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DIREITO PROCESSUAL PENAL

4.º ANO – NOITE/2022-2023


Regência: Prof. Doutor Paulo de Sousa Mendes
Colaboração: Mestre João Gouveia de Caires e Licenciada Joana Reis Barata
Exame de coincidências – 26 de janeiro de 2023
Duração: 90 minutos

André, jovem inteligente e bem parecido, nutria um profundo afeto por Bárbara.
Um afeto tão intenso levou André a esperá-la todos os dias à porta da universidade,
aparecendo várias vezes de surpresa em casa de Bárbara e de seus pais. Convencido de
que as incessantes rejeições constituíam apenas um teste ao seu amor, André não refreou
as investidas. Tudo isto apesar de ter sido acusado pela prática de um crime de
perseguição (artigo 154.º-A do CP), no contexto do inquérito com o NUIPC
0022345/2022.1LSB, que correra termos no Departamento de Investigação e Ação Penal
de Lisboa.
A 2 de janeiro de 2023, aproveitando-se da circunstância de Bárbara ter ido ao
cinema com um grupo de amigas e sabendo que nessas ocasiões costumava regressar a
casa de TVDE, André fez-se passar pelo condutor designado para aquele transporte.
Distraída com a conversa e despedidas, Bárbara não se apercebeu que o motorista era,
na verdade, André¸ entrando livre e espontaneamente no veículo. Catarina, amiga de
Bárbara, só reconheceu André quando o carro arrancou, não tendo conseguido avisá-la
a tempo.
Ao longo de mais de 5 horas, André percorreu os locais mais românticos da cidade
de Lisboa, ao som de “Perfect”, de Ed Sheeran, impedindo Bárbara de sair do automóvel,
apesar das reiteradas súplicas. Acabou, por fim, por deixá-la sair do carro, às 05h30, no
Terreiro do Paço.
Na sequência da denúncia de Bárbara, o MP abriu inquérito pela prática de um
crime de sequestro (artigo 158.º, n.º 1, do CP).

Responda fundamentadamente às seguintes questões:

1. Poderá haver conexão entre o processo respeitante ao crime de perseguição (artigo


154.º-A do CP) e o processo relativo ao crime de sequestro (artigo 158.º, n.º 1, do CP)?
(2,5 valores).
2. Catarina foi ouvida no decurso do inquérito, na qualidade de testemunha, pelo MP.
Todavia, em sede de audiência de julgamento, declara não se recordar da matrícula
do veículo. Visto que tal informação consta do auto de inquirição, poderá o Juiz
confrontar Catarina com este documento? (3 valores).

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3. O MP acusou André da prática de um crime de sequestro (artigo 158.º, n.º 1, do CP).
Suponha que, em julgamento, Bárbara declara que estava grávida de 3 meses à data
dos factos, circunstância que André conhecia por lhe ter sido comunicada pela própria.
Poderá André ser condenado pela prática de um crime de sequestro agravado (artigo
158.º, n.º 2, alínea e), do CP? (4,5 valores).
4. Imagine que, aquando da busca ao carro de André, os agentes da PSP, Diana e Elvira,
encontraram uma elevada quantidade de estupefacientes. André referiu que a droga
pertencia a Frederico. O MP ordenou a realização de uma busca à casa de Frederico
(considerando a indiciação de um crime previsto e punido no artigo 21.º, n.º 1, do DL
n.º 15/93, de 22 de janeiro), iniciada às 03h00 do dia 11 de janeiro de 2023. Pronuncie-
se sobre a validade da segunda busca realizada. (4,5 valores).
5. Admita agora que Diana e Elvira intercetaram o carro conduzido por André às 05h30
da madrugada de 2 de janeiro de 2023. Sob que forma deveria tramitar o processo?
(3,5 valores).

Para realizar o exame, pode usar: Constituição da República Portuguesa (CRP), Código
Penal (CP), Código de Processo Penal (CPP) e Lei da Organização do Sistema Judiciário
(LOSJ).

Apreciação Global (sistematização e nível de fundamentação das respostas, capacidade


de síntese, clareza de ideias e correção da linguagem): 2 valores.

Nota: os exames com caligrafia ininteligível/ilegível não serão classificados.

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DIREITO PROCESSUAL PENAL
4.º ANO – NOITE/2022-2023
Regência: Prof. Doutor Paulo de Sousa Mendes
Colaboração: Mestre João Gouveia de Caires e Licenciada Joana Reis Barata
Exame de coincidências – 26 de janeiro de 2023
Duração: 90 minutos

TÓPICOS DE CORREÇÃO

Questão 1:

A resposta seria negativa, atendendo a que os processos não estariam na mesma fase
processual.
Com o intuito de verificar se poderia haver conexão entre os processos em causa,
importaria comprovar a observância dos requisitos deste mecanismo processual. Em primeiro
lugar, existia uma pluralidade de processos: o processo relativo ao crime de perseguição (artigo
154.º-A do CP) e o processo relativo ao crime de sequestro (artigo 158.º, n.º 1, do CP); em
segundo lugar, não é clara a pluralidade de tribunais competentes (ainda que a falta de tal requisito
não impeça, por si só, a conexão, apenas dispensando a verificação dos artigos 27.º e 28.º, do
CPP): o tribunal competente para os dois processos seria provavelmente o mesmo, visto que
ambos os crimes foram praticados em Lisboa, sendo da competência do tribunal singular para o
seu julgamento em função da medida da pena (não superior a 5 anos) dado não ser aplicável
qualquer critério qualitativo, (artigos 19.º, n.º 3, e 16.º, n.º 2, alínea b), do CPP). Ademais, mesmo
que se entendesse verificada uma situação típica de conexão (claramente seria a prevista no artigo
25.º do CPP, e discutivelmente a prevista no artigo 24.º, n.º 1, alínea b), do CPP – devendo
discutir-se, nesta alínea a amplitude do segmento normativo obrigatório), sempre haveria que
ponderar o limite negativo do artigo 24.º, n.º 2, do CPP.
Nesse sentido, impunha-se verificar se os processos se encontravam na mesma fase. Tanto
quanto resulta da hipótese, no processo relativo ao crime de perseguição o MP já teria proferido
acusação (artigo 283.º do CPP), o que significa que o inquérito se encontrava encerrado.
Diferentemente, no que concerne ao crime de sequestro, estaríamos, na melhor das hipóteses, na
fase de inquérito.
Em consequência, não poderia haver conexão entre estes dois processos por não se
encontrar cumprido o requisito do artigo 24.º, n.º 2, do CPP.

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Questão 2:

A resposta seria positiva, embora apenas se devesse exibir a parte do documento que
contivesse a informação que a testemunha afirma já não se recordar.
Desde logo, importa mencionar que a inquirição de Catarina em sede de inquérito
deveria obedecer ao regime do 138.º do CPP, aplicando-se o conjunto de direitos e deveres
consagrados no artigo 132.º do CPP. Para além disso, nos termos do disposto no artigo 275.º, n.º
1, do CPP, o MP deveria redigir o correspondente auto de inquirição.
Na situação descrita, cumpre analisar se as declarações prestadas por uma testemunha,
em fase anterior ao julgamento, poderão ser trazidas à audiência. A este respeito, cumpre aludir
ao artigo 355.º, n.º 1, do CPP, que determina, grosso modo, que as provas devem ser produzidas
em audiência (identificando-se o princípio da imediação). No entanto, o n.º 2 da mesma
disposição admite algumas exceções ao princípio da imediação, de entre as quais se contam as
previstas no artigo 356.º do CPP. Com efeito, o n.º 3, alínea a), do artigo 356.º do CPP admite a
reprodução ou leitura de declarações de testemunhas anteriormente prestadas perante autoridade
judiciária (artigo 1.º, alínea d), do CPP), na parte necessária ao avivamento da memória do
declarante.
Conforme indica a hipótese, Catarina invoca não se recordar da matrícula do veículo
usado para perpetrar o sequestro. Uma vez que essa informação consta do auto de inquirição,
diremos que o juiz do julgamento poderá reproduzir ou ler o auto de inquirição na parte que alude
à matrícula do carro de André, como forma de avivar a memória de Catarina.
Em suma, o juiz de julgamento poderá confrontar Catarina com o auto de inquirição na
estrita medida do necessário para avivar a sua memória, ao abrigo do disposto no artigo 356.º, n.º
3, alínea a), do CPP.
Seria valorizada a discussão sobre as exceções ao princípio da imediação, entre as quais
se insere a situação do presente caso, bem como a sua evolução histórica e ponderação do direito
ao confronto.

Questão 3

A resposta seria negativa.


De forma a comprovar se André poderá ser condenado pela prática de um crime de
sequestro agravado (artigo 158.º, n.º 2, alínea e), do CP), haverá que fazer apelo ao regime do
objeto do processo.
Em primeiro lugar, referiremos que estamos perante um facto novo, por corresponder a
um pedaço da vida (social, familiar, financeira, etc.), que se destaca da realidade e se submete
como problema jurídico concreto à apreciação judicial. Ademais, este facto não é totalmente
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independente. Pelo contrário, integra o caso ou problema jurídico em análise (a agravação é
daquele sequestro). Nesta fase, concluímos então verificar-se uma alteração de factos. Perante
isto, impõe-se avaliar os critérios constantes do artigo 1.º, alínea f), do CPP, e comprovar a
existência de uma alteração substancial de factos. Uma vez que o crime de sequestro, na sua forma
base, é punido com uma pena de prisão até três anos (artigo 158.º, n.º 1, do CP), e a moldura penal
do crime de sequestro agravado se estende até aos dez anos (artigo 158.º, n.º 2, do CP), observa-
se uma agravação dos limites máximos das sanções aplicáveis. Consequentemente, estamos
perante uma alteração substancial de factos, por via do critério quantitativo. Deverá ainda
acrescentar-se a circunstância de esta alteração substancial de factos não ser autonomizável, visto
que este facto não é suscetível de ser destacado e constituir o objeto de outro processo sem
violação do non bis in idem.
Verificando-se uma alteração substancial de factos não autonomizável, em audiência de
julgamento, impera considerar o disposto no artigo 359.º, n.º 1 do CPP. De acordo com este
preceito, esta alteração não pode ser tomada em conta pelo tribunal para o efeito da condenação.
Deste modo, dir-se-ia que André não poderia, em princípio, ser condenado pela prática de um
crime de sequestro agravado. Caso o fosse, a sentença padeceria de nulidade, nos termos do artigo
379.º, n.º 1, alínea b), do CPP.
Todavia, o n.º 3 do mencionado artigo 359.º do CPP admite a consideração dos factos que
consubstanciem uma alteração substancial, quando se verifique um acordo entre o MP, o arguido
e o assistente, desde que esses factos não determinem a incompetência do tribunal. Por esse
motivo, cumpre determinar se o tribunal competente para o julgamento do crime de sequestro é o
mesmo que seria competente para julgar o crime de sequestro agravado.
No que respeita ao crime de sequestro, previsto e punido no artigo 158.º, n.º 1, do CP,
seria competente o tribunal singular, ao abrigo do disposto no artigo 16.º, n.º 2, alínea b), do CPP
(por exclusão de critério qualitativo aplicável). Ao invés, o crime de sequestro agravado seria da
competência do tribunal coletivo (artigo 14.º, n.º 2, alínea b), do CPP), a não ser que o MP usasse
da faculdade constante do artigo 16.º, n.º 3, do CPP (mas nesta fase já estaria precludida tal
faculdade). Mesmo havendo acordo entre os vários sujeitos para a continuação do julgamento
também pelo novo facto (relativo à gravidez de Bárbara), observar-se-ia uma situação de
incompetência (material) do tribunal.
Em síntese, André não poderia ser condenado pela prática de um crime de sequestro
agravado (artigo 158.º, n.º 2, alínea e), do CP), sendo nula a sentença que procedesse a tal
condenação (artigo 379.º, n.º 1, alínea b) do CPP). Nulidade essa que dependeria de arguição em
sede e no prazo do recurso (artigos 379.º, n.º 2, 410.º, n.º 3 e 411.º, n.º 1, todos do CPP), sob pena
de sanação. O arguido apenas poderia ser condenado pelo crime de sequestro nos termos acusados

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(artigo 158.º, n.º 1, do CP), sendo valorizada a discussão sobre as diversas soluções perante uma
alteração substancial de factos, não autonomizável, na fase de julgamento.

Questão 4

A resposta seria negativa.


Segundo os dados da hipótese, Diana e Elvira teriam procedido à busca ao carro de
André no contexto do inquérito relativo ao crime de sequestro (artigo 174.º, n.º 2, do CPP),
eventualmente a título de medida cautelar e de polícia (artigo 251.º, n.º 1, alínea a), bem como
nos termos do disposto no artigo 174.º, n.º 5, alínea c), todos do CPP). Nesse âmbito, teriam
apreendido os estupefacientes indicados (artigos 249.º, n.os 1 e 2, alínea c) e 178.º, n.º 4, todos do
CPP). Não havendo ulteriores menções quanto aos termos de realização destas diligências
probatórias, admitiremos tratar-se de procedimentos válidos.
Já no que respeita à busca realizada à casa de Frederico, importa considerar, com maior
atenção, o regime do artigo 177.º do CPP. A este propósito, importa sublinhar que, em regra, as
buscas domiciliárias só poderão ser ordenadas ou autorizadas por juiz, e realizadas entre as 7 e as
21 horas, sob pena de nulidade. Acresce seria necessário a existência de indícios da prática de
crime bem como o respeito pelo princípio da proporcionalidade (o que parecia estar verificado).
Neste caso, estamos perante uma busca domiciliária, ordenada pelo MP, e realizada às 03h00.
Com base nestes elementos, afigura-se inequívoco que haveria que analisar o n.º 3 da
mencionada disposição. Como se viu, esta busca foi ordenada pelo MP, sem mandado do juiz (de
instrução, dado estarmos perante a fase de inquérito). Para além disso, sabemos que a diligência
teve lugar às 03h00, o que nos remete para o intervalo horário entre as 21 e as 7 horas
(vulgarmente conhecida por busca noturna). Então, esta busca enquadrar-se-ia na alínea b) do
número 3 do artigo 177.º do CPP.
Segundo este normativo, apenas nos casos das alíneas b) e c) do número anterior poderia
ser realizada uma busca domiciliária ordenada pelo MP. Quanto à alínea b), não houve qualquer
consentimento do visado; no que respeita à alínea c), impõe-se recordar que esta busca foi
ordenada com o intuito de investigar a prática de um crime de tráfico de estupefacientes (artigo
21.º, n.º 1, do DL n.º 15/93, de 22 de janeiro), por parte de Frederico. Relativamente a este crime,
não se constatou qualquer situação de flagrante delito, como obriga esta alínea. A haver flagrante
delito por este crime, punível com pena superior a 3 anos de prisão, o mesmo reportava-se a
André e não a Frederico.
Assim, entende-se que a busca realizada à casa de Frederico é inválida, isto é, nula, nos
termos do artigo 177.º, n.º 1, do CPP.

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Haveria, por fim que, enquadrar o tipo de nulidade em causa: uma nulidade sui generis
decorrente de um método (relativamente) proibido por não haver nem consentimento do visado,
nem se tratar do cumprimento do caso expressamente previsto na lei, correspondendo assim a
uma abusiva intromissão no domicílio (nos termos da segunda parte do artigo 32.º, n.º 8, da CRP).
Não se trataria de uma nulidade dependente de arguição (artigo 120.º, n.º 1, do CPP), dado que a
ausência de mandado o juiz quando o mesmo é obrigatório não constitui uma mera violação de
uma regra sobre a produção de prova. Trata-se, pelo contrário, de norma que impõe um limite
material à descoberta da verdade que se traduz na utilização de um método relativamente proibido
nos termos do artigo 126.º, n.º 3, do CPP (constituindo, ademais, uma abusiva intromissão no
domicílio, nos termos referidos).
Por fim, dever-se-ia referenciar em que se traduz o regime da nulidade sui generis/prova
proibida: uma proibição de obtenção, de produção e de valoração da prova proibida (para a
incriminação do arguido), sendo apenas permitida a sua valoração para a responsabilização dos
agentes que realizaram tal método proibido (nos termos do artigo 126º, n.º 4, do CPP), devendo
em princípio ser desentranhada dos autos, sendo de conhecimento oficioso e insanável mesmo
para além do trânsito em julgado (constituindo fundamento de recurso extraordinário de revisão
de sentença, nos termos do artigo 449.º, n.º 1, alínea e), do CPP). Tal nulidade da busca (prova
primária/principal) contaminaria as eventuais provas secundárias que com aquela estivessem
numa relação de causalidade ou, na terminologia da jurisprudência nacional, em que se estabeleça
um “nexo de dependência cronológica, lógica e valorativa”, através do chamado efeito-à-distância
devido à teoria, originária na jurisprudência dos EUA, dos frutos da árvore envenenada ou da sua
congénere alemã teoria da nódoa ou da mancha (nos termos do artigo 32.º, n.º 8, da CRP e artigo
122.º, n.º 1, do CPP).
Seria valorizada a discussão sobre se esta busca deveria ser comunicada, em ordem à
validação, ao juiz de instrução nos termos do artigo 174.º, n.º 6, ex vi artigo 177.º, n.º 4, todos do
CPP.

Questão 5

O processo deveria tramitar sob a forma sumária.


Com o propósito de verificar sob que forma deveria tramitar este concreto processo,
haveria que apreciar a atuação de Diana e Elvira. Atendendo à descrição, os agentes da PSP
procederam à detenção de André, depois de terem intercetado o respetivo veículo.
No que concerne à detenção, impõe-se averiguar se estamos perante uma situação de
flagrante delito, nos termos do artigo 256.º do CPP. Relembrando que se encontra indiciada a
prática de um crime de sequestro (artigo 158.º, n.º 1, do CP) – que se assume como um crime

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permanente – aplicar-se-ia o n.º 3 do artigo 256.º do CPP. Efetivamente, quando os agentes
procederam à detenção, o crime estava ainda a ser cometido, isto é, Bárbara encontrava-se ainda
privada da sua liberdade no carro de André. Assim, estávamos perante um caso de flagrante delito
em sentido estrito.
Ao abrigo do disposto no artigo 255.º, n.º 1, alínea a), do CPP, observando-se uma
situação de flagrante delito por crime punível com pena de prisão, os OPC devem proceder à
detenção. Diremos, então, que a finalidade desta detenção será a prevista no artigo 254.º, n.º 1,
alínea a) do CPP.
Importa, por isso, indagar do cumprimento dos requisitos do processo sumário, tal como
consagrados nos artigos 381.º e 387.º do CPP. Em primeiro lugar, e como vimos, exige-se que
tenha havido detenção em flagrante delito. No caso, até por OPC (artigo 381.º, n.º 1, alínea a), do
CPP). Num segundo momento, releva aludir à moldura penal do crime em causa, já que o preceito
veda a tramitação sob a forma sumária a crimes puníveis com pena de prisão cujo limite máximo
seja superior a cinco anos de prisão (salvo nas situações em que o MP lance mão da faculdade
prevista no artigo 381.º, n.º 2, do CPP). No nosso cenário, este requisito também está verificado,
uma vez que o sequestro é punido com uma pena até três anos de prisão (artigo 158.º, n.º 1, do
CP). Acresce que a audiência de julgamento poder-se-ia iniciar nos prazos previstos no artigo
387.º, n.º 1 ou 2, do CPP, não havendo motivos para duvidar do cumprimento deste requisito.
Finalmente, impera aludir ao requisito implícito negativo, respeitante à competência do
tribunal. Conforme se analisou supra, o tribunal competente para o julgamento de André seria o
tribunal singular, em consonância com o preceituado no artigo 16.º, n.º 2, alínea b), do CPP.
Tudo visto e considerado, deveria concluir-se que o presente processo tramitará sob a
forma sumária, no tribunal singular (artigos 381.º, n.º 1, alínea a) e 16.º, n.º 2, alínea b) do CPP).
O processo sumário, como forma de processo especial, é prioritário face ao processo comum o
que é comprovado pelo regime das nulidades. Estando preenchidos todos os requisitos legais,
caso o MP não tivesse promovido a forma sumária no caso em apreço, tal constituiria uma
nulidade dependente de arguição nos termos do artigo 120.º, n.º 2, alínea a), do CPP. Uma
nulidade dependente de arguição, no prazo do n.º 3 do mesmo preceito, sob pena de sanação.

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DIREITO PROCESSUAL PENAL
4.º ANO – TURMA A/2019-2020
Regência: Prof. Doutor Paulo de Sousa Mendes
Colaboração: Prof.ª Doutora Teresa Quintela de Brito, Mestres João Gouveia de Caires
e David Silva Ramalho e Licenciados Joana Reis Barata e Frederico Machado Simões
Exame escrito da época de recurso – 29 de julho de 2020
Duração: 90 minutos

Hipótese
Ana e Bernardete, colegas de casa, todas as semanas se dirigiam ao supermercado
para fazer compras para todos os vizinhos do prédio, durante o Estado de Emergência
decorrente da pandemia causada pelo coronavírus SARS-CoV-2. Numa dessas idas ao
supermercado, Ana resolveu colocar dentro da sua mala um creme, no valor de € 45,00,
pensando que estava assegurada a fuga perfeita sem proceder ao pagamento do bem, até
porque teve manha suficiente para retirar o alarme da caixa. Contudo, à saída do
supermercado, Cláudio, segurança, interpelou Ana e pediu-lhe que mostrasse o que ela
tinha dentro da mala. Ana, muito aflita, abriu a mala e, enquanto devolvia o produto,
alegou que tinha ficado sem trabalho e que não tinha meios para comprar aquele creme
que tanto queria...
Diana, que estava nesse momento a entrar no supermercado e viu toda a ocorrência,
não se coibiu de comentar: “Que vergonha... se ainda roubasse comida... agora um
creme!” Bernardete, que tinha um ódio de estimação por Diana, não se ficou e retribuiu:
“Não falas assim da minha amiga! Atiras-te aos maridos das outras, mas estás aqui com
finezas! Sua desavergonhada!” Diana não respondeu, mas jurou vingança. Com efeito,
contactou Edgar, o seu eterno admirador, e pediu-lhe que desse “uns bons tabefes” a
Bernardete. Informou-o, pois, de que Bernardete levava diariamente a passear o seu
pequeno salsicha ao Jardim das Flores, pelas 17h00. Nesse dia, à hora marcada, Edgar
dirigiu-se encapuzado ao jardim e esbofeteou e pontapeou Bernardete, com recurso a
uma soqueira, deixando-a inconsciente. Bernardete, por sua vez, assim que teve alta do
hospital para onde foi levada de urgência, apressou-se a apresentar queixa contra
desconhecidos junto da PSP.

Responda, fundamentadamente, às seguintes questões:


1. Suponha que Ana foi acusada pelo MP de um crime de furto simples, nos termos do
artigo 203.º, n.º 1, do CP, sem que o proprietário do supermercado se tenha constituído
assistente no processo. Ana, todavia, entendia que tinha praticado um crime de furto,
nos termos dos artigos 202.º, alínea c), 203.º, n.º 1, e 207.º, n.º 2, do CP. Enquanto
advogada/o de Ana, o que faria para reagir contra o despacho de acusação? (5 valores)
• Ou se admite a possibilidade de apresentação de requerimento de abertura de
instrução (RAI) pelo arguido apenas para discutir questões de direito (incluindo a
arguição de invalidades do inquérito, nomeadamente por ilegitimidade do MP) ou

1
tal RAI deverá ser rejeitado por inadmissibilidade legal da instrução, nos termos
do 287.º, n.º 3, in fine, do CPP.
• Em primeiro lugar, deveria mencionar-se os requisitos do RAI: i) legitimidade
(que assistiria ao arguido nos termos do artigo 287.º, n.º 1, alínea a), do CPP, a
desenvolver infra); ii) prazo (20 dias a contar da notificação da acusação); iii)
representação judiciária; e iv) conteúdo (ainda que por súmula, e sem
formalidades especiais, deveria mencionar-se as razões de discordância de facto
e de direito face à decisão final de inquérito, nos termos do artigo 287.º, n.º 2, do
CPP).
• Ainda que estivessem assegurados os demais requisitos, deveria desenvolver-se o
requisito relativo à legitimidade do arguido. Tendo este sido acusado, a sua
legitimidade para deduzir RAI estaria dependente de se admitir que o mesmo
poderia deduzir tal requerimento apenas para discutir questões jurídicas ou para
invocar invalidades processuais. Na verdade, no caso concreto não haveria
qualquer questão de facto controvertida. Apenas uma mera qualificação jurídica.
• Assim, a possibilidade de reagir contra o referido despacho de acusação tem sido
objeto de controvérsia na doutrina. Estando em causa uma mera questão de direito,
é questionável se poderá o arguido apresentar RAI nos termos do artigo 287.º, n.º
1, alínea a), do CPP. Neste âmbito deveriam ser discutidas as teses a favor e contra
e respetivos argumentos.
• Note-se que mesmo para quem sustentar que o arguido apenas pode deduzir RAI
por questões de direito que possam ser úteis (i.e., que conduzam a um despacho
de não pronúncia), também neste caso haveria legitimidade dado que seria
alcançado um despacho idêntico (i.e., um despacho que ponha fim ao processo,
evitando-se assim o julgamento), pelo que a contestação não seria o momento
adequado para levantar a questão.
• Caso se pugnasse pela possibilidade de apresentação de RAI, deveria ser discutida
a eventual inadmissibilidade legal do procedimento, nomeadamente a
circunstância de, em virtude da AQJ, o MP deixar de ter poderes para, inexistindo
constituição como assistente, proceder à investigação do referido crime, nos
termos do artigo 50.º do CPP, mais se salientando que deveria ter sido o assistente,
e não o MP, a apresentar acusação particular, nos termos do artigo 285.º do CPP,
e que aquele apenas poderia ter acompanhado a acusação, segundo o artigo 285.º,
n.º 4, do CPP. Importa nomeadamente discutir se a AQJ, de crime semipúblico
para particular, afeta a validade do inquérito e da acusação pública, ou se apenas
produz efeitos para o futuro, questionando se faz sentido uma regressão do
processo à fase anterior ao inquérito e à acusação pública; ou se deve antes o
ofendido ser notificado para, desejando, pôr termo ao processo, através da
desistência da queixa – não da acusação particular, pois esta não foi apresentada
(art. 51.º do CPP).
• Dever-se-ia ainda questionar a possibilidade de a arguida requerer a abertura da
instrução para invocar a invalidade decorrente da ilegitimidade do MP num
processo por crime particular sem que tenha havido a constituição como assistente
e a dedução de acusação particular por este. Seria de discutir se tal ilegitimidade,
que constitui um pressuposto processual, gera até uma nulidade insanável nos
termos do artigo 119.º, alínea b), do CPP. Uma invalidade que não depende de
arguição, mas que pode ser invocada a todo o tempo e constituindo o RAI um
desses momentos adequados.
• Caso se pugnasse pela impossibilidade de apresentação de RAI, deveria o JI
rejeitar o requerimento por inadmissibilidade legal da instrução, devendo o

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processo prosseguir para julgamento. Neste âmbito deverá ser valorizada a
resposta que referir que, avançando para julgamento, é questionável que o juiz
possa logo em sede de saneamento (artigo 311.º do CPP) alterar a qualificação
jurídica, nomeadamente tomando em consideração o Acórdão de fixação de
jurisprudência do STJ n.º 11/2013, sendo de referir o voto de vencido do
conselheiro Manuel Joaquim Braz. Porém, é de notar que a falta de legitimidade
do MP corresponde à falta de um pressuposto processual que é de conhecimento
oficioso e que no saneamento o juiz deverá apreciar. Deste modo, e
independentemente da AQJ quanto à natureza do crime, poderia conhecer da
referida questão, bem como da eventual invalidade processual mencionada supra.

2. No âmbito da investigação, dois OPC dirigiram-se a casa de Edgar pelas 17h00


com a finalidade de descobrir a soqueira com a qual teria sido cometido o crime
contra Bernardete. Apesar de Edgar não se encontrar em casa, a sua mãe
consentiu que entrassem no quarto do filho. Já no interior do mesmo, encontraram
a famigerada soqueira e apreenderam-na como prova do crime. Depois da busca,
e apenas para garantir o integral cumprimento da lei, os mesmos OPC entregaram
a Edgar uma declaração através da qual este consentia na busca efetuada no dia
anterior, a qual foi por este prontamente assinada. Pronuncie-se sobre a atuação
dos OPC. (6 valores)
• A busca domiciliária efetuada seria nula nos termos do artigo 32º, n.º 8,
da CRP, e artigo 126º, n.º 3, do CPP e, por conseguinte, sê-lo-ia também
a apreensão efetuada, não podendo a prova ser utilizada por ser proibida.
• Em primeiro lugar, uma busca domiciliária só pode ser realizada quando
existirem indícios de que os objetos relacionados com o crime ou que
possam servir de prova se encontram em casa habitada ou numa sua
dependência fechada.
• A realização da busca domiciliária terá de cumprir os requisitos previstos
no artigo 177.º do CPP. No caso, sendo o enunciado omisso quanto à
existência de despacho fundamentado que autorizasse as respetivas
buscas, apenas poderiam ser efetuadas caso fosse prestado consentimento,
documentado, por parte do visado, nos termos do artigo 177.º, n.º 3, alínea
a) e 17.º, n.º 5, alínea b), do CPP, dado que se mostrava respeitado o
princípio da proporcionalidade, nos seus vários corolários ou vertentes da
necessidade, adequação e justa medida.
• Deveria ainda referir-se que é pressuposto das buscas domiciliárias a
existência de indícios da prática do crime investigado. Ora, mesmo que
não se exigisse o crivo dos indícios suficientes como para a dedução de
uma acusação (ou de uma medida de diversão), sempre seria necessário
demonstrar-se o nível da suspeita fundada (tal como a jurisprudência tem
vindo a reforçar). Neste caso concreto, não se conhece como poderia
Edgar ser suspeito, nem, muito menos, como recairia sobre o mesmo a
suspeita fundada. Seria discutível a verificação deste pressuposto.
• Quanto ao consentimento, não se encontrando o visado em casa, a mãe
não poderia consentir na realização de uma busca ao quarto do filho, uma
vez que, a partir do momento em que esse ato deixava de ter por objeto o
quarto da mãe (ou mesmo os espaços comuns) e passava a ter por objeto
o espaço privado do filho, o visado passava a ser este último. Assim,
poderia ser dado consentimento para que a busca fosse realizada nas áreas
comuns ou no seu quarto, mas não ao quarto do seu filho.

3
• A exigência de consentimento do visado, nos termos do artigo 174.º, n.º 5,
alínea b), do CPP, nada tem a ver com a tutela da propriedade, do domínio
ou da titularidade do domicílio, mas sim com a privacidade, a intimidade
e a vida familiar, direitos de personalidade que apenas cabe ao próprio
exercer.
• Por outro lado, o consentimento é necessariamente prévio à realização do
ato, não se confundindo com a mera ratificação de uma atuação já
encetada, razão pela qual o consentimento a posteriori não pode sanar o
vício em causa.
• Deveria identificar-se a nulidade da prova recolhida, nos termos dos
artigos 178.º, n.os 3 e 4. Mas neste caso prevalece a aplicação do regime
mais severo das proibições de prova, nos termos dos artigos 118.º, n.º 3, e
126.º, n.º 3, do CPP, com as respetivas consequências. Um regime que
comporta a proibição de produção e de valoração da prova proibida, sendo
apenas permitida a sua valoração para a responsabilização dos agentes que
utilizaram tal método proibido, nos termos do artigo 126.º, n.º 4, do CPP,
devendo em princípio ser desentranhada dos autos, não podendo ser
repetida, sendo de conhecimento oficioso e insanável mesmo para além do
trânsito em julgado e constituindo ademais fundamento de recurso
extraordinário de revisão de sentença, nos termos do artigo 449.º, n.º 1,
alínea e), do CPP. Tal nulidade sui generis decorrente de prova proibida
comporta ainda o efeito à distância, i.e., a invalidade da prova principal
contaminaria (salvo alguma exceção) as eventuais provas secundárias que
com aquela estivessem numa relação de causalidade ou, na terminologia
da jurisprudência nacional, em que se estabeleça um “nexo de dependência
cronológica, lógica e valorativa”, através do chamado efeito à distância,
devido à teoria, originária na jurisprudência dos EUA, dos frutos da árvore
envenenada ou da sua congénere alemã teoria da nódoa ou da mancha, nos
termos do art. 32.º, n.º 8, da CRP e art. 122.º, n.º 1, do CPP, este último
aplicável às proibições de prova por raciocínio a fortiori.
• Referência à jurisprudência a respeito do tema, nomeadamente ao Ac. do
TC n.º 507/94.

3. Considere agora que o Ministério Público, no final do inquérito, acusou Edgar


pela prática de um crime de ofensa à integridade física simples (p. e p. pelo artigo
143.º, n.º 1, do CP). Já na fase de julgamento, o Tribunal entendeu, depois de
produzida a prova testemunhal, que o facto de, em consequência das agressões de
Edgar, Bernardete ter ficado impedida de praticar a sua profissão de bailarina
profissional, o que já resultava da acusação, levaria à verificação do crime de
ofensa à integridade física grave (p. e p. pelo artigo 144.º, alínea b), do CP).
Assim, o Tribunal condenou Edgar numa pena de prisão de 6 anos e 6 meses pela
autoria material do crime de ofensa à integridade física grave. Pronuncie-se sobre
a validade da decisão do Tribunal. (7 valores)
• Estamos perante um caso de alteração da qualificação jurídica pelo
Tribunal em fase de julgamento, que segue o regime do artigo 358.º, n.º 3,
do CPP, podendo ser a decisão do Tribunal nula por violação do artigo
379.º, n.º 1, alínea b), do CPP, importando discutir e fundamentar a
aplicação desta alínea à violação do regime legal da AQJ, e não apenas do
regime legal da AF, como sugere o texto legal.

4
• O Tribunal decidiu alterar a qualificação jurídica do crime de ofensa à
integridade física simples para ofensa à integridade física grave, não
havendo ASF, uma vez que estes permaneceram imutáveis;
• Assim, o regime da AQJ segue o regime da ANSJ previsto no artigo 358.º,
n.º 3, do CPP. Seria valorizada a discussão acerca do regime da AQJ,
nomeadamente as críticas que são aduzidas à solução consagrada na lei
pelo legislador;
• Deste modo, estava o Tribunal obrigado a comunicar ao arguido a
alteração, dando-lhe prazo, se este o requerer, para preparar a sua defesa
(artigo 358.º, n.os 1 e 3, do CPP). Seria valorizada a discussão quanto à
desnecessidade de comunicação ao arguido da AQJ em certos casos,
nomeadamente quando não se verifica um agravamento da sua situação
processual, o que, de todo o modo, não se verificava no presente caso.
• Quanto à competência, estando em causa um crime de ofensa à integridade
física simples, seria competente o Tribunal Singular (artigo 16.º, n.º 2,
alínea b), do CPP).
• Todavia, com a AQJ efetuada pelo Tribunal, passava a ser competente o
Tribunal Coletivo, nos termos do artigo 14.º, n.º 2, alínea b), do CPP, uma
vez que este crime é punível com pena de prisão até 10 anos.
• Discussão das teses aplicáveis a este caso quanto à competência:
nomeadamente se o Tribunal Singular se deverá declarar incompetente e
remeter o processo para Tribunal Coletivo; ou se será antes competente,
mas não poderá aplicar pena superior àquela que estava prevista para a
qualificação jurídica inicial.
• De todo o modo, conclui-se que o Tribunal Singular estava obrigado a
comunicar a alteração ao arguido (não decorre do enunciado que o tenha
feito), e que não o poderia condenar numa pena de prisão de 6 anos e 6
meses, ao abrigo da segunda tese referida, uma vez que não teria
competência para o efeito, sendo a sentença nula nos termos do artigo
379.º, n.º 1, alínea b), do CPP), podendo o arguido invocar a nulidade em
sede de recurso ordinário e no prazo do mesmo, a saber: 30 dias (379.º, n.º
2, 410.º, n.º 3, e 411.º, n.º 1, do CPP).
Para realizar o exame, pode usar: Constituição da República Portuguesa (CRP), Código
Penal (CP), Código de Processo Penal (CPP) e Lei da Organização do Sistema Judiciário
(LOSJ).

Apreciação Global (sistematização e nível de fundamentação das respostas, capacidade


de síntese, clareza de ideias e correção da linguagem): 2 valores.

5
DIREITO PROCESSUAL PENAL
4.º ANO – TURMA A (DIA) 2020-2021
Regência: Prof. Doutor Paulo de Sousa Mendes
Colaboração: Mestres João Gouveia de Caires e David Silva Ramalho, Licenciados Joana
Reis Barata e Nuno Igreja Matos
22 de julho de 2021 | Duração: 90 minutos

VERSOS COMO PUNHOS

Luiz, célebre poeta surrealista da cidade de Lisboa, encontrava-se, como era seu hábito,
junto ao Café Gelo, na Praça da Figueira, quando viu aproximar-se Mário, um não menos
afamado poeta, ainda que pertencente à escola infrarrealista. Consequência do desprezo que
nutriam pela corrente artística do outro, começaram imediatamente a trocar provocações por
via da declamação recíproca de versos de escárnio. Sentindo-se especialmente visado na sua
honra por uma metáfora onírica de Luiz, Mário desferiu um murro violento na direção de Luiz,
atingindo-o em cheio na têmpora. Numa reação instintiva, Luiz ainda conseguiu pontapear
Mário na barriga antes de começar a sentir os efeitos desorientadores do murro que o havia
atingido e cair no chão.
No dia seguinte, quando Mário se encontrava já na sua casa na cidade de Évora,
começou a sentir uma dor aguda no estômago e a cuspir sangue, tendo imediatamente percebido
que eram ainda sequelas do pontapé de Luiz. Nesse mesmo dia, dirigiu-se à Esquadra de
Investigação Criminal da Polícia de Segurança Pública de Évora e apresentou queixa contra
Luiz.
Duas semanas depois, tendo descoberto, por via de um amigo comum, que Mário
apresentara queixa contra si, Luiz contactou um advogado, a quem deu instruções para dar
entrada no Ministério Público de uma queixa contra Mário.
Na sequência das ocorrências, o Departamento de Investigação e Ação Penal de Lisboa
abriu dois processos. Num desses processos (processo n.º 1/T9LX), Mário foi acusado pela
prática de um crime de ofensa à integridade física simples privilegiada (p. e p. pelo artigo 146.º,
alínea a), em conjugação com o disposto no artigo 143.º, ambos do Código Penal), por ter sido
considerado que agira dominado por uma vontade de defesa da honra, que constitui “um
relevante valor social”, de acordo com a acusação. No outro processo (processo n.º 2/T9LX),
Luiz foi acusado pela prática de um crime de ofensa à integridade física simples (p. e p. pelo
artigo 143.º do Código Penal).

Responda às seguintes questões:

1. Luiz considera que Mário agiu motivado por um ódio pessoal à sua pessoa e que deveria
ter sido acusado pela prática do mesmo crime imputado no seu processo (isto é, o crime
de ofensa à integridade física simples) — razões pelas quais discorda do teor da acusação
deduzida no processo n.º 1/T9LX.

(a) Poderia Luiz requerer a conexão dos dois processos? (3 valores)


(b) O que poderia Luiz fazer com vista a evitar que Mário fosse julgado pelo crime de
ofensa à integridade física simples privilegiada? (4 valores)

2. Durante o julgamento do arguido Mário, Luiz afirmou que desde a agressão nunca mais
se sentira a mesma pessoa, descrevendo-se até como um “realista convicto”. O Tribunal
veio a apurar que Luiz sofrera danos cerebrais permanentes. Em face deste quadro,
poderia o Tribunal condenar Mário pela prática de um crime de ofensa à integridade
física grave (p. e p. pelo artigo 144.º, alínea b), do Código de Processo Penal)? E pela
prática de um crime de ofensa à integridade física grave privilegiada (p. e p. pelo artigo
146.º, alínea b), em articulação com o disposto no artigo 144.º, alínea b), ambos do
Código Penal)? (4 valores)

3. No momento da constituição de Luiz como arguido no processo n.º 2/T9LX, os agentes


policiais comunicaram a Luiz que se lhes indicasse o nome do poeta que escrevera versos
de apologia à anarquia no edifício da esquadra, tratariam pessoalmente de garantir que o
Ministério Público não o acusaria pela prática de qualquer crime contra Mário. Poderá
ser instaurado um processo por crime de dano contra a pessoa indicada por Luiz a partir
da notícia do crime assim obtida? (3 valores)

4. Poderia o Juiz de julgamento do processo n.º 2/T9LX, no decurso da fase de julgamento,


e na sequência de requerimento do assistente Mário no qual se juntava prova de que Luiz
estaria a planear uma viagem sem bilhete de regresso para a América do Sul, ponderar a
aplicação de uma medida de coação e determinar a prisão preventiva do arguido Luiz?
(4 valores)

Apreciação Global (sistematização e nível de fundamentação das respostas, capacidade de


síntese, clareza de ideias e correção da linguagem): 2 valores.

Para realizar o exame, pode usar: Constituição da República Portuguesa (CRP), Código Penal
(CP), Código de Processo Penal (CPP) e Lei da Organização do Sistema Judiciário (LOSJ).

Os exames com caligrafia ilegível/ ininteligível não serão corrigidos.


TÓPICOS DE RESOLUÇÃO:

1. Luiz considera que Mário agiu motivado por um ódio pessoal à sua pessoa e que deveria
ter sido acusado pela prática do mesmo crime imputado no seu processo (isto é, o crime
de ofensa à integridade física simples) — razões pelas quais discorda do teor da Acusação
deduzida no processo n.º 1/T9LX.

(a) Poderia Luiz requerer a conexão dos dois processos? (3 valores)

• A resposta seria positiva, quer por apensação natural, quer por verificação
dos requisitos da conexão previstos legalmente.
• Caso de conexão inscrito no artigo 24.º, n.º 1, alínea e), do Código de
Processo Penal;
• Indicação dos demais requisitos legais positivos e negativos da conexão:
o mesma fase de inquérito, de instrução ou de julgamento (artigo 24.º, n.º
2, do Código de Processo Penal);
o exclusão do limite à conexão do artigo 26.º do Código de Processo
Penal.
• Legitimidade do lesado e do assistente para requerer a conexão de
processos;
• Efeitos da declaração de conexão: competência mantém-se no mesmo
Tribunal singular territorialmente competente (afastamento do disposto
nos artigos 27.º e 28.º do Código de Processo Penal); apensação dos
processos (artigo 29.º, n.º 2, do Código de Processo Penal).

(b) O que poderia Luiz fazer com vista a evitar que Mário fosse julgado pelo crime de
ofensa à integridade física simples privilegiada? (4 valores)
• De acordo com o enunciado, a discordância de Luiz com o crime imputado
baseia-se na convicção de existência de um facto que não consta da acusação
(Mário foi motivado por ódio, e não pela defesa da honra):
o Mário pretende trazer ao processo um facto novo que implicaria
alteração substancial da acusação (resultaria num agravamento da
pena máxima aplicável, cfr. artigo 1.º, alínea f)): não poderia, por isso,
apresentar acusação subordinada (artigo 284.º, n.º 1, do Código de
Processo Penal);
o Meio adequado é a apresentação de RAI (287.º, n.º 2, alínea b), do
Código de Processo Penal). Requisitos:
▪ Legitimidade: o assistente tem legitimidade em crime
semipúblico quando pretenda introduzir um facto que importa
uma ASF face aos descritos na acusação do MP;
• Questão prévia: teria de requerer a sua constituição
como Assistente - requisitos deste requerimento;
▪ Conteúdo descrito no artigo 287.º, n.º 2, do Código de Processo
Penal (a par com o disposto no artigo 283.º, n.º 2, alíneas b) e c),
do mesmo Código);
▪ Prazo: 20 dias após a notificação da acusação;
▪ Representação judiciária.

2. Durante o julgamento do arguido Mário, Luiz afirmou que desde a agressão nunca mais
se sentira a mesma pessoa, descrevendo-se até como um “realista convicto”. O Tribunal
veio a apurar que Luiz sofrera sequelas cerebrais permanentes. Em face deste quadro,
poderia o Tribunal condenar Mário pela prática de um crime de ofensa à integridade
física grave (p. e p. pelo artigo 144.º, alínea b), do Código de Processo Penal)? E pela
prática de um crime de ofensa à integridade física grave privilegiada (p. e p. pelo artigo
146.º, alínea b), em articulação com o disposto no artigo 144.º, alínea b), ambos do
Código Penal)? (4 valores)

• Tribunal de julgamento poderia condenar por qualquer um desses crimes


com o consentimento do Arguido, no entanto, tal opção estaria vedada neste
caso em face da violação das regras de competência (artigo 359.º, n.º 3, do
Código de Processo Penal):
o Estamos em qualquer caso perante um facto novo: a afetação grave das
capacidades intelectuais de Luiz (artigo 144.º, alínea b), do Código
Penal);
o Não totalmente independente, pois integra o mesmo “pedaço de vida”
submetido já a julgamento: a sequela corporal deriva da agressão;
o A alteração de factos seria substancial porque, em qualquer caso,
resultaria desde logo em um agravamento da pena máxima (artigo 1.º,
alínea f), do Código de Processo Penal);
o Não seria um facto autonomizável porque esta lesão a Luiz não poderia
ser judicialmente apreciada sem se incorrer numa violação do
princípio ne bis in idem, uma vez que só há uma ofensa corporal (agora
com maior gravidade, dada a sequela);
o A falta de acordo do arguido obstaria à referida alteração (sob pena de
nulidade da sentença, dependente de arguição em sede de recurso e no
prazo do mesmo): artigos 379.º, n.º 1, alínea b), e n.º 2, 410.º, n.º 3, e
411.º, n.º 1, do Código de Processo Penal;
o Violação das regras de competência: a pena cominada pelo artigo 144.º
do Código Penal não pode ser aplicada por Tribunal singular.

3. No momento da constituição de Luiz como arguido no processo n.º 2/T9LX, os agentes


policiais comunicaram a Luiz que, se lhes indicasse o nome do poeta que escrevera
versos de apologia à anarquia no edifício da esquadra, tratariam pessoalmente de garantir
que o Ministério Público não o acusaria pela prática de qualquer crime contra Mário.
Poderá ser instaurado um processo por crime de dano contra a pessoa indicada por Luiz
a partir da notícia do crime assim obtida? (3 valores)
• Notícia é obtida através de declarações que foram prestadas face a uma
promessa de vantagem ilegal (artigo 32.º, n.º 8, da Constituição; artigo
126.º, n.ºs 1 e 2, alínea e), do Código de Processo Penal):
• As declarações assim obtidas estão manchadas por violação de uma
proibição de prova por parte dos agentes policiais, que não carece de
arguição, nem se pode sanar (artigo 126.º, n.º 1, do Código de Processo
Penal; referência ao disposto no artigo 449.º, n.º 1, alínea e), do Código
Processo Penal);
• A instauração de um processo contra um terceiro com base em declarações
inválidas estaria também impossibilitada, por ser ato consequente daquela
invalidade (artigo 32.º, n.º 8, da Constituição; artigo 122.º, n.º 1, do Código
de Processo Penal). Seria valorada a discussão em torno da fonte de
informação, à luz de um juízo de ponderação de interesses.

4. Poderia o Juiz de julgamento do processo n.º 2/T9LX, no decurso da fase de julgamento,


e na sequência de requerimento do assistente Mário no qual se juntava prova de que Luiz
estaria a planear uma viagem sem bilhete de regresso para a América do Sul, ponderar a
aplicação de uma medida de coação e determinar a prisão preventiva do arguido Luiz?
(4 valores)

• O Juiz do julgamento poderia, tanto oficiosamente como a pedido do


Assistente (conforme sucedeu in casu), ponderar a aplicação de medida de
coação, uma vez ouvido o Ministério Público e o Arguido (artigos 194.º, n.os
1 e 4, e 120.º, n.º 1, do Código de Processo Penal);
• No entanto, não se verificam os pressupostos específicos para aplicação de
medida de prisão preventiva (artigo 202.º, n.º 1, do Código de Processo
Penal). O crime de ofensa a integridade física simples que foi imputado na
acusação ao arguido Luiz não é um crime punível com pena de prisão de
máximo superior a 5 anos (alínea a)), nem constitui um caso de
criminalidade violenta (alínea b) com artigo 1.º, alínea j), do Código de
Processo Penal). De igual modo, também não é um crime de terrorismo ou
manifestação de criminalidade altamente organizada (alínea c)), nem um
crime de catálogo das alíneas d) e e). Finalmente, também não está em causa
uma situação de entrada ou permanência irregular em território nacional,
nem a pendência de processo de expulsão ou extradição (alínea f)).
DIREITO PROCESSUAL PENAL
4.º ANO – TURMA DE NOITE / 2021-2022
Regência: Prof. Doutor Paulo de Sousa Mendes
Colaboração: Mestres João Gouveia de Caires e David Silva Ramalho e Licenciada
Joana Reis Barata
Exame Escrito da Época de Recurso – 17 de fevereiro de 2022
Duração: 90 minutos

Halloween… ninguém leva a mal!

Ambrósio, cerca das 21h00 de 31 de outubro de 2020, ao ver alguém encapuzado e a


mexer na fechadura de uma viatura estacionada junto do seu prédio, assumindo que estava
em curso mais um furto de viaturas, gritou “alto que agora é que vais levar!”, dando
ordem de detenção ao indivíduo, pensando tratar-se do meliante que havia levado diversos
carros nas redondezas. Belarmino nem olhou para Ambrósio, pondo-se imediatamente
em fuga. Ambrósio mal conseguiu seguir o suspeito, gritando “agarrem esse ladrão!”.
Na esquina da rua, encontravam-se quatro adultos acompanhando três crianças, todos
disfarçados para a brincadeira da “doçura ou travessura”, que, ao aperceberem-se dos
gritos de Ambrósio, derrubaram Belarmino. Quando Ambrósio chegou junto de
Belarmino já o mesmo se encontra imobilizado por “Drácula” (Custódio) e “Lurch”
Daniel), tendo este prontamente algemado o suspeito. “Lurch” encontrava-se
devidamente apetrechado, incluindo com fita adesiva e algemas, que prontamente utilizou
em Belarmino. Após Ambrósio descrever o que vira, “Lurch” e “Drácula” envolveram
as pernas de Belarmino em fita adesiva, procuraram tirar-lhe o capuz e verificar o que
tinha em sua posse quando encontram uma gazua, ficando logo convencidos de que
haviam detido o ladrão de carros do bairro. Pelas 23h30, chamaram a PSP e comunicaram
o sucedido, tendo os agentes Felisberta e Gilberto recebido o detido e, já na esquadra,
lavrado todo o expediente, fazendo constar a gazua e o capuz encontrado junto do detido.
Belarmino resolveu ficar calado.

Responda fundamentadamente às seguintes perguntas:


1. Diga se considera válida a detenção de Belarmino e a sua entrega aos agentes
Felisberta e Gilberto, ademais considerando as medidas adotadas. (4,5 valores)

• É válida detenção em flagrante delito por presunção, nos termos dos


artigos 255.º, n.º 1, alínea b), e 256.º, n.º 2, 1.ª e 2.ª partes, todos do
CPP. Seria de excluir o flagrante delito stricto sensu, já que quem
procedeu à detenção não foi Ambrósio (o único que percecionara os
atos de execução do crime), mas apenas Custódio e Daniel, que
atuaram com base na perseguição iniciada por Ambrósio e atentos os
sinais (alguém encapuzado a correr, aparentando estar em fuga de
Ambrósio, que grita “apanhem esse ladrão!”).
• Os regimes da revista (à pessoa do detido) e apreensão (da gazua
encontrada no decurso da revista) não se aplicam aos particulares. Na

1
melhor das hipóteses, os particulares poderiam ver a sua atuação
justificada pelo poder de detenção (artigo 255.º, n.º 1, alínea b), e n.º
2, do CPP).
• As medidas cautelares e de polícia são válidas, a saber: a receção do
detido, lavrando auto sumário da entrega (artigo 255.º, n.º 2, do CPP),
bem como auto inominado de denúncia (artigos 99.º e 246.º do CPP),
uma vez que não poderia ser de notícia (artigo 243.º do CPP), dado que
os OPC não presenciaram o crime, e todo o demais expediente,
incluindo a comunicação imediata da detenção ao MP (artigo 259.º,
alínea b), do CPP) e os relatórios (artigo 253.º do CPP), bem como a
revista do suspeito (artigo 251.º, n.º 1, alínea a), e 175.º, n.º 5, alínea
c), do CPP) e a apreensão da gazua (artigos 249.º, n.º 2, alínea c), e
178.º, n.º 4, do CPP).
• Era obrigatória a constituição de Belarmino como arguido por parte
dos agentes Felisberta e Gilberto (artigo 58.º, n.º 1, alínea c), do CPP)
e a comunicação imediata dos respetivos direitos e deveres (artigo 58.º,
n.º 2, do CPP).

2. O Ministério Público (MP) considerou que a atuação de Belarmino revelara


indícios suficientes da prática de um crime, em autoria material, de furto
qualificado, na forma tentada (p. e p. pelos artigos 204.º, n.º 2, alínea a), por
referência ao artigo 202.º, alínea b), e 23.º, n.º 2, todos do CP). Dada a idade de
Belarmino (jovem de 20 anos) e a inexistência de antecedentes criminais, o MP
considerou que era suficiente e adequada a aplicação de uma pena até 5 anos de
prisão. Diga em que forma de processo considera que se deveria tramitar tal
processo? (4,5 valores)

• Deveria tramitar na forma abreviada, dado que as formas especiais


prevalecem sobre a forma comum, constituindo até nulidade
dependente de arguição a preterição de tal prioridade (artigo 120.º, n.º
2, alínea a), do CPP), uma vez que a forma sumária não poderia ser
aplicada.
• Sendo a detenção em flagrante delito válida, a posterior entrega aos
agentes Felisberta e Gilberto mais de duas horas depois (recorde-se: a
detenção concretizou-se cerca das 21h00 e a receção do detido pela
PSP após as 23h00), impossibilitaria a tramitação na forma sumária
(artigo 381.º, n.º 1, alínea b), do CPP), ainda que o magistrado do MP
titular dos autos entendesse que seria de aplicar pena até 5 anos (artigo
381.º, n.º 2, do CPP) e o crime em causa não fosse da reserva
qualitativa do tribunal coletivo, podendo ser julgado pelo tribunal
singular (no caso, seria aplicável o artigo 14.º, n.º 2, alínea b), do CPP,
não fosse a promoção fundamentada do MP de que a pena se quedaria
até aos 5 anos de prisão).
• Seria por isso aplicável a forma abreviada como sucedânea da sumária,
pois estava assegurada a evidência probatória in casu (artigo 391.º-A,
n.os 1 e 3, alínea a), e alínea c), do CPP) e atendendo à promoção do
MP por um crime cuja pena em concreto não deveria superior a 5 anos
de prisão e por não se tratar de crime da reserva qualitativa do coletivo
(artigo 391.º-A, n.º 2, do CPP).

2
3. Independentemente da resposta anterior e admitindo a partir de agora que o
processo tramitou na forma comum, tendo o magistrado do MP deduzido
acusação contra Belarmino pela prática de um crime, em autoria material, de furto
qualificado, na forma tentada (p. e p. pelos artigos 204.º, n.º 2, alínea a), por
referência ao artigo 202.º, alínea b), e 23.º, n.º 2, todos do CP), a ser julgado em
tribunal coletivo, como atuaria na qualidade de Juiz de Instrução se lhe fosse
presente o requerimento para a abertura de instrução do arguido apenas e só a
requerer a suspensão provisória do processo? (4,5 valores)

• Requisitos do RAI de arguido (artigo 287.º, n.º 1, alínea a), e n.º 2,


do CPP), a saber:
i. Legitimidade: o arguido notificado de uma acusação de um crime
público e de modo a controlar judicialmente a decisão final do
inquérito tem legitimidade (artigo 287.º, n.º 1, alínea a), do CPP),
o que estava assegurado no caso concreto;
ii. Prazo: 20 dias após a notificação da acusação (artigo 287.º, n.º 1,
do CPP), o que se presume que também estivesse cumprido;
iii. Representação judiciária: por defensor oficiosamente nomeado ou
mandatário constituído (artigo 64.º, n.º 3, do CPP), o que se
presume que também estivesse assegurado;
iv. Conteúdo: ainda que não estando “sujeito a formalidades
especiais, [o RAI do arguido] deve conter, em súmula, as razões
de facto e de direito de discordância relativamente à acusação”
(artigo 287.º, n.º 2, do CPP), o que deveria ser analisado com
pormenor no caso concreto, uma vez que se disse que o RAI do
arguido tinha sido “apenas e só a requerer a suspensão provisória
do processo”.
• Só se faltasse um requisito deveria o Juiz de Instrução indeferir o
RAI do arguido por ser inadmissível legalmente a instrução (artigo
287.º, n.º 3, do CPP), salvo o convite ao aperfeiçoamento.
• Só neste caso, o Juiz de Instrução deveria convidar o arguido a
aperfeiçoar o seu RAI, por via da integração de lacuna e aplicação
analógica do instituto consagrado no processo civil aplicável nos
termos do artigo 4.º do CPP.
• Relacionar a finalidade da instrução com a suspensão provisória do
processo (SPP) no caso de crimes mencionados no artigo 14.º, n.º
2, alínea b), do CPP.
• Nada obsta a que o RAI do arguido tenha por finalidade a aplicação
da SPP (artigos 281.º e 307.º, n.º 2, do CPP), desde que cumpridos
os requisitos previstos no artigo 281.º do CPP, a começar pela
concordância do MP.
• Não tendo o MP deduzido acusação com intervenção do tribunal
singular por um crime do artigo 14.º, n.º 2, alínea b), do CPP, nada
impede a integração de lacuna (por analogia legis), já que o artigo
281.º, n.º 1, do CPP prevê o recurso a tal instituto para crimes com
pena até 5 anos de prisão, uma vez que a concordância do MP com
a SPP equivale a idêntica promoção e entendimento (artigos 16.º,
n.º 3, 381.º, n.º 2, e 391.º-A, n.º 2, do CPP).

3
4. Suponha que, no decurso da audiência de julgamento de Belarmino, Juliano
depõe como testemunha, uma vez que a tudo assistira da janela exatamente em
frente ao local dos acontecimentos e, quando perguntado pelo MP sobre se
reconhecia o suspeito na sala de audiências, afirmara que correspondia à pessoa
sentada no lugar do arguido. A defesa de Belarmino, logo de seguida, requereu
que tal depoimento fosse desconsiderado por se tratar de prova proibida nos
termos do artigo 147.º, n.º 2 e n.º 7 do CPP “ou, no mínimo, nula ou até irregular,
o que desde já se invoca para os devidos efeitos”. O MP entendeu que não havia
qualquer invalidade. Como decidiria tal questão se fosse o Juiz? A sua resposta
mudaria caso Juliano tivesse respondido que reconhecera logo Belarmino, tal
como dissera aos agentes da PSP logo que receberam o detido, por ser o filho da
porteira do seu prédio que viu crescer no bairro? (4,5 valores)

• É discutível a resposta à questão de saber se a preterição das regras


da prova por reconhecimento (artigo 147.º, n.º 2, do CPP) gera, no
caso concreto, uma invalidade processual devido a prova ilegal
(sendo por isso subsidiariamente aplicável a irregularidade, dada a
ausência de causa de nulidade), ou, ainda mais gravemente, a uma
proibição de valoração (como alguma jurisprudência já tem
sustentado a partir do disposto no n.º 7 do referido preceito do
CPP) ou, como parece menos defensável, a uma prova ilícita (por
haver alteração da capacidade de memória ou de avaliação da
testemunha ao depor em julgamento). Ainda assim, tais regras
epistemológicas não geram por regra uma proibição de prova, até
porque se discute se seria necessário demonstrar adicionalmente
uma intenção de provocar tal adulteração na capacidade de
memória da testemunha.
i. Seria ainda de discutir se, não se tratando de um reconhecimento
em sentido formal, se poderia valorar como prova testemunhal,
visto que o CPP prevê a possibilidade de as testemunhas serem
confrontadas com outras pessoas, incluindo arguidos (cf. artigos
345.º, n.º 3, ex vi 348.º, n.º 7, do CPP). Neste sentido, alguma
jurisprudência tem admitido a valoração como prova testemunhal.
Em qualquer caso, deveria atender-se às seguintes considerações:
1. O valor probatório da prova por reconhecimento e da prova
testemunhal é o mesmo, pois são livremente apreciadas
(127.º CPP), mas não é despicienda a classificação do meio
de prova em causa, pois o reconhecimento como parte do
testemunho vale como um só meio de prova, em vez de dois
meios de prova simultâneos (i.e., prova testemunhal e
prova por reconhecimento), o que conta para o chamado
peso da prova.
2. A liberdade dos meios de prova não pode consistir na
criação de regimes atípicos que constituam violação dos
regimes legalmente tipificados, tal como o princípio da
legalidade demanda e consta da epígrafe do artigo 125.º do
CPP.

b. Na segunda hipótese, o depoimento seria totalmente válido e poderia ser


valorado, já que a testemunha havia identificado cabalmente o suspeito
desde o primeiro momento, não havendo lugar à prova por
reconhecimento em termos técnicos, pelo que a prova testemunhal seria
livremente apreciada pelo tribunal. Neste caso, não haveria qualquer

4
violação do regime tipificado por não ser esse o aplicável, pelo que o
depoimento seria valorado como prova testemunhal.

Para realizar o exame, pode usar: Constituição da República Portuguesa (CRP), Código
Penal (CP), Código de Processo Penal (CPP) e Lei da Organização do Sistema Judiciário
(LOSJ).

Apreciação Global (sistematização e nível de fundamentação das respostas, capacidade


de síntese, clareza de ideias e correção da linguagem): 2 valores.

Nota: as respostas com grafia ilegível não são avaliadas.

5
DIREITO PROCESSUAL PENAL
4.º ANO – TURMA NOITE/2022-2023
Regência: Prof. Doutor Paulo de Sousa Mendes
Colaboração: Mestres João Gouveia de Caires e Licenciada Joana Reis Barata
Exame escrito da época de recurso – 16 de fevereiro de 2023
Duração: 90 minutos
Hipótese

Jerónimo trabalhava há já vários anos na Eles, empresa de telecomunicações, enquanto


informático. Fernando, amigo de longa data de Jerónimo, pediu-lhe que lhe fornecesse
os dados referentes ao nome, morada e número de telefone de 50.000 clientes (de modo
aleatório) para uma finalidade que não lhe podia revelar, a troco do pagamento de € 2.500.
Jerónimo, considerando que se tratava de uma tarefa bastante simples atendendo aos seus
conhecimentos informáticos, acedeu aos referidos dados e entregou-os a Fernando,
recebendo o pagamento da referida quantia como compensação.
Natércia, responsável pelo tratamento daqueles dados, verificou que o sistema registava
um movimento estranho associado à exportação de dados referentes a cerca de 50.000
clientes. Desconfiando do sucedido reportou ao seu superior hierárquico, Gustavo, que
rapidamente denunciou a sua suspeita às autoridades de que os dados em causa tinham
sido acedidos e utilizados para fins alheios à empresa.

Responda, fundamentadamente, às seguintes questões:

1. O Ministério Público, tendo tomado conhecimento da notícia do crime, procedeu


à abertura de inquérito. Acontece, porém, que, pese embora tenha apurado que, de
facto, foi cometido um crime, não conseguiu determinar quem teria procedido à
recolha dos dados. Assim, procedeu ao arquivamento do mesmo. A Eles pretende
agora reagir contra este despacho. Como a aconselharia a reagir? (3 valores)

O meio mais adequado seria recorrer à intervenção hierárquica (artigo 278.º do


CPP), uma vez que se desconhece o agente do crime e não pode existir
requerimento de abertura de instrução (RAI) contra desconhecidos.
⎯ Análise das possibilidades de reação por parte do
denunciante/ofendido/assistente perante o despacho de arquivamento do
MP: intervenção hierárquica ou RAI;
⎯ Comparação dos mecanismos de intervenção hierárquica e RAI e
respetivas finalidades;
⎯ Análise dos requisitos para apresentação de RAI e respetivos formalismos,
concluindo pela impossibilidade de apresentação de RAI contra
desconhecidos;
⎯ Conclusão pela apresentação de intervenção hierárquica, indicação do
prazo para o efeito e condições de procedibilidade;
⎯ Discussão sobre eventual pedido de reabertura de inquérito (artigo 279.º
do CPP) apenas seria admissível em caso de nova prova, o que não é o
caso.

2. Admita agora que o Ministério Público apurou que foi Jerónimo quem acedeu
aos referidos dados e que o acusou pela prática do crime de acesso ilegítimo (p. e
p. no artigo 6.º, n.º 1, da Lei do Cibercrime1), mediante a apresentação de queixa
pela Eles. A Eles entende, porém, que Jerónimo deverá ser julgado por um crime
de dano relativo a programas ou outros dados informáticos (p. e p. no artigo 4.º,
n.º 1, da Lei do Cibercrime2), considerando que, tal como consta da acusação, os
dados dos clientes acedidos foram apagados do sistema. Como deverá a Eles
proceder? (4 valores)

A Eles deverá apresentar uma acusação subordinada nos termos do artigo 284.º,
n.º 1, do CPP.
⎯ Indicar a obrigatoriedade de a Eles se constituir como assistente e
respetivos requisitos;
⎯ Explicação do regime da acusação subordinada e para que casos a mesma
deverá ser utilizada: assistente pode também deduzir acusação por (i)
factos acusados pelo MP, (ii) por parte deles, (iii) por outros que não
importem alteração substancial daqueles e (iv) para alterar a qualificação
jurídica dos factos acusados pelo MP;

Artigo 6.º
Acesso ilegítimo
1 - Quem, sem permissão legal ou sem para tanto estar autorizado pelo proprietário, por outro titular do
direito do sistema ou de parte dele, de qualquer modo aceder a um sistema informático, é punido com
pena de prisão até 1 ano ou com pena de multa até 120 dias.
(,,,)

Artigo 4.º
Dano relativo a programas ou outros dados informáticos
1 - Quem, sem permissão legal ou sem para tanto estar autorizado pelo proprietário, por outro titular do
direito do sistema ou de parte dele, apagar, alterar, destruir, no todo ou em parte, danificar, suprimir ou
tornar não utilizáveis ou não acessíveis programas ou outros dados informáticos alheios ou por qualquer
forma lhes afectar a capacidade de uso, é punido com pena de prisão até 3 anos ou pena de multa.
(…)
⎯ No presente caso inexistiam factos novos, apenas pretendendo a Eles dar
uma nova qualificação jurídica aos factos em causa, pelo que deveria fazer
uma acusação subordinada (e não requerer a abertura da instrução);
⎯ Valorização da menção ao propósito da abertura de instrução pelo
assistente em caso de acusação – a introdução de factos novos de
provoquem uma alteração substancial de factos. Menção à existência de
uma corrente jurisprudencial, minoritária, que admite a abertura de
instrução nestes casos, designadamente com a justificação de que a palavra
“factos” não pode ser avaliada atomísticamente, desinserida do sistema
processual penal, e em sentido puramente naturalístico, devendo antes ser
interpretada na interligação com uma determinada ressonância jurídico-
criminal, devendo nestes casos ser admissível a abertura da instrução.
⎯ Sustentando-se o recurso à acusação subordinada, caso tenha sido
utilizado o requerimento para a abertura da instrução o mesmo seria
rejeitado por inadmissibilidade legal da instrução, nem havendo convite
ao assistente a aperfeiçoá-lo ou convolar em acusação subordinada:
o Inadmissibilidade de aplicação analógica do convite ao
aperfeiçoamento do CPC via artigo 4.º do CPP, por se tratar de
analogia in malam partem.

3. Admita que, no decurso da investigação, o Ministério Público procedeu à


apreensão de centenas de mensagens de correio eletrónico que se encontravam no
computador de Jerónimo, entre os quais se encontravam os e-mails trocados com
Fernando de onde resultava o acordo entre si. O Defensor de Jerónimo entende,
porém, que a prova obtida não poderá ser utilizada uma vez que (i) apesar de a
pesquisa ter sido ordenada pelo Juiz de Instrução, a apreensão cautelar foi
ordenada e efetuada pelo Ministério Público e (ii) o Ministério Público foi o
primeiro a visualizar as mensagens em causa. Pronuncie-se:

a) Sobre os argumentos aduzidos pelo Defensor de Jerónimo (4 valores); e

Quanto à pesquisa ter sido ordenada pelo Juiz de Instrução e à existência de


apreensão cautelar:
⎯ Análise do regime da pesquisa e apreensão de correio eletrónico
(artigos 15.º e 17.º da Lei do Cibercrime);
⎯ Análise e tomada de posição fundamentada sobre o regime do artigo
17.º da Lei do Cibercrime, designadamente sobre a possibilidade de
existir apreensão cautelar de mensagens de correio eletrónico ou se
essa apreensão apenas poderá ocorrer mediante despacho prévio do
Juiz de Instrução;
⎯ Menção quanto à possibilidade de requerer um despacho
complementar ao Juiz de Instrução se, no decurso da pesquisa,
surgirem elementos de prova relevantes que requerem a sua prévia
autorização para serem apreendidos.
Quanto ao facto de o MP ter sido o primeiro a visualizar as mensagens de
correio eletrónico:
⎯ Abordagem da discussão doutrinária e jurisprudencial a respeito da
remissão efetuada do artigo 17.º da Lei do Cibercrime para o artigo
179.º do CPP;
⎯ Discussão fundamentada sobre a (in)aplicabilidade de todos os seus
requisitos, designadamente sobre a obrigação de ser o Juiz de Instrução
o primeiro a visualizar as mensagens em causa.

b) Sobre a possibilidade de ser aberto inquérito contra Fernando com base na


referida prova (3 valores).

Discutir-se a eventual extração de certidão para comunicação ao MP para


proceder em conformidade;
⎯ Mesmo que não se pudesse utilizar a prova contra o arguido deste
processo, nada obsta a que a prova possa ser utilizada, pelo menos
como notícia de crime, para efeitos de abertura de inquérito contra
Fernando.
⎯ Discutir entre fonte de informação para a abertura de inquérito (limite
da admissibilidade no caso) de prova (que não poderia ser valorada
como tal).
⎯ Tendo o MP adquirido notícia da prática do crime por Fernando, no
exercício de funções, estaria obrigado a abrir inquérito, em obediência
ao princípio da legalidade/obrigatoriedade da ação penal (artigos
242.º, n.º 1, alínea b) e 262.º, n.º 2, do CPP)

4. Admita que, em sede de julgamento, é descoberto que, para além de terem sido
acedidos os dados pessoais dos clientes em causa, Jerónimo também acedeu aos
dados de cartão para pagamento, o que consubstancia a prática do crime p. e p. no
artigo 6.º, n.º 3, da Lei do Cibercrime. No final do julgamento, o Juiz, depois de
Jerónimo se ter pronunciado sobre as questões em causa, condenou-o (i) pela
prática do crime previsto no artigo 6.º, n.º 3, da Lei do Cibercrime3, aplicando,
contudo, uma pena de apenas 1 ano de prisão (atendendo a que era essa a pena
máxima correspondente ao crime pelo qual Jerónimo vinha inicialmente
acusado); e ainda (ii) pela prática de um crime de sabotagem informática (p. e p.
no artigo 5.º, n.º 1, da Lei do Cibercrime4) uma vez que, conforme resultava da

Artigo 6.º
Acesso ilegítimo
1 – (…)
2 –Na mesma pena incorre quem ilegitimamente produzir, vender, distribuir ou por qualquer outra forma disseminar
ou introduzir num ou mais sistemas informáticos dispositivos, programas, um conjunto executável de instruções, um
código ou outros dados informáticos destinados a produzir as ações não autorizadas descritas no número anterior.
3 - A pena é de prisão até 2 anos ou multa até 240 dias se as ações descritas no número anterior se destinarem ao
acesso para obtenção de dados registados, incorporados ou respeitantes a cartão de pagamento ou a qualquer outro
dispositivo, corpóreo ou incorpóreo, que permita o acesso a sistema ou meio de pagamento.
(…)

Artigo 5.º
Sabotagem informática
acusação, o sistema da empresa esteva sem funcionar durante dois dias inteiros
devido à elevada quantidade de dados extraídos em simultâneo. Pronuncie-se
sobre a validade da decisão final (4 valores).

Quanto à condenação pelo crime previsto no artigo 6.º, n.º 3, da Lei do


Cibercrime:
⎯ Quanto ao facto de Jerónimo também ter acedido aos dados de cartão para
pagamento, tal facto configura uma ASF à luz do critério quantitativo
previsto no art.º 1.º/f) do CPP, uma vez que passa a estar em causa um
crime punível com pena mais elevada:
o Justificação de que estamos perante um facto novo não
autonomizável, pelo facto de este não pode ser destacado daquele
processo e submetido a um novo processo sem violar o princípio
ne bis in idem;
• Identificação do regime legal aplicável – art. 359.º/1/3 do CPP): o Juiz
deveria ter comunicado o novo facto e perguntado se o arguido, assistente
e MP estariam de acordo em prosseguir o julgamento, atendendo à nova
factualidade. Tal informação não consta do enunciado, dizendo-se apenas
que Jerónimo se pronunciou sobre o facto em causa, o que não bastaria
para efeitos da existência de um “acordo”, nos termos do artigo 359.º/3
(que neste caso seria possível, continuando a ser competente o Tribunal
Singular), pelo que a decisão seria nula (art.º 379.º1/b) e 2 do CPP),
dependendo de arguição tempestivamente suscitada em sede de recurso
ordinário (art.os 410.º/2 e 3 e 411.º/1 do CPP);
• Justificação de que, à luz da lei vigente, não podendo ser tomado em
consideração o facto novo, não seria admissível a decisão do juiz, ainda
que apenas aplicasse a pena correspondente ao crime pelo que o arguido
vinha acusado.

Quanto à condenação pelo crime de sabotagem informática (p. e p. no artigo 5.º,


n.º 1, da Lei do Cibercrime)
⎯ Identificação de que estamos diante de uma alteração da qualificação
jurídica, pelo que seria admissível que o Juiz condenasse o arguido
também por esse crime
⎯ Análise do regime da alteração da qualificação jurídica (artigo 358.º, n.º
3, do CPP), sendo que no caso é dito que Jerónimo se terá pronunciado
sobre as questões em causa, pelo que nenhuma irregularidade/nulidade
existe a este respeito.

1 - Quem, sem permissão legal ou sem para tanto estar autorizado pelo proprietário, por outro titular do direito do
sistema ou de parte dele, entravar, impedir, interromper ou perturbar gravemente o funcionamento de um sistema
informático, através da introdução, transmissão, deterioração, danificação, alteração, apagamento, impedimento do
acesso ou supressão de programas ou outros dados informáticos ou de qualquer outra forma de interferência em
sistema informático, é punido com pena de prisão até 5 anos ou com pena de multa até 600 dias.
(…)
⎯ Valorização da menção à doutrina que se debruça sobre a impossibilidade
de alterar livremente a qualificação jurídica dos factos em sede de
julgamento e respetivas consequências.

Para realizar o exame, pode usar: Constituição da República Portuguesa (CRP), Código
Penal (CP), Código de Processo Penal (CPP) e Lei da Organização do Sistema Judiciário
(LOSJ).

Apreciação Global (sistematização e nível de fundamentação das respostas, capacidade


de síntese, clareza de ideias e correção da linguagem): 2 valores.

Nota: as respostas com grafia ilegível não serão avaliadas.


DIREITO PROCESSUAL PENAL
4.º ANO – NOITE

Coordenação e Regência
Professor Doutor Paulo de Sousa Mendes

Colaboração
Professor Doutor Rui Soares Pereira e Dr.ª Catarina Abegão Alves

Exame escrito (recurso)


19 de fevereiro de 2016
Duração: 90m

Hipótese

Andreia começou a receber chamadas frequentes no telefone de sua casa, durante a


madrugada e com a duração de um segundo.
E, em dia não concretamente apurado, foi colocado debaixo da porta de Andreia uma
folha dactilografada com os seguintes dizeres: “Querida … Não te esqueças de mim, pois eu também não
me esqueço de ti, e de tudo o que ainda vais e irás passar. Lembra-te: estive aqui e posso apanhar-te em qualquer
altura, quer em casa, quer no café, estejas onde estiveres … Cuidado!! Para sempre…”
Perturbada com toda a situação, Andreia dirigiu-se a uma esquadra da Polícia de Segurança
Pública (PSP), próxima da sua residência, e relatou o sucedido aos agentes que aí se encontravam,
manifestando-lhes a sua desconfiança em relação a Bruna, ex-companheira e mãe dos dois filhos
do seu marido, Carlos.

Responda fundamentadamente às seguintes questões:

1 – O que poderiam/deveriam fazer os agentes da PSP perante a situação acima descrita?

2 – Suponha que foi aberto inquérito pelo Ministério Público (MP). Para além de Bruna, que foi
constituída arguida, estaria o MP obrigado a inquirir Carlos, tal como solicitado por Andreia, por

1
considerar que aquele poderá confirmar, nomeadamente, ter tido um relacionamento amoroso com
Bruna, que entretanto chegou ao fim?

3 – Admita agora que, no final do inquérito, o MP deduziu acusação contra Bruna pela prática de
um crime de ameaça e de um crime de perturbação da vida privada, p. e p., respetivamente, nos
artigos 153.º e 190.º, n.ºs 1 e 2, do Código Penal. Andreia pretende chamar a atenção para a
circunstância de os crimes terem sido cometidos à noite. O que poderia/deveria fazer?

4 – Suponha que, aberta a instrução, se conclui que Bruna também acedeu, sem autorização de
Andreia, ao endereço de correio eletrónico desta, o que integra a prática de um crime de acesso
ilegítimo, p. e p. no artigo 6.º, n.º 1, da Lei do Cibercrime. O que deveria o Juiz de Instrução fazer?

5 - Andreia tem medo de andar sozinha na rua e de frequentar estabelecimentos abertos ao público
por temer ser atacada e tem habitualmente insónias e perturbações do sono por sonhar que está a
ser fisicamente agredida por Bruna. Poderá peticionar que Bruna seja condenada a pagar-lhe uma
indemnização pelos danos sofridos? Esse pedido poderá ser julgado procedente caso o Juiz de
Julgamento decida absolver Bruna dos crimes que lhe foram imputados?

Cotações: 1. 4 valores; 2. 3 valores; 3. 3 valores; 4. 4 valores; 5. 4 valores; e Apreciação Global


(sistematização, síntese, clareza, fundamentação e português) 2 valores.

Nota: As respostas ilegíveis, por causa de grafia dificilmente reconhecível, não serão avaliadas.

2
TÓPICOS DE CORREÇÃO

1 – O que poderiam/deveriam fazer os agentes da PSP perante a


situação acima descrita?

Os agentes da PSP, na qualidade de entidades policiais, estariam obrigados a denunciar o


crime (artigo 242.º/1/a do CPP), com a particularidade prevista no n.º 3: sendo o crime de
ameaça e o crime de perturbação da vida privada crimes semipúblicos – artigos 153.º/2 e
198.º do CP -, a denúncia só daria lugar a instauração de inquérito se a queixa fosse
apresentada no prazo legalmente previsto (artigos 48.º e 49.º do CPP e artigos 113.º e segs.
do CP).
Os agentes da PSP estariam também obrigados a transmitir a notícia do crime ao MP com
vista a este proceder à abertura de inquérito (artigos 248.º e 262.º do CPP), embora com a
limitação de só haver lugar a abertura de inquérito se fosse deduzida a queixa (artigos 48.º
e 49.º do CPP e 113.º e ss. do CP).
Estando a correr inquérito contra Bruna e prestando esta declarações perante os agentes da
PSP, deveria ser obrigatoriamente constituída como arguida (artigo 58.º/1/a) do CPP).
Os agentes da PSP, na qualidade de OPC (artigo 1.º/c) do CPP e artigo 3.º/1/c) da
Lei n.º 49/2008, de 27 de Agosto), poderiam interrogar a arguida, nos termos e para os
efeitos do artigo 144.º do CPP, caso existisse delegação de competências do MP nesse
sentido (artigo 270.º/2 do CPP).

2 – Suponha que foi aberto inquérito pelo Ministério Público (MP).


Para além de Bruna, que foi constituída arguida, estaria o MP obrigado
a inquirir Carlos, tal como solicitado por Andreia, por considerar que
aquele poderá confirmar, nomeadamente, ter tido um relacionamento
amoroso com Bruna, que entretanto chegou ao fim?

3
Importava distinguir entre os actos de inquérito obrigatórios, que são geradores de nulidade,
nos termos do artigo 120.º/2/d) CPP, dos actos de inquérito facultativos.
No caso em apreço, a inquirição de Carlos pretendida por Andreia seria qualificável
como acto facultativo, pelo que a sua não realização não seria geradora de qualquer
nulidade. Caberia ao MP decidir da realização dessa inquirição (artigos 262.º/1, 263.º/1
e 267.º do CPP).
Eventualmente, Andreia poderia, desde que constituída como assistente no prazo
legalmente previsto e cumprindo as demais exigências inerentes a essa constituição (artigos
68.º/1/a) e 3 e 519.º do CPP), requerer a abertura da instrução (artigo 287.º/1/b) e 2
do CPP): a realização dessa inquirição poderia então ser pedida, sendo o requerimento de
abertura de instrução admissível desde que tivesse em vista a finalidade e o âmbito do artigo
286.º do CPP (cfr. artigo 287.º/3 do CPP). O Juiz de Instrução poderia ou não realizar
a inquirição (por ser também configurável como acto facultativo na fase de instrução –
artigos 286.º/1, 288.º/1 e 290.º/1 do CPP), ficando a inquirição sujeita ao regime dos
actos de instrução não repetidos (artigo 291.º/1 do CPP).

3 – Admita agora que, no final do inquérito, o MP deduziu acusação


contra Bruna pela prática de um crime de ameaça e de um crime de
perturbação da vida privada, p. e p., respetivamente, nos artigos 153.º e
190.º, n.ºs 1 e 2, do Código Penal. Andreia pretende chamar a atenção
para a circunstância de os crimes terem sido cometidos à noite. O que
poderia/deveria fazer?

Estava em causa um facto novo (crime cometido à noite), que não é totalmente independente
do objecto do processo, pelo que poderia ser considerado uma alteração de factos.

4
No caso, verificava-se um agravamento do limite máximo das sanções aplicáveis ao crime de
perturbação da vida privada (cfr. artigo 190.º/3 do CP), pelo que estaríamos perante uma
alteração substancial de factos (artigo 1.º/f), 2.ª parte do CPP).
Para poder chamar a atenção para o novo facto, Andreia teria, admitindo que já se teria
constituído como assistente, de requerer a abertura da instrução (287.º/1/b) do CPP), pois
a dedução de acusação subordinada nos termos do artigo 284.º do CPP só seria admissível
caso se verificasse uma alteração não substancial de factos ou uma mera alteração da
qualificação jurídica, o que não era o caso.

4 – Suponha que, aberta a instrução, se conclui que Bruna também


acedeu, sem autorização de Andreia, ao endereço de correio eletrónico
desta, o que integra a prática de um crime de acesso ilegítimo, p. e p.
no artigo 6.º, n.º 1, da Lei do Cibercrime. O que deveria o Juiz de
Instrução fazer?

Estava em causa também aqui um facto novo (acesso não autorizado ao correio eletrónico de
Andreia), que não é totalmente independente do objecto do processo, pelo que poderia ser
considerado uma alteração de factos.
No caso, essa alteração tinha por efeito a imputação de um crime diverso (artigo 6.º/1 da
Lei do Cibercrime), pelo que estaríamos também perante uma alteração substancial de factos
(artigo 1.º/f), 1.ª parte do CPP).
O regime da alteração substancial de factos na instrução é o previsto no artigo 303.º/3 e 4
do CPP, sendo certo que seria importante referir as diversas possibilidades (facto não
autonomizável, acordo dos sujeitos processuais e facto autonomizável) e as teses em confronto
sobre este regime.
Importava também referir quais as consequências em caso de violação do regime da alteração
substancial de factos na instrução: a questão da validade de um eventual despacho de

5
pronúncia que tomasse em consideração o facto novo e qual o regime de impugnação aplicável
se o Juiz de Instrução tomasse ou não em consideração esse facto (artigos 309.º, 310.º/3 e
399.º do CPP).

5 - Andreia tem medo de andar sozinha na rua e de frequentar


estabelecimentos abertos ao público por temer ser atacada e tem
habitualmente insónias e perturbações do sono por sonhar que está a
ser fisicamente agredida por Bruna. Poderá peticionar que Bruna seja
condenada a pagar-lhe uma indemnização pelos danos sofridos? Esse
pedido poderá ser julgado procedente caso o Juiz de Julgamento decida
absolver Bruna dos crimes que lhe foram imputados?

Estavam em causa dois crimes de natureza semi-pública (artigos 153.º/2 e 198.º do CP),
pelo que importava, desde logo, discutir a questão da necessidade de dedução do pedido de
indemnização cível no processo-crime ou sobre a possibilidade de dedução desse pedido em
separado (artigo 71.º e 72.º/1/c) do CPP).
Caso o pedido fosse deduzido em separado, como parece que seria admissível, deveria ser
também referido o n.º 2 do artigo 72.º do CPP, em virtude do qual se entende que a prévia
dedução do pedido cível em separado vale como renúncia ao direito de queixa (cfr. artigo
116.º/1 do CP).
Admitindo que Andreia assumiria a qualidade de lesada, poderia então formular pedido
de indemnização cível, tendo os poderes e deveres inerentes à posição processual do lesado e
seguindo a respectiva tramitação nos termos previstos nos artigos 74.º e segs. do CPP.
Por fim, importaria referir que a absolvição penal não constituiria impedimento ao
conhecimento pelo Tribunal do pedido de indemnização cível que Andreia formulasse no
processo-crime (artigo 377.º/1 do CPP): embora a jurisprudência seja mais restritiva no
caso de pedidos de indemnização cível fundados em responsabilidade civil contratual (desde o

6
Assento STJ n.º 7/99, DR, I Série A de 3-08-99), esse entendimento restritivo não seria
aplicável, pois no caso em apreço tratar-se-ia de responsabilidade civil delitual.

7
DIREITO PROCESSUAL PENAL
4.º ANO – TURMA DIA/2021-2022
Regência: Prof. Doutor Paulo de Sousa Mendes
Colaboração: Mestres João Gouveia de Caires e David Silva Ramalho, Licenciada Joana
Reis Barata
Exame escrito de coincidência da época de recurso – 22 de fevereiro de 2022
Duração: 90 minutos
Hipótese

Arnaldo e Bruno estavam na sua cela, no Estabelecimento Prisional de Caxias, a discutir o


que fariam no seu primeiro dia de liberdade. “Em vez de discutirmos o que vai acontecer daqui
a 10 anos, porque é que não arranjamos maneira de fugir?” – disse Arnaldo. Bento concordou
e imediatamente começaram a orquestrar o plano de fuga.
Demorou 2 meses a conseguirem escavar um túnel que os traria finalmente à liberdade. No dia
1 de fevereiro, dia da fuga, percorreram o túnel, chegaram ao fim e levantaram a tampa do
esgoto por onde iriam sair. Quando finalmente subiram, depararam-se com Célia, agente da
PSP, encostada ao carro da Polícia e a olhar para eles, como que à sua espera, e que se limitou
a dizer: “tiveram azar, queridos, estão detidos”.
Arnaldo desatou a correr e saltou para o meio de uns arbustos, onde acabou por se perder.
Bento foi detido no momento.
Volvidos 20 dias, Arnaldo veio a ser detido quando tentava entrar num avião para Bogotá. No
momento da detenção, Arnaldo foi detido e apurou-se que, para conseguir fugir, falsificara a
assinatura de Daniel, seu irmão, num cheque que lhe subtraíra.

Responda, fundamentadamente, às seguintes questões:

1. Admitindo que o crime imputado a Arnaldo e Bento era somente o do artigo 354.º,
alínea b), do Código Penal (CP), e que o Ministério Público (MP) quis promover o
julgamento de Bento imediatamente, por desconhecer em que altura seria encontrado
Arnaldo, sob que forma de processo deveriam Arnaldo e Bento ser julgados (5
valores)?

⎯ Os Arguidos deveriam ser julgados sob a forma de processo comum, admitindo


que o MP optou por não fazer uso do disposto no artigo 381.º, n.º 2, do Código
de Processo Penal (CPP).
⎯ Verificando-se uma situação de flagrante delito em sentido próprio (artigo 256.º,
n.º 1, 1.ª parte, do CPP), ou, no limite, de quase flagrante delito (artigo 256.º, n.º
1, 2.ª parte, do CPP), a detenção de Bento era obrigatória para Célia, nos termos
do artigo 255.º, n.º 1, alínea a), do CPP, visto tratar-se de uma entidade policial

1
que assistiu a um crime, de natureza pública (artigo 48.º do CPP) e punível com
pena de prisão.
⎯ Uma das finalidades possíveis da detenção referidas no artigo 254.º, n.º 1, alínea
a), do CPP, é a apresentação do detido a processo sumário e, ao que tudo indica,
era essa a intenção do MP.
⎯ No entanto, não se verifica um dos requisitos do processo sumário: concretamente
a circunstância de o crime ser punível com pena não superior a 5 anos.
⎯ Caso o MP optasse por aplicar o disposto no artigo 381.º, n.º 2, do CPP, nada
impediria que Bento fosse julgado em processo sumário.
⎯ Já quanto a Arnaldo, não se verificando qualquer um dos pressupostos de que
depende o julgamento em processo sumário, deveria o seu julgamento ocorrer sob
a forma de processo comum.

2. Poderia Daniel constituir-se assistente no processo-crime movido contra Arnaldo por


falsificação de documento, p.e p. pelo artigo 256.º, n.º 1, alínea c), do CP (4 valores)?

⎯ Daniel poderia requerer validamente a sua constituição como assistente. São


requisitos do requerimento de constituição como assistente a legitimidade, o
prazo, a representação judiciária (artigo 70.º do CPP) e o pagamento da taxa de
justiça (artigo 519.º do CPP e artigo 8.º do Regulamento das Custas Processuais)
ou pedido de apoio judiciário.
⎯ Em regra, tem legitimidade para se constituir como assistente o ofendido, i.e., o
titular do interesse especialmente protegido pela incriminação (artigo 68.º, n.º 1,
alínea a), do CPP).
⎯ O conceito restrito de ofendido identifica o ofendido com o titular do interesse
protegido direta e imediatamente, de forma exclusiva, pela incriminação, ou seja,
com o titular do bem jurídico protegido pela norma penal substantiva.
⎯ O conceito alargado admite como protegidos outros interesses abrangidos pelo
âmbito de tutela, sejam diretamente ou indiretamente tutelados, incluindo bens
jurídicos coletivos e interesses difusos.
⎯ O conceito restrito alargado admite como interesse protegido qualquer outro
interesse individualmente titulado que tenha sido diretamente afetado pelo crime
e cuja proteção expressa conste dos elementos do tipo.
⎯ No que se refere ao crime de falsificação de documento p. e p. no artigo 256.º, n.º
1, alínea c), do CP, a adoção do conceito restrito de ofendido fundamentou,
inicialmente, a recusa da jurisprudência em reconhecer ao particular prejudicado
com aquele crime a legitimidade para se constituir como assistente, uma vez que
o crime de falsificação era considerado como um crime contra a vida em
sociedade, em que é protegida a segurança e a confiança do tráfico probatório, a
verdade intrínseca do documento enquanto tal, como bem jurídico. Tratando-se,
desta forma, de um bem jurídico de natureza pública ou supra-individual, não
seria admissível a constituição do particular prejudicado como assistente.
⎯ Porém, o Ac. STJ 1/2003 (DR I-A n.º 49, de 27.02.2003) veio fixar jurisprudência
no sentido de que “no procedimento criminal pelo crime de falsificação de
documento, previsto e punido pela alínea a) do n.º 1 do artigo 256.º do Código

2
Penal, a pessoa cujo prejuízo seja visado pelo agente tem legitimidade para se
constituir assistente.”
⎯ Esta interpretação fundamentou-se na circunstância de, sendo o crime de
falsificação um crime intencional, no qual é exigido, para o preenchimento do
tipo, que o autor atue “com intenção de causar prejuízo” a outra pessoa ou ao
Estado, não poder afirmar-se que tal incriminação protege apenas interesses de
natureza pública, mas também interesses dos particulares.
⎯ Veio, assim, o STJ afirmar que a palavra “especial”, contida na alínea a) do n.º 2
do artigo 68.º do CPP, “não significa ‘exclusivo’, mas sim ‘particular’, e que um
só tipo legal pode proteger mais do que um bem jurídico, questão a resolver face,
ao mesmo tempo, ao caso concreto e ao recorte do tipo legal interessado”.
⎯ O STJ passa assim a admitir um conceito restritivo alargado de ofendido, mais
próximo do conceito amplo (que, apesar de partilhar da solução daquele acórdão,
não exige a proteção expressa do interesse do particular nos elementos do tipo).
⎯ Desta forma, no caso em apreço, poderia Daniel constituir-se como assistente, ao
abrigo da alínea a) do n.º 1 do artigo 68.º do CPP, uma vez que o tipo de
falsificação protege também interesses patrimoniais por si titulados, considerando
que foi praticado com intenção de causar prejuízo a esses mesmos interesses.
Seria de discutir a aplicação do conceito amplo de ofendido, que no caso
conduziria a idêntica solução.
⎯ Daniel poderia requerer a sua constituição como assistente até 5 dias antes do
início da audiência de julgamento, nos termos do artigo 68.º, n.º 3, alínea a), do
CPP, devendo, porém, fazê-lo, caso pretendesse deduzir acusação subordinada,
no prazo de 10 dias contados da notificação da acusação (arts. 68.º, n.º 3, alínea
b), e 284.º, n.º 1, do CPP) ou de 20 dias, caso pretendesse requerer a abertura de
instrução (artigos. 68.º, n.º 3, alínea b), e 287.º, n.º 1, alínea b), do CPP, podendo
sempre fazê-lo também no prazo para interposição de recurso da sentença
(artigos. 68.º, n.º 3, alínea d), do CPP), contudo aceitando sempre o processo tal
como se apresentasse no momento em que viesse a requerer a sua constituição
como assistente.

3. Imagine agora que o motivo pelo qual Célia sabia da fuga de Arnaldo e Bento se devia
à circunstância de ter colocado uma escuta ambiental na sua cela. O que deveria fazer
o Defensor de Arnaldo e Bento (4 valores)?

⎯ Deveria suscitar o vício de proibição de prova, ao abrigo do disposto no artigo


126.º, n.º 3, do CPP e artigo 32.º, n.º 8, da CRP.
⎯ O artigo 189.º, n.º 1, do CPP estatui que o disposto nos artigos 187.º e 188.º do
CPP é correspondentemente aplicável às conversações ou comunicações
transmitidas por qualquer meio técnico diferente do telefone, designadamente
correio eletrónico ou outras formas de transmissão de dados por via telemática,
mesmo que se encontrem guardadas em suporte digital, e à interceção das
comunicações entre presentes.
⎯ Tendo em conta o crime sob investigação, estaríamos perante um crime de
catálogo, nos termos do disposto no artigo 187.º, n.º 1, alínea a), do CPP, pelo

3
que, verificados os demais requisitos legais, incluindo a exigência de despacho
de Juiz de Instrução (JI), fundamentando a imprescindibilidade da medida, a
escuta ambiental seria, por esta razão, admissível. Isto caso tivesse havido tal
prévio despacho fundamentado de JI mediante prévia promoção do MP (titular da
direção do inquérito). Na ausência de tal despacho, e sem o consentimento dos
visados, a escuta ambiental constituiria, desde logo, prova proibida por constituir
uma intromissão abusiva no domicílio, nos termos do artigo 126.º, n.º 3, do CPP
e do artigo 32.º, n.º 8, da Constituição da República Portuguesa (CRP).
⎯ Tratava-se, assim, de uma proibição de prova alheia à existência de qualquer vício
anterior na produção da prova, pois a realização de uma escuta numa cela, que
materialmente constitui o domicílio dos reclusos, constitui uma intromissão
abusiva no seu domicílio e na sua vida privada, não consentida jurídico-
constitucionalmente.
⎯ O carácter proibido dos meios de obtenção de prova implica, em princípio, a
proibição de utilização (= valoração) das provas obtidas, já que estas são
igualmente nulas e não podem ser usadas, sendo certo que a violação da proibição
de valoração determina a invalidade do ato e por regra dos termos subsequentes
(artigo 32.º, n.º 8, da CRP e artigos 118.º, n os 3, 122.º e 126.º, n os 1 e 3, do CPP).
E o desrespeito dos pressupostos das apreensões gera também a nulidade e a
inadmissibilidade da prova, sujeitando-se ao regime especial das nulidades extra-
sistemáticas previsto no artigo 126.º, n.º 3, do CPP, que consagra as chamadas
proibições relativas de prova, uma vez que os preceitos que estabelecem aqueles
pressupostos constituem os casos previstos na lei de restrição a direitos
fundamentais de liberdade. Estamos então perante uma proibição de valoração de
prova independente. Portanto, in casu não poderiam ser usadas, nem valoradas,
as provas obtidas direta ou indiretamente a partir da escuta ambiental. Caso fosse
utilizada ou valorada, poderia ser arguida ou conhecida oficiosamente a proibição
de prova obtida com fundamento no carácter proibido dos meios de obtenção de
prova (artigos 118.º, n.º 3, 126.º, n.º 3, 187.º e 190.º do CPP e 32.º, n.º 8, da CRP).
E, ainda que o vício em questão não fosse arguido ou conhecido pelo Tribunal
antes do trânsito em julgado da decisão final, seria possível interpor recurso de
revisão da sentença que se fundasse na valoração de prova proibida (artigo 449.º,
n.º 1, e), do CPP).

4. Independentemente das respostas às questões anteriores, admita agora que Bento fora
acusado pela prática do crime previsto no artigo 354.º, alínea b), do CP, e que decidira
confessar para obter uma pena mais leve. Admita agora que o Tribunal, na sequência
da confissão, condenava o Arguido, não por um, mas por dois crimes, na medida em
que o Arguido promovera a sua evasão, mas também a de Arnaldo. Como poderia
Bento reagir (5 valores)?

⎯ Para poder beneficiar das vantagens previstas no n.º 2 do artigo 344.º, do CPP, a
confissão não poderá abranger crime punível com pena superior a 5 anos, nos
termos da alínea c) do n.º 3 do mesmo artigo – o que não impede que o Tribunal
a valore favoravelmente na medida da pena.
⎯ Estamos perante um caso de alteração da qualificação jurídica pelo Tribunal em

4
fase de julgamento, que segue o regime do artigo 358.º, n.º 3, do CPP, podendo
ser a decisão do Tribunal nula por violação do artigo 379.º, n.º 1, alínea b), do
CPP, importando discutir e fundamentar a aplicação desta alínea à violação do
regime legal da alteração da qualificação jurídica (AQJ), e não apenas do regime
legal da alteração de factos (AF), como sugere o texto legal, aliás como tem vindo
a ser sustentado pela doutrina e jurisprudência
⎯ O regime da AQJ segue o regime da alteração não substancial de factos (ANSF)
previsto no artigo 358.º, n.º 3, do CPP. Deste modo, estava o Tribunal obrigado a
comunicar ao arguido a alteração, dando-lhe prazo, se este o requerer, para
preparar a sua defesa (artigo 358.º, n.os 1 e 3, do CPP), devendo até produzir-se a
prova suplementar se requerida pelo Arguido. Seria valorizada a discussão quanto
à desnecessidade de comunicação ao Arguido da AQJ em certos casos,
nomeadamente quando não se verifica um agravamento da sua situação
processual, o que, de todo o modo, não se verificava no presente caso.
⎯ A circunstância de o Arguido ter confessado os factos não invalida que deva
seguir-se o regime do artigo 358.º, n.º 3, do CPP, uma vez que daí não resulta uma
aceitação implícita da nova qualificação, ou seja, que a AQJ tenha resultado da
estratégia de defesa do arguido.
⎯ Deveria discutir-se a solução aplicável ao caso em que o Arguido decide
confessar tendo por base uma concreta qualificação jurídica e, após a confissão,
o Tribunal decide alterar essa mesma qualificação em prejuízo do Arguido.
Concretamente, deveria ponderar-se se seria aplicável ao caso a solução
defendida por alguma doutrina de promover a condenação de acordo com a nova
qualificação, mas tendo por limite a pena aplicável ao abrigo da qualificação
pretérita.

Para realizar o exame, pode usar: Constituição da República Portuguesa (CRP), Código Penal
(CP), Código de Processo Penal (CPP) e Lei da Organização do Sistema Judiciário (LOSJ).

Apreciação Global (sistematização e nível de fundamentação das respostas, capacidade de


síntese, clareza de ideias e correção da linguagem): 2 valores.

5
DIREITO PROCESSUAL PENAL
4.º ANO – DIA/2020-2021

Regência: Prof. Doutor Paulo de Sousa Mendes


Colaboração: Mestres João Gouveia de Caires e David Silva Ramalho, Licenciados
Joana Reis Barata e Nuno Igreja Matos
Exame da época de recurso – coincidência– 27 de julho de 2021

Duração: 90 minutos

Hipótese

No dia 5 de junho de 2021, Louise, cidadã francesa, que vivia, em Portugal, há 2 anos em
condições análogas às dos cônjuges com Ricardo, cidadão português, tendo decidido
abandoná-lo e “viver a sua vida”, apodera-se das chaves do automóvel deste e sai de casa
para nunca mais voltar. Uma vez que não tinha quaisquer rendimentos, Louise falsifica a
assinatura de Ricardo e consegue vender o automóvel a um terceiro. Ricardo dirige-se à
PSP e apresenta denúncia contra Louise, afirmando que esta se tinha apropriado do seu
automóvel. O Ministério Público (MP) abre o respetivo inquérito, procede às diligências
relevantes – entre as quais, a inquirição de Louise, que não presta quaisquer declarações
– e deduz acusação contra esta, com o seguinte teor:
“O Ministério Público deduz acusação, para julgamento em processo comum,
perante o tribunal colectivo, contra Louise, nascida em 15.10.1980, portadora do
CC n.º 123456, emitido pelas autoridades competentes da República Francesa,
residente em Quinta do Lagarto, n.º 2, Almancil, porquanto:
1. No dia 5 de junho de 2021, a arguida Louise subtraiu, na residência de
Ricardo, sita em Y, as chaves do veículo automóvel marca Audi, Modelo A8, com
a matrícula XX-00-01, deixando a referida residência ao volante deste veículo.
2. No dia 5 de junho de 2021, a arguida Louise, imitando a assinatura de Ricardo,
que apôs numa declaração de venda de veículo automóvel, modelo AXR10 do
IMTT, vendeu o referido automóvel a Manuel pelo valor de €70.000,00.
3. A arguida Louise agiu conscientemente, bem sabendo que as suas condutas
eram proibidas por lei.
4. A arguida Louise sabia que o veículo automóvel pertencia a Ricardo, mas
ainda assim subtraiu as chaves daquele veículo pretendendo apropriar-se do
mesmo.
5. Ao imitar a assinatura de Ricardo na declaração de venda do veículo Audi, a

Página 1 de 7
arguida Louise pretendia obter um benefício com a venda do referido veículo,
bem como causar prejuízo a Ricardo com a referida venda.
6. O veículo automóvel em causa tinha o valor de €80.000,00.
7. Com a conduta supra descrita, Louise cometeu um crime de falsificação de
documento p. e p. no art. 256.º, n.º 1, al. c), do CP, e um crime de furto
qualificado, p. e p. nos arts. 203.º, n.º 1, 204.º, n.º 2, al. a), e 202.º, al. b), do CP.”

Responda, fundamentadamente, às seguintes questões:

1. Podia Ricardo constituir-se como assistente nos autos? (4 valores)

2. Ao receber o despacho de acusação, o Juiz constata que a arguida, Louise, apesar de


ter sido assistida pelo intérprete nomeado nos autos no primeiro interrogatório,
apenas tinha sido notificada da acusação em língua portuguesa. Por este motivo, o
Juiz profere despacho ordenando à secretaria do seu tribunal a notificação da
acusação à arguida traduzida para a língua francesa. Pergunta-se:
a. Seria obrigatória a tradução da acusação para a língua entendida pela
arguida? (3 valores)

b. Qual o conteúdo do despacho que o Juiz deveria ter proferido? (3


valores)

3. Durante a fase de julgamento, e em função das declarações prestadas pela arguida,


provou-se que Louise tinha entrado na posse do automóvel de Ricardo porque este
a tinha autorizado a “usá-lo sempre que quisesse”. Consequentemente, e sem mais
demoras, o Juiz condenou Louise pela prática de um crime de abuso de confiança
qualificado, p. e p. no art. 205.º, n.º 1, e n.º 4, al. b), do CP. Pronuncie-se quanto à
decisão proferida pelo Juiz. (4 valores)

4. Admitindo agora que o processo teria tramitado, validamente, sob a forma


abreviada, e que o MP teria deduzido acusação contra a arguida nos termos
suprarreferidos na hipótese, podia Louise requerer a suspensão provisória do
processo antes do início da audiência de julgamento? (4 valores)

Apreciação Global (sistematização e nível de fundamentação das respostas, capacidade


de síntese, clareza de ideias e correção da linguagem): 2 valores.

Para realizar o exame, pode usar: Constituição da República Portuguesa (CRP), Código
Penal (CP), Código de Processo Penal (CPP) e Lei da Organização do Sistema
Judiciário (LOSJ).

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TÓPICOS DE CORRECÇÃO

Questão 1)

Ricardo poderia requerer validamente a sua constituição como assistente. São


requisitos do requerimento de constituição como assistente a legitimidade, o prazo, a
representação judiciária (art. 70.º) e o pagamento da taxa de justiça (art. 519.º do CPP)
ou pedido de apoio judiciário.
Em regra, tem legitimidade para se constituir como assistente o ofendido, i.e., o
titular do interesse especialmente protegido pela incriminação (art. 68.º, n.º 1, al. a), do
CPP).
O conceito restrito de ofendido, defendido por Beleza dos Santos, identifica o
ofendido com o titular do interesse protegido direta e imediatamente, de forma
exclusiva, pela incriminação, ou seja, com o titular do bem jurídico protegido pela
norma penal substantiva.
Relativamente ao crime de furto qualificado, p. e p. nos arts. 203.º, n.º 1, 204.º, n.º
2, al. a), e 202.º, al. b), do CP, não restam dúvidas de que Ricardo é titular do interesse
– do bem jurídico patrimonial propriedade – diretamente protegido por aquelas normas,
relativamente ao crime de furto contra si cometido. E isto independentemente do
conceito de ofendido adotado.
No que se refere ao crime de falsificação de documento p. e p. no art. 256.º, n.º 1,
al. c), do CP, a adoção do conceito restrito de ofendido fundamentou, inicialmente, a
recusa da jurisprudência em reconhecer ao particular prejudicado com aquele crime a
legitimidade para se constituir como assistente, uma vez que o crime de falsificação era
considerado como um crime contra a vida em sociedade, em que é protegida a
segurança e a confiança do tráfico probatório, a verdade intrínseca do documento
enquanto tal, como bem jurídico. Tratando-se, desta forma, de um bem jurídico de
natureza pública ou supra-individual, não seria admissível a constituição do particular
prejudicado como assistente.
Porém, o Ac. STJ 1/2003 (DR I-A n.º 49, de 27.02.2003) veio fixar jurisprudência
no sentido de que “no procedimento criminal pelo crime de falsificação de documento,
previsto e punido pela alínea a) do n.º 1 do artigo 256.º do Código Penal, a pessoa cujo
prejuízo seja visado pelo agente tem legitimidade para se constituir assistente.”
Esta interpretação fundamentou-se na circunstância de, sendo o crime de
falsificação um crime intencional, no qual é exigido, para o preenchimento do tipo, que
o autor actue “com intenção de causar prejuízo” a outra pessoa ou ao Estado, não poder
afirmar-se que tal incriminação protege apenas interesses de natureza pública, mas
também interesses dos particulares.
Veio, assim, o STJ afirmar que o vocábulo “especial”, contido na al. a), do n.º 2,
do art. 68.º do CPP, “não significa ‘exclusivo’, mas sim ‘particular’, e que um só tipo
legal pode proteger mais do que um bem jurídico, questão a resolver face, ao mesmo
tempo, ao caso concreto e ao recorte do tipo legal interessado”.
O STJ passa assim a admitir um conceito restritivo alargado de ofendido1, mais
próximo do conceito amplo (que, apesar de partilhar da solução daquele acórdão, não

1
Para uma síntese sobre a evolução e os vários conceitos de ofendido, com referência também ao
conceito amplo, cf. o Ac. STJ 10/2010, de 17.11.2010 (DR I-A n.º 242, de 16.12.2010).

Página 3 de 7
exige a proteção expressa do interesse do particular nos elementos do tipo).
Desta forma, no caso em apreço, poderia Ricardo constituir-se como assistente,
ao abrigo da al. a), do n.º 1 do art. 68.º do CPP, uma vez que o tipo de falsificação
protege também interesses patrimoniais por si titulados, uma vez que foi praticado com
intenção de causar prejuízo a esses mesmos interesses. Seria de discutir a aplicação do
conceito amplo de ofendido, que no caso conduziria a idêntica solução.
Ricardo poderia requerer a sua constituição como assistente até 5 dias antes do
início da audiência de julgamento, nos termos do art. 68.º, n.º 3, al. a), devendo, porém,
fazê-lo, caso pretendesse deduzir acusação subordinada, no prazo de 10 dias contados
da notificação da acusação (arts. 68.º, n.º 3, al. b), e 284.º, n.º 1, do CPP) ou de 20 dias,
caso pretendesse requerer a abertura de instrução (arts. 68.º, n.º 3, al. b), e 287.º, n.º 1,
al. b), do CPP.

Questão 2- a)

Relativamente a este problema, a única referência expressa à necessidade de


tradução e de interpretação consta do art. 92.º do CPP, no qual se determina a
obrigatoriedade de nomeação de intérprete ao arguido que não entenda a língua
portuguesa. A necessidade de tradução apenas se refere à tradução de documentos de
língua estrangeira para a língua portuguesa. Desta forma, aparentemente, o arguido
apenas teria direito à nomeação do intérprete.
Uma análise mais atenta das disposições conjugadas do CPP conduz-nos, porém,
a solução oposta. Com efeito, das disposições conjugadas dos arts. 283.º, n.º 5, 277.º, n.º
3, 111.º, n.º 1, al. c), e 113.º, n.º 10, do CPP, resulta que o arguido tem de ser notificado
pessoalmente do despacho de acusação, destinando-se essa notificação a dar a conhecer
o conteúdo de tal despacho, de forma a que o arguido possa exercer os seus direitos de
defesa face ao mesmo, nomeadamente requerer a abertura da fase de instrução (art.
287.º, n.º 1, al. a), do CPP). Ora, não entendendo o arguido a língua portuguesa, é
evidente que tal notificação terá de ser efetuada em língua por ele entendida, sob pena
de serem violados os seus direitos de defesa, consagrados naquelas disposições, bem
como no art. 60.º do CPP, e, ainda, nos art. 32.º, n.º 1, da CRP, e 6.º, n.º 3, al. a), da
CEDH. Com efeito, um dos direitos fundamentais de defesa que assiste ao arguido é o
direito a conhecer os motivos da acusação que contra ele é deduzida, em língua por si
entendida, de forma a colocá-lo na mesma posição para dela se defender do que um
arguido que entenda a língua portuguesa. Este direito deve ser efetivado através da
entrega por escrito da acusação traduzida, tal como acontece com um cidadão nacional,
não podendo ser realizado através da mera nomeação de intérprete no processo (de outra
forma seria necessário que o arguido fosse notificado pessoalmente, por OPC, com a
presença de intérprete, o que não só é ineficiente em termos de economia processual,
como não permite ao arguido a análise efetiva e ponderada da acusação, colocando-o
numa situação de desvantagem face ao arguido que entenda a língua portuguesa)2.

2
Deve ainda salientar-se que está em vigor a Diretiva 2010/64/UE do PE e do Conselho, de 20.10.2010,
que impõe, no art. 3.º, a tradução dos documentos essenciais para garantir a equidade do processo e o
exercício das garantias de defesa (n.º 1), entre os quais se conta o despacho de acusação (n.º 2).

Página 4 de 7
Questão 2- b)

Relativamente a este ponto, na falta de disposição que comine a falta esta tradução com
o vício de nulidade, apenas poderemos estar perante o vício de irregularidade (art. 118.º,
n.º 2, do CPP), ou, muito discutivelmente, de inexistência3 ou ainda da nulidade sanável
nos termos do art. 120.º, n.º 3 al. c) do CPP4. Tratando-se de irregularidade, pelos
motivos já expostos quanto à função do ato em causa, sempre se tratará de uma
irregularidade que deve ser conhecida e declarada oficiosamente a todo o tempo, por
afetar o valor do ato em causa (art. 123.º, n.º 2, do CPP). O Juiz poderia, pois, conhecer
e declarar a irregularidade em causa, declarando a invalidade da notificação da acusação
à arguida e de todos os atos subsequentes (art. 123.º, n.º 1 e 2, do CPP). Quais as a
consequências dessa declaração? Poderia o Juiz reparar a irregularidade em causa, da
forma indicada na hipótese? Dir-se-á que não, por dois motivos: i) a declaração de
invalidade tem por consequência a invalidade da remessa dos autos ao tribunal de
julgamento, devendo os mesmos regressar à fase de inquérito, dirigida pelo MP, a quem
compete realizar a notificação da acusação em falta; ii) após a notificação da acusação,
a arguida poderá ainda requerer a abertura da fase de instrução, pelo que não faz sentido
manter-se o processo em fase de julgamento. Desta forma, deveria o Juiz em causa ter
declarado a irregularidade da notificação da acusação e dos atos subsequentes,
determinando o reenvio dos autos ao MP para notificação da acusação devidamente
traduzida.

Questão 3)

Analisando a situação, conclui-se que havia um facto novo (a autorização prévia


da parte do titular do direito, ao invés da subtração tal como constava na Acusação),
tanto do ponto de vista naturalístico (acontecimento histórico distinto), como do ponto
de vista normativista/teleológico-culturalista (valoração da prévia entrega da coisa e do
abuso da confiança é diversa da subtração) ou até do ponto de vista do concreto caso da
vida que se destaca e submete a apreciação judicial (problema jurídico distinto).
Ademais, não se tratando de objetos do processo / factos processuais totalmente
independentes, haveria uma alteração de factos. Alteração que seria substancial (art.
1.º, al. f), do CPP) em virtude de se tratar de crime diverso (ainda que não havendo
agravamento da pena máxima), quer pelo critério do acontecimento histórico, quer pelo
agravamento da estratégia de defesa ou mesmo da imagem e da valoração social ou
ainda do tipo de ilícito distinto. Tal alteração substancial de factos (ASF) não seria
autonomizável (em virtude de não se poder retirar deste processo e conhecer-se
isoladamente num outro processo-crime sem que houvesse violação do non bis in idem),
pelo que o Juiz apenas poderia ter questionado os sujeitos processuais (arguido, MP e
assistente) se o processo poderia prosseguir tendo em conta também os novos factos
(prévia autorização para utilização do veículo), conforme o disposto no art. 359.º, n.º 3,
do CPP.

3
Posição defendida em Ac. TRE, de 27.06.2007, Proc. n.º 848/07-1, www.dgsi.pt. Algo diferentemente,
mas subtraindo ao regime da nulidade ou da irregularidade por considerar que o direito comunitário
revogou tais preceitos do CPP, cfr. A. TRE, de 20.12.2018, Proc. n.º 5/2017.9GBLGS.E1, www.dgsi.pt.
4
Posição defendida pelo tribunal de 1.ª instância, mas em que o TRL divergiu entendendo tratar-se de
mera irregularidade – cfr. Ac. TRL, de 13.01.2021, Proc. n.º 13/18.6SILSB-F4-3, www.dgsi.pt.

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Não havendo acordo, o Juiz não deveria tomar em conta tais factos novos e, no
caso concreto, não deveria condenar nem por abuso de confiança (dado que não poderia
ter em conta, nos termos do art. 359.º, n.º 1, do CPP, a prova do novo facto: prévia
autorização), nem por furto (dado que haveria a não prova do facto subtracção). Trata-
se, assim, de um caso de alternatividade.
Consequentemente, haveria nulidade da sentença (art. 379.º, n.º 1, al. b), do
CPP), dependente de arguição, sob pena de sanação, em sede de recurso ordinário, e no
respetivo prazo de interposição (tudo nos termos dos arts. 379.º, n.º 1, al. b), 410.º, n.º 3,
e 411.º, n.os 1 e 4, todos do CPP).
Esta possível resposta à pergunta (que será valorizada) é, no entanto, muito
discutida na doutrina, na medida em que afastaria toda e qualquer possibilidade de
punição do infrator. Não se diga que a solução é justa pelo facto de o denunciante ter
distorcido o relato dos acontecimentos que fez à PSP, de modo que acabou pagando o
preço da sua voluntária imprecisão, pois aqui não está em causa satisfazer um interesse
privado na condenação do infrator, mas sim defender o interesse público na descoberta
da verdade e na realização da justiça. Assim sendo, não se pode aceitar uma
interpretação do regime da alteração substancial de factos, no caso dos crimes
alternativos, que comprometa na íntegra a possibilidade da descoberta da verdade e da
realização da justiça. Por isso, há quem defenda que, se a alteração substancial de
factos, na fase de julgamento, implicar a subsunção num tipo legal de crime alternativo,
a mesma não pode ser tomada em conta pelo Juiz para o efeito de condenação no
processo em curso, mas deve ser comunicada ao MP para que proceda pelos novos
factos ou até discutir-se a admissibilidade da condenação alternativa. Esta resposta
também será valorizada, desde que o Aluno demonstre que conhece a discussão
doutrinária sobre este ponto.

Questão 4)

Observando as disposições do CPP, verificar-se-á que, na forma comum, é


possível ao arguido requerer a suspensão provisória do processo durante a fase de
inquérito ou de instrução, mas já não na fase de julgamento.
Nas formas de processo especiais, apenas encontramos referência à suspensão
provisória do processo nos arts. 384.º, n.º 4, e 391.º-B, n.º 4. A interpretação literal deste
último preceito levar-nos-ia, por isso, a concluir pela impossibilidade de o arguido
requerer a suspensão provisória em processo abreviado após a dedução da acusação.
Cumpre, porém, questionar se esta solução faz sentido, na economia do Código e
face às garantias de defesa do arguido.
Com efeito, na redação anterior à Lei n.º26/2010, de 30 de agosto, também no
processo sumário apenas existia no art. 384.º uma disposição semelhante à do atual art.
391.º-B, n.º 4, do CPP. Discutia-se, pois, no domínio de vigência desta disposição, se
era possível ao arguido requerer a suspensão provisória depois da dedução de acusação
ou da sua apresentação para julgamento em processo sumário, tendo a jurisprudência
vindo a entender que tal era possível5, o que resultou, aliás, na alteração da redação do
referido art. 384.º. Este entendimento fundamentava-se na impossibilidade (ou grande
dificuldade) para o arguido de requerer a suspensão provisória em momento anterior,
face à inexistência de inquérito na forma de processo sumário.

5
Cf. a título de exemplo, o Ac. TRP, de 09.09.2009, Proc. n.º 596/08.9GNPRT.P1, 1.ª Secção,
http://www.trp.pt/incidentescrime/crime_596/08.9gnprt.p1.html.

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No processo abreviado não houve qualquer alteração referente a este aspeto,
resultante da Lei n.º 26/2010, de 30 de agosto.
Na redação do CPP resultante da Lei n.º 58/98, de 25 de agosto, não se previa no
processo abreviado a aplicação da suspensão provisória do processo, muito embora já se
pudesse defender a aplicação da mesma por recurso às disposições da forma comum do
processo. Nesta redação, era possível ao arguido, após a notificação da acusação,
requerer a realização de debate instrutório (art. 391.º-C). Com a Lei n.º 48/2007, de 29
de agosto, passou a prever-se expressamente a aplicação dos arts. 280.º a 282.º do CPP
na forma de processo abreviado (art. 391.º-B, nº. 4), tendo, no entanto, sido suprimida a
possibilidade de requerer a realização do debate instrutório.
Questiona-se, pois, se não será, também no processo abreviado, aplicável
analogicamente o regime previsto para o processo sumário em sede de suspensão
provisória do processo, permitindo ao arguido que a requeira mesmo após a dedução da
acusação.
Em favor desta solução militam os seguintes argumentos6: i) também no
processo abreviado não é necessária a realização de inquérito, bastando o auto de notícia
ou a realização de inquérito sumário; ii) tanto na forma comum, como na forma de
processo sumário, o arguido pode requerer a suspensão provisória do processo, quer na
fase de inquérito, quer posteriormente à dedução de acusação (no processo comum,
requerendo a instrução, no processo sumaríssimo, opondo-se à aplicação dessa forma do
processo e, posteriormente, requerendo a instrução); iii) após a reforma de 2007, o
instituto da suspensão provisória do processo é, claramente, de aplicação obrigatória,
seguindo critérios de legalidade; logo, tem de assistir ao arguido a possibilidade de
sindicar a não aplicação deste instituto pelo MP, o que, em regra, se fará através da
utilização da fase de instrução; iv) tendo sido suprimida a fase de instrução no processo
abreviado, o arguido terá, ainda assim, de ter a possibilidade de sindicar a não aplicação
da suspensão provisória, o que só poderá ter lugar, na grande maioria dos casos, após a
dedução a acusação em processo abreviado; v)sendo a acusação em processo abreviado
muitas vezes uma simples decorrência da impossibilidade de julgar o caso em processo
sumário, por ultrapassagem do prazo legal previsto no art. 387.ºdo CPP, não se
vislumbra por que motivos pretenderia o legislador conferir, em processo sumário, a
possibilidade ao arguido de requerer a aplicação daquele instituto até ao início da
audiência, retirando-lhe tal possibilidade em processo abreviado; vi) restringir esta
possibilidade de o arguido suscitar o controle da aplicação (ou da não aplicação) do
instituto da suspensão provisória do processo, uma vez que estamos perante um instituto
também regido pelo princípio da legalidade, poderá contrariar o disposto no art. 32.º, n.º
4, da CRP, uma vez que não é permitido ao arguido suscitar o controlo jurisdicional pelo
juiz de instrução sobre a decisão do MP de não aplicação do instituto da suspensão
provisória do processo.
Deveria, pois, permitir-se a Louise requerer a suspensão provisória do processo,
por aplicação do disposto no art. 391.º-B, n.º 4, e, analogicamente, do art. 384.º, n.º 1,
do CPP.

6
Cf., em sentido contrário, o Ac. TRG de 19.01.2009, Proc. 1700/08-2. Deve, porém, atentar-se na
circunstância de este acórdão suscitar questões de aplicação da lei no tempo que poderão ter sido
determinantes da conclusão contrária e que, não se verificando, poderão tornar inaplicável a ratio
decidendi subjacente ao acórdão.

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DIREITO PROCESSUAL PENAL
4.º ANO – NOITE

Coordenação e Regência Colaboração


Professor Doutor Paulo de Sousa Mendes Mestres Inês Ferreira Leite e Rui Soares Pereira

Exame escrito de recurso


13 de fevereiro de 2015
Duração da prova: 90m

Hipótese

ALBERTO receitou a BRUNA, grávida de 5 meses, um medicamento que inclui as contraindicações


de risco de aborto ou malformações do feto, a 1 de janeiro de 2014. Dez dias depois, BRUNA
sentiu-se mal e deu entrada no hospital em processo de aborto espontâneo. No dia 15 de fevereiro
do mesmo ano, CARLOS, marido de BRUNA, apresentou queixa contra ALBERTO pelo crime de
aborto, punível nos termos do art. 140.º, n.º 1, do Código Penal (doravante, CP). Devido a
complicações decorrentes do aborto, BRUNA ficou internada no hospital até ao fim do mês de
fevereiro.
Aberto o inquérito, ALBERTO prestou declarações, na qualidade de arguido, perante o Ministério
Público (doravante, MP), invocando que, apesar de ter conhecimento da gravidez da BRUNA e da
natureza da medicação receitada, entendeu que a medicação seria a mais adequada, pois os riscos
eram inferiores a 15%, dados os casos registados, não se tendo, assim, conformado com o
resultado. No final do inquérito, o MP arquivou nos termos do disposto no art. 277.º, n.º 1, do
Código de Processo Penal (doravante, CPP).

Responda justificadamente às seguintes questões:

1 – Teria o MP legitimidade para instaurar inquérito contra ALBERTO pelo crime em causa?

Tratando-se de crime público – arts. 140.º, n.º 1, do CP, e ausência de qualquer disposição legal
noutro sentido – o MP possui legitimidade para abrir inquérito oficiosamente, art. 48.º do CPP,
desde que tenha obtido a notícia do crime, arts. 241.º e 260.º do CPP. Neste caso, apesar de ter sido
apresentada uma “queixa”, tratando-se de crime público, esta releva apenas como denúncia, assim
se confirmando a aquisição da notícia do crime e a obrigatoriedade de abertura do inquérito.

1
2 – Poderia CARLOS constituir-se assistente no respetivo processo-crime?

Quando se trate de crime público, podem constitui-se como assistente os ofendidos, sendo estes os
titulares dos interesses que a lei especialmente quis proteger com a incriminação, nos termos da
alínea a) do n.º 1 do art. 68.º do CPP. Portanto, tratava-se de saber se C poderia ser considerado
como ofendido no âmbito do crime de aborto. O crime de aborto sem consentimento da mulher
grávida tutela dois bens jurídicos distintos: a vida intrauterina, como interesse difuso, do qual
ninguém pode dispor livremente e que não se reconduz a nenhum titular concreto, sendo antes um
interesse geral e difuso da comunidade; a integridade física e a liberdade de procriação da mulher
grávida, titulado por esta. Uma vez que C não é titular da integridade física e a liberdade de
procriação de B, apenas se poderia considerar como ofendido no que toca ao bem jurídico vida
intrauterina.
De acordo com um conceito mais restrito de ofendido – que apenas inclui os titulares dos
interesses imediatamente protegidos com a incriminação – C não se poderia constituir como
assistente. E, nesta ótica, também não o poderia fazer pela alínea c) do n.º 1 do art. 68.º, já que o
feto não nascido nunca chegou a ser pessoa, nem pode ser considerado ofendido. Também não o
poderia fazer pela alínea d) do n.º 1 do art. 68.º, pois B não é incapaz e o internamento hospitalar
não configura incapacidade para o exercício dos direitos previstos no art. 68.º do CPP.
De acordo com um conceito mais amplo de ofendido – que inclui as pessoas cujos interesses sejam
apenas mediatamente afetados pela incriminação – poderia equacionar-se a constituição como
assistente de C. Nesta ótica, C seria titular de um interesse próprio – a sua liberdade de procriação –
que é também colocado em causa pelo crime e que ainda poderá estar no horizonte da
incriminação.

3 – Admitindo que BRUNA e CARLOS se constituíram validamente assistentes, poderiam


requerer a abertura de instrução apenas para discutir juridicamente os limites entre o dolo
eventual e a negligência consciente, assim logrando obter uma decisão favorável ao seu
propósito de condenação de ALBERTO pelo crime de aborto?

Tratando-se de arquivamento, a instrução teria como finalidade, neste caso, a comprovação judicial
da decisão do MP de arquivar, e como objetivo, que o crime pudesse vir a ser alvo de julgamento
penal. Na perspetiva dos ofendidos, e uma vez que o arquivamento pôs termo ao processo, a
possibilidade de levar o caso a julgamento apenas poderia exercer-se através da instrução, arts. 286.º
e 287.º, ou da reclamação hierárquica, art. 278.º, todos do CPP.

2
A doutrina discute a possibilidade de requerer abertura da instrução apenas para suscitar questões
de Direito (meras alterações da qualificação jurídica), sendo invocado, contra esta possibilidade, a
alternativa da acusação subordinada, art. 284.º do CPP. Contudo, tendo havido arquivamento, esta
alterativa não existe. Por outro lado, e na ótica do acesso ao Direito, a alternativa da reclamação
hierárquica – tratando-se de mera reclamação administrativa, graciosa – não pode ser considerada
como alternativa paritária ao direito de requerer a abertura da instrução.
Assim, porque a distinção entre dolo eventual e negligência consciente é, no caso, decisiva – já que
o aborto negligente não constitui crime algum – os assistentes não poderiam ver negado o seu
direito à comprovação judicial da decisão do MP em arquivar, devendo ser reconhecido,
independentemente dos fundamentos concretos, o acesso à instrução.
Claro que o requerimento de abertura de instrução (RAI) do assistente, assumindo a função
processual de acusação material, teria que cumprir os requisitos do art. 287.º. n.º 2, por remissão
para o n.º 3 do art. 283.º, ambos do CPP. Assim, não bastaria invocar a polémica distinção entre
dolo eventual e negligência consciente, sendo os assistentes obrigados a uma dedução articulada de
todos os factos dos quais depende a aplicação de pena ou medida de segurança.

4 – Admita agora que, finda a instrução, foi proferido despacho de pronúncia contra
ALBERTO pela prática do crime de aborto, punível nos termos do art. 140.º, n.º 1, do CP.
Poderia ALBERTO recorrer deste despacho?

O despacho de pronúncia é, por regra, recorrível, nos termos do art. 399.º do CPP. O art. 310.º, n.º
1, do CPP, prevê apenas um caso de irrecorribilidade, designado por “dupla conforme”, que se
verifica quando, havendo acusação principal ou subordinada do MP, existe total coincidência entre
os factos da acusação do MP e os factos constantes do despacho de pronúncia. Tendo havido
arquivamento do MP e RAI do assistente, a previsão do n.º 1 do art. 310.º não se encontra
preenchida, prevalecendo a regra geral de recorribilidade.
Em suma, não havendo razões para suspeitar da nulidade do despacho – já que a pronúncia
concorda com os termos do RAI – tratava-se de um despacho de pronúncia válido e recorrível.

5 – Havendo suspeitas de que esta não seria a primeira vez que ALBERTO teria receitado a
medicação polémica a parturientes, poderia o juiz do julgamento aplicar ao arguido a
suspensão de exercício da profissão? Caso aplicasse esta medida de coação, ficaria o juiz
impedido de realizar o julgamento?

Nos termos do disposto no art. 194.º, n.º 1, do CPP, as medidas de coação podem ser aplicadas,
oficiosamente, pelo juiz durante o julgamento. Estando as medidas de coação sujeitas a um

3
princípio da tipicidade, art. 191.º, n.º 1, do CPP, neste caso, a análise incidia sobre a medida prevista
no art. 199.º do CPP: “Suspensão do exercício de profissão, de função, de atividade e de direitos”.
Os requisitos especiais encontravam-se verificados: trata-se de crime punível com pena superior a 2
anos de prisão, e a proibição do exercício de profissão poderia ser aplicada nos termos do art. 66.º
do CP. Não tínhamos dados concretos para saber se a medida poderia, efetivamente à luz dos
princípios da necessidade e proporcionalidade, art. 193.º, mas havia um indício de perigo de
continuação da atividade criminosa, o que apontava para o preenchimento da alínea c) do art. 204.º
do CPP.
Nos termos da a) do art. 40.º, o juiz do julgamento apenas fica impedido de o realizar quando tenha
aplicado as medidas de coação previstas nos arts. 200.º a 202.º, todos do CPP. Este impedimento
funda-se no princípio da imparcialidade (também referido por princípio do “juiz virgem”) e explica-
se pela necessidade de, nas medidas em causa, de se fazer uma avaliação dos fortes indícios da
prática do crime. Nestes casos, o juiz terá que – antes da produção de prova em audiência de
julgamento – avaliar os meios de prova recolhidos durante o inquérito e fazer um juízo de prognose
precoce sobre a culpabilidade do arguido, ficando assim prejudicada a devida imparcialidade para
realizar o julgamento.
Uma vez que a medida de coação prevista no art. 199.º do CPP depende apenas de juízos
cautelares, não existem razões para alargar o impedimento a estes casos. Em conclusão, o juiz do
julgamento poderia aplicar esta medida de coação ao arguido e manter-se como juiz do julgamento.

6 – Suponha agora que, durante a audiência de julgamento, descobre-se que, por causa das
complicações do pós-aborto, BRUNA teve que ser sujeita à remoção do útero, ficando, por
isso, incapaz de procriar. O que deveria fazer o Tribunal, tendo em consideração o
disposto nos arts. 144.º, alínea b), e 141.º, n.º 1, ambos do CP?

Trata-se da descoberta de um facto novo que se relaciona com o objeto do processo, já que se trata
de uma circunstância agravante do tipo de crime imputado no despacho de pronúncia ao arguido,
art. 141.º, n.º 1, do CP. Assim, importa saber se será uma alteração substancial dos factos, nos
termos da alínea f) do art. 1.º do CPP. Uma vez que este novo facto se traduz num agravamento da
moldura legal, conclui-se tratar-se de alteração substancial de factos.
Nos termos do regime previsto no art. 359.º, n.os 1 e 2, importa saber se este novo facto é
autonomizável. A natureza autonomizável dos factos não depende de preencherem um tipo
autónomo, mas de poderem ser julgados num processo autónomo sem violação do ne bis in idem, ou
seja, sem uma dupla valoração incriminatória de factos – essenciais para a imputação do crime –
que já sejam factos constitutivos do objeto de um outro processo. Ora, apesar deste facto novo
permitir ao preenchimento do art. 144.º do CP, a imputação deste crime ao arguido dependeria

4
também de factos que constituem objeto essencial do processo-crime pelo crime de aborto –
prescrição do medicamento abortivo – não se conseguindo assim evitar a violação do ne bis in idem
processual. Por outro lado, sabemos que a moldura legal dos arts. 140.º, n.º 1, e 141.º, n.º 1, já toma
em consideração a ofensa à integridade física simples ou grave da mulher grávida, pelo que qualquer
condenação em concurso efetivo pelos arts. 143.º e 140.º, ou 144.º e 141.º, n.º 1, todos do CP,
conduziria a uma violação do ne bis in idem material.
Com estes fundamentos, conclui-se que o novo facto não poderia ser considerado como
autonomizável, seguindo-se então o regime dos n.os 1 e 3 do art. 359.º do CPP: salvo havendo
acordo entre MP, assistente, e arguido, o processo deveria continuar apenas com os factos já
constantes do despacho de pronúncia, sendo o novo facto irrelevante para a condenação. O
Tribunal deveria, assim, notificar o MP, o assistente, e o arguido para se pronunciarem nos termos
do n.º 3 do art. 359.º. Na ausência de acordo, não poderia tomar tal facto em consideração. Caso o
novo facto fosse valorado, a sentença seria nula nos termos da alínea b) do n.º 1 do art. 379.º do
CPP:

Cotações: 1. 2 valores; 2. 2 valores; 3. 4 valores; 4. 3 valores; 5. 3 valores; 6. 4 valores; e


Apreciação Global (sistematização, síntese, clareza, fundamentação e português) 2 valores.

Nota: As respostas ininteligíveis (caligrafia pouco ou não percetível) não serão avaliadas.

5
DIREITO PROCESSUAL PENAL
4.º ANO – TURMA NOITE/2021-2022
Regência: Prof. Doutor Paulo de Sousa Mendes
Colaboração: Mestres João Gouveia de Caires e David Silva Ramalho, Licenciada
Joana Reis Barata
Exame escrito de época de finalistas – 8 de setembro de 2022
Duração: 90 minutos
Hipótese

Alberto precisava rapidamente de dinheiro para pagar as suas dívidas que, entre créditos
e empréstimos entre amigos, ascendiam a mais de €10.000. Assim, decidiu convencer os
seus vizinhos da aldeia de que havia um imposto extraordinário sobre os seus imóveis
que tinham de pagar e prontificou-se a tratar pessoalmente do assunto junto da Câmara
Municipal.
Berenice, Caetana e Dionísio, acreditando no amigo de longa data, rapidamente lhe
entregaram a quantia de €1.000 cada, para que este pudesse satisfazer as suas dívidas.
Eunice, que não queria preocupar-se com o assunto nos próximos anos e que tinha
Alberto em muito boa conta, entregou-lhe a quantia de €7.000 para que este tratasse do
assunto naquele ano e nos próximos 5 anos.
O plano poderia ter realmente singrado, não fosse Filomena, filha de Eunice, ter-se
apercebido das verdadeiras intenções de Alberto. Assim, quando se apercebeu do
esquema engendrado por Alberto, denunciou-o às autoridades locais – tanto
relativamente à sua mãe, como também quanto a Berenice, Caetana e Dionísio –, que
rapidamente transmitiram a notícia do crime ao Ministério Público.

Responda, fundamentadamente, às seguintes questões:

1. Tendo o Ministério Público tomado conhecimento dos factos acima relatados, abriu
inquérito investigando Alberto pela prática de 4 (quatro) crimes de burla (p. e p. nos
artigos 217.º e 218.º, n.º 1, do CP), um por cada vítima, Berenice, Caetana, Dionísio
e Eunice. Pronuncie-se sobre a legitimidade do Ministério Público para o efeito (3
valores).

• O Ministério Público apenas poderia ter aberto inquérito quanto ao crime de burla
qualificada praticado contra Eunice, atendendo a que se trata de um crime público
em razão de estar em causa um valor elevado (artigo 218.º, n.º 1 e 202.º, al. a), do
CP), não tendo legitimidade para abrir inquérito pelos crimes praticados contra
Berenice, Caetana e Dionísio, uma vez que estamos perante crimes semipúblicos
(artigo 217.º, n.º 3, do CP):
o Identificação da natureza dos crimes em causa: contra Berenice, Caetana
e Dionísio foi praticado um crime de burla contra cada uma destas vítimas,
que é um crime semipúblico (artigo 217.º, n.º 3, do CP e 49.º do CPP), ao
passo que contra Eunice foi praticado um crime de burla qualificada
(artigo 218.º do CP) que configura um crime público;
o Identificação da legitimidade do Ministério Público para abrir inquérito
em função da natureza do crime em causa – artigos 48.º e 49.º do CPP;
o Análise dos requisitos de procedibilidade nos crimes públicos (mera
denúncia) e semipúblicos (para além da denúncia, mera declaração de
ciência, a necessidade de apresentação de queixa – declaração de vontade
– pelo titular do direito de queixa/ofendido ou por quem legitimamente o
represente – cfr- artigo 49.º, n.º 3 do CPP –, não havendo elementos para
concluir tal no caso em apreço);
o Identificação do facto de Filomena não ter legitimidade para apresentar
queixa em nome de Berenice, Caetana e Dionísio, podendo apenas
denunciar o crime cometido contra a sua mãe, uma vez que este configura
um crime público em razão do valor em causa ser elevado (cfr. artigo
218.º, n. 1 e 202.º, al. a), do CP);
o Identificação das consequências de o Ministério Público ter aberto
inquérito quanto a crimes para os quais não tinha legitimidade: discutir a
eventual nulidade insanável (artigo 119.º, al. b), do CPP).

2. Admita agora que, no âmbito da sua investigação, o Ministério Público efetuou uma
busca ao escritório de contabilidade de Alberto e que procedeu à apreensão de uma
carta que se encontrava aberta em cima da mesa na qual Alberto descrevia
pormenorizadamente as suas dívidas. Pronuncie-se sobre a validade da apreensão (4
valores).

• Tendo a busca sido efetuada em cumprimento do artigo 174.º do CPP, a apreensão


da carta é válida nos termos do artigo 178.º, configurando um documento e não
estando sujeita às regras do artigo 179.º do CPP:
o Identificação, análise e explicação do regime das buscas constante do
artigo 174.º do CPP.
▪ É de salientar que não se aplicaria o regime das buscas
domiciliárias (artigo 177.º do CPP), uma vez que não é referido
que a busca foi efetuada num domicílio;
o Identificação, análise e explicação do regime da apreensão constante do
artigo 178.º do CPP;
o Menção ao facto de, no entendimento da doutrina, a carta em causa
constituir um mero documento e não “correspondência” nos termos e para
os efeitos do artigo 179.º do CPP, uma vez que se encontrava aberta e não
fechada;
o Justificação da validade da apreensão.

3. Admita que, no final do inquérito, o Ministério Público acusou Alberto pela


prática de um crime de burla qualificada p. e p. no artigo 218.º, n.º 1, do CP contra
Eunice. O mandatário de Eunice, considerando que Alberto deveria ser julgado
pelo crime de burla qualificada p. e p. no artigo 218.º, n.º 2, alínea c), do CP, uma
vez que Eunice afinal já tinha 80 anos, requereu a abertura de instrução com esse
fundamento. No final da instrução, o Juiz de Instrução pronunciou Alberto pelo
crime de burla qualificada p. e p. no artigo 218.º, n.º 2, alínea c), do CP dada a
idade da vítima como referido no requerimento de abertura de instrução. Indique
como poderia reagir o Defensor de Alberto contra o referido despacho de
pronúncia (4 valores).

• A decisão do Juiz de Instrução é válida, uma vez que pronunciou o arguido por
um facto novo constante do requerimento para abertura de instrução (“RAI”) do
assistente, pelo que o arguido apenas poderia interpor recurso da decisão nos
termos gerais do artigo 399.º do CPP:
o Identificação da necessidade de Eunice se constituir como assistente para
requerer a abertura de instrução, caso ainda não o tivesse feito em
momento prévio, e respetivos requisitos (artigos 68.º, 70.º e 519.º do CPP);
o Análise e justificação dos requisitos de admissibilidade do RAI:
▪ Justificação de que existia um facto novo (a idade de Eunice) e
que esse facto novo configurava uma alteração substancial de
factos nos termos do artigo 1.º, alínea f), do CPP atendendo ao
critério quantitativo (dado que agravaria a pena máxima);
o Justificação de que o Juiz de Instrução tem os seus poderes de cognição
limitados pela acusação do MP, pela acusação do Assistente e pelo RAI
do Assistente, pelo que poderia pronunciar o arguido pelo facto novo
trazido ao processo, sendo a sua decisão válida;
o Identificação e justificação de que a decisão de pronúncia válida é
recorrível nos termos gerais do artigo 399.º do CPP;
o Justificação de que o arguido não poderia interpor recurso quanto aos
factos pronunciados que constassem igualmente da Acusação do MP (por
exemplo quanto à existência de burla), uma vez que quanto a esses existe
dupla conforme e, por isso, uma situação de irrecorribilidade prevista no
artigo 310.º, n.º 1, do CPP.

4. Já em julgamento, admita que a mãe de Alberto prestou depoimento, atestando


ter presenciado a conversa havida entre Alberto e Eunice em que o seu filho
explicou toda a sua situação económica a Eunice e que esta lhe entregou os €7.000
de livre vontade e bem sabendo que o dinheiro em causa não se destinava ao
pagamento de qualquer imposto, mas sim para o pagamento das dívidas daquele.
Tendo sido apurado que a mãe de Aberto mentiu em julgamento, foi aberto
inquérito pelo crime de falsas declarações (p. e p. no artigo 348.º-A do CP). O seu
advogado veio sustentar que, sendo ascendente em 1.º grau de Alberto, esta nem
sequer estava obrigada a depor, pelo que mesmo mentindo não poderia nunca vir
a ser condenada pelo crime em causa. Pronuncie-se quanto ao argumento
invocado pelo advogado da mãe de Alberto (3 valores).

• O argumento invocado pelo advogado da mãe de Alberto carece de fundamento


legal, uma vez que as testemunhas estão sempre obrigadas a responder com
verdade, independentemente da ligação que tenham aos intervenientes do
processo, podendo apenas, em alguns casos, legitimamente recursar-se a depor.
Porém, e não se tratando de recusa legitima a depor (seja devido ao nemo tenetur
se ipsum accusare, como constante no n.º 2 do artigo 132.º do CPP, seja devido
ao privilégio constante do artigo 134.º do CPP), a testemunha deve responder, e
com verdade, não havendo em caso algum o direito a mentir:
o Identificação e explicação do regime constante do artigo 134.º do CPP e
menção ao facto de a mãe de Alberto se poder recusar a depor nos termos
do artigo 134.º, n.º 1, alínea a), do CPP, devendo ter sido informada para
o efeito nos termos do n.º 2 do mesmo artigo;
o Análise do estatuto da testemunha e dos seus deveres gerais, onde se inclui
o dever de responder a todas as questões com verdade – artigo 132.º do
CPP, em especial, 132.º, n.º 1, al. d), do CPP;
o Problematização: seria de discutir se a testemunha não tivesse sido
informada sobre o direito a se recusar a depor como testemunha contra o
filho, se tal nulidade (artigo 132.º, n.º 2, do CPP) poderia ser invocada pela
própria testemunha (de resto como defende alguma doutrina que só a
testemunha a pode invocar) e com que efeito:
▪ Apenas o de não ser admissível como prova contra o filho, sendo
uma nulidade destinada ao próprio processo em que a testemunha
prestou depoimento, mas nesse caso como poderia a testemunha
invocar a mesma (dado não ter legitimidade para invocar tal
invalidade)? Ou como pode uma nulidade ser invocada pelo
interessado e produzir efeitos num outro processo contra o mesmo
(por falsas declarações)?
▪ Além desse efeito, o de não produzir qualquer efeito a qualquer
título, não podendo por isso ser valorada como prova da eventual
falsa declaração?

5. Chegados a julgamento, o Juiz entendeu que Eunice não se encontrava numa


situação de especial vulnerabilidade em razão da idade, uma vez que demonstrou
estar na plenitude das suas capacidades e que, inclusivamente, ainda lecionava em
cursos e participava em conferências internacionais na sua área de especialização,
em Física Quântica. Porém, tendo sido apurado na audiência de julgamento que,
afinal, Alberto fazia da burla modo de vida, condenou-o por burla qualificada p.
e p. no artigo 218.º, n.º 2, alínea a), do CP. Pronuncie-se sobre a validade da
referida decisão (4 valores).
• Dever-se-ia admitir a discussão sobre a existência, ou não, de crime diverso, nos
termos do artigo 1.º, al. f), do CPP, concluindo-se em qualquer caso que a decisão
seria inválida:
o Identificação e justificação de que estamos diante de um facto novo,
descoberto pelo tribunal na fase de julgamento (ademais não totalmente
independente e que constituía uma alteração de factos) e não de uma mera
alteração da qualificação jurídica;
o Justificação da existência de um crime diverso, ou não, nos termos do
artigo 1.º, al. f), do CPP, atendendo às várias teses a esse respeito,
afastando-se a verificação do critério quantitativo;
o Consoante a discussão e análise do conceito de “crime diverso”, conclusão
sobre a existência de uma alteração substancial de factos (ASF) – caso em
se conclua que existe crime diverso – ou Alteração Não Substancial de
factos (ANSF) – caso se conclua que não existe crime diverso;
o Aplicação do regime constante do artigo 358.º (ANSF) ou do artigo 359.º
(ASF):
▪ Caso se entenda que existe crime diverso, este facto novo seria não
autonomizável (não podendo ser destacada à força do processo em
curso e ser conhecido num outro processo sem violação do ne bis
in idem), devendo justificar-se à luz das teses adotadas pela
doutrina, pelo que o Juiz não poderia conhecê-lo, só podendo
condenar validamente pelo crime de burla qualificada p. e p. pelo
n.º 1 do artigo 218.º do CP tal como constava da acusação (em face
da não prova dos factos constantes do RAI). Ainda que houvesse
acordo dos sujeitos processuais (arguido, MP e assistente), nos
termos do artigo 359.º, n.º 3, do CPP, uma vez que o tribunal
competente passaria a ser o coletivo (artigo 14.º, n.º 2, al. b), do
CPP), ao invés do tribunal singular que estaria a julgar o arguido
pela prática de um crime com pena até 5 anos de prisão (artigo 16.º,
n.º 2, al. b) do CPP), pelo que o tribunal (singular) não poderia
condenar validamente o arguido pela nova factualidade.
▪ Caso se entenda que não existe crime diverso, então o facto novo
poderia ser tomado em conta pelo Juiz, porém, este deveria dar
previamente a oportunidade ao arguido de se pronunciar sobre o
mesmo nos termos do artigo 358.º, n.º 1, do CPP, se requerido,
conceder prazo e se necessário deferir a eventual prova
suplementar que a defesa tivesse requerido, após o que poderia
validamente condenar o arguido atendendo à nova factualidade;
o Justificação da invalidade da decisão condenatória em qualquer dos casos
em que fosse desrespeitado o trâmite e respetivos meios de reação (cfr.
Artigos 379.º, n.º 1, al. b) e n.º 2, 410.º, n.ºs 1 e 3 do CPP).

Para realizar o exame, pode usar: Constituição da República Portuguesa (CRP), Código
Penal (CP), Código de Processo Penal (CPP) e Lei da Organização do Sistema Judiciário
(LOSJ).
Apreciação Global (sistematização e nível de fundamentação das respostas, capacidade
de síntese, clareza de ideias e correção da linguagem): 2 valores.
DIREITO PROCESSUAL PENAL
4.º ANO – TURMA DIA/2020-2021
Regência: Prof. Doutor Paulo de Sousa Mendes
Colaboração: Mestres João Gouveia de Caires e David Silva Ramalho, Licenciados Joana
Reis Barata e Nuno Igreja Matos
Exame escrito da época de finalistas – 9 de setembro de 2021
Duração: 90 minutos
Hipótese

“Polícia!” – ouviram Aníbal e Bento enquanto furtavam cortiça dentro de um barracão na


fazenda de Lau. Aníbal rendeu-se imediatamente e atirou-se para o chão, Bento saiu pela porta
que ambos tinham arrombado e desatou a correr. Iniciou-se uma perseguição a pé pela fazenda,
até que, a meio do milharal, Bento desapareceu.
Lançado o alerta pela rádio – “homem caucasiano, com 1,80m, cabelo castanho, camisola e
calças pretas” –, pouco tardou a que o agente Carlos identificasse um suspeito que
correspondia à descrição. Era Daniel, que estava a passear, sem suspeitar sequer do que se
passara. Após a revista habitual, de onde resultou a apreensão de uma navalha “para
autodefesa” e do telemóvel de Daniel, Carlos analisou brevemente as SMS por aquele
recebidas e, nada tendo encontrado, colocou Daniel no carro-patrulha e deixou-o nos
calabouços da PSP, lado a lado com Aníbal.
Na cela, enquanto Daniel jazia no beliche a olhar para a fotografia da mulher e da filha e a
pensar na vida, sentiu uma presença aproximar-se de si. Era Aníbal. Tirando-lhe a foto da mão
disse: “linda família, se não quiseres que lhes aconteça nada de trágico, sugiro que confesses
tudo. A história é esta: foste à fazenda furtar cortiça, já tinhas furtado cortiça antes e a prova
disso é que a tua carrinha, uma Ford Transit com a matrícula 55-55-AA está estacionada no
Alto do Penedo cheia de cortiça do Lau lá guardada. E no fim dizes que eu estava na fazenda
do Lau porque me tinhas enganado e me tinhas dito que a cortiça era tua”.
Ao ouvir passos, Aníbal voltou para o seu beliche. Carlos aproximou-se da cela, bateu com o
cassetete nas barras de ferro e gritou: “tu” – apontando para Daniel – “vem comigo”.
Na sala de interrogatório, após várias tentativas para que Daniel falasse, Carlos perdeu a
paciência e afiançou-lhe que, a menos que confessasse o crime, ficaria amarrado à cadeira, às
escuras, durante toda a noite, impedido de dormir.
Daniel finalmente quebrou e transmitiu a Carlos informação que lhe fora dada por Aníbal
sobre a carrinha, assumindo as culpas. Com essa informação, a carrinha foi identificada e a
cortiça apreendida.

1
Responda, fundamentadamente, às seguintes questões:

1. Analise a conduta de Carlos do ponto de vista estritamente processual, designadamente


no que respeita às medidas cautelares e de polícia, à obtenção de prova e outros aspetos
relevantes relativamente a Daniel (5 valores).

2. Admita que Bento foi indicado por Aníbal como testemunha na fase de inquérito e que
prestou depoimento nessa qualidade perante o órgão de polícia criminal. Com o
desenrolar da investigação, apurou-se finalmente que Bento estaria igualmente
envolvido na prática do crime investigado. Considerando que já prestara depoimento,
o Ministério Público prescindiu de o interrogar e proferiu despacho de acusação contra
Aníbal, Bento e Daniel pela prática, em coautoria, de um crime de furto qualificado,
p. e p. pelo artigo 204.º, n.º 1, alínea f), do Código Penal, na forma tentada. Aprecie a
acusação (4 valores).

3. Em primeiro interrogatório judicial de arguido detido, Daniel confessou o crime, por


entender que já não tinha escolha, uma vez que o confessara previamente perante
Carlos. Chegado a julgamento, Daniel remete-se ao silêncio. Poderá o tribunal valorar
as declarações prestadas em inquérito e utilizar a prova apreendida na Ford Transit para
fundamentar uma condenação? A sua resposta seria idêntica se Aníbal também tivesse
confessado e revelado a localização da carrinha? (4 valores).

4. O Ministério Público acusa Aníbal, Bento e Daniel pela prática, em coautoria, de um


crime de furto qualificado, p. e p. pelo artigo 204.º, n.º 1, alínea f), do Código Penal, na
forma tentada. Insatisfeito, Lau deduziu acusação subordinada contra Aníbal e Bento
pelos factos vertidos na acusação pública e também pela alínea a) do n.º 1 e pela alínea
e) do n.º 2, uma vez que a cortiça valia mais de 5.100€ e, para a obterem, Aníbal e
Bento arrombaram a fechadura. Notificados de ambas as acusações, Aníbal e Bento
requerem a abertura da instrução onde concluem que deverá ser proferido despacho de
não pronúncia. O Tribunal de Instrução decide pronunciar Aníbal e Bento nos termos
da acusação subordinada e não da acusação pública. Imagine que é advogado e é
contactado por Aníbal e Bento passados 10 dias da prolação do despacho de pronúncia
para reagir. Como poderá fazê-lo? (5 valores).

Para realizar o exame, pode usar: Constituição da República Portuguesa (CRP), Código Penal
(CP), Código de Processo Penal (CPP) e Lei da Organização do Sistema Judiciário (LOSJ).

Apreciação Global (sistematização e nível de fundamentação das respostas, capacidade de


síntese, clareza de ideias e correção da linguagem): 2 valores.

2
Tópicos de correção

1. Analise a conduta de Carlos do ponto de vista estritamente processual, designadamente


no que respeita às medidas cautelares e de polícia, à obtenção de prova e outros aspetos
relevantes relativamente a Daniel (5 valores).

⎯ Carlos deteve Daniel validamente pela prática de um crime de furto


qualificado, p. e p. pelo artigo 204.º, n.º 2, alínea e), do Código Penal, ao abrigo
do disposto nos artigos 255.º, n.º 1, alínea a) e 256.º, n.º 2, in fine, do CPP.
⎯ A revista e as apreensões foram validamente efetuadas também, nos termos do
disposto nos artigos 174.º, n.º 1, 178.º, n.º 4 e 249.º, n.os 1 e 2, alínea c) e 251.º,
n.º 1, alínea a), todos do CPP.
⎯ A apreensão de SMS encontra-se sujeita ao disposto no artigo 17.º da Lei do
Cibercrime, por se tratar de “registos de comunicações de natureza semelhante”
ao correio eletrónico.
⎯ Por esse motivo, para a leitura daquelas mensagens seria necessária a existência
de despacho proferido pelo Juiz de Instrução, enquanto juiz das garantias, como
postula o artigo 17.º da Lei do Cibercrime (LdC), aplicando-se
correspondentemente o artigo 179.º do CPP por força do referido preceito.
o Seria valorizada a discussão sobre se a remissão do artigo 17.º para o
artigo 179.º do CPP engloba a exigência de um crime de catálogo – caso
em que não poderia ser emitido um despacho de autorização, uma vez
que o crime em causa só é punível com pena de prisão até 2 anos e não
com mais de 3 anos, conforme exige o artigo 179.º, n.º 1, alínea b), do
CPP – ou se não é exigido que o crime em causa seja um crime de
catálogo, caso em que o despacho poderia ser emitido validamente pelo
Juiz de Instrução.
o Seria valorizada a discussão sobre o regime aplicável à apreensão de
correio eletrónico: (i) revogação total do artigo 189.º, n.º 1, do CPP ou
somente parcial pela LdC; (ii) remissão do artigo 17.º da LdC para o
regime de apreensão da correspondência postal do CPP e as dificuldades
geradas pela circunstância de a distinção entre correspondência aberta
ou fechada não ter paralelo no meio digital.
⎯ Neste caso, nada tendo sido encontrado de relevante nas SMS, não se coloca um
problema probatório, mas apenas de eventual responsabilização criminal de
Carlos, desde logo por acesso ilegítimo, nos termos do artigo 6.º, n.º 1, da Lei
do Cibercrime, ou violação de correspondência, nos termos do artigo 194.º, n.os
1 e 2, do CP, para o que a prova poderia ser utilizada, se necessário, ao abrigo
do disposto no artigo 126.º, n.º 4, do CPP.
⎯ Carlos deveria ter constituído Daniel como arguido, seja por força da detenção,
seja mais tarde quando o interrogou, seja simplesmente por ter sido levantado
auto de ocorrência e por o mesmo lhe ter sido comunicado nos termos do
disposto no artigo 58.º, n.º 1, alíneas a), c) e d), do CPP.
⎯ Tendo havido detenção, o arguido teria de ser submetido a primeiro
interrogatório judicial ou não judicial de arguido detido, nos termos dos artigos
141.º e 143.º do CPP, e nunca a interrogatório por órgão de polícia criminal, nos

3
termos do artigo 144.º.
⎯ Carlos não poderia igualmente ter ameaçado Daniel para obtenção da prova,
sob pena de contaminá-la, nos termos do disposto nos artigos 32.º, n.º 8, da CRP
e 126.º, n.os 1 e 2, alíneas a) e d), do CPP. Trata-se de método absolutamente
proibido de prova, que se distingue dos métodos relativamente proibidos de
prova, entre o mais, por não ser sanável pelo consentimento e por não admitir
previsão legal como meio alternativo para a sua produção.
⎯ À violação de proibições de prova corresponde a cominação de uma nulidade
sui generis. Deveria referenciar-se em que se traduz esse regime de nulidade sui
generis, a saber: proibição de obtenção e de valoração da prova proibida, sendo
apenas permitida a sua valoração para a responsabilização dos agentes que
utilizaram tal método proibido, nos termos do artigo 126.º, n.º 4, do CPP,
devendo em princípio ser desentranhada dos autos, sendo de conhecimento
oficioso e insanável mesmo para além do trânsito em julgado, constituindo
ademais fundamento de recurso extraordinário de revisão de sentença, nos
termos do artigo 449.º, n.º 1, alínea e), do CPP e produzindo um efeito a
distância de contaminação da prova secundária associada à prova proibida.

2. Admita que Bento foi indicado por Aníbal como testemunha na fase de inquérito e que
prestou depoimento nessa qualidade perante o órgão de polícia criminal. Com o
desenrolar da investigação, apurou-se finalmente que Bento estaria igualmente
envolvido na prática do crime investigado. Considerando que já prestara depoimento,
o Ministério Público prescindiu de o interrogar e proferiu despacho de acusação contra
Aníbal, Bento e Daniel pela prática, em coautoria, de um crime de furto qualificado,
p. e p. pelo artigo 204.º, n.º 1, alínea f), do Código Penal, na forma tentada. Aprecie a
acusação (4 valores).

⎯ A omissão de interrogatório de arguido, nessa qualidade, constitui sempre


nulidade, que poderá ser insanável, nos termos do disposto no artigo 119.º,
alínea c), ou dependente de arguição, nos termos do disposto no artigo 120.º, n.º
2, alínea d), ambos do CPP, em função da solução adoptada.
⎯ A circunstância de Aníbal ter já sido ouvido na qualidade de testemunha não
prejudica a obrigatoriedade de se proceder ao seu interrogatório como arguido,
nos termos do disposto no artigo 272.º, n.º 1, do CPP.
⎯ O único cenário em que esta obrigação pode ser afastada resulta do segmento
final daquela disposição e consiste nos casos em que não seja possível notificar
o suspeito.
⎯ Discussão sobre a consequência processual desta omissão: se será a nulidade
insanável prevista no artigo 119.º, alínea c), ou a nulidade dependente de
arguição resultante do artigo 120.º, n.º 2, alínea d), do CPP.
⎯ Caso seja defendida esta última solução, a nulidade deverá ser arguida no prazo
referido no artigo 120.º, n.º 3, alínea c), do CPP.

3. Em primeiro interrogatório judicial de arguido detido, Daniel confessou o crime, por


entender que já não tinha escolha, uma vez que o confessara previamente perante
Carlos. Chegado a julgamento, Daniel remete-se ao silêncio. Poderá o tribunal valorar
as declarações prestadas em inquérito e utilizar a prova apreendida na Ford Transit para
fundamentar uma condenação? A sua resposta seria idêntica se Aníbal também tivesse
confessado e revelado a localização da carrinha? (4 valores).

4
⎯ As declarações prestadas em fase de inquérito foram obtidas através de um
método absolutamente proibido de prova, nos termos dos artigos 32.º, n.º 8, da
CRP e 126.º, n.os 1 e 2, alíneas a) e d), assim como do artigo 3.º da CEDH.
⎯ A proibição de prova é uma invalidade sui generis, que não carece de arguição,
nem se pode sanar (artigo 126.º, n.º 1, do Código de Processo Penal; referência
ao disposto nos artigos 118.º, n.º 3, e 449.º, n.º 1, alínea e), do CPP).
⎯ A circunstância de Daniel ter confessado apenas por crer que a primeira
confissão era válida convoca a discussão sobre as exceções ao efeito a distância
da prova proibida, designadamente as exceções da mácula dissipada e but for
(cf. Acórdão n.º 198/2004 do Tribunal Constitucional sobre a nulidade das
escutas e confissão). É valorada a discussão crítica sobre o ac. TC.
⎯ Caso Aníbal também tivesse confessado e revelado a localização da carrinha,
poderia aplicar-se igualmente uma exceção à regra do efeito a distância,
designadamente a fonte independente.
⎯ Em todo o caso, e em regra, as declarações de arguido prestadas durante a fase
de inquérito podem ser valoradas nas circunstâncias previstas no artigo 357.º do
CPP, ou seja, se o arguido o solicitar ou se tiverem sido feitas perante autoridade
judiciária com assistência de defensor e o arguido tiver sido informado nos
termos e para os efeitos do disposto na alínea b) do n.º 4 do artigo 141.º do CPP.
⎯ Não valem, porém, como confissão, nos termos do disposto no artigo 357.º, n.º
2, do CPP, precisamente porque a circunstância de não haver imediação torna
mais difícil de apurar o carácter livre e sem reservas da confissão.
⎯ É valorada a discussão sobre a inconstitucionalidade do artigo 357.º do CPP, no
confronto com os princípios da estrutura acusatória, processo justo e equitativo
que assegure todas as garantias de defesa (incluindo o nemo tenetur se ipsum
accusare), da imediação e do contraditório, e eventual repristinação do regime
anterior.

4. O Ministério Público acusa Aníbal, Bento e Daniel pela prática, em coautoria, de um


crime de furto qualificado, p. e p. pelo artigo 204.º, n.º 1, alínea f), do Código Penal, na
forma tentada. Insatisfeito, Lau deduziu acusação subordinada contra Aníbal e Bento
pelos factos vertidos na acusação pública e também pela alínea a) do n.º 1 e pela alínea
e) do n.º 2, uma vez que a cortiça valia mais de 5.100€ e, para a obterem, Aníbal e
Bento arrombaram a fechadura. Notificados de ambas as acusações, Aníbal e Bento
requerem a abertura da instrução onde concluem que deverá ser proferido despacho de
não pronúncia. O Tribunal de Instrução decide pronunciar Aníbal e Bento nos termos
da acusação subordinada e não da acusação pública. Imagine que é advogado e é
contactado por Aníbal e Bento passados 10 dias da prolação do despacho de pronúncia
para reagir. Como poderá fazê-lo? (5 valores)

⎯ Os arguidos poderiam recorrer apenas do facto relativo ao arrombamento, mas


não poderiam já arguir a nulidade do despacho de pronúncia dada a sanação de
tal vício.
⎯ A acusação pelo assistente, admitindo que Lau terá essa qualidade, prevista no
artigo 284.º do CPP, apenas poderá ser deduzida por factos abrangidos pela
acusação do Ministério Público, por parte deles ou por outros que não importem
alteração substancial daqueles.

5
⎯ O aditamento de uma circunstância qualificativa e autónoma da infração poderá
configurar uma alteração substancial dos factos. Haveria que distinguir:
o A circunstância qualificativa respeitante ao valor da cortiça não parece
importar uma alteração substancial dos factos (ASF), na medida em que
não constitui um crime diverso, nem uma alteração dos limites máximos
da pena. Será, por isso, subsumível no regime da alteração não
substancial dos factos (ANSF), pelo que relativamente à mesma, seria
admissível a acusação subordinada. Consequentemente, a pronúncia,
quanto a esta parte, seria válida e não haveria lugar à aplicação do
disposto no artigo 303.º, n.º 1, uma vez que não há alteração em relação
aos factos vertidos na acusação do assistente.
o Já o aditamento da circunstância qualificativa prevista no artigo 204.º,
n.º 2, alínea e) (o arrombamento) importa uma ASF face aos descritos
na acusação, nos termos do disposto no artigo 1.º, alínea f), segunda
parte. Trata-se de um facto novo (pedaço de vida: arrombamento), não
totalmente independente (é relativo aquele mesmo furto), e de acordo
com o critério quantitativo, implicaria uma ASF por agravar os limites
máximos das sanções aplicáveis.
o Tal ASF não seria autonomizável, na medida em que o eventual ilícito
criminal (v.g., o crime de dano) não pode ser valorado autonomamente
sem violação do princípio non bis in idem. É valorada a discussão sobre
o critério aplicável e a eventual solução alternativa.
o A acusação subordinada deveria ter sido rejeitada nesta parte, por ter
sido deduzida fora dos limites legais.
A ASF estará, por isso, sujeita ao regime do artigo 303.º, n.º 3, do CPP.
A decisão instrutória seria, quanto a esta parte, nula, nos termos do disposto
no artigo 309.º, n.º 1, do CPP, nulidade que deverá ser arguida perante o juiz
de instrução no prazo de 8 dias, nos termos do n.º 2.
⎯ Não tendo sido arguida tempestivamente, o vício sanar-se-á.
⎯ No entanto, poderá o arguido interpor recurso da decisão instrutória, quanto aos
factos relativos ao arrombamento, embora apenas sobre o mérito (artigo 399.º
do CPP), i.e., poderia discutir por exemplo a existência de indícios suficientes
do facto relativo ao arrombamento dado que sobre o mesmo não haveria dupla
conforme.

6
DIREITO PROCESSUAL PENAL
4.º ANO – DIA/2019-2020
Regência: Prof. Doutor Paulo de Sousa Mendes
Colaboração: Prof.ª Doutora Teresa Quintela de Brito, Mestres João Gouveia de Caires e
David Silva Ramalho, Licenciada Joana Reis Barata e Licenciado Frederico Machado Simões
Exame escrito: 23 de junho de 2020
Duração: 90+10 minutos

#Emergênciaemcasa

No dia 5 de abril de 2020, Bela realizava, em Lisboa, um longo passeio higiénico para
espairecer das agruras do estado de emergência e das discussões conjugais com António.
Enquanto deambulava, Bela foi abordada por Xavier, que a tentou violar.
Bela conseguiu escapar às garras de Xavier e fugiu para casa, contando o sucedido ao
marido. António decidiu de imediato tomar satisfações de Xavier, até porque o conhecia.
António e Bela encaminharam-se apressadamente para o prédio de Xavier.
Chegados ao apartamento de Xavier, António envolveu-se verbal e fisicamente com
ele, tendo acabado por lhe desferir uma facada. Bela, que assistia a tudo, gritava a plenos
pulmões: “Socorro! Ai que eles vão-se matar!” Nisto, surgiu Carlos, agente da PSP, que
morava ao lado e ouviu a gritaria. Vendo Xavier caído no chão a esvair-se em sangue com uma
faca espetada no abdómen e António e Bela a entrar no elevador do prédio, Carlos impediu o
elevador de fechar a porta e, ato contínuo, deu ordem de detenção a ambos, que a acataram.
Entretanto, e após deter António e Bela, chamou a emergência médica para socorrer Xavier.
Aqueles foram constituídos arguidos de imediato, informados dos seus direitos, mas tentaram
convencer Carlos de que tudo não tinha passado de legítima defesa de António e que Bela
nem havia feito nada. Xavier veio a ser declarado morto ainda dentro do seu apartamento,
devido a hemorragia fatal. Foi apreendida a faca espetada em Xavier.
O Ministério Público (MP), após ouvir Bela, ordenou a sua libertação, não validando a
sua constituição como arguida, e veio a imputar a António a prática de um crime de homicídio
(p. e p. pelo art. 131.º do Código Penal).

Responda fundamentadamente às seguintes perguntas:

1. Na qualidade de juiz, como decidiria o seguinte requerimento apresentado pela defesa de


António: “São provas proibidas, pelo que não podem ser valoradas, a faca apreendida,
bem como, devido ao efeito à distância, o exame pericial subsequente de fls. 1511 dos autos
(em que se atesta que as impressões lofoscópicas encontradas no cabo da faca e no corpo
da vítima condizem com as do arguido), porquanto: i) o Agente Carlos não atuou na
qualidade de órgão de polícia criminal, já que estava de folga, além de que não tinha
competência legal para investigar crimes de sangue; ii) a apreensão da faca não foi
realizada validamente porque essa diligência foi realizada em casa habitada sem
consentimento dos visados, não obstante a apreensão ter sido validada por despacho do
MP; e iii) a impressão lofoscópica, apesar de ter sido obtida com o consentimento do
arguido, só decorreu de ordem do magistrado do MP e não de um juiz (e mesmo que tivesse
sido por este, o arguido nunca poderia ser obrigado a autoincriminar-se).” (6 valores)

1
§ Após conceder contraditório (32.º/5 e 20.º/4 da CRP) aos demais sujeitos processuais,
decidiria rejeitar o requerimento da defesa, por não lhe assistir qualquer razão, uma vez
que não haveria qualquer infração às regras de obtenção ou de produção de prova, nem
qualquer violação de proibições de prova (ficando prejudicada a questão do efeito à
distância).
§ Os OPC (1.º/c) e 55.º do CPP e 3.º da LOIC) mantêm todos os seus deveres em matéria
de medidas cautelares e de polícia, independentemente de se encontrarem ao serviço no
momento da atuação urgente. A competência para a investigação seria do MP (263.º do
CPP), a quem cabe a direção do inquérito, incluindo a prática de todos os atos (267.º do
CPP) que não estejam reservados ao JI (268.º e 269.º do CPP).
Ø O OPC apenas coadjuva o MP na fase de inquérito, na sua dependência funcional,
sem qualquer dependência hierárquica ou disciplinar, respeitando-se a autonomia
tática e técnica dos OPC.
Ø Por delegação de competências (270.º do CPP), os OPC podem praticar todos os atos
de inquérito que não sejam da competência exclusiva do MP ou que não sejam da
competência do JI. A investigação de crimes de homicídio está reservada à PJ
(7.º/2/a) da LOIC).
Ø Porém, não se confunde a atuação delegada pelo MP nos OPC para a investigação
com a competência própria que todos os OPC detêm para os atos urgentes em
matéria de medidas cautelares e de polícia.
§ A apreensão da faca era válida (249.º/2/c) e 178.º/4 do CPP), carecendo tão só de
validação pelo MP (178.º/6 do CPP), que é a AJ competente na fase de inquérito. Não
procedia a alegação de falta de consentimento dos visados, mesmo que a faca fosse
propriedade de António, dado que a apreensão estava legitimada pela detenção em
flagrante delito no domicílio de Xavier (174.º/5/c) do CPP).
§ O exame pericial era igualmente válido porque a ordem foi emanada pela AJ competente
no inquérito (172.º/1 do CPP), o MP. O arguido, ao submeter-se à recolha de impressões
digitais, não pode agora invocar que tal careceria de despacho do JI, o qual apenas seria
necessário se o arguido tivesse de ser compelido a prestar tal meio de prova (172.º/2 do
CPP). Deveria discutir-se o sentido de “ser compelido”: se inclui a força física
(adequada, necessária e proporcional) ou apenas a cominação da pena de desobediência
para o caso da recusa. Deveria ainda problematizar-se a compatibilidade deste tipo de
atuações com o princípio nemo tenetur se ipsum accusare: atuações passivas, i.e., em
que os elementos a recolher (impressão digital) preexistem independentemente da
vontade do visado e não carecem da sua colaboração ou ato criativo/cultural, com
discussão da jurisprudência relevante sobre o tema desde o Ac. Saunders vs. UK do
TEDH.

2. Em fase de inquérito, Bela prestou depoimento perante o MP, na qualidade de testemunha,


apesar de previamente informada do seu direito a não responder. Também António prestou
declarações perante o MP, na qualidade arguido. Havia contradições sensíveis entre o
depoimento de Bela e as declarações de António. Em fase de julgamento, Bela remeteu-se
ao silêncio. O MP defendeu que o auto do depoimento de Bela perante o MP poderia ser
lido em audiência e constituiria prova de que o arguido iniciara o confronto verbal e físico
com a vítima, pelo que deveria ser condenado nos termos acusados. A defesa contrapôs que
o arguido deveria ser absolvido porque agira em legítima defesa e opôs-se à leitura do auto
do depoimento de Bela, até porque esta se recusara legitimamente a depor em julgamento.
Poderá o tribunal valorar o depoimento de Bela anterior ao julgamento para condenação do
arguido? (5 valores)

2
§ O direito de recusa de depoimento do cônjuge aplica-se independentemente da fase ou
da entidade perante quem é prestado tal depoimento, devendo Bela ser informada desse
direito (134.º/1/a) e 2 do CPP). O que foi cumprido, de modo que as declarações
prestadas em inquérito eram válidas. Tal como seria válida a recusa da mesma em
prestar declarações em julgamento, invocando o referido privilégio (134.º/1/a), ex vi
348.º/1 do CPP).
§ Deveria identificar-se o princípio da imediação (355.º/1 do CPP) o seu sentido e
alcance, incluindo as exceções (355.º/2 e 356.º do CPP).
§ Deveria discutir-se o regime legal da reprodução ou leitura permitidas de autos e
declarações e as restrições admitidas pela jurisprudência (356.º/6 do CPP).
§ Poderia discutir-se a admissibilidade da leitura e valoração do depoimento testemunhal
à luz da jurisprudência comparada, especialmente o caso Crawford vs. Washington,
valorizando-se a discussão do direito ao confronto.

3. No final do julgamento de António, o tribunal veio a apurar que a faca utilizada para matar
Xavier tinha sido levada pelo mesmo desde que saíra de casa, revelando assim
premeditação. Considerou ainda que António praticara um crime de violação de domicílio.
Comunica isto mesmo aos sujeitos processuais ao abrigo do art. 358.º do CPP, tendo todos
(arguido incluído) declarado que prescindiam de prazo para qualquer ato.
Consequentemente, em sede de sentença, o tribunal condenou António pela prática de um
crime de homicídio qualificado (p. e p. pelo art. 132.º, n.º 1 e n.º 2, alínea j), do CP), em
concurso efetivo ideal com um crime de violação de domicílio (p. e p. pelo art. 190.º, n.º 3,
do CP). A defesa do arguido invoca de imediato que a sentença é inválida. O MP pronuncia-
se pela validade da mesma até porque o arguido, devidamente informado, nada requereu e
prescindiu de prazo. O tribunal indeferiu a arguição da invalidade e manteve a sentença
intacta. Na qualidade de defensor do arguido, notificado daquela sentença, poderia reagir e
com que fundamento? (7 valores)
§ A resposta seria positiva, através de recurso invocando a nulidade da sentença.
§ Haveria que distinguir: quanto à parte dos factos novos, a sentença seria nula; quanto à
parte da qualificação jurídica adicionada (i.e., o crime de violação de domicílio), não
haveria qualquer invalidade, uma vez que:
Ø Os factos descritos na acusação já continham a entrada no apartamento de Xavier,
tratando-se de uma mera alteração da qualificação jurídica;
Ø Consequentemente, o tribunal teria cumprido com os trâmites impostos legalmente
(358.º/1, ex vi n.º 3 do mesmo preceito do CPP) ao ter comunicado previamente a
AQJ. O arguido é que dispensou prazo para se pronunciar, pelo que a sentença,
quanto a esta parte, seria válida;
Ø Poderia discutir-se, de acordo com o TEDH no caso Drassich v. Itália, se se justifica
um direito de requerer prova suplementar também nos casos de AQJ.
§ Voltando à questão de facto: deveria identificar-se os factos novos (utilizando os
critérios doutrinários e jurisprudenciais), os quais não eram totalmente independentes,
pelo que constituíam uma alteração de factos.
§ Haveria ASF: 1.º/f) do CPP: agravação da pena máxima, pois passaria de 16 para 25
anos de pena de prisão.
§ Não autonomizáveis: a premeditação só por si não constitui um crime autónomo.
§ Tratando-se de ASF, não autonomizáveis, o tribunal procedeu corretamente ao tê-la
comunicado aos sujeitos processuais (359.º/3 do CPP). Porém, não havendo acordo para
a continuação do processo pelo novo objeto, deveria discutir-se as soluções doutrinárias
e jurisprudenciais a que o tribunal poderia lançar mão em face do disposto no 359.º/1 do
CPP. Deveria aplicar-se uma solução e discutir-se as alternativas.

3
§ O facto de o arguido nada ter requerido e prescindido de prazo para rever a sua estratégia
de defesa não equivale a acordo. Nem parece proceder que possa haver uma mera
irregularidade, pois o facto de o tribunal a qualificar incorretamente como alteração não
substancial de factos não equivale à comunicação para efeitos de acordo. E a
manifestação de acordo perante uma ASF não autonomizáveis tem de ser expressa.
§ Em caso algum, o tribunal deveria conhecer deste novo facto para condenar o arguido
pela prática de um crime de homicídio qualificado, p. e p. pelo art. 132.º/1 e 2/j) do CP.
No limite só poderia condená-lo pelo objeto definido, neste caso concreto, na acusação
do MP (identificando-se o princípio da vinculação temática).
§ Consequentemente a sentença seria nula (379.º/1/b) do CPP), podendo o arguido invocar
a nulidade em sede de recurso ordinário e no prazo do mesmo, ou seja: 30 dias (379.º/2,
410.º/3 e 411.º/1 do CPP).

Para realizar o exame, pode usar a Constituição da República Portuguesa (CRP), o Código
Penal (CP), o Código de Processo Penal (CPP), a Lei da Organização do Sistema Judiciário
(LOSJ), a Lei de Organização da Investigação Criminal e outra legislação penal ou processual
penal avulsa.

Apreciação Global (sistematização e nível de fundamentação das respostas, capacidade de


síntese, clareza de ideias e correção da linguagem): 2 valores.

4
DIREITO PROCESSUAL PENAL
4.º ANO – TURMA DIA/2020-2021
Regência: Prof. Doutor Paulo de Sousa Mendes
Colaboração: Mestres João Gouveia de Caires e David Silva Ramalho, Licenciados Joana
Reis Barata e Nuno Igreja Matos
Exame escrito – 21 de junho de 2021
Duração: 90 minutos
Hipótese

Os agentes da PSP Paula e Paulo, devidamente fardados, encontravam-se a tomar conta de


uma ocorrência (no caso, um acidente de viação) na Avenida General Norton de Matos, em
Lisboa, quando Abel, que conduzia a sua viatura, passou pelos mesmos levantando
ostensivamente o dedo do meio da mão esquerda, em gesto de insolência. Perante o acontecido,
a agente Paula levantou a mão ordenando a paragem da viatura. Abel acelerou gritando “Vão
para o raio que vos parta, seus palhaços! Ato contínuo, a agente Paula perseguiu-o no seu
motociclo com os sinais sonoros e luminosos ligados. Abel veio a despistar-se provocando
danos na viatura automóvel conduzida por Bernardo (condutor que, apercebendo-se da
situação, imobilizara a sua viatura de modo a dificultar que Abel prosseguisse a marcha).
Quando a agente Paula abordou o suspeito e ordenou que fizesse o teste de despiste de
alcoolemia, Abel esmurrou-a violentamente na face, e bem assim agrediu Bernardo. Por fim,
a agente Paula conseguiu deter Abel pela prática, em concurso efetivo, de dois crimes de
ofensas corporais (um à agente Paula e outro a Bernardo – artigo 143.º e ss. do CP), de dano
(artigo 212.º do CP), e de injúria (artigo 181.º e ss. do CP), tendo-o constituído arguido e
informado dos motivos da sua detenção e dos respetivos direitos. Durante a revista, encontrou-
se no interior do bolso esquerdo do casaco de Abel vários pedaços de um produto, que,
submetido de imediato a um teste rápido, veio a comprovar-se tratar-se de haxixe com um peso
total de 5,51 gramas, pelo que Abel foi ainda indiciado da prática de um crime de detenção de
estupefaciente para consumo (p. e p. pelo artigo 40.°, n.º 2, do DL n.°15/93, de 22 de janeiro1,
por referência à Tabela I-C anexa a tal diploma e ao disposto no artigo 2.°, n.º 2, da Lei n.º
30/2000, de 29 de novembro e no artigo 9.º da Portaria n.º 94/96, de 26 de março e respetiva
Tabela). Após o exame no laboratório de Polícia Científica foi confirmado que o produto
encontrado na posse do arguido se tratava de canábis resina, produto vegetal prensado, com
um grau de pureza de 22, 4% THC com um peso líquido de 5,394 gramas correspondentes a
24 doses médias diárias.

1
“Artigo 40.º
Consumo
1 - Quem consumir ou, para o seu consumo, cultivar, adquirir ou detiver plantas, substâncias ou preparações
compreendidas nas tabelas I a IV é punido com pena de prisão até 3 meses ou com pena de multa até 30 dias.
2 - Se a quantidade de plantas, substâncias ou preparações cultivada, detida ou adquirida pelo agente exceder
a necessária para o consumo médio individual durante o período de 3 dias, a pena é de prisão até 1 ano ou de
multa até 120 dias […]”.
Responda, fundamentadamente, às seguintes questões:

1. Sendo Magistrado do MP titular do processo, em que forma de processo tramitaria os autos


relativos aos crimes suprarreferidos imputados a Abel? (4 valores)

2. Abel, perante os factos atinentes ao crime de dano (artigo 212.º do CP), considera que os
mesmos não revelam qualquer dolo. Na qualidade de defensor de Abel, como deveria reagir
após ser notificado daquela acusação de modo a evitar que o arguido fosse julgado pela
prática do referido crime? Se o defensor de Abel nada fizesse, o que deveria fazer o juiz?
(3 valores)

3. Suponha que, no decurso da instrução, Bernardo o contacta de modo a que Abel fosse
sujeito, de imediato, a prisão preventiva, atendendo a que Bernardo teria recebido “recados
sérios” de que não deveria depor contra o arguido. Como agiria na qualidade de mandatário
de Bernardo no âmbito do processo crime em curso contra Abel? (3 valores)

4. No final do julgamento, o tribunal apura que Abel tinha no seu computador (apreendido no
decurso da busca à viatura que o arguido conduzia no momento dos factos) um ficheiro
com uma lista de vários contactos, datas e quantidade de “sacos”, bem como o valor “pago”
e “em dívida” por cada um daqueles contactos. Perante tal, o tribunal ficou convencido de
que, afinal, Abel deteria aquela quantidade de estupefacientes para vender a terceiros,
constituindo assim um crime de tráfico de estupefaciente de menor gravidade (p. e p. pelo
artigo 25.º, al. a), do DL n.º 15/93, de 22 de janeiro2, por referência à tabela I - C anexa),
ao invés do mero crime de detenção para consumo. Como procederia se fosse juiz dos autos
atendendo a que:
a. A defesa do arguido invoca a nulidade da prova; (4 valores) e
b. A inalterabilidade do objeto constante da acusação. (4 valores)

Para realizar o exame, pode usar: Constituição da República Portuguesa (CRP), Código Penal
(CP), Código de Processo Penal (CPP) e Lei da Organização do Sistema Judiciário (LOSJ).

Apreciação Global (sistematização e nível de fundamentação das respostas, capacidade de


síntese, clareza de ideias e correção da linguagem): 2 valores.

2
“Artigo 25.º
Tráfico de menor gravidade
Se, nos casos dos artigos 21.º e 22.º, a ilicitude do facto se mostrar consideravelmente diminuída, tendo em
conta nomeadamente os meios utilizados, a modalidade ou as circunstâncias da acção, a qualidade ou a
quantidade das plantas, substâncias ou preparações, a pena é de:
a) Prisão de um a cinco anos, se se tratar de plantas, substâncias ou preparações compreendidas nas tabelas I
a III, V e VI (…)”.
DIREITO PROCESSUAL PENAL
4.º ANO – TURMA DIA/2020-2021
Regência: Prof. Doutor Paulo de Sousa Mendes
Colaboração: Mestres João Gouveia de Caires e David Silva Ramalho, Licenciados Joana
Reis Barata e Nuno Igreja Matos
Exame escrito – [...] de [...] de 20213

1. Sendo Magistrado do MP titular do processo, em que forma de processo tramitaria os autos


relativos aos crimes suprarreferidos imputados a Abel? (4 valores)

Tópicos
• Forma comum (salvo se algo, que não consta do enunciado, revelasse que a
pena concreta não deveria ser superior a 5 anos de acordo com um juízo de
prognose)
• Prioridade das formas especiais: nulidade dependente de arguição 120.º/2/a),
sendo a forma comum subsidiária
• Exclusão de aplicação das formas especiais sumária e abreviada:
o Detenção em flagrante delito stricto sensu (255.º/1/a) e 3 e 256.º/1/1.ª
parte – atos de execução em curso que foram percecionados pela agente
Paula aquando da detenção) relativamente aos crimes de injúria
agravada (artigos 181.º, 184.º e 188.º, n.º 1, al. a), do CP), de natureza
semi pública (dependendo de queixa) e de ofensas corporais: um,
praticado contra Paula, teria a natureza pública (143.º e 145.º, n.º 1,
por referência à al. l) do n.º 2 do art. 132.º, todos do CP e art. 48.º do
CPP); outro, contra Bernardo seria semi público (art. 49.º do CPP e
113.º a 115.º do CP), pelo que seria necessário queixa por parte do
titular do direito (Bernardo quanto a este crime, e de Paula quanto ao
crime de injúria agravada) para que a detenção se mantivesse (255.º/3)
e para que o MP tivesse legitimidade para promover a ação penal, sob
pena de nulidade insanável (119.º/b)
o Porém, a pena abstrata aplicável seria superior a 5 anos de prisão: 4
meses e meio pelo crime de injúria agravada (artigos 181.º e 184.º do
CP); 4 anos pelo crime de ofensas corporais contra Paula (143.º,
145.º/1/a) do CP) + 3 anos pelo crime de ofensas corporais contra
Bernardo (143.º CP) + 3 anos pelo crime de dano + 1 ano pelo crime de
detenção de estupefacientes = 11 anos e 4 meses e meio de pena abstrata
máxima
o Não havendo no enunciado ou pergunta elementos suficientes que
justificassem o juízo de prognose de que a pena concreta não seria
3
Hipótese e questões jurídicas inspiradas no Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, de 17.02.2021, proc. n.º
202/14.2SILSB.L1-3, relatora Cristina Almeida e Sousa.
superior a 5 anos (381.º/2 e 391.º-A/2), não seria de aplicar a forma
sumária, nem a abreviada (ainda que todos os crimes permitissem ser
julgados em tribunal singular, i.e., não houvesse nenhum caso de
reserva qualitativa de competência do tribunal coletivo – cfr. art.
13.º/1, 14.º/1, 14.º/2/a) ou 16.º/2/a) – e a audiência de julgamento
pudesse iniciar-se no prazo de 48h subsequente à detenção (387.º/1,
prorrogável até ao 20.º dia nas condições do n.º 2 do mesmo preceito)
ou mesmo que tal prazo fosse ultrapassado (dado o tempo necessário
para o exame de Polícia Científica), haveria um caso de evidência
probatória (391.º-A/3/a)) da forma abreviada. Contudo, a pena
máxima abstratamente aplicável ao arguido seria superior a 5 anos
impedindo assim as formas especiais
o Presumia-se que seria organizado um só processo para o julgamento
do arguido por todos estes crimes (por apensação natural ou
verificação de todos os requisitos da conexão: 24.º/1/b) – mesma ocasião
e lugar – inexistência de limites – 26.º – e tramitação concomitante –
24.º/2)

2. Abel, perante os factos atinentes ao crime de dano (artigo 212.º do CP), considera que os
mesmos não revelam qualquer dolo. Na qualidade de defensor de Abel, como deveria
reagir após ser notificado daquela acusação de modo a evitar que o arguido fosse julgado
pela prática do referido crime? Se o defensor de Abel nada fizesse, o que deveria fazer o
juiz? (3 valores)

Tópicos
• O Defensor de Abel deveria deduzir RAI (287.º/1/a)) e se não o tivesse feito,
deveria discutir-se se o juiz no saneamento poderia rejeitar a acusação por
manifestamente infundada (311.º/2/a), n.º 3, al. d)), ou se apenas o deveria
fazer no início do julgamento (338.º)
• Requisitos do RAI: legitimidade, prazo, conteúdo e representação judiciária
• Em especial a legitimidade e a finalidade da instrução apenas para apreciar
uma questão de direito
• Várias posições e respetivos fundamentos
• Sustentando-se a inadmissibilidade do RAI do arguido apenas para sustentar
uma QJ, teria de recomendar-se a contestação (315.º)
o Neste caso, deveria discutir-se se o juiz de julgamento poderia até antes
da contestação e oficiosamente rejeitar a acusação por manifestamente
infundada (cfr. art. 311.º/2/a), n.º 3, al. d)), ou se apenas o poderia fazer
no início do julgamento (cfr. art. 338.º)

3. Suponha que, no decurso da instrução, Bernardo o contacta de modo a que Abel fosse
sujeito, de imediato, a prisão preventiva, atendendo a que Bernardo teria recebido
“recados sérios” de que não deveria depor contra o arguido. Como agiria na qualidade de
mandatário de Bernardo no âmbito do processo crime em curso contra Abel? (3 valores)

Tópicos
• Sem prejuízo da autónoma promoção penal pelo crime de ameaça e o recurso
à proteção devida à vítima (ao abrigo do regime de proteção de testemunhas),
no âmbito do processo crime em curso, deveria constituir-se assistente e nessa
qualidade requerer ao Juiz de Instrução (JI) a aplicação da prisão preventiva,
ou, discutir-se se o poderia fazer apenas na qualidade de vítima (solicitando a
proteção adequada)
• Requisitos do requerimento de constituição como assistente (68.º/1/a), 69.º e
70.º)
• Aplicação da prisão preventiva: na fase de instrução, pode ser aplicada
oficiosamente pelo JI (194.º/1), tendo por base um requerimento do assistente
ou até da vítima ao abrigo do seu Estatuto (cfr. art. 67.º-A/4), sem prejuízo de
ser ouvido o MP (194.º/1) e da prévia audição do arguido (194.º/4) atendendo
ao perigo de perturbação da instrução/produção de prova (204.º/b))
o Vantagem da constituição como assistente: plena participação no
processo crime em curso
• Questão complexa: o crime do qual Bernardo seria vítima e teria legitimidade
para se constituir como assistente não admite prisão preventiva (cfr. catálogo
do art. 202.º/1). Porém, as ofensas corporais qualificadas já o admitiam
(202.º/1/d))
o Deveria discutir-se tal problema: a legitimidade do assistente ou da
vítima vs. os fins das medidas coativas referirem-se a todos os crimes (e
tendo o JI tomado conhecimento e podendo aplicar oficiosamente,
nada impede que determine a prisão preventiva);
o Deveria ainda problematizar-se se a aplicação é relativa ao crime
doloso punível com pena mais grave, como parece preferível
o Crivo dos “fortes indícios” do art. 202.º (e comparação do mesmo com
o crivo dos “indícios suficientes”)
• A valorizar: o JI caso aplicasse a medida de prisão preventiva ficaria impedido
de participar no julgamento (art. 40.º/a))

4.No final do julgamento, o tribunal apura que Abel tinha no seu computador (apreendido no
decurso da busca à viatura que o arguido conduzia no momento dos factos) um ficheiro
com uma lista de vários contactos, datas e quantidade de “sacos”, bem como o valor “pago”
e “em dívida” por cada um daqueles contactos. Perante tal, o tribunal ficou convencido de
que, afinal, Abel deteria aquela quantidade de estupefacientes para vender a terceiros,
constituindo assim um crime de tráfico de estupefaciente de menor gravidade (p. e p. pelo
artigo 25.º, al. a), do DL n.º 15/93, de 22 de janeiro4, por referência à tabela I - C anexa),

4
“Artigo 25.º
Tráfico de menor gravidade
Se, nos casos dos artigos 21.º e 22.º, a ilicitude do facto se mostrar consideravelmente diminuída, tendo em
conta nomeadamente os meios utilizados, a modalidade ou as circunstâncias da acção, a qualidade ou a
quantidade das plantas, substâncias ou preparações, a pena é de:
a) Prisão de um a cinco anos, se se tratar de plantas, substâncias ou preparações compreendidas nas tabelas I
a III, V e VI (…)”.
ao invés do mero crime de detenção para consumo. Como procederia se fosse juiz dos autos
atendendo a que:
a) A defesa do arguido invoca a nulidade da prova; (4 valores) e

Tópicos
• Mesmo que não tivesse havido consentimento do visado, a prova seria válida,
salvo falta de autorização ou de validação pela autoridade judiciária
competente
• Regime da busca (174.º/5/c)+251/a)) e apreensão do computador (178.º/4 e
249.º/2/c)) encontrado na viatura: sujeitas a validação pela autoridade
judiciária competente (178.º/6 e 251.º/251.º/2), no caso o MP (263.º e 267.º)
por ser o dominus do inquérito e não se tratar de ato reservado ao JI (a
contrario sensu, 268.º e 269.º CPP)
• Quanto ao acesso ao conteúdo do computador nomeadamente quanto aos
ficheiros como aquele que está em causa:
o Apreciação do problema da privacidade digital
▪ Discussão sobre o âmbito de aplicação da privacidade em
ambiente digital
o Aplicação da LdCibercrime: âmbito extenso: art. 11.º/1/c)
▪ Pesquisa de dados: regime do art. 15.º
▪ A apreensão do ficheiro em concreto: art. 16.º

b) A inalterabilidade do objeto constante da acusação. (4 valores)

Tópicos
• A vinculação temática do tribunal admite variações nos termos legalmente
previstos (cfr. art. 359.º/3 e 358.º). Porém, no caso, sem o consentimento do
arguido, do MP e do assistente, não seria possível condenar, validamente, o
arguido pelo crime de tráfico de estupefaciente de menor gravidade (p. e p.
pelo artigo 25.º, al. a) do DL n.º 15/93, de 22 de janeiro, por referência à tabela
I - C anexa)
• Haveria um facto novo: a detenção do produto estupefaciente destinava-se à
venda a terceiros e não ao autoconsumo (podendo até configurar um ilícito de
maior gravidade atendendo a que haveria inclusivamente uma lista de
contatos o que pressuporia uma organização mais estruturada), constitui um
pedaço de vida ou um acontecimento diverso do descrito da acusação
(detenção para consumo próprio)
• Um facto novo que não é totalmente independente, i.e., estranho ao objeto
pendente: trata-se do mesmo pedaço de vida que estava em apreço judicial (o
arguido detinha uma quantidade de estupefacientes que agora se descobriu
destinar-se a revenda);
• Havendo uma alteração de factos, a mesma seria substancial (ASF), dado que
resulta num agravamento da pena máxima abstratamente aplicável (passando
de 1 ano para 5 anos de prisão de máximo), nos termos do art. 1.º/f);
• Por fim, não seria autonomizável já que não seria possível conhecer daquela
atuação intencional do arguido sem violar-se o non bis in idem
o A presente situação insere-se na constelação de casos designados de
alternatividade: não prova parcial dos factos antigos (intenção de
autoconsumo) e prova de um facto novo (intenção de revenda a
terceiros) que conjuntamente com os demais factos antigos (a detenção
daquela quantidade de estupefacientes) permite passar para um outro
tipo de ilícito (tráfico), que anula (ou não é cumulável com) o ilícito
inicial (consumo)
• No caso, o juiz deveria proceder à comunicação dos factos novos aos sujeitos
processuais para efeitos de obtenção do seu acordo (art. 359.º/3)
• Não havendo acordo (como parece que o arguido se opõe à apreciação dos
novos factos), o tribunal não poderia validamente condenar o arguido pelo
novo crime (sob pena de nulidade da sentença quanto a essa parte, ainda que
dependente de arguição em sede de recurso e no prazo do mesmo – arts.
379.º/1/b), n.º 2 e 410.º/3 e 411.º/1
o Discussão sobre as soluções possíveis e os respetivos fundamentos
o Cfr. Ac. do STJ (de uniformização de jurisprudência) n.º 1/2015 e Ac.
do TC n.º 711/2019
DIREITO PROCESSUAL PENAL
4.º ANO – TURMA NOITE/2021-2022
Regência: Prof. Doutor Paulo de Sousa Mendes
Colaboração: Mestres João Gouveia de Caires e David Silva Ramalho e Licenciada
Joana Reis Barata
Exame escrito – 1.ª Época – 17 de janeiro de 2022
Duração: 90 minutos
Hipótese

Depois de ter descoberto que André se envolvera com a sua namorada, Bernardo ficou
irado. Não conseguindo controlar a raiva que sentia, imediatamente telefonou a Carlos e
a Daniel, seus companheiros de aventuras, para que fossem todos ter uma conversa com
André, junto ao Café Central, em Cascais.
A conversa rapidamente se descontrolou, levando André a abandonar o local a passo
apressado. Os três amigos perseguiram-no e não hesitaram a, conjuntamente, desferirem
socos e pontapés a André, deixando-o no chão quase inanimado.
André acabou por conseguir chegar a casa com a ajuda de um taxista que passava no
local e que o viu naquele estado lastimoso. Dias depois, minimamente recuperado das
lesões sofridas, André apressou-se a apresentar queixa na PSP contra Bernardo e
desconhecidos, uma vez que não sabia quem eram os agressores que o acompanhavam.

1. Durante o período que intermediou as agressões cometidas pelos três amigos e a


abertura do inquérito, entrou em vigor a Lei n.º 5/2021 que alterou o artigo 315.º, n.º
1, do CPP, passando este a assumir a seguinte redação: “O arguido, em 10 dias a
contar do despacho que designa dia para a audiência, apresenta, querendo, a
contestação, acompanhada do rol de testemunhas. É aplicável o disposto no n.º 14
do artigo 113.º”. Pronuncie-se sobre a aplicabilidade da nova redação do n.º 1 do
artigo 315.º do CPP, constante da Lei n.º 5/2021, ao procedimento criminal em curso
contra Bernardo e desconhecidos (3 valores).

• Identificação de que estamos perante uma norma processual proprio sensu (ou
norma processual material em sentido amplo) que reclama a aplicação do
artigo 5.º, n.º 2, alínea a), do CPP ou, para outra parte da doutrina, perante
normas materiais que reclamam a aplicação direta do princípio plasmado no
artigo 29.º, n.º 4, da CRP e das regras constantes dos artigos 2.º, 3.º e 4.º do
CP;
• Explicação do que se entende por “agravamento sensível e ainda evitável da
situação processual do arguido”;
• Identificação do momento relevante para saber qual a norma aplicável: em
princípio, o momento da abertura do inquérito (doutrina maioritária);
identificação de divergência quanto a este ponto: designadamente diferentes
teses que referem que deverá ser o momento da constituição como arguido, ou
que sustentam que será o momento da prática do facto ou da abertura de
inquérito consoante o que for mais favorável para o arguido;
• Sendo relevante o momento da prática do facto (porque mais favorável), não
seria aplicável a Lei n.º 5/2021; caso se entendesse que o momento relevante
seria o da abertura de inquérito (doutrina maioritária), seria aplicável a Lei n.º
5/2021.
• Tomada de posição própria pelo estudante.

2. Suponha que, no final da investigação, o Ministério Público apurou que Bernardo


tinha praticado os factos constantes da queixa-crime apresentada, não tendo
conseguido apurar a identidade dos demais infratores, acusando apenas Bernardo e
arquivando o processo contra desconhecidos. Perante este despacho, e não querendo
desistir de identificar os restantes agressores, como poderia André reagir? (3 valores)

• Perante o despacho de arquivamento, André apenas teria, em tese, duas


opções: requerer a abertura de instrução (artigo 287.º, n.º 1, alínea b), do CPP)
ou requerer a intervenção hierárquica (artigo 278.º do CPP);
• Identificação dos requisitos do RAI, designadamente cumprimento das
formalidades de uma acusação, onde se inclui a identificação de todos os
agentes do crime;
• Não tendo conhecimento de quem praticara o crime (além de Bernardo),
apenas poderia requerer a intervenção hierárquica (artigo 278.º do CPP);
• Identificação dos requisitos e respetiva tramitação.

3. Admita agora que, terminada a investigação, o Ministério Público acusou Bernardo,


Carlos e Daniel por ofensa à integridade física qualificada (p. e p. pelo artigo 145.º,
n.º 1, alínea a) e n.º 2, em conjugação com o artigo 132.º, n.º 2, alínea h), do CP).
Perante a acusação, André decidiu apresentar uma acusação subordinada pelos factos
que constavam da acusação, e ainda pelo crime de omissão de auxílio (p. e p. pelo
artigo do CP). Na sequência do recebimento da acusação subordinada, em sede de
saneamento do processo, o Juiz proferiu o seguinte despacho: “Não recebo a
acusação subordinada na parte em que acusa os Arguidos pelo crime de omissão de
auxílio uma vez que se trata de crime público, pertencendo a competência para
acusar por esse crime apenas ao Ministério Público”. Pronuncie-se sobre a
apresentação da acusação subordinada por André e sobre os termos do despacho
proferido pelo Juiz. (4 valores)

• Identificação das finalidades do saneamento do processo (artigo 311.º do


CPP);
• Identificação dos propósitos da acusação subordinada (artigo 284.º do CPP)
quanto aos crimes públicos e semipúblicos e identificação do papel do
Ministério Público e do Assistente na ação penal, por referência à natureza dos
crimes em questão;
• Identificação dos requisitos da acusação subordinada, sendo que, no caso,
serviria para AQJ, não havendo inclusão de factos novos (artigo 284.º, n.º 1,
do CPP);
• Identificação da impossibilidade de requerer a abertura da instrução no caso,
uma vez que não existiam factos novos que originassem uma ASF (artigo
287.º, n.º 1, alínea b), do CPP);
• Mencionar a fundamentação segundo a qual o Tribunal não poderia ter
recusado a acusação subordinada com os referidos fundamentos.

4. Chegados a julgamento, apurou-se que André, na sequência das lesões sofridas pela
agressão, ficou impossibilitado de ter filhos. Perante tal, o mandatário de André
apresentou requerimento aos autos, requerendo que Bernardo, Carlos e Daniel
fossem condenados no crime de ofensa à integridade física grave (p. e p. pelo artigo
144.º, alínea b), do CP), atendendo a que se tratava essencialmente do mesmo crime
e que constava já dos autos que foram desferidos pontapés na zona pélvica e genital.
Sensível aos argumentos apresentados, o Tribunal condenou os três Arguidos no
crime de ofensa à integridade física grave, aplicando-lhes, contudo, uma pena de 4
anos de prisão, considerando que esta sempre seria aplicável ao crime de ofensa à
integridade física qualificada por que todos eles vinham acusados. Pronuncie-se
quanto à decisão condenatória proferida pelo Tribunal. (4 valores)

• Apesar de constar dos autos que foram desferidos pontapés na zona pélvica e
genital, existe um facto novo que radica na circunstância de André, na
sequência das lesões, ter ficado impossibilitado de ter filhos;
• Identificação da existência de um facto novo não totalmente independente e
respetiva justificação;
• Existência de ASF à luz do critério quantitativo (artigo 1.º, alínea f), do CPP);
• Classificação desta ASF como não autonomizável e respetiva justificação;
• Regime da ASF não autonomizável à luz da lei vigente (artigo 359.º, n.os 1 e
3, do CPP);
• Demais teses a respeito da matéria e tomada de posição própria pelo estudante;
• Justificação quanto à nulidade da decisão caso não existisse acordo (artigo
379.º, n.º 1, alínea b), do CPP).

5. Também no decurso do julgamento, o Defensor de Carlos invocou a nulidade da


prova obtida para identificação do seu cliente, referindo que Bernardo apenas
identificou os restantes alegados agressores depois de ter sido ameaçado de que, se
não o fizesse, ser-lhe-ia imputado o crime de tentativa de homicídio. O Ministério
Público, por sua vez, adicionou que, mesmo que essa ameaça tivesse existido, a
verdade é que Bernardo nada disse quando confrontado com essa possibilidade,
apenas identificando os restantes agressores uma semana depois, quando decidiu
confessar ele próprio o crime. Pronuncie-se sobre a validade da prova obtida. (4
valores)
• Identificação e explicitação do regime da prova proibida (artigo 32.º, n.º 8, da
CRP e artigo 126.º do CPP);
• Identificação do efeito à distância da prova proibida;
• Explicação das exceções ao efeito à distância e, em concreto, ponderação da
aplicação da tese da conexão atenuada, designadamente à luz da
jurisprudência do Tribunal Constitucional.
• Justificação quanto à (im)possibilidade de aproveitamento da prova.

Para realizar o exame, pode usar: Constituição da República Portuguesa (CRP), Código
Penal (CP), Código de Processo Penal (CPP) e Lei da Organização do Sistema Judiciário
(LOSJ).
Apreciação Global (sistematização e nível de fundamentação das respostas, capacidade
de síntese, clareza de ideias e correção da linguagem): 2 valores.
Nota: as respostas com grafia ilegível não serão avaliadas.
DIREITO PROCESSUAL PENAL
4.º ANO – TURMA NOITE/2021-2022
Regência: Professor Doutor Paulo de Sousa Mendes
Colaboração: Mestres João Gouveia de Caires e Licenciada Joana Reis Barata
Exame escrito – 1.ª época – 16 de janeiro de 2023
Duração: 90 minutos

Hipótese

No dia 14 de outubro de 2022, cerca das 23h15, António acabara de chegar das aulas na
Faculdade de Direito quando foi contactado à porta da sua casa por 2 agentes da PSP que
lhe perguntavam se sabia onde estava a sua viatura automóvel já antiga com a matrícula
00-XS-00. António explicou que efetivamente a viatura era sua e que se encontraria
estacionada na rua junto à oficina segundo a informação que recebera nessa tarde do seu
mecânico – de que a viatura se encontrava pronta após a revisão e inspeção solicitadas.
Os 2 agentes da PSP informaram António de que a referida viatura estava estacionada
naquela rua e tinha sido alvo de tentativa de furto (art.os 203.º, 22.º e 23.º do CP) por parte
de uma pessoa, Bento, nessa mesma noite, cerca das 22h15, que fora surpreendido já
dentro da viatura por Carlos e Daniel, agentes da PSP que se encontravam de folga e sem
trajar farda, que ao passearem naquela zona muito estranharam a circunstância de estar
alguém dentro da viatura a fazer uma ligação direta com os fios, tendo ato contínuo detido
Bento. Posto isto, os agentes da PSP perguntaram se António não se importava de se
deslocar à Esquadra da PSP mais próxima para apresentar queixa, o que aquele fez de
imediato, apresentando queixa.

Responda, fundamentadamente, às seguintes questões:

1. Será a detenção de Bento legal? (4 valores).


• A detenção é legal;
• Identificação dos requisitos da detenção em flagrante delito (stricto sensu):
art. 255.º/1/a) do CPP+256.º/1/1.ª parte: por parte dos agentes da PSP
(Carlos e Daniel), ainda que desfardados, pois tinham presenciado atos
preparatórios puníveis do crime de furto na forma tentada, punível com
pena de prisão (até 2 anos –art.os 203.º/1/3, 22.º, 23.º e 73.º/1/al. a) do CP);
• Para os OPC há um poder-dever de deter (diferentemente da permissão de
atuação relativamente aos particulares – 255.º/1/a) do CPP;
• Nada se referindo quanto ao valor da viatura, e apenas constando que os
agentes da PSP pediram queixa a António, é porque presumiram que o
1
valor da viatura (“já antiga”) não ultrapassaria as 50 UC (art. 202.º/a) do
CP), ou seja, os € 5 100,00, pelo que o crime de furto não seria qualificado;
• Crime semipúblico: porque depende de queixa (arts. 203.º/3 do CP e 49.º
do CPP), a qual terá sido apresentada pelo proprietário (no caso, ofendido,
art. 113.º/1 do CP e 49.º CPP) em ato seguido à detenção (cerca de 1h após
a detenção, sendo por isso razoável o tempo que os agentes da PSP levaram
a descobrir o paradeiro do proprietário da viatura), mantendo-se a
legalidade da detenção.
• A valorizar: a imediata constituição de arguido, incluindo a transmissão,
ainda que oral, dos respetivos direitos (art. 58.º/1/c)/2/4+61.º do CPP) a
imediata transmissão da detenção, pelo meio mais expedito, ao MP
(259.º/a) do CPP), a elaboração e do auto de notícia e
transmissão/comunicação de todo o expediente (242.º/1/a); 243.º/1 e 248.º
do CPP); a apreensão da viatura automóvel (pelo menos até a realização
da prova forense que documentasse a tentativa de furto).

2. Em que forma de processo o Ministério Público (MP) deveria tramitar o processo-


crime contra Bento atendendo ao crime referido? (4 valores).
• A forma adequada seria a forma sumária.
• Requisitos e pressupostos do processo sumário: detenção em flagrante delito
(stricto sensu no caso), por OPC e relativamente a crime punível com pena
abstrata de 2 anos de prisão (remessa para a demonstração supra quanto ao
cálculo da pena abstrata) e semipúblico para o qual foi apresentada a queixa-
crime, podendo ser julgado em tribunal singular (não se trata da reserva
qualitativa do tribunal coletivo) e a audiência iniciar-se nas 48h subsequentes
(prorrogáveis até 20 dias) – art.os 381.º/1/a) e 387.º do CPP.
• A forma sumária é uma das formas especiais que é prioritária face à comum,
sendo obrigatória sob pena de constituir nulidade dependente de arguição
(120.º/2/a) do CPP).
• A valorizar: o regime-regra da libertação do detido, com notificação para
comparecer perante os serviços do MP em dia e hora certos, salvo a
manutenção da detenção até 48h se verificada uma das condições previstas
nas als. a) a c) do n.º 1 do art. 385.º do CPP

3. Como deveria proceder se fosse juiz do processo em plena audiência de julgamento,


e perante a prova produzida na mesma, caso se apurasse que o valor da viatura em
causa (dado tratar-se de um BMW 323i, edição especial/numerada de 1985) é de, pelo
menos, € 60 000,00 (sessenta mil euros)? (4 valores).
• Havendo acordo, o juiz deveria declarar-se incompetente e remeter os
autos para o tribunal coletivo. Não havendo acordo, o juiz deveria
prosseguir apenas pela factualidade constante da acusação, devendo
ignorar a circunstância qualificadora do crime de furto
• Identificação de que se apurou um novo facto/pedaço de vida (submetido
a apreciação judicial): o valor da viatura, que não seria superior a 50UC,
passa para, pelo menos, € 60 000,00 (sessenta mil euros), permitindo por
isso até uma diversa qualificação jurídica (o crime de furto p. e p. pelo art.

2
203.º do CP passa a ser qualificado nos termos do art. 204.º/2/a) do CPP,
por referência ao art. 202.º/b) do CPP, todos do CP, já que o novo valor da
viatura excede as 200 UC, sendo por isso “consideravelmente elevado”).
• Demonstrar-se que se trata de uma ASF não autonomizável, já que o novo
facto é relativo aquele mesmo objeto/furto daquela viatura naquele dia e
por aquele arguido (não é facto independente), permite a agravação do
limite máximo da pena (que passa de pena máxima abstrata de 2 anos para
5 anos e 4 meses – art. 204.º/2/a), 202.º/b), 22.º, 23.º e 73.º/1/a) do CP),
sendo por isso uma alteração de factos substancial (art. 1.º/f) do CPP) e
não pode ser destacado à força e submetido a novo processo à parte sem
violar o princípio do non bis in idem,já que o valor da viatura, só por si,
não é sequer crime.
• Aplicar-se o regime legal (359.º/1 e 3 do CPP): o juiz deveria comunicar
o novo facto e perguntar se o arguido, assistente e MP estariam de acordo
em prosseguir o julgamento, atendendo à nova factualidade.
• Havendo acordo: o tribunal singular, que seria o competente para
julgar um crime de furto “simples” – 16.º/2/b) do CPP), deveria
declarar-se incompetente, já que não mantém competência em face
do crime de furto qualificado (com pena superior a 5 anos como se
demonstrou e não se tratando de caso do 16.º/2/a), o tribunal
singular não poderia continuar a julgar), nos termos do art. 359.º/3,
do CPP, in fine;
• Não havendo acordo: o tribunal deveria prosseguir o julgamento
apenas pelos factos primitivos, ignorando o valor
consideravelmente elevado da viatura, e apenas podendo
validamente condenar o arguido pelo simples crime de furto.
▪ Caso o tribunal condenasse pelo crime de furto qualificado:
a sentença seria nula (379.º1/b) e 2 do CPP), dependendo
de arguição em sede de recurso ordinário e no prazo da
mesma (arts. 410.º/2 e 3 e 411.º/1 do CPP).
• A valorizar: outras posições ou soluções e respetiva fundamentação para
além da desconsideração dos novos factos.

4. Considerando que Bento nunca prestou declarações nestes autos, e que os agentes da
PSP Carlos e Daniel, em sede de depoimento testemunhal em audiência de
julgamento, asseguram que Bento não só lhes confessou a autoria daquele crime no
momento em que o detiveram como lhes indicou a quem, Zuca e Xavier, venderia a
viatura, pergunta-se:
a) Poderia o tribunal de julgamento valorar na condenação de Bento o
depoimento testemunhal dos agentes da PSP? (3 valores).
• Resposta negativa;
• Identificação do problema: não sendo a pedido do arguido, o teor de tais
conversas informais havidas com os agentes Carlos e Daniel que
participaram na recolha de prova aquando da detenção em flagrante não
poderiam ser lidas em julgamento, nem valoradas na sentença (art. 357.º
do CPP).

3
• Nem se poderia defraudar tal regime através do depoimento testemunhal
do que aqueles agentes ouviram do arguido quando procederam à sua
detenção, ou após a mesma, na recolha de prova (art. 356.º/7 do CPP).
• Seria valorizada a menção à divergência jurisprudencial existente para
efeitos da valoração das conversas informais mantidas com o suspeito.

b) Como deveria atuar o tribunal de julgamento relativamente a Zuca e


Xavier? (3 valores).
• Discutir-se a eventual extração de certidão para comunicação ao MP para
proceder em conformidade;
• Identificar o problema: não podendo tais depoimentos testemunhais
valerem contra o arguido deste processo, nada obsta a que possam valer,
pelo menos, como informação para a abertura de inquérito contra novos
suspeitos, designadamente Zuca e Xavier e eventualmente até por outros
crimes (por exemplo, falsificação de documentos, recetação, etc.);
• Consequentemente, tendo o juiz tomado conhecimento daqueles factos
indiciadores daqueles crimes, no exercício de funções, estaria obrigado a
comunicar ao MP e este a proceder em conformidade com o princípio da
legalidade/obrigatoriedade da ação penal (art.os 242.º/1/b) e 262.º/2 do
CPP).

Para realizar o exame, pode usar: Constituição da República Portuguesa (CRP), Código
Penal (CP), Código de Processo Penal (CPP) e Lei da Organização do Sistema Judiciário
(LOSJ).

Apreciação Global (sistematização e nível de fundamentação das respostas, capacidade


de síntese, clareza de ideias e correção da linguagem): 2 valores.

Nota: as respostas com grafia ilegível não serão avaliadas.

4
DIREITO PROCESSUAL PENAL
4.º ANO – DIA/2018-2019
Regência: Prof. Doutor Paulo de Sousa Mendes
Colaboração: Prof. Doutor Rui Soares Pereira, Mestres João Gouveia de Caires, David
Silva Ramalho e Mafalda Moura Melim e Licenciada Joana Reis Barata
Exame escrito – 18 de junho de 2019
Duração: 90 minutos
Hipótese
A (pequena) caixa…
Abel, Berta e Carlos foram detidos e constituídos arguidos nas respetivas
habitações, em Lisboa, às 7h00 da manhã do dia 3 de junho de 2019, na sequência dos
mandados de detenção emitidos pelo MP, no âmbito de um processo-crime em que eram
suspeitos de vários crimes. Foram realizadas buscas, autorizadas por Juiz de Instrução, e
apreendida documentação relevante quer nas habitações, quer nas instalações do Instituto
da Mobilidade e dos Transportes, I.P. (IMT), Lisboa. Foi ainda apreendida a quantia de
1000€ que estava dentro de uma caixa na casa de Abel e Berta (casados), embrulhada em
uma cópia certificada da escritura de partilha de uma herança de um familiar de Berta.
Os arguidos foram apresentados no dia seguinte a interrogatório judicial, tendo
sido informados que sobre os mesmos recaía a suspeita de vários crimes, nos seguintes
termos:
- Quanto a todos os arguidos, e em coautoria, a prática de um crime de associação
criminosa (p. e p. pelo art. 299.º, n.os 1, 2 e 5, do CP), dado todos colaborarem para, e em
conjugação de esforços, simularem a realização de formação profissional necessária à
certificação de motoristas de mercadorias e de passageiros e, em troca, receberem
vantagens, pagas pelos motoristas que efetivamente não realizavam qualquer formação;
- Quanto aos arguidos Abel e Berta, e em concurso efetivo, a prática de um crime
de corrupção passiva para ato ilícito (p. e p. pelo art. 373.º, n.º 1, em conjugação com o
art. 386.º, n.º 1, al. d), e com o art. 28.º, todos do CP), na medida em que aquele, na
qualidade de Coordenador de uma Equipa de Fiscalização das Escolas de Condução e
Centros de Formação do IMT fornecia informação relevante aos demais sobre como se
manterem “fora do radar” da atividade inspetiva daquele Instituto. Já Berta angariava os
potenciais motoristas que pretendiam obter tal certificação sem a receberem, pagando
uma quantia em troca. Uma quantia que seria repartida entre todos os membros, não se
sabendo ainda em que proporção;
- Quanto ao arguido Carlos, e em concurso efetivo, a prática de um crime de
corrupção ativa para ato ilícito (p. e p. pelo art. 374.º, n.º 1, do CP), bem como de um
crime de falsificação de documento (p. e p. pelos arts. 255.º, al. a), 256.º, n.º 1, als. a) e
e), n.º 4, e 386.º, n.º 1, al. d), todos do CP), na medida em que, sendo dono da “Escola de
Condução e Formação sempre em linha torta”, simulava fornecer formação aos motoristas
e emitia os respetivos documentos com vista a que obtivessem ou renovassem a respetiva
licença.

1
Responda fundamentadamente às seguintes questões:

1. Aprecie a detenção dos arguidos nos termos suprarreferidos. (2,5 valores)


2. Considere que o MP requereu, no primeiro interrogatório judicial de arguidos detidos,
a proibição de contactos entre todos e a suspensão do exercício de funções ao arguido
Abel, atendendo ao perigo de continuação de atividade criminosa e de perturbação do
inquérito. Poderá o arguido reagir (e com que fundamento) perante uma eventual
aplicação da prisão preventiva com fundamento no perigo de perturbação do inquérito?
(3,5 valores)
3. Admita que foi deduzida acusação contra os arguidos pelos factos e crimes
suprarreferidos. Entre outras provas, a acusação sustenta-se em mensagens de correio
eletrónico trocadas entre os arguidos, que demonstrariam a atividade criminosa. O
arguido Abel considera que tais provas não deveriam ser valoradas, dado que foram
obtidas aquando da referida busca domiciliária com apreensão do seu computador
portátil, tendo o mesmo sido forçado a fornecer a palavra-passe do respetivo
equipamento. De que modo e com que fundamento poderá Abel fazer valer a sua
pretensão? (4 valores)
4. Imagine que se apurou, durante o inquérito, que Berta não praticou os factos que lhe
foram imputados, tendo o MP arquivado o inquérito nesta parte. Daniela, jornalista
de investigação, durante a preparação de uma reportagem, apurou novos elementos
de prova que indiciam que a pessoa que praticara os factos inicialmente imputados a
Berta era um dos 20 trabalhadores da Escola de Condução X, sem, contudo, ter
conseguido proceder à sua identificação. Poderá Daniela constituir-se assistente? Em
caso afirmativo, poderá reagir ao despacho de arquivamento? (4 valores)
5. Admita que os arguidos Abel e Berta tinham requerido a abertura de instrução. No
final da mesma, poderia Abel impugnar o despacho de pronúncia que o tivesse
pronunciado nos termos da acusação pública, bem como pela prática, em concurso
efetivo, de um crime de abuso de poder (p. e p. pelo art. 382.º do CP), por considerar
o Juiz de Instrução que a conduta do mesmo violou diversos deveres funcionais
pretendendo obter vantagem ilegítima? (4 valores)
Para realizar o exame, pode usar: Constituição da República Portuguesa (CRP), Código
Penal (CP), Código de Processo Penal (CPP) e Lei da Organização do Sistema Judiciário
(LOSJ).
Apreciação Global (sistematização e nível de fundamentação das respostas, capacidade
de síntese, clareza de ideias e correcção da linguagem): 2 valores.

Nota: os exames com caligrafia ininteligível/ilegível não serão classificados.

2
Tópicos para a correção

1– A detenção poderia ser realizada, nos termos do art. 257.º do CPP.


Deveria identificar-se que, por não haver qualquer flagrante delito em curso, não
poderia a detenção fundar-se no regime previsto nos arts. 255.º e 256.º do CPP.
Consequentemente, a detenção dos arguidos apenas poderia ser feita de acordo
com o art. 257.º do CPP. Deveria identificar-se que a regra seria a do mandado do juiz ou,
nos casos em que for admissível prisão preventiva, mandado do MP, como efetivamente
sucedeu. Deveria mencionar-se quais os requisitos de admissibilidade da prisão
preventiva, nomeadamente os requisitos específicos do art. 202.º do CPP. Em especial,
os fortes indícios relativos a um crime de catálogo do art. 202.º, n.º 1, do CPP. No caso,
seria aplicável a al. c), por se tratar de criminalidade altamente organizada, nos termos do
art. 1.º, al. m), do CPP, a que corresponde pena de prisão superior a 3 anos, no tocante ao
crime de associação criminosa imputado a todos os arguidos. Haveria ainda que referir
que pelo menos uma das circunstâncias previstas no n.º 1 do art. 257.º do CPP teria de
estar verificada. Não havendo elementos no enunciado, ter-se-ia de ponderar a eventual
aplicação das als. a) ou b) do n.º 1 do art. 257.º do CPP.
Por fim, haveria que discutir se a emissão dos mandados de detenção fora de
flagrante delito satisfaria o princípio da proporcionalidade, tendo em conta a finalidade
pretendida, a saber: assegurar a presença dos arguidos para primeiro interrogatório
judicial ou acautelar um dos perigos previstos no art. 204.º do CPP e que só a detenção
permitisse prevenir. Haveria que evidenciar por que razão a realização das buscas nos
diversos locais e em simultâneo, ademais com a notificação aos arguidos para
comparecerem a primeiro interrogatório judicial, não seria suficiente face ao perigo
concreto.

2– O arguido poderia impugnar através de interposição de recurso, pedido de


revogação e/ou arguição de nulidade a aplicação da prisão preventiva, dado a mesma ter
sido aplicada em violação dos requisitos legais.
Independentemente das condições gerais, princípios, requisitos gerais e
específicos das medidas de coação que poderiam estar verificados, o problema neste caso
centra-se na relação do princípio da reserva de juiz com a direção do inquérito pelo MP.
O Juiz de Instrução ao aplicar a medida de prisão preventiva ao arguido Abel com
3
fundamento no perigo de perturbação de inquérito (art. 204.º, al. b), do CPP) violou assim
aquele papel de garante ou de juiz das liberdades durante a fase de inquérito cuja direção
cabe ao MP, incluindo a definição da estratégia quanto ao teto máximo das medidas
coativas, pelo que não poderia, sob pena de nulidade, aplicar medida mais grave do que
a requerida (art. 194.º, n.º 3, do CPP). Seria valorizada a discussão sobre a
constitucionalidade da solução legal prevista no art. 194.º, n.º 2, do CPP.
Haveria que discutir o tipo de nulidade subjacente ao art. 194.º, n.º 3, do CPP. Não
se tratando de nulidade insanável por não integrar o catálogo do art. 119.º do CPP, nem a
sua insanabilidade estar especialmente prevista, ter-se-ia de concluir que se trata de
nulidade dependente de arguição, nos termos do art. 120.º, n.º 1, do CPP.
O arguido poderia interpor recurso da medida de coação, nos termos do art. 219.º
do CPP, cumulando tal pretensão com o pedido de revogação, nos termos do art. 212.º,
n.º 1, al. a), e n.º 4, do CPP, ou simplesmente invocando a nulidade perante o Juiz de
Instrução, nos termos dos arts. 120.º, n.º 1, e 194.º, n.º 3, do CPP. Não parece haver
fundamento para o habeas corpus perante o STJ, ao abrigo do art. 222.º, n.º 2, do CPP.

3– O arguido poderia requerer a abertura de instrução invocando a proibição de prova


ou deduzindo requerimento avulso, a todo o momento, com idêntico teor, ou ainda através
da contestação.
Relativamente à busca domiciliária, tendo-se referido que a mesma foi realizada
pelas 7h da manhã ao abrigo de despacho de autorização emitido pelo Juiz de Instrução
(art. 177.º, n.º 1, do CPP), havendo indícios da prática de crime e do respeito pelo
princípio da proporcionalidade, a mesma seria válida.
No que respeita à apreensão do portátil de Abel, a resposta deveria centrar-se na
expressão “forçado a fornecer a palavra-passe do respetivo equipamento”. Quanto à
apreensão, nos termos do art. 178.º, n.os 4 e 6, do CPP, os OPC poderiam validamente
apreender o portátil, sujeita a validação em 72h por despacho da autoridade judiciária
competente. Já o acesso ao conteúdo do portátil, bloqueado através de palavra-passe, e
considerando que tal constitui um elemento criativo e não “preexistente” (na terminologia
doo TEDH), o arguido gozaria do direito a não se autoincriminar. O conteúdo da
correspondência eletrónica sempre poderia ser alcançado através da injunção aos
prestadores de serviços para acesso a tais dados, nos termos do art. 14.º, n.º 4, da Lei do
Cibercrime (Lei n.º 109/2009, de 15 de setembro). Deveria discutir-se se o regime de
4
apreensão do correio eletrónico obedece ao art. 189.º, n.º 1, do CPP, ao art. 179.º do CPP
ou apenas à Lei do Cibercrime.
Seja como for, o acesso ao conteúdo do portátil não poderia ser obtido através de
violação do princípio nemo tenetur se ipsum accusare através de coação moral, sob pena
de constituir um método absolutamente proibido de obtenção de prova (art. 126.º, n.os 1 e
2, al. c), do CPP). Tal geraria uma violação de proibição de prova, cominada com nulidade
sui generis. Deveria referenciar-se o regime da nulidade sui generis da prova proibida, a
saber: proibição de obtenção e de valoração da prova proibida, sendo apenas permitida a
sua valoração para a responsabilização dos agentes que utilizaram tal método proibido,
nos termos do artigo 126.º, n.º 4, do CPP, devendo em princípio ser desentranhada dos
autos, sendo de conhecimento oficioso e insanável mesmo para além do trânsito em
julgado, constituindo ademais fundamento de recurso extraordinário de revisão de
sentença, nos termos do artigo 449.º, n.º 1, alínea e), do CPP. Tal nulidade da prova
principal contaminaria as eventuais provas secundárias que com aquela estivessem numa
relação de causalidade ou, na terminologia da jurisprudência nacional, em que se
estabeleça um “nexo de dependência cronológica, lógica e valorativa”, através do
chamado efeito-à-distância, devido à teoria, originária na jurisprudência dos EUA, dos
frutos da árvore envenenada ou da sua congénere alemã teoria da nódoa ou da mancha,
nos termos do art. 32.º, n.º 8, da CRP e art. 122.º, n.º 1, do CPP.
Por fim, e apesar de tal nulidade ser de conhecimento oficioso, o arguido, tendo
sido notificado da acusação, poderia invocar a mesma. Desde logo através de
requerimento para a abertura de instrução, devendo identificar-se os requisitos para este
efeito, nomeadamente da legitimidade, prazo, representação judiciária e conteúdo, nos
termos do art. 287.º, n.º 1, al. a), e n.º 2, do CPP. Ainda que tal questão pudesse
circunscrever-se à matéria de direito, tal seria admissível através requerimento avulso a
todo o tempo ou ainda em sede de contestação, nos termos do art. 315.º do CPP.

4- A resposta, apesar de controvertida, parece ser positiva, devendo a assistente


requerer a intervenção hierárquica.
Em primeiro lugar, haveria de dizer-se que Daniela ao pretender participar no
processo apenas poderia fazê-lo através do requerimento de constituição de assistente,
devendo identificar-se os requisitos do mesmo: legitimidade, prazo, representação
judiciária e pagamento da taxa de justiça, nos termos dos arts. 68.º, n.º 1, al. e), n.º 3, 69.º
5
e 519.º, todos do CPP, bem como art. 8.º do RCP. O requisito discutível seria
precisamente o da legitimidade, pois deveria equacionar-se se os jornalistas têm
legitimidade ao abrigo da al. e) do n.º 1 do art. 68.º do CPP. Ainda que a tenham, a sua
intervenção seria restrita aos crimes de corrupção para os quais a al. e) atribui legitimidade
a qualquer pessoa.
A admitir-se a constituição de assistente, haveria que discutir-se qual o meio
processual pars Daniela exercer a sua pretensão. Não seria admissível o requerimento
para abertura de instrução (art. 287.º, n.º 1, al. b), e n.º 2, do CPP), dado que esta não
poderia identificar os suspeitos a serem constituídos arguidos, pelo que não poderia
cumprir com o requisito de conteúdo deste requerimento (uma acusação em sentido
material), nem poderia cumprir com o disposto nas als. b) e c) do n.º 3 do art. 283.º, n.º 3,
ex vi art. 287.º, n.º 2, in fine, todos do CPP. O que significaria que Daniela apenas poderia
requerer a intervenção hierárquica, nos termos do art. 278.º do CPP.

5- Abel poderia invocar a irregularidade ou nulidade do despacho de pronúncia que


tivesse procedido a uma mera alteração da qualificação jurídica (AQJ) face à acusação
sem cumprir com os trâmites legalmente impostos.
Em primeiro lugar, haveria que identificar que o despacho de pronúncia não
adicionara qualquer elemento factual à acusação (i.e., acontecimento histórico, pedaço de
vida, caso ou problema submetido à apreciação judicial). O Juiz de Instrução ao
pronunciar o arguido Abel nos termos da acusação pública, bem como pela prática, em
concurso efetivo, de um crime de abuso de poder p. e p. pelo art. 382.º do CP, por
considerar que a sua conduta violara diversos deveres funcionais pretendendo obter
vantagem ilegítima, não tomou em consideração qualquer elemento factual novo. A
violação dos deveres funcionais já estava factualmente sustentada na acusação. Ou seja,
trata-se de uma mera AQJ.
Consequentemente, o Juiz de Instrução deveria ter cumprido com os trâmites
legalmente previstos, nos termos do art. 303.º, n.º 1, ex vi n.º 5 do mesmo preceito do
CPP. Se tivesse cumprido, comunicando a AQJ, concedendo prazo (não superior a 8 dias)
e produzindo a nova prova que o arguido eventualmente tivesse requerido, e não fosse
supérflua ou dilatória, a pronúncia seria totalmente válida.
Não havendo elementos que permitam concluir que o Juiz de Instrução respeitou
aqueles procedimentos, haveria então que retirar as respetivas ilações, a saber: o despacho
6
de pronúncia seria, no mínimo, irregular (art. 123.º do CPP) ou mesmo nulo quanto a esta
parte, se se considerar que houve preterição de ato legalmente obrigatório, nos termos do
art. 120.º, n.º 2, al. d), do CPP. Em qualquer caso, a pronúncia não seria nula nos termos
do art. 309.º do CPP, dado que não há qualquer facto novo e porque, ao contrário do
regime do julgamento/sentença, a preterição na instrução do regime da AQJ ou da ANSF
é sancionada de modo diverso da preterição do regime da ASF.
Do eventual despacho que indeferisse a invalidade em causa admitir-se-ia recurso,
nos termos gerais do art. 399.º do CPP, sob pena de o regime previsto no art. 303.º, n.º 1,
ex vi n.º 5, do CPP não ter qualquer utilidade.

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DIREITO PROCESSUAL PENAL
4.º ANO – TURMA DE NOITE / 2021-2022
Regência: Prof. Doutor Paulo de Sousa Mendes
Colaboração: Mestres João Gouveia de Caires e David Silva Ramalho, Licenciada Joana
Reis Barata
Exame escrito de coincidência – 26 de janeiro de 2022
Duração: 90 minutos
Hipótese

António, defensor nomeado oficiosamente, encontrava-se de escala no Campus de Justiça.


“Senhor Dr., chamaram-no para uma diligência” – disse a oficial de justiça – “acompanhe-
me”. Entrou numa sala onde estava sentado Bernardo, arguido, que lhe disse “Senhor Dr., eu
estava no supermercado e tinha fome e por isso tirei um chocolate, é verdade, e a PSP
apanhou-me, é verdade, e tiraram-me o chocolate que até puseram logo à venda porque eu
nem lhe tinha tocado, é verdade, e eu mal me pediram identificação chamei um nome feio ao
polícia, também é verdade, mas pedi desculpa, e depois levaram-me para a esquadra,
revistaram-me, tiraram-me o telemóvel, disseram que se eu não desse o PIN era pior para mim
e por isso eu dei, mas aquelas fotografias que eles dizem que são de pedofilia e que estavam
no WhatsApp não eram minhas, juro”.
“Certo” – disse António – “ Olhe, o melhor que tem a fazer é ficar calado e depois logo se
vê”. Lado a lado com Bernardo, António entrou na sala de audiência, onde estava o Ministério
Público (MP), sentou-se e aguardou pelo Juiz de Instrução (JI).
O JI chegou, dirigiu-se ao arguido e perguntou-lhe se queria falar. Após resposta negativa de
Bernardo, o JI respondeu: “Olhe, eu conheço bem a sua conversa, portanto se confirmar tudo
fica em domiciliária, senão fica em preventiva, a escolha é sua”. Perante este cenário – e o
olhar incrédulo de António –, Bernardo disse que aceitava tudo o que estivesse ali na folha
do Senhor Procurador, mas que, por favor, não o enviassem para a prisão.
Tome em consideração os artigos 181.º e seguintes e 203.º e seguintes do Código Penal (CP)
para resposta às questões.

Responda, fundamentadamente, às seguintes questões:

1. Considerando apenas o que Bernardo afirmou ter acontecido no momento da sua


detenção e seguidamente na esquadra da PSP, o que deveria fazer António? (5 valores)

⎯ António deveria invocar a ilegalidade da sua detenção pelo crime de furto e a


proibição de prova quanto às fotografias encontradas no seu telemóvel.

1
⎯ Quando foi intercetado, Bernardo tinha praticado um crime de furto, p. e p.
pelos artigos 203.º e 207.º, n.º 2, do CP.
⎯ Sendo um crime particular, e pese embora existisse flagrante delito nos termos
do disposto nos artigos 256.º, n.º 1, 1.ª parte, e 255.º, n.º 1, do CPP, o mesmo
não admitia detenção, nos termos do disposto no artigo 255.º, n.º 4, do CPP.
⎯ O mesmo não sucede com o crime de injúria agravado, p. e p. pelos artigos
181.º, n.º 1, e 184.º do CP, por se tratar de crime semipúblico, nos termos do
disposto no artigo 188.º, n.º 1, alínea a), do CP. No entanto, do relato de
Bernardo retira-se que a injúria foi praticada em momento anterior à detenção,
pelo que seria válida.
⎯ O OPC deveria ter constituído Bernardo como arguido, seja por força da
detenção, seja mais tarde quando o interrogou, seja simplesmente por ter sido
levantado auto de notícia e por o mesmo lhe ter sido comunicado nos termos do
disposto no artigo 58.º, n.º 1, alíneas a), c) e d), do CPP.
⎯ Por outro lado, tendo havido detenção, o arguido teria de ser submetido a
primeiro interrogatório judicial ou não judicial de arguido detido, nos termos
dos artigos 141.º e 143.º do CPP, ou seja, pelo JI ou pelo MP e nunca a
interrogatório por órgão de polícia criminal, nos termos do artigo 144.º do CPP.
⎯ A revista e as apreensões também foram validamente efetuadas, nos termos do
disposto nos artigos 174.º, n.º 1, 178.º, n.º 4, e 249.º, n.os 1 e 2, alínea c), e 251.º,
n.º 1, alínea a), todos do CPP.
⎯ A apreensão de mensagens WhatsApp encontra-se sujeita ao disposto no artigo
17.º da Lei do Cibercrime (LdC), por se tratar de “registos de comunicações de
natureza semelhante” ao correio eletrónico.
⎯ Por esse motivo, para a leitura daquelas mensagens seria necessária a existência
de despacho proferido pelo JI, enquanto juiz das garantias, como postula o
artigo 17.º da LdC, aplicando-se correspondentemente o artigo 179.º do CPP
por força do referido preceito.
o Seria valorizada a discussão sobre se a remissão do artigo 17.º para o
artigo 179.º do CPP engloba a exigência de um crime de catálogo – caso
em que não poderia ser emitido um despacho de autorização, uma vez
que o crime em causa só é punível com pena de prisão até 2 anos e não
com mais de 3 anos, conforme exige o artigo 179.º, n.º 1, alínea b), do
CPP – ou se não é exigido que o crime em causa seja um crime de
catálogo, caso em que o despacho poderia ser emitido validamente pelo
JI.
o Seria valorizada a discussão sobre o regime aplicável à apreensão de
correio eletrónico: (i) revogação tácita total do artigo 189.º, n.º 1, do
CPP ou somente parcial pela LdC; (ii) remissão do artigo 17.º da LdC
para o regime de apreensão da correspondência postal do CPP e as
dificuldades geradas pela circunstância de a distinção entre
correspondência aberta ou fechada não ter paralelo no meio digital.
⎯ O OPC não poderia igualmente ter ameaçado Bernardo com vista à obtenção
da prova, sob pena de contaminá-la, nos termos do disposto nos artigos 32.º, n.º
8, da CRP e 126.º, n.os 1 e 2, alíneas a) e d), do CPP. Trata-se de método
absolutamente proibido de prova, que se distingue dos métodos relativamente
proibidos de prova, entre o mais, por nunca ser permitido pelo consentimento e
por não admitir previsão legal como meio alternativo para a sua produção.

2
⎯ À violação de proibições de prova corresponde a cominação de uma nulidade
sui generis. Deveria referenciar-se em que se traduz esse regime de nulidade sui
generis, a saber: proibição de produção e de valoração da prova proibida, sendo
apenas permitida a sua valoração para a responsabilização dos agentes que
utilizaram tal método proibido, nos termos do artigo 126.º, n.º 4, do CPP,
devendo em princípio ser desentranhada dos autos, sendo de conhecimento
oficioso e insanável mesmo para além do trânsito em julgado, constituindo
ademais fundamento de recurso extraordinário de revisão de sentença, nos
termos do artigo 449.º, n.º 1, alínea e), do CPP e produzindo um efeito a
distância de contaminação da prova secundária causalmente vinculada à prova
proibida.

2. Aprecie a validade dos atos praticados em sede de primeiro interrogatório judicial de


arguido detido e as respetivas vias de reação. (5 valores)

⎯ O arguido detido nos termos dos artigos 254.º e seguintes do CPP, não sendo
imediatamente julgado, terá de ser presente ao JI no prazo máximo de 48h para
primeiro interrogatório judicial de arguido detido (artigo 141.º do CPP) ou a
interrogatório pelo MP (artigo 143.º do CPP).
⎯ O primeiro interrogatório judicial de arguido detido visa avaliar a validade da
detenção, a validade da constituição como arguido, revelar os motivos da
detenção ao arguido, ouvir a sua defesa, permitir ao JI verificar se ainda se
verificam os motivos que determinaram a detenção e decidir pela aplicação de
uma medida de coação diferente do TIR, máxime privativa de liberdade caso
esta lhe seja requerida pelo MP enquanto titular do inquérito (artigo 194.º, n.º
1, do CPP).
o Não consta que este procedimento tenha sido seguido, motivo pelo qual
as declarações de Bernardo não poderão posteriormente vir a ser
reproduzidas em julgamento (artigo 357.º, n.º 2, do CPP).
⎯ As considerações tecidas pelo JI diante de Bernardo constituem motivo, sério
e grave, adequado a gerar desconfiança sobre a sua imparcialidade.
o Por esse motivo, António deveria ter requerido a sua recusa (artigo 43.º
do CPP) e, caso esta fosse considerada procedente, deveriam os atos
processuais praticados até ao momento da solicitação da recusa ser
anulados quando se verificasse que deles resultaria prejuízo para a
justiça da decisão do processo, sendo que os praticados posteriormente
seriam válidos se não pudessem ser repetidos utilmente e se se
verificasse que deles não resultaria prejuízo para a justiça da decisão do
processo (artigo 43.º, n.º 5, do CPP).
o O requerimento de recusa deve ser apresentado perante o tribunal
imediatamente superior, no caso, perante o Tribunal da Relação,
conforme prevê o artigo 45.º, n.º 1, alínea a), do CPP.
o Devem ser desencadeadas as demais diligências previstas no artigo 45.º
do CPP, designadamente a pronúncia do juiz visado (artigo 45.º, n.º 3,
do CPP) e a realização das diligências de prova necessárias (artigo 45.º,
n.º 4, do CPP).
o A decisão final deve ser proferida num prazo de 30 dias, a contar da
entrega do respetivo requerimento de recusa (artigo 45.º, n.º 5, do CPP).
⎯ Adicionalmente, a valoração do silêncio do arguido contra si, como fator
3
determinante da gravidade da medida de coação, constitui violação grave do seu
direito ao silêncio e à não autoincriminação (artigo 61.º, n.º 1, alínea d), do
CPP).
⎯ Deveriam ser identificadas as diversas ilegalidades cometidas em matéria de
aplicação de medidas de coação. Concretamente, deveria ser identificada a
violação do disposto no artigo 194.º, n.º 7, do CPP, por não terem sido
comunicados os factos com base nos quais foi aplicada a medida de coação a
Bernardo, o que impossibilitaria a sua utilização para fundamentação da
aplicação de uma medida de coação e, consequentemente, seria fundamento de
recurso (artigo 219.º do CPP), bem como de pedido de revogação da medida
(artigo 212.º, n.os 1 e 4, do CPP).
⎯ Deveria ainda ser referido que a medida de coação aplicada não se baseou em
qualquer um dos fundamentos previstos no artigo 204.º do CPP, o que também
a tornaria ilegal e tal poderia ser invocado em sede de recurso (artigo 219.º do
CPP) e cumulável com o habeas corpus (artigo 222.º do CPP) e pedido de
revogação da medida (artigo 212.º, n.os 1 e 4, do CPP).
⎯ Sendo certo que, caso tivesse ocorrido a falta de promoção pelo MP da medida
de coação mais grave do que o TIR, gerar-se-ia a nulidade prevista no artigo
194.º, n.º 1, do CPP, pelo que teria cabimento discutir se a mesma seria
dependente de arguição (subsidiariamente aplicável nos termos do artigo 120.º,
n.º 1, do CPP) ou se, pelo contrário, poderia ser invocada diretamente em sede
de recurso (artigo 219.º do CPP) e cumulável com o habeas corpus (artigo 222.º
do CPP) e pedido de revogação da medida (artigo 212.º, n.os 1 e 4, do CPP).
o Valorar-se-ia a discussão sobre a impossibilidade de utilização das
declarações prestadas em primeiro interrogatório judicial de arguido
detido, por sobre as mesmas incidir uma proibição de prova, nos termos
do disposto nos artigos 58.º, n.º 5 e 126.º, n.º 3, do CPP.

3. Independentemente da resposta à questão anterior, admita agora que Bernardo acaba


por ser acusado tão-somente da prática de três crimes de detenção de pornografia de
menores, p. e p. pelo artigo 176.º, n.º 5, do Código Penal, por deter três vídeos nos quais
estão representados dez menores. Bernardo requer a abertura da instrução por entender
que a detenção de três vídeos constitui a prática de apenas um crime. Ao ser notificado
do despacho de pronúncia, Bernardo percebe que foi pronunciado pela prática de dez
crimes de pornografia de menores, por o Tribunal entender que o número de crimes se
conta, não pelo número de vídeos, mas sim pelo número de menores representados nos
vídeos. Aprecie a reação de Bernardo e o despacho de pronúncia. (4 valores)

⎯ Deveria discutir-se a questão doutrinária relativa à possibilidade de o arguido


usar o RAI apenas para discutir questões de direito, considerando que o artigo
287.º, n.º 1, alínea a), do CPP apenas se refere a factos pelos quais o MP ou o
assistente, em caso de procedimento dependente de acusação particular, tiverem
deduzido acusação.
⎯ Ao argumento puramente literal, que sustenta a tese da inadmissibilidade de
RAI nestes casos, pode contrapor-se, a favor da tese contrária, a necessidade de
assegurar o direito constitucional do arguido à instrução, tal como referido
desde o Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 7/87, bem como a circunstância
de esta ser a única via que lhe permite assegurar a igualdade de armas com o
assistente, que sempre teria a acusação subordinada para suscitar questões de
direito nesta fase. Também para a parte da doutrina que restringe a legitimidade

4
do arguido para deduzir RAI à possibilidade de vir a obter um despacho de não
pronúncia, seria igualmente inadmissível neste caso o RAI, uma vez que, a ter
vencimento a posição do arguido, a decisão instrutória continuaria a ser
pronúncia.
⎯ De acordo com a posição de Paulo de Sousa Mendes, o RAI seria admissível
para discutir apenas a questão de direito ainda que da sua procedência não
resultasse uma decisão de não pronúncia.
⎯ No presente caso não estaríamos perante um facto novo, mas sim perante uma
alteração da qualificação jurídica (AQJ).
⎯ O Tribunal deveria ter seguido o regime previsto nos artigos 303.º, n.os 1 e 5, do
CPP, comunicando a alteração ao defensor e concedendo-lhe, a requerimento,
um prazo para preparação da defesa não superior a oito dias, com o consequente
adiamento do debate, se necessário.
⎯ A omissão desta formalidade, por não se encontrar expressamente prevista
como nulidade, designadamente no artigo 309.º do CPP (ao contrário do que
sucede na audiência de julgamento e na sentença, nos termos dos artigos 358.º
e 379.º do CPP), constitui mera irregularidade (pelo menos para a maior parte
da doutrina e da jurisprudência), nos termos do disposto no artigo 123.º do CPP,
a ser arguida no prazo de três dias, previsto no n.º 1 do mesmo artigo.
o Seria valorizada a discussão sobre se o despacho que indeferisse a
arguição de irregularidade admitiria recurso.

4. Após prolação do despacho previsto no artigo 311.º do CPP, entrou em vigor a Lei n.º
30-Z/2021, que criou e implementou o Tribunal Especializado para Combate ao Abuso
Sexual de Menores, o qual passou a ser competente materialmente para conhecer dos
crimes pelos quais Bernardo fora acusado. Aprecie a constitucionalidade desta solução
e analise se deveria o Tribunal que proferira o despacho considerar-se incompetente
para realizar o julgamento. (4 valores)

⎯ A Lei n.º 30-Z/2019 seria materialmente inconstitucional por violação do


disposto no artigo 209.º, n.º 4, da CRP, uma vez que daí resulta a proibição da
existência de tribunais com competência exclusiva para o julgamento de certas
categorias de crimes.
⎯ Adicionalmente, dispõe o artigo 32.º, n.º 9, da CRP, que nenhuma causa pode
ser subtraída ao tribunal cuja competência esteja fixada em lei anterior.
⎯ Trata-se da consagração do princípio do juiz natural, que tem como objetivo
assegurar a imparcialidade e a independência dos juízes, ao garantir que a
distribuição de processos se faz de acordo com critérios de competência
legalmente fixados em momento anterior à sua atribuição.
⎯ Admitir-se-ia a discussão sobre a aplicação do disposto no artigo 5.º, n.os 1 e 2,
alínea a), do CPP.
Para realizar o exame, pode usar: Constituição da República Portuguesa (CRP), Código Penal
(CP), Código de Processo Penal (CPP) e Lei da Organização do Sistema Judiciário (LOSJ).

Apreciação Global (sistematização e nível de fundamentação das respostas, capacidade de


síntese, clareza de ideias e correção da linguagem): 2 valores.

Nota: as respostas com grafia ilegível não são avaliadas.

5
DIREITO PROCESSUAL PENAL
4.º ANO – DIA/2019-2020
Regência: Prof. Doutor Paulo de Sousa Mendes
Colaboração: Prof.ª Doutora Teresa Quintela de Brito, Mestres João Gouveia de Caires
e David Silva Ramalho, Licenciada Joana Reis Barata e Licenciado Frederico Machado
Simões
Exame escrito/ Coincidências: 7 de julho de 2020
Duração: 90+10 minutos

Ouro Fino

Abel, Bento e Carlos foram notificados para comparecer perante a Polícia


Judiciária (doravante, PJ) com vista a serem constituídos arguidos e prestarem
declarações nessa qualidade. No âmbito deste interrogatório foram informados de que
havia suspeitas fundadas da prática de um crime de roubo praticado no dia 2 de junho de
2020 na ourivesaria Ouro Fino, sita em Lisboa. Abel e Bento nada declararam. Carlos
confessou que os comparsas tinham planeado e executado o referido roubo e que ele
lhes fornecera informações relevantes sobre a segurança da ourivesaria, indicando
também o sítio (cofre do escritório de advocacia de Xavier, namorado da irmã de Abel)
onde ficara escondido o produto do referido roubo.
Feita a busca, foi encontrado quase todo o produto do roubo, perante o espanto
de Xavier que afirmou não ter o código de acesso ao referido cofre, dado que o mesmo
até fora comprado por Abel que o deixara por uns breves dias naquele escritório.
No final do inquérito, o Ministério Público (doravante, MP), com base na
factualidade descrita, acabou por deduzir acusação contra Abel e Bento, em coautoria, e
Carlos, por cumplicidade, pela prática de um crime de roubo, p. e p. no art. 210.º, n.º 1,
do CP, bem como, relativamente a Abel e Bento, em concurso efetivo real, de um crime
de sequestro, p. e p. no art. 158.º, n.º 1, do CP, praticados contra Daniela (proprietária
da referida ourivesaria).

Responda justificadamente às seguintes questões:

1 – Poderia o MP propor a suspensão provisória do processo relativamente a Carlos


contra o pagamento de uma compensação a Daniela, na condição de prestar declarações
no julgamento reafirmando as informações prestadas à PJ? (5 valores)

2 – Como deve proceder o Tribunal perante um requerimento do MP, no início da


audiência de julgamento, solicitando a tomada em consideração da “utilização de uma
caçadeira, não referida na acusação, para ameaçar Daniela, o que agravaria o crime de
roubo, nos termos do art. 210.º, n.º 2, al. b), do CP”? (5 valores)

3 – Poderá o Tribunal valorar os objetos apreendidos no escritório de Xavier? (4


valores)

1
4 – Poderá o Tribunal considerar as mensagens SMS guardadas nos telemóveis dos
arguidos de que se serviam para combinar os pormenores do roubo e que foram
apreendidas aquando da comparência na PJ? (4 valores)

Cotações: 1. 5 valores; 2. 5 valores; 3. 4 valores; 4. 4 valores; Apreciação Global


(sistematização, síntese, clareza, fundamentação e português) 2 valores.

2
GRELHA DE CORREÇÃO

Questão n.º 1

A resposta deverá ser negativa.


A suspensão provisória do processo, prevista nos art.os 281.º e 282.º do CPP, é
um mecanismo de diversão processual que permite ao MP, relativamente a crimes
puníveis com pena de prisão não superior a 5 anos ou com sanção diferente da prisão,
suspender o processo em alternativa a acusar, mediante a imposição ao Arguido de
injunções ou regras de conduta, desde que o Juiz de Instrução concorde e se verifiquem
os pressupostos constantes das várias alíneas do n.º 1 do art. 281.º do CPP.
Estando Carlos indiciado por cumplicidade num crime de roubo, p. e p. no art.
210.º, n.º 1, do CP, a sua pena abstrata será especialmente atenuada, nos termos dos
art.os 27.º, n.º 2, 73.º, n.º 1, als. a) e b), e 41.º, n.º 1, do CP, sendo de um mês a 5 anos e
4 meses (o limite mínimo de um ano é reduzido ao mínimo legal, ou seja, um mês, e o
limite máximo é reduzido de um terço, ou seja, de 2 anos e 8 meses, ficando em 5 anos
e 4 meses).
Deste modo, a suspensão provisória do processo não seria in casu possível, por
se tratar de crime punível com pena de prisão de máximo superior a 5 anos, ainda que a
injunção de pagar uma compensação a Daniela fosse admissível, nos termos do art.
281.º, n.º 2, al. a), do CPP, e os restantes requisitos do n.º 1 da citada disposição
pudessem, em abstrato, estar preenchidos.
Pode, de iure condendo, discutir-se se não se justificaria estender à suspensão
provisória do processo o mecanismo consagrado nos art.os 16.º, n.º 3, e 381.º, n.º 2, do
CPP, possibilitando-se ao MP lançar mão da suspensão provisória do processo
relativamente a crimes puníveis com pena de prisão de máximo superior a 5 anos, se
fosse previsível que o Arguido, caso viesse a ser julgado, não seria condenado em pena
de prisão superior a 5 anos. Sendo a suspensão provisória do processo também
manifestação do princípio da oportunidade, a referida solução permitiria maximizar o
referido princípio.
De referir ainda que sujeitar a suspensão provisória do processo à condição de o
Arguido reiterar no julgamento as informações prestadas à PJ não parece ser admissível,
por o nosso processo penal, apesar de conhecer manifestações do princípio da
oportunidade, ser orientado pelo princípio da legalidade (art. 219.º, n.º 1, da CRP),

3
sendo inadmissíveis formas de plea bargaining próprias de outros ordenamentos
jurídicos como o norte-americano. Admite-se a discussão do problema em função da
eventual aplicação do disposto no artigo 126.º, n.os 1 e 2, alínea e), do CPP às
declarações do Carlos.

Questão n.º 2

O Tribunal deveria, após o prévio exercício do contraditório por parte dos


restantes sujeitos processuais, e na falta de acordo de todos, rejeitar a promoção do MP,
dado que a mesma comportaria uma alteração substancial de factos não autonomizáveis,
pelo que não poderia ser tida em conta pelo Tribunal sob pena de violação do princípio
da vinculação temática.
Efetivamente, a utilização de “uma caçadeira para ameaçar Daniela” constitui
um facto processual novo (acontecimento diverso não constante da acusação), ademais
não totalmente independente (não se trata de um outro objeto distinto do que estava em
discussão), pelo que constitui uma alteração de factos. E uma alteração de factos
substancial nos termos do art. 1.º, al. f), do CPP, desde logo por haver agravação do
limite máximo da pena abstratamente aplicável (ao invés de 8 anos do n.º 1 do art. 210.º
do CP, passaria a ser suscetível de ser aplicada a pena de 15 anos nos termos do n.º 2
daquele preceito). E tratando-se de uma alteração substancial de factos não
autonomizável, na medida em que não poderia ser destacada e constituir um processo
penal autónomo sem violação do princípio ne bis in idem (até porque não estava em
causa a posse de arma ilegal, mas “apenas” a utilização da caçadeira naquele mesmo
roubo), não poderia o Tribunal ter em conta os novos factos no processo em curso, pelo
que deveria continuar a julgar apenas com base na factualidade anterior, nos termos do
art.º 359.º, n.º 1, do CPP – exceto se houvesse acordo do Arguido, do Assistente e do
MP, nos termos do n.º 3 do mesmo preceito legal, caso em que poderia o Tribunal
prosseguir o julgamento também pelos novos factos. Seria valorizada a resposta de
quem discutisse o abandono da solução da absolvição da instância (pois implica a
extinção da instância, proibida legalmente) e a eventual solução de se atender aos novos
factos na pena concreta do crime de que o Arguido vinha acusado de modo a aproximá-
la do seu máximo ou de anulação do processado e regresso do processo ao inquérito
para conhecimento de todos os factos em conjunto.

4
Não havendo acordo, e caso o Tribunal tivesse em conta a nova factualidade e
viesse até a condenar o Arguido com base na mesma, tal sentença seria nula. Trata-se de
uma nulidade, atípica, com regime próprio. Trata-se de uma nulidade (sanável) da
sentença, nos termos dos art.s 118.º, n.º 1, e 379.º, n.º 1, al. b), do CPP, cuja arguição
deve ter lugar por via de recurso ordinário, perante o Tribunal superior, no prazo de 30
ou de 20 dias, consoante haja ou não impugnação da prova gravada (art.s 399.º, 410.º,
n.º 1, e 411.º, n.º 1 e n.º 4, do CPP).

Questão n.º 3

A resposta deverá ser negativa.


Está em causa a possibilidade de o Tribunal de julgamento valorar objetos
apreendidos na sequência de uma busca realizada a um escritório de advocacia.
As buscas e apreensões integram meios de obtenção de prova (arts. 174.º a 186.º
do CPP), tanto mais que constituem procedimentos e instrumentos utilizados pelas
autoridades judiciárias e pelas polícias criminais para a aquisição de meios de prova no
processo penal.
Em geral, a busca é autorizada ou ordenada através de despacho da autoridade
judiciária – com um prazo de validade máximo de 30 dias –, devendo esta, sempre que
possível, presidir à diligência (art. 174.º, n.os 3 e 4, do CPP), e respeitadas as
formalidades do art. 176.º do CPP. Também a apreensão exige, em princípio, despacho
da autoridade judiciária a autorizar, ordenar ou validar a sua realização, podendo os
órgãos de polícia criminal realizar apreensões no decurso de buscas, sem prejuízo da sua
necessária validação pela autoridade judiciária num prazo máximo de 72 horas, ex vi
arts. 178.º, n.os 4 e 5, e 249.º, n.º 2, al. c), do CPP.
Todavia, tratando-se de buscas e apreensões a escritórios de advogados, a sua
realização, durante o inquérito, é da competência exclusiva do Juiz de Instrução (art.
268.º, n.º 1, al. c), do CPP) e, em qualquer dos casos e sob pena de nulidade, “presidida
pessoalmente pelo juiz, o qual avisa previamente o presidente do conselho (distrital) da
Ordem dos Advogados [...], para que o mesmo, ou um seu delegado, possa estar
presente” (arts. 177.º, n.º 5, e 180.º do CPP).
No caso sub judice, o produto do roubo constitui um objeto suscetível de
apreensão, ex vi art. 178.º, n.º 1, do CPP. Mas tendo a apreensão daquele objeto sido
efetuada no escritório de advocacia de Xavier e na sequência de busca realizada a esse

5
mesmo escritório, exigia-se que, no decurso do inquérito, aquelas diligências tivessem
sido realizadas pelo Juiz de Instrução e, em qualquer dos casos, que fossem, sob pena de
nulidade, presididas pessoalmente por juiz, o qual avisaria previamente o Presidente do
respetivo Conselho Distrital da Ordem dos Advogados, para que o mesmo, ou um seu
delegado, pudesse estar presente (arts. 177.º, n.º 5, e 180.º do CPP). Dado que tal parece
não ter sucedido, seria possível considerar como meios proibidos de obtenção de prova
a busca e a apreensão realizadas.
Além disso, o carácter proibido dos meios de obtenção de prova implica, em
princípio, a proibição de utilização (= valoração) das provas obtidas, já que estas são
igualmente nulas e não podem ser usadas, sendo certo que a violação da proibição de
valoração determina a invalidade do ato e eventualmente dos termos subsequentes (art.
32.º, n.º 8, da CRP e arts. 118.º, n.º 3, e 126.º, n.os 1 e 3, do CPP). E o desrespeito dos
pressupostos das buscas e apreensões em escritório de advogado gera também a
nulidade e a inadmissibilidade da prova, sujeitando-se ao regime de nulidade sui generis
cominado no art. 126.º, n.º 3, do CPP, que consagra as chamadas proibições relativas de
prova, uma vez que os preceitos que estabelecem aqueles pressupostos constituem os
casos previstos na lei de restrição a direitos de liberdade.
Portanto, in casu não poderiam ser usados nem valorados pelo Tribunal os
objetos apreendidos. Caso fossem utilizados ou valorados, poderia ser arguida a
nulidade da prova obtida com fundamento no carácter proibido dos meios de obtenção
de prova (arts. 118.º, n.º 3, 126.º, n.º 3, 177.º, n.º 5 e 180.º do CPP). E, ainda que a
nulidade em questão não fosse arguida ou conhecida antes do trânsito em julgado da
decisão final, seria possível interpor recurso de revisão da sentença que se fundasse na
valoração de prova nula (art. 449.º, n.º 1, al. e), do CPP), tanto mais que a verdade
obtida através desses meios de prova resultava afinal na injustiça da condenação.

Questão n.º 4

A resposta deverá ser negativa.


As mensagens SMS guardadas nos telemóveis dos Arguidos constituem
comunicações transmitidas por via telemática, estando guardadas em suporte digital (no
cartão ou na memória do telemóvel), pelo que se subsumem na referência a
“comunicações de natureza semelhante [a correio eletrónico]” feita pelo art. 17.º da Lei
n.º 109/2009, de 15 de setembro (Lei do Cibercrime – LCC).

6
Assim sendo, seria necessário para a utilização e valoração das mensagens SMS
como meio de prova o preenchimento dos requisitos e condições previstos nos art. 11.º,
n.º 2, alínea c), e 17.º da LCC, aplicando-se, correspondentemente, o regime da
apreensão de correspondência no art. 179.º do CPP, cabendo aqui debater as várias
posições jurisprudenciais e doutrinárias acerca da melhor interpretação da remissão para
o regime do CPP.

7
DIREITO PROCESSUAL PENAL
4.º ANO – NOITE

Coordenação e Regência
Professor Doutor Paulo de Sousa Mendes

Colaboração
Mestres Inês Ferreira Leite e Rui Soares Pereira

Exame escrito
16 de janeiro de 2015
Duração da prova: 90m

Hipótese

António provocou ferimentos no pescoço de Bento, com uma navalha, a fim de lhe subtrair o
telemóvel. Particulares que viram o sucedido detiveram António e entregaram-no na esquadra mais
próxima da Polícia de Segurança Pública (doravante, PSP). Bento foi de imediato conduzido de
ambulância ao hospital, salvando-se assim da morte.
O Ministério Público (doravante, MP) decidiu abrir processo-crime contra António e promoveu
junto do Juiz de Instrução (doravante, JIC) a aplicação ao arguido da obrigação de apresentação
periódica. No final do inquérito, o MP deduziu acusação contra António pela prática de um crime
de roubo, previsto e punido no art. 210.º, n.º 1, do Código Penal (doravante, CP).

Responda justificadamente às seguintes questões:

1 – Descreva exaustivamente o procedimento que os agentes da PSP deveriam adotar no caso


vertente.
2 – Poderia o JIC impor ao arguido a prisão preventiva?
3 – Poderia Bento requerer a abertura de instrução, por entender que quem desfere um golpe de
navalha no pescoço da vítima não pode deixar de representar e aceitar a produção da morte desta, o
que permitiria afirmar a existência de dolo eventual de homicídio e, consequentemente, a prática
por António, em concurso ideal com o roubo, também de uma tentativa de homicídio (arts. 131.º e
23.º, n.º 1, do CP)?

1
4 – Suponha que, aberta a instrução, o JIC pronunciou António apenas pela prática de um crime
de roubo, previsto e punido no art. 210.º, n.º 1, do CP. Poderia António impugnar essa decisão?
5 – Suponha também que, durante a audiência de julgamento, foi produzida prova de que a fala de
Bento ficou permanentemente afetada por causa da agressão perpetrada por António, o que não
constava do despacho que o submeteu a julgamento. O que deveria fazer o Tribunal?
6 – Admita agora que, durante a audiência de julgamento, o Tribunal concluiu que António foi
agredido pelos agentes da PSP no interrogatório que efetuaram no inquérito, levando assim o
arguido a revelar o lugar onde escondera a navalha e o telemóvel roubado. Essa circunstância
poderia ter relevância na decisão do Tribunal?

Cotações: 1. 4 valores; 2. 2 valores; 3. 4 valores; 4. 2 valores; 5. 3 valores; 6. 3 valores; e


Apreciação Global (sistematização, síntese, clareza, fundamentação e português) 2 valores.

Nota: As respostas ininteligíveis (caligrafia pouco ou não percetível) não serão avaliadas.

2
TÓPICOS DE CORREÇÃO

Questão n.º 1

A detenção promovida pelos particulares tem fundamento legal, uma vez que: a) verifica-se
uma das situações de flagrante delito previstas no art. 256.º do CPP; b) António foi entregue na
esquadra da PSP (art. 255.º, n.º 1, al. b), e n.º 2, do CPP), que é considerada uma entidade policial;
c) e trata-se de um crime público, pelo que não existe qualquer obstáculo à sua realização ou
manutenção (art. 255.º, n.ºs 3 e 4, do CPP).
Os agentes da PSP deveriam redigir auto sumário de entrega e comunicar a detenção à
respetiva autoridade judiciária (arts. 255.º, n.º 2, e 259.º, al. b), ambos do CPP). À partida, a
detenção teria por finalidade a apresentação de António para primeiro interrogatório judicial (art.
141.º do CPP) ou para aplicação de medida de coação (cfr. art. 254.º, n.º 1, al. a), do CPP).
A legalidade da detenção determinaria, por um lado, a constituição não automática, mas
obrigatória de António como arguido (art. 58.º, n.º 1, al. c) e n.ºs 2 e 3, do CPP) e, por outro, a
aplicação da medida de coação termo de identidade e residência (TIR), nos termos dos arts. 192.º,
n.º 1, 194.º e 196.º, n.º 1, todos do CPP), o que deveria ter sido realizado, sob pena de
irregularidade (art. 118.º, n.º 2, do CPP), pelos agentes da PSP, pois são órgãos de polícia criminal
nos termos e para os efeitos previstos nos arts. 196.º, n.º 1, e 1.º, al. c), ambos do CPP.
Os agentes da PSP estariam obrigados a denunciar o crime ao MP, mas, não o tendo
presenciado, não levantariam auto de notícia (arts. 242.º, n.º 1, al. a), 243.º e 248.º, todos do CPP).

Questão n.º 2

No que se refere à medida de coação requerida pelo MP – obrigação de apresentação


periódica (art. 198.º do CPP) – e à medida de coação a impor pelo JIC ao arguido – prisão
preventiva (art. 202.º do CPP) -, verificam-se as condições gerais de aplicação das medidas de
coação, nos termos dos arts. 191.º e 192.º do CPP, a saber: aquelas medidas integram as medidas
legalmente previstas no CPP; havia processo-crime aberto; António já teria sido constituído
arguido e não haveria qualquer motivo para crer na existência de uma causa de isenção da
responsabilidade ou de extinção do procedimento. Também no que concerne aos princípios
(necessidade, adequação, proporcionalidade, subsidiariedade, judicialidade e contraditório), parece
que os mesmos poderiam estar integralmente respeitados, nos termos dos arts. 193.º e 194.º do
CPP.
Todavia, relativamente aos requisitos gerais, não existem dados que permitam concluir pelo
preenchimento das finalidades previstas no art. 204.º do CPP.

3
Por fim, quanto aos requisitos específicos, poderia concluir-se que os mesmos estavam
preenchidos, dado que está em causa a prática de crime doloso punível com pena de prisão de máximo
superior a 5 anos. Mas, no caso da prisão preventiva, teriam ainda de ser demonstrados os fortes indícios
da prática do crime em questão (correspondendo ao crivo da convicção do julgador, de acordo com
critérios objetivos e subjetivos, se houvesse de julgar naquele momento, face às provas existentes;
ou, segundo outro crivo, aqueles fortes indícios existiriam se o julgador concluísse, de acordo com
um juízo de probabilidade qualificada, que o arguido teria praticado o crime), bem como a absoluta
necessidade (ultima ratio) da medida de prisão preventiva face às finalidades exigidas pelo caso
concreto.
Quanto ao despacho do JIC, é necessário ter em linha de conta não só o facto de o arguido
não ter sido previamente submetido a qualquer interrogatório (arts. 141.º e 143.º do CPP) como
também a circunstância de não ter sido ouvido (art. 194.º, n.º 2, do CPP), pelo que o exercício do
seu direito ao contraditório, que se revelaria importante para o efetivar das garantias de defesa (arts.
32.º, n.º 5, da CRP, e 61.º, n.º 1, al. b), do CPP), teria sido coartado. Ainda sobre o mesmo
despacho, importaria apreciar a possibilidade de aplicar ao arguido medida de coação mais grave do
que a que foi requerida pelo MP, designadamente tendo em conta as alterações a esse propósito
introduzidas pela Lei n.º 20/2013, de 21 de fevereiro. À partida, essa possibilidade estaria vedada se
o fundamento para a aplicação das medidas de coação fosse o constante do art. 204.º, al. b), do CPP
(cfr. art. 194.º, n.º 3, do CPP).
Cumpriria ainda determinar se António poderia reagir ao despacho do JIC. A verificação
de que a medida de coação foi aplicada fora das condições legais viabilizaria o requerimento do
arguido (ou do MP) com vista à sua revogação (art. 212.º, n.º 1, al. a), e n.º 4, do CPP), a
impugnação judicial da decisão dirigida ao Tribunal da Relação (arts. 219.º e 427.º, ambos do CPP)
ou um pedido de habeas corpus com fundamento em prisão ilegal (art. 222.º do CPP).

Questão n.º 3

Em relação à pretensão de Bento, importa referir que, tendo o crime natureza pública, o
MP teria legitimidade para promover o correspondente processo, de acordo com o princípio da
oficialidade (art. 48.º do CPP).
Assim, se Bento pretendia sublinhar que quem desfere um golpe de navalha no pescoço da
vítima não pode deixar de representar e aceitar a produção da morte desta, o que permitiria afirmar
a existência de dolo eventual de homicídio e, consequentemente, a prática por António, em
concurso ideal com o roubo, também de uma tentativa de homicídio, teria de fazê-lo na qualidade
de assistente.

4
Bento teria legitimidade para se constituir como assistente, uma vez que é o titular do
interesse que a lei quis especialmente proteger com a incriminação, nos termos do art. 68.º, n.º 1, al.
a), do CPP (cfr. art. 210.º, n.º 1, do CP), sendo certo que o poderia fazer até 5 dias antes do
julgamento (art. 68.º, n.º 3, do CPP), mediante requerimento, representação judiciária (art. 70.º do
CPP) e pagamento da taxa de justiça (art. 519.º do CPP).
Todavia, face à concreta pretensão, verifica-se que o recurso ao requerimento para abertura
de instrução estaria inviabilizado por inadmissibilidade legal, tendo em conta que não foram
invocados factos novos por Bento que representem uma alteração substancial (arts. 287.º, n.º 1, al.
b), e 1.º, al. f), ambos do CPP), estando em causa uma mera alteração da qualificação jurídica: o
entender que quem desfere um golpe de navalha no pescoço da vítima não pode deixar de
representar e aceitar a produção da morte desta, o que permitiria afirmar a existência de dolo
eventual de homicídio e, consequentemente, a prática por António, em concurso ideal com o
roubo, também de uma tentativa de homicídio. Deste modo, sendo o meio adequado a dedução de
uma acusação subordinada à acusação pública do MP e não o requerimento para abertura de
instrução, o prazo para Bento a deduzir seria de 10 dias (arts. 68.º, n.º 3, al. b), e 284.º, ambos do
CPP).

Questão n.º 4

O objeto do processo foi definido na acusação deduzida pelo MP e correspondia à prática de um


crime de roubo, previsto e punido no art. 210.º, n.º 1, do CP.
A decisão instrutória nunca poderá, sob pena de nulidade, implicar uma alteração substancial de
factos em relação ao que se encontra descrito na acusação do MP (ou do assistente) ou no requerimento
para abertura da instrução (arts. 303.º e 309.º, ambos do CPP).
No caso em apreço, uma decisão instrutória que pronunciasse António apenas pela prática de um
crime de roubo, previsto e punido no art. 210.º, n.º 1, do CP, não implicaria uma alteração substancial dos
factos, uma vez que, face ao que constava da acusação do MP, não incluiria qualquer facto novo,
independente ou não do objeto do processo e que tivesse por efeito, quer a imputação de crime diverso,
quer o agravamento do limite máximo da sanção aplicável (cfr. art. 1.º, al. f), do CPP).
A decisão instrutória que pronunciasse o arguido pelos mesmos factos descritos na acusação do
MP seria por isso válida (cfr. art. 309.º, n.º 1, do CPP). Contudo, tal decisão seria irrecorrível, pois,
embora vigore entre nós o princípio geral da recorribilidade das decisões judiciais (art. 399.º do CPP), in
casu estaríamos perante uma situação de dupla conforme, que tornaria a decisão instrutória irrecorrível, ex
vi art. 310.º, n.º 1, do CPP.

5
Questão n.º 5

O MP havia proferido despacho de acusação contra António pela prática de um crime de


roubo, previsto e punido no art. 210.º, n.º 1, do CP.
Durante a audiência de discussão e julgamento, descobriu-se um facto novo: a
circunstância de a fala de Bento ter ficado permanentemente afetada por causa da agressão
perpetrada por António. Neste caso, estaríamos perante uma alteração de factos em sentido
próprio e caberia qualificá-la como substancial, nos termos do art. 1.º, al. f), do CPP, por importar o
agravamento do limite máximo das sanções aplicáveis (arts. 210.º, n.º 2, al. a), e 144.º, al. b), ambos
do CP).
Os factos novos seriam não autonomizáveis, na medida em que não poderiam ser
destacados do processo penal em curso e integrar o objeto de um processo penal autónomo, sem
violação do princípio ne bis in idem, consagrado no art. 29.º, n.º 5, da CRP. Os novos factos só
poderiam ser conhecidos no processo em curso, se houvesse acordo do MP, arguido e assistente
nesse sentido, nos termos do art. 359.º, n.º 3, do CPP.
Se o Tribunal condenasse António pelo crime de roubo agravado cometido contra Bento,
sem o referido acordo dos sujeitos processuais, a decisão seria nula, segundo o art. 379.º, n.º 1, al.
b), do CPP, sendo uma nulidade sanável cuja arguição deveria ter lugar por via de recurso ordinário,
perante o Tribunal superior, no prazo de 30 dias (arts. 399.º, 410.º, n.º 1, e 411.º, n.º 1, todos do
CPP).

Questão n.º 6

Está em causa problema atinente à prova.


As declarações do arguido constituem um meio de prova (arts. 140.º e seguintes, do CPP),
uma vez que, através delas, se pode fazer prova, tal como, de resto, o MP pretendia fazer em
julgamento (art. 340.º do CPP). Sucede que «as provas obtidas mediante tortura, coação ou, em geral, ofensa
da integridade física ou moral das pessoas» são nulas, não podendo ser utilizadas, considerando-se
«ofensivas da integridade física ou moral das pessoas as provas obtidas, mesmo que com consentimento delas, mediante
(…) perturbação da liberdade de vontade ou de decisão através de maus-tratos, ofensas corporais, administração de
meios de qualquer natureza, hipnose ou utilização de meios cruéis ou enganosos» (art. 126.º, n.ºs 1 e 2, al. a), do
CPP).
Ora, in casu, verifica-se que António foi agredido no interrogatório que os agentes da PSP
efetuaram no inquérito, o que determina a nulidade da prova obtida, nomeadamente a revelação por
parte do arguido do lugar onde escondera a navalha e o telemóvel roubado, bem como das
diligências realizadas na sequência do mesmo interrogatório.

6
Com efeito, as nulidades inerentes a proibições de prova constituem nulidades sui generis,
que não se reconduzem nem às nulidades insanáveis do art. 119.º nem às nulidades dependentes de
arguição do art. 120.º, conforme resulta dos arts. 32.º, n.º 8, da CRP e 118.º, n.º 3, do CPP. Deste
modo, as declarações do arguido, obtidas mediante ofensa da sua integridade física, não poderiam
ser utilizadas nem valoradas, devendo ser desentranhadas dos autos e não podendo ser repetidas.
Outra característica importante desta nulidade é o chamado efeito-à-distância das provas proibidas,
correspondente à teoria anglo-saxónica dos frutos da árvore envenenada (fruit of the poisonous tree
doctrine) e à sua congénere germânica da teoria da nódoa (Makel-Theorie), implicando a inutilização
das provas secundárias que com aquelas mantenham um nexo relevante (art. 32.º, n.º 8, da CRP, e
art. 122.º, n.º 1, do CPP). O efeito-à-distância das proibições de prova conhece, no entanto,
excepções. Por exemplo, essas provas secundárias poderão ser utilizadas e valoradas, se pudessem
ter vindo a ser obtidas diretamente, mesmo na falta da prova nula, através de um comportamento
lícito alternativo. Semelhante é, nos tribunais americanos, a solução decorrente da teoria da
descoberta inevitável (inevitable discovery). Acresce que esta nulidade poderia ser arguida mesmo
depois do trânsito em julgado da decisão condenatória, em recurso extraordinário de revisão (art.
449.º, n.º 1, al. e), do CPP).
As provas proibidas apenas podem ser utilizadas para proceder criminalmente contra quem
recorreu às mesmas, nos termos do art. 126.º, n.º 4, do CPP, ou seja, no caso os agentes da PSP
que interrogaram António no inquérito.

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