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Publicado em NOVA ESCOLA Edição 231, 01 de Abril | 2010

História

A escravidão ainda existe


Apesar de ilegal, o trabalho escravo não está extinto. Mais de
36 mil pessoas foram resgatadas dessa situação nos últimos
15 anos no Brasil
Elisângela Fernandes

Infelizmente, tratar o trabalho escravo como uma página virada da história do


Brasil é um erro. A Lei Áurea, de 13 de maio de 1888, foi, sem dúvida, um passo
fundamental para que o Estado brasileiro reconhecesse como ilegal o direito de
propriedade de uma pessoa sobre a outra. O problema, no entanto, ainda persiste,
embora se apresente de forma diferente da ocorrida até o século 19. Mostra disso
são os mais de 36 mil trabalhadores resgatados em situação análoga à de escravo
desde 1995, segundo dados do Ministério do Trabalho (veja o mapa abaixo).

PRESENTE POBRE O combate à escravidão se intensifica, mas a miséria facilita o


trabalho dos aliciadores. (Crédito: Andre Penner)

Tratar das formas contemporâneas de escravidão em sala de aula pode ser uma
valiosa estratégia para desenvolver o conceito de trabalho, de uma maneira que o
assunto faça sentido para os alunos. Assim, o professor abre diversas
possibilidades de abordagem do tema: demonstra que o problema existe na
sociedade atual e alerta e previne as pessoas sobre ele. Além disso, faz a
comparação entre a escravidão no passado e nos dias atuais, buscando relações
sobre as precárias condições de vida e trabalho dos escravos libertos pela Lei
Áurea e seu possível impacto na atual desigualdade social, entre outras
perspectivas.

A Escola da Vila, em São Paulo, trabalha o tema da escravidão contemporânea com


os alunos do 5º ano durante todo o segundo trimestre. A proposta consiste na
apresentação da questão para a construção do conceito de trabalho. "Começamos
com a apresentação de notícias sobre a escravidão para que eles possam saber da
existência do problema no Brasil", conta a professora Clarice Barreira Camargo. Ela
também instiga os estudantes a identificar a data das reportagens para reforçar
que são eventos contemporâneos (leia a sequência).

Durante a proposta, são utilizados diversos materiais, entre eles, textos de


diferentes gêneros e épocas, que incentivam o estudante a investigar documentos
históricos. Também estão presentes mapas, que apontam os estados onde o
problema é mais recorrente, e gráficos com as atividades econômicas que mais
utilizam mão de obra escrava. Além desses, cópias de anúncios sobre escravos
fugitivos, imagens e cartas do período colonial e o texto da Lei Áurea são recursos
utilizados pela escola. Por fim, é feita uma comparação com a escravidão existente
no período colonial e imperial no país. "Também indicamos textos da homepage
da organização não governamental Repórter Brasil e os próprios estudantes vão
descobrindo novos caminhos", afirma Clarice.

Vergonha nacional

O Norte e o Centro-Oeste brasileiros concentram mais de 80% dos casos


registrados de trabalho escravo no Brasil*

Fonte: Ministério do Trabalho.


(Ilustração: Fábio Lucca)
* Entre 2004 e 2008

A preocupação do Brasil com o combate à escravidão é recente

Para a Organização Internacional do Trabalho (OIT), as formas contemporâneas de


servidão têm dois elementos básicos: trabalho ou serviço impostos sob a ameaça
de punição e aquele executado involuntariamente, sendo que ambos envolvem o
cerceamento da liberdade. Segundo a última estimativa da OIT, mais de 12 milhões
de pessoas em todo o mundo são vítimas do trabalho forçado (veja o
mapa abaixo).

A servidão no mundo atual

Em pleno século 21, mais de 12 milhões de pessoas sofrem com o trabalho


escravo. De cada quatro, três estão na Ásia

Fonte: Organização Internacional do Trabalho (OIT). (Ilustração: Fábio Lucca)

Leonardo Sakamoto, presidente da ONG Repórter Brasil, uma referência no


combate ao trabalho escravo no país, afirma que a escravidão do século 19 é bem
distinta da atual. "Antes, o custo da caça aos índios ou da aquisição e do transporte
de africanos era muito alto. Hoje temos um exército de mão de obra
desempregada e pobre, que pode ser cooptado e aliciado", diz. De acordo com
Sakamoto, muitas pessoas seguem o aliciador acreditando ter conseguido um bom
emprego, quando na verdade estão indo para uma forma de prisão.

Uma das principais causas do problema é a enorme desigualdade entre as classes


sociais. "Essa situação propicia sempre um ambiente favorável ao recrudescimento
ou ao ressurgimento de condutas escravistas e a concentração fundiária é
absolutamente perniciosa nesse sentido", aponta Neide Esterci, professora do
Departamento de Antropologia Cultural da Universidade Federal do Rio de Janeiro
(UFRJ).

O coordenador do projeto de combate escravo da OIT no Brasil, Luis Machado,


explica que essa não é uma mazela exclusivamente nacional e nem típica dos
países pobres, embora pondere que "a pobreza é um catalisador".

A existência do trabalho escravo no Brasil, após a abolição, somente foi


reconhecida um século depois, com a instituição, em 1995, do Grupo Móvel de
Fiscalização do Trabalho. Oito anos depois, foi criado o Plano Nacional para a
Erradicação do Trabalho Escravo. Ainda em 2003, surgiu a Lista Suja do Trabalho
Escravo, que é pública e atualizada a cada seis meses pela OIT, a Repórter Brasil e o
Instituto Ethos de Empresas e Responsabilidade Social. Empregadores que entram
nela ficam por dois anos, período durante o qual têm de provar que extinguiram a
prática. Entre os empecilhos trazidos a eles, está a impossibilidade de obter
empréstimos e financiamentos de instituições públicas de crédito.

A OIT reconhece o esforço feito, mas, em seu último relatório global, de 2009,
aponta que o maior desafio do Brasil no combate ao trabalho escravo é a
impunidade, pois, mesmo com um número expressivo de casos identificados, é
raro alguém ser condenado por esse crime.

PASSADO TERRÍVEL Até o século 19, os africanos eram usados no trabalho duro
sem nenhum direito social. (Crédito: Jean-Baptiste Debret/Ministério da
Cultura/Sphan/Fundação Pro-Memoria/Museus Castro Maya/Reprodução)

A Amazônia Legal é recordista em libertação de trabalhadores e em número de


fazendas em que há autuações. Existem fazendeiros que, para realizar a derrubada
de matas nativas para a formação de pastos, produzir carvão para a indústria
siderúrgica e preparar o solo para o plantio de sementes, entre outras atividades
agropecuárias, contratam mão de obra utilizando os contratadores de empreitada,
os chamados "gatos". Eles aliciam os trabalhadores, servindo de fachada para que
os fazendeiros não sejam responsabilizados pelo crime. Mas essa prática não é
exclusiva do campo. Na zona urbana, é comum a presença de imigrantes latino-
americanos cativos em tecelagens e oficinas de costura e na construção civil.

Clarice conta que a discussão sobre a Lista Suja em sala de aula é sempre
marcante, pois os alunos se dão conta da dimensão e da atualidade do fato. Para
Luis Machado, essa concientização é fundamental: "A população precisa perceber
que, ao comprar produtos com preços muito abaixo do mercado, pode estar
incentivando o trabalho escravo e infantil, além da pirataria".

Para auxiliar os docentes de regiões pobres a alertar seus alunos sobre o tráfico de
seres humanos para o trabalho escravo rural, o Ministério da Educação (MEC)
lançou a publicação Escravo, Nem Pensar! - Almanaque do Alfabetizador,
distribuída pelo ministério para mais de 40 mil professores da rede pública.

Mesmo quem está longe do problema precisa trabalhar a complexidade dos temas
sociais, sempre com muita sensibilidade. "Alguns assuntos e correlações podem ser
difíceis para alunos de 10 anos", diz Clarice. "Eles são pequenos, mas a capacidade
de interpretar e compreender textos mais complexos aumenta à medida que
ganham experiência. É muito importante que tomem contato com realidades
diferentes da que vivem, afinal nosso mundo é cada vez mais interligado. Esse
assunto lida com vários conceitos, que serão retomados e aprofundados mais
adiante", conclui.

Reportagem sugerida pela leitora Palmira de Oliveira, Rio de Janeiro, RJ

Quer saber mais?

INTERNET
Publicação Escravo, Nem Pensar! - Almanaque do Alfabetizador.
Publicação Lista Suja do Trabalho Escravo.

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