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RELATO

que fez
RAFAEL HITLODEU
sobre
A MEIHOR FORMA DE GOVERNAÇÃO
*
por
ToMAs MORO,
cidadão e magistrado de Londres
*
LlvRO SEGUNDO

no; A Ilha da Utopia tem de largura umas duzentas milhas 1, na sua parte
central (onde atinge o máximo). Não é muito mais estreita ao longo do seu
perímetro, mas para as extremidades adelgaça progressivamente de ambos
os lados; aquelas encurvam e desenham um arco de círculo de quinhentas
milhas de circunferência, dando à ilha, no seu todo, a configuração de uma
lua em quarto crescente.As águas do mar correm de lado a lado, por entre
as pontas do crescente que distam uma da outra mais ou menos umas onze
milhas, espraiam-se por um imenso golfo, resguardadas dos ventos por terra
em todo o redor, remansosas e raramente agitadas, como se fossem um lago;
formam um porto quase no seio daquela terra, e proporcionam grandes
vantagens aos navios que os habitantes fazem circular para todas as
partes. Há entradas que, seja pelos baixios, seja pelos escolhos, se tornam
muito perigosas. Mais ou menos a me io da passagem /71/ fica um
rochedo, mas, porque está à vista, por isso mesmo é inócuo; aí construíram
uma torre e mantêm uma guarnição; os restantes estão escondidos e são
traiçoeiros.Apenas os habitantes sabem deles e por isso não é sem perigo
que algum estranho se aventura a entrar naquele golfo sem um guia
utopiano, pois até para os próprios naturais é difícil o acesso se não houver
sinaléticas a apontar o caminho a partir da praia2. Se tais sinaléticas forem

leitura de Aristóteles, Pollt., VII·vm, onde se destacam as vantagens de um território de difícil acesso
aos inimigos e de fácil saída para os seus habitantes.
2 É possível que Moro tenha em mente descrições dadas por fontes que referiam a viagem dos
descobridores portugueses a caminho da lndia. Cf. ltlnerarlum Portugallensium, fl. XXXI ss.:"A quo
[rege] consecuti fuimus itineris ducem: pilotum appellant. Ab eo (rege) impetrauit ducem itineris,
hoc est pilotum, qui iter ad Calicut optime sciret."

[487]
deslocadas, facihnente poderão eles destroçar qualquer frota inimiga., por mais
portentosa que ela seja. Pelo resto da costa, os portos não são raros, mas por toda
a parte o desembarque é por tal modo protegido por meios naturais ou por
meios artificiais que até forças ingentes podem ser rechaçadas por poucos
defensores.
Aliás, segundo se conta, e assim de facto a própria configuração do
lugar o revela, aquela terra em tempos não era rodeada de mar. Foi Útopo3
(cujo nome, na sequência de uma vitória alcançada, foi posto à ilha, pois
antes dessa data o nome dela era Abraxa4) quem se empenhou em que um
povo rude e selvagem chegasse a um grau de cultura e civilização que quase
ultrapassa tudo aquilo que os outros mortais constituíram. Foi ele quem, logo
depois de ter alcançado vitória fulminante a um primeiro e único ataque, tomou
a peito rasgar um istmo, por onde a terra ficava ligada ao continente, e assim
fez com que o mar circundasse o território. Para fazer tal obra requisitou não
apenas indígenas, mas (para eles não considerarem que o trabalho era forma
degradante5) associou-lhes também todos os seus soldados e por isso, com
a repartição do trabalho por tanta gente, a obra foi realizada com uma
rapidez inacreditável; aos vizinhos (que no início se riam por considerarem
que era desvario) cativou-os pela admiração e acabou com eles pelo terror.
A ilha tem cinquenta e quatro cidades6, todas elas espaçosas e magníficas,
nz1 com a mesma língua, costumes, instituições e leis idênticas, uma
configuração absolutamente igual para todas, a mesma apresentação em
toda a parte em que o local o permite7. A distância entre umas e outras é
de vinte e quatro milhas; mais que isso, nenhuma está tão isolada que não
se possa ir de uma a outra no tempo de um único dias.

5 A valorização do trabalho como modo de realização humana, e não de castigo (perspectiva


do Génesis ou da tradição grega, algo contraditada pela reflexão romana - omnia uincft labor tmpro-
bus de Virgílio, Buc. 10, 69), chega a Moro através da experiência monãstica (da Regra de S. Bento e
da prática da Cartuxa, que Moro seguiu durante alguns anos, mas tem na base a reflexão patris-
Uca - que se inspira em S. Paulo, para quem "aquele que não trabalha não merece o que come").
6 O mesmo número que o dos condados ingleses (Inglaterra e Gales, incluindo Londres).
O termo assinalado em cota lateral é oppida, que se distingue de urbs por marcar um núcleo popu-
lacional fortificado. O modelo é grego, de cidades federadas, relativamente autónomas como unidades
políticas.
7 Ressalve-se a monotonia, pois o que se pretende assinalar é a racionalidade de um projecto
que se aproxima da perfeição.
8 Algo diferente do que propunha Aristóteles para tomar possível a democracia, com a partici-
pação de todos os cidadãos na vida da cidade, pois o cidadão deveria poder deslocar-se para o exer-
cício da cidadania e regressar à cidade de origem no mesmo dia. Não está aqui em causa, no entanto,
o exercício da vida política, mas apenas a racionalização do espaço, com ocupação humana em
harmonia perfeita.

[489)
Todos os anos, três cidadãos de cada cidade, já anciãos e experimentados
na vida, se reúnem em Amauroto9 para tratarem dos interesses colectivos da
ilha. Situada como que no umbigo do território e estando em ponto favorável a
todos os delegados das diversas localidades, é considerada como cidade capital.
As terras de cultivo estão por tal modo repartidas e em forma tão judiciosa
que nenhuma cidade de qualquer lado tem menos de vinte milhas de território,
ainda que possa ter mais por algum dos lados, quando as cidades estão
colocadas a maior distância. Nenhuma cidade tem a ambição de alargar as
suas fronteiraslo, pois os habitantes consideram-se mais como agricultores do
que como senhores. Nos campos têm casas situadas nos lugares mais favoráveis,
apetrechadas com instrumentos agrícolas. São habitadas por homens que para
ali se deslocam em turnos. Nenhuma família nessas condições tem menos
de quarenta homens e mulheres além de dois serviçais adscritos 11 ; à frente
de cada grupo há o pai e a mãe de família, de boa reputação e já entrados
em idade; para cada conjunto de trinta famílias há um "filarco" 12; todos os
anos regressam à cidade vinte dos membros de cada família que com-
pletaram dois anos no campo.Ao serem substituídos por um número idên-
tico procedente da cidade, são estes ensinados por aqueles que aí já pas-
saram um ano n3/ e têm alguma experiência das coisas do campo, por tal
forma que no ano seguinte hão-de eles ensinar os outros; assim nunca se
dará o caso de todos serem novatos e inexperientes da agricultura e falha-
rem nas colheitas por falta de conhecimento.Tal procedimento na forma de
renovar os tratadores dos campos, embora seja de regra, com o fim de nin-
guém ser obrigado a aguentar por muito tempo uma vida demasiado penosa,
não é estrito, pois há muitos que, por maneira de ser natural, tomam gosto
pelo tratamento da agricultura e bastantes são os que solicitam mais anos.
Os agricultores cultivam a terra, criam animais, recolhem lenha e fazem-na
chegar à cidade pelo caminho mais converuente, seja por terra, seja por mar.
Têm processos engenhosos para multiplicar os frangos de capoeira; não deixam
que sejam as galinhas a incubarem os ovos, mas chocam-nos e fazem nascer os

1º A cota lateral do texto assinala:At btnc bodte pestts rerum prope omntum - "Daqui procede
hoje uma desgraça que é quase das maiores."
11 Trata-se dos servos da gleba, que o Direito Civil contemplava.

12 Etimologicamente, um "chefe de tribo"; pode significar "ambicioso do poder·, mas tal figura
não devia ter lugar na Utopia.

[491]
pintainhos em grande número mediante uma temperatura eqtúlibrada e tra-
tam-nos logo que saem da casca, havendo homens que, fazendo de mães, os
acompanham e deles tomam conta 13.
Fazem pouca criação de cavalosl4 e não os querem se não forem fogosos,
mas não servem para outro fim que não seja para treinar a gente nova na
equitaçãol5. De facto todo o trabalho, seja de cultivo seja de transporte,
executam-no com bois, animais que (confessam) ficam abaixo dos cavalos
em fogosidade , mas os superam no que são de pachorrentos; consideram
que são menos atreitos a doenças, custam menos a pôr a trabalhar, ficam
menos dispendiosos na alimentação, e , por fim, depois de anos de trabalho,
servem para a alimentação.
Apenas se servem dos cereais para fazerem pão. Como bebida alcoólica,
de facto , consomem a que extraem ou de uva ou de maçã ou até de pêra I6;
quanto à água, por vezes, é em estado narural, mas muitas vezes é em infusão
com mel ou com erva-doce17, que têm em grande abundância IS.
Embora tenham cálculos feitos (são peritos nisso) n4! relativamente ao
consumo da população de cada cidade e dos seus arredores em produtos
agrícolas, no entanto, tomam cuidado em semear cereais e em criarem gado
em maior quantidade do que aquela que poderia bastar para as necessidades,
com o intuito de repartirem as sobras com os vizinhos. Quanto às alfaias, que
lhe são necessárias e não têm no campo, vão buscá-las à cidade e recebem-nas
dos funcionários urbanos, sem terem de dar nada em troca e sem qualquer
contrato. Efectivamente, cada mês há muitos que vão às festas da cidade.
Quando se aproxima o dia da ceifa, os filarcos dos agricultores fazem
saber aos oficiais urbanos qual o número de homens que é conveniente
enviar-lhes. Quanto ao número de ceifeiros, se eles chegarem para o dia
aprazado, em pouco mais de um dia, se estiver de bom tempo, dão conta de
toda a ceifa.

16 Há que tomar em consideração que a produção de cerveja entrara nos costumes da tradição
e que as próprias abadias monásticas viam nela uma forma de aproveitamento do cereal que
armazenavam, mas não conseguiam guardar sem transformarem; a sobriedade que observava na
Cartuxa levava Moro a excluir esse produto.
17 A gliciriza ou erva.<foce é elogiada por Plínio, HN, 11,54, 119; 22, 9, 11.
is Segundo Diógenes Laércio, Epicuro privilegia a sobriedade nos hábitos alimentares, dando
lugar ao uso da água contra o do vinho.

[493]
As CIDADES
E,NOMEADAMENI'E,AMAUROTO

Quem conhecer uma das cidades conhece-as a todas. Parecem-se umas


com as outras, pelo menos na medida em que a configuração do lugar não cons-
titui obstáculo. Descreveria, pois, uma qualquer, não importando q ual delas.
Mas por qual optar senão por Amaurotol9? Nenhuma é mais prestigiada, já
que as outras lhe deixam a honra de ser a sede do Senado2 nem há nenhuma º
que eu conheça melhor, já que nela vivi durante cinco anos consecutivos.
Fica situada Amauroto numa ligeira encosta de um monte; é de configu-
ração quase quadrada, pois de largura começa um pouco abaixo do vértice
da colina que se estende por duas milhas ns; até ao rioAnidro 21 e de com-
primento estende-se um pouco mais ao longo do rio.
Nasce o Anidro a oitenta milhas a montante de Amauroto, numa pequena
fonte, mas pela confluência de outros rios e também com o caudal de outros
dois medianos, ao chegar em frente da cidade alarga-se por quinhentos pas-
sos e a breve trecho ganha maior amplitude, mas logo, após um percurso de
sessenta milhas, desagua no oceano. Em todo este percurso que vai da cidade
ao mar, e mesmo algumas milhas a montante da cidade, todas as seis horas a
maré faz alternar o fluxo e o refluxo das águas em movimento rápido; quando
o mar sobe, ao longo de trinta milhas, toma conta de todo o leito do Anidro
com as suas águas, fazendo recuar o rio que não aguenta; por vezes sobe até
mais atrás e com a água salgada altera a água doce; depois, a pouco e pouco,
o rio vai recuperando as águas doces e é já sem misrura que banha a cidade
e, por sua vez, com água pura e sem alteração persegue o refluxo até à foz.
A cidade está ligada à outra margem do rio, não por ponte de madeira
assente em pilares, mas por ponte de pedra, em arcos bem lançados, situada
da parte mais afastada do mar, para que os navios possam não perigar dep ois
de terem ultrapassado toda a frente da cidade. Há, além disso, um outro rio,
esse relativamente pequeno, mas muito ameno e agradável; jorra ele do pró-
prio monte em que a cidade está implantada, corre em declive pelo meio dela
e mistura-se com oAnidro.À nascente e à parte cimeira do rio, que brota a uma
curta distância fora da cidade, os amaurotanos cercaram-nas de fortificações
ligadas ao castelo, por tal forma q ue, caso haja um cerco de forças inimigas,

21 Também aqui o nome é falante: à + ííõwp/ an-budor, sem água. O rio da Utopia ("Em-parte-
-alguma ") não poderia ser senão "Rio-sem-água".As semelllanças poderão aqui remeter para a ribeira
de Chelsea, onde Moro habitava.

(495]
n6/ estas não tenham possibilidade de cortar a água nem desviá-la nem
contaminá-la. A partir do rio, a água deriva por condutas de argila22, umas
por um lado outras por outro, até chegarem aos bairros inferiores da cidade;
quando o acidentado do terreno não o permite, este fornecimento é asse-
gurado por cisternas de grande capacidade, onde ficou retida a água da chuva.
Uma muralha alta e larga rodeia a cidade, guarnecida de torres e ameias;
um fosso seco, mas profundo e largo, cheio de sebes e silvados, acompanha
a muralha em três panos, sendo o quarto constituído pelo próprio rio.
As praças estão bem lançadas, para servirem à circulação, e contra o
vento; os edifícios não são nada deselegantes e formam, ao longo da rua,
uma fila comprida e contínua, em dupla frontaria de casas, que se vê bem
estão separadas umas das outras por uma rua de vinte pés de largura. Nas
traseiras das casas, a todo o comprimento da rua, há um jardim contíguo,
espaçoso e fechado de todos os lados nas traseiras das ruas23. Não há nenhuma
casa que não tenha uma porta para a rua e um postigo para o quintal; são
de dois batentes, abrem facilmente com um empurrão de mão e logo de
seguida fecham-se por si próprias; deixam entrar qualquer um, por tal forma
que nada há de totalmente privado24. Seja como for, as próprias casas de dez
em dez anos mudam de dono, aleatoriamente25.Têm grande cuidado com os
hortos26, cultivando neles vinhas, árvores de fruto, plantas, flores, com tanto
esmero e trato que nunca vi coisa que desse mais fruto nem nada de mais
bem cuidado; o seu esmero não é apenas movido por prazer em si, mas
também por emulação que existe no cultivo do horto entre os habitantes de
cada arruamento; e por certo não se encontrará facilmente na cidade inteira
outra ocupação que seja de tanta utilidade para os habitantes ou que lhes dê
tanto prazer, pelo que n7/ até parece que o fundador da nação não teve
solicitude maior que a de hortos cultivados desta maneira.
Na realidade, ao que dizem, toda a planta da cidade foi assim desde o
início traçada pelo próprio Útopo.Todavia, vendo ele que a vida toda d e um
homem não bastaria para acabar a obra deixou aos seus sucessores a incum-
bência de a prosseguirem e a embelezarem.

2s Cf. Platão, Rep. V, 4 16d: os Guardas nada têm de pessoal; os Cartuxos, cuja vida Moro
partilhou durante alguns anos (incerto quanto à sua vocação), têm troca de cela em temp os
regulares.
26 O termo português admite a conotação e permuta de "jardim" e de "terreno de cultivo".
No Renascimento teve lugar a valorização do espaço ajardinado como ambiente propício ao
convívio intelectual, mas também como alternativa, enquanto espaço de lazer contemplativo.

[497]
É assim que nos anais, que perfazem 1760 anos27 de história desde a con-
quista da ilha e que eles conservam, com cuidado e escrupulosamente, assi-
nalaram por escrito que as casas no irúcio eram humildes e pouco mais que
cabanas e tugúrios28, feitas de qualquer madeira e sem grande cuidado, as
paredes recobertas de barro, as coberturas de colmo e o cimo levantado em
bico29. Porém, hoje, todas as casas são de três andares, com as frontarias ou de
pedra em cantaria ou de alvenaria ou de tijolo cozido, tendo divisões interiores
com tabiques de argamassa30. Os tectos são lançados em plano31, neles se
estendendo um material de brita que é de preço insignificante, mas refractário
ao calor e não inflamável e que na resistência às intempéries ultrapassa o
chumbo. Protegem as janelas dos ventos com vidros, pois usam-nos com muita
frequência; por vezes também se servem de um tecido muito fino, impregnado
de óleo transparente ou âmbar amarelo, com uma dupla vantagem, pois com
isso conseguem que transmita mais luz e deixe passar menos vento32.

Os MAGISTRADOS

Cada trinta fumilias33 elege, todos os anos, um representante que designam na


sua primitiva língua por sífogranto ns1 e em língua mais recentefi/arco. A cada
dez sífograntos, com as suas fumílias, preside um traníboro na língua de antiga-
mente, hoje chamado protofilarco. Finalmente, todos os sijograntos, que
são duzentos, depois de jurarem que escolherão aquele que considerem
mais útil, em votos secretos elegem como principe34 um de entre quatro
que o povo tiver designado.

30 As casas da África Oriental, no Itinerarlum Portugallensium, são apresentadas também desta


maneira, ao contrário das da urbanização da África Ocidental.As de Londres eram normalmente de
madeira e tinham no máximo dois andares - assinala M. Logan, loc. cit., p. 47.
31 A forma de terraço constituía modalidade predilecta de Moro, que em Chelsea tinha mandado
construir um e a ele subia para contemplar a paisagem do campo e as estrelas.
32 Até ao século XVI, as janelas eram protegidas com panos de seda, de tule ou de papel, repas-
sados de cera ou de óleo; embora a indústria do vidro fosse conhecida desde alta antiguidade e tivesse
atingido grande perfeição (em Veneza, por exemplo), os vidros eram ainda material muito caro, pelo
que se desmontavam para não ficarem expostos às intempéries, quando os nobres saíam do palácio
(só no século XIX o seu uso se tomou habitual e permanente).
33 Cf. Aulo Gélío, NA 15, 25, 5: os conúcios curiatos são organizados na base de trinta curlae das
três tribos primitivas de Roma.
34 Não há que considerar o termo com o sentido de membro de uma linhagem régia, pois na
Utopia não existe monarquia; a correspondência é com uma presidência de serviço.

[499]
De facto, cada um dos quatro bairros da cidade escolhe um representante
para fazer parte do Senado. O cargo de príncipe é vitalício, e não pode ser des-
tituído senão em caso de haver suspeita de propender para a tirania. Os tra-
níboros35 ficam sujeitos a eleição anual, mas não são substituídos senão por
motivo sério. Os restantes magistrados todos são anuais.
Cada três dias, e mesmo mais frequentemente se o assunto assim o exigir,
os traníboros reúnem-se em conselho com o príncipe. Deliberam sobre
matérias de interesse público, decidem de questões privadas (se alguma
houver); elas são tão poucas que o fazem em pouco tempo. No Senado assis-
tem sempre dois sifograntos, cada dia diferentes, e está acautelado que nada
seja sufragado senão o que é de interesse público e que além disso não se toma
decisão final sem terem passado três dias sobre a sua discussão no Senado.
Tomar decisões relativas a interesses públicos fora do Senado ou fora das
Assembleias do Povo é considerado crime capital. Diz-se que tal lei foi insti-
tuída para não se cair na tentação de alterar a forma de governação, por cons-
piração do principe e dos traníboros que levasse a instituírem a tirania que
serviria para oprimir o povo. Por isso mesmo, tudo o que é considerado de
maior importância é levado às assembleias dos sifograntos, os quais o comu-
nicam primeiro às famílias que representam e depois o debatem entre eles e
só de seguida transmitem a sua deliberação ao Senado. n91 Entretanto, o
assunto é levado ao conselho de toda a ilha. Mais ainda, o Senado tem também
por regra nada discutir no próprio dia em que o assunto é proposto, mas
diferi-lo para a reunião seguinte, ·para não acontecer que alguém debite de
ânimo leve aquilo que primeiro lhe vem à boca, obstinando-se depois a pensar
mais como defender as posições que tomou que os interesses do bem comum,
preferindo deitar a perder o interesse público que uma opinião, por vergonha
descabida quanto a uma retractação, e para que não pareça que de início
tinham reflectido pouco, quando, por princípio, se devia ter previsto que mais
vale falar depois de reflectir que fazê-lo de chofre.

35 A palavra é formada de 0pâvos, o que comanda o banco dos remadores, e ~opfos, vento do
norte, que é favorável, mas invisível; na cota lateral assinala-se que na linguagem dos utopienses a
palavra significava "chefe principal".

(501]
ARTES E MEsTEREs

Existe uma só ocupação que é comum a todos, homens e mulheres: a


agricultura. A ela túnguém pode eximir-se. Todos recebem formação sobre
ela, em parte na escola com a instrução sobre obrigações tradicionais, em
parte indo até os campos mais chegados à cidade, em exercícios recrea-
tivos, não apenas para ver, mas para dar ocasião de exercício fisico e até de
experimentação.
Além da agricultura (que é, como disse, comum a todos), cada um tem
a sua profissão própria que aprende como tal: entre as mais frequentes está
a de tratar da lã ou a de preparar o linho, o oficio de pedreiro, o de carpin-
teiro, o de ferreiro, ou de marceneiro. Fora estes, não há outros oficios que ali
seja ocupação de número significativo de pessoas para ser mencionado36.
De facto , quanto à roupa, se excepruarmos as diferenças de vestuário para
homens e para mulheres ou para solteiros e para casados, a forma é única para
toda a ilha e é idêntica sempre ao longo dos tempos; o corte não é deselegante
à vista e é ajustado ao movimento do corpo, /80/ tão conveniente para o frio
como para o calor. É em família que se confeccionam todas as peças.
Quanto às outras artes, cada um aprende a que escolhe, não apenas os
homens, mas também as mulheres; aliás, estas, porque têm menos força,
dedicam-se às mais leves: quase sempre trabalham o linho; para os homens
ficam os outros oficios que exigem maior esforço. Na maior parte, todos são
formados nos oficios dos pais, já que muitos, por índole natural, são levados a
isso, mas se a inclinação for para outra coisa é transferido por adopção para
aquela familia em cujo seio se aprende o respectivo oficio, nisso havendo o
apoio prestado não apenas pelos pais, mas também pelos magistrados para
entregar o aprendiz a um chefe de família sério e honesto. Por outro lado, se
alguém já tem competência num oficio, mas deseja um outro complementar,
é-lhe isso consentido, em iguais condições. Uma vez formado em ambas,
exercerá a que quiser, a não ser que a cidade precise mais da outra37.

37 Esta concessão contradiz as normas de Platão, pois este acentua que numa comunidade bem
organizada ninguém terá mais de uma ocupação (Rep. n, 370a-c, 374a-O; Leg. vm, 846d-e); a combi-
natória com a agricultura deixa admitir que o modelo cartuxo de cultivo da terra e a auto-suficiência
na cela pode estar na origem da proposta de Moro.

[503]
Função principal e quase única dos sifograntos é tomar a peito e fazer
com que ninguém passe a vida na ociosidade, mas cada um se entregue
com afinco ao seu ofício, sem todavia se esfalfar desde alta madrugada até
à noite, sempre a traballlar como bestas de carga38.Tal forma de vida seria
um peso maior que o de escravos; será a que levam em muita parte os
traballiadores, mas não na Utopia. Os seus habitantes dividem o dia,
incluindo a noite, em vinte e quatro horas de tempos iguais: seis horas são
dedicadas a traballiar, três antes do meio-dia, depois das quais tem lugar o
almoço que se prolonga pela sesta em descanso, retomando de seguida o
traballio durante três horas, para tudo terminar com a refeição principal39.
Uma vez que /81/ se contam as horas a partir do meio-dia, é às oito horas
que se deitam; o sono exige oito horas.
O tempo que houver entre as horas de traballlo e as de sono, com o
comer pelo meio, cada um é livre de o utilizar como llle aprouver, não para
dele abusar em extravagâncias ou na ociosidade, mas no exercício de alguma
actividade em que, fora do seu ofício normal, por disposição de espírito,
seja inclinado a ocupar-se.
A maior parte consagra às letras estas horas de folga. De facto , é de regra
haver cada dia lições públicas nas primeiras horas do dia, sendo obrigatório
que a elas assistam aqueles que foram expressamente seleccionados para as
letras40; além disso, um grande número de homens e de mulheres de todas
as condições desloca-se para escutar estas lições, uns umas, outros outras,
segundo a inclinação natural de cada um41.Todavia, se alguém quiser aplicar
esse mesmo tempo a traballiar no ofício que llle cabe (há quem não tenha
dotes para se dedicar a disciplinas intelectuais) , não fica impedido de o
fazer, mas até é elogiado por ser útil à comunidade.

40 No tempo de Moro, nas universidades inglesas as aulas começavam entre as 5 e as 7 horas da


manhã, ao nascer do Sol. Nas universidades do continente não era diferente o horário, pois a lição de
prima deveria ser ao nascer do Sol. Os humanistas recomendavam as primeiras horas da manhã para
o estudo - conselho que os pedagogos repetiriam ao longo dos tempos.
4 t A educação das mulheres nas letras fazia parte das propostas dos humanistas (cf. Erasmo,
Colloquta), muito embora lhes estivessem reservadas as ocupações domésticas. Erasmo em carta a
Budé (Ep. 4) confessa que Moro o convenceu de que as letraS não eram inúteis nem desajustadas para
as mulheres.

[SOS]
Prolongam o tempo destinado à segunda refeição por uma hora para se
recrearem, no Verão nos jardins, no Inverno nos salões comunitários em que
tomam as refeições; aqui, ou se dedicam à música ou se distraem a con-
versar. Quanto ao jogo dos dados e géneros parecidos, desconhecem por
completo os que são insípidos e perniciosos, mas apreciam dois, não muito
diferentes do jogo do xadrez: o primeiro são justas poéticas, em que um tipo
de medida desafia outro42; o segundo é aquele em que os vícios entram em
combate, em fileira cerrada, contra as virtudes. Neste jogo, demonstra-se com
muita clarividência tanto a desunião dos vícios entre si como a sua união
contra as virtudes; de igual modo, fica à vista quais são os vícios e quais as
virtudes e a oposição entre eles, com que forças se enfrentam em luta aberta,
/82/ a que estratégias recorrem para atacar de flanco, em que fortaleza as
virtudes destroçam as forças dos vícios, por que estratagemas evitam os seus
ataques, que meios permitem a uma parte ou a outra assegurar a vitória43 .

Neste ponto, para evitar qualquer erro, uma coisa há que teremos de
examinar mais demoradamente. Havendo seis horas apenas para trabalhar,
talvez alguém pense que daí decorre provavelmente uma certa falta de bens
de primeira necessidade. Isso está longe de acontecer, pois esse tempo é
suficiente para produzir bens abundantes que bastem para as necessidades
e que cheguem não apenas para remediar, mas até sobrem.
Isso se compreenderá melhor se pensarmos que noutros povos há
grande parte da população que passa a vida sem fazer nada. Em primeiro
lugar, estão as mulheres quase todas, que formam metade da população;
quando as mulheres trabalham, então, a maior das vezes, são os homens
que se deixam ficar a dormir. E quem poderá contar a multidão de
sacerdotes e de religiosos (tal nome lhes dão) que a isso acre sce?
Acrescente-se toda a gente abastada sobretudo dos que são proprietários
de terras, habitualmente designados por gente de linhagem e de nobreza44 .

43 É possível q ue, ao demorar-se nestes pormenores, Moro esteja a reviver uma cena familiar em
que um dos passatempos com as suas três filhas (Margarida, de 10 anos, Isabel, de 9, Cecília, de 8) era
o da "Batalha entre as Virtudes e os Vícios", transposição didáctica e lúdica do tema já tratado por
Prudêncio na Psycbomachia.
44 Mais adiante serão também criticados pelo mesmo motivo; aí traduzimos o termo por"fidalgos· .

(507 ]
A esses junte-se o número de serviçais, ou seja, toda essa misturada de biltres
de libré: juntem-se, enfim, esses mendigos robustos e cheios de saúde, que
fingem uma doença qualquer para nada fazerem.
Com isso descobrir-se-á que são menos do que se pensara aqueles cujo
trabalho produz todos os bens de que os mortais se servem. Contem-se
agora de entre todos estes quantos são os poucos que desempenham
profissões indispensáveis.
A verdade é que, /83/ quando tudo se mede por dinheiro, se tomou ine-
vitável exercer ofícios completamente inúteis e supérfluos, para servirem a
ostentação ou bem assim a ganância. Ora, se esta quantidade de gente que
agora se entrega ao trabalho realmente fosse repartida por tão poucos ofícios
quantos são os poucos que se requerem para satisfazer às necessidades
naturais, perante tão grande abundância como é a que se tomou necessário
agora ter, os preços por certo seriam bem mais baixos do que os que se pra-
ticam para os artesãos poderem prover à sua subsistência. Mas se todos aque-
les que agora se entregam a mesteres sem mester45 e se toda essa multidão
que acima de tudo se vai debilitando no ócio e na preguiça (e em que um
do trabalho produzido por outros consome o equivalente ao que dois
realizam), se todos eles fossem postos a trabalhar e se isso se fizesse em coisas
úteis, facilmente nos daríamos conta do pouco tempo que seria necessário
para produzir tudo o que racionalmente se poderia prever como indispensável
ou que o conforto postula (ou até mesmo uma parte de prazer que seja
admissível e natural); nessas condições haveria abundância e haveria sobras.
Ora tudo isto se torna evidente na Utopia pela prática consagrada. Efec-
tivamente, ali, em toda a cidade e nos seus arrabaldes, mal haverá quinhen-
tas pessoas de toda a população de homens e mulheres, que tenham idade
e robustez para o trabalho manual, a quem seja consentido ficarem sem
ocupação. Entre eles contam-se os sifograntos; todavia, embora a lei os
isente de trabalho, eles próprios não se dispensam de o fazerem, com o
objectivo de que, dando o exemplo, os outros se sintam impelidos a
segui-lo. Da mesma isenção gozam aqueles aos quais, por recomendação
dos sacerdotes, e por voto secreto dos sifograntos, o povo tenha
reconhecido ser oportuno conceder dispensa sem limite de tempo para se
dedicarem ao estudo científicos.

45 A expressão artes tnertes encerra um oximoro, de difícil tradução para atender ao jogo de
palavras da mesma base.

(509]
Todavia, se alguém deixar frustradas as esperanças nele postas, /84/ será
recambiado para o trabalho manual. Pelo contrário, não é raro que um traba-
lhador manual, durante as horas de descanso, se consagre às letras com tal
diligência e obtenha tal aproveitamento que seja dispensado do seu mester para
passar à classe dos letrados. Nesta classe são escolhidos os embaixadores, os
sacerdotes, os traníboros, enfim, o próprio príncipe, a quem na sua língua pri-
mitiva davam o nome de barzanes e modernamente designam por ademo46.
Dado que a restante população não vive na ociosidade nem anda
ocupada em mesteres inúteis47, fácil é perceber-se quão poucas horas sejam
necessárias para a quantidade e a qualidade do trabalho que leva a produzir
as coisas que mencionei.
Um outro factor de economia é de mencionar: na maior parte dos
mesteres que produzem bens indispensáveis, há menos trabalho a executar
que noutros povos. Efectivamente, por toda a parte, a manutenção dos
edificios ou a sua reparação exigem de muitos trabalho tão contínuo e
generalizado que aquilo que o pai edificou um herdeiro pouco avisado
deixa degradar a pouco e pouco, por tal forma que só em escala mínima
consegue preservá-lo e o sucessor se vê obrigado a levantar rudo de raiz
com gastos enormes; não é menos frequente que uma casa só se mantenha
de pé devido a enormes gastos de outrem; ora a esta um outro, com espírito
calculista, põe-na de parte e , ao ser abandonada, a breve trecho cai em
ruínas; constrói ele uma nova noutra parte com gastos bem maiores.
Ora, na Utopia, onde todas as coisas são previstas e onde a governação é
bem gerida, muito raramente acontece que se eleja uma nova zona para levantar
uma moradia; e não só não se remedeiam rapidamente os estragos manifestos,
mas também se previnem as que ameaçam ocorrer. Deste modo, com um
trabalho mínimo, os edifícios aguentam-se por muitíssimo tempo e os mestei-
rais desta profissão /85/ dificilmente teriam trabalho a executar se não lhes
fossem dadas ordens para aplainarem a madeira em casa e entretanto apare-
lharem e ajustarem p edras, com o que, caso ocorra alguma obra, ela p oderá
ser levantada bastante rapidamente.

47 Llcurgo (Plutarco,Lyc. 9, 3-5) enumera algumas profissões que devem ser banidas por inúteis:
bufarinheiros (vendedores de bugigangas estranhas), mestres de enganos (retórica), adivinhos, pros-
titutas, ourives.

(511]
Quanto ao vestuário, veja-se como necessitam de pouca mão-de-obra:
antes de mais, quando andam a trabalhar, envolvem-se numa peças de couro
ou em peles sem grande apuro, as quais lhes duram uns sete anos; quando
saem a público, põem por cima um manto, que lhes serve para encobrir
aquelas peças mais grosseiras, e cuja cor é única por toda a ilha e é do tom
natural do tecido.Assim, aqui não só se gasta menos em tecido de lã do que
em qualquer outra parte, como também esse tecido lhes fica muito mais
barato. Quanto ao linho, ele reclama menos trabalho e por isso o seu uso é
mais frequente; mesmo assim, no linho só atendem ao candor, na lã apenas
olham ao asseio, não levando em conta a delicadeza do fio. Em conse-
quência disso, enquanto noutros lados por vezes se tornam necessárias para
uma só pessoa quatro ou cinco togas de lã, de diversas cores, e outras tantas
túnicas de seda (aliás, para os mais requintados nem dez bastam), aí
qualquer um se contenta com uma apenas, a maior parte das vezes, para
dois anos. Não há de facto razão alguma para andar em busca de mais para
com elas se abrigar melhor contra o frio ou parecer mais bem vestido com
uma nova peça ou com uma nova cor.
Por tudo isso, uma vez que todos se ocupam em mesteres úteis e que
esses mesteres requerem pouco trabalho, não é de admirar que, sobrando os
recursos, de tempos a tempos, se envie grande quantidade de gente a
trabalhar para as vias públicas, com o objectivo de as reparar (caso se encon-
trem degradadas), ou que até, quando não se toma necessário proceder a
qualquer reparação, se declare oficialmente a redução das horas de trabalho.
/86/ De facto, se os cidadãos não vêem que haja necessidade, as autoridades
não os maçam com ocupações excedentárias, tanto mais que a governação
coloca como primeiro objectivo que, sem faltar à satisfação das necessidades
de interesse público, a maior parte do tempo se dê a todos os cidadãos a
oportunidade de se libertarem da servidão corporal para cultivarem livre-
mente o espírito. É nisso que consideram situar-se a felicidade da vida.

RELAÇÕES ENTRE CIDADÃO S

É chegado o momento que me parece de desenvolver os laços que


estreitam os cidadãos uns com os outros, os modos de relacionamento das
populações entre si, a forma de distribuição de bens.

(513]
Como a cidade é constituída por famílias , as famílias constituem, regra
geral, relações de parentesco. De facto, as mulheres (uma vez chegadas à
maturidade) passam a conviver com os maridos e estabelecem-se no
domicílio deles. Os filhos varões e, depois deles, os netos, ficam na família e
devem obediência ao parente mais antigo, a não ser que, por senilidade, ele
tenha perdido faculdades, situação em que é substituído pelo que vem a
seguir na idade.
Sob outro aspecto, para que a cidade não perca habitantes ou para que
não cresça desmedidamente, tomam-se precauções para que nenhuma
família (das seis mil que compõem cada cidade, sem incluir o seu aro) não
tenha menos de dez nem mais de dezasseis púberes (quanto aos impúberes
ninguém se permite definir o seu número)48.Tal quantitativo é mantido de
forma habilidosa, pois quando ele é ultrapassado em alguma família, os
excedentes passam para as famílias deficitárias. Todavia, se alguma vez o
total ultrapassa o previsto, compensam a falta de efectivos de outras das suas
cidades.
/87/ Mas se casualmente a população global crescer por toda a ilha mais
do que o estipulado, então, recrutam-se cidadãos de cada uma das cidades que
vão fundar uma colónia com as suas mesmas leis em território vizinho onde
a população tenha terras de cultivo em excesso sem as cultivar e onde os
habitantes locais aceitem fazer aliança e viver lado a lado49. Se eles aceitarem,
ficarão todos unidos pelas mesmas instituições e pelos mesmos costumes,
facilmente se fundem as populações em benefício de ambos os povos.
Efectivamente, mediante as suas instituições, conseguem que aquela terra,
que a outros pareceria ingrata e estéril, se tome fecunda para os dois povos.
Quando os indígenas recusam as novas leis, expulsam-nos das fronteiras que
eles próprios definem para si; contra os que opõem resistência recorrem à luta,
pois consideram haver razões plenamente justas para uma guerra, quando

49 A formação de colónias, por migração de populações, estava na ordem do dia em Inglaterra,


lembra Marie Delcourt, op. cit., ad loc.: em 1498,John Cabot fez uma expedição à América do Norte
e desembarcou em Nova-Escócia; doze anos mais tarde, o seu filho Sebastião penetrou na Baía de
Hudson; em 1517 será o cunhado de Moro, John Rassel, quem partirá à procura de lugar de fixação
nas regiões visitadas por Cabot, mas sem sucesso.

[515]
qualquer povo implantado mun território dele não se serve, mas apenas pre-
serva a propriedade, deixando-o improdutivo e ao abandono, proibindo o seu
uso e a sua posse a outros que por lei natural nele devem procurar subsistência.
Caso alguma vez aconteça chegar-se ao ponto de algumas das suas
cidades diminuírem de população por tal forma que não é possível compen-
sá-la a partir das outras partes da ilha, sem porem em causa o seu equilibrio
interno (situação que apenas duas vezes no decorrer dos séculos dizem ter
acontecido, devido a uma epidemia extrema5<>), a compensação é feita com
imigrantes da colónia. Com efeito, preferem que as colónias sofram a que
qualquer das suas cidades insulares se reduza.

*
Regressemos à vida em comum dos habitantes. Como referi, é ao mais
idoso que compete chefiar a família; as esposas subordinam-se aos maridos
e os filhos aos pais, assim como, em geral, os mais novos aos mais velhos.
Qualquer cidade está dividida em quatro partes iguais; no centro de
cada uma delas, /88/ fica a praça de todas as coisas. É para aí, para certos edi-
fícios, que são transportados os produtos do trabalho de qualquer família e
as respectivas espécies são distribuídas por tulhas correspondentes.Aí cada
chefe de família vai buscar o que necessita para si e para os seus, sem pagar,
sem prestar qualquer contrapartida - quanto precisar assim retira. Por que
razão, aliás, se havia de recusar alguma coisa, quando há abundância de tudo
e não há qualquer receio de que alguém pretenda solicitar mais do que
necessita? Porque é que se haveria de supor que alguém, que pode estar
seguro de que nunca lhe há-de faltar nada, iria pedir alguma coisa supérflua?
Na realidade, o que leva à avidez e à rapacidade ou é o receio de privações,
que existe em todos os seres vivos em geral, ou, no homem, em particular,
é a vaidade, que considera ser glória para si ficar à frente dos outros pela
ostentação inútil de coisas, vício que os utopienses5 I não deixam instalar-se
em nenhuma das suas instituições.
Aos centros de abastecimentos por mim mencionados juntam-se os merca-
dos de produtos alimentares, onde se armazenam não apenas os produtos hor-
tícolas, os frutos das árvores e o pão, mas também o peixe, além das peças de con-
sumo do gado e das aves. Encontram-se situados fora da cidade, em lugares onde

51 Como ficou já anteriormente assinalado, utilizamos as variantes "utopianos" e "utop ienses",


em conforntidade com o uso do texto original que é alternante no II livro.

[5 17]
as impurezas escorrem e os detritos são eliminados. Daí se retiram os
animais abatidos e limpos por mãos de serviçais; de facto, não consentem
que cidadãos normais formem o hábito de abater animais - prática que
consideram fazer diminuir progressivamente a clemência, sentimento de
humanidade que é próprio da nossa natureza - e não deixam que alguma
sujidade ou imundície, cuja putrefacção possa ser ocasião de corromper o
ar, afecte a cidade52.
Além disso, em qualquer rua há umas tantas mansões bastante amplas,
colocadas a distâncias iguais umas das outras /89/ e designadas cada qual
por um nome particutar53. Aí moram os sifograntos e a elas estão adscritas,
para aí irem tomar as refeições, trinta famílias, quinze de uma parte e outras
tantas de outra54. Os mordamos de cada uma dessas mansões concen-
tram-se a hora certa na praça pública e fazem a requisição do alimento,
aduzindo a quantidade dos seus comensais.
No entanto, em primeiro lugar, colocam o cuidado dos doentes que são
tratados nos hospitais públicos55. Existem, efectivamente, quatro hospitais
no perímetro da cidade, um pouco fora das muralhas; são tão amplos que se
podem equiparar a outras tantas pequenas povoações, por tal forma que,
por maior que se apresente o número de doentes, ninguém tem de ficar
apertado e por isso em más condições; quando acontece declarar-se alguma
doença que se propaga por contágio, os doentes afectados podem ficar
isolados do conjunto de todos os outros56. Estes hospitais estão tão bem
planeados e tão completamente dotados de eqtúpamentos de saúde, e , além

56 Moro reage a situações reais do seu tempo, em que as pestes eram frequentes e vitimadoras
de grandes núcleos de população (a disseminação dos cultos de S. Roque e de S. Sebastião ou de
Santo Antão é significativa do desespero em que só o recurso ao sobrenatural valia como Jenitivo).
Notam os hist0riadores que, dois anos após a publicação da Utopía, Londres foi acometida, em 1518,
de uma epidemia dizimadora, tendo-se o rei Henrique VIII visto obrigado a sair de Abingdon para
Woodstock; Moro, por sua parte, permaneceu em Oxford a organizar a assistência aos doentes.

[519]
disso, os cuidados são aí prestados com tanto carinho e solicitude, tão assí-
dua é a assistência de médicos da maior competência, que, muito embora
ninguém para ali seja enviado contra vontade, poucos serão, de verdade, os
que em toda a cidade, numa situação de doença, não prefiram estar ali do que
ficar acamados em sua casa.
Depois de se ter entregue ao encarregado dos doentes a porção de
alimentos prescritos pelos médicos, de imediato se procede à distribuição
dos melhores, e de forma equitativa pelas mansões, de acordo com o
número de comensais de cada uma, tendo-se, contudo, em atenção o prín-
cipe, o pontífice, os traníboros, bem como os embaixadores e todos os
forasteiros (se os há, pois são poucos e só de quando em quando) - para
eles, quando os há, têm sempre preparados alojamentos especiais e bem
apetrechados.
Às horas estabelecidas para as refeições do meiO-dia e do fim da tarde,
toda a sifogrância, 1901 com excepção daqueles que se encontram aca-
mados nos hospitais e em sua casa, toma o caminho das ditas mansões,
ouvido que foi o som de uma trombeta de bronze; apesar disso, ninguém
está proibido de ir buscar provisões à praça para sua casa, depois de terem
ficado atendidas as mansões, pois é sabido que ninguém o faz sem motivo;
mas na realidade, embora a ninguém esteja vedado comer em casa, ninguém
o faz a seu bel-prazer, já que seria inadequado e estulto dar"se ao trabalho de
preparar uma refeição medíocre, quando há uma outra, lauta e de grande
qualidade, à disposição numa mansão que fica tão próxima.
Nessa mansão, todos os serviços, mais ou menos vis ou pesados,
competem a serviçais; quanto ao resto, as tarefas de cozinhar e de preparar
a comida bem como as de organizar o repasto, ficam a cargo das mulheres
- cada família a seu tempo, rotativamente.
Sentam-se à mesa em três filas ou mais, segundo o número de convi-
dados: os homens ficam do lado da parede, as mulheres do lado exterior, por
tal forma que, se alguma delas é acometida de alguma indisposição súbita
(coisa que costuma acontecer por vezes às grávidas), pode levantar-se sem
perturbar ninguém e sair até aos seus aposentos. Ficam à parte, em sala a
isso destinada, as mulheres com os filhos que amamentam, nunca lhes
faltando lareira acesa e água potável nem berços, para neles deitarem as
crianças e para junto do aquecimento lhes retirarem as fraldas e os
entreterem a brincar. Cada mulher se encarrega de dar de comer ao seu
rebento, excepto em caso de morte ou por impedimento de doença -
quando isto acontece, as mulheres dos sifograntos apressam-se a procurar

(521)
uma ama e não é difícil encontrá-la, pois as mulheres que podem oferecem
os seus serviços /91/ de boa vontade, uma vez que todos a felicitam por tal
gesto de ternura e o próprio que assim é tratado considera como mãe a sua
ama.
No recanto57 das amas ficam todas as crianças que não completaram os
primeiros cinco anos; os restantes adolescentes (no número dos quais se
colocam todos os que, de um e de outro sexo, estão abaixo da idade de
casamento) ou servem os que estão à mesa ou ajudam os que pela idade já
não têm forças, mas ainda se levantam; fazem-no no meio do maior silêncio.
Uns e outros comem daquilo que lhes é servido pelos que estão senta-
dos e não têm discriminado outro tempo de refeição. A me io da primeira
mesa, que é o lugar cimeiro, e para a qual converge o olhar de toda a assem-
bleia (pois ela, sendo a mesa principal, está em posição transversal a toda a
sala), senta-se o sifogranto com a sua esposa; a eles vêm juntar-se dois
convivas dos de mais idade. É que todos se sentam quatro a quatro. Todavia,
no caso de haver um templo na sifogrância, o sacerdote e a sua esposa
ficam sentados com o sifogranto e são eles que presidem.
Frente a frente, e alternadamente, ficam colocados os mais jovens e os
anciãos, com a finalidade de assim por toda a casa se relacionarem os que
são da mesma idade e se misturarem os que são de tempos diferentes; assim
foi estatuído, dizem, para que a gravidade dos anciãos e o respeito que lhes
é devido ponham cobro a qualquer leviandade insensata dos jovens (já que
nada se pode fazer ou di.zer que escape aos vizinhos, quaisquer que eles
sejam).
Os pratos não são servidos por ordem seguida, a partir do primeiro
lugar, mas em primeiro serve-se o melhor prato a todos os anciãos (a quem
pertencem os lugares de honra); /92/ a seguir, servem-se os restantes por
igual. Por sua vez, os anciãos, à sua inteira discrição, repartem, com os que
estão sentados à sua volta, os manjares que lhes couberam e cuja abundân-
cia não era tanta que pudessem ser distribuídos indiscriminadamente por
toda a casa. Deste modo, fica salvaguardada a honra devida aos de mais
idade e, a seu modo, ela reverte algum tanto em proveito de todos.

57 No original, " in antro", que Marie Delcourt considera •une plaisanterie" e que sugere a A . Prévost
outras conotações: a lareira acesa, o fumo, a água derramada, os gritos das crianças, a movimentação
das mães são traços que eventualmente podem evocar a "gruta de Vulcano". Pela nossa parte, prefe-
rimos termo mais neutro, considerando que se trata de um recanto de sala, fora do alcance da
frequência habitual - para não molestar os convivas.

(523]
Cada refeição, seja a do meio-dia seja a da tarde, é iniciada por uma lei-
tura, que diga respeito aos bons costumes, em moldes breves, para não
causar aborrecimento. De seguida, os mais velhos fazem os gastos de uma
conversa de bom-tom, sem ser triste nem sensaborona. Por sua parte, não
ocupam eles toda a refeição em longas tiradas, dando, pelo contrário,
ouvidos ao que os jovens têm a dizer de sua iniciativa e até os provocam de
propósito, com o fim de experimentarem as suas qualidades naturais de
carácter e de inteligência, ao partilharem aquele convívio em plena liber-
dade.
As refeições do meio-dia são bastante ligeiras, as do fim do dia são mais
largas, pois às primeiras segue-se o trabalho, às outras sucede-se o sono e o
descanso da noite, que é considerado de bom efeito para uma digestão que
seja saudável. Não há jantar que passe sem música58 e nunca falta uma
sobremesa sem alguma guloseima. Queimam-se aromas e espalham-se essên-
cias, nada poupam que sirva para tomar agradável o convívio. Efectiva-
mente, por seu natural, são levados a pensar que nenhum tipo de prazer é
de excluir, contanto que dele não provenha qualquer inconveniente.
Tais são os hábitos de convivência na cidade. No campo, porém, uma
vez que os habitantes vivem distantes uns dos outros, cada um faz a refeição
em sua casa: a cada família, de facto, nada falta para sua subsistência, tanto
mais que é dos campos que vêm os víveres com que se alimentam os da
cidade. /93/

As VIAGENS DOS U TOPIANOS

Quando alguém experimenta o desejo de visitar alguns dos amigos que


moram noutra cidade ou também de visitar alguma zona da sua região,
facilmente obtém autorização dos seus sifograntos e dos seus traníboros, a
não ser que haja algum dano emergente que o impeça. Facto é que se
prefere organizar a viagem em grupo; levam uma carta do príncipe que
serve para certificar a autorização da viagem e que fixa o dia do regresso59.
É-lhes dada uma carruagem com um serviçal público, encarregado de se
ocupar dos bois e de cuidar deles. Facto é que, salvo em caso de haver
mulheres no grupo, dispensam a carruagem, pois a consideram como um

59 Assinala M. Delcowt que possivelmente há aqui reminiscência da Vida de Licurgo, 27, 3.

[525]
fardo e um empecilho. Durante todo o percurso, apesar de nada levarem,
nada há que lhes possa fazer falta, pois em todo o lado estão em sua casa.
Se passam mais de um dia nalgum lugar, cada um, por seu lado, entrega-se
ao seu ofício e todos são tratados com a maior gentileza pelos artesãos da
mesma profissão. Se, por iniciativa própria, qualquer um sai para fora das
suas fronteiras, logo que é apanhado, em falta, sem a autorização do príncipe,
é encarcerado, por ser fugitivo, e é castigado duramente; se reincide, é
reduzido à servidão.
Se a alguém ocorre o desejo de passear pelos campos da sua cidade,
não lhe está isso vedado, contanto que tenha autorização do pai e haja
consentimento do cônjuge; no entanto, ao chegar a qualquer parte do
campo, não lhe será dada qualquer alimentação sem que antes do meio-dia
tenha dado satisfação à sua actividade (se é de tarde, sem que tenha
prestado o trabalho que aí se costuma fazer antes do jantar). Desde que
alguém se atenha a esta norma, tem liberdade para se movimentar dentro
dos limites da sua cidade. Efectivamente, não será menos útil à cidade do
que se tivesse permanecido nela.
Estais já a ver como em nenhuma parte há permissão para viver na
ociosidade, nada pode servir de pretexto para não trabalhar, não há tabernas
de vinho, não há vendas de cerveja, em lugar algum há lupanares, /94/ não
existem lugares de corrupção, não há lugares de encontros secretos, não há
lugares de passe, mas, cada um sente necessidade de ficar à mercê dos
olhares de todos, de se entregar ao trabalho costumado, ou de admitir uma
folga de trabalho que seja repouso honesto.
Esta forma de proceder tem como consequência inevitável a abun-
dância de todos os bens. Como estes são distribuídos equitativamente por
todos, seria de espantar que se encontrasse um único pobre ou um mendigo
que fosse.
Na reunião do senado deAmauroto60 (que tem lugar todos os anos, com
três delegados escolhidos por cada cidade, como referi), logo que se deter-
mina, por um lado, quais foram os excedentes de produção e quais as
regiões em que ocorreram e, por outro lado, aquelas em que os proventos

respondência com uma realidade suposta. Com a substituição do termo, Moro cria distância e toma
o lugar mais sugestivo.

[527)
foram deficitários, imediatamente o défice de uma é coberto pelo exce-
dente de outra, fazendo-o graciosamente, nada recebendo em troca da parte
de quem tem necessidade. Porém, se uma cidade dá a outra qualquer dos
seus bens, sem nada reclamar em troca, em caso de necessidade, é compen-
sada por uma outra à qual nada entregou. Assim, a ilha inteira é como se
fosse uma só família.
Por outro lado ainda, quando as necessidades da ilha estão asseguradas
(conclusão que não se tira senão depois de se haverem armazenado pro-
visões para dois anos, de modo a evitar qualquer eventualidade do ano
seguinte), então, exporta-se também para outras regiões grande quantidade
dos produtos excedentários: cereais, mel, lã, linho, madeira, grã, escarlata,
peles, cera, sebo, coiro e, a juntar a isto, também animais. Destes produtos
entregam uma sétima parte aos necessitados da região61 , vendendo o resto
com um lucro moderado. Este comércio permite-lhes importar não apenas
produtos que não têm na sua terra (de facto , isso quase não acontece senão
no que toca ao ferro), mas também grande quantidade de prata e de ouro. Esta
prática, estabelecida desde há muito tempo, /95/ permitiu acumular por
todo o lado uma clara abundância de metais preciosos, muito para além de
quanto se pudesse acreditar.Assim, agora, pouca importância tem para eles
vender à vista ou a prazo e têm a maior parte em créditos; todavia, ao
aceitá-los não os tomam nunca de privados, mas exigem títulos públicos da
cidade, com os respectivos documentos constituídos. A cidade, logo que
chega o dia de pagamento, exige o crédito aos devedores privados e
coloca-o no tesouro, ao mesmo tempo que desfruta dos juros do seu
dinheiro até ao dia em que este é reclamado pelos utopienses. Estes nunca
reclamam a totalidade desta soma, pois consideram que não seria justo
retirar a quem se serve daquilo que para eles não teria qualquer utilização.
Quanto ao mais, se a situação o exigir, como é quando há que emprestar
essa parte a outro povo, então, exigem-na, ou, pelo menos, quando há que
desencadear uma guerra, pois é só para esta situação que guardam em casa
todo esse tesouro que possuem e que lhes serve de apoio em casos
extremos ou imprevistos, sobretudo para contratar mercenários (que com
mais à-vontade os colocam a enfrentar os perigos do que os próprios

61 Não deixa de SW'}>reender que num sistema programado como o da Utopia continuem a existir
necessitados. Mais que incongruência está em causa o jogo das correspondências com a Distopia e a
definição de atitudes positivas, como é a atenção aos necessitados.

(529)
cidadãos), pagando-lhes salários fora do comum, muito embora saibam que
por uma soma de dinheiro os próprios inimigos muitas vezes se deixam
comprar e que ora à traição ora a bandeiras despregadas se entregam a gerar
conflitos entre eles.
Por tal motivo, guardam os utopienses um tesouro inestimável, não pro-
priamente como tesouro, mas de uma maneira que sinto autêntica relu-
tância em a referir, receando que as minhas palavras não tenham acolhi-
mento, pois tenho tantos mais motivos para o recear quanto mais ciente
estou de que, se não tivesse visto com os meus olhos, /96/ a custo eu
próprio acreditaria se fosse outro quem mo contasse. É, de facto , quase
inevitável que, quanto mais alguma coisa é estranha aos hábitos daqueles
que ouvem dela falar, tanto mais eles são levados a não conceder crédito,
muito embora um julgador prudente talvez fique menos surpreendido com
o facto de os seus modos de proceder serem diferentes dos nossos: no caso
do dinheiro e também no caso do ouro, a utilização tem mais a ver com a
mentalidade deles que com os nossos hábitos. Na realidade, visto que eles
não se servem de dinheiro62 , não o guardam senão para dele se servirem em
determinada eventualidade, que até pode acontecer nunca sobrevir.
Entretanto, o ouro e a prata (com que o dinheiro se fabrica) são guarda-
dos na sua posse com tal desapego que o seu valor não é considerado supe-
rior ao que a sua natureza lhes confere63. Aliás, quem não vê que estão
abaixo do ferro, sem o qual os mortais (santo Deus!) não conseguem viver
da mesma maneira que não podem passar sem o fogo e sem a água, ao
passo que ao ouro e à prata nenhuma utilidade lhes foi atribuída pela
natureza, pelo que facilmente passaríamos sem eles se não fosse a estul-
tice dos homens em estabelecer um valor ao que é coisa rara. Bem pelo
contrário, a natureza, que é a mãe mais indulgente, colocou ao nosso
alcance tudo o que ela tem de melhor, como é o ar, a água, a própria terra,
mas colocou o mais longe possível tudo o que só serve à vaidade e
nenhum proveito aduz64.

64 Cf.Cic.,Natura deornm,Il,60.

(531)
Assim é que se a esses metais o príncipe e o senado os encerrassem nal-
guma torre, poderia desconfiar-se (como acontece com alguma esperteza
saloia nada invulgar) de que estivessem a servir-se de alguma artimanha
para enganar o povo e a pretender algum aproveitamento a partir disso. Nou-
tra hipótese, se com esses metais mandassem fazer taças e outro género de
peças trabalhadas por artesãos, na primeira ocasião, haveriam de mandá-las
fundir de novo para pagarem o soldo aos militares ... Não custa assim a ver
que se alguma vez /97/ tivessem colocado neles a sua estima haveriam de
sofrer desgosto com a sua perda.
Para irem ao encontro destes problemas, imaginaram um estratagema,
tão consentâneo com a sua maneira de ser quanto ele está em desacordo
com a nossa (já que para nós o ouro é tão apreciado e fica arrecadado com
toda a diligência) e por isso não é crível senão para quem esteja bem
informado. De facto, enquanto os utopienses para beber e para comer se
servem de frágeis recipientes de barro e de vidro, sem dúvida elegantís-
simos, mas de matéria ordinária, é com o ouro e com a prata que fabricam,
um pouco por todo o lado, os urinóis e os vasos mais sórdidos, não apenas
para as mansões colectivas, mas também para as casas particulares65.Ainda
mais: com esses metais fazem também as correntes e os grossos grilhões
com que prendem os escravos castigados. Enfim, a todo aquele que comete
algum crime, para declarar a sua infâmia, penduram-lhe brincos de ouro nas
orelhas, colocam-lhes anéis de ouro nos dedos, passam-lhes colares de ouro
em torno do pescoço, atam-lhes até a cabeça com ouro. Assim, procuram
por todos os modos que entre eles o ouro e a prata sejam considerados
ignominiosos, por tal forma que se, noutros povos, é tão doloroso perderem
estes metais como se lhes arrancassem as vísceras do corpo, entre os
utopienses, se alguma vez lhes pedissem para os atirarem fora , não haveria
ninguém que por isso ficasse com a sensação de ter perdido um cêntimo
que fosse.
Quanto às pérolas, por sua vez, apanham-nas nas praias, como em deter-
minadas rochas não deixam de recolher diamantes e pedras preciosas66;

66 Cf. Ittnerarlum Portugallenstum, fl. XXXIII: Innumerl ptscatores utsunwr qut margaritas
multtpllces ptscanwr...

[533]
mas não fazem pesquisas para isso, limitando-se a polir com cuidado aquelas
que o acaso lhes faculta. Com elas adornam as crianças pequenas que nos
primeiros anos da sua vida se sentem orgulhosas de usarem tais adornos,
mas logo que sobem nos anos e se dão conta de que tais bagatelas não
servem senão para as crianças, /98/ não precisam de qualquer advertência
dos pais, porque, por vergonha, elas próprias se desfazem de tudo, de modo
similar ao que as nossas crianças, quando crescem, atiram fora com as
bugigangas, os penduricalhos e as bonecas67.
Assim, tão diferente de outros povos é a maneira de ser desta gente
como é diferente a sua mentalidade, que nunca tudo se tomou claro para
mim senão por ocasião de uma embaixada dos anemólios68.Vieram estes a
Amauroto, ao tempo em que eu aí me encontrava, e , como vinham para
tratar de negócios importantes, cada cidade enviou a recebê-los três
delegados. Ora, todos os embaixadores dos povos vizinhos que até então
tinham chegado e que tinham reparado na maneira de ser dos utopienses,
haviam percebido que andar com vestes sumptuosas não conferia honra
especial, que a seda era menosprezada e que até o ouro passava por coisa
infamante. Haviam-se eles acostumado a vir em trajes modestíssimos. Pelo
contrário, os anemólios, porque viviam bastante longe e tinham contactos
menos frequentes com os utopienses, tendo sido informados de que estes
vestiam todos da mesma maneira e sem requinte, supuseram que não
usavam melhores trajes porque os não tinham e, com mais vaidade que
sensatez, decidiram apresentar-se com um aparato próprio de deuses a fim
de encher de assombro os olhares dos pobres utopienses com o esplendor
dos seus trajes.Assim, deram entrada os três embaixadores com um séquito
de cem pessoas, todos vestidos de muitas cores, uma boa parte vestidos de
seda; os embaixadores, quanto a eles (porque pertenciam à fidalguia da sua
terra), traziam uma capa recamada de ouro, grandes colares e brincos
dourados, a que se acrescentavam pulseiras de ouro nas mãos, além de jóias

68 O nome parece formado, uma vez mais, sobre palavra grega: àvEµos, vento; este povo seria
vaidoso, leviano, inconstante - como o próprio nome de Hitlodeu cujas conotações são as de
•fanfarrão, fala-barato ". O poeta da Utopia, Anemólio, que teria composto a quadra transcrita no
início da edição da Utopia (e que é dado como sobrinho de Hitlodeu), tem assim um nome que,
uma vez mais, não aponta para qualificação positiva.

[535]
aplicadas no chapéu, onde refulgiam margaridas e gemas69; enfim, apre-
sentavam-se engalanados com toda a parafernália que na Utopia /99/ ou se
empregava no castigo dos escravos ou tinha marca infamante ou era dos
brinquedos para crianças.
Valia assim a pena ver como eles se pavoneavam quando comparavam
o luxo do seu trajar com a maneira simples como se vestiam os utopienses
(que se tinham espalhado pelas praças); pelo contrário, não era menos
aprazível observar como as suposições e expectativas os haviam rotun-
damente enganado e como estavam longe de suscitar a simpatia que haviam
considerado conseguir desta maneira. De facto, aos olhos de todos os
utopienses, exceptuando um pequeno número daqueles que por razões
especiais tinham tido oportunidade de visitar outros povos, todo aquele
aparato de gala parecia que melhor fora tê-lo evitado; cumprimentavam eles
os embaixadores como um inferior qualquer, em vez de os tratarem com
reverência, como seria próprio fazer a pessoas de alta posição; tomando
como serviç ais os e mbaixa d ores p or usarem cadeias de;: ouro, deixavam-nos
p assar sem lhes exprimirem qualquer manifestação de respeito. Mais ainda;
poder-se-ia ver como as crianças, que já tinham abandonado as gemas e as
margaridas, ao repararem que elas continuavam esp etadas nos barretes dos
embaixadores, chamavam a atenção das mães e batiam-lhes de lado, cla-
mando: - Olha, mãe, aquele pantomineiro, já tão grande, e a usar ainda
aquelas bugigangas, como se fosse pequenino! A mãe, por seu lado, em ar
sério, dizia-lhe: - Cala-te, filho; creio que é algum dos bobos dos embai-
xadores.
Havia quem troçava das cadeias de ouro, pois não serviam para nada por
serem tão frágeis que qualquer serviçal as quebraria com toda a facilidade
e por estarem tão lassas que quando apetecesse a alguém poderia sacudi-las
e em liberdade fugir para onde quer que fosse.
A verdade é que os embaixadores, depois de ali terem passado aquele
dia e o seguinte, se aperceberam que tamanha exuberância de ouro era
causa de tão grande menosprezo e reconheciam que o repúdio não era
menor do que a honra que tinham na sua terra; / 100/ viam até que as
cadeias e os grilhões de um único serviçal que tivesse tentado fugir

69 Moro inspira-se provavelmente no Ittnerartum Portugallenstum, fls. XXXXIII", LXXXIII";


cf. Luís de Matos, L'expanston ... , p. 419. O episódio dos embaixadores pode ter-se inspirado em
Luciano,A sabedoria de Ntgrlno, onde se retrata alguém que se passeia por Atenas carregado de jóias
para ver se passa por homem feliz, mas é tratado por louco.

(537)
pesavam mais em ouro e prata que todos os adornos dos três embaixadores
juntos; desfazendo a plumagem, depunham todo o aparato com que se haviam
pavoneado com tanto desaforo e sentiam-se envergonhados, sobretudo
quando, depois de falarem mais familiarmente com os utopienses, ficaram a
conhecer os seus costumes e a sua maneira de pensar: admiravam-se eles
mormente de que haja alguém entre os mortais que se divirta com o brilho
incerto de uma gema minúscula ou de uma pedrinha quando ele próprio
tem possibilidade de contemplar uma estrela qualquer ou o próprio sol;
surpreende-os que haja alguém que seja tão insano que julgue o grau de
nobreza pela delicadeza do fio de lã, quando a verdade é que esta (por mais
delicado que seja o seu fio) andou antes no corpo da ovelha e não foi
entretanto outra coisa senão parte da ovelha70.
Espanta-os também que, sendo o ouro, por própria natureza, tão pouco
útil, tenha adquirido, hoje e em todo o lado, tanto valor, que o próprio
homem, por quem e para cuja utilização esse valor foi constituído, seja tido
em menor estima que o ouro em si, de tal maneira que um bronco, que não
tem mais inteligência que um cepo, nem menos descaramento que um
tonto, acaba, apesar de tudo, por ver submetida a si muita gente, mesmo
sapiente e de boa nota, apenas por uma razão, a de lhe ter cabido um
pecúlio de moedas de ouro, o qual, por um capricho da fortuna ou por
qualquer artimanha71 das leis (que não menos do que a fortuna balanceia
entre o cimo e o fundo), pode passar das mãos de um proprietário de
origem para um dos mais abjectos trapaceiros de toda a sua família e
ninguém se admira de ver que, pouco tempo depois, o patrão fica a servir o
seu serviçal, como se fosse um apêndice e um aditamento d~ moeda. /101/
Uma outra coisa os espanta e eles detestam: a insensatez daqueles que,
não devendo a ricos nem lhes estando sujeitos em nada, sem outro motivo
que o de eles serem ricos, lhes prestam honras, que só faltava fossem divi-
nas, muito embora sabendo que eles são tão sórdidos como gananciosos,
para terem um pecúlio tão seguro e certo de dinheiro, e que , enquanto eles
forem vivos, nem uma única moedinha, alguma vez, lhes virá desse lado .
Estas ideias e outras semelhantes receberam-nas eles, em parte, por
educação (formados que foram numa organização em que as instituições

71 M. Delcourt, reconhecendo que stropha tem em latim o valor de "manha", prefere considerar
que Moro lhe terá dado o sentido grego de "evolução, reviravolta";não nos parece que seja assim, pois
o sentido primitivo é adequado ao contexto.

[539]
estão bem longe de tais géneros de estultice), e em parte por reflexão e por
leitura nos livros. De facto, mesmo que não haja muitos que sejam dis-
pensados do trabalho físico para se dedicarem apenas à reflexão (como são
os que desde os primeiros anos de vida são reconhecidos com sendo
dotados de nobreza de carácter e de inteligência superior além de terem
inclinação para as artes liberais), mesmo assim, todas as crianças são
iniciadas nas letras72, e uma larga p ercentagem da população, homens e
mulheres, ao longo de toda a vida, nas horas que, como dissemos, ficam
isentas de trabalho manual, dedicam-se à letras.
As ciências aprendem-nas na própria língua73: efectivamente não carece
ela de palavras para isso, nem lhe falta musicalidade, nem tem concorrência
de outra para traduzir com fidelidade os estados de espírito, além de que
(salvo algumas variantes generalizadas, umas aqui, outras ali) é quase uni-
forme na distribuição que se documenta no largo espaço daquele mundo.
De todos os filósofos cujos nomes são célebres nesta parte do mundo
nosso conhecido, antes de nós lá termos aportado, nem sequer a reputação
de qualquer um deles lá chegara; no entanto, na música, na dialéctica, na
aritmética e na geometria, há coincidência com o que os nossos autores
antigos inventaram. Quanto ao mais,/102/ se em quase todas as coisas estão
em paridade com os nossos autores antigos, a verdade é que estão muito
longe em desigualdade quanto às descobertas dos dialécticos mais recentes.
Com efeito , não inventaram ne nhuma das regras de restrição, de
amplificação, de suposição, elaboradas com toda a perspicácia na Lógica
Menor que os nossos alunos aprendem entre nós. No que se refere às
segundas intenções, eles são de tal modo incapazes de as perceber que
mesmo quanto ao homem universal, como lhe chamam (embora, como se
sabe, seja um autêntico colosso e maior que qualquer gigante e até possa
ser apontado por nós com o dedo) ninguém de entre eles consegue atinar

73 O prestígio da língua vernácula acentuara-se desde há muito, tendo Dante, no De vulgari


eloquentta, reclamado para ela a mesma dignidade literária que tinha a língua de cultura, o latim.
O seu protagonismo nas ciências vem obViamente do facto de a língua dos utopianos se assemelhar
ao grego, língua que declaradamente se apresentava como veículo de saber científico, mais que o
latim, como o próprio Moro declara. Facto é que também no século XVI as línguas nacionais ganham
terreno no domínio das ciências: tenha-se em conta o caso do português (e do castelhano) utilizado
por Pedro Nunes, Garcia de Orta, entre outros.

[541)
com ele74. Em compensação, são de uma perícia enorme quanto ao curso
dos astros e ao movimento dos corpos celestes; mais que isso, com grande
engenho conceberam eles instrumentos com diversos aparatos que lhes
permitem captar com muita exactidão o movimento e a posição do Sol, da
Lua e de outros astros visíveis dentro do seu horizonte.
Quanto a conjunção ou oposição dos planetas e a toda essa impostura
que é a adivinhação pelos astros, nem sequer sonham com isso75. Quanto à
chuva, aos ventos, e variações de tempos, sabem prevê-los pela observação
de alguns sinais registados por longa experiência. Porém, quanto às causas
de todos esses fenómenos e quanto ao fluxo do mar e à sua salinidade, e,
em geral, quanto à origem e natureza do céu e do mundo, em parte,
coincidem eles com as doutrinas expostas pelos nossos homens de ciência
antigos, em parte discordam, como, aliás, acontece com estes entre si, de tal
modo que também eles, quando aduzem novas explicações das coisas,
diferem de todos os anteriores e nem eles próprios conseguem, por seu
lado, pôr-se de acordo entre si.
Em matéria de filosofia moral, os seus debates centram-se sobre os
mesmos problemas que entre nós: /103/ as suas questões dizem respeito
aos bens da alma e do corpo assim como dos bens exteriores ou também se
o termo "bem" convém a todos eles ou apenas aos dotes da alma76.
Discutem sobre a virtude e sobre o prazer; mas primária e suprema é a
questão sobre a felicidade humana: em que é que se situa, se numa única
coisa se em muitas. Ora, quanto a isto, parecem mais propensos do que seria

75 Note-se a diferença que há entre aceitar a astronomia e debcar·se levar pelas "imposturas" da
astrologia q ue explora as "afinidades" ou correlações entre os astros e os humanos. O interesse pela
astronomia era bem evidente nos tempos do Humanismo: em Ferrara, por exemplo, na segunda
metade do século xv e início do século XV1 havia mestres destas matérias no Estudo Universitário,
como Georg von Peurbach, Giovanni Bianchini; a cone albergava astrónomos de renome, como
Regiomontano - é como discípulo deste astrónomo que Martin Behaim ganha audiência em Portugal
(cf. a nossa introdução a Diogo Gomes de Sintra, Descobrimento primeiro da Guiné; Lisboa, Colibri,
2002). O próprio Moro subia ao terraço de sua casa para contemplar os astros durante a noite.
76 Bens de três categorias: cf. Platão, Leg. III , 697b;V, 743e;Aristóteles, Etbic. I, 8, 2; Poltt. VII,
l , 3·4.

[543]
razoável para a corrente que defende o prazer77,enquanto procuram definir
a felicidade humana no seu todo ou na parte principal. Coisa mais de
admírar é que procuram o patrocínio da religião para esta doutrina tão
delicada (muito embora essa religião seja grave e severa, senão até um
pouco triste e rígida). Nunca eles discutem sobre o problema da felicidade
sem tirarem alguns princípios da religião e sem os associarem com a filo-
sofia que se serve do raciocínio 78, pois sem os primeiros consideram que a
razão só por si é falha e sem forças para indagar a verdadeira felicidade.
Os princípios são do tipo seguinte: a alma é imortal79 e por benevolência
de Deus foi feita para a felicidade80; depois desta vida, à virtude e às boas
acções estão destinados prémios, aos crimes estão destinados castigos.
Muito embora estes princípios pertençam à religião, pensam eles, no
entanto, que é pela razão que se é levado a acreditar neles e a dar-lhes
assentimento, por tal forma que, se forem subtraídos, declaram eles sem
hesitação, ninguém haverá tão basbaque81 que não se aperceba que tem d e,
por todos os meios ao seu alcance, procurar o prazer. Uma coisa, porém, se

78 A religião aparece como uma forma racionalizada da vida humana e associada à filosofia em
forma d e especulação elevada. A aceitação das categorias religiosas estabelece contraste com os
princípios epicuristaS: não acreditavam na imortalidade da alma, a divindade está distante e em nada
contribui para a felicídade do homem. O Bem absoluto aparece aq ui como a Felicidade suprema a
que o homem é destinado.
79 Salienta Marie Delcourt, op. ctt., ad toe., que, em 1514, o Concílio de Latrão tinha suscitado a
questão de a razão humana, sem necessidade de se socorrer da Revelação, podia declarar a imortali-
dade da alma; Moro é favorável, mas nem todos os intelectuais do seu tempo assím o consideraram.
80 A doutrina aqui exposta coincide com a de Tomás de Aquino: "a felicidade (beatitude)
compreende dois elementos, que são visão de Deus e deleitação de fruição" - Sum. Theol. 1.•, 2.', Q.
3.'. 4.
8 1 Evitamos traduzir "stupidus" pela forma mais imediatamente próxima, em português
(estúpido), pois o sentido de base em latim não é esse, mas sim "incapaz de se mover", e daí"embas-
bacado, basbaque•.

[545]
deve acautelar: que um prazer menor não impeça um maior ou que não se
deixe levar por um que, por sua vez, em retaliação, lhe provoque sofri-
mento. Efectivamente, seguir o caminho árduo e penoso da virtude, e não
somente afastar-se dos deleites da vida, mas também aceitar voluntaria-
mente o sofrimento, do qual não se espera qualquer fruto (que fruto se
poderá realmente colher, se depois da morte /104/ nada se consegue,
quando atravessamos a vida sem satisfações, ou seja, em sofrimento?) dizem
eles, com razão, que é uma coisa das mais incompreensíveis. No entanto,
consideram que a felicidade não se situa num prazer qualquer, mas apenas
no prazer bom e honesto. Efectivamente, é para esta felicidade, como sumo
bem82, que a nossa natureza é conduzida pela virtude e é a ela que a
corrente contrária83 atribui a felicidade.
É verdade que eles definem a virtude como sendo viver segundo a
natureza, que o mesmo é dizer que para isso nós fomos ordenados por
Deus. Ora, deixa-se conduzir pela natureza todo aquele que no desejar ou
no repudiar as coisas obedece à razão.A razão, por seu lado, antes de mais
e em primeiro lugar, inflama os homens ao amor e à veneração da divina
majestade, a quem nós devemos tanto aquilo que somos como a nossa
aptidão para a felicidade; em segundo lugar, ela convida-nos e impulsiona-
-nos a levarmos uma vida com o mínimo de ansiedade e com o máximo de
satisfação, e, por afinidade de natureza, a prestarmos assistência aos outros
todos para alcançarem o mesmo; nunca, efectivamente, terá havido seguidor
tão severo e tão estrito da virtude e inimigo do prazer que aponte aos
outros trabalhos, vigílias e austeridades, sem ao mesmo tempo ordenar que
se dediquem a aliviar a pobreza e os sofrimentos dos outros; ele mandará

83 Mais uma vez se justifica recorrer à anãlise de A. Prévost, op. ctt. , p. 104. A evocação das duas
coerentes em oposição é feita em Mundus Novus, de Vespúcio, Saint Dié, 1507, fl. 3v: vivunt secun-
dum naturam et epycurl potius dfct possunt quam stoict. Segundo os estóicos, a virtude é a subli-
mação da natureza, ou esta elevada ao grau supremo, em processo conduzido pela razão - se não
posto em prática, pelo menos reconhecido coroo ideal: cf. Cic. De /eg. I, 8, 24; De finibus V, 38; Sen.,
De vita beata, 18, l . Na base está o conceito de Aristóteles, Ética a Nic6maco, U, 6, 1O: "virtude é a
actividade do homem conforme com a natureza, tomada hábito dinâmico e levada gradualmente ao
seu estado mais elevado• .Trata-se de hannonizar a razão e a natureza, integrando num todo as tendên-
cias ou paixões que o homem experimenta e que deve valorizar harmoniosamente: a primeira dessas
paixões é o prazer - seja como voluptas, prazer dos sentidos, seja como tucundttas, prazer de viver,
seja como gaudium, alegria de coração, seja como felicitas, prazer da alma, seja como beatituda,
satisfação perfeita.

[547]
proceder com força varonil e pensará mesmo que, em nome de huma-
rudade, merece louvor o facto de alguém prestar ajuda e consolação a outro,
sobretudo (já que nenhuma outra virtude é mais própria do homem)
quando se trata de mitigar o sofrimento e aliviar a tristeza, devolvendo a
alguém a alegria, ou seja, a satisfação de viver. Porque é que a natureza não
haveria de instigar cada um a fazer o mesmo em proveito de si próprio?
/105/ Ou será que é mal uma vida agradável, ou seja, prazenteira? Se assim
fosse, não só não se deveria ajudar ninguém a tê-la, mas também deveríamos
tanto quanto possível evitá-la por ser prejudicial e mortífera para todos.
Ou se não só é lícito agenciá-la para outros como boa, mas até se deve
fazê-lo, porque não começar por si mesmo? Importa não ser menos
benevolente para si do que para os outros.. . Efectivamente, quando a
natureza nos convida a que sejamos bons para os outros, ela mesma não iria
mandar depois que fôssemos cruéis e falhos de clemência para nós
próprios. É, pois, dizem eles, uma vida agradável, ou seja, o prazer, que a
natureza nos prescreve como fim de todas as nossas actividades; viver
segundo este preceito da natureza, tal é a sua definição de virtude.
Ora, já que a natureza predispõe todos os mortais a prestarem-se apoio
mútuo a fün de obtermos uma vida de maior satisfação (coisa que certa-
mente ela faz com boas razões, pois, por mais elevado que alguém se
encontre na condição humana, para sozinho atrair a si o cuidado da natu-
reza, que a todos sem excepção presta os seus favores, e a todos os que são
da mesma espécie ela abraça solidariamente) é de admirar que ela nos
mande uma e muitas vezes tomar cuidado em não procurarmos tanto as
nossas vantagens que causemos prejuízos aos outros.
Consideram, pois, que há que respeitar não só os contratos celebrados
entre privados, mas também as leis públicas que por comum acordo foram
aprovadas, tenham elas sido promulgadas segundo a justiça por um príncipe
ou tenha sido o povo a fazê-lo, contanto que não seja sob a opressão de um
tirano nem devido a processo fraudulento, desde que e steja em causa a
repartição de facilidades de vida, que o mesmo é dizer, matéria de prazer.
Cuidar do interesse de cada um, sem violar essa lei, é sensatez; cuidar além
disso do interesse público é próprio da solidariedade84. Mas apressar-se a

84 Preferimos este termo para traduzir ptetas, conceito que envolve, na cultura tradicional, o
respeito e a dedicação do homem nas suas relações para com todas as instâncias da e.x:lstência -
divinas, humanas, naturais.

[549]
impedir o prazer alheio para garantir o seu é , em contrapartida, /106! uma
iniquidade; pelo contrário, privar-se a si mesmo de alguma coisa, para o
juntar ao de outros é, em fim de contas, prática de humanidade e de benig-
nidade, que, nunca como nesse gesto, tanto compensa quanto dispensa85.
De facto , há a compensação da reciprocidade; além disso, a própria cons-
ciência de ter agido bem e a recordação do afecto e do bem-querer daque-
les a quem se prestou um beneficio trazem ao espírito maior prazer do que
teria o corpo com aquilo que lhe foi retirado. Enfim (e aqui a religião
facilmente encontrará adesão em espíritos de bom assentimento86), Deus
compensa com gozo imenso, que nunca terá fim87, a troca de um prazer
exíguo e sem duração. Ê desta maneira que, depois de terem analisado
cuidadosamente e sopesado a matéria, consideram que todas as nossas
acções, e nelas as próprias virtudes, têm no ponto de mira o prazer como
seu objectivo e felicidade88.
Designam por prazer todo o movimento ou todo o estado de corpo ou
de alma nos quais o homem, guiado pela natureza, se delicia em viver89. Não
é sem razão que acrescentam "apetência natural". Efectivamente, como tudo
o que é agradável por natureza, e para o qual tendemos (sem causar
injustiças, sem perder um prazer maior, sem provocar um excesso de
trabalho) é o que busca não apenas qualquer dos sentidos, mas também a
recta razão, igualmente os mortais, em exercício de fantasia (como se esti-
vesse nas suas mãos poder transformar a realidade como mudam de pala-
vra), imaginam prazeres que ultrapassam a natureza.
A esse respeito declaram os utopienses que tudo isso nada tem a ver
com a felicidade, antes, na maior parte das vezes, lhe serve de empecilho, ou
porque, uma vez assentes, essas ilusões do prazer não deixam lugar para os
deleites autênticos e verdadeiros, uma vez que daí por diante ocupam todo
o espírito. Existe, efectivamente, uma quantidade enorme de coisas que, p or
sua natureza, absolutamente nada têm de agradável; /107/ pelo con trário,
uma boa parte delas estão cheias de amargor e muitas vezes de perversidade

87 A reflexão moral é sugerida por inspiração bíblica; cf. Rom. 8,18; II Cor. 4,17. O gozo é tradi·
cionalmente apontado como um dos frutos do Espínto Santo.
88 Segundo Diógenes l.aércio (X, 138), Epicuro afirmava que "escolhemos as actividades em
função do prazer e não por sí mesmas•.
89 Cf. Platão, Philebus, 36c-52b;Aristóteles,Ethic. Nichom. , 1,8, 2; li, 5, l : hã prazeres verdadeiros
e falsos na medida que têm correspondência com a natureza.

(551]
ou também de atractivos para prazeres ilícitos: não só são tomadas por
prazeres supremos mas também são contadas entre as principais razões de
viver.
Neste género de prazeres adulterados, colocam eles os que já ante-
riormente recordei: todos aqueles que quanto melhor toga têm tanto
melhores se consideram. Nwna coisa dessas o erro é duplo: efectivamente,
não estão menos enganados por avaliarem a sua toga acima do que vale
como também por ela se avaliarem a si mesmos. Realmente, se tivermos em
vista a roupa que vestem, porque é que a lã de fio mais fino havia de ser
superior à mais grossa? Ora, como se fosse por natureza e não por erro que
dão nas vistas, esses homens pavoneiam-se todos e acreditam que daí lhes
vem wn valor não pequeno e por isso, como se fosse de direito próprio, por
uma toga mais elegante reclamam uma honra, que não ousariam esperar se
vestissem mais modestamente e ficam indignados quando se passa ao pé
deles sem lhes prestar atenção especial.
Ora não será também prova de igual insipiência fixar-se em honrarias
inúteis que nada aproveitam? De facto, que prazer autêntico e verdadeiro
aduz alguém que tenha a cabeça descoberta ou curve os joelhos? Será que
isso contribui para curar a dor de joelhos de alguém, ou será que serve para
aliviar wna dor de cabeça?
Nesta fantasia de prazer de fantasia é de admirar que, por insensatez mal
percebida, figurem aqueles que, por pensarem em nobilitações, se blasonam
e ufanam pelo facto de lhes ter calhado nascer de antepassados cuja
estirpe é tida como sendo longa e rica (mesmo hoje a nobreza não tem
outros títulos); se a atenção recai sobretudo em bens imobiliários, não é
menos o que os fidalgos ostentam em qualquer troféu, mesmo que os seus
antepassados nada disso lhes tenham deixado /108/ ou que eles próprios
tenham penhorado o que eles lhes deixaram.
A estes juntam os utopienses aqueles que, como disse, se deixam cativar
por gemas e pedrinhas, como se estas se tivessem tornado deuses,
particularmente quando conseguem alguma fora do vulgar, em especial do
género que no seu momento e na sua terra é considerada de maior valor.
Acontece, de facto, que nem em todos os povos nem em todos os tempos
os mesmos exemplares têm o mesmo preço. Mas não compram qualquer
unidade se não estiver limpa de ouro ou devidamente lapidada; mais, para
isso, têm de ter vendedor juramentado e mediante caução - tão preo-
cupados estão em assegurar que a gema é verdadeira e que a pedra também
o é, não aconteça que os seus olhos tomem uma pedra falsa por uma

(553]
verdadeira. Ora, para quem olha, por que razão havia de trazer menos agrado
o pechisbeque que a vista não distingue do autêntico90? Uma e outra coisa
devem valer o mesmo, não valer menos (santo Deus!) para qualquer um do
que para um cego!
Que dizer daqueles que acumulam riquezas supérfluas, não para se
servirem do que acumulam, mas só para se deleitarem na sua contem-
plação? Será que experimentam prazer verdadeiro ou preferem divertir-se
com a ilusão de um prazer? Ou que dizer daqueles que, por outro vício,
escondem o ouro de que nunca se hão-de servir, talvez até nem hão-de ver
mais e, com a preocupação de não o perderem, acabam por perdê-lo?
Depositar o ouro na terra, que coisa é senão retirá-lo do uso pessoal e talvez
até do uso de toda a gente? No entanto, há quem, depois de esconder o
tesouro, se deixa tomar pela alegria como se o espírito ficasse em segurança.
Seja que alguém subtrai alguma coisa, por furto; ignorando a existência
desse furto , o dono, dez anos depois, morre: durante esse período de dez
anos em que viveu depois de lhe terem roubado o dinheiro, teve alguma
importância que esse dinheiro estivesse subtraído ou a salvo? Numa e
noutra situação o proveito obtido seria o mesmo para o proprietário9 1 !. ..
A estas alegrias tontas juntam eles a dos praticantes de jogos de azar (de
cuja insensatez ouviram falar, /109/ mas não conhecem de experiência),
além da dos caçadores e dos passarinheiros. Que prazer pode existir,
perguntam, em lançar dados num tabuleiro? Se isso se faz uma série de
vezes para daí colher satisfação, será que é pela repetição dessa prática que
se toma possível despertar algum gozo? Por outra parte, não será mais
incómodo que alívio ter que ouvir os cães a ladrar e até a uivar? Ou haverá
maior sensação de prazer quando um cão persegue uma lebre do que
quando corre atrás de outro cão? Na realidade, trata-se da mesma coisa, se é
que é o correr que desencadeia o prazer! Pelo contrário, se é a espera do
sangue e a expectativa da dentada que retêm suspenso o olhar, deve mover
sobretudo à compaixão observar que um lebracho é desfeito por um cão,
um fraco por outro mais forte, enfim, um ser inofensivo por outro que é
cruel. Por isso os utopienses repudiam esta prática da caça, como coisa

91 Moro tem em mente as situações ocorridas durante o tempo de guerra, em que os ricos se
mostraram avarentos, escondendo as suas coisas, sem delas tirarem proveito mesmo para eles
próprios.

(555)
indigna para homens livres, remetendo-a para carniceiros (oficio que entre-
garam, como dissemos, nas mãos de serviçais). De facto, consideram que a
caça é a parte mais degradada desse oficio de talhante, quando comparada com
outras acções mais úteis e mais honrosas que são de muito maior proveito;
aliás, os talhantes não matam os animais senão por necessidade, ao passo que
o caçador mata e destroça wn animalito só por wn pouco de prazer.
Consideram eles que é indigno o anseio de assistir à matança dos animais e
que ou brota de wna sensibilidade que roça pela crueldade ou procede de
prática insofrida de prazer tão desenfreado que acaba em crueldade92.
Assim, pois, a estes desvarios e outros do mesmo tipo (são, de facto,
bastantes), embora o comwn dos mortais os tome como prazer, eles, por sua
parte, e dado que a natureza nada lhes incutiu de agradável, sustentam com
todas as veras /I I 0/ que nada têm a ver com um verdadeiro prazer, pois, por
mais que, de ordinário, eles cumulem de deleite as sensações que daí
derivam (o que parece corresponder a prazer), eles não desistem da sua
opinião, fundados em que não é a realidade do divertimento que provoca o
deleite, mas um hábito depravado deles próprios, tal e qual como quando o
amargo é acolhido como doce, do mesmo modo que as mulheres grá-
vidas, com gosto alterado, julgam que o pez e o sebo são mel do mais doce .
No entanto, se um juízo de alguém, alterado por doença ou costume, não é
capaz de modificar a natureza, como não o faz noutras coisas, também não
o consegue no plano do prazer!
Nos prazeres que reconhecem como autênticos, os utopianos assinalam
diversas espécies: uns atribuem-nos à alma, outros ao corpo. À alma asso-
ciam o entendimento e o gozo que a contemplação da verdade faz nascer93;
a isso junta-se a recordação agradável de uma vida bem passada e a
esperança sem vacilação de um bem futuro94. Quanto ao prazer do corpo,
repartem-no por dois tipos. O primeiro d eles será aquele que inunda os
sentidos de uma acalmia de plenitude - que, aliás, faz parte da restauração
das forças que a combustão interna dos órgãos vai fazendo esmorecer; tal

92 A condenação da caça é feita a partir do contraste entre a destruição da vida e o prazer pro-
curado, pelos efeitos que lhe estão associados, nomeadamente, a insensibilidade que provoca; a caça
era também uma das actiVidades ligadas a preparação para a guerra, pelo que, condenada a guerra,
essas actiVidades não poderiam deixar de sê-lo também.
93 Cf.Aristóteles, Eth. Nic. 10, 7, 2, 1177a:"a filosofia ou a busca da sabedoria acarreta prazeres
de pureza maravilhosa e permanência e é razoável supor que o gozo do conhecimento é ainda mais
agradável do que a sua procura•.
94 Cf. Cícero. Fin. 1, 17, 57; Platão, Rep. l , 33oe-331a;Aristóteles,Etb. Ntc. 9, 4, 5, l 166a.

(557]
restauração é conseguida pela digestão da ·comida e da bebida, ao mesmo
tempo, aliás, que se vai purgando o excedente que o corpo não necessita -
fimção que ocorre seja quando aliviamos os intestinos dos excrementos seja
no acto de procriação, seja também quando apaziguamos o prurido de uma
parte do corpo, coçando ou friccionando. Por vezes, porém, o prazer surge
sem que o corpo receba seja o que for daquilo que os seus membros
gostariam ou sem que lhe desapareça o que lhes causa incómodo: trata-se de
um prazer que, por uma espécie de força oculta, mas perceptível, faz vibrar e
afaga os nossos sentidos e os cativa, /111/ como é o que brota da música.
Quanto a um segundo tipo de prazeres fisicos, querem eles que sejam os
que consistem em estado de quietação sem perturbações somáticas, isto é , em
gozar de saúde sem entraves de doença; na realidade, se não houver que
enfrentar a dor, o bem-estar é já de si uma satisfação, mesmo que a vida
decorra sem ocasionar um prazer vindo de fora. Embora, efectivamente, a
saúde se manifeste menos acentuadamente que o apetite insaciável de beber
e de comer e produza uma impressão muito menor sobre os sentidos e apesar
de muitos a considerarem prazer supremo, os utopienses são quase unânimes
em declarar que ela aduz grande prazer e que é como que a base sobre que
assentam todos os outros, pois, por si só, toma agradável e apetecível a
existência humana e sem ela não há lugar em parte alguma para qualquer tipo
de prazer, já que viver simplesmente sem sofrimento, se não houver saúde,
segundo dizem, haverá certamente torpor, não prazer.
Há muito tempo que na Utopia foi banida a opinião daqueles que defen-
diam não ser de considerar como prazer uma saúde estável e inalterada; o
debate foi travado com grande ardor, e a argumentação baseava-se no facto de
que para se sentir prazer tem ele de ser suscitado do exterior95. Em contrapar-
tida, agora são quase unânimes em afirmar que entre os prazeres principais
está a saúde96. Efectivamente, dizem, se na doença há dor, que é inimiga

96 A exposição que se segue, além de utilizar o recurso retórico da prosopopeia (a saúde perso-
nificada), serve-se do quadro da luta (traço tradicional da Virtude contra o Vício - já em Pródico de
Céos) e segue uma linha de rumo que admite uma série de teorias hedonistas: a saúde, não obstante
a complexidade que envolve, implica a sensação de bem-estar; implica igualmente equilíbrio fisio-
lógico que só se consegue de forma activa (em luta contra a fome) - teoria de Aristipo (435-350),
inspirador dos cirenaicos, que fazia do movimento um dos elementos fundamentais do prazer; cf.
Diógenes Laércio, n, 8, 50; além disso, Moro toma em conta que a saúde é o único prazer a que o
corpo verdadeiramente atende e por que espera.

[559)
implacável do prazer como para a saúde o é a doença, porque é que inver-
samente não se há-de considerar que o prazer está intimamente relacionado
com uma saúde tranquila? Pouco importa, consideram eles, que, em tudo
isto, a doença seja dor ou que se diga que a dor anda associada à doença.
De facto, as duas maneiras de ver batem no mesmo, seja que saúde e
prazer se identifiquem, seja que aquela dê necessariamente origem ao
prazer, como acontece com o calor que se gera necessariamente do fogo;
/112/ nos dois casos realmente verifica-se que, quando há saúde inalterada,
o prazer não pode deixar também de existir. Além disso, perguntam,
enquanto comemos, que acontece senão que a saúde, que começara a
declinar, fazendo aliança com o alimento, entra em luta contra a fome que
se faz sentir? À medida que a saúde ganha forças, regressa-se ao vigor
costumado e este faz surgir o prazer que é o que experimentamos quando
tomamos alimento97. Será que a saúde que se satisfaz no conflito não
haveria de se sentir satisfeita após ter conseguido uma vitória? Ou, depois
de se ter empenhado na luta e de ter obtido êxito, logo de seguida, haveria
de cair em torpor? Será que nem sequer haveria de conhecer o que é bom
para si e deixar de o abraçar? De facto, que tenha sido afirmado que a saúde
não se faz sentir é considerado pelos utopienses como ficando muito longe
da verdade. Quem é que, insistem, em estado de vigília, não se apercebe
quando está de saúde a não ser quando esta lhe falta? Quem é que vive de
tal modo limitado por estado de torpor ou de letargia que não confesse para
si mesmo que a saúde é aprazível e deleitosa? Ora, o deleite que é senão um
dos nomes do prazer?
Abraçam os utopienses, principalmente e em primeiro lugar, os prazeres
do espírito (consideram-nos, efectivamente, acima de todos, no topo) e
defendem que eles derivam sobretudo do exercício da virtude e da
consciência de uma vida de bem. Dos prazeres que o corpo solicita, cabe a
palma à saúde98, pois têm bem presente que a satisfação de comer e de
beber e tudo aquilo que corresponde a um plano de gozo da vida deve ser
posto como finalidade mas em razão da saúde. Tais prazeres, efectivamente,
não são fonte de satisfação por si mesmos, mas apenas na medida em que
opõem resistência aos ataques matreiros da doença, /113/ e por isso o
homem de bem-pensar prefere esconjurar as doenças a optar por remédios,

98 Cf. Platão, Rep. 2, 357c.

[561)
dar luta à dor a andar em busca de paliativos, do mesmo modo que prefere
privar-se de qualquer espécie de prazer a ter de reparar os estragos
causados. Se alguém julga que este tipo de prazeres lhe é necessário para a
felicidade, confesse que o cúmulo da felicidade deveria, em última instância,
colocar-se num género de vida em que esta consistisse em andar
permanentemente com fome, sede, prurido, para haver como contrapartida
comer, beber, coçar-se ... Mas quem não veria que isso seria não só ignóbil,
mas também digno de dó? Estes prazeres, de verdade, são de todos os mais
baixos, os menos autênticos, aqueles nos quais nunca se reflecte a não ser
quando vêm acompanhados das deficiências contrárias99, como seja,
quando o prazer da comida está relacionado com a fome, e isso em situação
de desequilíbrio, pois tanto mais intensa é a dor quanto mais ela é
prolongada; mais que isso, até surge antes do prazer e só se extingue quando
o prazer também acaba.
Pensam, pois, os utopienses que a prazeres deste género não há que dar
grande atenção senão quando a necessidade se imponhalOO. No entanto,
sentem-se felizes com eles e agradecem à madre natura pela sua prodi-
galidade, já que, para levar os seus filhos a realizarem tarefas que há que
cumprir com frequência, os atrai com os seus mais agradáveis favores.
Efectivamente quanto haveria que viver aborrecido se, como acontece com
as outras enfermidades que sobre nós recaem mais raramente, também
tivéssemos de combater o incómodo da fome e da sede diárias com antí-
dotos amargos da farmacopeia!
Quanto à beleza, à robustez, à destreza, os utopienses cultivam-nas de
bom-grado como verdadeiros dons da natureza que são também aprazíveis.
Melhor ainda, como condimentos que tomam a vida aprazível, /114/
buscam prazeres que entram pelos ouvidos, pelos olhos, pelas narinas, que
a natureza quis que fossem próprios e peculiares do homem (de facto,
nenhuma outra espécie de animais se detém a olhar para a elegância e para
a beleza, ou se deixa impressionar pelo encanto dos odores, a não ser que

100 A. Prévost comenta que Platão distinguia dois tipos de prazer: necessãrios e não necessãrios;
não é possível evitar os primeiros e a sua satisfação leva a um fim útil (assim, o que acompanha a
comida é necessãrio, pois, de contrãrio, morre-se); os outros são dispensáveis (como fosse a alimen-
tação requintada), que se podem dispensar sem efeito nocivo algum. Cf. Platão, Rep.VIII, 12, 559 a-<:.
Segundo Aristóteles (Etbtca, X, 6, 117 b 2-3; VII, 6, 1147 b 24) é necessãrio o prazer que é útil a outra
coisa que não o pode dispensar.

(563)
seja para distinguir alimentos, nem se apercebe das escalas dos sons e da sua
harmonia ou dissonância). O juízo dos utopienses é também aqui sempre o
mesmo: wn prazer de menor qualidade não deve criar obstáculo ao de
maior qualidade, nem o prazer deve ser origem de dor - como seria o caso
se o prazer fosse imorailOI . Pelo contrário, desprezar a beleza e a elegância,
deixar esmorecer as forças, transformar a agilidade em preguiça, deixar
definhar o corpo por jejuns, prejudicar a saúde, rejeitar todos os afagos da
natureza, a não ser que alguém deixe de lado todas estas hipóteses para se
dedicar com mais ardor ao serviço dos outros, cujo trabalho, por sua vez,
receberá de Deus maior prémio, nwna palavra, penitenciar-se por nada mais do
que por wn fantasma de Virtude ou com a finalidade de poder aguentar com
menos dano as adversidades, que porventura nunca hã<><le chegar, pensam
eles, por seu lado, que seria demência extrema e próprio de um espírito cruel
para si mesmo e totalmente ingrato para com a natureza, como se desdenhasse
dever-lhe alguma coisa e renunciasse a todos os seus dons.
Tais são as opiniões dos utopienses acerca da virtude e do prazer.
Consideram eles que, a não ser que haja uma religião vinda do céu e que
inspire ao homem algo de mais sacrossanto, não será possível chegar por
razão hwnana a doutrina mais segura. Seja correcto o seu juízo, o tempo não
nos consente discuti-lo nem isso se torna necessário, tanto mais que
assumimos para nós descrever as suas instituições /115/ e não ser delas
tutores. Em todo o caso, de uma coisa estou certo: seja qual for o mérito dos
seus princípios, em parte alguma se encontrará um povo mais inteligente
nem uma comunidade humana mais feliz.
De corpo, são eles destros e robustos, de forças maiores do que a
estatura deixaria prever, ainda que ela não seja baixa. O seu solo não é
uniformemente fértil nem o clima é dos mais salubres, mas eles protegem-
-se contra a temperatura mediante um regime alimentar apropriado e com
tal solicitude cuidam da terra que em nenhum outro lugar haverá colheitas
e rebanhos mais reprodutíveis nem corpos de homens mais vigorosos e
menos atreitos a doenças. Assim, poder-se-á admirar a diligência com que
executam os trabalhos que habitualmente fazem os lavradores, de tal modo

101 Ao longo da exposição nota-se um desenvolvimento que pretende acentuar o carácter orde-
nado e hierarquizado do encaminhamento do homem para a contemplação, através de uma raciona-
lidade de operações, em que o conhecimento da finalidade é critério decisivo.

[565]
que não só uma terra um tanto ingrata por natureza é melhorada pela sua
habilidade e pelo seu trabalho como também se poderá ver noutro lado
uma floresta ser arrancada até à raiz por braços humanos e ser replantada
noutro lado; neste particular, eles tomam como critério não a produtividade,
mas a facilidade de transporte, já que quanto mais próximo as madeiras
estão do mar ou dos rios ou das cidades, menor é o caminho por terra; os
produtos agrícolas são trazidos de mais longe do que as madeiras.
É um povo acolhedor e alegre, inteligente, que gosta do lazer, bastante
sofrido nos trabalhos braçais a que se entregam. De resto, aliás, é comedido
nas suas ambições, infatigável em se entregar ao trabalho do espírito.
Neste aspecto, tendo eles por nós tomado conhecimento das letras e do
pensamento dos Gregosl02 (de facto, quanto aos Latinos, tirando a história
e a poesia, nada haveria que parecesse poder interessar-lhes deveras)l03, era
de espantar ver como eles se empenhavam no seu estudo de forma a
chegarem ao seu conhecimento mediante a tradução que lhes fizemosl04.
Pusemo-nos nós a fazer a leitura, primeiro, mais para não parecer que nos
recusávamos ao trabalho do que na esperança de obter algum resultado.
/116/ Ora, a breve trecho, a sua aplicação fez com que de imediato nos aper-
cebêssemos de que não era inútil o esforço a que nós nos entregáramos.

103 A biblioteca de Tomás Moro compreendia 139 obras em latim, 40 em grego e apenas uma
em inglês (a tradução do De consolatione Pbilosopblae de Boécio). Para a Utopia, Hitlodeu leva
apenas textos gregos antigos; também a cultura bíblica do autor passava pelo texto bíblico em grego
(não obstante os méritos reconhecidos a Jerónimo); os conhecimentos patrísticos p assavam por
Eusébio, Basílio, João Crisóstomo, ao lado de Gregório Magno. Agostinho, Jerónimo, a que associava
Tomás de Aquino e Nicolau de Lira.
104 Ao contrãrio de outros tradutores, preferimos dar ao termo interpretatto o sentido primitivo
de "tradução", restituído no período do Renascimento; parece-nos isso mais coerente também com a
situação, pois a tradução tomava-se necessária, muito embora os habitantes da Utopia pudessem ter
antecedentes gregos. Propor uma "interpretação" seria condicionar os textos ao alcance dado pelo
interlocutor. Nem parece que uma simples "explicação" pudesse despertar o interesse que seguida-
mente se regista por parte dos utopianos em editar tais obras. A leitura englobava várias etapas para
a compreensão do texto.

(567]
A bem dizer, tal era a facilidade com que copiavam as formas das letras, tão
correctamente pronunciavam as palavras, tal a rapidez com que memori-
zavam e tal era a fidelidade com que começaram a traduzir, que para nós
isso seria tomado como prodígio se não fora que a maior parte dos que
tomava.µi parte nessa actividade não se tinham entusiasmado por iniciativa
própria, mas haviam tomado por designação do senado a incumbência de
estudar aqueles livros: entre eles contava-se um bom número de letrados;
eram de idade madura e eram das inteligências mais apuradas.Assim, em
menos de um triénio, nada havia na língua que constituísse problema
para leitura dos bons autores, a não ser quando havia corruptela de
texto. Estas letras, tanto quanto posso conjecturar, eram-lhes tanto mais
acessíveis quanto de certo modo tinham afinidade com as suas. Suspeito
que aquele povo tem origem nos Gregos, pela boa razão de que a língua
deles tem semelhanças com o persa105, mas conserva vestígios da língua
grega em palavras de organização urbana e de magistraturas. Por meu
intermédio (pois, em vez de me rcadorias, ao preparar a minha quarta
viagem, coloquei no navio um lote de livros não totalmente diminuto 1 06,
uma vez que decidira não voltar lá tão depressa), têm eles agora a maior

Jo6 Não se considere pura fantasia o transporte de obras de c iência para o Novo Mundo. Na rea-
lidade, logo nos primeiros tempos da chegada às índias, os descobridores portugueses levaram
consigo exemplares de obras para as entregarem ao Preste João. Assim, na armada que saíu de Lisboa
em 1513, o rei D. Manuel e a rainha, sua esposa, mandam colocar livros q ue seriam destinados ao
Preste da Etiópia e a sua esposa; no caso, tratava-se de livros de doutrina e espiritualidade. Cf. Sousa
Viterbo, "A livraria real, especialmente no reinado de O. Manuel", Memórias da Academia Real das
Sctenctas de Ltsboa, 2.' Classe, Tomo IX, parte I, Lisboa, 1902. Quaisquer que tenham sido as obras
que Cristóvão Colombo levava consigo, as obras antigas tinham o p restígio de ciência; o reconheci-
mento das terras, aliás, fazia-se a partir das leituras daquelas obras, ainda que fosse para verificar
quanto a realidade se afastava do que se encontrava descrito (como acontecia nomeadamente com
a obra geogtáfica de Ptolemeu, que não passava despercebida a um homem do mar como era Diogo
Gomes de Sintra ou esrudiosos como Pacheco Pereira - Esmera/do de sttu orbts). Em contrapartida
(e ao contrário daquilo que acontece na obra de Moro), não deixavam de vir na bagagem livros de
outras terras: na livraria de O. Manuel figurava um Saltetro em caldeu (que não é certamente outra
coisa que a obra editada, em 1513, por Johan Potken, Psaltertum David & Canttca Canttcorum em
etíope, obra de que o impressor teve conhecimento em Roma na igreja de Santo Stefano dei Mori,
onde havia uma comunidade etíope) e um caderno de folhas de papel de letras e pinturas dos chins
que parecem santos.A aproximação ao rei da Etiópia haveria de trazer a Llsboa embaixadores que
se faziam acompanhar dos livros da sua Igreja.

[569)
parte das obras de Platãol07, bastantes de Aristóteles 108, a obra de
Teofrasto sobre as plantas (infelizmente mutilado em muitos passos -
de facto, durante a viagem por mar, um cercopiteco dera com o livro, que
eu deixara descuidado, e, saltando e brincando, rasgou algumas das
páginas que arrancara aqui e alil09). De entre as obras de gramática , /117/
ficaram apenas a de LáscarisllO, pois não levei comigo a d e Teodorol 11;
não levei qualquer outro dicionário que não fosse o de Hesíquio11 2 e

110 Constantinus Lascaris (1434-1501), fugindo de Constantinopla, após a queda da cidade nas
mãos turcas, em 1453, refugiou-se em Creta, Rodes e Corfu; passou mais tarde a Itália, onde foi precep-
torda filha de Francesco Sforza, na cidade de Milão; em 1476 publicou um manual de gramática
grega, cujo título é habitualmente designado por Erotemata,primeiro livro a ser impresso totalmente
em caracteres gregos: Venetiis,Aldus Manutius, 8 de Março de 1495; o humanista bizantino fez parte
do círculo do cardeal Bessarion e foi chamado pelo papa para ensinar grego em Messina (1460).
111 Teodoro de Gaza (m. 1475); a edição mencionada deve corresponder a HC •75()():Theodorus
Gaza,lntroductivae grammattces lll>rl quattuor (grego), Veneza, Aldus Manutius, 25 Decemb., 1495
- preparada por Marcus Musurus, segundo manuscrito de Bessarion. Ao tempo da composição da
Utopia por Moro, Erasmo procedia à tradução desta gramática - publicando em 1516 o 1 livro, por
considerar que ela era a melhor que havia, sendo a de Lascaris a segunda (De rattone studi{).
Anteriormente havia sido publicado o compêndio de Bolzanio Valeriano (1443-1524), dito Urbanus
Bellune nsis, O.F.M., Instttuttones graecae grammattces (latim e grego), Venetiis, Aldus Manutius,
lanuar., 1498, ln-4.
112 Trata-se, quanto a nós (e contrariamente a Prévost), de Hesíquio de Alexandria, gramático do
século v que compôs um Glossário volumoso com palavras raras, muitaS delas atestadas em textos que
ficaram na tradição; dele apenas se conhece um testemunho em manuscrito, Veneza, Marc. Gr. 622,
do século xv;em 1514 foi feita uma edição (que ainda é a mais completa de quantas posteriormente
furam realizadas; em curso está um projecto de nova edição). Pelas referências dadas acima, não
parece que se trate de Hesíquio de Mileto (como propõe A. Prévost), pois este ocupou-se de outros
temas, e o conteúdo do Onomatologos é diferente. De referir outras obras de natureza idêntica:
THESAURUS Cornucoplae et Hortt Adonldts (grego). Venetiis, Aldus Manutius, Aug. 1496, ln-folio;
lobannes Crastonus/Glovanni Crastone, Dtcttonnarl1'm Graecum coplostsstmum (grego e latim),
Venetiis,Aldus Manutius, Dec. 1497. É óbvio que alguém que tomara parte na quarta viagem de
Vespúcio, em 1503, não tinha à sua disposição o glossário de Hesíquio; não é essa contradição que
põe em causa a ficção e o seu significado. Cf. Ward Allen, "Speculations on St. Thomas More's use of
Hesychius", Pbilologfcal Quarterly, 46, 1967, 156-166

[571)
Dioscórides 113. Demonstraram eles muito apreço pelos livros de
Plutarcoll4 e ficaram seduzidos pelas historietas e pela graciosidade de
Lucianoll 5. Dos poetas ficaram com Aristófanes l16, Homero 117 e Eurípides,
além de Sófocles nos caracteres minúsculos de Aldo118. Dos historiadores

11s Moro, que traduziu para latim muitos epigramas de Luciano (Basileia, Fcoben, 1518, junto
com a Utopia) e os seus Diálogos (em associação com Erasmo - Paris, Badius, 1506), revela as razões
do ,seu apreço por tal autor:"Mais do que nenhum outro, Luciano, em confonnidade com o preceito
de Horácio sabe associar o útil ao agradável";imbatível na ane da ironia, serve a Moro de modelo para
traduzir pelo oposto a mensagem que procura exprimir e desmascarar a hipocrisia, ao mesmo tempo
que solicita lucidez de espírito na graça da ironia. Erasmo, De rattone studft, coloca Luciano entre os
três autores a recomendar como modelos de estilo e doutrina (os outros dois eram Demóstenes e
Heródoto); Goclénio, no Hennotimtts que dedica a Moro, considera que o sarcasmo de Luciano se
dirige contra a lúpocrisia e impostura.
116 Aristófanes, Com oedíae nouem, Venetiis,Aldus Manutius, 15 Julho 1498: in·folio.
117 As obras de Homero, em grego, tiveram honras de imprensa, pela primeira vez, sob a direcção
de Demetrius Chalconclyles de Atenas e de Demetrius de Creta, em Florença, a 9 de Dezembro de
1488 em volume in·folio, acompanhada de duas vidas de Homero, atribuídas a Plutareo e a Heródoto;
voltou ela a ser publicada em 1504 por Aldo, em Veneza (2 vols, in 8.0 ) ; a segunda edição aldina, de
1517, apresenta variantes notórias que se prolongam até à edição de 1528.
118 Aldo Manúcio havia faleciilo em 1515; a sua menção é aqui de homenagem, pois da sua

tipografia haviam saído obras gregas em primeiras edições: Aristóteles, 1495, continuado em
1497-1498; Aristófanes, 1498; Sófucles, Tucídides e Heródoto, 1502; Xenofonte (Hellenica), 1503;
Eurípides, 1503/4; Demóstenes, 1504; foram suspensos os trabalhos de edições devido às pertur-
bações políticas em Itália, mas foram eles retomados em 1508 com a edição dos oradores menores;
1509, Plutarco; Platão é de 1513, em edição dedicada a Leão X; Píndaro, Hesíquio e Ateneu, 1514.
Os sucessores deAldo imprimiram Pausânias, Estrabão, Galeno, Hipócrates, Longioo. Segundo a inter-
pretação habitual, em "tninusculisAldi formulis" estão em jogo os "caracteres" tipográficos; de facto,
no léxico dos humanistas fonna refere-se ao formato,fonnula reporta-se a líttera;cf. Sílvia Rizzo,
ll lesstco ftlologtco deglt Umantstt, Roma, 1984.A importância deAldo para o desenho dos caracteres
gregos é conhecida; não é menos importante o recurso a pequenos formatos, elegantes e respeita-
dores da "divina proporção". Cf. Helen Barolini, Aldus and hts dream book, New York, Italica Press,
1992, p. 78; Nicolas Barker, Aldus Manuttus and tbe development of Greek scrlpt & type tn tbe
fifteenth century, Sandy Hook, Clúswick, 1985.

[573]
têm Tucídides e Heródoto bem como Herodiano 11 9. Por sua parte, para a
medicina um companheiro meu, Tricio Apinato1 20, levara consigo uns
pequenos opúsculos de Hipócrates121 e a Microtechne de Galeno 122, livros

121 Não consegulmos elementos para determinar uma edição da obra de Hipócrates acessível à
data da redacção da Utopia. A edftto prinCTJps conhecida do corpus bfppocrattcum do texto em
grego é a de Veneza,Aldus Manutius, 1526, e depois Basileia, Froben, 1538; note-se, contudo, que Moro
refere-se a alguns opúsculos e não à obra comple ta. Antes, tinha havido a edição latina: Roma, Fabius
M. Calvus, 1525. Não conseguimos ter acesso directamente à obra fundamental: Cfnq cents ans de
bfblfograpbfe bfppocratfque (1473-1982) par G. Maloney & R. Savoie, St-Jean-Chrysostome,
Québec, 1982; todavia, Véronique Boudon-Millot, Directora de Investigação em Medicina Grega na
Universidade de Sorbonne - Paris IY, e Estelle l.ambert, investigadora da Universidade Paris V. tiveram
a gentileza de nos informar de que nos seus arquivos bibliográficos nada consta sobre uma edição
anterior à Utopia.
122 A primeira edição impressa completa (editto prlnceps) das obras de Galeno, em grego, é a

Aldina, Veneza, 1525; a seguinte é de Basileia, 1538 devido aos cuidados de L. Fuchs, H. Gemusaeus et
). Camerarius, mas retoma fundamentalmen te a primeira. As edições latinas haviam-se antecipado:
assim a de Diomedes Bonardus, Veneza, 1490, que reúne traduções latinas anteriores. A Ars parua
corresponde a Mfcrotegnt (leitura iotacista de Mtcrotecbne), também transcrita como Tegnum ou
Microtegnum. Cf. Richard). Durling, "A chronological census of Renaissance editions of Galen", tn
]ournal of tbe Warbu'8 and Courtauld lnstttute, 24, 1961, 230.305: aí apenas consta uma edição de
Galeno anterior a 1515-1518, para dois tratados de terapêutica:Ad G/auconem de metb<>do medendi
e De metbodo medendt, Veneza, 1500 (corresponde ao Megalótegnum, ou 0€parrEUTlKii µe0óôov
~l~À(a). Do mesmo ano se há-de apontar Claudius Galenus, Tberapeuttca, Venetiis, Zacharias
Callierges, ad Nicolaum Blastum, 5 Oct. 1500 (Londres, BL).

(575]
esses que têm em grande apreço; de facto, mesmo se da generalidade dos
povos são eles os que menos precisam de conhecimentos médicos123, em
parte alguma lhe é dado maior crédito, até porque colocam a sua aquisição
no plano das partes mais belas e mais úteis do saber, já que lhes p ermitem
perscrutar os segredos da natureza. Consideram que dela não só retiram
prazer extraordinário como também podem com isso prestar os maiores
agradecimentos ao seu autor e criador. Acham eles que, tal como acontece
com os demais autores de uma obra, também o desta, que é a natureza,
expôs a máquina do mundo aos olhos do homem a fim de ele a contemplar
(só a ele deu o Criador essa capacidade) e a partir daí se tomar um obser-
vador mais habilitado para se tomar contemplador, curioso e atento, e bem
assim admirador do seu trabalho, e não fazer de animal, privado de inte-
ligência, que não fizesse caso de contemplar universo tão extraordinário,
ficando embasbacado e sem reacção124.
Tendo exercitado, pois, pelas letras o seu talento, são os utopienses
extraordinariamente capazes de descobrir técnicas que servem para
melhorar as condições de vida. /118/ Ficam-nos, porém, a dever a nós duas
dessas técnicas: a imprensa e o fabrico do pape112s. Não direi apenas a nós,

1z5 Moro antecipa aqui para o Novo Mundo algo do que viria a acontecer posteriormente, pois,
ao que se sabe, é por 1532 que a imprensa terá começado a laborar no MéXico. Não vale a pena
mencionar (porque se trata de conhecimentos modernos) como a Imprensa em caracteres móveis
no Extremo Oriente havia precedido a experiência europeia.As anotações de Moro não são produto
de imaginação, pois estavam no /ttnerarlum Portuga/lenstum, fls. XLVI•-XLVIl, LXXXIII": scrlbunt in
fol#s palmarum sttlo ferreo absque colore uel tncaustro; genttles non altter scrlbunt quam sttlo
ferreo in ltbris arborum.

[577)
pois também a eles próprios, em boa parte. De facto , quando lhes mos-
trámos obras impressas por Aldo em livros de papel e quando lhes falámos
do material utilizado para fazer papel e da possibilidade de imprimir as
letras (era algo que ultrapassava as nossas capacidades de explicação, pois
não havia ninguém entre nós que fosse perito em qualquer dessas artes),
imediatamente eles, com grande lucidez, se aperceberam do que se tratava
e, embora antes só tivessem escrito em peles, em cascas de árvores, e em
papiro, logo de imediato experimentaram proceder à impressão. A wna
primeira tentativa, não conseguiram um bom resultado, ~as , experimen-
tando várias vezes, em curto espaço de tempo chegaram a bons resultados
em ambas as coisas e tanto porfiaram que não deixaram de reproduzir todos
os ex emplares das obras de autores gregos. Facto é que tiveram de se con-
tentar com os que já referi; mas aos que chegaram a imprimir multiplicaram-
-nos em muitos milhares de exemplaresI26.
Todo o visitante que ali chega para tomar conhecimento da terra e se
salienta p or algum predicado intelectual ou pela experiência de ter viajado
muito (razão p ela qual lhes foi grato termos ali aportado) é recebido com

havido 30000 a 35000 impressões diferentes, representando entre 10000 a 15000 textos distin-
tos. Cf.A. Prévost, op. cit., p. 697; L. Febvre & Henri-jean Martin, O aparecimento do livro, trad.
port., Lisboa, 2000, p. 322. Hã óbvio exagero no número de exemplares por tiragem na suposta
impressão feita na Utopia; todavia, se não correspondem à realidade observada, deixam entender
anseios. Há veracidade certamente na modéstia dos conhecimentos nesta área por parte de Hitlodeu,
já que a imprensa em Portugal, nos inícios do século XVI, era pobre e, salvo alguroa excepção de
começos, estava nas mãos de estrangeiros com o patrocínio da corte. Com razão, Moro transfere a
experiência para o que havia de melhor ao tempo, na pessoa de Aldo Manúcio e suas edições dos
clássicos. Cf. Elizabeth Eísentein, Prlnting Revolution tn early modem Europe, Cambridge, Univ.
Press, 1983;Ambroise Finnin-Didot,Alde Manuce et l'Helléntsme à Ventse,Paris, 1875 (rep. Bruxelas,
Culture et Civilisation, 1966).

[579]
demonstrações de simpatia127. Na realidade, de bom grado prestam ouvidos ao
que lhes contam do que acontece em qualquer parte do mundo.Aliás, não se
aporta ali por motivos comerciais, pelo menos com muita assiduidade. De facto,
que se poderia levar para lá que não fosse ferro ou ouro e prata que alguém,
por sua iniciativa, decidisse transportar? De mais a mais, eles consideram que,
mesmo quanto à exportação de produtos que há que fazer, mais vale que sejam
eles a ocupar-se disso que confiá-lo a outros; /119/ deste modo, não só conse-
guem manter conhecimentos algum tanto alargados de povos que vivem à sua
volta como também não perdem a prática e a experiência das artes do mar.

As SERVIDÕESIZS

O estado de escravidão não resulta de prisioneiros de guerra, a não ser


quando se trata de agressores, nem de filhos de escravos, nem por compra

128 As siruações de dependência que seguidamente se apontam são ma.is gerais que a de simples
perda de liberdade perante alguém; sendo dependências, não são necessariamente de exclusão da
liberdade nem de díreitos (caso de doença); mais que situação juridica são modos de sujeição social.
O trabalho manual, na Utopia, é obrigação de todos; a sua valorização faz pane da mentalidade cristã,
que contraria hábitos da antiguidade, em que era desdouro fazer trabalhos que cabiam a dasses infe·
riores; a vida religiosa integra o trabalho como forma de valorização ascética e o monaquismo cister-
ciense retomara o que Cluni deixara de pane. O modelo de participação nas rarefas materiais é aceite
por Moro, pelo que a antiga servidão não se justifica. O modelo de trabalho monástico que integra
monges professos, irmãos conversos e serviçais (familiares), vê-se reflectlda nesta concepção
harmónica e participativa ou também livre, sem sujeições de dependência formal. Ficam excluídas da
Utopia as formas de captura de escravos, que os Descobrimentos prolongam, no seguimento de
práticas de trato e de pirataria, mesmo nas zonas do Mediterrâneo. Em Moro, o servus está mais pró-
ximo do serviçal, do famulus (ou familíarls dos monges) que do escravo (sclavus, palavra que surge
no panorama medieval do século xm, para designar cativos tomados na zona oriental e vendidos no
ocidente). Em todo o caso, não deixa Moro de reconhecer siruações de escravidão que têm origens
diversas: prisioneiros de guerra; degradação social por crimes; entrega pessoal para granjear sustento
em explorações agrícolas. Os problemas surgidos com a dominação sobre as populações ameríndias
levantam-se com maior agudez em razão do aproveitamento de populações nativas como mão-de·
-obra forçada e por deslocamento de populações. Banolomeu de las Casas, através da sua experiên·
cia de Venezuela, terminada em 1520 (por revolta dos indígenas) e mediante o seu Tratado de Índias
y el doctor Sep1Uveda, é a figura mais representativa da luta contra esse estado de coisas. No entanto,
há que lembrar a António de Montesinos que em 1511 denuncia a escravatura a que são sujeitos os
índios e bem assim a condenação pronunciada pelo Papa Paulo m, em 1537, depois de o bispo fran-
ciscano Zumanaga se ter batido contra o dominicano Betanzos (que negava a condição humana dos
índios) e depois de o próprio Consejo de índias, em 1524, ter condenado a redução à escravatura dos
novos povos (medida travada pelos interesses dos colonos).

[581]
de alguém nessa situação em povos estranhos, mas ou de crime degradante
que redunda em escravidão, ou de acto criminoso cometido noutros povos
que tem associada a pena de morte (caso que é muito mais frequente).
Lançam mão de muitos destes, a seu tempo vendidos a preço irrisório ou, o
mais das vezes, até dados de graça.
A esta categoria de escravos não só os condenam a trabalhos perpétuos
como também os prendem com cadeias.
Quanto aos seus compatriotas tratam-nos ainda com mais dureza, pois
consideram que são mais de censurar e que merecem castigo mais que
exemplar, já que, não obstante terem sido formados com educação moral
exímia, não souberam manter-se afastados do crime.
Existe uma outra categoria de servidão, que é a do mediastino1 29,
alguém de um outro povo, trabalhador e pobre, que, de um momento para
o outro e por própria iniciativa, escolhe colocar-se ao serviço dos utopien-
ses. São tratados com respeito e nada se lhes impõe a mais que não seja do
trabalho a que aliás estão habituados; não os tratam com muito menos
deferência que aos cidadãos, deixam-nos partir se algum decide ir-se
embora (o que não acontece senão raramente) e não obrigam a ficar quem
não tem vontade disso nem o deixam ir de mãos vazias.
Aos doentes, como já referi, cuidam-nos com grande carinho e não lhes
faltam com nada que lhes possa servir para restabelecer a saúde, seja em
medicamentos, seja em dieta alimentar. Mais que isso; aos que sofrem de
doença incurável,/120/ procuram assisti-los e entretê-los com momentos de
conversação, pondo à sua disposição mesmo algo que lhes possa servir
de paliativo. No entanto, se a doença não é apenas incurável, mas também
se prolonga de forma acabrunhadora e intolerável, então, os sacerdotes e os
magistrados, atendendo a que o doente já não consegue corresponder às
funções vitais e que se tornou um fardo para os outros ou que está apenas
a sobreviver penosamente à sua própria morte, aconselham-no a que não
pretenda ele estar por mais tempo a prolongar uma situação de doença que
é um peso e um risco, nem hesite em assumir a morte, já que a vida é p ara
ele um tormento; que, por outra parte, sem se deixar possuir p elo deses-
pero, ou seja ele a libertar-se da vida, que é como que um cárcere e wn

português, tal termo parece ter ficado restrito à ciência da anatomia ("espaço mediano do tórax, que
contém todas as vísceras torácicas, com excepção dos pulmões").

[583)
instrumento de tortura ou, por um acto de sua vontade, deixe que sejam
os outros a livrá-lo; uma vez que pela morte não rompe com uma vida feliz,
mas com um suplício, seria de todo sensato que assim procedesse, e que,
por outro lado, se nesta matéria seguir os conselhos dos sacerdotes, que são
os intérpretes da divindade, estará a fazer acto sacrossanto de religiãol30.
Os que se deixam convencer com estas razões ou terminam a sua vida
tomando a iniciativa de não comer ou deixam-se sucumbir até se esvane-
cerem sem sentirem a morte. No entanto, por eles, os utopienses não
forçam ninguém a isso nem diminuem o que quer que seja dos cuidados
que antes lhe prestavam. Há, contudo, respeito por quem se deixar
persuadir para morrer desta forma131.

1 1
3 Este parágrafo assenta nUma reflexão do humanista Moro sobre o sofrimento e a morte: o
sofrimento degrada e acabrunha, a morte é inevitável; esta deve ser encarada com serenidade, mas
melhor é sofrê-la que deixar-se arrastar para ela de forma menos digna.A questão da morte própria,
ou suicídio, é um tema que esteve presente na tradição clássica, embora o legislador a punisse. Platão
admite o suicídio em casos de softimentos incomportáveis; os estóicos assumem-no como um dever
em caso de risco de perda de <ii&nidade humana.A reflexão de Moro é de tipo racional, ainda que
pudesse valorizar as escolhas corn as expectativas religiosas abertas pela religião cristã, em que
valores maiores se sobrepõem, corno o da fidelidade à fé - o exemplo dos mártires não podia ser invo-
cado para justificar qualquer suicídio, pois até a exposição à morte violenta sempre fora contrariada
pela doutrina oficial; tão-pouco a mutilação própria foi admitida, ainda que por motivos ascéticos (o
caso de Origenes é o mais flagrante, pois nunca obteve aprovação o seu gesto de castração pessoal).
Quanto à morte voluntária, os estóicos forneciam base de reflexão na matéria, pois admitiam-na como
acto supremo de proclamar a superioridade do homem sobre a natureza. Moro introduz a mediação
religiosa e a sanção civil que assl!Jllem a responsabilidade do acompanhamento.As condições para a
eutanásia (termo que não aparece no texto, mas corresponde a "morte condigna") ficam expressas
por Moro: sofrimento que ultrapassa as capacidades humanas; responsabilidade moral na decisão do
doente; sanção social; sanção religiosa; acompanhamento não negado, em qualquer opção feita pelo
doente. O problema, em perspectlva ética, não é pacifico, mas a solução da eutanásia esbarra com
objecções fundamentais: a) inviolabilidade da vida humana; b) subversão de valores que se sobrepon-
ham à vida; c) perigo de arbitrariedade de poderes relativamente a essa mesma vida; d) perigo de
critérios secundários na salvaguarda da vida humana. Cf. Mariano Vida!, Dicionário de Moral, Porto,
s.d., "Eutanásia". As reflexões de Moro alargam-se nesta matéria, prevenindo contra a "tentação
perversa• do suicídio em A Dialogue of confort against trlbulalion, de 1534.

(585]
Em contrapartida, aquele que se infUgir a morte a si próprio, sem razões
que mereça aprovação dos sacerdotes e do senado, não lhes merece nem
terra nem fogol32, mas é abandonado em qualquer pântano, desonrado sem
sepultura.

Quanto à mulher, não casa ela antes dos dezoito anos; o homem nunca
antes de mais quatro anos completos no mínimo 1 33. Se antes de casar, seja
o homem seja a mulher, se tiverem entregado a amores furtivos, qualquer
deles é admoestado severamente e é-lhes formalmente vedado casarem-se,
a não ser que uma graça do príncipe lhes releve a faltal34;/121/ além disso
o pai e a mãe de família, em cuja casa tiver sido admitido o crime, pelo facto
de terem descurado de algum modo a vigilância sobre a parte que lhes
cabia, incorrem em grande desonra. Quanto a essa situação infamante, é ela
sujeita a penas muito severas, em previsão dos efeitos no futuro, já que, se
não excluíssem com determinação uma união fortuita, raros seriam os que
aceitariam ficar adstritos a laços de amor conjugal, em que consideram ser
de exigir uma vida inteira passada com uma única pessoa e sobretudo
suportar todas as contingências que tal situação acarreta.
Por outro lado, na escolha dos esposos, observam os utopienses um
ritual que (tanto quanto nos pareceu) é mais que estulto e sumamente
ridículo, mas que eles tomam a sério e com gravidadel35: a mulher, seja ela

Cf. Platão, Rep. 5, 461a.


134
135 É possível que Moro se inspire não só em costumes daAntiguidade (licurgo,.Fmg. 14,4 - 15,1;
Platão, Rep. V, 452d, Leg. VI, 771e-774a) mas porventura também em reflexões pessoais: se há exigên-
cias legais que impõem a indissolubilidade matrimonial e se as relações pré-matrimoniais são
proibidas e passíveis de castigo, o conhecimento prévio dos cônjuges é não só aconselhável ou dese-
jável, sem contradição com a negação de experiências íntimas, e por isso Moro, admitindo o carácter
infamante de experiências furtivas e censurando os familiares por permissividade, integra em rito
social a apresentação dos cônjuges, ultrapassando a mera exposição de corpos que a ginástica e os
jogos de palestra facultavam na Antiguidade. Não é de excluir que no modelo de Moro estejam
presentes dados de situação histórica: a evocação de deformidade repugnante terá na base a sífilis, o
morbus galltcus/napoUtanus, que se desencadeou em forma de peste, depois de se ter declarado
entre as tropas que, ao serviço do rei de Espanha, em 1494, cercaram Nápoles, ocupada por
Carlos VID, e depois difundiram a doença por toda a Europa. Nas Lets de Platão (6, 771e-772a; 11,
925a) lê-se:"quando as pessoas estão prestes a viver como parceiros no casamento, é saudável que
tenham a maior informação(...); os rapazes e as raparigas devem dançar uns com os outros em idades
que se prevê que isso possa vir a acontecer de taJ modo que tenham ocasião de se observar uns aos
outros; devem dançar nus, contanto que o façam com suficiente modéstia e recato".

[587 ]
virgem ou viúva, é apresentada desnuda ao seu pretendente por uma outra
mulher, entrada em idade e de bons costumesI36; o pretendente, por sua
vez, é posto também desnudo perante a donzela por um homem de
probidade.
Se tal costume para nós se toma objecto de riso e o censuramos por
estulto, eles, pelo contrário, admiram-se de que haja uma estultice tão
grande da parte de todos os outros povos a ponto de, quando se trata de
comprar um potro, em que a operação envolve pouco dinheiro, serem tão
cautelosos que recusam fazer negócio sem o verem em pêlo, depois de lhe
retirarem a sela e depois de lhe arrancarem todos os adereços, não vá
acontecer que debaixo das mantas se esconda alguma matadura, mas,
quando se trata de escolher cônjuge, em que a situação é de ficar
acompanhado, a gosto ou a contragosto, para um vida inteira, procedem
com tamanha displicência que deixam todo o corpo encoberto pela roupa
e avaliam a mulher no seu todo por um palmo mal medido (de facto não
mais se vê que não seja o rosto) e trazem-na para junto de si sem terem em
conta o perigo, que é grande (se só derem com ele depois), de quadrarem
mal um com o outro. De facto , nem todos são homens de tanto nível
intelectual que olhem apenas para as qualidades morais e , quando se trata
de casamento de homens de tal nível, /122/ às qualidades do espírito
associam-lhe também os dotes físicos como complemento a não
menosprezar. Certamente, debaixo de um belo véu pode estar escondida
deformidade tão repugnante que seja capaz de alterar por completo os
sentimentos do marido relativamente à esposa, quando já não é licito
separarem-se de corpo. Se acaso a deformidade ocorrer depois de contraído
matrimónio, terá cada um de resignar-se à sua sorte; mas, antes, para que
ninguém seja apanhado numa cilada, às leis cabe acautelá-lo.
Seria tanto mais de prestar atenção a esta matéria quanto, nessas
paragens do mundo,"os utopienses são os únicos a viverem com um único

!36 Não parece que o valor de honestus siga a docwnentação epigráfica e textual de longa
tradição que atribui ao epíteto o significado de "boa condição", já que também logo a seguir é a
condição moral que prevalece para o homem.

[589]
cônjuge e a admitirem não poucas vezes que os laços conjugais não se
dissolvem senão pela morte, a não ser que haja motivo de adultério ou
entrave moral inultrapassávell37. Nestas últimas circunstâncias, ao ofen-
dido, quem quer que ele seja, o senado dá autorização para procurar novo
cônjuge, ao passo que para o culpado fica a condição infamante e a obri-
gação de vida celibatária perpétua.
À parte isto, não admitem os utopienses que, de forma nenhuma, a
esposa, a quem não se pode imputar qualquer falta, seja repudiada sem o
seu consentimento, pelo facto de ter sido atingida por qualquer enfer-
midade corporal, pois consideram nada haver de mais cruel que abandonar
alguém no momento em que precisa mais de amparo e aos que chegam à
vellúce (causadora de debilidades e debilidade ela própria) e não lhes
oferecer mais que uma promessa insegura e enfermiça.
Quanto ao mais, acontece por vezes que há esposos cujos tempera-
mentos se tomam incompatíveis entre si e ocorre também que um e outro
encontram alguém com quem criam expectativas de formar uma vida mais
harmorúosa; separando-se um do outro por comum acordo, contraem novos
matrimórúos, mas não sem entretanto receberem autorização do senado, o
qual, todavia, não admite o divórcio senão depois de ter sido instnúda cuida-
dosamente a causa pelos próprios interessados com as suas esposasl38.
Mesmo assim, não é fácil, pois sabem que propor /123/ uma perspectiva
acessível de novas núpcias é solução que contraria a eficácia em assegurar
o amor conjugal.
Os que rompem o vínculo matrimorúal são purúdos com a servidão
mais grave, no caso de nenhum dos dois cúmplices ser solteiro; mas as

138 Cf. Platão, Leg. 11, 929e-930a).

(59 1]
partes ofendidas podem, se quiserem, repudiar a parte adúltera e, por sua
vez, podem contrair matrimónio entre eles ou, se preferirem, com a pessoa
que lhes parecer bem.Todavia, se uma das pessoas lesadas, apesar de a outra
parte não o merecer, persistir em afecto por ela, não lhe está vedado
permanecer fiel à lei do matrimónio, aceitando acompanhar o culpado nos
trabalhos a que for condenado; acontece, por·vezes, que o arrependimento
de um e o acompanhamento empenhado de outro, ao induzirem o príncipe
a ser indulgente, conseguem restiruí-los de novo à liberdade. Porém, ao que
volta a cair em falta, a pena de morte é o castigo a ser infligido.
Para outros crimes não há penas previstas por lei, mas compete ao
senado determinar, de cada vez, qual o castigo que melhor corresponda ao
juízo sobre a gravidade do crime. Às esposas são os maridos quem as
castiga, aos filhos são os pais, a não ser quando tiverem cometido algo tão
desmesurado que seja de interesse para os costumes interferir e castigar
publicamentel39. Facto é que, por mais graves que sejam os crimes, quase
todos são punidos com a pena da servidão, o que, segundo julgam, não é
menos motivo de tristeza para os celerados quanto é mais vantajoso para a
sociedade civil do que executar os malfeitores em pena capital apressada
para fazê-los desaparecer num momento. Efectivamente, aproveitam mais
com o seu trabalho do que com a execução capital e pela lição do castigo
afastam outros de crime semelhap.te durante mais tempo. No entanto, se
estes indivíduos, assim tratados, se revoltam ou recalcitram, então, p or fim,
como se faz a bestas indomáveis, às quais o cárcere e as cadeias não
conseguem dominar, aplica-se-lhes a pena capital. Em contrapartida, aos que
se sujeitam ao castigo não se lhes retira de todo a esperança; na realidade,
se, depois de submetidos a longos castigos, /124/ aceitam a pena que atesta
a sua falta e dão a entender que mais que a pena os desgosta tal falta, por
vezes, em virtude de prerrogativa do príncipe, entretanto apoiada em
sufrágio do povo, ou se mitiga a servidão ou se lhes p erdoa.
Incitar à libertinagem sexual não é menos penalizado que a prática dela,
pois em matéria criminal fazem equivaler a tentativa, certa e determinada, ao
facto consumado, admitindo eles que aquilo que faltou a alguém não lhe deve
aproveitar, pois não foi devido a ele que faltou alguma coisa para issoI4o.

!40 A expressão é algo contorcida, mas o pensamento é perceptível: a tentativa do crime é equi-
valente ao crime, pois, se falhou, foi por outros factores que não podem servir para desculpabilizar o
criminoso.

[593]

Os bobos 141
tomam-se à melhor partel42, por tal modo que tanto se
reprova alguma vilania que lhe possam infligir quanto não se rejeita o
prazer que se possa colher das suas palhaçadas. Na realidade, consideram
que isso é dos maiores benefícios que se possam prestar aos próprios
bobos, pelo que, se alguém é tão macambúzio e tristonho que não se ria de
qualquer facécia ou de qualquer palavra, consideram que não se deve
confiar a ele a rutela de algum deles, com receio de que não a exerça com
suficiente indulgência quem não se serve deles, nem se espera vir a fazê-lo,
para algum divertimento (a única coisa que deles se pode esperar no
desempenho das suas capacidades).
Troçar de um homem disforme ou estropiado é tido como torpe e
baixo, não por aquele que é posto em troça, mas por quem assim o faz, pois
lança estultamente em rosto a um infeliz, como se fosse uma falta, o que não
está nas suas mãos poder ser evitado.
Por outra parte, consideram que é desleixo e desmazelo não cuidar da
beleza narural, da mesma maneira que buscar ajuda em maquilhagens é por
eles tomado como afectação desqualificantel43; sabem pela própria
experiência que não há outra forma de beleza que mais recomende as
mulheres aos olhos dos maridos que a probidade moral e o recato. De facto,
se muitos se deixam cativar pela simples aparência, ninguém preza mais
que a virrude e a amabilidadel44.

142 Preferimos traduzir assim a expressão tn deltciis habentur, pois habere altquem tn d eliciis
é nada menos que "ter grande afeiç.ão a alguém".
143 Cf. Quintiliano , 8 , Pr. 19.
144 Os termos utilizados por Moro obedecem a uma gradação:probitas morum... , reuerentia... ,
uirtute... , obsequio; como este não se esgota na "obediência", julgamos que também reuerentta não
ê sinónimo de oboedientia. Muito embora a sociedade da Utopia não seja muito hierarquizada, apesar
de rudo, de um termo ao outro vão matizes distintivos - que procurámos acenruar na tradução.

[595]
Não procuram apenas manter os cidadãos arredados do crime pelo temor
dos castigos, / 125/ mas procuram aliciá-los para a virtude, propondo-lhes
distinções honoríficas e, por isso, na praça pública erguem estátuas aos
cidadãos insignes e aos que se tomaram beneméritos da sociedade, com o
fim de preservarem a memória dos altos feitos e bem assim para que a glória
dos antepassados sirva de estímulo e incitamento à virtude por parte dos
vindourosl45.
Aquele que anda à cata de uma magistratura só ganha frustrações com
issol46. As relações com os magistrados são de convivialidade feita de
amabilidade, e de facto nenhum deles é arrogante nem grosseiro; tratam-nos
por pais e eles demonstram que lhes fica bem esse título 147; as homenagens
são-lhes prestadas de espontânea vontade, não são impostas contra von-
tadel 48. O próprio príncipe não se distingue dos outros cidadãos por trajar
diferentemente ou usar diadema, mas por andar com um marúpulo de
espigas de trigo na mão, como é característica de um pontífice ser prece-
dido por círios 149.

As leis são muito poucas, pois bastam umas tantas para quem possui tais
instituiçõesl 50. Aliás, aos outros povos os utopienses censuram princi-
palmente o facto de precisarem de um sem número de livros de leis e de

147 Cf. Salústio, Cat., 6, 6.


148 Cf. Aristóteles,.fb/. 3, 9, 4:"0s soberanos governam súbditos que os aceitam, ao passo que os
tiranos domínam sobre súbditos que não os querem."
149 Na antiga liturgia romana, em sinal de solenidade, o oficiante era precedido por ceroferários

que empunhavam círios ou tocheiros. Num retrato de si próprio, Moro descreve-se como coroado de
um "diadema de espigas e segurando um ceptro feito de um ramo de árvores" (Ep. 2, 414).
150 Cf. Platão, Rep. rv, 424e-426b; Plutarco, "Lycurgus", XIIl, 1-2. Também Vespúcio, I, b7v: "não
estão sujeitos a leis e não têm magistrados para aplicarem a justiça•.

(597]
comentadores. Por parte deles, consideram que é uma iniquidade enorme
obrigar os homens ao cumprimento de leis que pelo facto de serem tantas
não conseguem lê-las ou que pelo facto de serem tão obscuras ninguém as
consegue entender.
Por isso é que dispensam de forma radical os causídicos - que se habi-
tuaram a tratar as causas com astúcia e discutem as leis com perfídia.
Consideram, efectivamente, que, como é de tradição, cada um defenda a sua
causa e que seja cada um a apresentar ao juiz o que deveria ter contado a um
advogado151. São assim menos os rodeios e mais facilmente se deduz a
verdade, pois, enquanto ele fala, por não ter andado a ;tprender os florea-
dos de advogado, um juiz perspicaz consegue advertir nas situações indi-
viduais e acode aos espíritos mais simples contra as acusações dos habi-
lidosos. / 126/
Noutros povos, tais práticas seriam difíceis de cumprir, em razão das
confusões que resultam da multiplicidade das leis. Aliás, entre eles, qualquer
um conhece as leis. Efectivamente, como acabo de di,zer, as leis são pou-
quíssimas e quanto mais uma lei é consistente nas interpretaçõés mais a
consideram adequada152. De resto, dizem eles que só há uma razão para se
publicar uma lei, a de fazer com que qualquer indivíduo fique informado
dos seus direitos e deveres; ora, quanto maior é a subtileza nece ssária para
interpretar a lei, menos indivíduos ela esclarece (poucos são efectivamente
os que o conseguem entendê-la), mas quanto mais simples e mais óbvio é o
sentido da lei, mais ela fica acessível a todos; aliás, no que respeita à gente
do povo, que é a generalidade da população e a que precisa d e ser mais
elucidada, que lhe importa se há ou não há leis publicadas, se há que
interpretar uma lei já publicada segundo determinada opinião, quando só
alguém de grande engenho e depois de longa ponderação consegue dilu-
cidar-lhe o sentido e quando nem uma pessoa do vulgo com capacidades
sólidas consegue interpretá-la nem basta uma vida inteira para conseguir lá
chegar, muito menos quando anda ocupada em granjear me ios de subsis-
tência?

15 2 A tradução deA.Prévost,op.cít., p. 126,simplifica a expressão


de Moro:"les lois sont tres peu
nombreuses et, d'autre part, plus l'interprétation proposée en est simple, plus ils la considerent
comme conforme à la justice".

[599)
Impressionados por estas qualidades, os vizinhos mais próximos dos uto-
pienses, pelo menos aqueles que vivem em regime de liberdade (de tacto, a
muitos eles libertaram já em tempos de tirani.as) acorrem a eles e tomam a ini-
ciativa de lhes solicitarem magistrados, uns por períodos anuais, outros por
períodos de cinco anos; ao expirar o prazo do mandato, reconduzem-nos à sua
terra, cobertos de atenções e de aplausos e, de regresso, trazem outros com eles.
É assim que tais povos asseguram os maiores e os mais salutares
benefícios para a sua colectividade, pois a prosperidade desta ou a sua
desgraça dependem do comportamento dos seus magistrados, os quais,
efectivamente, não poderiam ser escolhidos com mais sentido de
responsabilidade, já que, /127/pelo facto de serem desconhecidos para os
cidadãos, não ficam sujeitos a serem corrompidos por qualquer soma de
dinheiro (seria completamente inútil para gente que a breve trecho deve
regressar a suas terras) nem ficam expostos a serem manipulados por
qualquer manobra ou por conluio perverso. Quando estes dois males, os
conluios e a cupidez, se instalam nos tribunais, esboroa-se de imediato toda
a justiça, ela que é a articulação mais sólida da colectividade. Aos povos que
lhe solicitam governantes os utopianos tratam-nos por aliados; aos outros a
quem beneficiaram com a sua ajuda chamam-lhes povos amigos.

Quanto aos tratados, que tantas vezes os restantes povos entre eles
estabelecem, rompem e reatam, os utopianos não os celebram com nenhum
povol53. Qual seria a utilidade de um tratado, perguntam: é como se a
natureza humana não bastasse para reconciliar o homem com o seu
semelhante; se alguém a menospreza, poderemos considerar que há-de fazer
caso das palavras? Chegaram eles a esta opinião principalmente porque
nessas paragens não há muito o costume de salvaguardar pela palavra dada
os tratados e os pactos entre os príncipes.
É facto que na Europa, sobretudo nos países em que vigora a fé e a
religião cristã, proclama-se soberanamente o carácter sacrossanto e invio-
lável dos tratados, em parte por virtude da justiça e da honestidade dos
príncipes e em parte devido à reverência e ao temor que inspiram os Papas;

I53 Cf.Johannes Lupi Ouan López),"Tractatus clialogicus de confederatione principum et potenta-


tum", tn De ecclesiasttcis tractatus, Estrasburgo, Schottus, 1511, fl. 36-70 (reed. Mwlique, Saur, 1990).

[601]
não se comprometam eles próprios a fazer uma coisa que não se dispo-
nham a executar da forma mais escrupulosa, por tal modo que obrigando
todos os outros príncipes a manter de toda a maneira os compromissos
assumidos, aplicam, por outro lado, sanções de natureza pastoral contra os
prevaricadores. A justo título, realmente, consideram que é uma vergonha
inqualificável que seja a gente que a si mesma se designa com o nome
peculiar de fiéis aquela que mais falta ao cumprimento dos compromissos
dos tratados que assinou 154.
Ora, no Novo Mundo, que o círculo do equador não separa tanto do
nosso mundo quanto nos afastam as formas de vida, /128/ não se deposita
confiança nos tratados: quanto mais eles se envolvem em cerimonial
sacrossanto mais depressa se dissolvem, sendo até fácil descobrir que há
sempre motivo de chicana nas palavras, que, aliás, os próprios ditaram com
tanta astúcia que lhes é possível nunca ficarem vinculados de forma estrita,
sem retirarem alguma coisa e sem se furtarem igualmente ao cumprimento
do tratado e da palavra dada. Se num contrato privado os utopianos desco-
brissem alguma manobra dessas, mais do que trapaça ou embuste, de
sobrolho carregado, haveriam eles de clamar que era inf'amia e que era caso
de forca; são eles os mesmos que se gloriam de ser conselheiros do príncipe
nesta matéria.

Cúria consentiam ou aconselhavam aos seus h omens os comportamentos de uma diplomacia


dúplice. Os papas Alexandre VI (1492·1503) e Júlio II (1503-1513) foram severamente criticados por
isso, a tal ponto q ue Maquiavel ousou escrever que AÍexanclre VI faltava à verdade quando isso lhe
convinha, mesmo que fosse necessãrio fazê-lo sob forma jurada, e que não sonhava com outra coisa
que não fosse enganar os outros (fl prlnctpe, cap. 18). Júlio II alterou as suas alianças ao sabor das
conveniências.A revolta de Lutero ia aí buscar argumentos.A coincidência no juízo feito acerca da
Cúria Romana explica que o Reformador tivesse procurado um exemplar da Utopia;efectivamente,
a 18 de Fevereiro de 1518, solicitou ao prior agostinho de Erfurt que lho comprasse na feira de
Francoforte. Lutero, porém, não era arauto isolado; os concílios, como o de Latrão, em 1514, fizeram
admoestações quanto à necessidade de manter isenção política, mas não lograram convencer nem
mudar os comportamentos.

[603]
Dá-se assim o caso de a justiça no seu conjunto parecer que não é mais
que virtude plebeia e de baixa extracção, sentada muitos degraus abaixo do
trono régio, ou então que há duas justiças, uma que vale para o povo, que
caminha a pé e ao nível do solo, sem ser capaz de alguma vez saltar as
barreiras, limitada com peias de todos os lados, outra, a virtude dos prín-
cipes, que, sendo mais elevada que a do povo, também é de longe mais libe-
ral, de tal modo que só não lhe é permitido tudo quanto não lhe apraz155.
Tais comportamentos de príncipes, que acabo de referir e que os
levam a não observar os tratados são ali, ao que me apercebo, motivo para
que os utopienses não celebrem nenhum, mas por certo mudariam de
parecer se vivessem por aquil56.
Aliás, ainda que se lhes a.figurasse que os tratados eram observados,
haveria de lhes causar espécie verem o costume de ratificar tudo com um
juramento de sanção religiosa (como se dois povos separados apenas por
curto intervalo de uma colina ou de uma ribeira, não estivessem vinculados
por um pacto natural); /129/ é que essa prática até parece levar os homens
a crer que nasceram para serem adversários e inimigos uns dos outros e que
têm por obrigação investir uns contra os outros, a menos que haja tratados
a proibi-lo; assim, não é por haver tratados celebrados que se cultivam as boas
relações de amizade, pois continua a haver direito de pilhagem, sempre que,
por imprevidência dos redactores de um tratado, nenhuma interdição a esse
respeito tenha ficado compreendida e acautelada nos pactos. Ora, ao con-
trário de rudo isto, consideram eles que ninguém deve ser tomado por inimigo,
se dele nunca partiu qualquer ofensa. Partilhar a mesma narureza vale de
pacto, basta e é prefeóvel que os homens vivam unidos entre si mais por bem
quererem do que por protocolos, mais pelo coração do que pelas palavras.

C OISAS DE GUERRA

A acção bélica [em latim bellum] é algo de verdadeiramente bestial


[e m latim, belluinum ] l 57 , mesmo que não haja qualquer tipo de bestas para

tmmanis f era, quast be/lum gerens, a quo belutnus adtecttuum. Cícero, Off. 1, 11, 34, acentua que a
dtsceptatto (disputa racional por palavras) é própria dos homens em contraste com os animais que
usam a vis (força). Note·se, por outro lado, que bestia na linguagem dos juristaS se fixou no valor de
"animal selvagem", quando primitivamente era designação indeterminada. A atitude de Moro perante a
guerra é de pacifismo, coincidindo com os humanistaS do seu tempo, mas não exclui a legítima defesa.

(605]
quem ela seja tão frequente como para o homem o recurso a ela; muito
embora tal aconteça por parte do homem, é rotundamente proscrita pelos
utopianos e, ao invés do que se passa em todas as nações, a custo se encon-
trará coisa tão desqualificada como a glória que se busca na guerra158.
Por isso mesmo, ainda que não só os homens, mas até as mulheres, se
entreguem em dias fixos a exercícios militares, por forma a estarem habi-
litados para o combatel 59, caso as circunstâncias o imponham, nem por isso
os tomam à sua parte, a não ser para protegerem as suas fronteiras ou para
escorraçarem os inimigos que tenham invadido os territórios dos aliados ou
bem assim, quando, levados por sentimento de comiseração, se propõem
libertar da servidão e do jugo de qualquer tirano algum povo oprimido pela
tirania (fazendo-o, aliás, por filantropia)l60. Muito embora prestem apoio
sem esperar recompensa, nem sempre é com o objectivo de defesa, mas
também por retaliação /130/ e para responder a ataques. Fazem-no como
medida última, mas não sem antes tomarem conselho quando tudo está
ainda no seu posto e só depois de reflectirem sobre tal intervenção e de
terem exigido reparação sem a receberem, pois só então se devem assumir
como promotores da guerra 161. Tal decisão, porém, é tomada não somente

160 Cf. Aristóteles, Pol. , 5, 8, 18, 13 l 2a·b. A discussão sobre a legitimidade do tira.n.icídio fazia
pane de foros eclesiãsticos; assim aconteceu no concílio de Constança, um século antes, em 1416,
onde as proposições que defendiam a sua legitimidade foram condenadas; cf.A. Bride, "Tyrannicide",
Dict. Théologie CathoUque, 15, 198$-2015.
16 1 A prãtica de, antes de declarar guerra, reclam.ar reparação pertencia ao código romano dos

feciais:"pode-se considerar que não é justa a guerra se não for preViamente exigida satisfação oficial"
- Cícero, De ojf. l, 11, 34 - 13,40. A doutrina tradicional, que assenta em SantoAgostinho,adnúte que
a guerra defensiva é sempre justa, mas a guerra ofensiva supõe condições: correlação entre a perda
e a compensação, entre perigo emergente e dano causado, entre ineVitabilidade da guerra e possibi·
!idade de evitar a perda por acção inimiga. A rejeição da guerra está no espírito dos hwnanisw:
Erasmo, no comentário às Cartas de Cícero, VI, 6, 5, afirma que "uma paz mesmo injusta é preferivel a
uma guerra justa";John Colet, director espiritual de Moro, num sermão pregado na presença do rei,
afuma que não hã guerra que seja justa (CWE,vm, 243).

[607]
de cada vez que uma pilhagem se fez mediante incursão armada, mas
também, e nesse caso com sentimentos mais hostis, quando os seus homens
de negócios, em qualquer povo, seja em razão de leis i.túquas, seja por
violação imperdoável de leis boas, são objecto de ataque, sob capa de
justiça 162 .
Não foi outra a razão da guerra que os utopienses levaram a cabo contra
os alaopolitas a favor dos nefelogetas pouco antes do tempo em que
começa o nosso relatol63: tratou-se de um agravo insofismável feito por
parte dos alaopolitas aos nefelogetas, a pretexto de uma violação de direito
causada por mercadores destes (assim. eles o interpretam); houvesse tal
direito ou tenha havido agravo, este foi vingado através de guerra tão atroz
que aos ódios e às forças de ambas as partes se juntaram as paixões e os
exércitos dos povos circunvizinhos: alguns desses povos, que se contavam
entre os mais prósperos, ficaram arruinados, outros fortemente abalados, e
só a rendição e a sujeição dos alaopolitas pôs termo às desgraças que se
sucediam umas às outras. Por tal motivo (e até porque os utopienses não
lutavam em causa própria), os alaopolitas caíram sob o donúnio dos
nefelogetas, com quem, em tempo de paz, não teriam podido competir.
Quando se trata de responder a agravos, mesmo de tipo pecuniário, em
que o prejuízo recai sobre os aliados, do lado dos utopienses verifica-se
violência semelhante: em caso de manobras fraudulenta:s que· subtraem
bens, sem que haja violência pessoal, a sua vindicta persiste até ser feita
reparação, mas limita-se a boicotar as relações comerciais que mantinham
com aquele povo; /131/ não é assim quando estão em jogo eles próprios,
não porque tenham em menos apreço os interesses dos seus concidadãos

163 Os termos são Interpretados como "habitantes das nuvens• ou "povo que vivem debaixo
das nuvens• (vE<j>ÉÀl) + yEvfr11s) - nome possivelmente Inspirado nas Nuvens de Aristófanes,
através de Luciano, Vera historia - contra os "cidadãos sem cidade", Isto é "errantes• (a + >.aós +
lTOÀ( Tl'}S').

[609)
que os dos povos aliados, mas porque toleram menos que o dinheiro seja
furtado aos outros que roubado a eles próprios, dado o facto que os
negociantes dos aliados, por verem arruinados bens privados, sofrem um
rude golpe com o prejuízo, ao passo que os seus concidadãos nada perdem
que não seja de bens públicos, para mais correspondente a produtos
excedentários, e até dispensáveis, pois de contrário aqueles bens não teriam
transitado para fora. Assim, compreende-se que esteja fora da reacção de
quem quer que seja o prejuízo sofrido. É que consideram eles que seria
demasiado cruel fazer morrer tanta gente para vingar um dano de que
ninguém acabaria por sentir os efeitos seja no dia-a-dia, seja nos meios de
subsistência. Quanto ao mais, se alguém dos seus em algum sítio é atacado
e fica ferido ou é morto, seja que isso ocorre por acto público, seja que se
verifica por acção particular, depois de os factos serem apresentados a
público por delegados competentes, se não forem entregues os criminosos,
não podem eles deixar de responder e imediatamente fazem declaração de
guerra. Os responsáveis pelo crime são punidos com a morte ou com a
servidão.
Não têm pejo de uma vitória cruenta, mas sentem que seria vergonhoso
(e consideram que seria loucura) que isso servisse para alguém obter
mercadorias preciosas, pois seria preço excessivo.
Se alcançam uma vitória encurralando os inimigos por habilidade e
engano, então celebram o acontecimento a grandes gastos e organizam um
triunfo público, levantando os troféus como se nisso estivesse envolvido um
acto de bravura. Só nessas circunstâncias se gabam de terem actuado como
homens e terem procedido com valor; fazem-no todas as vezes que vencem
desse modo, dado que nenhuma criatura, com excepção do homem, o
poderia fazer, já que implica forças de inteligêncial64. De facto, explicam,
com as forças do corpo, lutam os ursos, os leões, os javalis, os lobos, os cães
e outras feras, que na sua maior parte nos ultrapassam pela força e pela
ferocidade, mas todas são vencidas pela inteligência e pela razãol65. /132/
Na guerra, visam apenas um coisa: obter aquilo que pretendem; aliás, se
o tivessem antes conseguido, isso teria evitado a declaração de guerra.
Quando a natureza do conflito não permite composição com os inimigos,

165 Veja-se o que mais acima foi dito a este respeito.

[611]
eles reclamam vingança tão cruel sobre aqueles a quem imputam o acon-
tecido que o terror lhes retira capacidade de voltarem a cometer ousadia
semelhante.
Tais são os objectivos que se propõem e que procuram obter rapida-
mente, sem, no entanto, descuidarem evitar perigos inúteis, de preferência
a andarem atrás de loas e de fama.
Assim, mal declaram a guerra, tomam cuidado em mandar afixar car-
tazes autenticados com o sinete oficial, em lugares bem visíveis da terra
inimiga, mas em acção secreta, todos ao mesmo tempo, e em grande quan-
tidade, oferecendo prémios magníficos a quem eliminar o príncipe inimigo
e outros prémios menos valiosos, embora atractivos, pelas cabeças de um
determinado número de indivíduos cujos nomes são escritos nos cartazes
e que, segundo o próprio príncipe, são responsáveis por terem conduzido
as operações contra ele. A soma prometida ao executante é elevada ao
dobro se algum dos proscritos for entregue com vida; aliás, são eles próprios
incitados a conspirarem contra os seus próprios companheiros, com a
promessa dos mesmos prémios acrescidos de impunidade. O resultado é
que depressa os chefes inimigos começam a suspeitar de toda a gente,
perdem confiança nos seus, eles próprios deixam de inspirar confiança e
cada um vive num terror extremo e sob ameaça de perigos não pequenos.
De facto , consta que vezes sem conta se deu o caso de boa parte deles, a
começar pelo próprio príncipe, terem sido traídos por aqueles em quem
depositavam a maior confiança.Tão fácil é que os prémios incitem ao crime,
/133/ seja ele qual for, que nisso não olham a qualquer limite. Mas, conscien-
tes dos riscos enormes a que incitam, procuram compensar a grandeza do
p erigo com a mole das recompensas; por isso mesmo, não prometem apenas
imensa quantia de ouro166, mas também a propriedade de grandes rendi-
mentos em lugares bem seguros, situados em territórios de aliados, em posse
perpétua e directa; e cumprem com a maior fidelidade o que prometeml67.
Tal costume de oferecer dinheiro aos inimigos e de os comprar com ele
era reprovado por outros povos como crime cn1el, próprio de esp írito

167 A realidade do tempo permitia a Moro esta forma de cinismo p olítico: a figura do papa
Júlio II, ao instaurar "a política do poder" como critério de todas as decisões, abrira as portas a arbi-
trariedades. Maquiavel, na sua obra /l Prlncipe, escrita jã em 1513, mas apenas publicada em 1532, e
que por isso não podia ter sido lida por Moro, reflecte também semelhante situação.

(613]
degenerado; os utopianos, com as devidas cautelas, consideram-no
merecedor de elogio, pois dessa maneira põem termo às situações mais
graves de guerra, sem terem de travar qualquer combate; admitem que com
isso estão eles a ser humanos e tolerantes, pois, com o extermínio de alguns
criminosos 168, poupam muitas vidas de inocentes que haveriam de morrer
se entrassem em combatel69. Em parte pelos seus e em parte pelos
inimigos, de cujos povos quase chegam a ter não menos compaixão que dos
seus próprios concidadãos, sabem que eles não entraram em guerra por
iniciativa própria, mas conduzidos a isso pelo desvario dos príncipes. Se a
situação não se resolve por este meio, fomentam a dissenção, lançando-lhe
as sementes ao induzirem algum irmão do príncipe ou algum dos seus
nobres a ficar na expectativa de tomar conta do reinol70. Se as facções
internas perdem força, excitam os povos vizinhos a hostilizá-los, depois
de terem exumado algum velho motivo 171, que nunca falha no .que toca
aos reis, prometendo-lhes auxilio para guerrearem e fornecendo-lhes manan-
ciais de dinheirol72. Quanto aos seus próprios concidadãos, a participação
deles em tudo isto é múito escassa; a eles dedicam uma afeição tão singular
que não trocariam de boa fé um único dos seus pelo príncipe adversário.
Mas, quanto ao ouro e à prata, visto que os armazenam precisamente com

169 A condenação da guerra chega ao extremo de admitir a corrupção de agentes na parte


inimiga, lembrando possivelmente o que Cícero, II Contra Verrem, manifestara sobre o poder do
dinheiro. Em todo o caso, os romanos recusavam-se a premiar os traidores: Cícero, O.ff. 1, 13, 40;
3, 22, 86; Gélio, NA 3, 8 , l-8;Tácito,Ann., 2, 88.
110 As referências de base fazem parte da história recente das estratégias desenvolvidas pela
França para levantar uma insurreição na Escócia contra a Inglaterra, tendo-se permitido "o rei
francês enviar homens e dinheiro ao Duque de Albânia, regente durante a menoridade de Jaime V
a fim de lançar a guerra contra a Inglaterra•, como se lia num registo do tempo.
111 As pretensões d o rei de Inglaterra sobre território fran cês ou as do rei de França sobre
Milão e Nápoles baseavam-se em razões históricas; foram satirizadas também por Erasmo.
172 Entre os meios de obter glória e alcançar o poder estava a capacidade monetária, depois
da ciência militar, da capacidade de mobilização, da autoridade: cf. Cícero, Off. 2, 13, 43 - 14, 51.
Quanto à corrupção, Cícero, Off. 3, 21, 82, lembrava que César tinha sempre nos seus lábios dois
versos das Fenlctas: "se há que violar o direito, com o objectivo d e chegar ao poder / viole-se;
preste-se culto à piedade com outras coisas".

[615]
esta finalidade, não lhes importa em empenhá-los, tanto mais que não /134/
passariam a viver menos à-vontade, mesmo que aplicassem todo o aprovi-
sionamento. Aliás, além das riquezas conservadas no interior do país,
possuem também no estrangeiro um tesouro inesgotável, constituído, como
expus anteriormente, por somas que lhes devem p.umerosas nações; é por
isso que mandam para a guerra soldados recrutados de qualquer parte,
sobretudo de entre os zapoletasl73.
Este povo habita a quinhentas milhas da Utopia, do lado do sol
nascente; é horrendo, selvático, feroz; vive satisfeito nas florestas e nas
ásperas montanhas, em que se alimenta.Trata-se de gente rude, habituada ao
calor, ao frio e ao trabalho, desconhece os prazeres da vida e não se aplica
à agricultura nem se entrega à arte da construção nem do vestuário, mas
apenas cuida dos rebanhos de animais. Em grande parte vive da caça e da
pilhagem. Criados só para a guerra, aproveitam zelosamente todas as
ocasiões para tal efeito, abraçam avidamente qualquer ocasião em que ela
se lhes depare e deixam a sua terra em bandos numerosos, para se
oferecerem a todos aqueles que andam em busca de soldados. O único

celebrar festivamente as vitórias. Retenha·se que o recurso a mercenários deu azo a modificações na
estratégia bélica na Antiguidade: entregavam-se a eles tarefas especializadas e o recrutamento muitaS
vezes era feito em zonas periféricas, como a Península Ibérica (não deixava de ocorrer também em
pontos centrais, como aconteceu com Esparta, pelo lado dos generais gregos ou cartagineses); o
recurso a eles tomou-se regular e até institucional, a que só Roma escapou nos tempos de avanço da
conquista. O sistema oferecia vantagens, mas também tinha desvantagens e pwtha em causa as
estratégias de combate: regista-se uma revolta de mercenários celtaS em Cartago em 24 1 a.C.; a queda
de Roma em 410 é por vezes atribuída à f.llta de liquidez para pagar aos mercenários. Cf. Sandra Pere
Nogues,Mercenalres et mercenarlat en Occldent de la ftn du Ve sl~cle au début du /le si~cle avant
J-C.,Toulouse, 2000 (diss. Dout.). As experiências recentes são de má memória: por ironia das coisas,
em 1989, as Nações Unidas adoptaram uma convenção contra o recrutamento, a utilização, o finan.
ciamento e o treino de mercenários, mas o texto não foi ratificado por mais de vinte e cinco países
e em Junho de 2004, apenas entre eles constavam três da União Europeia. Note-se que Erasmo,
Educação do prfnclpe cristão, considerava que não havia classe mais abjecta que a dos mercenários.

[617)
mester que sabem fazer é este, que é o de matar, ao serviço de quem lhes
paga, lutando denodadamente por ele sem desdizerem de compromissos;
mas também sem respeitarem um prazo determinado, pois têm como
condição que se no dia seguinte lhes for oferecido um salário maior, mesmo
que seja por um inimigo, partem para outro lado, muito embora possam
regressar posteriormente. Raro é travar-se um combate em que uma boa
parte deles não se encontre nas fileiras de ambos os lados; assim acontece
que todos os dias se vêem homens ligados por laços de sangue que,
contratados para o mesmo campo, mantinham relações da maior familia-
ridade, pouco tempo depois se alistam em exércitos opostos e se enfrentam
como inimigos, de forma encanúçada, esquecidos dos laços de sangue,
postergando a amizade, /135/ batendo-se uns contra os outros, sem outra
razão para se lançarem na perdição uns dos outros que o facto de terem
sido assalariados por chefes diversos, por uma somazita exígua que os
decide, pois eles a têm em tanta conta que o aumento de uns tostões na
jornada lhes basta para mudarem de campo. Em pouco tempo se apossa
deles a cupidez do dinheiro, muito embora não lhe sirva para nada, já que
quanto mais o buscam a preço de sangue, de imediato o consomem na
devassidão mais bai.xaI74.
Este povo combate pelos utopienses contra qualquer povo em qualquer
parte, porque são contratados por eles para o seu trabalho, a preço que não
encontram igual noutro lado. Na realidade, se os utopienses buscam gente
honesta que os sirva, não deixam também de contratar homens de baixa
condição para cometerem abusos com eles; quando a siruação o requer,
incitando-os a troco das maiores promessas, expõem-nos aos maiores peri-
gos, pelo que a maior parte das vezes grande número deles nunca volta para
reclamar o que lhes fora prometido; aos que sobrevivem cumprem leal-
mente o que haviam prometido, com o objectivo de os anim~em a repetir
temeridades semelhantes. Nem sequer têm qualquer escrúpulo em perder
o maior número deles, pois estão convencidos de que o género humano
lhes haveria de ficar agradecido por terem dado ocasião a que a terra

matam em todas as direcções, a ferocidade dos Suíços é notória e não há sexo ou idade que escape
à sua desumanidade".

[619]
inteira fosse purgada de uma imundície tão grande como a deste povo tão
repugnante e iníquol75.
Em segundo lugar, servem-se os utopienses das tropas daqueles povos
contra os quais eles próprios pegam em armas para se defenderem; depois
lançam mão das tropas auxiliares dos restantes aliados. Por fim, recorrem
aos seus concidadãos, e é de entre estes que escolhem algum homem de
comprovado valor para o colocarem à frente de todo o exércitol76.A este
dão-lhe dois lugar-tenentes, que não têm qualquer função enquanto o
primeiro for vivo /136/ e estiver no activo; se ele for capturado ou morto,
sucede-lhe um dos lugar-tenentes, como se fosse seu herdeiro; a esse sucede
o terceiro se as circunstâncias assim o exigirem 177, de forma a evitar que
por desaparecimento de comando (dadas as contingências imperativas da
guerra) o exército inteiro se desmoralize.
Em cada cidade, recruta-se um exército de homens que se apresentam
como voluntários, pois ninguém é compelido à força a fazer parte de um
exército que sai para o estrangeiro, estando eles, de resto, convencidos de
que a alguém um tanto mais tímido por natureza nada o fará comportar-se
com bravura, mas que acabará até por contagiar com o medo os camaradas.
No entanto, se deflagrar algum caso de guerra no seu território, mesmo os
poltrões, desde que tenham corpo vigoroso, são misturados a outros
melhores e colocam-nos nos navios ou espalhados pelas muralhas, em
lugares de onde não podem fugir, de tal modo que a vergonha dos seus,
quando o inimigo está a dois passos, e a impossibilidade da fuga, tiram-lhes
o medo e muitas vezes a extrema necessidade converte-se em valentia.
Se ninguém é arrastado à força para uma guerra de morte, por seu lado,
as mulheres que querem acompanhar os maridos nas fileiras, não ficam
impedidas de o fazerem e até são aconselhadas e incitadas a isso com os
louvores que lhes prestam; as que partem com o seu marido, colocam cada
uma lado a lado com ele nas fileiras; ao lado de cada combatente ficam os
seus filhos , os parentes, os consangillneos, com o objectivo de servirem de
arei.mo recíproco, já que a natureza é a primeira a estimular à prestação
de auxílio mútuo. Nada de mais vergonhoso para um cônjuge que voltar a

177 Cf. Tucídides, Guerra do Peloponeso, IY, 38, onde se assinala prática similar no exército
lacedemónio.

[621]
casa sem o outro, ou para um filho regressar sem trazer os pais; acontece
assim que, se o combate é corpo a corpo e o inimigo se obstina em resistir,
a luta prolonga-se de forma atroz e apenas se resolve com o extermínio 178.
Na realidade, procura-se, por todos os meios, /13 7/ tomar desnecessária
a participação nos combates, desde que se possa manobrar a guerra através
de serviços de substituição feitos por mercenários. No entanto, quando isso
não pode ser evitado e eles próprios têm de entrar em combate, a
intrepidez com que o fazem só tem comparação com a prudência com que
se esquivavam enquanto estavam em condições disso. Não empregam toda
a sua energia no primeiro embate, mas vão-na aumentando a pouco e
pouco, à medida que o tempo passa e que a acção se prolonga, reforçando
de tal modo a coragem que é mais fácil dar-lhes a morte que fazê-los arredar
pé. Na realidade, a certeza de cada um ter a subsistência garantida na
própria pátria e o não precisar de viver ansioso a pensar no que vai deixar
aos filhos (uma inquietude que por todá a parte quebra os espíritos da
melhor estirpe) toma qualquer um excelente e capaz de não se deixar
vencer. A sua perícia da disciplina militar gera intrepidez; enfim, a menta-
lidade em que foram formados (com doutrinas de que se foram imbuindo
desde a in.f'ancia e com boas práticas colectivas) acrescenta maior coragem.
Por tal motivo, consideram que a vida não é tão desprezível que se dê de
barato n em se deve estar tão doentiamente apegado a ela que, no momento
em que uma boa causa aconselhe a expô-la, seja de recusar fazê-lo, pois isso
seria mesquinhez e cobardia.
Quando a refrega no seu conjunto atinge o auge, jovens de elite e dis-
postos a tudo, tomam à sua conta o comandante adversário, avançam de
peito aberto contra ele, manobram ciladas, visam-no ora de longe ora de perto,
para o atacar adoptam uma formação em cwlha 179, alongada e ininterrupta,
na qual o combatentes se vão revezando permanentemente, tomando os
que estão folgados o lugar dos que chegaram ao extremo do cansaço e
assim é raro que, se não se puser em fuga , o adversário não seja morto ou
não caia ainda vivo em poder dos inimigos.

179 O avanço em cunha é conhecida da estratégia militar na Antiguidade: César, De bello Galltco,
6,40,7;Vu-g., En., 12,269;Tito Llvio, Hist., 2,50,9; Vegécio, Epitoma, 3.

[623]
Uma vez vitoriosos, nunca os utopienses se entregam ao massacre.
Efectivamente, preferem prender os fugitivos a matá-los; /138/ tão-pouco se
lançam em sua perseguição sem deixarem entretanto uma wúdade de
reserva, em formação de combate, por tal forma que apenas depois de
terem vencido com as restantes wúdades consideram ter alcançado a vitória
nas suas .fileiras de retaguarda, preferindo deixar fugir todos os inimigos a
criar nos seus o hábito de romper desordenadamente as .fileiras para per-
seguir os fugitivos. Não lhes foge a eles da memória que, por mais de uma
vez, aconteceu que, depois de derrotado o grosso do seu exército e posto
em fuga, quando os inimigos, festejando a vitória, iam no seu encalce, desor-
denadamente, os poucos deles que estavam de precaução para qualquer
eventualidade, caindo de improviso sobre eles (dispersos, desenquadrados
e sem o esperarem, pois estavam convencidos de que a vitória era certa),
inverteram a sorte da batalha e, arrancando-lhes das mãos uma vitória que
parecia assegurada e sem contestação, os vencidos de antes acabaram por
se tornar vencedoreslSO_
Não é fácil dizer se são mais astutos em armar ciladasl81 ou mais
prudentes em evitá-lasl82: alguma vez julgar-se-á que se preparam para
proceder à retirada; em contrapartida, no momento em que se decidem
fazê-la, até parece que não haviam pensado nisso. Efectivamente, quando se
sentem em demasiado aperto, ou pelo número ou pela posição, é então que
levantam o acampamento de noite, retiram em segredo ou adoptam qual-
quer outro estratagema para fugirem ao inimigo; se o fazem em pleno dia, é
devagar e observando sempre a formatura , por tal modo que não é menos
perigoso assaltá-los quando se retiram que quando avançam.
Fortificam o acampamento com a maior diligência, cavando uma trin-
cheira muito profunda e larga e afastando a terra escavada de dentro; não se

181 Semelhante estratégia tinha críticos e era menos bem vista que a luta directa; João Crisós-

tomo, De sacerd-Otio, 1, 5, desdenha das vitórias de generais que se habilitaram com tal expediente.
182 As regras de lealdade implicam a condenação do embuste e da cilada.A doutrina estava em

Agostinho (Quaest. ln Heptat. 6,10 - PL 34, 781) e em Tomás de Aquino (Summa, 2.• 2.ae, q. 40 a. 3:
Utrum slt llcltum l n bellfs u ti lnsldtfs). Mais que tudo aconselha-se a uma boa estratégia, que é fruto
de inteligência e perspicácia.

[625]
servem para isso de gente estranha, pois são os próprios soldados quem a
isso se entrega e todo o exército se aplica nisso, com excepção dos que
ficam de sentinela, em armas, frente às trincheiras para evitarem ser sur-
preendidos. / 139/ E assim, com o empenho de todos, levantam-se grandes
fortificações, que abraçam um vasto espaço e ficam prontas mais depressa
do que se poderia prever.
Para resistirem aos golpes revestem-se de armaduras sólidas, mas não
desajustadas ao movimento ou a qualquer manobra de braço, por tal modo
que, mesmo a nadarem, não sentem embaraço; de facto, nadar armados
costuma fazer parte do treino militarl83. Para combate a distância, as armas
são as flechas, que, da forma mais agressiva, sem deixar de ser a mais
certeira, lançam não apenas os peões, mas também os cavaleiros 184; no
combate corpo a corpo, não utilizam espadas mas machados, que ferem de
morte pelo gume ou pelo peso, seja por estocada seja por golpel85.
São de grande engenho a inventar máquinas de guerra que, depois de
feitas, dissimulam com muita habilidade, não as trazendo a público senão
quando as circunstâncias o exigem, para .não serem mais objecto de troça
que de uso; no seu fabrico têm em vista a facilidade do transp orte e a
possibilidade de se manobrarem em todas as direcçõesI86.

185 O uso da espada tinha limitações que vinham da fragilidade do material: sem têmpera sufi-
ciente, não servia para rasgar as armaduras; em seu lugar eram usadas maças e machados. Semelhanças
para o passo poderão reconhecer-se no relato de José, o Indiano; cf. Jttnerarlum Portugalúms{um .. ,
LXXXV", cap. CXXXVI: pedires praeliantur arcubus et sagittts necnon macherls et clipeis obrotundis,
hastis nonnu/Jis utuntur ln praelio, digladiatores sunt exim ii, a/li selorlcant piscium pellibus, quae
sunt ad quoscumque tctus prope tmpenetrabtles altt lorlcas et tboraces ferro fabrlcant.
186 As bombardas, que eram bocas de fogo que atiravam bolas de pedra e serviam essencial-
mente para ataque e defesa das cidades, apareceram pela primeira vez em França em 1345, tendo sido
utilizadas íá pelos ingleses na batalha de Crécy (1346); difíceis de transportar e pouco seguras no
maneío, foram-se tomando mais seguras na guerra de cerco a partir de 1415 (Azincourt). Porque
inspiravam receios e não correspondiam aos ideais de lealdade, armas como a bombarda, e depois o
canhão, eram consideradas apetrechos demoníacos e indignos de homens, particularmente de
cristãos (cf. Erasmo, Querela pacis). A personalidade de Leonardo da Vmci, ao serviço do poder
político, não deixará de ser sensível à resolução de maquinismos que aplicam também neste domínio
da guerra as capacidades da sua imaginação criadora - procurando resolver problemas de transporte
e versatilidade de uso.

[627]
Observam tão escrupulosamente as tréguas estabelecidas com os ini-
migos que, mesmo quando provocados, não as violaml87. Não devastam o
território nem põem fogo às searas; mais ainda, tanto quanto seja possível,
evitam danificá-las com as pisadas dos soldados ou dos cavalos, conside-
rando que o crescimento redunda em proveito deles próprios. Não moles-
tam ninguém que não tenha pegado em armas, a não ser que se trate de
um espião. Tomam sob sua protecção as cidades que se entregaram e não
saqueiam as que tomaram de assaltol88, mas executam os que se ten:11am
oposto à rendição, ao mesmo tempo que levam os restantes defensores
como escravos. Quanto ao conjunto da população que não pegou em armas,
deixam-na em paz. Quando reconhecem que houve quem aconselhou a
rendição, distribuem por ele uma parte dos bens que pertenciam aos
condenados, enquanto repartem o resto pelas tropas auxiliares. Facto é
que nenhum deles /140/ toma para si seja o que for dos despojos de
guerra.
Uma vez terminada a guerra, não fazem pagar aos aliados os gastos que
tenham feito em favor deles, mas imputam-nos aos vencidos e , a esse título,
exigem parte em dinheiro (que reservam para operações de guerra), parte
em imóveis que lhes rendem não pouco ao longo dos tempos. Retiram eles
actualmente de numerosos povos não poucas receitas deste tipo. Tendo
sido elas constituídas pouco a pouco por várias razões, ultrapassam por ano
a soma de uns setecentos mil ducadosl89 e são entregues a alguns cidadãos,
designados por questores, os quais com isso podem viver de forma
esplêndida e com estatuto social de magnatesl90; sobrando ainda muito
dinheiro, dá ele entrada no erário público, a não ser que, como acontece
muitas vezes, decidam emprestá-lo àquele mesmo povo a quem o deixam
por tanto tempo quanto o consideram necessário, sendo até raro que reda-

190 É possível que, por ironia, Moro, que noutros passos da Utopia sublinha o apreço pela simpli·
cidade de vida, deixe aqui escapar uma queixa contra a admlnistração régia que representava em
mJssão oficial, p ela forma precária em que era obrigado a enfrentar dificuldades econónúcas longe
do seu país.

[629)
mem alguma vez a totalidade do dinheiro191. Quanto aos imóveis, parte
afectam-nos àqueles que por seu incitamento se expuseram aos perigos de
que falámos mais atrás 192.
Caso algum príncipe tome armas contra eles e se prepare para invadir
os seus domínios, eles mobilizam-se sem tardar e fazem-lhe frente fora das
próprias fronteiras; efectivamente, não se expõem a travar guerra nos seus
próprios territórios nem haverá tanta urgência em o fazer que se vejam
forçados a admitir tropas estrangeiras de apoio na sua ilhal93.

A REUGIÃO DOS UTOPIENSES

Várias são as formas de religião194,pois há diferenças não apenas de ilha


para ilha, mas também entre as cidades: uns adoram o Sol, outros a Lua,
outros, algum dos planetas195; /141/ há quem fixa os olhos num homem
qualquer que em tempos se notabilizou por valentia ou por feitos gloriosos
e o toma não apenas como divino, mas até como divindade supremal96.
No entanto, a grande maioria dos utopienses, que é de longe também a
mais sensata, não reconhece nenhuma dessas divindades, mas um Deus
único, incognoscível, eterno, infinito, inexplicável, que supera o que o

195 Cf. Itfnerarlum PrJrtugallenstum, fls. VI, XLVII, LXXXVIIv, citado por Luís de Matos que
releva passos de Ca'da Mosto, piloto de Álvares Cabral, José Indiano: Solem, uidelicet et Limam
adorant. Ido/a colunt, necnon So/em et Lunam. A/ti alta ido/a co/unt. Solem nonnulli et a/ti
Lunam et planetas superstftfone admodum ido/is seruiunt. Cf., na Bíblia, Sap. 13-14.
196 O esquema é tradicional e pode encontrar-se, por exemplo, em Martinho de Braga: cf. Ins-
truçilo pastoral sobre as superstições rurais (De correcttone rusttcorum) - Edição crítica, tra-
dução, estudo de Aires A. Nascimento, Lisboa, Edições Cosmos, 1997. A referência vai para
Evémero de Messina, ca. 300 a.C.; cf.Agostinho, De civ. Dei, 6, 7; 7, 27; 8, 5, etc.

[631)
espírito humano é capaz de apreender, que abarca todo este universo por
potência e não fisicamentel97. Chamam-lhe fonte de vidal98.A ele apenas
atribuem a origem, o crescimento, o progresso, a evolução e o termo de
todas as coisas.A ele apenas se encomendam, a ele, e a mais nenhum, diri-
gem todo o culto divino.Aliás, todos os outros, embora acreditando em rea-
lidades diversas, concordam num ponto comum, a saber, que há uma única
entidade suprema e que a ela se deve a formação e o governo do universo;
convergem numa designação comum, a de Mitral99, na língua da terra, mas
diferem no facto de que um tem em mente uma coisa e outro outra.
Pense cada um o que pensar, facto é que consideram ente supremo
aquele a quem por natureza, por divindade e por majestade é atribuída,
consensualmente por todos os povos, a totalidade das coisas.Aliás, a pouco
e pouco, todos vão cortando com as diversas crenças supersticiosas e
convergindo para um única forma de religião que a boro título parece
sobrepor-se a todas as outras200. Não restam dúvidas de que as outras

198 O termo latino parens corresponde a fo~te de vida, mais que wna relação genética (proge-
nitor); em passo anterior, o mesmo termo tem o significado de "matriz". A. Prévost prefere traduzir
por "íltre-qtú-engendre".
199 Explica A. Prévost, op. clt., ad. loc., que o nome de Mitra é simbólico, como o de Abra:x:a é
nome da !Cabala. Em todo o caso, nada disso supõe o texto da Utopia: remete para a doutrina dos
Persas, que já anteriormente fora evocada; no exotismo que supõe, serve para acentuar o carácter
misterioso e inacessível da divindade. No entanto, a reminiscência vem das leituras de Dionísio
Areopagita (Pseudo), que o antigo companheiro de Moro em Oxford, William Grocyn, comentara na
catedral de São Paulo, em conferências sobre as Hierarquias Celestiais (cf.A. Prévost, op. clt., p . XV).
O culto de Mitra tive.ra um enorme desenvolvimento nos séculos u e m no Império Romano; não são
de excluir contactos com o Cristianismo que o carácter sacrificial dos ritos acenruava, mas não foram
assumidos pela teologia dos primitivos Padres.
200 A praeparatto evangelica foi categoria utilizada pelos primitivos Padres da Igreja quando
explicavam o encaminhamento da lústória para Cristo e respondiam a quantos se interrogavam sobre
a sorte dos homens que haviam vivido antes de ter chegado a mensagem do Evangelho. Os Desco-
brimentos trouxeram a debate questões semelllantes. A concepção de Moro é possivelmente mais
larga, sob influência de Pico della Mirandola (figura a que o nosso humanista dedicou apreço): todas
as tradições culturais deveriam convergir para uma unidade espiritual.

(633]
formas já de há muito se teriam dissipado se qualquer desgraça ocorrida
quando alguém se propõe mudar de religião fosse interpretada não como
fruto do acaso, mas como intimidação da divindade /142/ que, do céu, se
vinga da impiedade que seria a intenção de abandonar o seu culto201.
Ora, desde que tiveram conhecimento, por nossa parte, do nome de
Cristo, da sua doutrina, da sua vida, dos seus milagres bem como da coragem
admirável de tantos mártires, cujo sangue derramado de livre vontade
trouxe povos de longe e de largo tão numerosos para o seu seguimento,
nem se poderá imaginar com que sentimentos favoráveis também eles se
mostraram202, fosse por inspiração de Deus, no segredo mais recôndito de
si mesmos, fosse porque a sua própria doutrina mais significativa lhes
parecia próxima de uma heresia203, ainda que eu próprio seja levado a crer
que não era de pouca importância para eles isto em particular, terem
ouvido que era do agrado de Cristo que os discípulos partilhassem os bens
em comum e que nas fraternidades mais autênticas dos cristãos isso
continua em vigor204. Qualquer que tenha sido o motivo que a seu tempo

202 A experiência de Moro não llie pennitia ir mais além, mas o testemunho de quem fizera os
primeiros contactos com os novos povos poderá ter trazido elementos que não eram apenas fruto
de imaginação e de utopia: em tomo de 1450, o encontro de Diogo Gomes de Sintra com os africanos
da Guiné, em contexto de implantação muçulmana, teve efeitos que se equiparam ao que Moro inter·
preta; cf. Diogo Gomes de Sintra, Descobrimento primeiro da Gutné - De prima inuenttone Guinee
(Manuscrito de Valentim Fernandes): edição crítica, tradução, notas de comentário de Aires A. Nas-
cimento, Llsboa, Ed. Colibri, 2002, pp. 82 ss.
203 As fontes portuguesas podem ter sido inspiradoras do andamento do texto de Moro: no
relato da viagem do Gama, no de José, o Indiano, no de Cabral, haVia muitas referências ao cristia·
nismo de gentes da índia; as observações que aí se apresentavam sobre a convivência de religiões não
podiam deixar indiferente qualquer leitor. As semelhanças entre os traços assinalados no Jtinerarlum
Portugallenstum e os retidos por Moro são apontadas por Luís de Matos, L'expanston..., p. 412 ss.
204 O ideal de vida apostólica animou as comunidades cristãs mais fervorosas e foi fonte de reno-
vação ao longo dos tempos, mesmo entre grupos de vida secular; a "Devoção moderna" recorria
também a ele.

[635]
interferiu, não poucos foram os que aderiram à nossa religião e foram
purificados nas águas sagradas. A verdade é que de nós os quatro (tantos
éramos os que ao tempo ainda sobrevivíamos, mas dois já entretanto
sucumbiram ao seu destino) nenhum infelizmente era sacerdote, pelo que,
apesar de iniciados na doutrina, continuam a faltar-lhes os sacramentos que
entre nós só os sacerdotes conferem; compreendem, porém, que assim seja
e anseiam por eles, pelo que nada discutem com mais vivacidade e
empenho do que saber se haverá possibilidade de alguém obter o carácter
sacerdotal por eleição feita entre eles, sem o envio de um bispo cristão.
Pareciam até dispostos a fazerem tal eleição, mas quando eu os deixei não
a tinham ainda feito205.
Por outra parte, os que não aderiram /143/ à religião cristã não
intimidam ninguém nem fazem oposição a quem a assumiu. Excepção foi a
actuação de um membro do nosso grupo que chegou a ser preso na minha
presença: fora baptizado há pouco e, embora nós tentássemos dissuadi-lo,
pôs-se ele a pregar publicamente sobre o culto de Cristo, com mais zelo do
que prudência; a tal ponto se deixou inflamar que não só colocava a nossa
religião acima de todas as outras como também fazia a condenação de todas
as restantes, proclamando em alta voz que tudo era supersticioso e que os
seus observantes incorriam em impiedade e sacrilégio, pelo que haviam de
ser condenados ao fogo eterno. Andou ele a pregar desta forma durante
algum tempo, foi preso, mas não foi acusado de ultraje à religião - apenas
por alteração da ordem pública; feito o julgamento, foi condenado a exílio.
Facto é que entre as suas leis mais antigas se conta a de que ninguém pode
ser desconsiderado por causa da sua religião. Com efeito, logo de irúcio,
Útopo, ao aperceber-se que os habitantes, antes da sua chegada ao poder, se
digladiavam entre si por motivos d e religião e ao advertir que cada uma das

Jan Huss (reformador checo, executado na fogueira após a sua condenação no Concílio de
Constança, em 1418) e Wycliff (reformador inglês do século XIV). Faz notar A. Prévost que Moro utiliza
o termo sacerdos para acentuar o carácter sagrado da ordem sacramental, e não usa o termo pres-
úyter, de carácter sociológico - facto é que nada nos permite assegurar que haja uma escolha tão
motivada nos termos (pelo menos não está explicitada e há algum risco de sobrepor uma interpre-
tação a termos equivalentes).

[637]
seitas, por falta de uma doutrina comum, havia evitado juntar-se às outras
para todas combaterem em favor da pátria, e que isso lhe havia oferecido a
ele ocasião de as vencer a todas, uma vez alcançada a vitória, estipulou que
cada um seria livre de seguir a religião que quisesse, mas que só podia
angariar adeptos para ela expondo as suas razões de modo pacífico e com
moderação, sem investir contra as outras de forma desabrida; doutrinar, só
através da persuasão, evitando toda a forma de violência e debatendo com
moderação, pois todo aquele que se envolvesse em luta mais acesa, seria
condenado ao exílio ou à servidão2o6.;144/
Estas normas instituídas por Útopo tinham em vista não apenas criar
ambiente de paz que ele via radicalmente comprometida por discussões
contínuas e por ódios insanáveis, mas também porque se convencera, como
era manifesto, de que isso era de interesse para a própria causa da religião,
a respeito da qual ele próprio não se permitia de ânimo leve fosse o que
fosse, pois não saberia dizer se Deus, que dava acolhimento a um culto
diverso e múltiplo, não inspirava a um uma coisa e a outro outra. Com razão
pensava ele que e:irigir sob violência, ou sob ameaças, que todos re co-
nhecessem como verdadeiro aquilo em que cada um acredita isso ultra-
passava os limites e era insano207. Foi-lhe fácil prever, no entanto, já então,
que, se uma religião há que é verdadeira, todas as outras são falsas, e que,
desde o momento que as coisas se façam com racionalidade e moderação,
a força da verdade haveria finalmente de emergir e de ocupar lugar
eminente. Se, contrariamente a isso, o combate se fizesse com armas e com

207 Nas circunstâncias concretas e perante os efeitos negativos de desagregação em matérias

disputáveiS, o pensamento de Moro não seria tão pemússivo alguns anos maiS tarde, advogando,
contra as iniciativas reformistas, que, em doutrinas controversas, hã que seguir a posição da autori-
dade; cf. Diálogo sobre as heresias.

[639]
arruaças, dado que os piores são sempre os mais obstinados, a religião
melhor e mais sacrossanta, metida por entre as superstições falsas, haveria
de desaparecer, como acontece ao bom grão entre espinhos e ervas208.
Por tal motivo, Útopo colocou toda esta questão em aberto e deixou
liberdade a cada um de decidir quanto àquilo em que se obrigava a
acreditar209. No entanto, com o propósito de ninguém se degradar da
dignidade da natureza humana, excluiu, de forma solene e estrita, que se
admitisse que as almas morrem com o corpo ou que o mundo caminha à
toa, sem intervenção da Providência210; admitiu também consequente-
mente que há razão para crer que depois desta vida há castigos que se
aplicam aos vícios e que há prémios estabelecidos para a virtude; quem
pensasse o contrário não seria considerado no número dos humanos, sendo
como alguém que deixou cair a natureza excelsa da sua alma na vileza de
um corpo de animal; por idêntica razão deixava fora da categoria de
cidadãos aqueles que, se o pudessem fazer por intimidação, retirariam
importância a instituições e práticas entre eles estabelecidas./145/ A quem
é que, efectivamente, poderão restar dú'\<idas de que alguém que ou pre-
tende escapar às leis públicas da pátria ardilosamente sem ninguém dar por
isso ou intenta infringi-las à viva força com o propósito de satisfazer a sua
cupidez em foro privado, não tem a temer mais nada do que o medo além
do que estipulam as leis e nada mais a esperar além do que se situa a nível
do corpo? Por tal motivo, a um indivíduo animado por esses sentimentos
não lhe é conferida qualquer distinção honorífica, não lhe é cometida
qualquer magistratura, não é posto à frente de qualque r cargo público21l.
Assim, de uma maneira ou de outra, é objecto de menosprezo como se fosse
dotado de natureza fragilizada e decaída. Quanto ao mais, não lhes infligem
castigo, pois têm por adquirido que não está na mão de ninguém assentir
no que lhe dá na vontade, mas não o constringem com quaisquer ameaças
a dissimular os seus sentimentos nem toleram disfarces e mentiras, por esta-
rem próximas da fraude, coisa que eles detestam sobremaneira. Proíbem-lhes,

2 10Platão,Leg.,10,895c-899d,condena os que sustentam que os deuses não existem ou, se exis-


tem, não se interessam pelas actiVidades humanas.
211 Cf. Platão, Leg., 10, 907d-909d.

(641]
porém, defender as suas opiniões em público, mas apenas perante a gente
do povo, pois, em contrapartida, perante sacerdotes e espíritos graves, não
só lhes permitem entrar em debates como até os exortam a fazê-lo ,
confiados que estão em que a aquela insanidade acabará por ceder à razão.
Há outros ainda, e não são nada poucos, a quem realmente não impõem
qualquer proibição, dado que não carecem de argumentos para defenderem
as suas razpes e não são afectados de maldade, ainda que, por erro diferente,
opinem que até os animais têm almas imortais, embora não se possam
comparar com as nossas em dignidade nem tenham sido criadas para felici-
dade equivalente212 .
Quanto a este aspecto, quase todos os utopianos têm como certo e
assegurado que a felicidade futura será tão incomensurável que lamentam a
doença de todos, mas não choram a morte de ninguém, a não ser a daquele
que vêem ser arrancado à vida, sem ele querer e angustiado. É claro que
/146/ isto é para eles um péssimo augúrio, como se a alma, desesperada e
de má consciência, por uma espécie de presságio oculto, temesse o final de
um castigo iminente. Além disso, consideram que Deus não acolhe com
aprazimento a chegada de alguém que, quando é chamado, não acorre de
bom-grado, mas a contragosto e tentando esquivar-se. É por isso que os que
presenciam uma morte destas ficam horrorizados e retiram os que assim
morreram com tristeza e em silêncio; depois, rogam a Deus que seja
propício àqueles Manes e que seja clemente em perdoar as suas fraquezas,
e seguidamente cobrem o cadáver de terra.
Pelo contrário, aos que se deixam morrer placidamente e cheios de
boas esperanças, ninguém os pranteia, mas dão andamento ao funeral a
cantar; recomendando sentidamente a alma a Deus, fazem cremar o corpo
com mais respeito que pesar2 13, erguendo no local uma colnna, na qual
ficam gravados os méritos do defunto. De regresso a casa, evocam os traços
do seu carácter e as suas acções, mas não há passo da sua vida que seja
tratado com mais demora e com mais alegria do que o são os seus últimos
momentos. Consideram que esta homenagem prestada à memória de um

213 Cf. ltlnerarlum Portugallensium, fls. XLVII", l.XXXVII. Perante as semelhanças, é infundado
qualquer pressuposto que levasse Moro a superar reflexões tradicionais relacionadas com a oposição
entre inwnação e a cremação vigente desde tempos antigos na tradição cristã (cf. Minúcio Félix,
Oct. 11 , 4).

[643)
homem íntegro constitui para os vivos o encorajamento mais eficaz à
virtude e julgam que este é o gesto de culto mais grato aos defuntos, os
quais, segundo sua opinião, embora invisíveis aos sentidos embotados dos
mortais, vêm assistir a estas evocações que deles fazem. De facto, não
conviria à sua condição de bem-aventurados estarem privados de liberdade
de ir onde quisessem e seria ingratidão sua não manterem vivo o desejo de
voltarem a ver os amigos, a quem, enquanto viviam na terra, haviam estado
ligados por mútua amizade e afecto, já que, supõem eles, para os homens
bons, como acontece com os outros bens, esses sentimentos crescem em
vez de diminuírem depois da morte. Crêem, pois, que os defuntos convivem
/147/ com os vivos, observam o que estes dizem e fazem, e por isso eles
enfrentam com maior coragem o que têm de fazer, confiantes em tais
protectores e acreditando que a presença dos antepassados os impedirá de
cometerem a sós alguma má acção.
Quanto a augúrios e a outras adivinhações de vã observância, a que é
prestada muita atenção noutros povos, pela parte deles não lhes conferem
qualquer importância e troçam dessa prática214.
Porém, quanto aos milagres, que têm lugar sem intervenção das forças
natureza, têm-nos na conta de actuação de um ser sobrenatural e como
testemunho dela; referem eles que tais fenómenos ocorrem também no seu
meio com frequência , procuram-nos com confiança de os alcançarem e
obtêm-nos sobretudo em circunstâncias de maior instabilidade, mediante
preces públicas.
Consideram que é um acto de culto agradável a Deus a contemplação
da natureza e o louvor que daí resulta215.
Há, no entanto, muitos (e não são poucos) que, levados por espírito
religioso, põem as letras de parte, não se entregam ao conhecimento das
ciências nem tão-pouco se deixam ficar sem nada fazer, pois o seu propósito
consiste em merecerem a felicidade futura, depois da morte, apenas
mediante actividades e boas acções em favor dos outros. Assim, uns
colocam-se ao serviço de doentes, outros restauram os caminhos, limpam os
canais, reparam as pontes, retiram as ervas, a areia, as pedras, abatem as

21 5Cf. Cícero, Fin . 5, 21, 58: entre as ocupações nobres do homem está "a contemplação e o
estudo dos corpos celestiais bem como o dos segredos e místérios da natureza que a razão consegue
penetrar".

[645)
árvores e põem-nas a secar, com carros de juntas de animais transp ortam
lenha, mantimentos e outros produtos para as cidades, actuando, não apenas
em público mas também em privado, como auxiliares que ultrapassam até
a classe dos serviçais. De facto, quando há um trabalho qualquer - · seja ele
rude, difícil ou sórdido - de que muitos se afastam por cansaço, fastio ou
incapacidade, eles assumem-no completamente de bom grado; com alegria,
proporcionam lazer aos outros, enquanto eles próprios se entregam perma-
nentemente à execução do trabalho, /148/ sem, no entanto, se atribuírem
mérito nem censurarem a vida dos outros nem exaltarem a sua. Quanto
mais se apresentam como serviçais tanto mais ficam em plano de honra
junto de todos.
Verificam-se, todavia, entre eles dois grupos216. Um é de ascetas celiba-
tários, que não se limitam a prescindir dos prazeres carnais, mas se privam
também de comer carne, qualquer que seja o animal; rejeitando comple-
tamente os prazeres da vida presente como prejudiciais, aspiram apenas aos
da vida futura , esperando, mediante vigílias e mortificações, obtê-la sem
demora, na alegria e no vigor que entretanto mantêm. O outro grupo não é
menos dado ao trabalho, mas prefere o matrimónio, cujo conforto.não deixa
de ter em boa conta e relativamente ao qual considera ser uma função que
se deve à natureza e que os filhos se devem à pátria217; não recusam
nenhum solaz218, desde que nada os retarde relativamente às suas funções;
quanto a carnes de quadrúpedes em geral219 apreciam-nas, pois consideram
.que com tal alimento ganham mais forças para qualquer actividade.

21s Para traduzir uol14ptas, preferimos aqui o termo "solaz" (de solacium), a qualquer outro do
mesmo campo semântico (praier, consolo, etc.), pois, embora menos comum, é mais englobante de
todas as situações familiares, a que Moro dava particular atenção.
219 Apenas vemos razão neste inciso ("uel eo nomine") para a associação que a Bíblia apresenta

para quadrupedta etpecora (gado em geral - em hendíade). A admissão dos vários tipos de animais,
proscrita no Antigo Testamento, tem, em Act., 11,6-7, a consagração mais completa (ai.oda que a visão
de Pedro seja de alcance simbólico, a superação das antigas limitações rituais estava assegurada).

(647]
Aos que seguem esta opção, os utopianos consideram-nos homens de
grande sabedoria; aos primeiros têm-nos por homens de grande santidade.
Os que antepõem o celibato ao matrimónio e dão mais valor a uma vida de
sacrifício do que a wna vida de prazer, se buscassem fundamentos de razão,
seriam motivo de irrisão; confessando, como o fazem, que são levados por
motivos de religião, são objecto de admiração e de respeito2 20. De facto
nada têm em maior consideração do que isto: não se fazem juízos sumários
sobre qualquer comportamento religioso221.
Tal é, pois, o género de vida destes homens que os utopianos, na sua
língua, designam com o nome peculiar de butrescas222 e que se pode tra-
duzir para latim por religiosos.
Têm sacerdotes a quem atribuem suprema dignidade223,e por isso mesmo
são em número escasso; efectivamente, não são mais de treze em cada cidade,
tantos quantos os templos, com uma única excepção, /149/ a do momento
em que se parte para a guerra: então, de facto, sete deles saem com o exército
e outros, em número igual, substituem-nos entretanto; todavia, quando os
primeiros regressam, cada qual retoma o seu lugar e os supemumerários, que
esperam pela sua vez para lhes sucederem por morte, fazem entretanto
companhia ao pontífice. É que há wn que tem a presidência dos restantes.
São eleitos pelo povo, segundo o ritual dos restantes magistrados, em
sufrágio secreto, para evitar interferências224. Os eleitos são investidos pelo

224 A eleição é feita na classe dos letrados, cujos membros são nomeados pela classe sacerdotal
e eleitos pelos sifograntos. Em Platão, Leis, 6, 759b, os sacerdotes são escolhidos quer por eleição quer
por sorteio p ara o exercício de funções anuais. Moro atém-se à prática da Igreja primitiva, onde a
eleição comunitária era de uso, mas foi abolida para evitar perturbações; a intervenção dos poderes
seculares causou danos irreparáveis, nomeadamente no século XVI, apesar da separação jurídica dos
poderes operada em tempos anteriores.

[649)
seu colégio. São eles que presidem ao culto divino, que gerem os assuntos
de religião, e que se ocupam dos costumes, como censores, sendo con-
siderado motivo de vergonha ser chamado por eles para ser repreendido,
pois é como se, em tal caso, o seu comportamento fosse menos recomen-
dável. Aliás, é função deles dar conselhos e fazer admoestações (como é
função do príncipe e dos outros magistrados castigar e mandar a juízo os
que cometem crimes), salvo quando se trata de matéria sagrada - caso em
que lançam interdito225 sobre os que descobrem a viver obstinadamente no
mal. Não há maior castigo que este e que seja mais temido; efectivamente,
com esta inf'amia, que é a máxima, tudo arrasam e tudo deixam marcado
com secretos terrores religiosos, pois daí para a frente os próprios corpos
não irão ficar em segurança. Realmente, a não ser que o seu rápido arre-
pendimento venha a merecer acolhimento por parte dos sacerdotes, são
presos e têm de pagar a pena de impiedade ao Senado226.
Ministram eles instrução a crianças e jovens: prioridade é conferida não
às letras, mas à moral e à virtude, pois colocam o máximo de diligência em
instilar desde cedo no ânimo das crianças, ainda tenras e moldáveis, bons
princípios que sejam úteis para manter a comunidade humana; /150/ se
esses princípios tomarem assento em profundidade nas crianças, hão-de
acompanhá-los, quando homens, por toda a vida e hão-de ser de grande
utilidade para o Estado (cuja ruína começa com os vícios que surgem de
princípios deturpados227).
Para os sacerdotes escolhem. esposas entre a elite da população; isso não
acontece no caso de a função ser desempenhada por mulheres - a razão é
que estas não estão excluídas, mas só bastante raramente se admite alguma,
de entre as viúvas e já maiores de idade228_
Não há na Utopia qualquer outra função pública de maior prestígio,
pelo que, mesmo quando os sacerdotes cometem algwn crime não passam

228 Em controvérsia com W Tyndale, mais tarde, em 1532, Moro defenderá que, por direito
divino revelado, as mulheres não podem ser sujeito de sacerdócio. Quanto ao celibato, admite Moro
que se trata de uma questão de disciplina eclesiástica, fixada por opção da Igreja.

(651)
por julgamento público, mas são deixados ao juízo de Deus e de si mesmos.
Efectivamente, consideram que, embora se trate de um celerado, não é lícito
castigar por mão de mortal alguém que esteve ao serviço divino de forma
tão singular como se fosse oferenda sagrada. Semelhante procedimento é
tanto mais facilmente observável quanto os sacerdotes são em número
reduzido e são escolhidos com o maior cuidado. De facto, não é frequente
que alguém, elevado a tamanha dignidade, por atenção apenas à sua virtude,
se degrade na corrupção do vício; se isso vier a acontecer, em caso limite, já
que a natureza humana é volúvel, nem por isso se há-de entrar em pânico,
dado o número reduzido de casos e o facto de não estarem investidos de
qualquer outra dignidade com poder, pelo que o efeito público negativo
não será de grande significado.
Número tão reduzido e em tão escassa proporção visa a que cargo que
actualmente goza de tanto respeito não perca a dignidade nem se degrade
por se alargar a muitos outros, sobretudo porque consideram difícil encon-
trar em qualquer parte quem, pelas suas qualidades, seja merecedor de tal
dignidade que, por ofício, não se contenta com virtudes medianas. Não é
que o apreço dado entre eles aos sacerdotes seja maior que aquele que lhes
é concedido em povos diferentes; /151/ está isso bem patente, segundo
minha opinião, se tivermos em conta a origem de tàl apreço: efectivamente,
quando os exércitos são chamados a combate, os sacerdotes colocam-se não
muito longe do local, de joelhos, revestidos de paramentos sagrados, mãos
de palmas voltadas para o céu, a implorar antes de tudo a paz e em segundo
lugar a vitória para os seus sem derramamento de sangue para nenhum dos
dois contendores; se os seus exércitos saem vencedores, correm eles ao
encontro dos homens das fileiras e evitam que se vinguem sobre os der-
rotados, garantindo-lhes a vida só com os verem e com chamarem p or eles;
o simples contacto com as suas vestes distendidas defende os restantes
bens de sofrerem as injúrias da guerra229.

Os comentadores consíderam que neste passo há uma sátira ao comportamento do papa Júlio Il
(l 503· 1513), que, com as suas campanhas bélicas, se transformara num novo Júlio César, sem contem·
plação pelos vencidos.

[653]
Por este motivo, em todos os povos vizinhos, gozam os sacerdotes de
tanta veneração e a tal ponto se ergueu a sua verdadeira grandeza que não
foram menos as vezes que dos inimigos conseguiram o resgate para os seus
concidadãos do que aquelas que dos seus exércitos o levaram aos outros.
Aliás, é bem conhecido que um dia o exército dos seus homens cedeu e que,
em situação desesperada, se pôs em fuga, perseguido pelos inimigos que
caíam sobre ele, o dizimavam e dele fizeram prisioneiros; os sacerdotes
intervieram e puseram fim ao massacre, colocaram os exércitos frente a
frente e estabeleceram a paz, negociando-a em condições de equidade.
De facto, nunca houve povo algum que fosse tão selvagem, cruel e bárbaro
que não considerasse o corpo sacerdotal sacrossanto e intocável230.

Como dia de festa celebram o primeiro e o último de cada mês, o


mesmo acontecendo em cada ano23 I; este é dividido em meses, defuúdos
pela revolução da Lua, do mesmo modo que o ciclo do Sol desenha o arco
do ano. Todos os primeiros dias tomam o nome de cynemernos, os últimos
o de trapemernos, palavras que têm o mesmo valor que "primifestos" e
"finifestos", em língua la~a232. /152/
Há edifícios religiosos com uma traça que chama a atenção, não apenas
porque supõem muito labor, mas também porque são de grandes
dimensões; de facto, sendo em número restrito, neles cabe uma multidão
imensa. São todos eles, no entanto, um pouco sombrios, não porque
houvesse falta de saber na sua const~ção, mas a conselho dos sacerdotes;
ao que dizem, uma vez que consideram que com luz em exc~sso o pen-
samento se dispersa; em luz difusa e na penumbra, o espírito concentra-se

tui o culto cristão. Erasmo reagia contra a multiplicidade de feriados, dado que os dias santos subiam
a uns cinquenta por ano; cf.A. Villien, "Fêtes•, in Dict. Théologie Catholtque, 5, 2186.
2 32 Cynememos, de K'ÚWv / i<wós + Í)µÉpa, o dia do cão, que corresponde à lua nova, "o dia do

mês do cão"; ao cair da noite, preparava·se a ração para o cão que dava sinal da lua nova e que com
os seus uivos indicava a chegada de Hécate; cf. Teócrito, Jayl 2, 35-36; Diógenes Laércio, 1, 58.
Trapemernos, de Tp<ÍTTW + i)µéptvós indica o dia de passagem ou último dia do mês (em que se clã a
volta).

[655)
e aumenta o sentimento religioso. Todavia, como este não é o mesmo em
todos, mas as suas formas, embora diversas e múltiplas, devem concorrer
por caminhos diferentes para o culto da natureza divina como objectivo
único; por isso mesmo, nada se observa ou se ouve nos templos que não se
reconheça quadrar com toda e cada uma das formas no seu todo. Se alguma
coisa há que seja específico dos ritos de algum grupo233, procura cada um
fazê-la adentro das paredes domésticas; os rituais públicos realizam-se
segundo tal ordenação que não haja prejuízo para nenhum dos privados.
Por isso é que nos templos não se vê qualquer representação das
divindades234, já que há liberdade para cada qual constituir a imagem que
quiser do divino segundo a sua concepção religiosa; aliás, não têm qualquer
invocação específica, com excepção da de Mitra, termo que permite a todos
coincidirem na designação de uma única natureza da majestade divina, seja
ela qual for; não compõem quaisquer orações que alguém não possa recitar
sem que com isso tenha de incorrer em falta de respeito para com a sua
própria seita.
Reúnem-se, pois, nos templos em dias "finifestos", ao fim de tarde, ainda
sem comer, para agradecerem a Deus o terem passado em boas condições
o ano ou o mês que chega ao fun naquele dia; no dia seguinte, que é o
"primifesto", pela manhã convergem para os templos /153/ a fim de em
comum implorarem que o mês ou o ano que começa nessa celebração
decorra em condições auspiciosas e felizes. Por sua vez, nos dias "finifestos",
antes de se dirigirem ao templo, em casa, as esposas lançam-se aos pés dos
maridos e os filhos aos pés dos pais e confessam alguma falta que tenham
cometido ou se omitiram alguma coisa ou foram negligentes em c umprir
alguma obrigação e pedem perdão pelo mal cometido, de tal modo que, se
alguma pequena nuvem de desavença familiar toldou o ambiente, fica
dissipada com este acto de reparação e é de coração purificado e sereno que
assistem aos sacrifícios, pois seria sacrilégio assistir de coração turvado235; por

234 Cf.Agostinho, De ciu . Deí, 4, 3I;Jerónimo, ln Psalmos, 85: o uso elas imagens é defendído
moderadamente nos primeiros séculos, mas acaba por sofrer com a polémica dos íconoclastas no
século IX e ganhar difusão que exacerbou alguns espíritos. Moro, e bem assim Erasmo, defenderá a
veneração das imagens em culto de dulía.
235 É óbvio que não está prevista a mediação penitencial a utilizar por parte dos maridos; só
parcialmente fica cumprido o preceito de Tiago, 5, 16: confttemini ergo alterutrum peccata vestra
et orate pro invicem ut salvemtni; multum enim valet deprecatio tusti adsidua.

[657)
isso mesmo, quando têm consciência de que alimentam ódio ou rancor
contra alguém, não se aproximam dos sacrifícios sem se reconciliar com ele
ou sem se purificarem de tais sentimentos, com medo de que haja castigo
do pecado e que ele seja grande236.
Ao chegarem ao templo, os homens concentram-se na pa.r te direita,
as mulheres, à esquerda, separados uns dos outros237; seguidamente,
dispõem-se de modo a que os elementos masculinos de cada casa fiquem
sentados em frente do pai de família e que seja a mãe de família a fechar o
círculo do grupo das mulheres. Assim provê-se a que os comportamentos
de todos fora de casa sejam totalmente observados por parte de quem
domesticamente sobre eles exerce autoridade e disciplina, não sem que se
tome também a peito fazer com que um de pouca idade fique junto de
outro já adulto, de modo que uma criança não fique à mercê de outra
criança e passem o tempo em brincadeiras infantis, quando era tempo de se
entregarem sobretudo ao respeito pelas divindades, que é o maior e quase
o único incentivo para as virtudes238.
Nos sacrifícios, não imolam qualquer animal, pois consideram que não
é com o sangue e com a morte que se agrada à divina clemência que foi
quem repartiu a vida pelos seres vivos para que dela gozassem239.
Queimam incenso e outras essências aromáticas /154/ e fazem oferen-
das de círios em grande número, não porque desconheçam que isto nada
adianta à natureza divina240, tal e qual as próprias orações dos homens, mas
porque esta forma inocente de prestar culto lhe é agradável e porque com
estes aromas e luzeiros ou também com outras cerimónias, não sei bem
como, os homens se sentem mais elevados e animados a prestar culto a
Deus com mais alegria de espírito.

237 O costume da separação dos sexos nas comunidades de culto era habitual desde a Igreja
primitiva.
238 Cf. Sir. 1, 16-17: lnltium saptentiae timor Domtni et cum ftdellbus ln vulva concreatus
est et cum electts semlnls credttur et cum lustfs et ftde/ibus agnoscitur; ttmor Domlnl sctenttae
rellgtosttas.
239 Cf. Os. 6,6 e Math. 12, 7 : si autem sciretts quid est m tsertcordlam volo et non sacrlftctum.
Vespúcio,Quatuor navlgatt0 nes, l,cl ,nota que os indianos não realizam sacrifícios.
240 A teologia católica estã expressa por Tomás de Aquino, Contra Genttles, 3, 119: oferecem-se

sacrifícios não porque eles sejam necessários a Deus, mas porque o homem precisa de se assunúr
como adorador de Deus, criador e senhor de todo o universo.

[659]
No templo, o povo enverga vestes brancas24l, o sacerdote reveste-se de
paramentos coloridos, de confecção e estilo invulgares, de material não par-
ticularmente precioso, pois não são tecidos com fios de ouro nem reca-
mados de raras pedrarias, mas confeccionados com penas de aves, de várias
espécies, com tanto conhecimento e com tanta habilidade que o seu valor
não é comparável com o do material de que são feitos24 2. Além disso, dizem
que em tais penas e plumas de aves e na ordenação precisa delas, na forma
como se dispõem nos paramentos dos sacerdotes, estão contidos mistérios
insondáveis, cuja interpretação (cuidadosamente transmitida, ao que se diz,
pelos ministros do altar) relembra os benefícios divinos para com eles e por
outro lado os actos de piedade deles para com Deus bem como as
obrigações que têm uns para com os outros.
Logo que o sacerdote, uma vez revestido, sai fora da sacristia, todos de
imediato se prostram por terra, em gesto de adoração, e tão profundo é o
silêncio que se incute que é como que uma espécie de temor frente à
presença de algum ente sobrenatural. Ficam assim por terra durante uns

pelos Padres e é aí que ganha uroa alma "utopiana" que o levará, como aos seus hospedeiros, ao
heroísmo do martírio. Em 4 de Maio de 1535, depois de terem sido condenados por também não
acederem a renegar a obediência a Roma e aprovar as atitudes do monarca, os cartuxos de Chelsea
são executados; Moro acompanhou o cortejo coro o olhar, saudando os seus antigos anfitriões como
"noivos que se dirigiam para as núpcias eternas". O mosteiro dos Monges Cartuxos serve a Moro de
quadro fundamental para traçar o ideal da vida em grupo: pobreza, dedlcação ao trabalho, espírito
contemplativo, adoração a Deus, partilha de vida.
242 Quanto aos paramentos do sacerdote, que, no seu colorido, contrastam com a uniformidade
da assembleia, poder-se-á reconhecer que há coincidência com Platão: Tfmeu, 9ld e República, 10,
620a<; todavia parece haver aqui influências do relato da expedlção de Cabral <luando do seu encon·
tro com os índios do Brasil, onde os enfeites provêm de "psitacoruro multiiugi coloris" - ltinerarium
Portugallenstum, fl. XXXVIII; Quatuor Nauigattones, fl. Bviiv. Parece-nos menos baseada a interpre·
tação de A. Prévost, op. cit., p. 719, que pretende ver a utilização das penas de aves na liturgia como
alusão à natureza espiritual do culto, com aproveitamento de um símbolo bíblico (Ezech., 1.5·25;
Ioan. 1,32; Apoc. 4,8) e tradlcional (Dion. Areop. Hier. cael.). Pelo menos não se evidencia aí a
variedade das cores e o seu simbolismo.

[661)
momentos; depois, a um sinal dado por um sacerdote, levantam-se e cantam
louvores a Deus243, fazendo-os acompanhar com execuções de instrumen-
tos musicais, que apresentam formas diferentes das que se vêem no nosso
mundo; a maior parte ultrapassam muito em suavidade os que nós usamos,
/155/ pelo que alguns não se podem comparar com os nossos.
Numa coisa, de verdade, os utopianos são de longe superiores a nós:
toda a sua música, seja a que executam com instrumentos seja a que
modulam em voz humana, imita e reproduz com tanta perfeição os senti-
mentos naturais e o som adequa-se tão bem ao tema ou à oração, seja ela de
súplica seja de júbilo, de propiciação, de inquietude, de luto ou de censura,
que sensibiliza sobremaneira os corações dos ouvintes, penetra neles e os
inflama.
Por último, o sacerdote juntamente com o povo leva a termo as orações
solenes; são elas compostas de tal forma que, embora sejam para todos as
recitarem em comum, cada um em privado as pode aplicar a si mesmo.
Nelas reconhece-se a Deus como autor da criação, como senhor que
governa o mundo e além disso como fonte de todos os outros bens. Dão-se
também graças pelos beneficios recebidos, nomeadamente pelo que diz
respeito à benevolência havida por Deus em prol de toda a comunidade no
seu conjunto, que se sente cumulada de felicidade por lhe ter cabido em
sorte uma religião que se espera seja a mais verdadeira; pede-se também
que, se, neste domínio, algum erro é cometido ou se alguma outra religião
há que seja melhor e que mereça maior aprovação de Deus, Ele, na sua
bondade, faça com que se chegue ao seu conhecimento, pois se está dis-
posto a segui-la seja em que direcção for; pelo contrário, se a forma de
organização que tem a sua nação é a melhor e se a sua religião é a que mais
conforme está com a verdade, que Deus lhes conceda então a perenidade e
que guie todos os outros mortais para viverem segundo a mesma doutrina
sobre Deus e de acordo com os seus preceitos, a menos que, por entre a
multiplicidade de religiões, haja alguma outra que satisfaça a sua impers-
crutável vontade. /156/ Enfim pedem que, no final, Deus receba junto de si
quem morre tranquilamente, tão depressa quanto possível ou tão tarde
quanto cada um não ousaria definir. No entanto, seja dito sem ofender a sua
majestade, ao coração apraz muito mais chegar a Deus depois de passar por

243 Pode pensar-se no canto de Laudes, que é a hora canónica do louvor divino, mas todo o
aparato transporta a situação para fora de uma liturgia monástica.

(663]
uma morte cheia de dificuldades, do que ficar por muito tempo separado
d'Ele em grande prosperidade no decurso de uma vida.
Terminada esta oração, prostram-se de novo por terra e, levantando-se
pouco depois, saem para tomar a refeição; o resto do dia passam-no em
jogos e em treinos militares.

Descrevi-vos, com toda a fidelidade de que fui capaz, a forma de
organização que tem esta República, forma essa que eu considero ser não
só a melhor, mas a única que possa reivindicar o nome de república.Aliás, é
sabido que, se noutro lugar se fala de bem público, apenas se cuida do bem
privado.Aqui, pelo contrário, como nada existe que seja particular, é o bem
público que se toma a peito. Certamente por boas razões, num caso e
noutro: efectivamente, noutra parte, quantos são os que não sabem que, se
não se puser alguma coisa de lado que lhes venha a ser útil, mesmo que o
Estado viva em prosperidade, ficarão sujeitos a morrer de fome, e que por
isso mesmo é de necessidade urgente pensar cada um em tratar de si, mais
do que do povo, isto é , dos outros... Ora, aqui, em que tudo é de todos, até
porque há o cuidado de manter os celeiros públicos abastecidos, ninguém
tem dúvidas de que não virá a faltar nada do que seja necessário na vida
privada. De facto , não há distribuição malevolente das coisas nem alguém
passa necessidade nem anda na mendicidade e, embora ninguém seja dono
de coisa alguma, nem por isso deixam todos de ser abastados. Na realidade,
quem pode ser mais abastado do que aquele que vive totalmente sem
qualquer ansiedade, de ânimo desanuviado e tranquilo? Não receia pelo que
há-de comer, /15 7/ não vive atormentado pelos queixumes insistentes da
esposa, não teme pela pobreza do filho, não vive preocupado com o dote da
filha, mas está confiante de que há gente de boa nota244 a tomar conta do
alimento e do bem-estar seu e de todos os seus - da esposa, dos filhos, dos
netos, dos bisnetos, dos trinetos e de toda a série de descendentes, por mais
longa que ela seja. Pois quê? Há que dizer que não se olha menos por aqueles
que agora estão incapacitados de trabalhar, mas em tempos trabalharam, do
que por aqueles que agora se entregam ao trabalho.
Gostaria que alguém, com o mesmo sentido de equidade, ousasse aqui
comparar a justiça de outros povos, nos quais eu até daria a vida por

244 Mais que a nobreza social está em causa, como se compreende pelo teor do texto, a nobreza
de sentimentos.

[665)
descobrir qualquer vestígio que fosse de justiça e de equidade! De facto,
que justiça é essa que faz com que alguém, por ser fidalgo ou por tran-
saccionar dinheiro 245 ou por se entregar à usura (enfim, seja ele quem for
daqueles que ou nada fazem ou aquilo que fazem é como se nada fizessem
em favor da comunidade), consiga uma vida lauta e esplêndida sem fazer
nada ou em actividade supérflua, quando entretanto um serviçal246, um
condutor de carros, um artesão, um agricultor, que aguentam trabalho
penoso e ininterrupto (a custo suportado por um animal de carga, mas que
se toma tão necessário que sem ele nenhum Estado poderia durar nem um
ano) recebem um alimento tão fraco, arrastam uma vida tão miserável que
até poderia parecer que é preferível a condição dos animais, pois não têm
de suportar um trabalho tão duro durante tanto tempo nem o seu alimento é
tão estragado e até lhes sabe melhor, pois não têm de recear pelo futuro?! Ora,
não só é um trabalho sem recompensa e sem frutos que lhes retira o incentivo
no presente como também é a perspectiva de uma velhice de indigência o
que os mata, tanto mais que o seu salário do dia-a-dia é de si insuficiente /158/
para acorrer às necessidades diárias e está longe de sot?rar para lhes permitir
poupar cada dia alguma coisa que sirva em tempo de velhice.
Não será que é iníqua e ingrata uma nação que proporciona tantos
regatos a fidalgos247, como lhes chamam, a traficantes de dinheiro e a
outros do mesmo género, que vivem na ociosidade ou que passam a vida
a adular e assegurar vãos prazeres, quando, em contraste, para agricul-
tores, carvoeiros, serviçais, condutores de carros e artesãos, sem os quais
a organização pública não se aguenta, nada prevê que lhes seja favorável ?
Depois de se ter servido do seu trabalho em idade em que gozavam de
forças, quando eles ficam carregados de anos e de doenças e necessitados
de todas as coisas, não se lembrando de tantas vigílias , esquecendo
tantos serviços, ela, para cúmulo de ingratidão, paga-lhes com uma
morte da pior espécie. E quê? Até no salário do dia-a-dia que é con c e-

que optam por considerar o termo eq uivalente a foenera tor, mas teríamos uma duplicação com o
termo seguinte; dado o contexto preferimos o valor de "banqueiro, negociante de dinheiro" - assim
fazTommaso Fiore,op. ctt., p. 130.
246 o termo usado no texto é o mesmo que já encontrámos atrás,"mediastino".
247 Servímo-nos do mesmo termo que atrás; embora no texto haja variante, não parece que
seja d iferente o significado, ainda que no segundo caso esteja mais explícita a aristocracia de
sangue.

(667]
dido à gente pobre os ricos diariamente rateiam alguma coisa, não apenas
em fraude privada, mas até com o apoio das leis, de tal modo que aquilo que
antes era considerado injusto, como era atribuir aos cidadãos que mais
haviam merecido do Estado uma recompensa do mais baixo nível, até esta
depravação se cometeu: uma injustiça aprovada por lei248!
É por isso que, quando olho para todos os Estados que hoje se apresen-
tam em prosperidade, dou comigo a pensar (Deus me é testemunha) se não
está a ocorrer uma conspiração de ricos que usurpam o nome e a autori-
dade do Estado para tratarem dos seus próprios interesses, congeminando e
maquinando todos os modos e todas as estratégias para, primeiro, ficarem
com os bens que desonestamente açambarcaram, sem medo de os per-
derem, depois, para pagarem o mínimo possível de mão-de-obra aos pobres
e para deles abusarem249. /159/ Estas maquinações, desde que alguma vez
os ricos as promulguem em nome do bem público, isto é, em nome também
dos pobres, logo se tomam em leis. Ora, estes homens, mais que abjectos,
que com insaciável cupidez repartem entre si aquilo que bastaria para a
todos acorrer, quão longe estão da bem-aventurança do mundo da Utopia!
Um vez retirada dela por completo toda a avidez do dinheiro, porque nem
sequer haveria uso dele, quão grande seria a mole de malefícios que se
eliminariam, quão grande seria a seara de crimes arrancada pela raiz250?
Quem, de facto , não sabe que há fraudes, furtos, rapinas, rixas, motins,
massacres, traições, envenenamentos, mais reivindicados que refreados, em
suplícios de todos os dias, que desapareceriam se. fosse posto fim ao
dinheiro?! Acrescente-se a isso ainda o medo, a ansiedade, as preocupações,
as canseiras, as vigílias, que haveriam de desaparecer no momento mesmo
em que desaparecesse o dinheiro; até a própria pobreza, que é a única que
poderia parecer que precisa de dinheiro, uma vez subtraído este de vez,
imediatamente ela também diminuiria.
Para que isto fique mais a claro, imagine-se um ano sem produções e
sem colheitas, em que a fome dizimasse muitos milhares de pessoas. Eu sus-
tento sem rebuços que, se no final deste p eríodo de carestia, se batesse à

248 Legislação de 15 15, aprovada pelo Parlamento, retirava privilégios aos trabalhadores.
249 Cf.Agostinho, Cidade de D eus, IV, 4.
250 Interpretando o indicativo na sua modalidade de desiderativo, julgamos convir melhor com a
a.
perspectiva do autor, que já não está a descrever, mas a perspectivar um mundo melhor. Salústio, Ad
Caesarem ora tio,7, 3: acabar com o dinheiro, que é a raiz de todos os males seria um ganho e uma honra.

[669]
porta dos celeiros dos ricos, haveria de poder encontrar-se tanto cereal que,
a ser distribuído entre todos aqueles de quem a fome e a peste tomaram
conta, ninguém haveria de sentir minimamente a escassez causada pelas
condições de clima e de solo. Seria tão fácil arranjar alimento, se o afor-
tunado dinheiro, engenhosamente inventado para abrir as portas ao ali-
mento, não fosse ele a barrar-nos o caminho para ele!. .. Sentem isso, não o
duvido, os próprios ricos, os quais não desconhecem /160/ quanto seria
preferível a condição de não ter falta de nada do necessário em vez de ter
abundância de muitos bens supérfluos, como o é ficar fora de tão grande
número de males em vez de ficar cercado de grandes riquezas.
Para mim nem sequer é questão de duvidar que, fosse por cálculo do
interesse de cada um, fosse por autoridade de Cristo Salvador (na sua
infinita sabedoria não pode ter desconhecido o que era melhor nem na sua
bondade poderia deixar de o aconselhar) se teria impulsionado o mundo
inteiro, desde há muito e com grande facilidade, a adoptar as leis deste
estado, se não fosse a resistência que opõe um único monstro, a soberba,
que é cabeça e fonte de todas as calamidades e que não mede a sua pros-
peridade pelo seu bem-estar, mas pelo mal-estar dos outros. Ela não quereria
sequer tomar-se deusa se essa condição não lhe proporcionasse mais
misérias, através das quais lhe fosse possível dominar e espezinhar. A sua
felicidade ganha brilho apenas quando desdobra as suas riquezas perante as
misérias dos outros cuja condição de penúria toma mais angustiante e mais
ardente. Trata-se de uma víbora infernal que desliza pelos corações dos
humanos e que não os deixa tomarem melhor caminho de vida, como se
fosse uma rémora25I. Porque ela puxa para trás e cria um entrave, que se
incrusta com tanta força nos homens que não é possível arrancá-la facilmente ,
que haja uma forma de Estado, que de bom grado desejaria para todos,
mas que, ao menos, coube em sorte ao utopienses, é para mim motivo de
alegria; eles seguiram esta m odalidade de vida e sobre ela lançaram os fun-
damentos da sua organização política, assegurando com ela um regime não
só do maior bem-estar, mas também, tanto quanto é pennitido prevê-lo huma-
namente, de perenidade no futuro. Efectivamente, extirpadas no interior da
comunidade, com outros vícios, as raízes da ambição e das lutas partidárias,
não subsiste o risco de se cair em divisões intestinas, /161/ que bastariam,
só por si, para arruinar as riquezas de numerosas cidades magnificamente

251 Recorde-se que rémora é um pequeno peixe que suga e entrava o avanço dos navios,
segundo recorda Plínio, HN, 9, 41.

[671]
amuralhadas. Pelo contrário, salvaguardada a concórdia interna e havendo
instituições vigorosas, não será a cobiça dos príncipes vizinhos no seu
conjunto que conseguirá fustigar tal império ou arruiná-lo (por mais que
uma vez o tentaram no passado, mas foram rechaçados) .

..
Logo que Rafael acabou de fazer esta exposição, embora não fossem
poucas as questões que me subiam ao espírito, pois nos costumes e nas
legislações daquele povo me parecia haver instituições demasiado absur-
das, não apenas quanto a planos de guerra e sua condução, quanto a con-
cepção das coisas divinas e da religião ou sobretudo quanto às suas insti-
tuições, mas também, e ainda mais, quanto ao que constitui o fundamento
supremo de toda e qualquer instituição, isto é, da vida e da subsistência de
toda a comunidade: sem qualquer forma de comércio com dinheiro (disso
se trata), cai por terra toda a fidalguia, a magnificência, o esplendor, a
majestade, que, como sustenta a opinião pública, é o verdadeiro ornamento
e glória do Estado252, no entanto, porque sabia que ele estava cansado de
tão longa exposição e não tinha a certeza se ele aceitaria que se apresentassem
opiniões diferentes das que apresentara, sobretudo porque me recordava de
que por esse motivo alguns haviam sido criticados por ele (pareciam recear
não serem suficientemente doutos se não descobrissem alguma coisa em
que pudessem criticar o que os outros haviam descoberto), por isso mesmo,
louvando as instituições dos estrangeiros e a sua própria exposição,
pegando-lhe na mão, levei-o para dentro para tomarmos a refeição, não,
porém, sem antes lhe ter dito que precisávamos de encontrar mais tempo
para repensarmos mais a fundo naqueles temas e para conversarmos mais
longamente com ele.
Oxalá isso possa ocorrer um dia! Entretanto, se não posso prestar assen-
timento a tudo o que foi dito, /162/ muito embora o tenha sido por um homem
que na sua grande erudição está para além de qualquer suspeita, e é simul-
taneamente grande conhecedor das coisas humanas, também me é fácil con-
fessar que muitíssimas coisas há na terra da Utopia que gostaria de ver implan-
tadas nas nossas cidades, em toda a verdade e não apenas em expectativa253.

253 O sentido é evidente: já implantadas e não apenas em desejo.A insatisfação é uma das noras
da Utopia como realização humana; a melancolia faz parte da expectativa.

(673]
FIM DO SEGUNDO UVRO
DO RELATO FEITO DE TARDE
POR RAFAEL Hm.ODEU
SOBRE AS LEIS E INSTITUIÇÕES
DA IlliA DA UTOPIA
ATÉ AGORA POR POUCOS CONHECIDA,
REGISTADO PELO ILUSTRE E DOUTfSSIMO
SENHOR TOMÁS MORO,
CIDADÃO E MAGISTRADO
DE LoNDRES

F 1M

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