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ARTIGO Recebido: 12/08/2021

DE OPINIÃO Aceito: 13/12/2021

Avaliação dos trabalhadores com


fibromialgia: o que os médicos do
trabalho devem saber?
Assessing workers with fibromyalgia: what should
occupational physicians know?
Rafael Alves Cordeiro1

RESUMO | A fibromialgia é uma síndrome dolorosa crônica, de etiopatogenia multifatorial complexa, que acomete com maior
frequência mulheres. Embora a dor difusa seja o quadro dominante, a fibromialgia incorpora uma ampla variedade de sintomas,
como fadiga, sono não reparador, queixas cognitivas e distúrbios de humor. A sensibilização central à dor é um elemento-chave
no entendimento da fisiopatologia dessa síndrome. Por ser prevalente e ter reflexos na qualidade de vida e na produtividade no
trabalho, a fibromialgia é uma condição recorrente em ambulatórios de saúde ocupacional. Nesse sentido, é importante que o
médico do trabalho esteja atento aos sintomas da síndrome para que possa contribuir com seu diagnóstico e manejo. Neste artigo,
serão abordados tópicos fundamentais para a compreensão da fibromialgia, incluindo epidemiologia, fatores predisponentes,
considerações sobre a fisiopatologia, manifestações clínicas, critérios classificatórios, diagnósticos diferenciais, princípios básicos do
tratamento e contribuições do médico do trabalho.
Palavras-chave | fibromialgia; dor crônica; sensibilização do sistema nervoso central; medicina do trabalho; saúde do
trabalhador.

ABSTRACT | Fibromyalgia is a chronic pain syndrome with a complex multifactorial etiopathogenesis that more frequently
affects women. Although widespread pain is the dominant feature, fibromyalgia incorporates a wide variety of symptoms, such as
fatigue, unrefreshed sleep, and cognitive and mood disorders. Central sensitization to pain is a key element in the pathophysiology
of this syndrome. Due to its prevalence and repercussions on quality of life and work productivity, fibromyalgia is a common
condition in occupational medicine outpatient clinics. Thus, physicians must be attentive to its symptoms to facilitate diagnosis
and management. This article will address basic topics about fibromyalgia, including: epidemiology, predisposing factors,
pathophysiological considerations, clinical manifestations, classification criteria, differential diagnosis, basic principles of treatment,
and the contribution of occupational physicians.
Keywords | fibromyalgia; chronic pain; central nervous system sensitization; occupational medicine; occupational health.

1
Serviço de Reumatologia, Hospital das Clínicas, Faculdade de Medicina, Universidade de São Paulo, São Paulo, Brasil.
Fonte de financiamento: Nenhuma
Conflitos de interesse: Nenhum
Como citar: Cordeiro RA. Assessing workers with fibromyalgia: what should occupational physicians know? Rev Bras Med Trab. 2023;21(2):e2022870.
http://doi.org/10.47626/1679-4435-2022-870

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Cordeiro RA

INTRODUÇÃO socioeconômicos. A literatura sugere que a maior


incidência encontra-se entre mulheres de 30 a 50 anos e
A fibromialgia é uma síndrome dolorosa crônica que a prevalência aumenta com a idade5.
comum na prática clínica. É caracterizada pela presença de A prevalência de indivíduos na população geral com
dor crônica (> 3 meses), generalizada e, frequentemente, sintomas compatíveis com fibromialgia costuma variar
associada a fadiga, sono não reparador, queixas cognitivas entre 2 e 4% na maioria dos estudos3. No Brasil, um estudo
e alterações de humor1,2. que estimou a prevalência de doenças reumáticas em
Esse distúrbio possui etiopatogenia multifatorial residentes de Montes Claros, no estado de Minas Gerais,
complexa. A principal teoria baseia-se na ocorrência de utilizando o questionário Community Oriented Program
disfunção do processamento de dor no sistema nervoso for Control of Rheumatic Diseases (COPCORD),
central, levando à percepção dolorosa amplificada1,2. encontrou uma prevalência de fibromialgia de 2,5%6.
A prevalência de indivíduos na população geral A fibromialgia afeta predominantemente o sexo
com sintomas compatíveis com fibromialgia costuma feminino. Contudo, a prevalência da síndrome e a
variar entre 2 e 4% na maioria dos estudos3. Contudo, a proporção entre mulheres e homens variam conforme
prevalência e a proporção entre os sexos variam conforme o critério classificatório utilizado. Os critérios de
o critério classificatório utilizado4. classificação para fibromialgia do American College of
De qualquer maneira, sabe-se que a condição é comum, Rheumatology (ACR) de 1990 são baseados na presença
atinge mais frequentemente as mulheres e, não raramente, de dor crônica generalizada associada à palpação digital
está presente nos ambulatórios de saúde ocupacional
dolorosa de pelo menos 11 de 18 tender points7. A partir
em decorrência das múltiplas queixas, presenteísmo e
de 2010, foram propostos novos critérios, que não
absenteísmo no trabalho.
incorporaram a contagem dos tender points8-10.
O desafio para o médico do trabalho é suspeitar da
Um estudo que comparou grupos de pessoas
síndrome para que o diagnóstico seja estabelecido quando
identificadas como fibromiálgicas a partir de diferentes
apropriado. Dessa maneira, é possível instituir o tratamento
adequado e reduzir a realização de exames e procedimentos critérios do ACR identificou uma proporção aproximada
onerosos e desnecessários. Além disso, o médico do de 13 mulheres para cada homem com o critério ACR
trabalho pode assumir um papel importante no manejo dos de 1990. Entretanto, quando os critérios utilizados não
pacientes fibromiálgicos durante os exames ocupacionais requeriam o exame físico com a avaliação dos tender points
periódicos ou durante a procura por ambulatórios de (ACR 2010 e ACR 2010 modificado), a discrepância entre
saúde ocupacional. Nesses contextos, as orientações devem os sexos diminuiu consideravelmente4.
enfatizar questões como educação em saúde, prática regular Outra questão relevante é que, embora seja mais
de atividade física, higiene do sono, perda de peso quando prevalente e estudada em mulheres adultas, a fibromialgia
pertinente, aderência ao tratamento farmacológico e não pode estar presente em homens, em adolescentes e até
farmacológico e permanência no mercado de trabalho. mesmo em crianças11.
Neste artigo, serão abordados tópicos fundamentais
para a compreensão da fibromialgia, incluindo
epidemiologia, fatores predisponentes, considerações FATORES PREDISPONENTES
sobre a fisiopatologia, manifestações clínicas, critérios
classificatórios, diagnósticos diferenciais, princípios básicos São descritos potenciais fatores que predispõem ao
do tratamento e contribuições do médico do trabalho. desenvolvimento da fibromialgia. Entre eles, destacam-se
obesidade e sedentarismo, baixo nível socioeconômico,
distúrbios do sono, história de abuso físico ou sexual
EPIDEMIOLOGIA e doenças geradoras de dor periférica como artrite
reumatoide, lúpus eritematoso sistêmico e espondilite
A fibromialgia é um distúrbio comum, possui anquilosante. Contudo, a fibromialgia pode estar presente
distribuição mundial e acomete todas as etnias e grupos em indivíduos sem nenhum fator de risco aparente1.

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Além das questões citadas, existem indícios da frequentemente acompanhada por outras queixas como
participação de fatores genéticos no surgimento da fadiga, sono não reparador e distúrbios cognitivos
fibromialgia. Destaca-se a demonstração de agregação (concentração, memória e raciocínio) e de humor
familiar de casos, com maior propensão para a fibromialgia (ansiedade e depressão)1,2.
em parentes de primeiro grau de indivíduos acometidos Os pacientes fibromiálgicos podem ainda apresentar
e a identificação de polimorfismos do gene da enzima uma variedade de sintomas adicionais como parestesias,
catecol-O-metiltransferase e de genes relacionados aos sensação subjetiva de edema de extremidades, tonturas,
transportadores e receptores de neurotransmissores em cefaleias frequentes (tensionais e/ou enxaquecosas),
fibromiálgicos12,13. palpitações, fraqueza subjetiva, dor pélvica crônica,
sintomas vesicais, sintomas dispépticos, sintomas de
síndrome do intestino irritável, disfunção das articulações
CONSIDERAÇÕES SOBRE A
temporomandibulares, entre outros1,2,8.
FISIOPATOLOGIA
Não há uma causa isolada que explique o surgimento da
fibromialgia. Apesar de todos os detalhes da fisiopatologia DIAGNÓSTICO E CRITÉRIOS
da fibromialgia ainda não serem conhecidos, muitos CLASSIFICATÓRIOS
progressos em relação ao entendimento dessa síndrome
foram alcançados nas últimas décadas14. O diagnóstico da fibromialgia é eminentemente clínico.
De maneira geral, o distúrbio de regulação/ A presença da dor difusa é fundamental na suspeita da
processamento da dor que ocorre nos pacientes síndrome. Os distúrbios do sono, as alterações de cognição e
fibromiálgicos conduz à sensibilização central à dor, a fadiga devem ser considerados não só no diagnóstico, mas
responsável pela amplificação e perpetuação da percepção também na avaliação da gravidade dos pacientes17. Variáveis
dolorosa. psíquicas como depressão e ansiedade estão associadas a
Entre as alterações já descritas em pacientes com menor capacidade funcional e percepção de maior gravidade
fibromialgia, podem ser citadas as seguintes: (1) de doença; devem, portanto, ser ativamente questionadas
hiperexcitabilidade de vias nociceptivas (facilitação das e consideradas nas intervenções terapêuticas18. Diante da
aferências dolorosas) com aumento de substância P inexistência de marcador laboratorial ou exame de imagem
(neuropeptídeo associado à dor crônica), bem como de característico, o diagnóstico da fibromialgia é baseado no
fator de crescimento neural e glutamato; (2) disfunção das julgamento clínico, considerando também os diagnósticos
vias descendentes de inibição da dor (resposta analgésica diferenciais na avaliação17.
endógena), com redução de neurotransmissores Os critérios de classificação são elaborados para serem
antinociceptivos como noradrenalina, serotonina, utilizados em estudos clínicos e epidemiológicos de
dopamina e ácido gama-aminobutírico (GABA); (3) modo a garantir a uniformidade dos pacientes incluídos
maior ativação do córtex somatossensorial, córtex
nesses estudos. Entretanto, sabe-se que os critérios
cingulado anterior e ínsula (áreas relacionadas à percepção
de classificação são frequentemente extrapolados
da dor), demonstrada por ressonância magnética
para a prática clínica, apesar de não se destinarem
funcional; e (4) alterações no eixo hipotálamo-hipófise-
especificamente ao diagnóstico do paciente, que deve ser
adrenal e no sistema nervoso autônomo (maiores níveis de
de responsabilidade do médico avaliador19.
cortisol plasmático em comparação a controles saudáveis
e parâmetros indicativos de hiperatividade simpática)14-16. Em 1990, o ACR publicou os critérios classificatórios
iniciais para fibromialgia (Quadro 1)7. Conforme esses
critérios, para ser classificado como fibromiálgico, o
MANIFESTAÇÕES CLÍNICAS indivíduo teria que apresentar dor crônica generalizada
(definida como dor acima e abaixo da cintura, dos lados
A principal característica da fibromialgia é a dor direito e esquerdo do corpo e no esqueleto axial por,
generalizada presente por, no mínimo, 3 meses e pelo menos, 3 meses) associada à palpação dolorosa de,

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no mínimo, 11 de 18 tender points (Figura 1)7. Apesar de pelo índice de dor generalizada e incluíram a escala de
terem contribuído para a uniformização dos pacientes gravidade dos sintomas, valorizando outras queixas
para a inclusão nos estudos sobre fibromialgia, esses frequentes na fibromialgia além da dor difusa (Quadros
critérios foram criticados devido à ênfase na dor difusa, 2 e 3). Finalmente, em 2016, foi publicada uma revisão
sem considerar a fadiga, os distúrbios do sono e outros dos critérios ACR 2010/2011, acrescentando ligeiras
sintomas somáticos frequentes na síndrome. Além disso, alterações10 (Quadro 4).
críticas eram direcionadas à obrigatoriedade da avaliação Para a prática clínica, em vez de memorizar os
dos tender points, uma vez que muitos profissionais de diferentes critérios classificatórios já elaborados, é mais
saúde não tinham treinamento adequado ou experiência importante que o médico do trabalho esteja atento
para reconhecê-los17. para características da dor (difusa e crônica); sintomas
Em 2010, o ACR desenvolveu novos critérios8, que associados (fadiga, alterações do sono, cognição, humor,
foram posteriormente modificados em 20119. Esses entre outros); e possíveis diagnósticos diferenciais e
critérios substituíram a avaliação dos tender points coexistentes (avaliação clínica minuciosa).

Quadro 1. Critérios classificatórios para fibromialgia – American College of Rheumatology (ACR), 19907

Para fins de classificação, os pacientes terão fibromialgia se ambos os critérios forem atendidos:

1. História de dor generalizada (presente há pelo menos 3 meses)


2. Dor à palpação digital de pelo menos 11 dos 18 tender points.
A palpação digital deve ser realizada com uma força aproximada de 4 kg.

A presença de um segundo distúrbio clínico não exclui o diagnóstico de fibromialgia.

1
1. Occipital: inserção dos músculos suboccipitais.
2 3
2. Cervical baixa: anteriormente, entre os processos
5 4 transversos de C5 e C7.
3. Trapézio: ponto médio da borda superior do trapézio.

6 4. Supraespinhal: origem do músculo supraespinhal,


acima da espinha da escápula, próximo da borda
7 medial.
5. Segunda articulação costocondral: lateral e
8 superiormente à articulação.
6. Epicôndilo lateral: 2 cm distalmente ao epicôndilo.
9 7. Glúteo: quadrante superior e laterial dos glúteos.
8. Trocânter maior: posteriormente à proeminência
trocantérica.
9. Joelho: coxim gorduroso medial, proximal à interlinha
articular.

Figura 1. Localização dos tender points conforme os critérios classificatórios do American College of Rheumatology (ACR),
1990.

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DIAGNÓSTICOS DIFERENCIAIS Geralmente, numerosos exames de laboratório e/ou de


imagem não são necessários. Outra questão a ser considerada
A maior parte dos diagnósticos diferenciais pode ser é que a fibromialgia pode coexistir com diversos diagnósticos,
descartada a partir de história clínica e exame físico detalhado. incluindo outras condições provocadoras de dor crônica.

Quadro 2. Índice de dor generalizada (IDG)9

Assinale as áreas onde você sentiu dor na última semana:

Local Sim Não Local Sim Não

Mandíbula direita Mandíbula esquerda


Ombro direito Ombro esquerdo
Braço direito Braço esquerdo
Antebraço direito Antebraço esquerdo
Quadril direito Quadril esquerdo
Coxa direita Coxa esquerda
Perna direita Perna esquerda
Coluna cervical Coluna dorsal
Tórax anterior Coluna lombar
Abdome
O resultado será a soma dos itens assinalados (0 a 19).

Quadro 3. Escala de gravidade dos sintomas (EGS)9

Assinale o número correspondente à intensidade dos sintomas que você sentiu na última semana:

Fadiga (cansaço ao Não sentiu Sentiu em nível leve Sentiu em nível Sentiu em nível grave
realizar as atividades) 0 1 moderado 3
2
Sono não reparador Não sentiu Sentiu em nível leve Sentiu em nível Sentiu em nível grave
(acordar cansado) 0 1 moderado 3
2
Sintomas cognitivos Não sentiu Sentiu em nível leve Sentiu em nível Sentiu em nível grave
(dificuldade de memória 0 1 moderado 3
e concentração) 2

Assinale o número correspondente à quantidade dos sintomas que você sentiu nos últimos 6 meses:

Cefaleia, Nenhum desses sintomas Um desses sintomas Dois desses sintomas Três desses sintomas
dor abdominal, depressão presente presente presentes presentes
0 1 2 3
O resultado será a soma dos níveis assinalados (0 a 12).

Quadro 4. Revisão dos critérios do American College of Rheumatology (ACR), 201610

O paciente satisfaz os critérios de fibromialgia modificados (2016) se as três primeiras condições forem atendidas:

1. Presença de dor generalizada, definida como dor em pelo menos quatro de cinco regiões (axial, superior direita, superior esquerda, inferior
direita e inferior esquerda).
2. Os sintomas devem estar presentes em um nível semelhante há pelo menos 3 meses.
3. IDG ≥ 7 e EGS ≥ 5 ou IDG de 4-6 e EGS ≥ 9.
4. O diagnóstico de fibromialgia é válido independentemente de outros diagnósticos. O diagnóstico de fibromialgia não exclui a presença de
outras doenças clinicamente significativas.
EGS = escala de gravidade dos sintomas; IDG = índice de dor generalizada.

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Nesse sentido, é válido que o médico do trabalho tenha um farmacológicas quanto farmacológicas1. Os principais
colega reumatologista para referenciar e discutir os casos objetivos do tratamento da síndrome da fibromialgia são
quando tiver dúvida quanto aos diagnósticos diferenciais ou (1) minimizar a dor e atenuar os sintomas associados; (2)
concomitantes. melhorar a qualidade de vida; (3) promover hábitos de
Entre os diagnósticos diferenciais, podem ser citados vida saudáveis; e (4) manter o indivíduo produtivo e no
os seguintes: (1) doenças reumáticas autoimunes (artrite mercado de trabalho.
reumatoide, lúpus eritematoso sistêmico, síndrome de Conforme as recomendações revisadas para o manejo
Sjögren, espondiloartrites e polimialgia reumática); (2) da fibromialgia da European Alliance of Associations
miopatias (inflamatórias, metabólicas ou por estatinas); (3) for Rheumatology (EULAR), o gerenciamento ideal
osteoartrite, síndrome miofascial e reumatismos de partes requer diagnóstico precoce. A compreensão completa da
moles como bursites e tendinites; (4) doenças endócrinas fibromialgia passa por uma avaliação abrangente de dor,
como hipotireoidismo, hiperparatireoidismo e síndrome função e contexto psicossocial23.
de Cushing; (5) doenças infecciosas como hepatites virais O manejo inicial deve sempre incluir abordagens não
crônicas e Chikungunya (fase crônica); e (6) neuropatias medicamentosas. Em caso de resposta insuficiente, o
periféricas20,21. tratamento deve combinar estratégias não farmacológicas e
Na avaliação laboratorial inicial do paciente com suspeita farmacológicas, que devem ser individualizadas de acordo
de fibromialgia, alguns autores sugerem a solicitação de com a intensidade da dor e das características associadas
hemograma, provas de atividade inflamatória (proteína (depressão, fadiga, distúrbios do sono e comorbidades do
C-reativa e velocidade de hemossedimentação), hormônio paciente)23.
tireoestimulante (TSH), cálcio sério e creatinofosfoquinase
(CPK)20. Espera-se que o resultado desses exames seja
normal em pacientes com fibromialgia sem outras condições ABORDAGENS NÃO
coexistentes. FARMACOLÓGICAS
Demais exames podem ser solicitados com base em
suspeitas adicionais a partir de anamnese e avaliação A educação do paciente deve incluir os seguintes
clínica. Vale mencionar que testes laboratoriais voltados aspectos: (1) informações sobre diagnóstico e tratamento
à autoimunidade como fator reumatoide (FR) e fator da síndrome; (2) ênfase no caráter benigno e não
antinuclear (FAN) não devem ser solicitados rotineiramente, deformante da condição; (3) importância de exercitar-se e
já que podem ser positivos em indivíduos saudáveis. A manter-se ativo para o controle dos sintomas; (4) educação
realização desses exames deve ser considerada em contexto em higiene do sono; (5) perda de peso quando pertinente;
clínico apropriado, quando a constatação de alterações como e (6) orientação quanto à necessidade de participação
sinovites e lesões cutâneas sugere a presença de uma doença ativa do paciente no tratamento, bem como de adesão às
autoimune22. abordagens farmacológicas e não farmacológicas1,23.
Doenças comuns na população geral como osteoartrite, As diretrizes da EULAR fornecem recomendação
tendinites, bursites e síndrome miofascial também são forte para a prática regular de exercícios físicos (aeróbicos,
encontradas em pacientes com fibromialgia. Dessa forma, o alongamento e fortalecimento muscular), principalmente
tratamento de geradores periféricos de dor, quando presentes, devido ao efeito de melhora da dor, funcionalidade e
também deve ser realizado nos indivíduos fibromiálgicos20,21. bem-estar, bem como devido à disponibilidade e ao
custo relativamente baixo23. É comum que os pacientes
experimentem algum grau de piora na dor e na fadiga
PRINCÍPIOS BÁSICOS DO assim que iniciam um programa de atividade física.
TRATAMENTO Entretanto, eles devem ser orientados a persistir no
programa e a realizar incrementos graduais na intensidade
O tratamento da fibromialgia deve seguir uma dos exercícios, que são fundamentais para a atenuação dos
estratégia multimodal que inclua tanto abordagens não sintomas quando realizados de maneira regular.

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A terapia cognitivo-comportamental (TCC) é Nas diretrizes da EULAR para manejo da fibromialgia,


particularmente útil para aqueles com transtornos de as recomendações são fortemente contrárias ao uso de
humor. Auxilia na criação de estratégias de enfrentamento hormônio do crescimento, oxibato de sódio, opioides
e autoeficácia, como também na redução de crenças fortes e glicocorticoides, devido à falta de eficácia na
negativas, de catastrofização e de hipervigilância23. fibromialgia e ao alto risco de efeitos colaterais23.
Acupuntura, hidroterapia, terapias de movimento
meditativo (qigong, yoga, tai chi) e redução de estresse
com base na atenção plena (mindfulness) também podem CONTRIBUIÇÕES DO MÉDICO DO
ser válidas23. TRABALHO

A incapacidade para o trabalho devido à dor pode


ABORDAGENS FARMACOLÓGICAS ser influenciada por uma interação complexa entre
(QUADRO 5) diversos fatores: experiências passadas, escolaridade, nível
socioeconômico, satisfação com o trabalho, sofrimento
O emprego de medicamentos deve ser guiado pelos psicológico, fadiga, valores pessoais, contexto cultural e
sintomas predominantes, potenciais efeitos adversos disponibilidade de compensação financeira24.
(considerando comorbidades) e possibilidade de Na fibromialgia, os pacientes relatam que os sintomas
aquisição pelo paciente (custos)1,23. De maneira geral, os afetam adversamente a qualidade de vida e a capacidade
medicamentos são iniciados em doses baixas. O aumento para o trabalho25. Contudo, a avaliação da incapacidade é
das doses é feito de forma lenta, conforme a resposta particularmente difícil, uma vez que a dor é uma sensação
clínica e a tolerância do paciente. subjetiva que, na fibromialgia, não pode ser compreendida
Deve-se ter cuidado na prescrição de amitriptilina, dentro de um modelo clássico de doença com dano
tramadol, pregabalina, gabapentina e ciclobenzaprina tecidual. A autopercepção de incapacidade parece, por
entre motoristas, trabalhadores que dirigem para vezes, ser a principal diferença entre os que permanecem
chegar ao trabalho e profissionais cujos trabalhos são no trabalho e os que procuram benefícios securitários24.
em altura ou com maior risco de acidentes, visto que Diante dessa complexidade, ao se deparar com um
são medicamentos que podem provocar sonolência (os colaborador fibromiálgico que alega comprometimento
horários de administração devem ser rigorosamente da capacidade laboral, o médico do trabalho deve
ajustados conforme a meia-vida de cada medicação). avaliar: (1) se o colaborador está em seguimento
O uso de analgésicos simples e de anti-inflamatórios terapêutico adequado; (2) se o colaborador é aderente
não hormonais não é efetivo no tratamento da ao tratamento farmacológico e não farmacológico; (3)
sensibilização central, mas eles podem ser úteis em se existem estressores significativos no trabalho que
situações específicas para o manejo de geradores poderiam contribuir com a exacerbação dos sintomas
periféricos de dor, como tendinites e bursites da fibromialgia; (4) se existe alguma incompatibilidade
coexistentes1,23. evidente entre as demandas do trabalho e a idade do

Quadro 5. Medicações empregadas no tratamento da fibromialgia23*


→ Amitriptilina (antidepressivo tricíclico)
→ Duloxetina e milnaciprano (duais – inibidores da recaptação de serotonina e noradrenalina)
→ Pregabalina e gabapentina (anticonvulsivantes gabapentinoides ligantes alfa-2)
→ Tramadol (opioide fraco). Postula-se que o mecanismo de analgesia do tramadol na fibromialgia deva-se a um leve efeito de inibição de
recaptação de serotonina e noradrenalina, e não ao seu agonismo pelos receptores opioides.
→ Ciclobenzaprina (relaxante muscular de ação central; pertence ao grupo dos tricíclicos, mas não tem efeito no tratamento da depressão)
* Detalhes sobre posologia, incremento das doses e efeitos adversos das medicações para tratamento da fibromialgia estão além do escopo deste artigo.

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colaborador; e (5) se o colaborador tem enfrentado exames periódicos, o médico do trabalho pode identificar,
estressores psicossociais graves ou se apresenta suspeita através da avaliação clínica, possíveis alterações de saúde
de diagnósticos psiquiátricos concomitantes. relacionadas ou não com a atividade laboral.
Todas essas questões são importantes para reunir Além de suspeitar da síndrome de fibromialgia
elementos a fim de orientar o trabalhador de forma diante de colaboradores com queixas de dores difusas e
adequada. Também são fundamentais para propor crônicas, o médico do trabalho pode, durante os exames
restrições, recomendações e adaptações laborais para periódicos, reiterar aspectos importantes da educação
contribuir com a permanência do indivíduo no trabalho do paciente entre aqueles que já possuem o diagnóstico.
ou para decidir pelo afastamento temporário. Nesses casos, ênfase deve ser dada a orientações quanto
Outra oportunidade que pode ser aproveitada pelo à higiene do sono, à aderência ao tratamento e à prática
médico do trabalho refere-se ao diagnóstico (ou pelo de atividade física regular. Vale mencionar que alguns
menos à suspeita) de fibromialgia nos trabalhadores que estudos apontam a prática de exercícios físicos não
desconhecem a natureza dos seus sintomas. Não é raro só como um recurso para controle dos sintomas da
que os pacientes demorem anos para ter um diagnóstico fibromialgia, mas também como importante estratégia
e que procurem diversos especialistas para cada um dos de longo prazo para lidar melhor com o trabalho e se
sintomas que apresentam. Isso não só atrasa a instituição manter nele29,30.
de uma abordagem mais eficaz voltada ao tratamento
da fibromialgia, como também muitas vezes implica a
realização de inúmeros exames desnecessários e onerosos26. CONCLUSÕES
Alguns estudos sugerem que o estabelecimento do
diagnóstico de fibromialgia propicia redução no uso de O diagnóstico da fibromialgia e o seu manejo
recursos e nos custos gerais com assistência médica27,28. representam um desafio para pacientes e profissionais
Em um contexto de medicina corporativa, isso seria de saúde. Esforços devem ser direcionados para o
interessante para favorecer a diminuição da sinistralidade reconhecimento da síndrome no sentido de orientar
dos planos de saúde empresariais. medidas que minimizem a dor e atenuem os sintomas
Os exames periódicos de saúde correspondem a uma associados, melhorem a qualidade de vida, promovam
das atribuições da Medicina do Trabalho e possuem hábitos saudáveis e mantenham o indivíduo produtivo
um papel de destaque dentro do Programa de Controle e no mercado de trabalho. O médico do trabalho pode
Médico de Saúde Ocupacional (PCMSO). Por meio de exercer uma importante participação nesse sentido.

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Rev Bras Med Trab. 2023;21(2):e2022870

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