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Jonas Otávio Bilda

obra, mas certamente a mais importante já escrita do


gênero. No que tange à número 4, sua objetividade
enciclopédica não convida à reflexão, mas a novas
pesquisas, pois tem proposta educativa. No entanto
elencaremos duas obras de caráter polêmico, que podem
ou não ser revelações originalíssimas para as novas
gerações de pesquisadores e merecem citação e
provisória alocação nesta categoria.
Temos um total de nove livros a serem examinados
à luz de Atlântida e Zeal.

‘A Utopia’ de Tomás Morus

Em A Utopia ou O tratado da melhor forma de


governo75 (1516), escrita pelo humanista inglês Tomás
Morus, estamos diante da mais clássica descrição, depois
da República de Platão, de uma cidade perfeita já
intentada, responsável por cativar centenas de outras. A
certa altura de seu livro primeiro, Morus vem reafirmar um
dos mais famosos postulados políticos de Platão, e um
dos mais belos e sérios do pensamento universal,
segundo nossa opinião, o qual fazemos questão de citar
integralmente:
“A não ser, prossegui, que os filósofos cheguem a
reinar nas cidades ou que os denominados reis e
potentados se ponham a filosofar seriamente e em
profundidade, vindo a unir-se, por conseguinte, o poder
político e a Filosofia, e que sejam afastados à força os
indivíduos que se dedicam em separado a cada uma
dessas atividades, não poderão cessar, meu caro Glauco,
75 MORUS, T. A utopia. Trad. P. Neves. Porto Alegre: L&PM, 2014.

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os males das cidades, nem, ainda, segundo penso, os do


gênero humano”76.
A descrição que mais objetivamente nos interessa
começa no livro segundo e é feita por Rafael de Hitlodeu,
um filósofo que chega de viagem e trava diálogo com
Morus, personagem de seu próprio diálogo, sobre as
regiões do Novo Mundo que visitou. A Ilha de Utopia,
começa aquele, é rochosa e de impossível acesso ao
estrangeiro que desconheça suas passagens, de modo
que poucos guardiões bastariam para obstar invasores
numerosos. Esta terra não era antes uma ilha, mas uma
península que ligava-se ao continente por um istmo. Ao
ser conquistada por Utopus, que se arvorou rei e
rebatizou a região, levou a cabo a operação de escavar o
istmo e torná-la numa ilha como estratégia de defesa
futura. Além de criar esta grande ilha artificial, Utopus foi
quem “elevou homens ignorantes e rústicos a um grau de
cultura e de civilização que nenhum outro povo parece ter
alcançado atualmente”77.
Só até aqui já temos alguns exemplos de
semelhanças curiosas: o acesso a Ilha é praticamente
impossível e pouco ou nada é preciso para guardá-la
graças a sua posição privilegiada; a terra foi
artificialmente destacada para manter-se por si mesma,
afastando-se das demais, assim como se formam as
famosas ilhas flutuantes; o nome do chefe político mais
eminente e benfeitor tornou-se o mesmo que o do país;
atingiram em pouco tempo progressos culturais
76 PLATÃO. A república. Trad. C. A. Nunes. 3. ed. Belém: EDUFPA,
2000. p. 264. 473d.
77 MORUS, T. A utopia. Trad. P. Neves. Porto Alegre: L&PM, 2014. p.

68.

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“ Utopus foi quem ‘elevou homens ignorantes e rústicos a um


grau de cultura e de civilização que nenhum outro povo
parece ter alcançado atualmente’.

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singulares. Todas estas são também as características de


Zeal.
Todas as várias cidades de Utopia são “grandes e
belas, idênticas pela língua, os costumes, as instituições e
as leis. Todas são construídas segundo o mesmo plano e
têm o mesmo aspecto”78. Anualmente, cada cidade envia
à capital, que se situa “no umbigo da ilha”, “três velhos
com experiência”79 para deliberar sobre os interesses da
nação. As águas do rio Anidro têm sua nascente próxima
da capital, de onde parte calmo e frágil e torna-se mais
volumoso, dividindo-se em dois afluentes até desaguar no
oceano. Há uma ponte de pedra sobre este rio, sem
pilares, ligando as margens da cidade. Todas estas
descrições são extremamente coerentes com as que
oferecemos em nossa trajetória no terceiro capítulo:
vimos que uma mesma arquitetura interna e externa
atravessa todos os edifícios e cidades de Zeal; o reino
possui seus três Filósofos que são anciãos e representam
o conselho real, quase como um parlamento; o
espetáculo aquático da ilha central começa calmo em
uma nascente há alguns metros abaixo do Palácio, no
cume da montanha, o ‘umbigo’ de Zeal, descendo em
cascata até dividir-se em dois rios; e diante de sua
primeira queda serrana, ergue-se uma ponte sem pilares.
As casas e cidades todas foram projetadas por um
plano de Utopus, cujas portas se abrem a um toque de
mão. Cada família confecciona suas próprias roupas,
“cuja forma é a mesma para toda a ilha”80. Trabalham seis
horas por dia, tem duas para descanso, e todo o tempo
78 Ibid., p. 68.
79 Ibid., p. 69.
80 Ibid., p. 76.

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vago é livre para ser ocupado com o que se quiser, ao


que a maioria gosta de dedicá-lo ao estudo e o cultivo da
alma, libertando-se de todo tipo de sujeição física. “Toda
a ilha forma uma só família”81, dividem tudo em comum e
são contrários a fronteiras entre os habitantes. Têm um
sentimento religioso natural, de modo que “observar a
natureza, para eles, é uma forma de honrar a Deus”82.
Vimos que em Zeal as construções foram também
planejadas em conjunto e, embora encontremos apenas
uma porta lá, é uma de tipo peculiar que não possui
maçaneta, mas abre-se pela energia da Pedra Sonho. As
roupas são padronizadas em tecido e estilo de acordo
com a idade, parece-nos. Quanto ao trabalho, pensamos
ser apenas de natureza intelectual, enquanto o restante
pode ser feito por meio de operações mágicas e pelo
emprego de mão-de-obra terrestre. Os zelotes parecem
viver em pleno lazer, podendo optar, entre Enhasa e
Kajar, pelo estudo ou pela introspecção, livres de sujeição
física. A ausência de paredes, portas e portões, e o livre
acesso entre todos os espaços, não promove um espírito
privativo, mas comunitário, que é o que vemos em todo o
Reino. No aspecto religioso, as insígnias dos anjos, como
observamos, nos remetem a um estágio anterior de
amadurecimento civilizacional em que faziam uso
deliberado das quatro forças primárias da natureza. É
plausível que adorassem o planeta como divino até
encontrarem, em dado momento, o recurso alienígena e
divinizarem-no, conforme vimos nos estandartes da
81 Ibid., p. 90.
82 Ibid., p. 140.

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Máquina Mamon, a única imagem de que dispunham


relacionada ao ser das profundezas.
Reforçamos que embora os princípios de ambas as
nações se toquem, elas nos são apresentadas em fases
históricas distintas, o que pode dar a impressão de
oposição. A mesma sensação poderia ser suscitada se
comparássemos o declínio de Utopia com o apogeu de
Zeal, provavelmente. Disto falamos porque na maior parte
do relato de Morus vemos uma sociedade muito mais
modesta, avessa à guerra, tradicionalista, laboriosa,
amante da terra e contrária à soberba e ao luxo do que a
que contemplamos em nosso Reino Mágico. “Um sábio
preferirá prevenir a doença a solicitar remédios”83,
exprobra o viajante Rafael sobre a busca, dos utopianos,
pelos prazeres da alma através das virtudes.

A ‘Cidade do Sol’ de Tommaso Campanella

Em Cidade do Sol84 (1602) de Tommaso


Campanella, dialogam o Grão-Mestre da Ordem dos
Hospitalários e um almirante de Gênova. O almirante há
pouco chegara de uma longa viagem ao redor da Terra e
pouco em breve estaria a partir para outra. Neste meio-
tempo casou de encontrar e enarrar ao amigo a mais
encantadora de suas visitações, quando esteve em ilhas
indianas. Recepcionado por um grupo de habitantes
armados, foi levado como hóspede à Cidade do Sol, a
república filosófica ideal, como subtitulou Campanella na
versão latina de seu livro. A cidade é circular, construída
83 Ibid., p. 108.
84 CAMPANELLA, T. A cidade do sol. Petrópolis: Vozes, 2014.

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sobre uma alta colina que se ergue no meio de vasta


planície, como um ‘umbigo’, precisando ser vencidos sete
círculos de edifícios para percorrê-la toda, guarnecida a
ponto de tornar-se inexpugnável. Chamou a atenção do
militar, ao atravessar o primeiro círculo, “os grandiosos
palácios que, de tão unidos uns aos outros [...] parecem
mais um só edifício”, contendo “várias arcadas com
galerias superiores, sustentadas por elegantes colunas”,
“escadas de mármore” e “preciosas pinturas”85. No ápice
da colina há uma planície “em cujo centro se ergue um
templo de maravilhosa construção”86 de forma circular e
abobadada.
A princípio, parece estarmos diante de uma criação
da antiga cultura védica87 que não só não é encontrada
sem guias, como é separada de outros povos e afastada,
ainda que a menor distância que Utopia ou Zeal, da terra,
posta numa colina. A excelente localização e defesas
permite que estrangeiros sejam recepcionados com
generosa boa-disposição, tal como o somos em todos os
lugares de Zeal. Os vários edifícios circulares que se
confundem e a riqueza lapidar da arquitetura interna
repleta de colunas, galerias, pinturas e mármore nos
recordam vivamente da exuberância palaciana oriental do
reino mágico. O palácio na porção mais alta e central da
Cidade do Sol é, também, um traço peculiar. Todos
compõem uma casta aristocrática.
Politicamente, a Cidade dispõe de um rei-sacerdote
chamado Hoh de autoridade absoluta, nome traduzido
pelo almirante por “Metafísico”, “estando-lhe submetidos o
85 Ibid., p. 4-5.
86 Ibid., p. 5.
87 Todos são “brâmanes”, “vindos da Índia”. Cf. Ibid., p. 24.

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temporal e o espiritual”, e assistido por “três chefes,


chamados Pon, Sin e Mor”, equivalentes dos ocidentais
“Potência”, “Sapiência” e “Amor”88. Ao chefe da Potência
estão submetidos assuntos de paz e guerra, à Sapiência
as artes e ciências, e ao Amor, as melhores uniões para
as melhores proles. Observa disto o almirante:
“Escarnecem de nós por nos esforçarmos pelo
melhoramento das raças dos cães e dos cavalos, e nos
descuidarmos totalmente da dos homens”89. Assim temos
uma república “governada por quatro”, cujas inclinações
são mais ou menos dependentes da vontade do rei, o
Metafísico90. Escolheram uma vida filosófica e puseram
tudo em comum, bens, ciências e dignidades. Têm um
amor nacional “superior aos antigos romanos” explicado,
segundo nosso narrador, pela renúncia ao interesse
particular em prol do amor comunal91. Há eletividade nos
cargos públicos e, inclusive, no de Hoh ou rei-filósofo –
porém tal não é dado por uma razão fixa, de modo a
formar facções e promover demagogos ambiciosos. O
cargo de Hoh é perpétuo, “enquanto não se descobre
outro mais sábio e melhor” para o governo. Para aspirar a
este posto, é preciso conhecer profundamente história,
legislação e artes do próprio e dos demais povos; ciências
físicas e astrológicas, metafísica e teologia; os
fundamentos e provas de todas as ciências; e ser
versadíssimo sobre todos os mistérios: “a necessidade, o
destino, a harmonia do mundo, a potência, a sabedoria e
o amor das coisas de Deus, as gradações dos seres, os
88 Ibid., p. 6-7.
89 Ibid., p. 9.
90 Ibid., p. 9.
91 Ibid., p. 10.

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seus símbolos com as coisas celestes, terrestres e


marítimas [...], profecias e a astrologia”92.
Bem recordamos que a Rainha inspirava não
apenas temor mas devoção religiosa por parte dos
súditos zelotes, tanto por sua temeridade enquanto líder,
quanto por seu poder mágico, do qual os mais céticos
tinham dúvidas. No jogo, no entanto, as batalhas contra
Zeal parecem não deixar dúvidas quanto a extensão de
seu poder. Ela, inclusive, foi o indivíduo mais próximo de
Lavos e, talvez, o único a falar em seu nome – como um
sacerdote – e se beneficiar de seu poder, ainda que o
preço a pagar tenha sido a própria integridade. Não raro
vemos fenômeno semelhante em religiosos por meio dos
telejornais. Temos, assim, uma soberania e subordinação
dupla, nas dimensões temporal e espiritual. Os três
chefes nos parecem autoexplicativos: são
correspondentes dos Filósofos ou Gurus, e conquanto
seus atributos difiram, as funções político-administrativas
são as mesmas. O compartilhamento de bens é, como
vimos, fortemente sugerido em Zeal, que se parece, de
fato, com ‘uma só família’, em que a depender da idade,
como quis Platão em sua República, todos são pais, filhos
e irmãos uns dos outros. O sentimento nacional é
explícito no Reino, e perdura até o último instante de sua
queda. E a excelência de conhecimento incomparável dos
Filósofos, bem como o poder insuperável da família real
zelote, nos parece prova cabal de meritocracia, e nos
remete a alguma eleição consciente dos melhores para os
cargos. Esta é a constituição democrática-aristocrática e
livre de corrupção proposta por Aristóteles. A grande lista
92 Ibid., p. 12-13.

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de qualificações para os cargos de liderança inclui


disciplinas típicas da magia, como astrologia, ciências
físicas e profecias, nos deixando entrever até mesmo este
paralelo com Chrono. Mas e o cruel Dalton? Dalton,
embora de caráter detestável, tomamo-lo por adversário
formidável de competências únicas – apto a evocar
golens, copiar habilidades e articular ataques efetivos.
Queremos com isto dizer apenas que nada seria mais
estranho ao espírito zelote que ser guiado por um líder
inferior, ser aconselhado por tolos e comandado por um
frouxo. E é natural que, se o potencial mágico é
determinado pelo sangue, como é subjacentemente
tergiversado, o poder seja hereditário e constitua uma
monarquia vitalícia. Nos é claro que, no plano real, não
existindo tal mágica mas crenças e superstições em seu
lugar, o que sempre determina a liderança política são um
saber teórico e uma prática de virtudes tal que nenhum
outro dentre um povo se lhe possa equiparar. Todos
sabemos: a liderança é uma força da natureza que se
pode disciplinar e enriquecer, mas ela brota e floresce
segundo lei e estação próprios.
Para não nos alongarmos, citamos brevemente que
há numerosos pontos em comum com a Utopia de Morus
que nos poriam em risco de tornarmo-nos repetitivos.
Como correspondências finais e mais peculiares, citamos
o vestuário composto de hábito, colete, sapatos cobertos
por toga e barretes – conjunto deveras cômpar ao zelote;
a dedicação geral à vida intelectual – como visto em
ambas as cidades principais que visitamos; as mulheres
são ativas e aptas à guerrear – não são a rainha e sua
filha os humanos mais poderosos do mundo, segundo os
cidadãos iluminados?; inventaram navios que “viajam sem

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velas e sem remos” e dominaram a “arte de voar” e


pretendem outros avanços científicos – análogos do
submarinho Palácio Oceânico, do Pássaro Negro e das
pesquisas anunciadas que estavam em andamento pelos
Filósofos; cultuam o sol e as estrelas “como coisas vivas”
que representam a imagem do divino – naturalmente nos
remetendo àquele período anterior em que o Sol era, a
um só tempo, um tesouro e uma entidade reverenciada.
“Afirmo que essa república”, declara posteriormente o
autor, no pós-escrito, “como o século de ouro, é desejada
por todos e reclamada por Deus, quando pedimos que a
sua vontade seja feita assim no céu como na terra”93.

‘As Viagens de Gulliver’ de Jonathan Swift

Com seu romance satírico As Viagens de Gulliver94


(1726), Jonathan Swift, intelectual inglês, nos dá um
presente ainda mais caro à imaginação e ainda mais
próximo do quadro referencial da literatura nipônica, posto
que é de saber comum que um de seus fantásticos países
descritos, Lapúcia – sobre o qual nos debruçaremos
agora –, ganhou expressão artística visual na animação
Laputa: castelo no céu (1986) pela produtora Studio
Ghibli, dignado com copiosos prêmios e convertendo-se
num clássico da animação japonesa contemporânea.
O cirurgião e aprendiz de capitão Lemuel Gulliver
deixou a Inglaterra e, na maior parte das vezes por
causas de reveses naturais, foi lançado às mais
inusitadas das regiões e povos. Os pequeninos de Lilipute

Ibid., p. 51.
93

SWIFT, J. Viagens de Gulliver. São Paulo: W. M. Jackson, 1950. Vol.


94

XXXI. p. 200.

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