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A14 | Valor | Sexta, sábado, domingo e segunda-feira, 21, 22, 23 e 24 de abril de 2023

Especial
LÉO PINHEIRO/VALOR

Políticas públicas Pedro Pinchas Geiger


e Fany Davidovich são referência na área

Longevidade
e IBGE unem
geógrafos
centenários
Lucianne Carneiro ga carreira, aparecem estudos so-
Do Rio bre a industrialização na Grande
São Paulo, o avanço da urbaniza-
Dois geógrafos unidos pela lon- ção na Baixada Fluminense e uma
gevidade e pelo trabalho no Insti- divisão geoeconômica do Brasil
tuto Brasileiro de Geografia e Esta- em três regiões: Amazônia, Nor-
tística (IBGE): Pedro Pinchas Gei- deste e Centro-Sul. O modelo re-
ger e Fany Davidovich estão com lacionava a forma de organização
100 anos e somam mais de sete dé- do território e o desenvolvimento
cadas de trabalho na instituição. do país, deixando para trás divi-
Os dois eram filhos de imigrantes e sões que levavam em considera-
foram colegas de faculdade no ção apenas fatores físicos.
curso de geografia e história na en- Desenvolvida no fim dos anos
tão Universidade do Brasil (hoje a 60, a divisão ainda é atual hoje, di-
Universidade Federal do Rio de Ja- zem acadêmicos como a professo-
neiro, a UFRJ). A proximidade é ra do Instituto de Geografia da
tanta que moram até no mesmo Universidade do Estado do Rio de
prédio, localizado no bairro do Janeiro (Uerj) Mônica Machado e o
Flamengo, na zona sul do Rio. A professor aposentado da Universi-
compra, cada um de seu aparta- dade Federal do Rio de Janeiro
mento, foi ao lado de outros ami- (UFRJ) Claudio Egler, também in-
gos da comunidade judaica na tegrante da Comissão Consultiva
época da construção. do Censo Demográfico 2022. Pedro Geiger: um de seus orgulhos é o livro “Evolução da rede urbana brasileira”, considerado por especialistas um clássico no campo da geografia urbana
Geiger, que comemorou o cen- “A divisão regional criada por
tenário em 1 o de março, chegou Geiger nos anos 60 explica até hoje de Lima, analisa a expansão acele- nomia e a política se correlacio-
ao IBGE em 1942, apenas seis anos um pouco da dinâmica brasileira, Complexos regionais brasileiros rada das aglomerações urbanas, nam. É um pensamento que pro-
depois da criação do instituto e que apresenta o país a partir do Divisão por regiões geoeconômicas foi criada por Geiger em 1964 com base no Censo Demográfico cura explicar e apresentar a confi-
antes mesmo de se formar. Ele Centro-Sul, com São Paulo no cen- de 1970. No texto, defendia que o guração espacial no seu conteúdo
conta que foi o primeiro geógrafo tro, uma Amazônia de base mais planejamento deveria levar em e no seu movimento. Ele é moder-
do IBGE, levado pelo francês Fran- natural e o Nordeste. É claro que o consideração a interdependência no, com uma visão muito aberta,
cis Ruellan, seu professor na facul- Nordeste está diferente, a Amazô- das aglomerações urbanas, em não fica no passado”, diz ela.
dade. Ruellan teve papel impor- nia também, mas a força do Centro particular na escala regional. Adma Hamam de Figueiredo
tante também na formação de Da- é muito grande em termos econô- Depois do IBGE, foi pesquisa- classifica Geiger como “um intér-
vidovich. A aposentadoria veio 42 micos e políticos”, diz Machado, dora do Programa de Pós-gra- prete do seu tempo”, acompa-
anos depois, em 1984. que levou Geiger para dar aulas na duação em Planejamento Urba- nhando as mudanças de um Brasil
No instituto, Geiger participou Uerj até 2015. “Os alunos queriam no e Regional do Instituto de Pes- eminentemente agrário que foi se
de estudos de destaque nas áreas tirar foto com ele porque era o quisa e Planejamento Urbano transformando ao longo das déca-
de geografia humana e urbana. criador da divisão regional que es- (IPPUR) da UFRJ, entre 1998 e das em um país industrial.
Principalmente na fase inicial tudaram nos livros didáticos. Gei- 2004, onde colaborou com o Ob- “Ele pegou um país na década
percorreu o país em expedições ger se renovou com essa geração.” servatório das Metrópoles. de 40 e acompanhou pelo IBGE
territoriais para levantar dados e até a década de 80. Soube absor-
elaborar mapas, como a primeira ver e colocar a geografia na in-

“ “
delas, nos anos 40, ao Jalapão. Acompanhei a Complexo regional
O Brasil tem terpretação do país e fazer pro-
“Acompanhei o processo de evo- evolução do da Amazônia jeito. [...] É um postas”, nota.
lução do Brasil, a industrialização, Um dos orgulhos de Geiger é o
a urbanização... Conheço cada pe-
Brasil, a Complexo regional grande país, fora seu livro “Evolução da rede urbana
do Centro-Sul
dacinho do país”, conta ele, que industrialização, da área de brasileira”, considerado por espe-
continua acompanhando o que a urbanização... Complexo regional
do Nordeste conflitos cialistas um clássico no campo da
acontece no Brasil e inclusive vo- geografia urbana. Na obra, ele
tou na última eleição presidencial.
Conheço cada mundiais. É classifica as cidades brasileiras, ca-
Daquela primeira expedição pedacinho do uma grande racteriza as metrópoles nacionais
ao Jalapão, lembra do receio de país” Fonte: GEIGER, Pedro Pinchas. Organização regional do Brasil, na Revista Geográfica
vantagem” e delimita as hierarquias urbanas e
se perder do resto da equipe, for- as redes da cidade. Hoje, se tivesse
mada também por engenheiros, que reescrever a obra, diz que da-
topógrafos e profissionais de Um pouco mais velha, com até 1992, quando se aposentou. geografia, com especialização no Geiger também exerceu ativida- ria um outro título, que desse mais
geodésia. Por indicação de Ruel- 100 anos completados em 9 ou- “Minha mãe tinha o entusiasmo estudo das áreas metropolitanas. des em órgãos de planejamento destaque às relações humanas.
lan, levou alguns aparelhos, co- tubro, Fany Davidovich chegou de quem estava descobrindo uma Permaneceu até um período mais após a aposentadoria e intensifi- “Esse livro trata da evolução das
mo um barômetro (para medir a ao IBGE em 1960 e ali permane- nova utilização da geografia, para recente que o do Geiger no IBGE e cou a participação em debates e cidades. Hoje não usaria mais essa
pressão atmosférica), uma bús- ceu até 1992, quando se aposen- estudar urbanização. Foram traba- depois avançou em pesquisas”, diz trabalhos como professor. Antes, expressão. Se fosse reescrever, seria
sola e um podômetro (para me- tou. Sua área de estudos foi a geo- lhos revolucionários, de descober- Adma Hamam de Figueiredo, que havia lecionado como professor vi- a rede das relações sociais do urba-
dir a distância percorrida). grafia urbana, especialmente o tas, e ela se animava muito com is- é gerente de Atlas e Representação sitante na Universidade Columbia, no. A rede é das relações, as cidades
“A gente fazia isso de cima de avanço das metrópoles. so”, revela o filho, que é professor Territorial no IBGE e conviveu com nos Estados Unidos, na Universi- são inertes. O que está em funcio-
um burro, que mexia muito. Quan- Com perfil mais fechado e dis- do Instituto de Física da UFRJ. ambos os geógrafos no instituto. dade de Paris, na França, e na Uni- namento são as atividades huma-
do mudava de direção, precisava creto ao longo da vida, Davidovi- No começo de sua passagem pe- Em entrevistas concedidas no versidade de Toronto, no Canadá, nas, que criam as cidades”, conta.
parar um pouco o burro [para o ch está com a saúde debilitada e lo IBGE, nos anos 60, Davidovich passado, Davidovich falou de co- nos anos 60 e 70. A despeito dos 100 anos re-
aparelho voltar a medir]. Os outros preferiu não dar depoimento foi parte do Grupo de Geografia mo “questões urbanas ocuparam No período pós-IBGE, o geó- cém-completos, Geiger continua
da equipe não paravam e ficavam nem ser fotografada pelo Valor. das Indústrias. Ao longo da carrei- lugar central na sua produção in- grafo — que chegou a coordenar com projetos novos e planos de
cada vez mais longe. Fiquei com Seu filho, Luiz Davidovich, lem- ra, se destacou pelos estudos sobre telectual” e também do fato de seu o Departamento de Geografia do estudo. Ele joga xadrez pelo com-
pavor de me ver perdido naquele bra o entusiasmo da mãe com o aglomerações urbanas e metrópo- trabalho ter “orientação para o en- instituto — também reforçou a putador, com jogadores de ou-
lugar. Eram trilhas, não havia es- trabalho. Ela parou de trabalhar les. Já nos anos 70 defendia a ne- saio acadêmico”. “Fany se caracte- característica do conhecimento tras partes do mundo, faz diaria-
tradas nem automóveis. Mas vi que como geógrafa no nascimento cessidade de planejamento para rizou pelo enfoque interpretativo amplo e além da geografia, mente sudoku (jogo de lógica
o burro sabia o caminho e fiquei do filho e voltou em 1956, quan- ordenar a expansão urbana, levan- com viés político em seus traba- apontam relatos. com números) e está escrevendo
mais sossegado”, conta Geiger. do ele tinha dez anos. do em consideração a interdepen- lhos”, escreveu Ciro Marques Reis, “Ele sempre foi uma pessoa cul- dois livros, com computador e
A outra lembrança do Jalapão A retomada foi curiosa, conta dência das aglomerações urbanas. pesquisador do Grupo de Pesquisa ta, que construiu visões de mundo também à mão. Um deles é uma
veio de sua mulher, a artista Anna ele: uma amiga a inscreveu, sem E ela não foi a única geógrafa Geografia Brasileira: História e Po- através de conhecimento de várias releitura do Antigo Testamento e
Bella Geiger, de 90 anos, durante avisar, no XVIII Congresso da de destaque da família. Sua irmã lítica (GeoBrasil), no livro “Dicio- áreas. Uma visão mais abrangente, o outro é um debate sobre o mun-
a conversa: ele caiu com o burro União Geográfica Internacional, mais nova, Bertha Koiffmann Be- nário dos Geógrafos Brasileiros”. que se perdeu um pouco nas gera- do e o Brasil na atualidade. “Que-
em uma areia movediça. “Conse- realizado em agosto de 1956, no cker, nascida em 1930 e que vi- Nos estudos publicados nos ções atuais”, afirma Claudio Egler. ro publicar ainda este ano”, diz.
gui me segurar nas plantas e tirei Rio. Foi esse congresso, lembra veu até 2013, foi uma das geógra- anos 70 sobre as aglomerações ur- Mônica Machado vê em Geiger Neste contexto, define-se como
o corpo para fora”, diz. Em 2019, o Egler, que ajudou a dar visibilida- fas mais reconhecidas no Brasil banas, já defendia a necessidade “um pensamento sem limites otimista, diz que o Brasil “tem jei-
trabalho foi relançado no livro de à geografia brasileira e ao IBGE pelo pioneirismo no estudo na de planejamento urbano para or- disciplinares”, com rica forma- to” e destaca sua localização. “O
“Jalapão: ontem e hoje”, que in- no cenário internacional. Quatro área ambiental e da expansão da denar e planejar a expansão. O ar- ção cultural e a união de diferen- Brasil tem jeito. [...] É um grande
clui o relatório da expedição. anos depois, em 1960, Davidovi- fronteira agropecuária, princi- tigo “Contribuição ao Estudo de tes áreas de conhecimento. país, fora da área de conflitos mun-
Para além desse projeto, entre ch começou o trabalho no IBGE, palmente na Amazônia. Aglomerações Urbanas no Brasil”, “Ele sempre teve essa visão inte- diais, não tem guerra. É uma gran-
os trabalhos de destaque da lon- onde permaneceu por 32 anos, “A Fany foi muito atuante na escrito com Olga Maria Buarque gradora, em que a cultura, a eco- de vantagem”, afirma.

Dupla alertou 50 anos atrás sobre risco de ocupação do litoral


Do Rio após ocupações desordenadas litoral norte de São Paulo. quele trecho deveria “servir de agora no litoral norte de São clive do litoral brasileiro.
do solo, que provocaram deze- Naquele momento, classifica- oportunidade para um planeja- Paulo”, afirma Adma Hamam de “O trabalho do Geiger e da Fa-
Há quase 50 anos, em 1974, nas de mortes e perdas de casas. ram como tardia a construção da mento racional de ocupação do Figueiredo, gerente de Atlas e ny dizia que era preciso ordenar
Pedro Geiger e Fany Davidovich Os dois geógrafos são os auto- Rio-Santos — que uniu os dois solo, prevendo a divisão de usos e a Representação Territorial no Ins- essa ocupação, que ainda dava
escreveram juntos sobre litorali- res do artigo “Reflexões sobre a maiores portos do país — e men- preservação ambiental”. tituto Brasileiro de Geografia e tempo para ordenar. Esse artigo
zação e interiorização do Brasil e evolução da estrutura espacial cionaram a ocupação nas chama- “Esse trabalho falava que o de- Estatística (IBGE). mostra o pioneirismo dos dois.
já alertavam para a ocupação do do Brasil sob o efeito da indus- das fachadas costeiras e a tendên- senvolvimento de eixos de trans- Ela, que trabalha desde 1973 no Essa questão só foi retomada nos
litoral entre o Rio de Janeiro e a trialização”, publicado na Revista cia de desenvolvimento de movi- portes viários tinha que ser mui- IBGE e conviveu tanto com Geiger anos 2000, quando a área de pla-
cidade de Santos (SP). Foi no li- Brasileira de Geografia. mento contínuo de extensão da to bem feito porque ia começar quanto com Davidovich no insti- nejamento do governo voltou a
toral norte de São Paulo que Eles tratam do fenômeno da ocupação a partir dos núcleos a ocupação desse litoral, defen- tuto, destaca como o artigo cha- falar sobre interiorização e lito-
ocorreu uma tragédia, no início litoralização e do desenvolvi- principais, mais estruturados. dia estudo preventivo do uso do mava atenção para as situações ralização. Eles foram precursores
de 2023, por causa de fortes mento de áreas balneárias e de No texto, defendem que a circu- solo e de preservação ambiental. que iam ocorrer tanto na serra do em vários momentos e em vários
chuvas e deslizamentos de terra turismo nesses locais, como no lação terrestre mais intensa na- E a gente vê o que aconteceu Mar quanto em outras áreas de de- temas”, diz Figueiredo. (LC)

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