era desistir do chamado cristão de primeira classe, com tudo o que isso implicava.
A tradição monástica inicial parece ter herdado essa postura. O resultado é
que com frequência o trabalho era visto como uma atividade humilhante e degra-
dante, a qual é melhor deixar para os que são inferiores na escala social - e espiritual.

Uma Atitude Nova Diante do Mundo


194 UNIDADE V

Se os patrícios sociais da antiga Roma consideravam o trabalho como algo


abaixo da posição deles, deve-se dizer que uma aristocracia espiritual parece ter
se desenvolvido no cristianismo primitivo, com uma postura igualmente nega-
tiva e desdenhosa para com o trabalho manual.
Essa postura provavelmente alcançou seu pico de influência durante a Idade
Média. A espiritualidade monástica do período medieval geralmente conside-
rava o trabalho como degradante. Esse estigma predominante contra o trabalho
manual era bem comum, mas não era universal. A espiritualidade beneditina, por
exemplo, criou um genuíno lugar espiritual para o trabalho na vida monástica.

Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.
Para McGrath (2014, p. 290),
[...] a postura medieval mais difundida era aquela encontrada no ven-
dedor de indulgências de Geoffrey Chaucer, nos Contos da Cantuária,
o qual se gabava de que nunca se rebaixaria tanto a ponto de tecer ces-
tos com suas próprias mãos.

A espiritualidade monástica nunca considerou o trabalho cotidiano no mundo


como algo que tivesse valor. Quem escolhia viver e trabalhar no mundo era, no
máximo, simplesmente “considerado com indulgente caridade”: Quem se com-
prometia - seja por escolha própria ou por falta de alternativas sérias - a viver
e trabalhar no mundo cotidiano era considerado como inferior, desprovido de
qualquer “vocação”: O termo latino vocation era compreendido como indi-
cando um chamado à vida monástica, a qual envolvia deixar o mundo para trás.
Desde o início, o protestantismo rejeitou a distinção medieval crucial entre
as ordens “sacra” e “secular’: Embora isso possa ser facilmente interpretado como
uma dessacralização do sagrado, também pode ser igualmente compreendido
como a sacralização do secular.
Já em 1520, Lutero havia estabelecido as fundações conceituais básicas para
o espaço sagrado criado dentro do secular. Sua doutrina do “sacerdócio de todos
os crentes”, afirma que não há diferença genuína de posição entre a ordem “espi-
ritual” e a “temporal” ou “secular”’. Todos os cristãos são chamados a serem
sacerdotes - e podem exercer essa vocação no mundo cotidiano.
A ideia de “vocação” foi, portanto, fundamentalmente redefinida: não era
mais sobre ser chamado a servir a Deus deixando o mundo; agora era sobre ser-
vir a Deus dentro do mundo a cada dia. Deus chama seu povo, não apenas à fé,

O IMPACTO E A NATUREZA DA TRADIÇÃO REFORMADA


195

mas a expressar essa fé nas áreas bem definidas da real vida. Essa ideia de uma
“dupla vocação” expressa a visão de que se é chamado, em primeiro lugar, a ser
um cristão e, em segundo lugar, a viver essa fé em uma esfera bem definida de
atividade no mundo.
Lutero afirma esse ponto sucintamente, ao comentar sobre Gênesis 13.13:
“O que parecem ser obras seculares na verdade são louvores a Deus e represen-
tam uma obediência que muito o agrada”, (McGRATH, 2014, p. 291).
Não há limites para essa noção de chamado. Lutero exalta até mesmo o valor
religioso do trabalho doméstico, declarando que, embora “não haja aparência
Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.

óbvia de santidade, essas mesmas tarefas domésticas devem ser mais valorizadas
que todas as obras de monges e freiras” (MacGRATH, 2014, p. 290).
William Tyndale (ANO apud McGRATH, 2014, p. 291), seguidor inglês de
Lutero, comenta que, embora “lavar pratos e pregar a palavra de Deus” represen-
tem claramente diferentes atividades humanas, não há diferença essencial entre
elas “quanto a agradar a Deus”. É totalmente notável a transformação histórica
da posição do trabalho por meio dessa ética.
No seu estudo magistral sobre a posição do trabalho de Aristóteles a Calvino,
Vittorio Tranquilli demonstra como a teologia de Calvino a transformou dire-
tamente: de uma noção de trabalho como atividade degradante socialmente
- embora necessária pragmaticamente, que era melhor que fosse relegada aos
inferiores na escala social - para um meio dignificado e glorioso de louvar a Deus
e afirmá-lo em sua criação e por meio dela, enquanto ao mesmo tempo contri-
bui para a felicidade dela.
Não foi por acaso que as regiões da Europa que adotaram o protestantismo
logo passaram a prosperar economicamente. Não era uma consequência inten-
cional e premeditada, mas sim um subproduto da nova importância religiosa
dada ao trabalho. Isso nos leva a considerar o impacto econômico do pensa-
mento da Reforma, incluindo sua postura quanto ao trabalho.
Nesse sentido, um tema de importância especial é a celebrada “tese de
Weber” sobre a relação entre o protestantismo e o capitalismo. Por isso, temos
já afirmado, neste estudo, que a reforma na verdade foi bem além, pois criou
não somente uma confissão religiosa mas também uma cultura que impactou
a história humana.

Uma Atitude Nova Diante do Mundo


196 UNIDADE V

Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.
MAX WEBER

Como entender o pensamento da Reforma e as origens do capitalismo?


Segundo McGrath (2014, p. 292), Max Weber (1864-1920) decidiu identifi-
car as características do capitalismo moderno
[...] comparando-o com o que denominou ‘capitalismo aventureiro’ do
período medieval. Essa forma anterior de capitalismo, ele argumenta,
era oportunista e sem escrúpulos; tendia a consumir seu ganho de capi-
tal em estilos de vida exuberantes e decadentes. As formas de capitalis-
mo que emergem no começo do período moderno, contudo, possuem
uma base ética mais forte, que em geral é ligada a um ascetismo pessoal
quanto aos bens materiais.

Sob o catolicismo, o acúmulo de capital é visto como intrinsecamente pecaminoso;


sob o calvinismo, como digno de louvor. Weber encontra essa mudança fundamen-
tal de atitude, particularmente bem ilustrada, em diversos escritores calvinistas do
século XVII, como Benjamin Franklin, cujos escritos recomendam o acúmulo de
capital por meio de envolvimento com o mundo, enquanto, ao mesmo tempo, cri-
ticam seu consumo. O capital é algo a ser aumentado, não consumido. Segundo
Weber, então, “o calvinismo gerou as precondições psicológicas essenciais para o
desenvolvimento do capitalismo moderno” (McGRATH, 2014, p. 292).

O IMPACTO E A NATUREZA DA TRADIÇÃO REFORMADA


197

O argumento de Weber que relaciona o surgimento do “espírito do capitalismo”


com o calvinismo é, por sua vez, relacionado ao conceito calvinista de predesti-
nação. Weber alegou que a doutrina calvinista da predestinação cria ansiedade
religiosa naqueles que desejam saber se são realmente eleitos. Ao tentarem supe-
rar essa ansiedade, argumenta Weber, escritores calvinistas, como William Perkins
(1558-1602), desenvolveram um elevado sentido de obrigação moral quanto ao
trabalho, a convicção de que a eleição de uma pessoa por Deus é autenticada pelo
seu ativismo e um predominante espírito de viver frugalmente dos rendimentos de
tal trabalho, com o saldo sendo economizado, investido ou simplesmente doado.
Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.

O “espírito do capitalismo”, portanto, surgiu da busca pela certeza da salva-


ção - algo que o sistema teológico de Calvino acentuou, mas não resolveu. Quer
Weber esteja certo sobre isso ou não, o surgimento do capitalismo ocidental
moderno realmente parece ter uma conexão com o calvinismo, embora não se
saiba ao certo se foi como causa ou efeito.
Isso porque, enquanto Karl Marx argumenta que o surgimento do capitalismo
moderno trouxe o protestantismo à existência, Weber argumenta exatamente o
contrário. O calvinismo tornou o sucesso comercial algo respeitável ao decla-
rar que as virtudes por trás dele, tais como parcimônia, austeridade e disciplina,
são aceitáveis aos olhos de Deus.
No entanto, há claras conexões entre Calvino e o surgimento do capitalismo
moderno em outros sentidos. O mais importante reside na atitude de Calvino
quanto à usura - emprestar dinheiro a juros, visando lucrar com o empréstimo. Por
toda a era patrística e a Idade Média, o consenso geral da igreja foi de que a usura
é um pecado mortal. O Antigo Testamento proíbe explicitamente essa prática. Por
todo o período patrístico e medieval, essa proibição foi reforçada e esclarecida.
Três concílios medievais - o Segundo e o Terceiro Concílio de Latrão (1139;1179)
e o Concílio de Viena (1314) reforçaram a interdição do Antigo Testamento, estipu-
lando até mesmo que deve se negar aos usuários um enterro cristão. Essas noções
não foram desafiadas durante a primeira fase da Reforma. Martinho Lutero con-
siderava a proibição bíblica à usura como permanentemente obrigatória. No seu
sermão de 1524 sobre comércio e usura, Lutero censura severamente qualquer ten-
tativa de cobrar juros. Na sua opinião, os cristãos “devem emprestar dinheiro de boa
vontade e alegremente, sem cobrar quaisquer juros” (McGRATH, 2014, p. 291-294).

Max Weber
198 UNIDADE V

No entanto, o empréstimo de dinheiro a juros foi essencial para o sur-


gimento do capitalismo moderno. O desejo por capital crescia com firmeza,
levando muitos na igreja e no Estado a fazerem de conta que não sabiam dos
empréstimos de dinheiro e a reconsiderarem toda a base teológica da proibição
de usura. Calvino não podia ficar alheio a esses problemas. A sobrevivência
da cidade de Genebra dependia da capacidade de sustentarem e desenvol-
verem sua economia urbana e de permanecerem independentes de vizinhos
potencialmente perigosos.
Em 1545, Calvino escreve a seu amigo Claude de Sachin, especificando sua

Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.
opinião sobre a usura. Quanto a isso, Calvino reafirma a idéia geral protestante
de que nem todas as regras estabelecidas para os judeus no Antigo Testamento
são obrigatórias agora para os cristãos. Nesses casos, o Antigo Testamento for-
nece apenas orientação moral, não prescrições positivas para conduta.
Esse modo de interpretar o Antigo Testamento já havia sido aplicado a
questões culturais - tais como a exigência do Antigo Testamento de sacrifícios
de animais. A extensão desse princípio à usura por Calvino abriu novas possi-
bilidades. “Um tema fundamental que recorre por toda a carta é que as coisas
haviam mudado. A situação na Europa do Século XVI não era a mesma que no
antigo Israel” (McGRATH, 2014, p. 293).
As novas realidades da vida financeira no início do período moderno fizeram
com que a aplicação não crítica desse tipo de passagens do Antigo Testamento
se tornasse altamente problemática. As novas realidades econômicas do século
XVI indicavam que os juros devem simplesmente ser vistos como um aluguel
pago pelo capital. Assim, Calvino argumenta que há necessidade de investigar
isso mais profundamente e determinar os princípios gerais que parecem estar
por trás da interdição do Antigo Testamento à usura.
É o propósito da proibição, e não a proibição em si, que deve governar o
pensamento protestante quanto a essa questão. “Não devemos julgar a usura
segundo umas poucas passagens da Escritura, mas de acordo com o princípio
de equidade” (McGRATH, 2014. p. 294).
O que vemos na realidade é um compromisso de João Calvino com a
realidade da opressão social, por isso, para ele, a preocupação real é com a
exploração dos pobres por meio de altas taxas de juros. Pode-se lidar com isso,

O IMPACTO E A NATUREZA DA TRADIÇÃO REFORMADA


199

ele afirmou, de outras maneiras - tais como tabelar as taxas de juros a níveis
aceitáveis comunitariamente e defensíveis moralmente. A opinião de Calvino
levou algum tempo para se tornar aceita, sendo vista por muitos como con-
trária ao claro sentido da Bíblia.
De maneira assertiva, McGrath (2014, p. 294) afirma que “na metade do
Século XVII, ou seja, mais de cem anos depois da inovadora análise de Calvino
- a usura finalmente passou a ser considerada aceitável”.
Ela permanece um aspecto integral da cultura ocidental moderna, e é neces-
sário reconhecer o papel de Calvino em gerar essa mudança de opinião - quer seja
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vista como progressiva ou regressiva. Aí temos a reforma impactando dentro da


teoria da organização humana o sistema econômico ou, até mais tecnicamente
falando, o sistema patrimonial do gradiente social.

A REFORMA, A POLÍTICA E AS CIÊNCIAS SOCIAIS

Sem nenhuma dúvida podemos afirmar que


a Reforma mudou a face política da Europa,
parte por meio das mudanças sociais e polí-
ticas que gerou e parte por causa de algumas
novas ideias perigosas que desencadeou
numa Europa confiante.
Várias crenças que até então haviam
contribuído para a estabilidade política
e social da Europa ocidental foram ques-
tionadas. Uma dessas crenças se relaciona
com a “irrefutabilidade” das estruturas
sociais existentes.
Conforme McGrath (2014, p. 294), teóricos políticos, como Quentin Skinner,
que escreveu o livro As bases do pensamento político moderno,

A Reforma, a Política e as Ciências Sociais


200 UNIDADE V

[...] argumentam que a Reforma - e mais especificamente o desenvolvi-


mento do calvinismo - foi instrumental para efetuar a transição da noção
medieval de ordem mundial, fundada sobre ‘uma ordem imaginada como
natural e eterna’, para uma ordem moderna fundada sobre mudanças.

Vivemos ainda hoje em um mundo de mudanças em que afirmamos ainda mais


a pergunta: onde a tradição reformada encontrará lugar nesta nova época?
Pensar em termos de cosmovisão desde a reforma implica em dizer que o
calvinismo forneceu uma ideologia de transição e mudança, em que a posição
da pessoa no mundo é declarada estar baseada, pelo menos em parte, nos seus
esforços, um mundo de potenciais em ação – decisão e destino.

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Estas duas palavras vão dar o tom do pensamento reformado, somos chama-
dos responsavelmente a tomar decisão, que sempre produzirá um destino. Não é
difícil perceber o quanto essa sugestão seria atraente para os camponeses fran-
ceses - de fato, para toda a burguesia européia. Para uma classe social frustrada
pela sua incapacidade de progredir significativamente numa sociedade domi-
nada pela tradição e laços familiares, a doutrina da mutabilidade fundamental
das ordens sociais existentes exerceu considerável atração.
Essa nova maneira de pensar, essa cosmovisão reformada, foi fortalecida na
França depois do impacto causado pelo massacre do Dia de São Bartolomeu em
1572, quando um significativo número de protestantes franceses foi assassinado
durante as planejadas demonstrações públicas de sentimento antiprotestante.
Inicialmente, o calvinismo francês tinha limitado suas reflexões políticas à
área geral da liberdade de consciência. Ao longo do ano de 1550, na medida
em que a influência calvinista na França se tornava cada vez mais importante,
a agitação política do calvinismo francês passou a se concentrar cada vez mais
na tolerância religiosa.
Na leitura de organização humana, dentro da sociedade francesa, poderia
ser dito que não havia contradição fundamental entre ser um calvinista e ser um
francês; ou ainda, ser um francês e ser um calvinista (ou dito em outros termos,
um huguenote, pois os termos são praticamente sinônimos). Afirmava-se que
não implicava em deslealdade à coroa francesa.
A lógica e a persuasão dessa posição, que fizeram com que ela fosse elogiada
pelo próprio Calvino, entre outros, foram despedaçadas em maio de 1560 pela
Conspiração de Amboise. “Essa conspiração foi uma tentativa de raptar Francisco

O IMPACTO E A NATUREZA DA TRADIÇÃO REFORMADA


201

II, aparentemente com a ajuda e cobertura de diversos pastores calvinistas (para


irritação de Calvino)” (McGRATH, 2014, p. 294).
De acordo com McGrath (2014, p. 295), “foi o massacre do Dia de São
Bartolomeu (1572) que precipitou uma mudança radical no pensamento polí-
tico do calvinismo francês”. Foi quando surgiram os monarcômacos - pessoas
que desejavam restringir severamente os direitos dos reis e defender o dever (não
apenas o direito) do povo de resistir a monarcas tiranos - foi uma reação direta
à atmosfera de choque que persistiu após o massacre de 1572.
Em 1559, Calvino, talvez começando a perceber a importância prática e polí-
Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.

tica da questão, admitiu que os governantes às vezes excedem os limites de sua


autoridade ao se colocarem contra Deus. Ao fazerem isso, ele sugeriu, que rejei-
tassem o seu próprio poder.
Nos interessa aqui uma cosmovisão política que se constrói dentro do sis-
tema político, a partir dessa conclusão de Calvino, para qualquer governante
que exceda os limites de sua autoridade ordenada por Deus, que deixe de ser
governante por esse motivo e não possa mais exercer os direitos e privilégios
desse governo.
Portanto, Calvino sugere que os magistrados (não os indivíduos) estão em
posição de empreender ação contra o governante. A crítica de McGrath (2014,
p. 295) sobre isso é que “se trata de especificações muito vagas e sem foco, isso
exigiu que outros elaborassem e desenvolvessem o assunto mais assertivamente”.
François Hotman produziu a celebrada Franco-Gallia; Teodoro Beza, seus Droits
des magistrats; Philippe Duplessis - Mornay, seu Vindiciae contra tyrannos; e
outros escritores menos importantes produziram inúmeros panfletos, todos com
o mesmo teor: que se deve resistir aos tiranos.
Uma assertiva pode ser pontuada com essa frase célebre reformada: o dever
de obedecer ao Deus Vivo deve ser colocado acima de toda e qualquer obriga-
ção de obedecer a um governante humano.
De fato estamos diante de uma ruptura histórica, pois podemos considerar
que essas novas teorias radicais, formadas no contexto do calvinismo francês,
marcam um importante ponto de transição entre o feudalismo e a democracia
moderna, com a noção de direitos humanos naturais sendo articulada e defen-
dida em bases teológicas.

A Reforma, a Política e as Ciências Sociais


202 UNIDADE V

Historiadores têm dito que, embora a maioria dos calvinistas franceses tenha
abandonado a oposição direta à monarquia durante o reinado de Henrique IV,
particularmente depois da promulgação do Edito de Nantes, teorias políticas
novas e importantes foram desencadeadas na arena política francesa.
Argumenta-se que foram essas ideias, num formato puramente secular, que
ressurgiram no Iluminismo francês. Ali, a noção de direitos humanos naturais,
tosada de seus acompanhamentos teológicos, foi combinada com o republica-
nismo da Genebra de Calvino. A Genebra do século XVI era uma república ideal
que poderia servir de modelo para a França do Século XVIII.

Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.
Vemos que os Reformadores tangeram, de forma pontual, o sistema polí-
tico e social de uma civilização, e mesmo que essa revolução política não deva
sua inspiração a Calvino, podemos afirmar que revolução científica do final do
Século XVI, e igualmente a do início do Século XVII, se baseiam firmemente
em algumas das ideias religiosas e métodos de interpretação bíblica que surgi-
ram na época da Reforma – isso é que veremos a seguir.

A EMERGÊNCIA DAS CIÊNCIAS NATURAIS

Para algumas pessoas, a noção de qualquer conexão positiva entre religião e ciên-
cia parece altamente improvável já desde o início. Certamente, ciência e religião
sempre estiveram em combate mortal, muitos pensam. Contudo, o estereótipo
da “guerra entre ciência e religião” é um produto das condições sociais do final
do Século XIX, e agora considerado como inaceitável historicamente.
A interação entre ciência e religião é complexa e interessante demais para
ser representada de um modo tão simplista e inexato. Os avanços massivos fei-
tos na história da ciência agora permitem perceber o relacionamento inicial
entre ciência e protestantismo sob uma luz muito mais convincente. É com fre-
quência observado que o surgimento das ciências naturais está especificamente
ligado ao ambiente intelectual cristão da Europa ocidental.
Entretanto, não é exatamente óbvia a explicação teórica que se deve dar
para isso, já que ela deve estar firmemente ancorada em evidências históricas.
Há bons argumentos para afirmar que a doutrina cristã da criação postula que

O IMPACTO E A NATUREZA DA TRADIÇÃO REFORMADA


203

o universo é regular e ordenado e que o estudo da natureza é um modo indireto


de reconhecer e honrar a sabedoria divina, tal como vista na ordem das coisas.
No entanto, em anos recentes, tem surgido um conjunto crescente de obras de
erudição argumentando que a contribuição decisiva para o emergir das ciências
naturais não deve ser atribuída ao cristianismo em geral, mas ao protestantismo
em particular. No que se segue, consideraremos porque acredita-se que esta afir-
mação seja verdadeira.
Conforme nos aponta McGrath (2014, p. 297), “um fator principal se refere
às mudanças no modo em que a Bíblia era interpretada, mudanças nas quais o
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protestantismo desempenhou um papel estratégico”.


A mudança fundamental surgiu nos primeiros anos do protestantismo, propondo
uma nova abordagem ao texto bíblico. Ao fazê-lo, gerou uma revolução hermenêu-
tica que levou a uma nova abordagem dos objetos naturais. A reforma foi, acima de
tudo, uma reforma hermenêutica revolucionária do ponto de vista transformador.
Isso surge do novo significado dado à antiga metáfora dos “dois livros”, a qual
é religiosamente atraente, retratando Deus como autor tanto do “livro de palavras”
(a Bíblia) quanto do “livro de obras” (a natureza). Os primeiros escritores cristãos
tinham consciência de que o “livro da natureza” pode ser “lido” de vários modos.
O grande teólogo alexandrino Orígenes defende que o mundo visível está
cheio de símbolos que, se corretamente interpretados, ensinam ao observador
inteligente acerca de Deus. “Tanto a Bíblia quanto a natureza, portanto, possuem
sentidos simbólicos mais profundos” (McGRATH, 2014, p. 298).
Na Idade Média, esses sentidos “simbólicos” tendiam a receber maior ênfase.
Os objetos naturais eram analisados quanto à maneira que se encaixam na com-
plexa rede de simbolismo teológico e espiritual, em vez de serem tratados como
objetos “naturais” em si mesmos. Do mesmo modo, era defendido que a leitura
alegórica da Bíblia revelava verdades mais profundas do que seria possível por
uma leitura literal ou “de superfície” do texto.
Fato é que, embora Lutero e outros reformadores tivessem plena consciên-
cia da importância dos sentidos simbólico e espiritual dos textos, eles colocaram
sua ênfase na leitura literal e histórica. Esse hábito de ler o “livro da Escritura”,
ao ser transferido para a leitura do “livro da natureza”, gerou um modo de abor-
dar a ordem natural que enfatiza um relato direto e “natural” das coisas.

A Reforma, a Política e as Ciências Sociais


204 UNIDADE V

As novas estratégias hermenêuticas promovidas pelos primeiros protestan-


tes, portanto, foram de importância central para estabelecer as condições que
tornaram possível o surgimento da ciência moderna. Essa “mentalidade litera-
lista” quanto à Bíblia foi transposta para o que era um insistente empirismo no
campo da ciência.
Defendia-se que tanto a verdade religiosa quanto a científica surgem do
sentido imediato “literal’: daquilo que é percebido pelo olho humano. Não há
necessidade de intermediários profissionais, sagrados ou seculares, em nenhum
dos casos. Na Reforma, tanto a ciência quanto a religião estão democratizadas.

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Essa tendência emergente de perceber a natureza como “natural” está ligada
à hostilidade protestante contra as imagens, a qual reforçou adicionalmente o
fim das concepções simbólicas da ordem natural. O iconoclasmo protestante
demonstra uma desconfiança profunda de objetos que foram declarados signi-
ficativos como símbolos religiosos.
A mesma linha de pensamento, que defende que artefatos humanos não
podem mediar ou simbolizar o divino, fez com que os objetos e fenômenos natu-
rais fossem despidos de suas associações simbólicas e, por conseguinte, pudessem
se tornar o objeto da investigação científica. Esse tema da “dessacralização” ou
“desencantamento” da natureza foi estudado em profundidade por eruditos do
início do período moderno.
Eles observaram suas implicações para o surgimento das ciências naturais,
mas também para o secularismo e o ateísmo. Merece menção, a esta altura, a
análise de Peter Berger (1967) a respeito do papel do protestantismo em gerar
secularização. Para Berger, pode-se considerar que o protestantismo, causou
“uma imensa redução no escopo do sagrado na realidade”. Os protestantes não
se viam vivendo em um mundo que era constantemente penetrado por forças e
seres sagrados. Em vez disso, compreendiam o mundo como sendo polarizado
entre uma divindade radicalmente transcendente e uma humanidade radical-
mente caída, desprovida de quaisquer qualidades ou conexões sagradas.
O catolicismo freava as forças secularizantes por meio de sua compreensão
profundamente simbólica do mundo natural e do lugar da humanidade dentro
dele. Sem perceber o que estava fazendo, o protestantismo, para Berger (1967),
abriu as comportas das forças que modelariam a modernidade mas que, no final

O IMPACTO E A NATUREZA DA TRADIÇÃO REFORMADA


205

das contas, causaram ao próprio protestantismo tanto desgosto no seu interior.


No entanto, o protestantismo criou uma nova motivação para o estudo científico
da natureza, ou, talvez alguns possam argumentar, melhorou uma já existente.
Um tema persistente em toda a obra de João Calvino é que a sabedoria do
Deus invisível e incorpóreo pode ser discernida e estudada por meio de suas
obras, tal como a ordem criada. Portanto, “Calvino elogia os cientistas naturais
- e até se arrisca a expressar um pouco de inveja deles, pois podem vivenciar e
apreciar a beleza e a sabedoria divinas por meio daquilo que Deus criou e for-
mou” (McGRATH, p. 298).
Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.

Essa motivação fundamental para o estudo científico da natureza impregna


o protestantismo desde então. Ela pode ser vista em muitos documentos con-
fessionais da Igreja Reformada na Europa ocidental. Por exemplo, a Confissão
Belga afirma que a natureza foi estabelecida “perante nossos olhos como um
livro formoso, em que todas as criaturas, grandes e pequenas, servem de letras
que nos fazem contemplar os atributos invisíveis de Deus” (McGRATH, 2015,
299). A trajetória do pensamento não podia ser mais clara: ler o “livro da natu-
reza” aumenta nossa apreciação daquilo que é conhecido a respeito de Deus por
meio do “livro da Escritura”.
Outros autores observaram que a motivação protestante para estudar a ciência
não se limita a fatores que foram importantes durante o Século XVI. Em 1938, o
sociólogo Robert Merton (1910-2003) sugeriu que alguns tipos de protestantismo
desempenharam um papel significativo na estimulação da consolidação de uma
cultura científica na Inglaterra do Século XVII. No centro da “tese de Merton”
se encontra uma variante da famosa teoria de Max Weber acerca do protestan-
tismo e do surgimento do “espírito do capitalismo”, (McGRATH, 2014, p. 299).
O ethos protestante, especialmente aquele encontrado no puritanismo inglês
e no pietismo alemão, estimulou a pesquisa científica ao lhe dar uma dimen-
são religiosa.
Essas ideias foram recebidas com entusiasmo pela Royal Society, a mais
importante organização dedicada ao avanço do conhecimento e da pesquisa
científica na Inglaterra. Muitos dos seus primeiros membros eram admirado-
res de Calvino e conheciam seus escritos e sua relevância potencial para seus
campos de estudo.

A Reforma, a Política e as Ciências Sociais


206 UNIDADE V

Assim, “Richard Bentley (1662-1742) proferiu uma série de palestras em


1692, baseadas na obra “Principia Mathematica” (1687) de Newton, na qual a
regularidade do universo, tal como estabelecida por Newton, é interpretada como
evidência de um projeto consciente” (McGRATH, 2014, p. 299).
Conforme Alister MacGrath (2014, p. 300), há sugestões inequívocas aqui da
referência de Calvino ao universo como um “teatro da glória de Deus”, no qual
os seres humanos são um público que exprime seu apreço. “O estudo detalhado
da criação leva a uma maior consciência da sabedoria do seu criador”.
A segunda maior contribuição de Calvino foi a de eliminar um obstáculo

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significativo ao desenvolvimento das ciências naturais: o literalismo bíblico. Essa
emancipação da observação e da teoria científica das interpretações grosseira-
mente literalistas da Escritura ocorreu em dois níveis.
■ Primeiro, ele declarou que a Escritura não está interessada em detalhar a
estrutura do mundo, mas sim em proclamar o Evangelho de Jesus Cristo.
■ Segundo, ele insistiu que nem todas as declarações bíblicas acerca de Deus
ou do mundo devem ser interpretadas literalmente. Algumas declarações
são “acomodadas’: no sentido de que são adaptadas à capacidade e habi-
lidades do seu público.

O impacto dessas duas idéias sobre a teorização científica foi considerável,


especialmente durante o Século XVII. Por exemplo, o escritor inglês Edward
Wright defendeu a teoria heliocêntrica de Copérnico sobre o sistema solar
contra literalistas bíblicos, argumentando, primeiro, que a Escritura não se
interessa por física; segundo, que seu modo de falar se “acomoda à compreen-
são e ao modo de falar do povo, como babás falam com criancinhas”. Ambos
os argumentos derivam diretamente de Calvino, o qual, pode-se afirmar, fez
uma contribuição fundamental para o surgimento das ciências naturais nes-
ses pontos (McGRATH, 2014, p. 300).

O IMPACTO E A NATUREZA DA TRADIÇÃO REFORMADA


207
Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.

EXEMPLO PRÁTICO DE CONTEÚDO TEOLÓGICO

Como seria de fato uma eclesiologia reformada viva dentro da perspectiva da


teologia reformada?
De acordo com Christopher B. Kaiser (1998), na eclesiologia Reformada, a
igreja é vista além de si mesma, compreendendo-se desde a Trindade, em busca
de sentido histórico. Por isso, a Igreja deve ser estudada metodologicamente nes-
tas dimensões: com uma origem divina (trinitate ecclesiae); uma cabeça celestial
(Communio Sanctorum); uma missão mundial para realizar(Missio Dei), e tem
um destino eterno (Ecclesiae Viatorum).
Para ser fiel e ter um bom testemunho, a Igreja nunca poderá apontar a si
mesma, chamando a atenção para os próprios valores. Com isto, não queremos
afirmar que os teólogos Reformados não enfatizem o caráter da Igreja, pelo con-
trário, sempre o fazem, e bem. De fato existe uma sessão fundamental sobre a
realidade e o caráter da Igreja em todas as confissões e textos dos teólogos refor-
mados, como veremos. Entretanto, a questão que está por trás das discussões
Reformadas sobre a Igreja não é tanto sobre o que a Igreja é, mas onde a Igreja
está, isto é, a sua conexão com a cultura na história humana. Em outras palavras,
a questão tem a ver com a prática histórica: como podemos descrever o chamado
e a presença da Igreja no mundo de hoje?

Exemplo Prático de Conteúdo Teológico


208 UNIDADE V

O IMPACTO DA RENASCENÇA E DO ILUMINISMO SOBRE A IGREJA

A Igreja, através dos séculos, tem sido vítima de programas políticos que afas-
taram-na da fidelidade evangélica. A redescoberta da Igreja primitiva pelo
Renascimento Europeu influenciou os reformadores no século XVI e buscaram
encontrar um modelo comum que poderia revalorizar sua fé e prática cristã, por
isso voltaram aos textos bíblicos e patrísticos, muitos dos quais foram avaliados
de forma nova, desde o original grego. No entanto, a espiritualidade da Bíblia e
dos primeiros pais, por mais de mil anos, havia sido afastada da história do oci-

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dente, mudando assim o paradigma da visão do mundo.
No Século XVIII, conhecido como o século do iluminismo, vimos a redesco-
berta de um profundo sentido histórico no mundo ocidental. A partir disso, foi
necessário reconstruir a prática da fé desde os primeiros pais cristãos. Contudo,
nossa conexão com a igreja primitiva é feita primeiramente por meio de textos
e sua interpretação, antes do que um forte senso de continuidade, como acon-
tece com as Igrejas Orientais Ortodoxas.
Certamente, as Igrejas Reformadas também têm suas tradições, mas não
estão imersas e presas nelas, havendo de fato uma perspectiva crítica em rela-
ção a elas, possuindo portanto capacidade de mudar. Então para nós, a Igreja
não é uma realidade inquestionável, cuja natureza teria a categoria de perene.
Devemos, com humildade, compreender nossa dificuldade em reconhecer
a distância cultural que possuímos tanto do Século XVI quanto da Igreja primi-
tiva. Muitos de nós, na Igreja Reformada, temos diferentes pontos de vista, alguns
valorizam a ciência moderna e o criticismo histórico. Reconhecemos nossas dife-
renças culturais em relação às primeiras Igrejas, mas, mesmo assim, olhamos para
os Pais da Igreja acreditando que eles entenderam melhor do que nós muitas coisas.
Diante do mundo moderno e pós-moderno, reconhecemos que temos tanto
perdido quanto ganhado com o avanço da ciência e com o desenvolvimento da
consciência histórica. Portanto, nós nos esforçamos para encontrar um equilíbrio
entre a igreja como uma instituição social e a igreja como procedente do propósito
sobrenatural de Deus. Esta foi certamente a atitude dos Reformadores do Século
XVI, os quais procuraram redescobrir a sabedoria e a prática da Igreja primi-
tiva. Essa atitude deve acompanhar a Igrejas Reformadas e os nossos seminários.

O IMPACTO E A NATUREZA DA TRADIÇÃO REFORMADA


209

UMA NOVA HUMANIDADE, MAS PROVISÓRIA

Se pudéssemos resumir a visão Reformada sobre a Igreja em uma frase,


poderia ser esta: a Igreja é a nova humanidade em forma provisória. Ou,
de dita de uma outra forma: a Igreja é uma nova criação, a qual tem sido
chamada, por Deus, para estar em Cristo. Por isso, está em um processo de
edificação e santificação.
Outrossim, o que nos fica claramente indicado é que a Igreja tem dois
aspectos inseparáveis: ela é sobrenatural e celestial, por um lado, e por outro, é
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empírica e terrena. Não estamos afirmando que ela tem duas naturezas, como
Cristo. Afirmamos que a Igreja é estritamente humana, mas, como tal, tem
duas dimensões.
A Igreja é celestial e sobrenatural, porque tem uma origem divina e está unida
a Jesus Cristo, à sua cabeça. Ela participa da santidade de Cristo e está destinada
a reunir-se com Ele e seus anjos na cidade de Deus. No entanto, a Igreja é tam-
bém terrena e histórica; uma instituição sob administração humana, dentro de
formas condicionadas social e historicamente.

O CARÁTER CELESTIAL DA IGREJA: A ORIGEM DA IGREJA

A Igreja é celestial ou sobrenatural, primeiro de tudo, pela sua origem em Deus,


o Pai, através de Jesus Cristo, no Espírito Santo. Portanto, tem um caráter trini-
tário. Esta origem celestial da Igreja e a compreensão de ser uma propriedade de
Deus foram fatores determinantes para a eclesiologia do Século XVI.
Ela não foi fundada pelos clérigos, nem pelo apóstolo Pedro. Foi escolhida
por Deus como uma comunidade destinada para a vida eterna, pertencendo
a Cristo como esposa e como corpo, em que Ele é o cabeça. Para os reforma-
dos, Jesus Cristo é a única cabeça da Igreja. Os presbíteros, diáconos, pastores e
mestres têm uma autoridade eclesiástica nas comunidades reformadas e são res-
peitados como cooperadores com Deus e com Cristo, mas nenhum deles pode
ser visto como vigário de Cristo. Conforme Kaiser (1998), Calvino deixou for-
temente claros este ponto:

Exemplo Prático de Conteúdo Teológico


210 UNIDADE V

Por isso, (A Igreja) tem Cristo como a única cabeça. Calvino viu com injú-
ria a idéia de ter qualquer outro homem sobre a Igreja Universal. Cristo é o
cabeça, em que todo corpo está ligado e ajustado (cada membro tem sua fun-
ção). A declaração de Calvino é claramente dirigida contra a reivindicação da
primazia do Pontífice de Roma.
Significativo neste ponto foi a Declaração de Barmen (1934), que é uma ten-
tativa de distanciar a Igreja Evangélica da Alemanha (Luteranos, Reformados) dos
‘Cristãos Germânicos’ e sua aliança com Adolf Hitler (KAISER, 1998, PÁGINA).
Citamos aqui os parágrafos 3 e 4.

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Parágrafo 3. (Efésios 4.15-16). A Igreja cristã é a congregação de crentes na
qual Jesus Cristo age presentemente como o Senhor na Palavra e nos sacramen-
tos por meio do Espírito Santo. Como a Igreja de pecadores perdoados, ela tem
que testificar no meio de um mundo pecador, com sua fé e obediência, com sua
mensagem e sua ordem. Nós rejeitamos a falsa doutrina, que permita a igreja
abandonar sua mensagem em troca de seu próprio prazer submetendo-se a con-
vicções ideológicas e políticos.
Parágrafo 4. (Mt 20.25-6). Os vários gerenciamentos na Igreja não esta-
belecem a dominação de alguns sobre os outros; pelo contrário, eles exercem
seus ministério relacionados lealmente com toda congregação. Nós rejeitamos
a falsa doutrina que deve a igreja, fora de seu ministério, submeter-se a líde-
res especiais (Fuhrer vestido como poder de governo. Recentemente tivemos
a ênfase no senhorio de Jesus na Confissão Belfhar da Missão Reformada da
Alemanha, a qual condenou o apartheid no Sul da África em 1982, afirmando
a fé de que a Igreja é uma possessão de Deus, a qual deve se firmar contra a
injustiça e o erro.
Igualmente afirmaram obediência a Jesus Cristo, como cabeça da igreja, a
quem é chamada a confessar e a fazer todas aquelas coisas ainda que as leis e a
autoridades humanas punam com sofrimento. Jesus é Senhor: Então a origem
divina e o controle celestial da Igreja têm sido um dos mais importantes aspec-
tos da eclesiologia através dos séculos.

O IMPACTO E A NATUREZA DA TRADIÇÃO REFORMADA


211

A SANTIDADE DA IGREJA

A Igreja é celestial também pelo fato de que testemunha e participa dos benefí-
cios de seu Senhor ressurreto e glorificado. Assim no presente, a Igreja precisa
participar da santidade de Jesus Cristo, que é, acima de tudo, uma posição
em Cristo. Concordando com Heinrich Bullinger (o sucessor de Zwinglio em
Zurich), podemos afirmar, de novo, que quando Paulo fala de Igreja ‘pura, sem
ruga e nem mácula’ (Efésios 5.27), tendo em conta os benefícios e a santifica-
ção de Cristo, não significa que ficaremos sem mancha na carne, mas que essas
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manchas, por causa da inocência de Cristo não são imputadas sobre aqueles que
abraçam a Ele pela fé, e finalmente, no mundo vindouro, esta mesma igreja será
sem manchas ou ruga.
Na teologia Reformada, a santidade da Igreja não está fundamentada em sua
própria natureza, mas na natureza de Jesus Cristo. Os teólogos Reformados con-
fessam a Igreja na terra como sendo ‘santa’, mas a santidade da igreja é baseada
em sua participação na ressurreição de Cristo, o único Santo de Deus.

A IGREJA TRIUNFANTE

Podemos afirmar que a Igreja tem um caráter celestial pelo fato de ter ela uma
destino espiritual e eterno. Este aspecto da Igreja, desde a visão reformada, é cha-
mada de ‘Igreja triunfante’. Por Igreja triunfante entende-se todos aqueles que,
pela Graça de Deus, têm sido fiéis em suas vidas e que têm sido recebidos para
a companhia de Jesus Cristo, dos santos e dos anjos após a morte.
Os crentes têm um lugar de herança na Igreja triunfante, a que agora está com
Cristo nos céus. Sua luta tem terminado, seu descanso é vitorioso. Nossa adoração,
muitas vezes, tão ocasional e falha, tem se tornado plena de entusiasmo eterno.
Os crentes que encontraram descanso na Igreja triunfante vêm de diver-
sas gerações e culturas, mas estão todos unidos na cidade celestial. Na piedade
reformada, este aspecto celestial da Igreja não tem sido tão enfatizado, mas é um
artigo de fé e torna-se alvo de atenção de quem se aproxima da morte.

Exemplo Prático de Conteúdo Teológico


212 UNIDADE V

A IGREJA MILITANTE

Para a Reforma, o lado terreno da igreja existe num processo de formação histó-
rica, reforma e santificação. Esta é a igreja que conhecemos nas lutas diárias da
vida, a ‘igreja militante’, a igreja que vive em uma cultura específica e particular,
esforçando-se para viver o Evangelho Eterno em cada contexto específico. Aqui
surgem duas realidades: de um lado é a matriz histórica da formação cristã, e de
outro é uma instituição confiada em mãos humanas.
A Igreja é a matriz onde os cristãos são formados. Ela é a fonte batismal onde

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somos selados em nome de Cristo, o púlpito de onde ouvimos as boas novas
sobre Cristo, a escola da fé onde estudamos as escrituras e os credos, a mesa da
qual recebemos os elementos da Ceia, e a mãe onde fomos gerados, a qual nos
cuida até nosso celestial descanso. Sendo assim, somos filhos da Igreja. Como
antes tinha feito Agostinho, Calvino, citando Cipriano, adotou esta imagem da
Igreja como mãe:
Eu começarei, então, com a Igreja, em cujo peito Deus tem o prazer de
unir seus filhos e filhas, não somente para que possam ser alimenta-
dos pela sua ajuda e ministério tanto enquanto crianças, como também
podem ser guiados por seu cuidado maternal, até a maturidade da fé...
Para isto não há outro caminho de entrada sem sua mãe, concebidos
em seu útero, deu-nos a luz, alimenta nos em seu seio, e por último,
toma-nos em seu cuidado e direção, até que nossa carne mortal descan-
sa e tornemo-nos como os anjos. [Mt 22.30].’ Por mais que cresçamos
na fé, nunca ficaremos fora da estatura de crescimento como filhos da
Igreja. Sem a Igreja, nem as escrituras, nem os credos, nem os sacra-
mentos poderá ter validade. Essas práticas não podem ser comparti-
lhadas de forma significativa isoladas da vida da Igreja. Para ele a falta
de compromisso com a Igreja faz de uma pessoa apenas parte de uma
audiência, não uma congregação cristã (CALVINO, 2006, p. ).

Aqui vemos a importância teológica que o Reformador dá à realidade da Igreja,


tema hoje essencial para nossa reflexão teológica.

O IMPACTO E A NATUREZA DA TRADIÇÃO REFORMADA


213

A CATOLICIDADE DA IGREJA

Como nossa mãe, a igreja é ao mesmo tempo antiga e futura, está atrás de nós
e diante de nós, é católica e é escatológica, é visível e invisível. Na fé reformada,
a igreja é de longe mais antiga do que qualquer comunidade cristã particular.
Não começou há dois mil anos com o ministério de Jesus ou com a ressur-
reição, ou com o derramar do Espírito no Pentecostes. A Igreja já estava lá,
como um corpo de crentes, quando Jesus veio para os redimir e o Espírito
veio para enchê-los.
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Os primeiros membros da Igreja foram nossos ‘primeiros pais’ (Adão e Eva),


os primeiros a crer na promessa da vida do Redentor. A antiga Igreja (pré-cristã)
não foi exatamente Israel do Antigo Testamento, mas inclui também todos antes
de Israel, desde Abraão e Sara até Simeão e Ana (e além?) que olhando para frente
esperavam a consolação de Israel.
A diferença entre os santos do Antigo Testamento e os cristãos é que aque-
les estavam sobre a lei e tinham fé num redentor que não tinha ainda vindo para
fazer a expiação, mais tarde, quando receberam o evangelho, creram que o salva-
dor já tinha vindo. De fato há uma única aliança e uma única igreja em ambos.
A Igreja, que é nossa mãe, é, portanto, verdadeiramente católica; ela atra-
vessa toda história ‘do começo do mundo até o final’ e inclui todos os santos da
antiga e da nova dispensação. Esta é a forma como os Reformadores têm com-
preendido a declaração do Credo Apostólico Niceno, de que a Igreja é católica
porque contém os escolhidos de todas as eras, de todos os reinos, nações e lín-
guas, sejam eles Judeus ou Gentios, que tenham comunhão com Deus, o Pai, e
Seu Filho, Jesus Cristo, através da santificação do Espírito Santo.
Portanto, se espera das igrejas Reformadas que se valorize a integridade de
outras comunidades cristãs, sobretudo das que divergem em vários pontos teo-
lógicos e litúrgicos.
Geralmente falamos em “igrejas”, no plural, para significar congregações
locais ou igrejas particulares. Entretanto, compreender este “ser igreja” de modo
particular deve ser dentro do âmbito de uma única Igreja, em todo mundo. No
Catecismo de Genebra, de fato, Calvino quer afirmar essa única igreja, então, não
há muitas igrejas, mas somente uma, a qual se estende através de todo o mundo.

Exemplo Prático de Conteúdo Teológico


214 UNIDADE V

O ramo Presbiteriano da Tradição Reformada segue muito de perto a ênfase


de Calvino no que diz respeito a uma única Igreja. O ramo Congregacional enfa-
tiza de forma maior a liderança de Cristo sobre uma Igreja local, e assim cada
Igreja específica está sob a responsabilidade do Senhor ressuscitado.
A ênfase Reformada na catolicidade da Igreja é reflexo do alto valor que
dá à tradição teológica, litúrgica e missionária, que retorna à Igreja primitiva.
É preciso afirmar ainda que no Século XVI os Reformadores nunca intentaram
começar uma nova Igreja.
O que eles queriam com suas ações, era reformar a Igreja existente, pela res-

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tauração da fé, conforme o cristianismo primitivo. Consequentemente, muitos
dos Reformadores, no Século XVI, editaram e publicaram escritos dos primei-
ros Pais, desde o original, em latim e grego, embora fossem críticos em alguns
pontos onde achavam não serem bíblicos.
Os Reformadores tentaram redescobrir formas litúrgicas daquele período,
como por exemplo, a sursum corda (liberte seus corações), na liturgia da ceia.
Por isso, eles adotaram, e com frequência citavam, os três credos ecumênicos:
o apostólico; o Niceno; e o Atanasiano (datado do V Século). Hoje, compreen-
demos que apenas o credo Niceno foi verdadeiramente universal, mas o que os
Reformadores intentaram foi clarificar e afirmar o que a Igreja tinha crido desde
o tempo de Cristo.
Por essa causa, em concordância com essa ênfase na catolicidade, os prin-
cípios básicos da eclesiologia Reformada, não permite o uso do chamado ‘santo
proselitismo’ às expensas de outros ramos da Igreja cristã. Assim como reforma-
dos, devemos rejeitar todas as perturbações que grupos cismáticos e seitas têm
feito nas comunidades, em especial aqui na América Latina, de forma vergonhosa.
Infelizmente esta prática tem sido comum, cristãos mudando com frequ-
ência de uma denominação para outra, e aliada a um elemento de competição,
que tem infectado como veneno muitas igrejas. Essas competições, infelizmente,
também têm sido comum nos empreendimentos missionários.
No ensino de Calvino e de outros Reformadores assim foi colocado esse
assunto: “Reconhecemos como membros da igreja aqueles que, pela confissão
de fé, pelo exemplo de vida, e pela participação dos sacramentos, professam o
mesmo Deus e Cristo conosco” (CALVINO, 2006, Institutes IV. 1.9)

O IMPACTO E A NATUREZA DA TRADIÇÃO REFORMADA


215

A Igreja Reformada também reconhece o caráter judaico da herança bíblica.


Muitos dos santos do Antigo Testamento, incluindo Maria e Jesus, que eram
judeus, falavam o hebraico e o aramaico e escreveram e pensaram em termos de
conceitos judaicos. Apesar do povo judeu, em sua maioria, ter rejeitado Jesus como
o Messias, nós os respeitamos como pessoas que aderiram ao mesmo modelo
de vida que Jesus e os apóstolos seguiram. Modelo este que está presente como
pano de fundo no pensamento do Novo Testamento.
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O CARÁTER ESCATOLÓGICO DA IGREJA


E SUAS MARCAS

Os Reformados, embora sejam devotados à Igreja, se recusam a romantizá-


-la, pois, a Igreja é também uma instituição humana, embora seja ao mesmo
tempo escatológica.
Por um lado é uma complexa estrutura, com cerimônias e programas, os quais
Calvino chama de “sentidos externos” do evangelho – confiados em nossas mãos,
filhos da igreja. Nós é que pregamos o evangelho, administramos os sacramentos
e servimos aos pobres em nome de Cristo. Somos nós quem devemos reformar
a Igreja quando necessário, ou melhor, é através de nós que a igreja é reformada.
Por outro lado a igreja é a comunidade da esperança, o povo provisório que
ruma ao Reino de Deus, assim, toda sua vida, mensagem e ética tem gosto e pre-
lúdio escatológico.

O Caráter Escatológico da Igreja e suas Marcas


216 UNIDADE V

A IGREJA COMO COMUNIDADE ESCATOLÓGICA

A Igreja, que é nossa mãe, está orientada até o futuro, tanto quanto o passado.
Portanto, a caminhada da Igreja rumo ao futuro busca um processo de perma-
nente santificação e disciplina. João Calvino (2006) assim afirmou:
A santidade da igreja não está ainda completa. A Igreja é santa, en-
tão, no sentido de que diariamente ela avança, embora ainda não tenha
atingido a perfeição, ela faz progresso dia a dia, mas sem ter alcançado
o alvo da santidade (Institutes IV. 1. 17).

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A Igreja, como existe no presente, usando a frase de Karl Barth (1961), é uma
provisória representação da nova humanidade. O que a Igreja verdadeiramente
é não tem ainda aparecido na terra. O que a Igreja verdadeiramente é pode ser
visto somente desde o ponto futuro de seu destino dado por Deus.
Seguindo Santo Agostinho, muitos Reformadores falaram de uma Igreja
Invisível, o que tem produzido maus entendidos e críticas. Devemos recordar
que, para os Reformadores (seguindo Agostinho), a Igreja invisível era não uma
essência oculta de uma parte celestial (Igreja triunfante). A Igreja invisível era
simplesmente a totalidade daqueles que Deus tinha elegido para a salvação.
É a Igreja que irá emergir futuramente no fim da história como o povo de
Deus purificado através de provas e reformas ainda por vir. É a Igreja em uma
forma que não podemos ainda ver, mas que é conhecida por Deus e será reve-
lada para todos, nos fins dos tempos. A Igreja, que é nossa mãe, espera-nos no
fim de nossa jornada, tão certa quanto quando fomos gerados e quanto aben-
çoou-nos em nossa caminhada.
A Igreja Reformada vê crentes potenciais em cada pessoa, mesmo naqueles
que têm diferente fé ou que não têm nenhuma. Muitas destas pessoas responderão
à proclamação do Evangelho. Outros podem rejeitar as boas novas. Ainda outros
podem nunca ouvir sua proclamação, de forma que possam entender, ou podem
ter estado demasiadamente desesperados por comida e abrigo. Mas, somente Deus
pode conhecer quem pode ou poderá ter fé e quem não tem e não poderá tê-la.
O Espírito de Deus sopra onde ele escolhe, e nós não podemos vê-lo. A
eterna Palavra de Deus não está confinada pelos limites da carne e do sangue.

O IMPACTO E A NATUREZA DA TRADIÇÃO REFORMADA


217

Embora o modo normal de salvação é alguém entrar na igreja por meio do arre-
pendimento e do batismo, a graça de Deus pode levar uma pessoa à salvação
sem nossos modelos estabelecidos, Deus é livre.
Em outras palavras, na Confissão de Westminster (1647), a igreja invisível
inclui crianças eleitas que morreram na infância e outras pessoas eleitas, que foram
salvas, embora fossem ‘incapazes de serem chamadas pelo ministério da palavra
ou como colocou Barth:
Nós temos que levar em conta os caminhos ocultos de Deus, nos quais
Ele pode pelo efeito do poder da expiação de Cristo (John 10: 16), ope-
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rar até extra eclesiam [fora da Igreja], isto é, de qualquer outra maneira
no mundo (BARTH, 1961, p. 688).

Jurgen Moltmann (1977, p. 128) fala da “Igreja tendo dois grupos: um de uma
fé comum e outro de pobreza comum. Será possível para estas duas linhas para-
lelas se encontrarem em algum ponto?”
Quando todos nós alcançarmos o fim de nossa jornada e formos reunidos
com a Igreja, que é nossa mãe, cremos que vamos encontrar irmãos e irmãs que
nunca havíamos antes reconhecidos como cristãos nesta vida.

AS MARCAS DA IGREJA

Há um claro modelo de ensino na teologia Reformada, mas a ênfase tem


mudado através dos séculos. João Calvino e os outros reformadores concor-
dam em dois pontos básicos: A pregação evangélica da Palavra (geralmente
com a congregação), e a correta administração dos sacramentos (ceia e
batismo). Sempre que vemos a Palavra de Deus puramente pregada e ouvida,
e os sacramentos administrados de acordo com a Instituição de Cristo, ali
está sem dúvida nenhuma a Igreja de Deus [Dei Ecclesiam exists] (CALVINO,
2006, Institutes IV. 1.9).
O Evangelho pregado e os sacramentos corretamente administrados são os
modelos das ‘marcas da Igreja’, (notae ecclesiae), sinais que diferenciam a verda-
deira igreja das seitas.

O Caráter Escatológico da Igreja e suas Marcas


218 UNIDADE V

Em adição, algumas das confissões Reformadas acrescentaram uma ter-


ceira ‘marca’ da Igreja, a qual é definida como a ‘disciplina da Igreja’. Esta ideia
das ‘três marcas da Igreja’ foi resguardada na Confissão Escocesa, Article 18, e na
Confissão Belga (1561 - 1566), Article 29.
No Século XX, a eclesiologia Reformada tem crescido na ênfase da missão
da Igreja no mundo. Consequentemente, as três marcas tradicionais da igreja
têm sido reinterpretadas (ou substituídas?) pelas três características da missão
identificadas pelos termos Gregos: kerygma (proclamação), koinonia (comu-
nhão), e diakonia (serviço). Podemos aqui considerar brevemente estes termos,

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dado suas relevâncias para nossas igrejas no Brasil.
A ideia de ‘proclamação’ (kerygma) é mais do que a simples ideia de pre-
gar o evangelho, tem a ver com um radical compromisso de vida no contexto
de secularismo do mundo moderno. A característica de comunhão (koinonia)
desenvolve uma ideia de participação e não apenas uma tradicional ideia de sim-
ples participação nos sacramentos.
Nos sacramentos e no culto como um todo, qualquer congregação tem
comunhão com Deus e com o Cristo ressuscitado no Espírito Santo. Os mem-
bros da congregação desenvolvem uma profunda comunhão uns com os outros
e também com outros ramos da Igreja, crescendo juntos para dentro da imagem
perichoretica da triunidade Divina.
A ideia de ‘serviço’ (diakonia) é também mais extensa do que a tradicional
noção de disciplina dentro dos cultos na Igreja. Serviço cristão envolve discipu-
lado e um estilo de vida que fomenta justiça e paz no mundo. Este ponto tem
sido muito enfatizado atualmente em muitas novas confissões.

OS AGENTES RENOVADORES DA IGREJA (O SACERDÓCIO


UNIVERSAL)

Na Teologia Reformada, aqueles que proclamam o Evangelho celebram os sacra-


mentos e servem no mundo, não são apenas os cleros ordenados, mas todos os
filhos da igreja batizados, sejam jovens ou idosos, homens ou mulheres, leigos
ou clérigos. É a doutrina do sacerdócio universal de todos os crentes.

O IMPACTO E A NATUREZA DA TRADIÇÃO REFORMADA


219

Para a Reforma, o evangelho não é efetivamente pregado somente onde os


crentes estão presentes ou onde as necessidades dos crentes são enfatizadas. O
ofício da pregação intenta alcançar tanto cristãos quanto não cristãos. O profundo
sentido da pregação envolve o trabalho e o testemunho de todos os membros da
Igreja, espalhados diariamente na sociedade.
As Igrejas reformadas não são radicais quanto ao fato dos sacramentos serem
administrados somente pelo clero. De fato se compreende que toda congrega-
ção participa inteiramente. O pastor apenas está supervisionando a celebração
dos sacramentos.
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Calvino sustentou que o ofício pastoral e apostólico é mais necessário para


a preservação da igreja do que o alimento e a água para nossa saúde física. Na
celebração da ceia, a Igreja toda celebra.
Quem produz e conduz os elementos são pessoas leigas. Presentes estão os
hinos, as orações, os detalhes e, enfim, as vidas. Tudo é uma oferenda em ado-
ração. Também o batismo precisa ser visto, desde uma perspectiva da tradição
reformada, como um ato da congregação como um todo.
A congregação se junta ao ministério ordenado e à família de Deus em oração,
pelo Dom do Espírito Santo. Somos todos, assim chamados a encorajar os novos
batizados e a orar por eles em sua nova peregrinação. Este agir compartilhado na
Igreja é chamado de Sacerdócio Universal de todos os Santos. O significado desta
frase é explanado de forma clara na Segunda Confissão Helvética (Swiss) escrita
por Bullinger, (1561/1566).
Este uso particular do termo ‘sacerdócio’ e ‘ministro’ não é seguido por todas
as igrejas reformadas, hoje, mas a básica distinção é preservada. Sacerdócio não é
uma propriedade de qualquer indivíduo; é a propriedade da Igreja como um todo.
Todos os cristãos batizados compartilham na celebração dos sacramentos, sob a lide-
rança de ministros ordenados, presbíteros e diáconos. Observe que a participação
de todos é uma questão teológica. Quantos em nossas Igrejas têm consciência disto?
A Igreja Reformada também vê o serviço no mundo como um ministé-
rio compartilhado. Em princípio, a tradição reformada rejeita a noção de que
os ministros são contratados pela igreja para cuidar do povo. De fato precisa-
mos compreender que Deus nos reconciliou com Ele, em Cristo, e nos envia ao
mundo como uma comunidade reconciliadora.

O Caráter Escatológico da Igreja e suas Marcas


220 UNIDADE V

A esta comunidade, chamada Igreja, Deus confiou a palavra de reconciliação,


a qual deve ser compartilhada pelo trabalho de curar as inimizades que tem as
pessoas, tanto com Deus, quanto com seus semelhantes. De fato, Deus tem cha-
mado a Igreja para participar de sua missão (Missio Dei), e para isto deu-lhe o
dom do Espírito Santo. Somente assim a Igreja manterá uma continuidade com
os apóstolos e com Israel, pela fidelidade e obediência a este chamado.
O chamado de Deus para a Igreja é de apontar o caminho, não para si mesma,
mas para Cristo, e não somente isto, deve apontar o caminho em direção às
necessidades e às oportunidades de cada ser humano. A igreja existe para com-

Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.
partilhar com Jesus Cristo, Seu cuidado a cada pessoa.
Ele criou Sua comunidade para ser um lugar de oração para prover descanso
ao cansado, levando pessoas a servir melhor. De forma ainda mais específica nos
fica claro que, na América Latina, temos que assumir esta posição de sermos uma
igreja para o mundo, numa ação diaconal a serviço do próximo.

A CULTURA DA IGREJA (SEMPER REFORMANDA)

A maneira pela qual a Igreja proclama o evangelho participa na comunhão e se


engaja no serviço, não pode nunca ter uma forma ou um modelo estático.
A Igreja não pode ter uma única e normativa linguagem, como o Hebraico e
o Grego, ou viver com um código fixo de ética. Suas Escrituras, sua liturgia e seu
ensino ético devem ser traduzidos para dentro de cada língua, com uma prática
dentro de cada cultura. No entanto, as culturas mudam, e os desafios apresentados
constantemente para a Igreja também mudam. Assim, não há nenhuma tradução ou
cerimônia, ou código de ética que poderia ser perfeito para expressar o evangelho.
Por isso as Igrejas não podem absolutizar seus costumes, por mais efetivos
que tenham sido quando foram desenvolvidos. As Igrejas precisam continua-
mente reatualizar sua liturgia sob a luz da Palavra de Deus em constante diálogo
com todos os ramos da Igreja contemporânea. Somos sempre carentes de conti-
nuar sendo reformados (sempre reformanda).

O IMPACTO E A NATUREZA DA TRADIÇÃO REFORMADA


221

Por assim dizer, a compreensão que os Reformados têm da confissão do


credo Niceno, sobre uma igreja “uma, santa, católica e apostólica”, trata-se de
um dinamismo, não algo estático.
A Igreja é ‘apostólica’ pelo fato de acolher os ensinos e o estilo de vida mis-
sionário dos apóstolos de Cristo e ‘católica’ pelo fato de comunicar com e receber
de outras comunidades cristãs. A Igreja é santa no sentido de que participa da
santidade de Cristo enquanto segue sendo reformada de acordo com a palavra
de Deus, caminhando em obediência ao chamado que o Senhor tem lhe feito de
forma especial para servir na terra.
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Finalmente, a unidade da igreja é realizada pela sua luta de superar divisões


alcançando todos aqueles cristãos em potencial, os quais ainda não se conside-
ram pertencentes ao povo de Deus.

As igrejas reformadas dos séculos XVI e XVII produziram várias coleções de


confissões reformadas que diferenciavam a fé reformada tanto do Catolicis-
mo Romano como de outros grupos de igrejas protestantes. Dentre esses
grupos de confissões mais conhecidos encontra-se a família suíça, repre-
sentada pela Primeira e pela Segunda Confissão Helvética (1536; 1566) e
pela Fórmula de Consenso Helvética (1675); a família anglo-escocesa está
representada pela Confissão da Escócia (1560), pelos Trinta e Nove Artigos
(1563), pela Confissão de Fé de Westminster (1646-1647) e pelos Catecismos
Maior e Breve (1647) da Assembléia de Westminster; e a família germânico-
-holandesa: Confissão de Fé Belga (1561), Catecismo de Heidelberg (1563) e
os Cânones de Dort (1618-1619).
Dentre essas confissões reformadas, as mais adotadas pelas várias denomi-
nações reformadas são a Segunda Confissão Helvética e a Confissão e os
Catecismos de Westminster.
Fonte: Beeke (2006).

O Caráter Escatológico da Igreja e suas Marcas


222 UNIDADE V

Após você ter entendido sobre pressupostos basilares da teologia de tra-


dição reformada sobre a igreja, pense sobre o fato de o quanto temos real-
mente sido Igreja desde estas categorias.

Foi maravilhosa nossa caminhada pelos caminhos da história do teologia da


reforma. Meu desejo especial é que você renove seus estudos periodicamente,

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pois tudo o que não regenera, degenera.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

É impossível fornecer, no limitado espaço disponível, uma análise detalhada da


possível influência das idéias da Reforma no decurso da história humana sub-
sequente. Contudo, o que foi dito neste capítulo final indica que ideias têm o
potencial de mudar as coisas.
A Reforma é um lembrete de que as ideias não são simplesmente o produto
das sociedades; algumas vezes elas trazem à existência tais sociedades.
Uma História que negligencia ideias não fez bem seu trabalho, e, certamente,
não fez um relato completo do que aconteceu. A Reforma foi movimento em
que as ideias religiosas desempenharam um papel principal. Houve outros fato-
res - sociais, econômicos, políticos e culturais - envolvidos nesse movimento.
Estas aulas buscaram abrir um pouco a cortina para nos permitir compre-
ender melhor esse período fascinante e importante da história da cultura e do
pensamento humano e seu impacto em nossa História.
Os Reformadores nunca esperaram ter uma igreja perfeita no tempo presente,
esse idealismo eclesiástico não lhes pertence. Creram sim, que a santidade da igreja
transcende a ela mesma, e somente será realizada na consumação de todas as coisas.

O IMPACTO E A NATUREZA DA TRADIÇÃO REFORMADA


223

Precisamos, sob esta luz, em nossa caminhada teológica no Brasil, desco-


brirmos as dimensões eclesiológicas necessárias para uma visão de Igreja com
qualidade integral.
Devemos, pois, enfatizar o crescimento em conteúdo (conceptual), cresci-
mento nos relacionamentos (koinonia), crescimento em evangelização (kerygma)
e, finalmente, crescimento no serviço (diaconal). Esta visão totalizadora afirmou
a Igreja como comunidade adoradora (leiturgya), expressando assim seu radi-
cal compromisso e chamado por Deus para uma específica missão no mundo
(Missio Dei).
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Que o Senhor, cabeça da Igreja, nos ajude nesta caminhada. Que novos para-
digmas sejam redescobertos, para Reformar Sempre, superando as sabotagens
que prendem e obstruem a vida. Soli Deo Gloria.

Considerações Finais
224

1. Assinale a resposta correta:


a) Pode-se afirmar que a Teologia de Calvino se baseia na declaração de total
distinção sistêmica entre a igreja e o estado.
b) Ser cristão, na perspectiva reformada, significa renunciar o mundo.
c) O cristão é chamado a trabalhar no mundo de modo a redimir o mundo.
d) O compromisso com o mundo é um aspecto vital da concretização da dou-
trina cristã da criação.
e) Deixar de se comprometer com o mundo e em trabalhar nele equivale a
declarar que ele pode e não deve ser redimido.
2. Sobre a ética protestante do trabalho, analise as afirmativas a seguir:
I. Para Eusébio de Cesaréia, a perfeita vida cristã era a de servir a Deus no tra-
balho físico.
II. Viver e trabalhar no mundo, conforme Lutero é desistir do chamado cristão.
III. A espiritualidade monástica nunca considerou o trabalho cotidiano no
mundo como algo que tivesse valor.
IV. O protestantismo renunciou a distinção medieval entre sagrado e secular.
A partir das afirmativas apresentadas anteriormente, assinale a alternativa correta:
a) Apenas I está correta.
b) Apenas I e II estão corretas.
c) Apenas II e III estão corretas.
d) Apenas III e IV estão corretas.
e) Todas as afirmativas estão corretas.
3. Marque (V) para Verdadeiro e (F) para Falso
( ) Sob o Calvinismo, o acúmulo de capital é visto como intrinsecamente peca-
minoso; sob o calvinismo, como digno de louvor.
( ) Segundo Weber, o calvinismo gerou as precondições psicológicas essen-
ciais para o desenvolvimento do capitalismo moderno.
( ) O espírito do capitalismo surgiu da busca pela certeza da salvação.
A partir das afirmativas apresentadas anteriormente, assinale a alternativa que
apresenta, respectivamente, a sequência correta:
225

a) V;F;V.
b) F;F;F.
c) F;V;F.
d) V;V;V.
e) F;F;V.
4. Marque (V) para Verdadeiro e (F) para Falso
( ) Sem dúvida, podemos afirmar que a Reforma não mudou a face política da
Europa.
( ) Pensar em termos de cosmovisão desde a reforma implica em dizer que o
calvinismo forneceu uma ideologia de transição e mudança.
( ) Dentro da leitura de organização humana dentro da sociedade francesa,
poderia ser dito que há contradição entre ser um calvinista e um francês.
A partir das afirmativas apresentadas anteriormente, assinale a alternativa que
apresenta, respectivamente, a sequência correta:
a) V;F;V.
b) F;F;F.
c) F;V;F.
d) V;V;V.
e) F;F;V.
5. Assinale a alternativa correta.
a) No século XVI, vimos a redescoberta de um profundo sentido histórico no
mundo ocidental - o século do Iluminismo.
b) A visão Reformada sobre a igreja pode ser: a Igreja é a nova humanidade em
forma contínua.
c) A Igreja é celestial pelo fato de testemunhar e participar do corpo vivo de
Cristo presente no Sacramento.
d) Para a Reforma, o lado terreno da igreja existe em um processo de formação
histórica, reforma e santificação.
e) A Igreja pode ter uma única e normativa linguagem, como o Hebraico e o Grego.
226

O impacto social da reforma


Algo nos parece muito claro ao estudarmos a história da teologia reformada, a de que o
sentido da vocação humana foi fundamentalmente redefinida com a Reforma - não era
mais sobre ser chamado a servir a Deus deixando o mundo; agora era sobre servir a Deus
dentro do mundo cotidiano. Deus chama seu povo, não apenas à fé, mas também para
expressar essa fé em áreas bem definidas da vida. A espiritualidade reformada não propõe
um fugir do mundo, mas sim um invadir o mundo como sal da terra e luz do mundo.
O pensamento reformado propôs uma nova cosmovisão em contraste com os monasté-
rios que tinham uma ideia negativa do trabalho (exceção dos Beneditinos). Viver para o
trabalho era ser considerado um cristão de segunda categoria.
No entanto, já em Lutero vemos a valorização do trabalho, exaltou até mesmo o valor
religioso do trabalho doméstico, declarando que, embora não haja aparência óbvia de
santidade, essas mesmas tarefas domésticas devem ser mais valorizadas que todas as
obras de monges e freiras.
Fato é que para os reformadores, a verdadeira vocação de um cristão está em servir a Deus
no mundo – esse paradigma é fundamental para entender o pensamento da reforma.
Assim, surge uma teologia da cidade. A verdadeira tarefa e missão está nas cidades, nos
mercados e no mundo do comércio, dentro do mundo secular, não no esplêndido isola-
mento da cela monástica – a teologia dos reformadores propõe um enfrentamento da
vida como ela é.
Num cenário político marcado por gastos públicos incontroláveis, onde o Estado é co-
locado a serviço de corrupção desenfreada, da sistemática desmoralização dos poderes
e instituições e ações sociais ineficientes e instabilidade política. Precisamos perguntar
em que sentido a teologia social dos reformadores podem nos ajudar hoje, aqui e agora,
no Brasil?
A história da teologia reformada é um desafio para que a igreja evangélica se envolva
em todos estes aspectos da sociedade. Usando os meios apropriados, lícitos e legais
para protestar, advertir e resistir à injustiça social, usando a pregação da Palavra para
chamar ao arrependimento os governantes corruptos, os ricos opressores e os pobres
preguiçosos, e também exercitando obras de misericórdia e assistência social através de
uma ação diaconal consciente e motivada.
Fazer isto sem perder de vista a missão primordial da Igreja, que consiste na proclama-
ção do Evangelho de Jesus Cristo, aguardando os novos céus e a nova terra onde habita
a plena justiça de Deus.
MATERIAL COMPLEMENTAR

História e Teologia da Reforma


Wilhelm Wachholz
Editora: Cia. dos Editores
Sinopse: o objetivo deste trabalho é introduzir o leitor/a na história da Reforma
e na teologia dos principais reformadores do século XVI. Apresentamos um
panorama do cenário que levou à Reforma, a biografia do reformador Martim
Lutero e o seu pensamento que nos permite compreender o drama humano do
final da Idade Média. As teologias de Lutero, Zwínglio e Calvino dão a identidade
formadora do protestantismo.

Material Complementar
REFERÊNCIAS

BARTH, K. Church Dogmatics. IV/1, Hendrickson Publishers: Peabody, Massachu-


setts, 1961.
BERGER, P. The sacred canopy: elements of a sociological theory of
BEEKE, J. R. Harmonia das Confissões Reformadas. São Paulo: Cultura Cristã, 2006.
Calvino, J. As institutas. v. 3, São Paulo: Cultura Cristã, 2006.
229
GABARITO

1. C.
2. D.
3. D.
4. C.
5. D.
CONCLUSÃO

Chegamos ao final desta nossa jornada dos estudos da História do Pensamento da


Reforma. Durante o planejamento e a elaboração deste material, procurei pensar
em conhecimentos e temas do Pensamento Reformado que fossem consistentes
teoricamente e também de relevância e utilidade para o cotidiano da vida minis-
terial do povo de Deus. Assim nasceu a estrutura e o conteúdo desse livro didático.
Na unidade I, para iniciar, não tinha como fugir de abordar aspectos introdutórios
da gestação da Reforma, como a constituição de uma forma de pensar e articular
desde contextos dados, o que fez surgir um novo paradigma de pensamento que
eclodiu numa nova civilização desde o Século XVI.
Já na unidade II, nosso foco teve um caráter introdutório ao pensamento Reformado -
o Ethos Reformado. Sabendo que tudo pode ser resumido nessa máxima: A soberania
de Deus, a realeza de Cristo e a valorização da dignidade humana como Imago Dei.
Nas unidades III e IV, concentramos nos teólogos e na era pós Calvino. O limitado
espaço disponível impede uma análise mais detalhada da influência das idéias da
Reforma no decurso da história, mais espero ter instigado você a progredir. Fica o
desafio de aprofundarmos um pensamento reformado vivo e transformativo em so-
los latinos americanos.
Finalmente, na unidade V, estudamos sobre o impacto e a natureza eclesiológica
da tradição reformada. Confessemos que somente por graça, mediante a fé na obra
salvífica de Cristo, e não por causa de nossos méritos, somos aceitos por Deus e re-
cebemos o Espírito Santo que nos renova os corações e nos capacita e chama para
as boas obras. Nele participamos de uma nova vida, nele fomos aceitos como filhos
do Pai, e por Ele e para Ele somos transformados em esperança.
Foi um privilégio caminhar com você pelas trilhas da história rumo ao Reino de
Deus. Encorajo você a prosseguir nos estudos da teologia de tradição reformada –
as próximas gerações lhe serão gratas. Só a Deus a Glória!
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ANOTAÇÕES
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