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As histórias
mais
MA R CA N T E S
de todos
os tempos!
ISSN 1516-7038
02113 >
9 771516 703006
ISSN 1516-7038
02113 >
9 771516 703006
E
scolher histórias que marca- escrevia uma história feia e sombria
s
Seleç e
õ ram a trajetória de Seleções não na Europa – que seriam suficientes
é tarefa fácil. Afinal, às vésperas para fazer vários especiais, só sobre
de completar 80 anos, o que não falta o tema. Não é à toa que, nesta sele-
são histórias. ção, três textos retratam episódios da
No entanto, com o desafio de guerra. Numa época sem TV e sem
selecionar algumas para este espe- internet, Seleções incumbia-se da
cial (cujo tema “Histórias marcantes missão de levar a seus leitores a des-
de todos os tempos” foi escolhido crição mais realista desse período
por nossos leitores em uma pesquisa atroz da história da humanidade.
Quer aprender a falar inglês com
on-line), lá fomos nós examinar mais E, claro, não poderíamos deixar
apenas 20 minutos de aula todos de 900 números da revista... Sim, de fora as matérias que estão desde
os dias, sem professor e no seu próprio ritmo? estivemos bem ocupados nesses sempre no nosso DNA: os dramas da
últimos meses, e o resultado desse vida real, a inspiração que vem da
Com Inglês em 20 Minutos por Dia, ao
trabalho você tem agora nas mãos: generosidade e da coragem de pes-
final de um mês você já poderá falar inglês com 17 histórias que nos comoveram – soas e animais comuns e da vontade
segurança e, em um ano, falará com fluência! algumas nos fizeram chorar, ou- invencível de homens e mulheres
tras nos enterneceram e outras de viver e não se deixar derrotar.
ainda nos deixaram perplexos Enfim, uma seleção e tanto.
Ligue já! (como as dos textos sobre a
Segunda Guerra Mundial).
Espero que, como nós,
você aprecie a leitura.
(21) 4004-2124
Atendimento de 2ª a 6ª, das 8h às 20h, exceto feriados.
São tantos os relatos da
guerra nos primeiros anos
da edição brasileira de
Raquel Zampil,
editora-executiva
Seleções – chegada aqui em Escreva para mim em
1942, quando a guerra editor@selecoes.com.br
edição especial 1
SUMÁRIO 86 Um presente do passado
Um antigo gesto de generosi-
dade salvou uma prisioneira
2 edição especial
COLHENDO O
QUE SE SEMEIA
Por Yu Yu-Chao
Publicado em
4 edição especial ediçãojaneiro
especial 5
de 1985
eu transpirava, sentindo o suor escorrer quente. Não conseguia sentar-me e aceitando o mais humilhante dos
pelos braços e pernas cobertos de lama. comer antes de ter a certeza de que to- trabalhos para termos uma colheita
Se uma gota de suor me entrava nos dos os meus poros estavam libertos da melhor. Até mesmo um búfalo ou um
olhos, eu tinha vontade de chorar, mas sujidade e de que não restava vestígio cavalo, quando a serviço do homem,
nunca me atrevi a fazê-lo. Tentava não do mau cheiro dos pântanos. Quando mantém-se de pé. Subitamente inva-
pensar na angústia que me provocava a vestia uma roupa limpa de algodão diu-me uma grande compaixão, um
pobreza da minha família, e, para evitar grosseiro, levemente perfumada por respeito enorme pelos milhões de la-
que o suor me afetasse a vista, baixava ter secado ao sol, sentia-me em êxtase. vradores pobres que existiam, e o ful-
o rosto o mais que podia. Durante as férias de verão, após o cro dos meus problemas deixou de ser
Falava comigo mesmo: Seja pa- meu terceiro ano escolar, papai adoe- a minha família e eu próprio. Comecei
ciente! Qual a vantagem em lamentar ceu, mas continuou a trabalhar nos a ver tudo com outros olhos.
a nossa sorte? Se os meus pais e irmão campos, pois havia muito a fazer. Certo dia, enquanto estávamos des-
aguentavam, eu também conseguiria. Olhando a sua figura curvada à minha cansando perto de um dos campos,
As plantas apodrecidas exalavam frente, eu não podia deixar de pensar meus irmãos e eu chegamos à con-
mau cheiro sempre que arrancadas. no futuro sombrio que me aguardava. clusão de que alguns conhecimentos
práticos e a aplicação de tecnologia
nos poderiam ajudar, e também aos Sempre que o vento soprava, eu sen-
O SANGUE E O SUOR FAZEM PARTE DA outros agricultores, a melhorar as tia-me fascinado ao olhar a beleza
NOSSA VIDA, E NÃO DEVEMOS TER MEDO DE nossas condições de trabalho e a mi- deslumbrante dos arrozais que se
ENFRENTAR OS OBSTÁCULOS. norar o nosso sofrimento. A resolução agitavam, como se fossem ondas de
animou-me a continuar estudando, a um mar imenso.
entrar para a universidade, a conse- Trabalhei arduamente na região
Próximo da margem do rio, o lodo era Estava condenado a esgotar minha guir uma bolsa de estudos para os humilde e isolada onde nasci, e orgu-
tão viscoso que me causava arrepios. vida trabalhando no campo enquanto Estados Unidos, e a vencer assim a lho-me disso. Embora, mais tarde, me
Quando estávamos de pé, lavrando ou outros rapazes eram livres para lutar antiga miséria. No entanto, o fato de tenha dedicado à vida acadêmica e as
semeando, não nos custava tanto, mas pela sua felicidade? ter labutado em meio ao lodo ensi- feridas da juventude tenham cicatri-
era repugnante trabalhar com o rosto Por que haveria pessoas no mundo nou-me que o sangue e o suor fazem zado por completo, lembrarei sempre
tão perto daquela água. que nunca saberiam o que era labutar, parte da nossa vida e que não deve- do que aprendi: é necessário firmar os
Eu ficava quase sempre com erup- e outras, como eu, que trabalhavam mos ter medo de enfrentar as dificul- pés na terra, e nos esforçar, para ser-
© thirawatana phaisalratana/istock
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ções na pele e com os joelhos san- arduamente desde crianças, colheita dades e os obstáculos; mas, o que é mos recompensados.
grando. A cana dos bambus cortava após colheita, ano após ano? Por que mais importante ainda, aprendi o sig-
muito e os inúmeros insetos e ver- razão haveria pessoas sentadas diante nificado da expressão: “Só colhemos o Os irmãos do autor também conse-
mes e as cobras mordiam-nos. Ha- de ventiladores elétricos ou em salas que semeamos.” guiram escapar à labuta diária nos
via também pequenas sanguessugas, com ar condicionado enquanto eu Minha mãe costumava dizer: “Não arrozais. Na época em que o artigo foi
que nos sugavam sangue e causavam continuava suando e ofegando na- julgue um homem pela sua aparência, escrito, Yuh-sien era membro do De-
infecções. quele calor? Por que é que eu só veria mas pelo aspecto de seus campos.” partamento de Agricultura e Adminis-
Todos os dias, no fim do trabalho, lodo e mais lodo à minha volta? Tenho tido inúmeras ocasiões de se- tração Florestal do governo de Taiwan
eu mergulhava no regato e depois, em Só nós, os lavradores, nos sub- guir o seu conselho. A terra é fiel aos e Yuh-tang, vice-diretor do Departa-
casa, tomava um bom banho de água metíamos a semelhante situação, que nela estão dispostos a trabalhar. mento da Polícia de Taichung.
O PODER
DOS
GÊMEOS
por Helen Signy
B
renton Gurney aguardava um sinal na sala
de espera do centro cirúrgico do Hospital
Westmead, na Austrália. Eram 11 da noite, e
Craig estava sendo operado havia cinco horas.
Aos 38 anos, o mais velho dos gêmeos idênti-
cos passava por uma neurocirurgia delicada, e Brenton
não conseguia deixar de imaginar o que poderia acon-
tecer ao irmão. Os médicos tinham avisado que Craig
talvez não sobrevivesse. E, sobrevivendo, a probabili-
dade de sofrer lesão cerebral permanente era de 50%.
Publicado em
C
raig e Brenton Gurney têm a lhorado e viajou para Daintree. Mas, prova da ligação que desafia as expli-
ligação única de que ouvimos naquela noite, Craig, que estava em cações científicas atuais.
falar em gêmeos idênticos. São casa, em Sydney, começou a ter dificul- – Sempre achamos normal, coisa de e têm o mesmo material genético, en-
muito parecidos, nunca brigaram em dade para respirar e notou uma urticá- gêmeos – diz Craig. – Além de ser um tender por que um desenvolve uma
38 anos, adoram futebol, separam as ria que coçava muito – exatamente nas bom tema em conversas e piadas. doença e outro não dá aos pesquisa-
cebolas no canto do prato e sempre es- mesmas partes do corpo de Brenton. Nos mais de 20 anos em que traba- dores uma noção profunda do poder
colhem chocolate em vez de maçã. Os No outro dia, quando Craig e Nicole lha com gêmeos, o professor John Ho- dos genes versus o ambiente.
dois se casaram com mulheres chama- foram fazer compras, ela notou que pper, diretor do Registro Australiano
C
das Nicole. a urticária estava muito pior. Milha- de Gêmeos (ATR, na sigla em inglês), om 20 e poucos anos, os irmãos
– Há diferenças – diz Craig. – Ele é res de quilômetros ao norte, Brenton soube de muitas histórias parecidas. Gurneys se cadastraram no ATR,
mais econômico e eu, mais gastador. reagira ao inseticida no quarto, entrara “Ouvimos falar desses casos, mas nin- o maior e mais ativo banco de
Craig é dez minutos mais velho e a em choque anafilático e fora levado às guém os estudou direito”, explica ele. dados sobre gêmeos dispostos a par-
acervo pessoal
acervo pessoal
vida inteira esteve à frente: foi o pri- pressas para o hospital. As semelhanças e diferenças entre ticipar de estudos científicos cuida-
meiro a beijar uma garota, a provar Os dois teriam sido expostos ao gêmeos são uma mina de informações dosamente planejados. A mãe deles
bebida alcoólica, a se casar. É ele que mesmo vírus ou substância química? para a medicina. Como gêmeos idên- sempre os inscreveu em clubes de
gosta de assumir o controle. Desde Seria pouco provável, pois não se ticos vêm do mesmo óvulo fecundado gêmeos, mas foi Craig quem tomou a
modificadas. pos: os que querem ser falsa sensação de fami- esquecido deles, mas, como as dores Algumas semanas depois, Craig
“Provavelmente, os ge- iguais aos irmãos e os liaridade.” de cabeça de Brenton pioraram, ele ligou o celular e viu que havia uma
telefonou para se informar. longa lista de ligações perdidas do
– Nós nos inscrevemos para a Centro de Dinâmica do Cérebro. Devo
NASCEU
A ERA
ATÔMICA
Dramático relato feito por uma
testemunha da primeira reação
nuclear em cadeia do mundo
P
oucos acontecimentos que transforma-
ram o destino do homem – a invenção do
machado de pedra, a descoberta do fogo,
a marcha para a Revolução Industrial – po-
dem ser determinados com precisão no
tempo. Mas um deles, talvez o maior de todos, pode
ser assinalado com exatidão de minutos. Exatamente
às 15h36 do dia 2 de dezembro de 1942, o mundo
entrou na Era Atômica. E eu fui uma das quarenta e
tantas testemunhas desse fato.
Q
pitante dos contadores que registra- pensaram que tinham fragmentado o Mas havia ainda importantes ques- uando começamos a traba-
vam a produção de nêutrons. Todo urânio-pesado em bário e outros ele- tões antes que se pudesse obter a lhar na CP-1, não tínhamos um
o nosso raciocínio anterior indicava mentos mais leves, não estavam em energia do átomo. Seria possível de- plano definido; dispúnhamos
que estávamos em segurança. Entre- condições de dizê-lo. sintegrar um átomo com um nêutron e apenas de pontos de interrogação. Sa-
tanto, íamos avançando por território A interpretação coube a uma ex- conseguir uma produção de dois nêu- bíamos que o urânio natural emite es-
nunca dantes explorado. Havia uma -colega de Hahn, Lise Meitner, que, trons, que continuariam em ação para pontaneamente alguns nêutrons. Mas
possibilidade pelo menos de que a pi- por causa do seu sangue judeu, tinha desintegrar de novo e produzir quatro, estes se movimentam com tanta rapi-
lha fugisse ao controle, de que fôsse- fugido da Alemanha de Hitler para a oito nêutrons, e assim por diante? Isso dez que não causam a fissão – como
mos destruídos e de que um grande e Suécia. Ali, durante as festas de Na- seria reação em cadeia. Movendo-se uma bola de golfe veloz que passa
bem povoado bairro de Chicago fosse tal de 1938, ela e seu sobrinho, Otto lentamente, essa reação produziria raspando por sobre o buraco, ao passo
transformado numa ruína radioativa. Frisch, discutiram os dados que Hahn calor conversível em energia. Se a rea- que uma bola mais lenta cai lá den-
Seria aquele, de fato, o Dia do Juízo? enviara. É possível que seus dois bri- ção se fizesse com rapidez suficiente, tro. E a grafita parecia o melhor meio
lhantes espíritos tivessem chegado à teríamos uma bomba colossal! que tínhamos de freá-los. Talvez, se
Cócegas num mosquito conclusão de que essas descobertas pudéssemos arrumar uma espécie de
não eram afinal de contas assim tão Pontos de interrogação envoltório... pedaços de urânio rodea-
A ciência tende a mover-se em ritmo misteriosas. Niels Bohr, o grande fí- dos de grafita? Neste caso, os nêutrons
lento. Mas, no caso da fissão atô- sico dinamarquês que era amigo dos Havia em todos nós um receio. Os pio- de um pedaço de urânio passariam
mica, os acontecimentos se haviam dois, imaginara o núcleo de um átomo neiros alemães nesse campo tinham pela grafita, perdendo velocidade,
À
havia iniciado a sua campanha na de produção de nêutrons, mas ainda contadores tiveram de ser recalibra- s 15h53, Fermi ordenou a
África do Norte. A batalha de Gua- nada de muito grande. dos, isto é, retardados para diminuir Zinn: “Coloque o fecho.” En-
dalcanal estava nas suas últimas fa- o barulho e dar um sentido aos seus quanto a haste descia na pilha,
ses vitoriosas. Já se trabalhava em sons. Além disso, a pena estava ul- a atividade diminuiu rapidamente. O
fábricas supersecretas de bombas
DURANTE 17 MINUTOS trapassando o papel quadriculado. grande drama estava chegando ao fim.
atômicas, com base na possibilidade A TEMPESTADE Às 15h19, Fermi ordenou que a Tínhamos completado em segurança
de uma reação em cadeia. Se o nosso ATÔMICA RUGIU, CADA haste manual fosse levantada mais uma jornada pelo desconhecido.
reator funcionasse, teria o poder não 30 centímetros. Olhou para o papel
só da morte mas também de terminar
VEZ MAIS VIOLENTA. quadriculado, consultou a sua régua Se o mundo se sente deprimido com
uma guerra monstruosa e de poupar de cálculos e, então, voltou-se para o fato de que duas bombas atômicas
milhões de vidas. Às 10h37, Fermi disse a Weil: “Puxe Compton, que estava de pé ao lado foram lançadas 32 meses depois, deve
Às 8h00, todos tínhamos chegado quatro metros a haste manual.” O con- dele, dizendo: “Mais trinta centíme- animar-se com os mesmos benefícios
e tomado nossos lugares. Eu ficava tador começou a roncar. Rostos ansio- tros, e pronto.” Às 15h36, a haste ma- que resultaram da fissão. Grande
junto a um painel de controle para re- sos voltaram-se para a pena que corria nual foi puxada mais 30 centímetros. parte da ciência médica sofreu uma
gistrar o que marcavam os instrumen- para o alto. Fermi, trabalhando com E, minutos depois, ele tornou a falar: revolução, e o ritmo de outras pes-
tos. Zinn puxaria a haste do fecho. a régua de cálculos, garantiu que ela “Desta vez não haverá estabilização. quisas se acelerou. A Grã-Bretanha
George Weil controlava a importantís- se estabilizaria em certo ponto, e foi A curva é exponencial”, declarou, já está obtendo do átomo 10% da sua
sima haste manual. O pelotão-suicida o que aconteceu. De vez em quando, querendo dizer com isso que a ativi- energia elétrica, e nos Estados Uni-
estava a postos. Havia observadores ordenava a Weil que puxasse a haste dade iria dobrar e redobrar. dos a Comissão de Energia Atômica
numa pequena sacada, de onde em mais alguns centímetros. De cada vez, está gastando mais em atividades
outros tempos os espectadores ha- havia um acréscimo de atividade dos Durante 17 minutos angustiosos, a atômicas para fins pacíficos do que
viam apreciado partidas de squash. O nêutrons, e a tensão dos circunstan- tempestade atômica rugiu, tornan- em armas.
grande espetáculo ia começar. tes crescia proporcionalmente – a um do-se cada vez mais violenta. A pilha Naquela fria e ventosa tarde de
Às 9h45, Fermi, falando com sua ponto quase insuportável. se aquecia. Processava-se a primeira inverno, há mais de um quarto de
voz calma, ordenou que a haste con- E então quebrou-se o encanto. reação em cadeia. Num silêncio século, a história foi mudada. Talvez
trolada a eletricidade fosse puxada. “Vamos começar”, disse Fermi. Era ameaçador, a humanidade entrava para pior. Mas há esperança de que
Houve um leve sussurro de moto- como se Wellington sugerisse um numa nova era. O perigo nos cercava. o tempo venha a provar que foi para
res e podiam ouvir-se as batidas dos intervalo para o almoço durante a Sabíamos que a fissão criaria novos melhor.
Um papel
que adoro
desempenhar
Por Tom Crabtree
M
eu avô usava bigode, demais relógios cantavam, tocavam
terno de tweed e um ou ribombavam a hora.
© mashastarus/istock
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Q
– As estrelas estão muito longe? Ontem vi num carro um adesivo
– perguntei. UANDO MEU filho e minha que dizia: “A felicidade é ser avô.” É A filosofia de vida de Leah, assim
– Muito. Mais do que a França – nora me contaram que eu mesmo possível. Você pode se divertir como a de Daisy, é de que diversão é
disse ela, que havia recentemente vi- seria avô, fui invadido por com as crianças (e depois devolvê-las essencial. Mas depois da minha vez
sitado sua tia Amanda na França. sentimentos conflitantes. no fim do dia). Ser anárquico (des- no escorrega e no balanço, para não
Então a conversa começou a se Embora compartilhasse da cer no escorrega com elas) e ligeira- falar do carrossel, sou tratado mais
complicar. alegria deles, entristecia-me o fato de mente subversivo (comprando-lhes delicadamente: “Você está um pouco
– Olhe, vovô. A lua está maior do por fim ser obrigado a reconhecer que biscoitos). exausto, vovô. Descanse.” Ela fala num
que estava ontem – comentou. – Por chegara à terceira idade, o princípio Com os netos, aprendemos uma tom que é a mistura de um afável clí-
que a lua cresce e diminui? da noite de minha vida. importante lição. As crianças vivem o nico geral com aquele sujeito que
presente. Elas não têm tempo para o atropela as palavras na televisão.
passado. O tempo furta nossa juventude,
AO SABER QUE SERIA AVÔ, APESAR DA ALEGRIA, Para um adulto, é insensato ser in- nossos amigos, nossos dias. Quando
fantil, mas é sábio maravilhar-se com morremos, tudo o que resta de nós é
ENTRISTECEU-ME O FATO DE QUE ENFIM o mundo através dos olhos de uma o amor que damos aos outros. Tudo
CHEGARA O PRINCÍPIO DA NOITE DE MINHA VIDA. criança. o que recordamos, eu acredito, são
Os avôs, por sua vez, são importan- aqueles momentos mágicos que pa-
tes para as crianças. Conviver com recem fazer o tempo parar. Ser avô
Apanhei três laranjas e tentei expli- A noite pode ser a melhor parte do uma pessoa a quem o pai ou a mãe me presenteou com muitos desses
car como a Lua e a Terra se movem em dia, mas quantos de nós realmente chama de “papai” dá à criança um momentos.
torno do Sol. Ao mesmo tempo, pen- acreditam nisso? É verdadeira aquela sentido de história, de participação, Mas agora acho que vou me sen-
sei: Se ela faz esse tipo de pergunta aos história de se manter jovem no cora- um sentimento de que o mundo existe tar e ler a enciclopédia para poder
3 anos, o que perguntará aos 6? Nessa ção, jovem no espírito. A vida deve ser há muito tempo e que vai continuar responder às perguntas que Leah irá
idade ela poderá apresentar questões vivida em todas as idades. Assim não existindo, não importa o que acon- me fazer quando ficar mais velha.
capazes de derrubar até Sócrates. há tristeza, apenas alegria. teça. Fisicamente, ser avô é cansativo Depois vou me exercitar. É preciso ter
Na manhã seguinte minha mulher Assumi meu papel de avô com (ou “absolutamente arrasador”, como um bom condicionamento físico para
e eu fomos buscar Leah no jardim de grande entusiasmo. Balanço em meu diria Leah). Quando estou na casa de descer de cabeça para baixo no escor-
infância. No caminho de casa, passa- joelho a irmã de Leah – Grace, 6 me- minha filha, Daisy acorda com meu rega, ir com Daisy à praia e levantar
mos por um policial. ses –, canto-lhe canções e falo com nome nos lábios. Grace bem alto, na direção do céu.
CAMPO DE
esquerdo, as pernas rígidas balança- do capitão Waskow. Não queriam
vam no ar do lado oposto, acompa- apenas, ao que me parece, vê-lo uma
Publicado em nhando o andar dos animais. vez ainda. Tive a impressão de que
BATALHA
junho de 1944 Não sei qual foi o primeiro a che- tentavam expressar-lhe, ainda que
gar ao ponto em que nos achávamos. vagamente, o que lhes ia na alma.
Na presença dos mortos, sentimo-nos Um soldado aproximou-se, e, de-
sempre tão pequenos que qualquer pois de lançar-lhe breve olhar, disse
pergunta parece inútil e absurda. Re- em voz alta: “Ah miseráveis!”
tiraram-no da mula e, durante um se- Foi tudo que pode dizer.
Por Ernie Pyle
gundo, à meia-luz do luar, parecia um Um segundo murmurou: “Vão para
(redigido na linha de frente, na itália)
ferido, amparado pelos companheiros. o diabo!” E, depois de olhá-lo alguns
N
Deitaram-no depois junto a um muro instantes, afastou-se bruscamente.
o curso de guerra já tive O capitão Waskow era comandante que se erguia à margem da estrada. Seguiu-se-lhes um terceiro. Um
ocasião de conhecer vá- de uma companhia na 36-ª divisão do Sentamo-nos então, a falar em voz oficial, se me não engano. Era difícil
rios oficiais que souberam exército americano. Embora muito jo- baixa, aguardando os que estavam distingui-los, tendo em vista sobre-
conquistar o respeito e a vem – pois tinha vinte e poucos anos por vir. Alguns minutos depois um tudo que todos traziam os uniformes
estima de homens con- –, dava tal impressão de sinceridade, e soldado veio informar-nos de que sujos e rasgados, e a mesma expressão
fiados ao seu comando. Não conheci, era tão de ameno trato, que os solda- outros haviam acabado de chegar. decidida e severa nos rostos sombrios.
porém, jamais, nenhum que fosse tão dos sentiam prazer em obedecer-lhe Encaminhamo-nos para o local de Olhou-o alguns instantes face a face, e
querido quanto o capitão Henry T. as ordens. chegada. Lá se achavam quatro mu- disse-lhe, como quem fala a um vivo:
Waskow, de Belton, estado do Texas. “Depois de meu pai, é a pessoa que las ao pé dos soldados que as tinham “Sinto muito, amigo.”
mais estimo e respeito”, disse-me um conduzido montanha abaixo. Um soldado ainda inclinou-se a
sargento. “Aqui está o capitão Waskow”, foi meio sobre o corpo, murmurando
“Ele sempre tomou conta de logo dizendo um deles. com ternura:
todos nós”, acrescentou um Dois homens desapertaram a cor- “Capitão, nem sei dizer o que sinto.”
soldado, “e procurou nos reia que amarrava o corpo e puseram- O primeiro então voltou, sentou-se
proteger o mais possível em -no ao lado do que chegara primeiro, ao lado do chefe morto, e tomando-
todas as circunstâncias.” junto ao muro de pedra. O mesmo fi- -lhe uma das mãos nas suas, ali ficou
Achava-me eu ao pé de um zeram depois com os demais. Já cinco cinco minutos a contemplar-lhe o
estreito caminho na noite em mortos ali se achavam, deitados em rosto, sem dizer uma palavra.
que trouxeram, já sem vida, fila, um ao lado do outro. Não é cos- Finalmente, endireitou-lhe a gola
tume cobrir os cadáveres nas zonas de da camisa, cobrindo cuidadosamente
© zabelin/istock
cheia, e via-se nitidamente combate. Ficam assim como estavam, a ferida com um pedaço rasgado do
bom pedaço da íngreme ve- até que os venham buscar. uniforme. Depois, erguendo-se, afas-
reda. Desde o cair da tarde, As mulas foram levadas para uma tou-se, sozinho à luz da lua.
vinham trazendo os mortos, gruta vizinha que lhes servia de condensado do new york world-telegram.
COWBOYS
DOS BONS
TEMPOS
por
porLucien
LucienBurman
Burman
C
sentação, sentamos também para
comer tortillas e tamales. A maioria heguei-me mais para perto da
dos cowboys era mexicana como a co- cerca. Na luz refletida do gal-
mida. Eram um grupo de gente feliz, pão vi as vacas olhando-me,
de rostos alegres e cordiais. desconfiadas. Notei qualquer
Roald Runner voltou-se para um coisa faiscando no chão e ris-
velho de cabelos brancos que estava
à cabeceira da mesa e pediu-lhe:
quei um fósforo para ver o que era.
Imediatamente as vacas fugiram ater-
tamales e tortillas. Os rapazes engo-
liram o café e saíram com laços para
“PREFIRO SER
– Conte ao nosso amigo algumas rorizadas e sumiram na escuridão. apanhar os cavalos para o trabalho do APANHADO POR UMA
histórias do tempo em que você foi – À noite qualquer coisa as espanta dia, que era trazer os bezerros para DÚZIA DE ROLOS
bandido no México, Manuelo.
O velho corou e, como um menino,
– disse Frank. – Dê graças por elas es-
tarem num pasto, senão levaríamos
a ferra. Eu sempre pensei que todo
cowboy só montava um cavalo, que
COMPRESSORES
escondeu o rosto com as mãos. semanas para reuni-las. Vaca é o bi- ele estimava mais do que a uma es- DO QUE POR UM
Um mexicano de olhar vivo que es- cho mais assustadiço do mundo. posa. Fiquei espantado ao saber que ESTOURO DE VACAS.”
tava perto dele bateu-lhe nas costas. – E para machucarem a gente tam- geralmente o cowboy de hoje tem
– Manuelo tem vergonha do tempo bém não tomam tempo – acrescentou cinco ou seis cavalos; antigamente
em que foi bandido. Mas ele é um Roald Runner. – Prefiro ser apanhado chegava a ter uma dúzia. para o outro em suas montarias, gri-
bom vaquero. Se eu for bom como o por uma dúzia de rolos compressores – Se um cowboy só tivesse um ca- tando e agitando o chapéu, enquanto
Manuelo quando tiver setenta anos, do que por um estouro de vacas. valo, daria cabo dele antes do al- separavam os bezerros das reses mais
não terei vergonha de nada. Não risquei mais fósforos. moço – explicou-me Roald Runner. velhas e os tocavam para o curral.
No pasto atrás do galpão eu ouvia Voltamos ao galpão e preparamo- – Montado por um desses camaradas Notei que um dos cowboys tinha
o gado mugindo numa triste sinfonia, -nos para dormir. O ar estava suave, em trabalho de campo, um cavalo se perdido três dedos da mão direita, e
quebrada de vez em quando pelo uivo sem sinal de vento. Resolvi levar mi- cansa mais em uma hora do que em perguntei aos meus companheiros
dos coiotes. Deixei a mesa e fui olhar nha cama para fora e dormir sob as uma semana de outro trabalho. Acho como se dera aquilo.
© lunaticlu/istock
© lunaticlu/istock
o gado com Frank e Roald Runner. As estrelas, com o uivar de coiotes nos que em uma manhã ele percorre uns – Muitos deles perdem dedos – ex-
reses estavam perto da cerca, remoi- ouvidos. oitenta quilômetros. plicou Roald Runner. – E mãos e per-
nhando inquietas. Os vaqueiros acordaram pouco Compreendi o que Roald Runner nas também. Resultado de acidentes
– Estão nervosas – disse Roald depois das quatro horas. Toma- queria dizer quando saí para o pasto com o laço, quando a rês ou o cavalo
Runner. – Se eu estivesse com elas mos nossa primeira refeição, e mais e vi os cowboys correndo de um lado não se conduz da maneira esperada.
V
misturavam-se com os boiadeiros. – Transportar cavalos de caminhão
© lunaticlu/istock
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oltamos à casa da fazenda No dia seguinte, voltamos à fazenda só para chegar um pouco mais de-
e preparamo-nos para ir a por um desvio. pressa. Isso está piorando muito.
San Antonio comprar man- – Achei que o senhor havia de que- – A vaquejada de avião é que me ir-
timentos. A temperatura su- rer ver os cowboys grã-finos de Victo- rita – comentou Frank. – No ano pas-
bira de novo, e o sol castigava ria trabalhando para os homens do sado eu trabalhei com um homem
C
para a entrada da rampa. O nervo- çador e flechou para a porteira onde – E dizer que os cowboys grã-finos
hegamos à fazenda ao pôr sismo dos animais aumentava. De vez eu estava. Parou por um instante, de Houston e Victoria tomam o café
do sol. Por cima da serra baixa em quando um touro irado atacava às olhando-me com seus olhos rubros, na cama! – disse ele, sacudindo a
vimos elevar-se uma nuvem cegas a cerca do curral perto de mim. como quem considera – e, de repente, cabeça.
grossa de poeira. As tábuas sacudiam-se com o choque.
– O senhor teve sorte – disse O meu nervosismo também crescia de
Roald Runner. – Eles estão levando a minuto a minuto.
Um novo jeito
boiada inteira para a pastagem do rio. Já estava quase escuro. Na obscu-
de caçar passarinho
A nuvem de poeira aumentou. De- ridade a operação de carregamento
pois um único cowboy apareceu, e ficava cada vez mais lenta. Os touros No século 19, a “Side Hunt” era uma competição
atrás dele uma floresta de chifres, com desconfiados lutavam valentemente de tiro: quem matasse mais aves, ganhava.
dois homens de cada lado, assenta- para não entrarem na rampa. Os Então, em 1900, um ornitólogo chamado
dos na sela como um rei no trono. A cowboys ficavam impacientes, irri- Frank M. Chapman teve uma ideia. Em vez
boiada passou, sacudindo o chão com tados. A irritação deles era agravada de caçar aves, por que não contá-las?
os cascos como se fosse o rugir de um pela fome, pois a hora do jantar já O Recenseamento Aviário Natalino da
terremoto. passara havia muito. O chefe dos Audubon Society existe até hoje.
UMA HERANÇA
RECUPERADA fotos: cortesia da família jorisch
E
Em março de 1939, Georges e o pai m 2007, Georges acreditou ter Ruth Pleyer demorou dois anos para Lago Garda, como sempre pensara.
embarcaram com passaportes falsos achado um dos quadros rou- encontrar Igreja em Cassone. O dono Também descobriu que a pintura
num trem para Colônia, na Alemanha. bados pelos nazistas. Fazia morava em Graz, na Áustria. Herdara avariada era uma das peças mais po-
De lá, cruzaram a fronteira da Ho- anos que iniciara a busca, e final- o quadro do pai, que não conhecia a pulares do Museu de Arte Moderna
landa e, enfim, chegaram a Bruxelas, mente ali estava o Prado florido de história da obra quando a comprou na de Salzburgo. Depois de avaliar o pe-
onde ficariam durante toda a guerra. Klimt na coleção de Leonard Lauder, década de 1960, e não tinha a mínima dido de Georges, as autoridades aus-
Quanto à mãe e à avó de Georges, em herdeiro do império de cosméticos intenção de entregá-la. Nem era obri- tríacas declararam que “as condições
1941 elas foram embarcadas num trem de Estée Lauder. De acordo com o gado a isso. Na Áustria, a lei protege para a devolução do quadro foram
A
de arte do regime nazista. Dessa vez, inda restava a Georges encon- “Durante toda a sua busca, nunca foi sado ou sentir pena de si mesmo. “Ele
Édith compareceu ao leilão para fil- trar mais um quadro. Crianças motivado pelo dinheiro. Mas queria preferia olhar para a frente”, diz Édith.
mar a reação do avô ao pôr os olhos na volta da escola, do pintor exprimir a sua gratidão a Quebec por “Por isso foi bem-sucedido. Sua deter-
na obra pela primeira vez em 73 anos. austríaco Ferdinand Georg Wald- recebê-lo com a mulher quando che- minação foi um exemplo para mim, e
Depois de uma acirrada guerra de müller, mostrava um menino e uma garam em 1957.” tenho muito orgulho dele.”
Por
amor a
Lilly
por Anita Bartholomew
E
a vida adulta. Em consequência, per- m 3 de maio de 2012, David co- mal da polícia. Embora ferida e Sabia que ela faria bem à sua mãe.
dera tudo, até os filhos. David e a irmã meçou o turno de trabalho à ensanguentada, ela balançou o rabo Gania apesar dos analgésicos, mas
foram morar com os avós quando meia-noite, policiando as ruas ao vê-lo. Quando ele a pegou no colo, sua situação era estável. E ela pareceu
ele tinha apenas 6 anos. No entanto, violentas do bairro de Mattapan, em a atadura improvisada caiu da pata se acalmar com a presença dele.
dia seguinte. os donos não pudessem pagar. Fora d’água, porém, Lilly ficava tão arrecadar fundos para despesas veteri-
Após a cirurgia, David viu, pela grade Por fim, pouco mais de uma semana imóvel quanto antes, incapaz de su- nárias e ajudar esses cães a encontrar
do canil, um cão raspado e ferido, com após o acidente, Lilly teve alta do Cen- portar o próprio peso sobre três patas. um novo lar. Christine Spain estava
tubos e agulhas pelo corpo todo e pon- tro Angell. Embora ainda não ficasse Diligente, Christine fazia com Lilly bem e permanecia sóbria.
Michael Trapp
conseguiu.
Veja como.
T
Aos 42 anos, não se pode dizer que rapp prendeu a respiração e
Trapp estivesse em forma. O mecâ- soltou o cinto de segurança.
nico de automóveis e, em suas pró- Nadou debaixo d’água, saiu
prias palavras, maníaco por motores pela porta que se abriu com a queda
se pesava regularmente, sempre que e chegou à superfície agarrando-se à Trapp com o avião de
um amigo, o mesmo
competia no circuito local de Stock cauda. O avião continuava afundando.
tipo de Cessna que
Car. O físico de 1,75 m e 92 kg refletia Ele tirou a mão do Cessna e o viu des- perdeu quando o
sua postura tranquila diante da vida. cer 9, 12, 15 metros, até sumir nas carburador congelou.
Ele não se preocupava muito; gostava águas. “Adeus, meu bem”, disse ele. O
de rir e de fazer rir; cercava-se de ami- avião levou menos de um minuto para
gos e familiares. A princípio, podia afundar. transformar a calça num colete salva- Você acabou de sobreviver a um desas-
parecer um caçador de emoções, mas Bem, você está vivo, pensou. E a -vidas. Então, tirou os tênis e a calça, tre de avião, disse a si mesmo. E agora
o que realmente o atraía nas corridas água não está fria demais – entre 15oC amarrou as pernas, encheu-as de ar e vai se afogar. A calça ainda flutuava a
era a camaradagem. Gostava de traba- e 20oC. Sem o avião para se segurar e as enrolou no pescoço. Quando veio alguns metros; ele nadou até lá, pegou
lhar com os amigos nos carros tanto nenhuma boia, ele teria de nadar. O uma onda grande, a calça se retorceu a carteira e a enfiou na cueca. Assim,
quanto gostava de pilotá-los. problema era enfrentar as ondas de em volta de sua garganta e quase o conseguiriam identificar o corpo.
Voar não era um sonho antigo de quase dois metros que não paravam estrangulou. Bem, isso foi uma estu-
Trapp. Por acaso, apenas três anos de jogá -lo para debaixo d’água. Ele pidez, admitiu. Furioso, jogou a calça Julie recebeu um telefonema logo após
antes, acabara guiando o avião de saía cuspindo, debatendo-se, e era longe e continuou batendo os pés. as 18 horas. Eram poucos os detalhes.
um amigo que lhe disse: “Segure o só recuperar o fôlego para que outra Tentou boiar de costas para recu- Michael fizera um chamado de emer-
manche um minuto, Mike. Quero ti- onda o afundasse. Você vai precisar de perar o fôlego, mas as ondas eram gência. Desaparecera. A Guarda Cos-
rar umas fotos.” Trapp se apaixonou um plano, raciocinou. implacáveis. A água entrou-lhe pela teira iniciaria as buscas. Entrariam
na mesma hora. Meses depois, tirou Na marinha, fora treinado para garganta até o pulmão. Ele vomitou. em contato. Ela desligou, tonta e até
B
em, ainda não estou disposto a não era boia nenhuma. Era o alto da de apoio, mas, acima de tudo, queria amava. Tanta gente dependia dele!
morrer, pensava Trapp. As on- chaminé de uma fábrica na costa. ficar sozinha. Finalmente, a casa se es- Julie, os filhos, os funcionários da
das eram grandes, tudo bem, Tudo bem, pensou. Melhor ainda: vaziou e ela foi se deitar, mas a cabeça oficina mecânica, os amigos. Viu que
mas ele se lembrou de ter visto na TV vou nadar até chegar a terra firme. fervilhava de possibilidades em que conseguia uma trégua do sofrimento
que uma menina de 12 anos cruzara Ele estava a três quilômetros das lu- preferia nem pensar. Quando adorme- quando se visualizava em casa com as
o Canal da Mancha a nado. Se uma zes cintilantes à beira d’água quando ceu, estava no lado da cama em que pessoas importantes para ele – rindo
menina de 12 anos consegue, eu posso deparou com uma forte corrente que Michael costumava dormir. com os amigos, aconchegado na cama
me aguentar e flutuar mais um pouco, o travou por completo. Nadava o má- Durante a noite, dois helicópteros, ao lado de Julie. Então uma onda ge-
pensou. Mas era difícil se desligar de ximo que podia até mal conseguir um avião C-130 da Carolina do Norte, lada lhe caía no rosto, ele tossia, expe-
tudo que deixara no avião – um do departamento do xerife local e lia a água e recomeçava.
o celular à prova d’água, por outro da Força Aérea canadense vas- Numa das tréguas, algo bateu com
exemplo, e dois pacotes de culharam a área de busca. Trapp não força no seu corpo. Mas que...? Ele ta-
rocambole, além da gela- os viu. O que viu foi a luz verde de teou, esperando encontrar um tronco
deira de isopor e a garrafa uma boia, mais longe, perto da costa. ou destroço. Não era nada disso. Era
d’água, que poderiam ajudá- De volta ao plano A, então: agarrar-se um peixe. Um peixe enorme. Sua ca-
-lo a se manter na superfície. a uma boia até o resgate. Mas a cor- beça foi a mil, imaginando mandíbu-
Começou a nadar cachorri- rente ainda o atrapalhava. Ele tentou las enormes subindo das profundezas
nho e alguma coisa chamou durante horas, enlouquecido pela tor- para jantá-lo. Opa! É melhor tirar essa
sua atenção. Uma boia de tura de ver a boia tão perto, nadando bobagem da cabeça. Agora não há
marcação? Exultante, foi até os membros amolecerem, descan- tempo para isso.
em direção a ela. Ora, ora, sando de costas à luz das estrelas e, Ele boiou e relaxou de novo. E um
pensou, vou simplesmente então, percebendo que estava mais mosquito começou a lhe picar a testa.
nadar e me agarrar àquela longe do que quando começara. Está de brincadeira? A três quilômetros
boia até que venham me bus- Ninguém virá esta noite, percebeu. da margem? Você não tem pena, não?
Julie Trapp aguardou
car, e depois serei bonzinho. É preciso relaxar e esperar que o sol Ele xingou, estapeou o ar, e o mos-
sozinha, junto ao
Ele nadou o máximo que telefone, notícias do nasça. Então, pela manhã, alguém quito foi embora.
pôde durante duas horas, paradeiro do marido. vai me ver e virá me buscar. Ele boiou Mais tarde, voltara à posição de
às vezes boiando de costas de costas, hipnotizado pelas estrelas, nadar cachorrinho para ver se estava
E
Enquanto esperava o nascer do sol, restavam mais forças e não teve opção ram 10h30 quando o telefone casa, foi recebido como herói.
ele pensou na vida. Nas coisas estú- a não ser boiar e se recuperar. Quando de Julie Trapp tocou. No barco, depois que os salvadores
pidas que fizera. Nas discussões à toa se sentiu melhor, a corrente o arras- – Alô? – atendeu, com receio. o tiraram da água, Trapp foi enrolado
com Julie. Começou a rezar. Por favor, tara para uns 500 metros do barco. – O seu marido se chama Michael? num grosso cobertor preto e lhe deram
me deixe abraçar minha mulher só mais – Droga! – gritou. – perguntou Marita Grobbel, convi- uma banana. Foi a suprema felicidade.
uma vez. Por favor, me deixe abraçar Não conseguia mais sentir as mãos dada na lancha dos Petitprens, en- – Aquela foi a melhor banana que
meus filhos só mais uma vez. Por favor, e havia um estranho formigamento quanto seguiam a toda para o porto já comi – diz ele. – E eu conseguia
faça com que algo de bom aconteça. nos braços. Você tem de relaxar, disse mais próximo. sentir o sol se irradiando pelo cober-
Mais barcos passaram, mas Trapp a si mesmo de novo. Mas era cada vez Julie não encontrou forças para tor e aquecendo meu corpo. Fiquei...
boiava ali tão invisível e insignificante mais difícil. Então, ergueu os olhos e responder. havia... – Trapp reorganiza os pen-
quanto um pedaço de pau. Quando viu um barco a vela se aproximar. Ti- – Nós o achamos no Lago Huron. samentos: – Há pouquíssimos mo-
o sol nasceu, o calor foi bem-vindo, rou o cartão de crédito da carteira e – Marita! Diga a ela que ele está mentos tão preciosos quanto aquele.
mas trouxe ondas maiores. Agora ele começou a refletir os raios de sol so- vivo! – berrou Dean Petitpren. Adoro a minha vida. É muito diver-
estava com muito frio, e a cãibra nos bre o barco. Alternava acenando com Mike Trapp foi levado para o hospi- tida. E ainda não estou disposto a
músculos exaustos era forte. Você não a meia. Sem resultado. tal Covenant Healthcare, no Michigan, abandoná-la.
sabedoria
de manuscritos. Cerca de 180 mil
livros e documentos raros estão
guardados num cubo de vidro,
a fim de serem preservados para a
posteridade. Ficam numa tempe-
ratura constante de 21°C e umi-
dade relativa de 60%, condições
ideais para sua conservação.
Publicado em
64 edição especial agosto de 2014 edição especial 65
Alemanha Mídia impressa e
digital têm a mesma importân-
cia na Biblioteca Pública de
(alto, à esquerda) © picture alliance/dpa; (embaixo, à esquerda) © getty images/look; (nesta página) © ana branco, ag. o globo
Stuttgart, eleita Biblioteca do
Ano da Alemanha em 2013. Em
suas instalações, 400 visitantes
podem ler ou trabalhar, inclu-
sive nos 140 notebooks disponí-
veis para uso público. À noite,
o prédio quadrado, que atrai
até 6 mil visitantes por dia,
fica banhado em luz azul.
(esquerda e alto, à direita) © getty images; (direita, embaixo) © getty images/picture press rm
(esquerda e alto, à direita) © getty images; (direita, embaixo) © getty images/picture press rm
por 9 milhões de euros num
leilão, em 2010.
70 edição especial
70 | 08•2014 edição especial 71
De pai para
Publicado em
fevereiro de 2011
filho
Rick Kelly com Mikey
(à esquerda) e Christian,
após um jogo da
Liga Infantil, em
Saint Petersburg,
Flórida.
Agredido quando
criança, Rick Kelly foi
resgatado por um
casal amoroso. Ele
faria o mesmo por
outro menino?
Eis a história.
por Kenneth Miller
C
Christian – confidenciou. provisório. O casal desistira dele, di- braço forte e excelente reflexo, embora
erta tarde, naquele ve- – Que tal se eu saísse com ele para zendo que era incontrolável. os acessos de raiva às vezes ainda o for-
rão, Rick chegou à casa ficarmos um tempo sozinhos? – ofe- Rick ficou consternado e, como o çassem a retirar o menino do campo.
dos Whites e encontrou receu-se Rick. divórcio já fora concluído, estava livre
um menininho de dentes para fazer o que quisesse. Mas o pro- RICK SENTIU UMA
estragados de sentinela De tantas em tantas semanas, ele, blema era o mesmo: conseguiria criar
à porta. Era Christian. Depois de se que morava em Coral Springs, pas- Christian sozinho? As autoridades per-
CONEXÃO DIFERENTE
apresentar, Rick foi até a cozinha. sou a viajar quatro horas para visitar mitiriam? Seria justo com o menino? COM O GAROTO,
Lá, Candy preparava o jantar das seis Christian. Saíam para andar de caia- Consultou os Whites, que não pare- COMO SE TIVESSE
crianças que moravam sob o seu teto que, assistir a jogos de beisebol dos ciam ter dúvidas. “Ele será seu filho”,
na época. Enquanto os adultos con- Tampa Bay Rays ou às disputas dos não parava de dizer Wendy, a irmã
DEPARADO COM
versavam, Christian agarrou os joe- irmãos adotivos na Liga Infantil. Rick adotiva, como se isso fosse perfeita- UMA VERSÃO ANTIGA
lhos de Rick e perguntou se ele tinha deixava Christian subir nos seus om- mente óbvio. Rick torcia para que ela DE SI MESMO.
piscina. bros e lhe esfregar a cabeça raspada, estivesse certa.
– Tenho – disse Rick. mas também ralhava com o menino
– Então vou para a sua casa – decla- quando ele começava a ficar furioso. A primeira tarefa foi levar Chris- Rick previa criar Christian como pai
rou Christian. “Eu entendia sua raiva”, recorda, “e sa- tian de volta a um lar estável e amo- solteiro. Mas havia pouco começara a
Na época, Rick trabalhava como bia que ele precisava de alguém que roso. A pedido de Rick, os Whites sair com uma moça e achou que tal-
gerente de uma empresa de material mantivesse o controle. Às vezes, tive recuperaram a custódia. Enquanto vez fosse finalmente a escolha certa.
de construção; teve uma reunião de de levá-lo no colo para fora da praci- isso, ele começou o trabalhoso pro- Norma Pitzer era avaliadora de causas
negócios naquela tarde, mas Christian nha e prendê-lo no carro com o cinto cesso de se candidatar à adoção do trabalhistas, 43 anos, gentil e objetiva.
não lhe saiu da cabeça. Das crianças de segurança enquanto ele berrava e menino. Houve verificação do histó- Passara por dois casamentos, ambos
que conhecera na casa dos Whites, a chutava. Eu o levava para a casa da rico, investigação financeira, visitas sem filhos, e havia muito sonhava em
maioria era faminta de afeto, e essa mamãe, deixava-o no quarto e fe- residenciais e aulas obrigatórias de adotar uma criança. Quando soube
não era a primeira que se apegava a chava a porta.” criação de filhos. “Eles não me ensina- de Christian, recorda ela, “senti que o
ele. Mas Rick sentiu uma ligação di- Christian reagiu bem à atenção de ram nada que eu não soubesse”, diz ele, meu relacionamento com Rick estava
ferente com o menino, como se visse Rick; o seu humor ficou mais estável e “porque observei os meus pais fazendo predestinado. Como se fosse para onde
nele uma versão antiga de si mesmo. ele aguardava as visitas com expecta- isso durante muitos anos. O diretor do tínhamos de ir”.
No dia seguinte, ligou para Candy para tiva. Rick também. Pensou em se tor- programa disse que era a primeira Rick, no entanto, decidiu que não
saber mais. nar pai de Christian, mas isso parecia vez que tinham alguém que ficara em poderia se comprometer com Norma
O papa que
irradia
ALEGRIA
por Austen Ivereigh
E
m Buenos Aires, cidade natal pobre de Assis. Tudo foi feito com O diretor da TV Vaticano, que seguia reuniões de cardeais antes do con-
do papa, essa alegria espanta até muita confiança, sem um momento o papa com uma câmera, confirmou a clave. “Se for um conclave curto”, foi
quem o conhece melhor. Sim, de dúvida, porque ele sabia que agora história. O monsenhor Dario Viganò a mensagem que me chegou, “talvez
seu sorriso sempre foi encantador, seria essa sua tarefa, sua missão. disse que, quando o papa Francisco seja Bergoglio.” E tive poucos minutos
E
u conhecia seu país. Há vinte casa, para o povo diante da catedral sanas, ao seu bairro natal de Flores –, outra é que não se pode amar os po-
anos, morei em Buenos Aires para na Praça de Maio. No balcão, falara em imaginei-o sentado à minha frente, a bres apegado às coisas – nossos pla-
pesquisar uma tese sobre Igreja italiano com sotaque; mas agora saía o cabeça inclinada enquanto escutava nos, nossas ideias – e que, quando nos
e política. Aprendi a amar aquela ci- portenho cantado e coloquial – pense as esperanças ou angústias de alguém. desapegamos, deixamos que Deus
dade cativante e irritante, seu povo e num papa que fale com o sotaque de As entrevistas mais comoventes fo- seja Deus. Era o que ele mostrava na
seus ritmos, a cultura, a história e a sua cidade e terá uma ideia. ram com quem o conhecia bem, pes- praça naquele dia. Por isso não pre-
soas que se despediram dele no início cisou dizer muito. E também por isso
É UM TIPO ESTRANHO DE PESAR: de 2013. Ele as tranquilizara e dissera, não precisei de mais de um minuto
rindo, que não havia risco, que era ve- com ele para ser inflamado.
SEU AMIGO, SEU PAI ESPIRITUAL, VAI A lho demais, que voltaria para a Páscoa.
ROMA ELEGER O PAPA E ACABA ELEITO. E nunca voltou. Mas não morreu nem
sumiu. Estava em bilhões de telas de Austen Ivereigh é um jornalista inglês,
biógrafo do papa Francisco, e, em 2020,
música; com o tempo, meu espanhol Sua mensagem pedia que cuidas- TV. É um tipo estranho de pesar: seu lançou com ele o livro Vamos sonhar juntos:
adotou sotaques locais e expressões sem uns dos outros, que não tratas- amigo, seu pai espiritual, vai a Roma o caminho para um futuro melhor
pitorescas. sem os semelhantes de forma errada. eleger o papa e acaba eleito. Alicia, (Intrínseca).
Jorge Mario Bergoglio, mais que Mas ele usou uma expressão coloquial
argentino, é portenho, da cidade por- – “não arranque o couro de ninguém”
tuária de Buenos Aires; toma chimar- – proveniente da época anterior à re-
rão numa cuia com bomba de metal e frigeração em que os gaúchos esfola- Equivalências em tempo empresarial
é louco pelo impetuoso San Lorenzo, vam o gado abatido e abandonavam Um segundinho = 5 minutos
seu time de futebol. Adora tangos e a carcaça. Soava estranho um papa Um minutinho = 10 minutos
milongas, e os poemas nostálgicos falando assim. E, a cada dia, enquanto Cinco minutinhos no máximo = 1 hora
de vaqueiros do século 19. Quando ele encantava o mundo, eu ficava mais
era ativo na ordem jesuíta, deu aulas e mais ansioso para conhecer seu pas- Reunião rápida = 3 horas
durante dois anos no ensino médio e sado. Então veio aquele minuto de Uma ajudinha = 1 semana
levou o grande contista Jorge Luis Bor- contato em junho. Um projetinho = 6 semanas intermináveis
ges para falar às crianças sobre poesia Em outubro de 2013, armado com o
Oportunidade interessante = 2 anos
gauchesca. Preciso continuar? O papa contrato de um livro, voltei a Buenos
é tão portenho quanto um casal que Aires e passei semanas entrevistando Emprego = Droga, tem certeza que já são X anos?
desliza ao som do bandoneón pela quem o conhecia: os jesuítas, os pa- Vamos dar uma olhada = Nunca voltaremos a tocar no assunto.
Avenida Corrientes. dres das paróquias e os bispos; os ra-
marco kaye, McSweeney’s Internet Tendency
Assim, senti uma estranha ligação binos, imãs e pastores; os filósofos e os
Publicado em
agosto de 1971
A vida
póstuma de
Sherlock Holmes
Até mesmo o seu criador tentou matá-lo,
mas o detetive de Baker Street continua
bem vivo, fazendo com que seus
admiradores, no mundo inteiro,
se recusem a distinguir entre a
realidade a ficção.
© moussa81/istock
© itchysan/istock; © okfoto/istock
n-º 221-B e fazem a mesma pergunta.
© itchysan/istock; © okfoto/istock
Vermelho) foi publicada no Beeton’s sor Moriarty, o Napoleão do Crime, compreender, o editor da revista Strand
Suas assinaturas, no livro de visitan- Christmas Annual, em 1887, tão vivo se precipitarem pelas Quedas de Rei- sofria tanto quanto seus leitores e acio-
tes guardado por Alfred Blythe, de- era o retrato de Holmes, descrito por chenbach, na Suíça) e anotou, com nistas, descrevendo a morte de Holmes
monstram que, somente em agosto de Sir Arthur Conan Doyle, que, quase de alívio, em seu diário: “Matei Holmes.” como “um acontecimento trágico”.
1972, acorreram visitantes do Canadá, imediato, o autor começou a receber A reação do público deixou-o estu- Conan Doyle manteve-se intransi-
Estados Unidos, União Soviética, Ja- cartas implorando-lhe que pusesse pefato. Austeros negociantes da City gente durante oito anos, mas depois
pão, França, Espanha, Suécia, Índia, os signatários “em contato com o Sr. passaram a usar fumos de luto em suas cedeu, e ressuscitou Holmes, na mais
Itália, Brasil e Dinamarca. Alguns pa- Holmes”, a fim de que este esclare- cartolas de seda. Em Chicago, Boston e famosa de todas as histórias, O Cão
reciam convencidos de que Sherlock cesse um problema qualquer em seus São Francisco, surgiram clubes com a dos Baskervilles. Enquanto um caso se
Holmes não era só uma pessoa de assuntos particulares. legenda “Mantenha Holmes Vivo”. Um seguia a outro, a circulação da revista
C
tida de críquete. erca de trinta peças teatrais tindo da agradável premissa de que as quarto escuro, Holmes conseguia ver
E, desde então, Holmes continua já foram apresentadas, e, entre histórias de Holmes são registros ver- claramente uma cobra descendo pelo
vivo. Os volumes de histórias que des- elas, um musical na Broadway, dadeiros, mas por vezes incompletos, cordão da campainha, e investia con-
crevem seus casos já venderam o que intitulado Baker Street, anunciado em de seus casos, compilados pelo narra- tra ela com sua bengala. “Mas eu nada
se avalia em 100 milhões de exempla- Nova York com cartazes que procla- dor, Dr. John H. Watson, ex-integrante vi”, escreveu Watson.
res, em 41 idiomas, do esquimó ao es- mavam: “Ele ensinou James Bond a do Departamento Médico do Exército
peranto, e estão sendo constantemente fazer tudo.” Embora ainda esteja para Britânico. Dorothy Sayers, autora de COMO WATSON ERA
reimpressos. Podem ser lidos em braile aparecer um “Sherlock no Gelo”, ele romances policiais, assim definiu as UM TANTO LENTO, AS
e em taquigrafia; são adaptados num já foi visto num bailado do Sadler’s regras básicas do jogo: “Ele deve ser jo-
curso de inglês espalhado pela Europa Wells, e seus casos são constante- gado com a mesma solenidade de um HISTÓRIAS DE HOLMES
e foram, em certa época, distribuídos mente adaptados para o rádio e a te- torneio municipal de críquete no Lord’s. SÃO CHEIAS DE
aos policiais egípcios como parte do levisão. Na União Soviética, Sherlock O menor toque de extravagância ou de DISCREPÂNCIAS.
seu treinamento. O nome de Holmes é reverenciado como “o extermina- brincadeira destrói a atmosfera.”
entrou para a linguagem da América dor de crimes e males, um modelo de Como Watson era um tanto lento
Latina, onde, nos países de língua es- força e de cultura magníficas”. Uma para entender as coisas, e um modelo
panhola, as deduções inteligentes são recente produção soviética apresen- de discrição vitoriana, as histórias de Os sherloquianos procuram pistas
conhecidas como “sherlockhólmitos”; tava Holmes e Watson, fiéis leitores Holmes são crivadas de discrepâncias, com um zelo digno de seu herói. Nor-
em língua portuguesa, existe o adjetivo do Times, lendo o jornal comunista o que fornece um campo rico para o man Crump, então redator do Sunday
“sherloquiano”. Estrela da Manhã. trabalho de investigação literária. Os Times, certo dia, fez uma viagem peri-
Há muito tempo o criminalista Na Escandinávia, Holanda, África do sherloquianos há muito concluíram gosa, a pé, ao longo das pistas do me-
de Baker Street transpôs os limites Sul, Austrália e Japão, florescem os clu- que, na verdade, Holmes nunca disse: trô, em Inner Circle, perto de Aldgate,
da página impressa, pois Holmes é bes dedicados a estudos profundos dos “Elementar, meu caro Watson”; nunca a fim de verificar se um trem levando
uma figura irresistível para os atores casos de Holmes. Entre os 500 sócios fumou um cachimbo curvo, nem usou em seu teto um cadáver (episódio de
teatrais. Foi em 1903 que o detetive da Sherlock Holmes Society of London o deerstalker, aquele boné de viagem Os Planos de Bruce-Partington) viajava,
apareceu pela primeira vez numa (“um grupo eminentemente biruta”, se- com abas móveis para tapar as orelhas. no momento, no sentido dos ponteiros
tela de cinema, em Sherlock Holmes gundo um dos membros), encontram- Hoje, as páginas das bem impres- do relógio, ou no sentido oposto. Para
Desconcertado. O número de filmes -se engenheiros, cientistas, médicos, sas revistas da Sherlock Holmes So- fixar a data precisa de A Coroa de Be-
se eleva hoje a perto de 150 – sendo estudantes, padres, jornalistas, vários ciety e do Baker Street Irregulars se rilos, obra em que as pegadas na neve
que o mais recente, A Vida Íntima de professores universitários, um barão, dedicam a assuntos mais esotéricos. têm papel importante, o autor Gavin
O
s entusiastas mais extroverti- Jack Thorne, e o desenhista Michael outro, uma delicada incisão médica. quatro londrinos, entre cada dois mil
dos, às vezes, se vestem como Weight dedicaram-se a recriar o Sherlock continua e continuará a entrevistados, se declaravam conven-
os personagens das histórias: o ambiente, com uma perfeição sher- viver. A biblioteca pública de Maryle- cidos de que Holmes estava realmente
acontecimento mais deliciosamente loquiana, e insistiram em que até bone Road recebe consultas frequen- vivo. Para um sem-número de outros,
biruta dos últimos anos foi a peregri- mesmo a poeira encontrada no apo- tes de pesquisadores, como as daquele ele nunca morreu. Conforme escre-
nação, seguindo os passos de Holmes, sento fosse autenticamente vitoriana estudante da Universidade do Arizona, veu certa vez Vincent Starrett, grande
que levou 40 sherloquianos ingleses e – meticulosamente colhida num que está escrevendo uma tese sobre sherloquiano: “Holmes e Watson ainda
americanos, adequadamente vestidos sótão das proximidades, o qual, ao Holmes para obter o diploma. O Con- vivem, para todos os que os estimam,
e ostentando costeletas, até a Suíça, em que se saiba, não era aberto desde selho de Turismo de Londres vive pres- num cantinho romântico do coração,
1968. O ponto alto da excursão ocorreu a década de 1890. Os correios en- sionado para satisfazer a procura, por numa terra nostálgica do mundo ma-
à beira das Quedas de Reichenbach, traram na coisa, desencavando for- parte dos visitantes de outros países, ravilhoso da imaginação.”
quando Lord Gore-Booth, então pre- mulários de telegramas da época. A de reproduções do Guia Turístico da
sidente da Sherlock Holmes Society (e Scotland Yard, não podendo fornecer Londres de Sherlock Holmes, livro que * De 1973 para cá, os números aqui
até recentemente chefe do Ministério um molde em gesso das pegadas do apareceu no número de inverno de citados cresceram consideravelmente.
do Exterior) tomo a si o papel de Hol- Cão de Baskervilles, fez um molde 1970 do Sherlock Holmes Journal. (“Vi- Hoje, por exemplo, são mais de 200 fil-
mes. Repetiu a encenação da famosa da pata do maior cão policial da cor- ramos em Welbeck Street; na primeira mes, entre os quais um de 2020 (Enola
luta contra Moriarty (este último repre- poração. Eram necessários muffins esquina, acha-se Bentinck Street, onde Holmes), e outros grandes astros inter-
sentado por um ilustre Conselheiro da (bolinhos de trigo servidos quentes fracassou o plano de Moriarty para eli- pretaram Sherlock, como Robert Dow-
Rainha) antes de inaugurar uma placa com manteiga) para a bandeja de minar Holmes...”) ney Jr. e Henry Cavill.
de fé
o esperavam no
Leste Europeu.
Quando o fazendeiro
de 40 anos parou para
pensar no futuro, achou-o
totalmente sufocante.
O que fez em seguida
surpreendeu a todos.
por Natalya Klyukovkina
Publicado em
102 edição especial fotografado por andrei liankevich/anzenberger/redux 103
abril de 2011
edição especial
N
osso destino fica uns 190 Finalmente conhecemos o dono dessa Em 2003, quando leu numa publi- único que respondeu “100% de cer-
km a sudoeste de Moscou. pequena ilha de prosperidade parti- cação agrícola uma reportagem que teza”. Dois outros fazendeiros da via-
No marco miliário de 174 cular: Hans Peter Michel, um suíço de convidava fazendeiros a visitar a Rús- gem, Joseph Lussi, na época com 38
km, saímos da congestio- 48 anos. sia para trocar experiências e conhe- anos, e Jakob Bänninger, de 56, tam-
nada estrada Moscou-Kiev cer novas oportunidades de negócio, bém se interessaram, mas hesitavam
e caímos numa região campestre de Hans Peter cresceu na pequena fa- pensou: Por que não? Ligou e reser- em recomeçar a vida em terra estra-
densas florestas de pinheiros, planta- zenda da família, perto de Böningen, vou uma vaga. nha, principalmente Bänninger, que
ções que vão até o horizonte e tristo- na região central da Suíça. Gostava de Em julho, ele encontrou o grupo era casado. Da segunda viagem, em
nhos remanescentes arquitetônicos ser fazendeiro. Quando os dois irmãos de 34 fazendeiros que partia para a novembro, só participaram sete fa-
da era soviética – compridos muros e as duas irmãs foram seguir carreira Rússia. Hans Peter achou o modo de zendeiros, inclusive Hans Peter, Lussi
de concreto dilapidados, prédios na área de turismo, ele assumiu os 16 vida russo mais tranquilo e o povo e Bänninger.
melancólicos de tijolos cinzentos, hectares e as 15 vacas da fazenda. mais aberto que os suíços, embora, à A perspectiva mais interessante era
pequenas aldeias Mas, com o pas- primeira vista, alguns hábitos fossem a Fazenda Leite Suíço, em Gorbenki,
desoladas. A estrada sar dos anos, a ro- desconcertantes. No campo suíço, o uma propriedade leiteira de 300 hec-
estreita é cheia de
NÃO É PARTIR t i na d e t rab a l h o costume era cumprimentar todos na tares com vários prédios abandona-
lombadas e bura- QUE ME ASSUSTA, ficou menos satis- rua, conhecidos ou não. Os russos dos e 90 vacas. Anos antes, a Suíça
cos. A última aldeia MAS FICAR, PENSOU fatória. Ele se sentia passavam sem sequer olhar uns para criara em Kaluga um fundo para a
antes da ponte que limitado pelas mon- os outros. Mas, assim que passou a concessão de crédito a pequenas em-
nos leva a Gorbenki,
HANS PETER. tanhas e também conhecê-los, descobriu uma enorme presas e implementara um programa
nosso destino na re- pelas cidades, que diferença. Depois de apresentados, agrícola para comprar terras, recons-
gião de Kaluga, não roubavam o espaço os russos eram muito receptivos, che- truir fazendas antigas e equipar uma
tem luz elétrica; não há um único da natureza. A maioria dos fazendei- gando a convidar para o chá estranhos pequena fábrica para a produção de
poste à vista. ros suíços não podia nem sonhar em que tinham acabado de conhecer. leite. Mas o empreendimento não
A estrada faz uma curva, e um pré- expandir a propriedade. Certo dia, As coisas que repeliram os outros prosperou e a decisão foi vender a Fa-
dio grande e baixo, com um alegre te- ele pensou: Estou com 40 anos! Mais o estimularam. É verdade que muitas zenda Leite Suíço, que estava à beira
lhado vermelho, entra no campo de 20 ou 25 anos disso e me aposento. casas eram precárias e muitos aldeões da falência.
visão. Parece deslocado naquele am- Isso não é futuro para mim! mal conseguiam sobreviver. Mas,
biente. Um rebanho de vacas limpas Hans Peter se interessou pelo Leste mesmo após anos de problemas e di-
de um belo tom de bege marcha pela Europeu quando prestou o serviço ficuldades, ainda eram alegres. Claro
estrada rumo ao estábulo. Fardos de militar, em 1987. Na sua guarnição, que havia buracos na estrada, proble-
feno com cobertura protetora se es- havia 12 jovens russos, prisioneiros mas com as autoridades e as mu-
palham pelo campo. da guerra do Afeganistão. Ele desco- danças da economia, mas tudo
Quando paramos na entrada do briu que tinham sonhos e interesses mapa: 5w infographic podia ser resolvido. I
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prédio de telhado vermelho, um ho- iguais aos seus. Mais tarde, durante No fim da viagem, o or-
mem de macacão cáqui e botas de um ano, para ganhar um dinheirinho ganizador perguntou ao Moscou
borracha vem nos receber. Ele es- extra, Peter acompanhou o transporte grupo sobre a proba- o Gorbenki
ic
tende a mão com um sorriso largo, de reses para a Hungria e o Kosovo. bilidade de fazerem nt
t lâ Boningen
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os olhos azuis faiscantes, e diz : Muitas vezes pensava: Quem sabe há negócios na Rússia. o
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“Bem-vindos à Fazenda Leite Suíço!” algo para mim? Hans Peter foi o e
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104 edição especial edição especial 105
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Hans Peter achou que poderia fa- terminado com um gole de vodca por
zer o negócio dar certo. Não rompe- insistência do administrador, os suí-
ria laços ao se mudar para a Rússia. ços dormiram no chão do escritório.
Solteiro, não teria de desenraizar a No dia seguinte, compraram camas
família. Não falava russo, mas poderia e se mudaram para dois cômodos sem
usar intérpretes até aprender. Mas foi água em cima da garagem. Ali seria o
difícil tomar a decisão de vender a sua seu lar durante dois anos, até cons-
fazenda para levantar capital. truírem uma casa.
Não é partir que me assusta, o que Na Suíça, Hans Peter aprendera a
mais me assusta é ficar, pensou Hans dizer “olá”, “obrigado” e “como vai?”
Peter com os seus botões. O pai, no em russo, mas não tivera tempo de
entanto, não conseguia entender a aprender mais. Os sócios contrataram
decisão do filho de vender a fazenda uma garota de 16 anos para servir de
da família. intérprete.
No inverno de 2004, Hans Peter e As 90 vacas estavam subnutridas.
seus dois novos sócios, Lussi e Bän- Fora o feno, não havia quase nenhum
ninger, tomaram a firme decisão de alimento. Era óbvio que tinham de
adquirir a Fazenda Leite Suíço e pla- plantar milho, mas o equipamento
nejaram uma viagem à Rússia para estava danificado. Os tratores russos
efetuar a compra. Hans Peter teve a precisavam de consertos constantes.
súbita inspiração de convidar o pai Os suíços não estavam preparados
para acompanhá-los. E, como espe- para a atitude russa diante do traba-
rava, quando o pai conheceu os sócios lho. Com demasiada frequência, os
do filho, viu a região e a fazenda, en- tratoristas e ordenhadeiras sumiam
tendeu que a oportunidade era real- depois do primeiro salário. Acaba-
mente boa. Na Rússia, eles poderiam ram por demitir alguns e fazer quase
comprar ou arrendar toda a terra que todo o trabalho sozinhos. Os vizinhos
quisessem. estranharam: no mundo russo, donos
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de empresas usam terno e têm moto-
ans Peter e os sócios se ristas. Os recém-chegados pareciam
mudaram para Gorbenki ainda mais exóticos por arregaçarem
em abril de 2004. Nada as mangas e se lançarem ao trabalho.
estava pronto quando – Houve vezes em que alguém pe-
Hans Peter, a mulher, Yulia, e os
filhos Johann-Ivan, de 3 anos, e chegaram: não havia in- dia para falar com o dono – recorda
Nastya, 9 anos. Yulia era térprete e nem carro à espera deles; Hans Peter, rindo. – Eu dizia: Sou o
empacotadora na Leite Suíço o administrador russo da fazenda, dono. Quase sempre pensavam que
quando os dois se conheceram. que fora mantido pelos sócios para eu não tinha entendido a pergunta.
“É como se tudo tivesse gerenciar o pessoal, não tinha onde Hans Peter se surpreendia a
acontecido por si só.” hospedá-los. Depois do primeiro dia, cada passo. No começo, os aldeões
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deias locais e à cidade de Kaluga. A Conselhos da mamãe
l g u m t e m p o d e p o i s fazenda cresceu de 300 para 700 hec- Para meus filhos que foram morar sozinhos,
da chegada, Hans Peter tares. Hans Peter e os sócios planejam
passo uma lista de lições de vida:
começou a notar uma construir um novo estábulo, aumen-
moça magra, de cabelo tar o plantel e fabricar queijos. 1. Evite casar-se com alguém que dá
louro e comprido, que Hoje, 39 pessoas trabalham na fa- a descarga de propósito quando você está no chuveiro.
trabalhava como empacotadora de zenda: 14 ordenhadeiras, três vete- 2. Quando alguém lhe avisar que o que vai
leite. Gostou dos olhos dela, do seu rinários, cinco empacotadores, 12 dizer é ”para o seu próprio bem”, espere o pior.
jeito de andar. Descobriu que o nome tratoristas e mais administrador, di- 3. Quando um político diz “Quero deixar uma coisa bem clara”,
da moça era Yulia e que tinha uma retor técnico, contador, auxiliar de lembre-se de que em geral ele não o fará.
filha de três anos. contabilidade e economista. Toda 4. Seus filhos podem sair de casa, mas seus pertences
Apesar da barreira do idioma, o manhã, dois micro-ônibus buscam ficarão para sempre no alto dos armários.
casal conseguiu se comunicar desde os funcionários nas aldeias próximas
5. Tenha pelo menos um amigo de verdade, afinal você não pode
o princípio. Todo dia ele aprendia al- e os levam para casa à noite.
dar um tapinha nas próprias costas e nem chorar no próprio ombro.
gumas palavras, e pagou aulas de ale- Apesar da Leite Suíço ser uma em-
charlotte johntone
mão para Yulia. presa de porte médio segundo padrões
DE GUERRA
Soldados abalados mentalmente
pelos horrores da guerra vão sendo
curados e restituídos ao serviço pelos
psiquiatras do exército
Royce DeGrie/Istock
DeGrie/Istock
permanecido sob o ruído constante de metralhadoras e
canhões. Súbito, uma bateria de obuses italianos, situada à
sua esquerda, lançou duas granadas. O sargento, ouvindo o
© Royce
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porém, sensibilidade. Mão e braço lamento, não podiam receber visitas,
estavam sem dúvida paralisados. nem cartas; e escolhiam-se, para mi- alta porcentagem de ca- tratar de outra maneira os jovens
Deixou-se ficar assim por alguns nistrar-lhes, remédios incômodos, re- sos de neurose na Primeira acometidos de desordens nervosas. O
dias, quase uma semana, sem recor- pugnantes, amargos. Admitia-se que, Guerra Mundial foi atribu- tenente-coronel Perrin H. Long, que
rer ao médico, na esperança de que, em tais condições, acabariam talvez ída, algum tempo, à relativa já serviu no Hospital Johns Hopkins,
de um momento para outro, recupera- preferindo voltar às fileiras a supor- facilidade, sob o ponto de e atualmente faz parte do pessoal
ria os movimentos. Afinal, como não tar o rigor de semelhantes métodos vista do exame de sanidade men- do Corpo de Saúde em atividade na
se confirmasse a sua expectativa, não de cura. tal, com que se faziam as admissões África do Norte, teve ocasião de dizer-
houve jeito senão baixar ao hospital. Desnecessário é dizer que muito no exército. Assim, quando em 1940 -me: “O que a medicina tem feito aqui
Examinado detidamente, não se lhe poucos se restabeleceram; suas neu- se restabeleceu a conscrição, as exi- de mais importante é a prática de um
encontrou ferimento de espécie al- roses de guerra tenderam, ao con- gências quanto a condições, tanto tratamento que vai curando doentes
guma. Um psiquiatra deu-lhe uma trário, a acentuar-se. Milhares deles mentais como físicas, tornaram-se de neuroses de guerra, os quais re-
dose de pentotal de sódio e, sob a foram devolvidos aos respectivos rigorosas. Sem embargo, iniciada que gressam à linha de combate ou vão
ação deste hipnótico, o sargento mo- lugares de residência, onde se torna- foi a campanha da África do Norte, trabalhar utilmente, embora não com-
veu livremente o braço, a mão e os de- ram um ônus público. Os hospitais as neuroses de guerra, a que ainda se batendo, na retaguarda. Todos eles
dos. Fixou-se-lhe então o diagnóstico: neuropsiquiátricos, mantidos pelo dava o nome de “neurose traumática” voltarão à vida de paz em condições
“exaustão”; e foi ele segregado para governo, encheram-se destes destro- © johngomezpix/istock
© johngomezpix/istock (shell-shock), entraram, do mesmo de reajustamento a atividades úteis. O
tratamento especial. ços, remanescentes da guerra. modo, a manifestar-se, e atingindo homem a quem se deve sobretudo o
Se o caso houvesse ocorrido na Só mais tarde – muito tarde demais indistintamente homens dos mais salvamento de tantos soldados, para a
Primeira Guerra Mundial, teriam-no – compreendeu-se que aqueles ho- vários tipos, quanto a coeficientes de própria função militar, é o major Fre-
atribuído a “neurose traumática”, que mens foram atingidos realmente por ordem mental. derick Hanson.”
era então, em geral, o responsável um dos danos ou males mais terríveis Todavia, desta vez, o serviço mé- Conversei com o major Hanson,
pelas psiconeuroses verificadas no que a guerra pode infligir. dico do exército está deliberado a anteriormente médico clínico em
O
provavelmente mais adequado aos vá- -se-lhes sedativos, para ajudar-lhes o Os majores Hanson e Louis Tureen
rios tipos de neurose de guerra. caso é de fazer pena. Na Si- sono; alimentação regular e aqueci- decidiram fazer a experiência de
“Outra coisa a ter em mente é que a cília, no auge da luta, viam-se mento; enquanto, por outro lado, sob tratar 95 dos acometidos do mal, na
exaustão, ou a neurose de guerra, não soldados a chorar histerica- a ação narcótica do pentotal, tratava- própria linha de frente, ao som dos
distingue entre os soldados. A bravura mente, ou recuando, a vagar, -se de livrá-los mentalmente do pesa- canhões, e sob ataques aéreos que
ou a covardia pouco influem no caso. das linhas de frente, como delo que os oprimia. Explicava-lhes o se verificavam com frequência. Ses-
Tampouco exerce influência o tempo sonâmbulos. Traziam na face a pali- psiquiatra o que lhes havia sucedido, senta deles, ao fim de quatro dias,
de treinamento militar que o homem dez do terror; olhos vagos, boca lassa; e as razões do fenômeno, falando-lhes retornavam ao combate; e a inspe-
tenha tido. Homens selecionados, tremiam como se estivessem com em termos destinados a revigorar-lhes ção realizada, três semanas depois,
como sejam pilotos e tripulantes de frio; andavam com os joelhos a do- o eu. Em vez de submetê-los à situ- relativamente a 44 dos 60, mostrou
aviões de combate e bombardeio, po- brar como se não pudessem suportar ação de doentes, mantinha-se-lhes a que todos, com exceção de cinco, se
dem apresentar os mesmos sintomas. o peso do próprio corpo. Alguns não disciplina de soldados, deixando-os haviam portado convenientemente,
“A causa mais decisiva da exaustão podiam dizer uma palavra, senão a © johngomezpix/istock em contato com os homens das suas ainda em fortes refregas. Quase to-
© johngomezpix/istock
estará na luta íntima entre o desejo gaguejar. Como crianças em confu- próprias unidades. O fato é que mui- dos permaneceram em pleno serviço
de bem cumprir o dever e o instinto são, assustadas, estremeciam violen- tos se restabeleceram dentro de qua- ativo, até o fim da campanha, sem
poderoso que incita a poupar a vida. tamente ao mais leve ruído. E eram tro a cinco semanas, e alguns mesmo recaída. Os 35 que não melhoraram
Não nos esqueçamos de que o medo como crianças, no modo aflito como em poucos dias. ao termo dos quatro dias foram man-
é a reação normal do ser humano em pediam socorro. Mas uma conclusão se tirou: das dados para o hospital da base, onde a
perigo de morte. Todos os soldados Parecia que nunca mais consegui- vítimas de exaustão mandadas para grande maioria se refez em condições
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o homem podia falar, mas também ria continuou deprimido; dizia que tinha domina, de responsabilidade e dever.
e gritava “Bombardeiros de mergu- epois de uma pausa, obser- falhado, deixara de cumprir o seu de- Os casos de simulação têm sido pou-
lho!” e escondia-se embaixo da cama. vou o major: “Naturalmente, ver, e nunca mais poderia voltar a sua cos. E não tem havido psicoses reais
Tocava harmônica, porém sempre a o ideal seria que os oficiais casa e encarar a esposa e os pais. – loucura – produzidas pela guerra. Os
mesma música: Maybe. E, quando to- do serviço médico atuassem “Tivemos muitos assim. Alguns únicos soldados atingidos por psicose
cava, caía em êxtase, e as lágrimas lhe ainda em tempo de evitar pensavam que haviam faltado aos são os que já traziam consigo prece-
corriam pelo rosto. propriamente que a exaustão domi- seus camaradas, ou que, por sua dentes de insanidade.
“Sob a narcose do pentotal, revivia nasse os pacientes, como aliás se pro- culpa, algum companheiro tinha mor- “Temos adiante de nós uma grande
as lembranças de guerra, e expandia- cede para com o pessoal dos aviões. rido. Em tal hipótese, mostram-se, em tarefa, e damos apenas os primeiros
-se a respeito. Descobrimos que ele Mas, numerosa e dispersa como é a geral, obstinados. É contudo espan- passos. Mas estamos tratando a exaus-
partira para a luta preocupado com a tropa de terra, não é possível fazê-lo. toso observar quantos destes rapazes tão com indiscutível êxito; estamos a
situação da mulher que estava grávida. Instruímos, todavia, os oficiais médi- ficam firmes, pela simples ação da arrancar homens ao terrível pesadelo
Maybe era justamente uma canção de cos em serviço nas linhas avançadas, força de vontade, levando o combate de ideias fixas que os atormentem, e
que esta gostava muito. O paciente res- habilitando-os a reconhecer os sinto- ao fim, para só depois manifestarem possam desintegrá-los mentalmente.
tabeleceu-se em quatro semanas de mas e interpretar os casos. Quando a os efeitos da exaustão. Houve dois pa- Nossos rapazes voltarão ao seio de
tratamento. Não voltará à frente, mas tropa se torna mais amadurecida, e dioleiros que trabalharam duramente suas famílias em boa forma, e não
poderá exercer atividades normais, e de alguma forma expurgada de per- ao longo de toda a campanha. Ainda como destroços cambaleantes de um
nenhuma desordem mental de caráter sonalidades menos fortes, o número quando esta se findava, coube-lhes sistema nervoso arruinado.”
permanente o transformará, depois da de casos vai diminuindo.”
guerra, em carga pública.” Algumas vezes, explicou o major
Referiu o major Hanson este outro Hanson, o restabelecimento é re- Provérbio persa
caso, mais simples: tardado em virtude ou por efeito de “A mão leve conduz o elefante por um fio.”
“Um jovem condutor de tanque tinha melancolia profunda. Contou então o annick cottreau
OOMILAGRE
MILAGREDO
DOCÉ
CÉ REBRO
REBRODE
DEDYLAN
118 edição especial
DYLAN © dylan coulter edição especial 119
DIA ZERO Apesar da fortaleza óssea que o envolve, o cérebro humano recorreriam a cronogramas padro-
nizados, e o prognóstico guiaria o
é muito vulnerável a lesões físicas. Todos os anos milhões de pessoas no tratamento. Mas, como admitem os
mundo sofrem lesões cerebrais traumáticas e, embora a maioria seja leve neurologistas, os primeiros prognósti-
ou moderada, milhares delas causam dano cerebral grave. Essas lesões cos são muito difíceis, os diagnósticos
têm muitas falhas e os cronogramas
sempre acontecem no mesmo dia: o dia zero, que marca o início de um que orientam a recuperação são re-
calendário de prognósticos fatídicos e muitas vezes falhos. futados por pacientes que não obe-
decem à estatística. Novas pesquisas
também indicam que muitos pacien-
Para Dylan Rizzo, 19 anos, o dia zero num poste telefônico. Dylan estava in- tes que parecem inconscientes têm
foi 28 de dezembro de 2010. Alto e ma- consciente. Sua respiração parecia o mais consciência do que se pensava e,
gro, com um senso de humor irônico, gorgolejar de um canudo num copo apesar da gravidade das lesões, uma
Dylan era louco por esportes: jogava quase vazio. Ele mal percorrera 200 probabilidade significativa de recu- 31-º dia: As incisões mostram onde partes
hóquei, competia em salto em altura metros antes de bater no poste, talvez peração. Em termos simples, a neuro- do crânio de Dylan foram removidas na
por sua escola de Lynnfield, Massachu- depois de derrapar no gelo. Não es- ciência está mudando o significado de cirurgia.
setts, e torcia pelos Boston Bruins. tava com o cinto de segurança. “caso perdido”.
Às 20h30, indo de carro para jogar Os socorristas levaram 8 minutos sejam contestadas por médicos e
videogame na casa do amigo Ryan, para tirá-lo de lá. Havia tanto sangue 2-º DIA pesquisadores.
Dylan ligou para a mãe. Não conse- e pele lacerada que os paramédicos Dylan tem uma família grande e é de
guia encontrar o controle do Xbox. não conseguiram inserir o tubo do cidade pequena. Para manter todos in- 5-º DIA
– Você sempre mexe nas minhas respirador durante os 29 minutos de formados, os pais Tracy e Steve Rizzo Na UTI, os Rizzos puseram para to-
coisas – disse ele. ambulância até Boston. No Hospital publicaram relatórios diários no site car um iPod com as músicas predi-
– Não mexo, não – respondeu Tracy Geral de Massachusetts, Dylan fez CarePages. “Dylan sofreu recentemente letas de Dylan. Algumas enfermeiras
Rizzo. uma tomografia e foi levado às pres- um acidente de carro”, começava a pri- achavam que Dylan não precisava de
Depois de desligar, a mãe achou o sas para a cirurgia. Os neurocirurgiões meira postagem. “Sua situação é está- estímulos, mas provavelmente não
controle no carro dela. removeram o lado esquerdo do crânio vel, porém ainda muito grave [...] Os importava. Em nível neurológico, o
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