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E D I Ç Ã O E S P E C I A L

As histórias
mais

MA R CA N T E S
de todos
os tempos!
ISSN 1516-7038
02113 >

9 771516 703006

ISSN 1516-7038
02113 >

9 771516 703006

EDIÇÃO ESPECIAL • R$ 18,90


selecoes.com.br
Aprenda inglês e DA EDITORA
fale com o mundo!
Histórias que
sobrevivem
o de
Exclusiv !

E
scolher histórias que marca- escrevia uma história feia e sombria
s
Seleç e
õ ram a trajetória de Seleções não na Europa – que seriam suficientes
é tarefa fácil. Afinal, às vésperas para fazer vários especiais, só sobre
de completar 80 anos, o que não falta o tema. Não é à toa que, nesta sele-
são histórias. ção, três textos retratam episódios da
No entanto, com o desafio de guerra. Numa época sem TV e sem
selecionar algumas para este espe- internet, Seleções incumbia-se da
cial (cujo tema “Histórias marcantes missão de levar a seus leitores a des-
de todos os tempos” foi escolhido crição mais realista desse período
por nossos leitores em uma pesquisa atroz da história da humanidade.
Quer aprender a falar inglês com
on-line), lá fomos nós examinar mais E, claro, não poderíamos deixar
apenas 20 minutos de aula todos de 900 números da revista... Sim, de fora as matérias que estão desde
os dias, sem professor e no seu próprio ritmo? estivemos bem ocupados nesses sempre no nosso DNA: os dramas da
últimos meses, e o resultado desse vida real, a inspiração que vem da
Com Inglês em 20 Minutos por Dia, ao
trabalho você tem agora nas mãos: generosidade e da coragem de pes-
final de um mês você já poderá falar inglês com 17 histórias que nos comoveram – soas e animais comuns e da vontade
segurança e, em um ano, falará com fluência! algumas nos fizeram chorar, ou- invencível de homens e mulheres
tras nos enterneceram e outras de viver e não se deixar derrotar.
ainda nos deixaram perplexos Enfim, uma seleção e tanto.
Ligue já! (como as dos textos sobre a
Segunda Guerra Mundial).
Espero que, como nós,
você aprecie a leitura.

(21) 4004-2124
Atendimento de 2ª a 6ª, das 8h às 20h, exceto feriados.
São tantos os relatos da
guerra nos primeiros anos
da edição brasileira de
Raquel Zampil,
editora-executiva
Seleções – chegada aqui em Escreva para mim em
1942, quando a guerra editor@selecoes.com.br

edição especial 1
SUMÁRIO 86 Um presente do passado
Um antigo gesto de generosi-
dade salvou uma prisioneira

Artigos no campo de concentração


de Auschwitz.

4 Colhendo o que se semeia 40 Uma herança recuperada 94 A vida póstuma de


De tudo que ele fez na vida, Décadas depois que os nazistas Sherlock Holmes
trabalhar em um arrozal foi a roubaram as obras de arte da O famoso detetive de Baker
tarefa que mais o ajudou a sua família, um morador de Street resistiu até mesmo
desenvolver a autodisciplina. Montreal foi em busca de justiça. quando seu criador tentou
matá-lo e continua angariando
8 O poder dos gêmeos 48 Por amor a Lilly admiradores no mundo inteiro.
Os irmãos Craig e Brenton A dócil pit bull de olhos suaves
sempre tiveram uma ligação conquistou o policial e foi a 102 Ato de fé
inexplicável. Até os médicos salvação da sua mãe. Quando o fazendeiro de
estavam impressionados.

16 O dia em que nasceu


54 Mayday
Após a queda de seu avião,
40 anos pensava no futuro,
este não lhe parecia promissor.
Então ele tomou uma decisão
8
a era atômica
16
fazia 18 horas que ele estava de todo inesperada.
Quem presenciou a primeira no oceano. Mas já começava a
reação nuclear em cadeia tinha perder as esperanças. 110 Como se curam hoje as
ideia do que isso significaria neuroses de guerra
para o mundo? 64 Mundos de sabedoria Após uma batalha sangrenta,
Conheça bibliotecas os soldados ficam mentalmente
24 Um papel que adoro esplêndidas em diversos países. abalados. Mas logo precisam vol-
desempenhar tar à ativa. Como eram tratados
A vida fica muito mais divertida 72 De pai para filho na Segunda Guerra Mundial?
©pip blackwood; © natali_mis/istock
quando se é avô. Rick Kelly, vítima de maus-tratos ©pip blackwood; © natali_mis/istock
na infância, foi resgatado por 118 O milagre do cérebro
28 O adeus no campo de um casal amoroso. Estaria ele de Dylan
batalha pronto para fazer o mesmo Após um terrível acidente
A cruel despedida de um por outro menino? que deixou o jovem de 19 anos
capitão exemplar. com graves danos cerebrais,
80 O papa que irradia alegria sua jornada de volta à vida é
30 Cowboys dos bons tempos Como Francisco se transformou a prova da incrível capacidade
Como era o seu autêntico de um homem sisudo na atual que a mente humana tem de
estilo de vida? figura mais simpática da Igreja. se recuperar.

2 edição especial
COLHENDO O
QUE SE SEMEIA
Por Yu Yu-Chao

Fui lavrador, semeei a terra, carreguei estrume para


fertilizá-la, trabalhei nas colheitas, apanhei folhas de chá e
cortei madeira na isolada mas linda região de Kuanshi, em
Formosa. No entanto, de todas as tarefas agrícolas que
conheci, considero a de limpar um arrozal de ervas daninhas
a que melhor nos ajuda a desenvolver a autodisciplina.

Claro que, hoje em dia, o fazendeiro encharcado, pegajoso e sujo. Sempre


só precisa usar produtos químicos que a lama me entrava nos olhos e na
para matar as ervas. Há cerca de 30 boca, levantava-me, procurava a cha-
anos, porém, sendo eu só um rapaz, leira que trazíamos com água limpa
a coisa não era tão fácil. Passei a aju- e tentava retirá-la; mas era sempre
dar a família desde os 8 anos de idade, muito difícil.
trabalhando com o pai e com os meus A primeira limpeza do terreno de
irmãos mais velhos, Yuh-sien e Yuh- ervas daninhas no ano era feita pouco
tang. Éramos muito pobres e não antes da primavera, e a segunda, a
© sakdawut14/istock
© sakdawut14/istock

podíamos pagar outros trabalhadores. meio do verão. Nessas alturas, o sol


Lembro-me de usar, como única pro- queimava as minhas costas curvadas. O
teção, um chapéu, uma camisa e calça vapor de água que emergia constante-
curta, e de que, ajoelhado naqueles mente do terreno úmido enchia-me as
terrenos pantanosos, ficava na lama narinas e cobria-me o rosto. Das dez da
até quase a cintura, todo salpicado, manhã até as quatro ou cinco da tarde

Publicado em
4 edição especial ediçãojaneiro
especial 5
de 1985
eu transpirava, sentindo o suor escorrer quente. Não conseguia sentar-me e aceitando o mais humilhante dos
pelos braços e pernas cobertos de lama. comer antes de ter a certeza de que to- trabalhos para termos uma colheita
Se uma gota de suor me entrava nos dos os meus poros estavam libertos da melhor. Até mesmo um búfalo ou um
olhos, eu tinha vontade de chorar, mas sujidade e de que não restava vestígio cavalo, quando a serviço do homem,
nunca me atrevi a fazê-lo. Tentava não do mau cheiro dos pântanos. Quando mantém-se de pé. Subitamente inva-
pensar na angústia que me provocava a vestia uma roupa limpa de algodão diu-me uma grande compaixão, um
pobreza da minha família, e, para evitar grosseiro, levemente perfumada por respeito enorme pelos milhões de la-
que o suor me afetasse a vista, baixava ter secado ao sol, sentia-me em êxtase. vradores pobres que existiam, e o ful-
o rosto o mais que podia. Durante as férias de verão, após o cro dos meus problemas deixou de ser
Falava comigo mesmo: Seja pa- meu terceiro ano escolar, papai adoe- a minha família e eu próprio. Comecei
ciente! Qual a vantagem em lamentar ceu, mas continuou a trabalhar nos a ver tudo com outros olhos.
a nossa sorte? Se os meus pais e irmão campos, pois havia muito a fazer. Certo dia, enquanto estávamos des-
aguentavam, eu também conseguiria. Olhando a sua figura curvada à minha cansando perto de um dos campos,
As plantas apodrecidas exalavam frente, eu não podia deixar de pensar meus irmãos e eu chegamos à con-
mau cheiro sempre que arrancadas. no futuro sombrio que me aguardava. clusão de que alguns conhecimentos
práticos e a aplicação de tecnologia
nos poderiam ajudar, e também aos Sempre que o vento soprava, eu sen-
O SANGUE E O SUOR FAZEM PARTE DA outros agricultores, a melhorar as tia-me fascinado ao olhar a beleza
NOSSA VIDA, E NÃO DEVEMOS TER MEDO DE nossas condições de trabalho e a mi- deslumbrante dos arrozais que se
ENFRENTAR OS OBSTÁCULOS. norar o nosso sofrimento. A resolução agitavam, como se fossem ondas de
animou-me a continuar estudando, a um mar imenso.
entrar para a universidade, a conse- Trabalhei arduamente na região
Próximo da margem do rio, o lodo era Estava condenado a esgotar minha guir uma bolsa de estudos para os humilde e isolada onde nasci, e orgu-
tão viscoso que me causava arrepios. vida trabalhando no campo enquanto Estados Unidos, e a vencer assim a lho-me disso. Embora, mais tarde, me
Quando estávamos de pé, lavrando ou outros rapazes eram livres para lutar antiga miséria. No entanto, o fato de tenha dedicado à vida acadêmica e as
semeando, não nos custava tanto, mas pela sua felicidade? ter labutado em meio ao lodo ensi- feridas da juventude tenham cicatri-
era repugnante trabalhar com o rosto Por que haveria pessoas no mundo nou-me que o sangue e o suor fazem zado por completo, lembrarei sempre
tão perto daquela água. que nunca saberiam o que era labutar, parte da nossa vida e que não deve- do que aprendi: é necessário firmar os
Eu ficava quase sempre com erup- e outras, como eu, que trabalhavam mos ter medo de enfrentar as dificul- pés na terra, e nos esforçar, para ser-

© thirawatana phaisalratana/istock
© thirawatana phaisalratana/istock
ções na pele e com os joelhos san- arduamente desde crianças, colheita dades e os obstáculos; mas, o que é mos recompensados.
grando. A cana dos bambus cortava após colheita, ano após ano? Por que mais importante ainda, aprendi o sig-
muito e os inúmeros insetos e ver- razão haveria pessoas sentadas diante nificado da expressão: “Só colhemos o Os irmãos do autor também conse-
mes e as cobras mordiam-nos. Ha- de ventiladores elétricos ou em salas que semeamos.” guiram escapar à labuta diária nos
via também pequenas sanguessugas, com ar condicionado enquanto eu Minha mãe costumava dizer: “Não arrozais. Na época em que o artigo foi
que nos sugavam sangue e causavam continuava suando e ofegando na- julgue um homem pela sua aparência, escrito, Yuh-sien era membro do De-
infecções. quele calor? Por que é que eu só veria mas pelo aspecto de seus campos.” partamento de Agricultura e Adminis-
Todos os dias, no fim do trabalho, lodo e mais lodo à minha volta? Tenho tido inúmeras ocasiões de se- tração Florestal do governo de Taiwan
eu mergulhava no regato e depois, em Só nós, os lavradores, nos sub- guir o seu conselho. A terra é fiel aos e Yuh-tang, vice-diretor do Departa-
casa, tomava um bom banho de água metíamos a semelhante situação, que nela estão dispostos a trabalhar. mento da Polícia de Taichung.

6 edição especial edição especial 7


Craig (à esquerda) e
Brenton Gurney.

A vida toda coisas estranhas aconteceram com


Craig e Brenton Gurney. Eles têm uma ligação
que os médicos não conseguem explicar.

O PODER
DOS
GÊMEOS
por Helen Signy

B
renton Gurney aguardava um sinal na sala
de espera do centro cirúrgico do Hospital
Westmead, na Austrália. Eram 11 da noite, e
Craig estava sendo operado havia cinco horas.
Aos 38 anos, o mais velho dos gêmeos idênti-
cos passava por uma neurocirurgia delicada, e Brenton
não conseguia deixar de imaginar o que poderia acon-
tecer ao irmão. Os médicos tinham avisado que Craig
talvez não sobrevivesse. E, sobrevivendo, a probabili-
dade de sofrer lesão cerebral permanente era de 50%.
Publicado em

8 edição especial fotografado por Pip Blackwood edição especial


dezembro de 2012 9
Enquanto a equipe cirúrgica operava que se lembra, Craig sente os sinto-
Craig, o irmão – com a cunhada Ni- mas físicos quando Brenton, o mais
cole e os pais Cheryl e Dennis – es- dado a acidentes, se machuca.
perava e sofria, ansioso por notícias. Aconteceu pela primeira vez quando
À uma da madrugada, a família eram bebês: Brenton caiu da cadeira
estava à beira da exaustão. Nicole, alta, mas foi Craig quem segurou a ca-
Cheryl e Dennis não paravam de beça e chorou. Quando meninos, na
olhar Brenton, na esperança de que escola, Brenton desmaiou durante um
ele soubesse primeiro. Mas ele estava jogo de futebol, e Craig, que estava de
igualmente desesperado. Parte dele costas para o incidente, ficou tempo-
queria estar na mesa de cirurgia no rariamente paralisado. Outra vez, o te-
lugar do irmão, para protegê-lo. Essa lefone tocou em casa. Antes que o pai
era uma reação fraterna normal, algo atendesse, Craig gritou:
que a maioria de nós sentiria se um – É Brenton. Ele sofreu um acidente
ente querido estivesse em estado de carro, mas está bem.
crítico. E era mesmo Brenton ao telefone:
Para Brenton, porém, era muito capotara com o carro, mas saíra an- Brenton (à direita em ambas as
mais. Alguma coisa estranha e inex- dando, com apenas um corte no dedo. imagens) com Craig no primeiro dia de
plicável vinha acontecendo durante No ano passado, Brenton ligou de aula da Escola Pública de Mount Colah,
em 1979, e como pequenos chefs.
a vida dos dois. E as dores de cabeça Cairns para o irmão dizendo que es-
recentes de Brenton tinham sido tava com uma urticária forte nas costas
terríveis. e na parte interna do braço e das per- viam fazia mais de uma semana. Para
nas. No dia seguinte, parecia ter me- os gêmeos Gurneys, era mais uma

C
raig e Brenton Gurney têm a lhorado e viajou para Daintree. Mas, prova da ligação que desafia as expli-
ligação única de que ouvimos naquela noite, Craig, que estava em cações científicas atuais.
falar em gêmeos idênticos. São casa, em Sydney, começou a ter dificul- – Sempre achamos normal, coisa de e têm o mesmo material genético, en-
muito parecidos, nunca brigaram em dade para respirar e notou uma urticá- gêmeos – diz Craig. – Além de ser um tender por que um desenvolve uma
38 anos, adoram futebol, separam as ria que coçava muito – exatamente nas bom tema em conversas e piadas. doença e outro não dá aos pesquisa-
cebolas no canto do prato e sempre es- mesmas partes do corpo de Brenton. Nos mais de 20 anos em que traba- dores uma noção profunda do poder
colhem chocolate em vez de maçã. Os No outro dia, quando Craig e Nicole lha com gêmeos, o professor John Ho- dos genes versus o ambiente.
dois se casaram com mulheres chama- foram fazer compras, ela notou que pper, diretor do Registro Australiano

C
das Nicole. a urticária estava muito pior. Milha- de Gêmeos (ATR, na sigla em inglês), om 20 e poucos anos, os irmãos
– Há diferenças – diz Craig. – Ele é res de quilômetros ao norte, Brenton soube de muitas histórias parecidas. Gurneys se cadastraram no ATR,
mais econômico e eu, mais gastador. reagira ao inseticida no quarto, entrara “Ouvimos falar desses casos, mas nin- o maior e mais ativo banco de
Craig é dez minutos mais velho e a em choque anafilático e fora levado às guém os estudou direito”, explica ele. dados sobre gêmeos dispostos a par-
acervo pessoal
acervo pessoal

vida inteira esteve à frente: foi o pri- pressas para o hospital. As semelhanças e diferenças entre ticipar de estudos científicos cuida-
meiro a beijar uma garota, a provar Os dois teriam sido expostos ao gêmeos são uma mina de informações dosamente planejados. A mãe deles
bebida alcoólica, a se casar. É ele que mesmo vírus ou substância química? para a medicina. Como gêmeos idên- sempre os inscreveu em clubes de
gosta de assumir o controle. Desde Seria pouco provável, pois não se ticos vêm do mesmo óvulo fecundado gêmeos, mas foi Craig quem tomou a

10 edição especial edição especial 11


decisão de se envolver nas pesquisas. verificar o que torna algumas pessoas Mas Brenton, geralmente o mais reti- segunda parte do estudo – disse ele. –
“Ele achou que seria uma boa ideia resistentes e outras sujeitas a doenças cente dos dois, o estimulou a aceitar. Vocês ainda precisam de nós?
ajudar.” Com o passar dos anos, os mentais. Os participantes passam por Nos últimos dois anos e meio, Brenton Precisavam.
dois participaram de vários projetos. uma série de exames, com acompa- sofria dores de cabeça intensas. Con- Brenton fez a ressonância em feve-
Então, ano passado, foram convidados nhamento até 12 meses depois. sultara um quiroprático, examinara os reiro e aguardou ansiosamente o re-
a entrar no estudo Twin-E, do Centro Craig não queria participar do es- olhos e a pressão arterial e cortara a sultado. Como não recebeu notícias,
de Dinâmica do Cérebro no Instituto tudo. Pai de duas meninas e ocupado cafeína, mas nada parecia ajudar. To- decidiu telefonar para o Centro de
Milênio de Westmead. Durante quatro com o emprego de gerente regional de dos estavam preocupados – a mulher, Dinâmica do Cérebro. O exame estava
anos, os pesquisadores pretendiam es- uma grande rede varejista, não tinha os amigos e, é claro, Craig, ainda mais perfeito e não dava pista nenhuma so-
tudar o cérebro de 1.500 gêmeos para certeza de que disporia de tempo livre. porque o pai tivera um tumor benigno bre as dores de cabeça.
na hipófise alguns anos antes. – Podem me mandar isso por es-
O médico queria que Brenton fi- crito? – ele brincou, apesar de ainda
zesse uma ressonância magnética, se preocupar com o resultado. Achou
mas ele a adiara por causa do custo que havia algum erro.
DOBRE O VALOR altíssimo. No estudo Twin-E, haveria a Em março Craig teve tempo para ir a
oportunidade de fazer uma ressonân- Westmead. Por uma hora, ficou com a
O projeto Twin-E de cia gratuita. cabeça cheia de eletrodos num exame
Westmead sobre bem-
-estar emocional estuda
o cérebro de gêmeos
Os estudos
QUANDO CRAIG TELEFONOU, O MÉDICO FOI DIRETO
saudáveis e visa a identi-
ficar que gene, am-
sobre gêmeos AO ASSUNTO: “ENCONTRAMOS UMA MASSA.”
revelam achados
biente e marcadores espantosos.
cerebrais permitem pre-
ver a resistência a doen- nes e o ambiente intera- que querem ser – Temos de ir por isso – insistiu que observava a atividade cerebral en-
ças mentais. gem, então podemos ter diferentes. Brenton com Craig. quanto ele reagia a vários estímulos.
Até agora, o estudo fi- um determinado gene “Tive um par de Primeiro, eles receberam um kit Depois veio a ressonância magnética,
nanciado por uma bolsa que nos leva a ter maior gêmeos que vinha em onde deveriam colher uma amostra com 20 minutos de duração, que ajuda-
do Conselho Australiano tendência de buscar am- dias diferentes, mas no de saliva, para que os pesquisadores ria a montar uma imagem cerebral mais
de Pesquisa verificou bientes mais positivos”, segundo dia era como examinassem seus genes. Depois lhes detalhada. Enquanto Craig descansava
que o cérebro é plástico diz a Dra. Justine Gatt, se eu voltasse ao dia an- pediram que executassem algumas ta- e assistia a um vídeo, os pesquisadores
e maleável. Mesmo rea- pesquisadora do estudo. terior. Sentia-me como refas pela Internet. gravaram o tamanho de diversas partes
ções emocionais como a Ela costuma se espantar se estivesse fingindo A segunda parte do estudo envolvia do seu cérebro.
de luta ou fuga, que, com as semelhanças in- não conhecer a pessoa,
uma ida ao Hospital Westmead para Quando o exame terminou, Craig
pelo que se acreditava, críveis entre os partici- como se apenas a en-
os exames. Por algum tempo, pare- agradeceu à equipe e saiu para con-
eram programadas ge- pantes e divide os que contrasse de novo. A
neticamente, podem ser conheceu em dois gru- gente fica com essa ceu que os pesquisadores tinham se tinuar seus afazeres.
© getty images
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modificadas. pos: os que querem ser falsa sensação de fami- esquecido deles, mas, como as dores Algumas semanas depois, Craig
“Provavelmente, os ge- iguais aos irmãos e os liaridade.” de cabeça de Brenton pioraram, ele ligou o celular e viu que havia uma
telefonou para se informar. longa lista de ligações perdidas do
– Nós nos inscrevemos para a Centro de Dinâmica do Cérebro. Devo

12 edição especial edição especial 13


ter me saído muito bem nos testes, seja, qualquer escorregão do bisturi,
pensou. Antes de retornar a ligação, por menor que fosse, poderia provo-
telefonou para implicar com Brenton. car uma lesão catastrófica ou fatal.
– Eles não ligaram para você – brin- Craig e Nicole se prepararam para o
cou. – Meu cérebro deve ser melhor pior, organizando a papelada da apo-
que o seu. sentadoria e assinando procurações
Nunca lhes ocorreu que podia ser para ela. Em 8 de maio, Dia das Mães,
algo grave. Craig pediu a Brenton que gravasse
Quando Craig telefonou para o cen- um vídeo dele dando adeus às filhi-
tro, o médico foi direto ao assunto: nhas Jasmine, de 8 anos, e Ella, 5.
– Encontramos uma massa. Para Brenton, a situação era muito
Alguns dias depois, lá estava Craig difícil: era ele quem sentia as dores de
no consultório do neurocirurgião Dr. cabeça e estava arrasado por ser Craig,
Brian Owler, olhando o exame que e não ele, a estar na mesa de cirurgia.
mostrava um cordoma de clívus de “Tinha de ser eu”, escreveu ele a
A partir da esquerda: Nicole, Brenton
e Bridgette; Craig com o bebê Gemma,
QUALQUER ESCORREGÃO DO BISTURI, POR MENOR QUE Nicole e as filhas Ella e Jasmine.
FOSSE, PROVOCARIA LESÃO OU MORTE.
célula por célula. Finalmente, às três Ano-Novo de 2011, percebe que esse
e meia da madrugada, o Dr. Owler foi foi um dos melhores anos de sua vida.
4,2 cm, um tumor ósseo raríssimo, na Brenton numa carta que deu ao irmão falar com a família à espera: “Brinquei recentemente com Bren-
base do crânio. e melhor amigo antes da operação. – Deu tudo certo. Ele vai ficar bem. ton: ‘Quando é que você foi o primeiro
Owler ficou perplexo: os pacientes Craig lhe assegurava que era assim Craig saiu da cirurgia com um des- em alguma coisa?’ Mas, se ele não ti-
com tumores daquele tamanho teriam que tinha de ser e tentava fazer piada. confortável tubo respiratório na gar- vesse insistido tanto para participar-
sintomas neurológicos graves, como Ele sempre era o primeiro – por que ganta e passou oito dias difíceis na mos do estudo, a situação seria muito
dores de cabeça e perda de audição. no câncer seria diferente? unidade de tratamento intensivo. Mas a diferente. No fim das contas, ele sal-
– Como é que você está aqui de pé Na segunda-feira, Craig saiu do tra- recuperação foi extremamente rápida. vou minha vida quando nos colocou
sem problemas respiratórios nem vi- balho ao meio-dia. “Não é adeus. É até Dez dias depois estava bem, a ponto de na pesquisa sobre gêmeos.”
são borrada? – perguntou o médico. logo”, mandou por e-mail aos colegas. voltar para casa, sem nenhuma das le- Naquela tarde antes da cirurgia,
Foi então que a antiga dor de cabeça Depois, ele e Nicole passaram uma sões neurológicas que tanto temia. Um Craig e Nicole conceberam outra filha,
de Brenton começou a fazer sentido. tarde tranquila nos braços um do outro mês depois, retornou ao trabalho. uma menininha que nasceu em ja-
– Fui eu que sempre senti as dores antes que ele se internasse no Hospital Desde então, Craig passou por neiro. Deram-lhe o nome de Gemma
de Brenton – diz Craig. – Nunca tinha Westmead na manhã seguinte. 40 sessões de radioterapia e será mo- Hope (“joia da esperança”), uma lem-
acontecido o contrário. Para acessar o tumor, os cirurgiões nitorado cuidadosamente, à procura brança forte e permanente dos laços
Com o diagnóstico em 29 de abril, entraram telescopicamente pelo nariz de recidivas do tumor. Mas o prognós- de amor que os levaram a superar o
a cirurgia de Craig foi marcada para de Craig, passaram pelos seios da face tico é excelente. sofrimento da família.
10 de maio. O tumor crescia junto ao e chegaram à base do crânio. Lá, remo- Ele não se preocupa com o futuro. Ah, as dores de cabeça crônicas de
tronco cerebral e à artéria basilar, ou veram pedaços minúsculos do tumor, Na verdade, ao recordar a véspera do Brenton? Melhoraram muito.

14 edição especial edição especial 15


O DIA
EM QUE Publicado em
maio de 1969

NASCEU
A ERA
ATÔMICA
Dramático relato feito por uma
testemunha da primeira reação
nuclear em cadeia do mundo

por Herbert L. Anderson,


segundo narrativa feita a J. D. Raticliff

P
oucos acontecimentos que transforma-
ram o destino do homem – a invenção do
machado de pedra, a descoberta do fogo,
a marcha para a Revolução Industrial – po-
dem ser determinados com precisão no
tempo. Mas um deles, talvez o maior de todos, pode
ser assinalado com exatidão de minutos. Exatamente
às 15h36 do dia 2 de dezembro de 1942, o mundo
entrou na Era Atômica. E eu fui uma das quarenta e
tantas testemunhas desse fato.

16 edição especial © natali_mis/istock


edição especial 17
O local não era nada auspicioso: sucedido com vertiginosa velocidade. como uma gota de líquido. Se o bom- previsto quase com certeza as possi-
uma quadra de squash nua, mal res- Apenas quatro anos antes, no Instituto bardeio acrescentava um nêutron bilidades de uma bomba assim. Se os
guardada dos ventos e fracamente Kaiser Wilhelm, de Berlim, o químico extra ao núcleo, este podia tornar-se nazistas a conseguissem antes, outras
iluminada no abandonado e arrui- nuclear Otto Hahn e seu jovem assis- instável, alongar-se e dividir-se. A re- nações ficariam à mercê deles. Era,
nado ginásio do parque de atletismo tente Fritz Strassman tinham bom- pulsão elétrica entre as duas novas go- portanto, uma corrida que nós, nos
da Universidade de Chicago. Ali, den- bardeado urânio com nêutrons de tículas seria enorme. Em poucos dias, Estados Unidos, tínhamos de ganhar.
tro de uma pilha de urânio e blocos uma fonte externa. Depois, a análise Frisch tentou experimentalmente es- Era preciso que descobríssemos se
de grafita do tamanho de uma casa química revelou um fato extraordiná- sas ideias e apurou que eram corretas. uma reação em cadeia era possível.
pequena, nasciam nêutrons à razão rio. O bário e outras substâncias que Quando cada átomo de urânio pe- A maior parte do trabalho do “Pro-
de um bilhão por segundo, sendo ar- não estavam anteriormente presen- sado se fragmentava em átomos mais jeto Metalúrgico”, nosso nome de có-
remessados a velocidades de 29 mil tes tinham aparecido como se vies- leves, havia uma liberação fantástica digo, se concentraria na Universidade
quilômetros por segundo. Cada um sem do nada, misturando-se com o de energia – 200 milhões de elétrons- de Chicago. Arthur Holly Compton,
deles que atingia o coração de outro -volts! Isso não seria suficiente para dessa instituição, seria o chefe, e o
átomo de urânio despedaçava-o para SE A REAÇÃO SE DESSE fazer cócegas num mosquito, mas cientista refugiado Enrico Fermi, o en-
produzir dois nêutrons. Assim, a cada multiplicado por trilhões representava carregado de construir a Pilha de Chi-
instante a tempestade silenciosa e
COM RAPIDEZ uma produção de energia em quanti- cago n-º 1 (CP-1). Fermi tinha chegado
violenta se duplicava na primeira SUFICIENTE, TERÍAMOS dades jamais sonhadas. O mundo não da Itália em janeiro de 1939. Fora com
reação nuclear em cadeia da história. UMA BOMBA COLOSSAL teria mais de depender apenas dos a mulher e os filhos de Roma para Es-
Estávamos por demais assombra- combustíveis fósseis – carvão, petró- tocolmo a fim de receber o Prêmio
dos para falar. O silêncio era quebrado leo, gás natural – e enfrentar uma crise Nobel... e continuara a viagem.
apenas pelo som descontínuo e cre- urânio! Mas, se os dois pesquisadores de energia quando eles se esgotassem.

Q
pitante dos contadores que registra- pensaram que tinham fragmentado o Mas havia ainda importantes ques- uando começamos a traba-
vam a produção de nêutrons. Todo urânio-pesado em bário e outros ele- tões antes que se pudesse obter a lhar na CP-1, não tínhamos um
o nosso raciocínio anterior indicava mentos mais leves, não estavam em energia do átomo. Seria possível de- plano definido; dispúnhamos
que estávamos em segurança. Entre- condições de dizê-lo. sintegrar um átomo com um nêutron e apenas de pontos de interrogação. Sa-
tanto, íamos avançando por território A interpretação coube a uma ex- conseguir uma produção de dois nêu- bíamos que o urânio natural emite es-
nunca dantes explorado. Havia uma -colega de Hahn, Lise Meitner, que, trons, que continuariam em ação para pontaneamente alguns nêutrons. Mas
possibilidade pelo menos de que a pi- por causa do seu sangue judeu, tinha desintegrar de novo e produzir quatro, estes se movimentam com tanta rapi-
lha fugisse ao controle, de que fôsse- fugido da Alemanha de Hitler para a oito nêutrons, e assim por diante? Isso dez que não causam a fissão – como
mos destruídos e de que um grande e Suécia. Ali, durante as festas de Na- seria reação em cadeia. Movendo-se uma bola de golfe veloz que passa
bem povoado bairro de Chicago fosse tal de 1938, ela e seu sobrinho, Otto lentamente, essa reação produziria raspando por sobre o buraco, ao passo
transformado numa ruína radioativa. Frisch, discutiram os dados que Hahn calor conversível em energia. Se a rea- que uma bola mais lenta cai lá den-
Seria aquele, de fato, o Dia do Juízo? enviara. É possível que seus dois bri- ção se fizesse com rapidez suficiente, tro. E a grafita parecia o melhor meio
lhantes espíritos tivessem chegado à teríamos uma bomba colossal! que tínhamos de freá-los. Talvez, se
Cócegas num mosquito conclusão de que essas descobertas pudéssemos arrumar uma espécie de
não eram afinal de contas assim tão Pontos de interrogação envoltório... pedaços de urânio rodea-
A ciência tende a mover-se em ritmo misteriosas. Niels Bohr, o grande fí- dos de grafita? Neste caso, os nêutrons
lento. Mas, no caso da fissão atô- sico dinamarquês que era amigo dos Havia em todos nós um receio. Os pio- de um pedaço de urânio passariam
mica, os acontecimentos se haviam dois, imaginara o núcleo de um átomo neiros alemães nesse campo tinham pela grafita, perdendo velocidade,

18 edição especial edição especial 19


atingiriam os átomos do outro pedaço embate. Havia-se acumulado grafita,
de urânio e produziriam a fissão? urânio metálico e óxido de urânio em
Havia dificuldades em tudo isso. quantidade suficiente para a enorme
Quaisquer impurezas na grafita agi- pilha. O trabalho foi escalonado.
riam como esponjas sobre os nêutrons O canadense Walter Zinn chefiava
e anulariam qualquer emissão atômica. a turma do dia, que alisava e dava
Depois, não havia em parte alguma forma aos 40 mil blocos de grafita –
grafita tão pura quanto nos era neces- alguns deles perfurados para conter
sário – e nós a queríamos em partidas pedaços de urânio metálico ou de
de centenas de toneladas. O problema óxido de urânio. Eu chefiava a turma
com o urânio – do qual precisávamos às da noite. Assentávamos os tijolos es-
toneladas – era semelhante. corregadios num padrão exato quase
A indústria e as universidades tra-
taram com admirável entusiasmo de “SE AS COISAS NOS
produzir o material absolutamente
puro, embora não lhes pudéssemos
FUGIREM DAS MÃOS”,
dizer por que as nossas necessidades DISSE-LHE FERMI,
eram tão urgentes. Na primavera de “QUEBREM OS VIDROS.
1942, começaram a chegar pequenas
partidas de urânio metálico, óxido de
urânio e grafita. Iniciou-se a constru- com a mesma rapidez com que eram qualquer conflagração atômica. Uma fugirem das mãos”, disse-lhes Fermi,
ção da pilha. Devíamos construir 30 produzidos. haste era manejada por eletricidade. “vocês quebrarão os vidros. Mas não
pilhas experimentais para fornecer Os cálculos preliminares indica- Outra, que servia de fecho, tinha de tirem os olhos de cima de mim e não
dados básicos antes de construirmos vam que a forma mais eficiente para ser puxada da pilha por uma corda. entrem em ação enquanto eu não cair
a pilha grande. As turmas de trabalho, a nossa pilha seria uma esfera de sete Soltava-se a corda e o fecho corria. morto. Se fizerem isso antes, massa-
constituídas principalmente de estu- e meio metros de diâmetro. O urânio A terceira destinava-se a um deli- crarei vocês a pauladas!”
dantes diplomados, executavam uma mais ativo que tínhamos – o metálico cado controle e seria operada ma- Quando a minha turma começou a
das tarefas mais sujas da Terra. Mãos – ficava no centro, com o óxido, me- nualmente para conseguir-se o nível trabalhar no dia 1-º de dezembro, es-
e rostos ficavam besuntados com a nos ativo, para fora. A grande esfera desejado de atividade dos nêutrons. távamos na 48-ª camada e Fermi cal-
gordurosa grafita. Os pesados tijolos começou a crescer; uma camada de Qualquer das três bases estancaria culava que a 51-ª camada completaria
de grafita eram escorregadios e nossos grafita, depois uma camada de tijolos a emissão atômica – a não ser que a tarefa. Ele lera meus pensamentos.
dedos acabavam inevitavelmente pre- de grafita contendo urânio, e assim acontecesse algo imprevisto. Haveria uma tentação quase irresis-
sos entre eles quando procurávamos por diante. Como última precaução, três ho- tível de puxar as hastes de controle
© bluebay2014/istock
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assentá-los. Para o controle de segurança, con- mens ficariam no alto dos andaimes e ser o primeiro homem da Terra
fiávamos principalmente em três de madeira que cercavam a pilha, a observar uma reação em cadeia.
“Pelotão-suicida” hastes de madeira, cada qual com como um “pelotão-suicida”. Estariam “Quando tiverem acabado a camada
tiras de cádmio metálico, que atra- munidos de grandes vidros de solução 51”, ordenou ele, “prendam as hastes
A 7 de novembro, Fermi declarou vessavam a pilha. O cádmio, a me- de cádmio para extinguir uma rea- no lugar. Estejam todos aqui amanhã
que estávamos prontos para o grande lhor esponja de nêutrons, eliminaria ção descontrolada. “Se as coisas nos às oito horas.”

20 edição especial edição especial 21


Poucas horas depois, completamos contadores. A atividade dos nêutrons batalha de Waterloo. Todas as has- elementos radioativos... e com a
a última camada. Com alguma relu- aumentava. Os suaves olhos cinzentos tes voltaram ao lugar e os contado- maior rapidez. A nossa pilha poderia
tância, obedeci às instruções, tranquei de Fermi estavam fixos na pena que res ficaram em silêncio, à exceção de apresentar segurança num momento
a cadeado o nosso monstro de 550 to- subia num pedaço de papel quadri- um fraco estalo de vez em quando. e tornar-se mortífera pouco depois.
neladas e fui para casa. culado antes de estabilizar-se. Quase Mesmo em repouso, a pilha produzia Era compreensível que a preocupa-
sem tomar conhecimento da presença 100 mil nêutrons por segundo. ção estivesse estampada em muitas
Centímetro a centímetro dos outros, ele manejava uma régua fisionomias. Os olhos estavam fitos
de cálculos. Tudo estava correndo de Tempestade atômica nos medidores de radiação que mos-
A madrugada foi fria e cinzenta, com acordo com os planos. travam que nos aproximávamos rapi-
alguma poeira de neve espalhada Às 10h00, ordenou a Zinn que pu- Às 14h00, recomeçamos, dessa vez damente dos níveis de perigo.
pelo chão. O general Eisenhower xasse a haste do fecho. Outro aumento em ritmo mais rápido. Às 15h00, os

À
havia iniciado a sua campanha na de produção de nêutrons, mas ainda contadores tiveram de ser recalibra- s 15h53, Fermi ordenou a
África do Norte. A batalha de Gua- nada de muito grande. dos, isto é, retardados para diminuir Zinn: “Coloque o fecho.” En-
dalcanal estava nas suas últimas fa- o barulho e dar um sentido aos seus quanto a haste descia na pilha,
ses vitoriosas. Já se trabalhava em sons. Além disso, a pena estava ul- a atividade diminuiu rapidamente. O
fábricas supersecretas de bombas
DURANTE 17 MINUTOS trapassando o papel quadriculado. grande drama estava chegando ao fim.
atômicas, com base na possibilidade A TEMPESTADE Às 15h19, Fermi ordenou que a Tínhamos completado em segurança
de uma reação em cadeia. Se o nosso ATÔMICA RUGIU, CADA haste manual fosse levantada mais uma jornada pelo desconhecido.
reator funcionasse, teria o poder não 30 centímetros. Olhou para o papel
só da morte mas também de terminar
VEZ MAIS VIOLENTA. quadriculado, consultou a sua régua Se o mundo se sente deprimido com
uma guerra monstruosa e de poupar de cálculos e, então, voltou-se para o fato de que duas bombas atômicas
milhões de vidas. Às 10h37, Fermi disse a Weil: “Puxe Compton, que estava de pé ao lado foram lançadas 32 meses depois, deve
Às 8h00, todos tínhamos chegado quatro metros a haste manual.” O con- dele, dizendo: “Mais trinta centíme- animar-se com os mesmos benefícios
e tomado nossos lugares. Eu ficava tador começou a roncar. Rostos ansio- tros, e pronto.” Às 15h36, a haste ma- que resultaram da fissão. Grande
junto a um painel de controle para re- sos voltaram-se para a pena que corria nual foi puxada mais 30 centímetros. parte da ciência médica sofreu uma
gistrar o que marcavam os instrumen- para o alto. Fermi, trabalhando com E, minutos depois, ele tornou a falar: revolução, e o ritmo de outras pes-
tos. Zinn puxaria a haste do fecho. a régua de cálculos, garantiu que ela “Desta vez não haverá estabilização. quisas se acelerou. A Grã-Bretanha
George Weil controlava a importantís- se estabilizaria em certo ponto, e foi A curva é exponencial”, declarou, já está obtendo do átomo 10% da sua
sima haste manual. O pelotão-suicida o que aconteceu. De vez em quando, querendo dizer com isso que a ativi- energia elétrica, e nos Estados Uni-
estava a postos. Havia observadores ordenava a Weil que puxasse a haste dade iria dobrar e redobrar. dos a Comissão de Energia Atômica
numa pequena sacada, de onde em mais alguns centímetros. De cada vez, está gastando mais em atividades
outros tempos os espectadores ha- havia um acréscimo de atividade dos Durante 17 minutos angustiosos, a atômicas para fins pacíficos do que
viam apreciado partidas de squash. O nêutrons, e a tensão dos circunstan- tempestade atômica rugiu, tornan- em armas.
grande espetáculo ia começar. tes crescia proporcionalmente – a um do-se cada vez mais violenta. A pilha Naquela fria e ventosa tarde de
Às 9h45, Fermi, falando com sua ponto quase insuportável. se aquecia. Processava-se a primeira inverno, há mais de um quarto de
voz calma, ordenou que a haste con- E então quebrou-se o encanto. reação em cadeia. Num silêncio século, a história foi mudada. Talvez
trolada a eletricidade fosse puxada. “Vamos começar”, disse Fermi. Era ameaçador, a humanidade entrava para pior. Mas há esperança de que
Houve um leve sussurro de moto- como se Wellington sugerisse um numa nova era. O perigo nos cercava. o tempo venha a provar que foi para
res e podiam ouvir-se as batidas dos intervalo para o almoço durante a Sabíamos que a fissão criaria novos melhor.

22 edição especial edição especial 23


Publicado em
agosto de 1999

Escorregas, balanços e carrosséis


são muito mais divertidos
quando se é avô

Um papel
que adoro
desempenhar
Por Tom Crabtree

M
eu avô usava bigode, demais relógios cantavam, tocavam
terno de tweed e um ou ribombavam a hora.
© mashastarus/istock
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relógio de bolso com Eu não tinha permissão para me


c o r r e n t e d e o u r o. dirigir a ele a não ser que ele se diri-
Morava numa casa gisse a mim. Meu avô era importante
enorme, onde a cada hora se escutava demais para falar com crianças.
uma tremenda barulheira quando A cada visita à sua casa, ao sairmos,
o cuco, o relógio de pêndulo e os ele colocava a mão sobre a minha

24 edição especial edição especial 25


cabeça e dizia: “Bom menino.” Em – Na escolinha, temos um capacete ela. Empurro pelo supermercado o Ela calça minhas meias brancas.
seguida me dava uma moeda de um de polícia de brinquedo – disse Leah. carrinho de minha outra neta, Daisy, 1 Leio para ela, empurro seu triciclo,
quarto de libra – uma grande soma – Esse é um policial de verdade. Ele ano e 8 meses, com seu chapeuzinho corro atrás dela em volta da mesa
de dinheiro na época. Eu o vejo hoje tem um capacete normal. cor-de-rosa. da sala, brinco de esconde-esconde
como ele se via então: austero e se- Isso nos foi explicado com muita Converso com ela, recito versos (ela fecha os olhos e eu tenho de
guro da vida eterna. calma, para o caso de não termos infantis, digo o nome dos produtos encontrá-la).
Como avô, sou bem diferente. Certa entendido. Comecei a pensar que, expostos nas prateleiras. “Biscoitos, Isso antes das sete da manhã. De-
noite, estava sentado ao lado de Leah, enquanto demonstrava a rotação da sopa, pão, manteiga”, vou dizendo pois do café, se o dia estiver ensola-
3 anos, na sacada, olhando o céu. Ela Terra com laranjas, deveria ter men- enquanto uma senhora se curva para rado, vamos à praia e, acredite, não há
apontou para uma estrela. cionado Galileu. admirar Daisy. trégua até a hora do almoço.

Q
– As estrelas estão muito longe? Ontem vi num carro um adesivo
– perguntei. UANDO MEU filho e minha que dizia: “A felicidade é ser avô.” É A filosofia de vida de Leah, assim
– Muito. Mais do que a França – nora me contaram que eu mesmo possível. Você pode se divertir como a de Daisy, é de que diversão é
disse ela, que havia recentemente vi- seria avô, fui invadido por com as crianças (e depois devolvê-las essencial. Mas depois da minha vez
sitado sua tia Amanda na França. sentimentos conflitantes. no fim do dia). Ser anárquico (des- no escorrega e no balanço, para não
Então a conversa começou a se Embora compartilhasse da cer no escorrega com elas) e ligeira- falar do carrossel, sou tratado mais
complicar. alegria deles, entristecia-me o fato de mente subversivo (comprando-lhes delicadamente: “Você está um pouco
– Olhe, vovô. A lua está maior do por fim ser obrigado a reconhecer que biscoitos). exausto, vovô. Descanse.” Ela fala num
que estava ontem – comentou. – Por chegara à terceira idade, o princípio Com os netos, aprendemos uma tom que é a mistura de um afável clí-
que a lua cresce e diminui? da noite de minha vida. importante lição. As crianças vivem o nico geral com aquele sujeito que
presente. Elas não têm tempo para o atropela as palavras na televisão.
passado. O tempo furta nossa juventude,
AO SABER QUE SERIA AVÔ, APESAR DA ALEGRIA, Para um adulto, é insensato ser in- nossos amigos, nossos dias. Quando
fantil, mas é sábio maravilhar-se com morremos, tudo o que resta de nós é
ENTRISTECEU-ME O FATO DE QUE ENFIM o mundo através dos olhos de uma o amor que damos aos outros. Tudo
CHEGARA O PRINCÍPIO DA NOITE DE MINHA VIDA. criança. o que recordamos, eu acredito, são
Os avôs, por sua vez, são importan- aqueles momentos mágicos que pa-
tes para as crianças. Conviver com recem fazer o tempo parar. Ser avô
Apanhei três laranjas e tentei expli- A noite pode ser a melhor parte do uma pessoa a quem o pai ou a mãe me presenteou com muitos desses
car como a Lua e a Terra se movem em dia, mas quantos de nós realmente chama de “papai” dá à criança um momentos.
torno do Sol. Ao mesmo tempo, pen- acreditam nisso? É verdadeira aquela sentido de história, de participação, Mas agora acho que vou me sen-
sei: Se ela faz esse tipo de pergunta aos história de se manter jovem no cora- um sentimento de que o mundo existe tar e ler a enciclopédia para poder
3 anos, o que perguntará aos 6? Nessa ção, jovem no espírito. A vida deve ser há muito tempo e que vai continuar responder às perguntas que Leah irá
idade ela poderá apresentar questões vivida em todas as idades. Assim não existindo, não importa o que acon- me fazer quando ficar mais velha.
capazes de derrubar até Sócrates. há tristeza, apenas alegria. teça. Fisicamente, ser avô é cansativo Depois vou me exercitar. É preciso ter
Na manhã seguinte minha mulher Assumi meu papel de avô com (ou “absolutamente arrasador”, como um bom condicionamento físico para
e eu fomos buscar Leah no jardim de grande entusiasmo. Balanço em meu diria Leah). Quando estou na casa de descer de cabeça para baixo no escor-
infância. No caminho de casa, passa- joelho a irmã de Leah – Grace, 6 me- minha filha, Daisy acorda com meu rega, ir com Daisy à praia e levantar
mos por um policial. ses –, canto-lhe canções e falo com nome nos lábios. Grace bem alto, na direção do céu.

26 edição especial edição especial 27


O ADEUS NO amarrados ao dorso de mulas. Deita-
dos de bruços sobre rústicas selas de
madeira, com a cabeça a cair do lado
abrigo. Os soldados, entretanto, não
se decidiam a partir. Pouco a pouco,
vi que se iam aproximando do corpo

CAMPO DE
esquerdo, as pernas rígidas balança- do capitão Waskow. Não queriam
vam no ar do lado oposto, acompa- apenas, ao que me parece, vê-lo uma
Publicado em nhando o andar dos animais. vez ainda. Tive a impressão de que

BATALHA
junho de 1944 Não sei qual foi o primeiro a che- tentavam expressar-lhe, ainda que
gar ao ponto em que nos achávamos. vagamente, o que lhes ia na alma.
Na presença dos mortos, sentimo-nos Um soldado aproximou-se, e, de-
sempre tão pequenos que qualquer pois de lançar-lhe breve olhar, disse
pergunta parece inútil e absurda. Re- em voz alta: “Ah miseráveis!”
tiraram-no da mula e, durante um se- Foi tudo que pode dizer.
Por Ernie Pyle
gundo, à meia-luz do luar, parecia um Um segundo murmurou: “Vão para
(redigido na linha de frente, na itália)
ferido, amparado pelos companheiros. o diabo!” E, depois de olhá-lo alguns

N
Deitaram-no depois junto a um muro instantes, afastou-se bruscamente.
o curso de guerra já tive O capitão Waskow era comandante que se erguia à margem da estrada. Seguiu-se-lhes um terceiro. Um
ocasião de conhecer vá- de uma companhia na 36-ª divisão do Sentamo-nos então, a falar em voz oficial, se me não engano. Era difícil
rios oficiais que souberam exército americano. Embora muito jo- baixa, aguardando os que estavam distingui-los, tendo em vista sobre-
conquistar o respeito e a vem – pois tinha vinte e poucos anos por vir. Alguns minutos depois um tudo que todos traziam os uniformes
estima de homens con- –, dava tal impressão de sinceridade, e soldado veio informar-nos de que sujos e rasgados, e a mesma expressão
fiados ao seu comando. Não conheci, era tão de ameno trato, que os solda- outros haviam acabado de chegar. decidida e severa nos rostos sombrios.
porém, jamais, nenhum que fosse tão dos sentiam prazer em obedecer-lhe Encaminhamo-nos para o local de Olhou-o alguns instantes face a face, e
querido quanto o capitão Henry T. as ordens. chegada. Lá se achavam quatro mu- disse-lhe, como quem fala a um vivo:
Waskow, de Belton, estado do Texas. “Depois de meu pai, é a pessoa que las ao pé dos soldados que as tinham “Sinto muito, amigo.”
mais estimo e respeito”, disse-me um conduzido montanha abaixo. Um soldado ainda inclinou-se a
sargento. “Aqui está o capitão Waskow”, foi meio sobre o corpo, murmurando
“Ele sempre tomou conta de logo dizendo um deles. com ternura:
todos nós”, acrescentou um Dois homens desapertaram a cor- “Capitão, nem sei dizer o que sinto.”
soldado, “e procurou nos reia que amarrava o corpo e puseram- O primeiro então voltou, sentou-se
proteger o mais possível em -no ao lado do que chegara primeiro, ao lado do chefe morto, e tomando-
todas as circunstâncias.” junto ao muro de pedra. O mesmo fi- -lhe uma das mãos nas suas, ali ficou
Achava-me eu ao pé de um zeram depois com os demais. Já cinco cinco minutos a contemplar-lhe o
estreito caminho na noite em mortos ali se achavam, deitados em rosto, sem dizer uma palavra.
que trouxeram, já sem vida, fila, um ao lado do outro. Não é cos- Finalmente, endireitou-lhe a gola
tume cobrir os cadáveres nas zonas de da camisa, cobrindo cuidadosamente
© zabelin/istock

o capitão Waskow. Fazia lua


© zabelin/istock

cheia, e via-se nitidamente combate. Ficam assim como estavam, a ferida com um pedaço rasgado do
bom pedaço da íngreme ve- até que os venham buscar. uniforme. Depois, erguendo-se, afas-
reda. Desde o cair da tarde, As mulas foram levadas para uma tou-se, sozinho à luz da lua.
vinham trazendo os mortos, gruta vizinha que lhes servia de condensado do new york world-telegram.

28 edição especial edição especial 29


Publicado em
janeiro de 1957

COWBOYS
DOS BONS
TEMPOS
por
porLucien
LucienBurman
Burman

30 edição especial © kanyakits/istock edição especial 31


O
dia estava quente e abafado. Aqui e ali, na erma
desolação, remoinhos de poeira rodopiavam entre
os algarobilhos raquíticos que se estendiam até
o horizonte. As folhas e os galhos das árvores
estavam cobertos por um pó esbranquiçado,
como se tivessem sido caiados.

Um cowboy muito magro conhe- dele e, jogando o laço com destreza,


cido por Roald Runner abriu a por- pegou-o e trouxe-o de volta.
teira da Fazenda da Árvore Marcada Roald Runner levantou o braço ma-
para dar passagem ao nosso carro, e gro em saudação quando os cowboys
parou para observar a paisagem. passaram, depois voltou-se para mim:
– Esta capoeira – disse ele – cobre – Aqui na capoeira e talvez algu-
centenas de quilômetros do sul do mas fazendas do Wyoming e do Ari-
Texas até a fronteira com o México. zona são os únicos lugares onde ainda
Não presta para nada, só para coiotes. existem cowboys de verdade. Dentro
São precisos 16 hectares para susten- de dez anos não haverá mais nenhum,
tar uma vaca. Mas eu não troco isto depois que os criadores passaram a
por tudo o que eles têm lá em Nova comprar jipes e aviões.
York e Chicago juntas. É o melhor pe- Olhou o sol, que baixava como
daço do mundo. um imenso incêndio de pradaria, e
No espinhaço de uma pequena ele- continuou:
vação apareceram umas 20 reses, com – É melhor irmos andando. São
um cowboy de cada lado e um terceiro cento e sessenta quilômetros até o
fechando a retaguarda. nosso acampamento na fronteira. Não faróis. Varávamos quilômetro após “DENTRO DE DEZ ANOS
– Vão levar o gado para as pastagens
do rio – disse um cowboy magro e cur-
quero viajar muito de automóvel por
esta estrada no escuro.
quilômetro através de um deserto in-
findável e poeirento.
NÃO HAVERÁ MAIS
tido, conhecido por Frank, sentado ao Roald Runner puxou um revólver, A luz dos faróis bateu num coiote NENHUM COWBOY ,
meu lado no carro. – O pasto aqui está verificou se estava carregado e colo- parado ao lado da estrada, era gordo DEPOIS QUE CRIADORES
todo queimado.
– Está tão seco que as lebres estão
cou-o ao alcance da mão.
– Ninguém sabe o que pode aconte-
e tinha o pelo luzidio como se tivesse
acabado de sair do cabeleireiro. Ficou
PASSARAM A COMPRAR
JIPES E AVIÕES.”
© vectortatu/istock
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todas comprando cantis e vão enchê- cer por aqui – disse. – Há toda espécie a olhar, imóvel e sem medo, vendo-
-los na cidade. de bichos esquisitos, alguns de quatro -nos passar.
A boiada aproximou-se. De re- pernas, outros de duas. – Esse tem pensão do governo – ob- – explicou Frank. – Fica esperando
pente um touro se afastou do grupo e Tocamos para o sul, rumo a Laredo. servou Roald Runner. que os automóveis os matem para ele.
flechou para o matagal branco. Num O céu escureceu com uma rapidez – Ele quer dizer que o coiote não Então apanha-os e come de graça.
instante um cowboy já ia no encalço tropical. Roald Runner acendeu os se interessa em apanhar coelhos Deixamos a estrada principal logo

32 edição especial edição especial 33


adiante e entramos numa estreita es- no descampado, cantaria para elas a
trada de terra. Estávamos em pleno noite inteira.
sertão: ali um homem podia viajar 300 – Ele quer dizer que a noite está boa
quilômetros sem ver vivalma. para um estouro – explicou Frank. –
De repente uma luz mortiça apa- Cantar é bom para acalmar o gado.
receu na distância e uma porteira fe- Em um ponto além do pasto um be-
chou-nos o caminho. Paramos diante zerro separado da mãe mugia triste-
de um galpão, onde pude ver alguns mente. Perto, um touro berrava como
cowboys de botas e esporas comendo para manifestar solidariedade. Os mu-
a uma mesa. Depois de rápida apre- gidos do gado aumentavam.

C
sentação, sentamos também para
comer tortillas e tamales. A maioria heguei-me mais para perto da
dos cowboys era mexicana como a co- cerca. Na luz refletida do gal-
mida. Eram um grupo de gente feliz, pão vi as vacas olhando-me,
de rostos alegres e cordiais. desconfiadas. Notei qualquer
Roald Runner voltou-se para um coisa faiscando no chão e ris-
velho de cabelos brancos que estava
à cabeceira da mesa e pediu-lhe:
quei um fósforo para ver o que era.
Imediatamente as vacas fugiram ater-
tamales e tortillas. Os rapazes engo-
liram o café e saíram com laços para
“PREFIRO SER
– Conte ao nosso amigo algumas rorizadas e sumiram na escuridão. apanhar os cavalos para o trabalho do APANHADO POR UMA
histórias do tempo em que você foi – À noite qualquer coisa as espanta dia, que era trazer os bezerros para DÚZIA DE ROLOS
bandido no México, Manuelo.
O velho corou e, como um menino,
– disse Frank. – Dê graças por elas es-
tarem num pasto, senão levaríamos
a ferra. Eu sempre pensei que todo
cowboy só montava um cavalo, que
COMPRESSORES
escondeu o rosto com as mãos. semanas para reuni-las. Vaca é o bi- ele estimava mais do que a uma es- DO QUE POR UM
Um mexicano de olhar vivo que es- cho mais assustadiço do mundo. posa. Fiquei espantado ao saber que ESTOURO DE VACAS.”
tava perto dele bateu-lhe nas costas. – E para machucarem a gente tam- geralmente o cowboy de hoje tem
– Manuelo tem vergonha do tempo bém não tomam tempo – acrescentou cinco ou seis cavalos; antigamente
em que foi bandido. Mas ele é um Roald Runner. – Prefiro ser apanhado chegava a ter uma dúzia. para o outro em suas montarias, gri-
bom vaquero. Se eu for bom como o por uma dúzia de rolos compressores – Se um cowboy só tivesse um ca- tando e agitando o chapéu, enquanto
Manuelo quando tiver setenta anos, do que por um estouro de vacas. valo, daria cabo dele antes do al- separavam os bezerros das reses mais
não terei vergonha de nada. Não risquei mais fósforos. moço – explicou-me Roald Runner. velhas e os tocavam para o curral.
No pasto atrás do galpão eu ouvia Voltamos ao galpão e preparamo- – Montado por um desses camaradas Notei que um dos cowboys tinha
o gado mugindo numa triste sinfonia, -nos para dormir. O ar estava suave, em trabalho de campo, um cavalo se perdido três dedos da mão direita, e
quebrada de vez em quando pelo uivo sem sinal de vento. Resolvi levar mi- cansa mais em uma hora do que em perguntei aos meus companheiros
dos coiotes. Deixei a mesa e fui olhar nha cama para fora e dormir sob as uma semana de outro trabalho. Acho como se dera aquilo.
© lunaticlu/istock
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o gado com Frank e Roald Runner. As estrelas, com o uivar de coiotes nos que em uma manhã ele percorre uns – Muitos deles perdem dedos – ex-
reses estavam perto da cerca, remoi- ouvidos. oitenta quilômetros. plicou Roald Runner. – E mãos e per-
nhando inquietas. Os vaqueiros acordaram pouco Compreendi o que Roald Runner nas também. Resultado de acidentes
– Estão nervosas – disse Roald depois das quatro horas. Toma- queria dizer quando saí para o pasto com o laço, quando a rês ou o cavalo
Runner. – Se eu estivesse com elas mos nossa primeira refeição, e mais e vi os cowboys correndo de um lado não se conduz da maneira esperada.

34 edição especial edição especial 35


– Não há cowboy idoso vivo que árvore. Um senhor calmo, de cabelo o carro. Podíamos ver ao longe os petróleo – disse Roald Runner. – Eles
não tenha quebrado todos os ossos, grisalho, parecendo mais professor moinhos de vento girando indolente- passam o dia inteiro em jipes e aviões;
como resultado de quedas e arrastões do que cowboy, estava sentado na va- mente. Aquele movimento sem pressa e aprenderam o que sabem sobre
frequentes – acrescentou Frank. – A randa. Eu sabia que ele era conside- significava vida ou morte para o gado; gado em revistas.
profissão de cowboy é a mais perigosa rado um dos melhores rastreadores da quando as pás do moinho paravam À medida que avançávamos para
que existe. fronteira, e que até recentemente ha- não havia água. De vez em quando sudeste, a região mudava rapida-
Entrei novamente no carro e fui via perseguido contrabandistas para o passávamos por um homem parado mente. Iam aparecendo grandes
com Roald Runner para outra parte governo. numa moita de cactos, tendo na mão fazendas, dotadas de sistemas de irri-
da fazenda, onde havia uma casa – O doutor é capaz de ler a campina um instrumento de forma estranha gação para manter pastagens frescas
muito bem-cuidada à sombra de uma como o senhor lê um livro – disse que cuspia fogo. Meticulosamente, para o gado sempre gordo; mansões
Roald Runner. – É capaz de seguir ele manipulava o instrumento, quei- grandes como castelos medievais apa-
num cavalo a galope o rasto de um mando os espinhos da fruta do cacto. reciam afastadas da estrada, com pré-
homem ou de uma rês perdida. Seguia-o uma longa fila de gado, espe- dios escolares novinhos em folha para
“O COWBOY DE Seguimos para o espesso matagal rando até que o homem se afastasse;
então as reses chegavam-se e comiam
os filhos dos empregados, complica-
das instalações hidráulicas e igrejas
HOJE TEM CINCO em volta da casa. O velho examinou
os rastos no chão à sua frente. as fibras sapecadas. imponentes. Em toda parte, apon-
OU SEIS CAVALOS; – Um coiote andou por aqui há – A seca é um desastre – observou tando para o céu, viam-se as torres
ANTIGAMENTE quase duas semanas – disse ele en- Roald Runner. – Não temos chuva há que puxavam o óleo da terra tornando
possível aquela ostentação.
CHEGAVA A TER quanto seguia as marcas. – Procurava
alguma coisa, talvez um coelho... Sim,
quase três anos. Se não fosse a fruta
do cacto, todas as reses e todos os va-
UMA DÚZIA.” era um coelho. Eis o rasto dele... O bi- queiros estariam mortos. Mais adiante erguia-se a alta antena
chinho sabe que está sendo seguido. Passamos Zella, depois Christine de uma estação de rádio, com uma
Pode-se ver que ia cada vez mais de- e Pleasanton. A campina estava aca- imponente casa de fazenda além.
pressa. Mas não adianta; está no papo. bando. Fábricas e armazéns já apare- Deixamos a estrada e entramos pelo
Foi neste ponto que o coiote saltou ciam a distância. Aproximávamo-nos largo portão. Jipes cheios de cowboys
em cima dele. – Fez uma pausa. – Aqui de San Antonio. Depois de atravessar passavam por nós, recebendo instru-
está uma coisa que eu preciso investi- ruas movimentadas, chegamos ao ções por meio de telefones de ondas
gar – continuou. – É um homem car- Hotel Gunter, a meca dos boiadeiros curtas. Em um pasto alguns cowboys
regando uma carga pesada. Pode-se que atravancavam os corredores com carregavam cavalos arreados num re-
ver a fundura dos calcanhares dele na seus chapéus de abas enormes como boque de gado, a fim de serem leva-
terra. Pode ter sido um caçador carre- a campina. Jantamos e fomos obser- dos para outro ponto da fazenda, a 50
gando um veadinho que matou. Não var o movimento. Havia uma festa. quilômetros de distância.
queremos caçadores nesta fazenda. Mulheres em toilettes da última moda Roald Runner rosnou indignado:

V
misturavam-se com os boiadeiros. – Transportar cavalos de caminhão
© lunaticlu/istock
© lunaticlu/istock

oltamos à casa da fazenda No dia seguinte, voltamos à fazenda só para chegar um pouco mais de-
e preparamo-nos para ir a por um desvio. pressa. Isso está piorando muito.
San Antonio comprar man- – Achei que o senhor havia de que- – A vaquejada de avião é que me ir-
timentos. A temperatura su- rer ver os cowboys grã-finos de Victo- rita – comentou Frank. – No ano pas-
bira de novo, e o sol castigava ria trabalhando para os homens do sado eu trabalhei com um homem

36 edição especial edição especial 37


que campeava assim. O chefe dos va- Roald Runner foi à porteira do cur- cowboys acendeu os faróis de seu avançou como uma locomotiva em
queiros ia ao lado do piloto, gritando ral que ficava perto, onde os animais carro e dirigiu-os para a rampa. As re- correria desenfreada.
e xingando num megafone: “Volte e já começavam a entrar. ses avançavam rumo às varas de luz, Não tive tempo de pensar no que
apanhe aquele touro grande que está – Espere aqui – disse ele. – Eu e como fantasmas chifrudos. podia acontecer. Quase imediata-
escondido atrás da árvore perto do Frank vamos apanhar nossos cavalos Passou-se uma hora. Um a um os mente Roald Runner estava ao lado
moinho!” “Você não viu a metade da para ajudar. caminhões se afastaram. O gado, à do touro, e um laço sibilou no escuro,
boiada escondida no matinho perto Quando voltaram, o gado mugia medida que seu número reduzia, fi- depois o cavalo de Frank e outro laço.
do arroio. Venha comigo.” agitado no curral. cava mais calmo. Misturado com o O touro parou com um arranco que
– O pior é o que estão fazendo com – Entre – disse Roald Runner. – É mugido, eu podia ouvir os latidos dos me pareceu capaz de arrebentar um
as vacas com essa história de alimenta- uma coisa que o senhor precisa ver. coiotes. Em pouco só restavam seis laço que não fosse de aço.
ção moderna – disse Roald Runner. – Eu Passei a porteira cautelosamente touros, depois um só – um enorme e Esse último ataque foi, ao que pa-
gosto de vaca que ataca a gente. Essas e via-a bater no esteio, fechando-se. majestoso zebu, que havia resistido a rece, o seu último esforço. Logo de-
daqui vêm correndo quando a gente Centenas de touros nos cercavam, todas as tentativas de o empurrarem pois ele subia a rampa e entrava no
mostra a elas a fotografia de um cocho. atacando furiosamente em todas as para a rampa. Quanto mais os cavalos reboque, que imediatamente partiu.
Viramos no rumo da Árvore Mar- direções. dos cowboys o forçavam, mais arisco Roald Runner e Frank vieram galo-
cada. Entramos novamente em região – Não tenha medo – disse Roald e bravio ele ficava. O zebu corria sem pando para a porteira. Seus corpos,
agreste. As casas bonitas desapare- Runner de cima de seu cavalo. – Eu e parar em volta do cercado de madeira. como os de seus cavalos, estavam ba-
ceram. Novamente os algarobilhos, Frank os vigiaremos. Se algum chegar À luz dos faróis, seus olhos eram de nhados de suor.
brancos de poeira, se estendiam até o muito perto, nós o laçaremos. um vermelho brilhante e de sua boca Roald Runner ficou escutando en-
horizonte, misturados aqui e ali com Não me tranquilizei. pingava espuma. quanto o mugido melancólico do
moitas de cactos espinhentos. De vez Numa rampa de gado esperavam De repente, quando um mexicano gado nos reboques se tornava cada
em quando uma águia cortava o céu enormes caminhões-reboque. Os passou correndo perto do bicho, ele vez mais fraco. Sua fisionomia estava
em seu esplendor solitário. cowboys começaram a tocar o gado ergueu os chifres num gesto amea- cansada, mas triunfante.

C
para a entrada da rampa. O nervo- çador e flechou para a porteira onde – E dizer que os cowboys grã-finos
hegamos à fazenda ao pôr sismo dos animais aumentava. De vez eu estava. Parou por um instante, de Houston e Victoria tomam o café
do sol. Por cima da serra baixa em quando um touro irado atacava às olhando-me com seus olhos rubros, na cama! – disse ele, sacudindo a
vimos elevar-se uma nuvem cegas a cerca do curral perto de mim. como quem considera – e, de repente, cabeça.
grossa de poeira. As tábuas sacudiam-se com o choque.
– O senhor teve sorte – disse O meu nervosismo também crescia de
Roald Runner. – Eles estão levando a minuto a minuto.
Um novo jeito
boiada inteira para a pastagem do rio. Já estava quase escuro. Na obscu-
de caçar passarinho
A nuvem de poeira aumentou. De- ridade a operação de carregamento
pois um único cowboy apareceu, e ficava cada vez mais lenta. Os touros No século 19, a “Side Hunt” era uma competição
atrás dele uma floresta de chifres, com desconfiados lutavam valentemente de tiro: quem matasse mais aves, ganhava.
dois homens de cada lado, assenta- para não entrarem na rampa. Os Então, em 1900, um ornitólogo chamado
dos na sela como um rei no trono. A cowboys ficavam impacientes, irri- Frank M. Chapman teve uma ideia. Em vez
boiada passou, sacudindo o chão com tados. A irritação deles era agravada de caçar aves, por que não contá-las?
os cascos como se fosse o rugir de um pela fome, pois a hora do jantar já O Recenseamento Aviário Natalino da
terremoto. passara havia muito. O chefe dos Audubon Society existe até hoje.

38 edição especial edição especial 39


Publicado em
dezembro de 2014

UMA HERANÇA
RECUPERADA fotos: cortesia da família jorisch

Décadas depois que os nazistas


roubaram as obras de arte da sua
família, um morador de Montreal Litzlberg em Attersee, de Gustav Klimt.

decidiu buscar justiça


por Hélène de Billy

40 edição especial edição especial 41


C
erto dia de 1998, en- que Georges fora obrigado a parar de
quanto folheava um livro estudar por causa da guerra. Também
de arte numa livraria, soube que ele emigrara para Mon-
Georges Jorisch, 70 anos, treal em 1957, com a mulher, belga, e
deu com um desenho da os dois primeiros filhos, e que havia
tia-avó. De repente, foi inundado por trabalhado numa fábrica antes de se
uma torrente de lembranças, entre tornar vendedor de equipamento fo-
elas os quadros de Gustav Klimt que tográfico, profissão que exerceu por
pendiam das paredes do lar da sua 22 anos. Mas não sabia a extensão das
infância. Morador de Montreal com lutas que ele vencera.
raízes na Áustria, onde alguns paren-
tes morreram no Holocausto, Georges Nascido em 1928, entre as duas guer-
decidiu dar os primeiros passos para ras mundiais, Georges foi criado por
recuperar as preciosas obras de arte uma importante família judia da Eu-
roubadas da família pelos nazistas. ropa Central. Era um clã progressista
As primeiras indagações ao go- de cientistas, intelectuais e mulheres
verno austríaco foram datilografadas fortes. Édith descreve a ocasião em
e enviadas pelo correio. Em geral, não que o avô se encontrou com Sigmund
havia resposta. “Na nossa família, a Freud: “Você parece um bom menino”,
princípio ninguém acreditou que a disse o pai da psicanálise, acariciando
busca o levasse a algum lugar”, diz o cabelo do pequeno Georges. A partir do alto à esquerda:
Édith Jorisch, neta de Georges. “Meu Viktor Zuckerkandl, tio-avô de Georges com 10 anos; com a
mãe, Mathilde; o sanatório
avô nos contava que crescera num Georges e magnata do aço, comprara
no subúrbio de Purkersdorf,
ambiente muito culto, e falava de to- vários quadros de Klimt e, em 1903, em Viena.
das as personalidades que passavam encomendara ao arquiteto moder-
por lá. Minha avó Eliane se impres- nista Josef Hoffmann a construção em
sionava. ‘Tudo isso é muito Purkersdorf, um subúrbio
bonito’, dizia, ‘mas por en- de Viena, de um sanató- entre os quais Amalie Redlich, avó de Era o que meu avô nos contava”, diz
quanto só temos batatas rio em estilo art nouveau. Georges. Édith. “Mas a encontrei no Google
para jantar.’” Além de centro médico, o Em 1933, quando os pais se sepa- Maps e a visitei no último verão. Vi
Édith, 23 anos, é cineasta prédio, com suas linhas raram, Georges e a mãe, Mathilde, a janela avarandada de que meu avô
e reuniu as histórias do avô precisas, era uma home- mudaram-se para a casa da avó, uma sempre falava, perto de onde ficavam
para um documentário. nagem à estética do novo das mansões próximas ao sanatório, pendurados os quadros de Klimt que
“Durante muito tempo, século. Em 1927, quando enquanto o pai, Louis Jorisch, ficou ele estava procurando.”
meu avô foi um persona- Zuckerkandl morreu sem em Viena. Georges era uma criança Em 14 de março de 1938, com 10
gem misterioso”, diz ela. deixar filhos, seus monu- adoentada e não tinha permissão de anos, Georges avistou aviões alemães
“Só nesses últimos anos me mentos e obras de arte se aventurar fora da casa. no céu acima da casa. Mais tarde, viu
aproximei dele.” Antes do Viktor Zuckerkandl, foram distribuídos entre “Durante muito tempo pensamos Adolf Hitler, triunfante, percorrer as
projeto do filme, ela soube tio-avô de Georges. os irmãos sobreviventes, que a mansão tinha sido demolida. ruas de Viena, cercado de soldados.

42 edição especial edição especial 43


com destino ao gueto de Lodz, catálogo das obras de Klimt, o quadro os colecionadores que compram
na Polônia, viagem à qual não pertencera a Amalie Redlich, a avó de boa-fé as peças de comerciantes
sobreviveriam. de Georges. Munido dessa infor- de arte legítimos. Mas, dali a um ano,
Em 1942, Georges e o pai muda- mação, Georges abriu um processo o homem de Graz mudou de ideia.
ram de endereço constantemente contra o bilionário nova-iorquino, Nesse meio-tempo, Ruth encontrou o
para não serem encontrados. combatido com veemência pelos relatório policial de 1945 que provava
Georges sofria com a desnutrição advogados deste. Georges acabou que o quadro fora roubado.
e a falta de exercício. Quando a tendo de retirar o processo por falta De acordo com Édith, Igreja em
guerra acabou, as pernas estavam de provas. Cassone se tornou o primeiro quadro
tão atrofiadas que ele se machucou Sem se deixar intimidar por essa a ser devolvido a descendentes de ví-
Georges com os netos em 2000. Édith tentando atravessar a rua correndo. Le- derrota, ele continuou caçando duas timas do Holocausto por um colecio-
está na extrema esquerda. varia um ano para sarar. paisagens do Lago Garda, no norte da nador privado austríaco. Em fevereiro
“Outra consequência da guerra”, diz Itália. No fim de 2007, obteve a ajuda de 2010, Georges o pôs à venda num
Hitler fazia a saudação fascista e a Édith, “foi que o meu avô não con- de Ruth Pleyer, especialista austríaca leilão em Londres e concordou em di-
multidão gritava “Um povo, uma seguiu terminar os estudos e levou em rastreamento de obras de arte. vidir meio a meio o que fosse apurado
nação, um Führer!” enquanto ele uma vida muito modesta em termos
passava. financeiros.” SEGUNDO ÉDITH, IGREJA EM CASSONE SE
Com a Áustria agora anexada à Ale- Ao voltar à Áustria, pai e filho tenta-
manha, Louis Jorisch ligou para a mu- ram recuperar os bens que Mathilde e
TORNOU O PRIMEIRO QUADRO A SER DEVOLVIDO
lher. “Temos de partir imediatamente”, a mãe tinham encaixotado. O sanató- A DESCENDENTES DE VÍTIMAS DO HOLOCAUSTO
disse. “Ponha nosso filho no carro e me rio fora ocupado primeiro pelos ale- POR UM COLECIONADOR PRIVADO AUSTRÍACO.
encontre em Viena.” Mathilde estava mães e depois pelos russos, quando
convencida de que a situação logo se libertaram a área. Os caixotes tinham De acordo com as suas descobertas, com o colecionador de Graz. Georges
acalmaria e se recusou a deixar para sido saqueados e tudo sumira. Klimt só produzira três quadros repre- e Édith acompanharam o leilão pela
trás a mãe diabética. Louis brigou com Quatro anos antes de morrer de sentando a região do Lago Garda. O Internet. A Sotheby’s estimara o valor
a mulher pela custódia do filho. infarto, Louis requisitou uma inves- primeiro fora queimado e o segundo, da obra entre 20 e 30 milhões de dóla-
“Acontece que o juiz era amigo de tigação sobre o paradeiro das suas na verdade, não mostrava o lago. O res. Foi vendida por 43,2 milhões.
Louis”, diz Édith. “Na sua decisão, propriedades perdidas. O relatório terceiro trazia uma igreja dando para A próxima peça da lista de Georges
disse: ‘Hitler quer todos os judeus fora policial resultante seria de grande va- a beira do lago, em Cassone, na Itá- era uma paisagem com um rio. Graças
da Áustria, portanto a criança pode lor para seus descendentes. lia, mas essa obra não era vista havia à pesquisa de Ruth Pleyer, ele desco-
partir com o pai.’” muito tempo. briu que era o Lago Attersee e não o

E
Em março de 1939, Georges e o pai m 2007, Georges acreditou ter Ruth Pleyer demorou dois anos para Lago Garda, como sempre pensara.
embarcaram com passaportes falsos achado um dos quadros rou- encontrar Igreja em Cassone. O dono Também descobriu que a pintura
num trem para Colônia, na Alemanha. bados pelos nazistas. Fazia morava em Graz, na Áustria. Herdara avariada era uma das peças mais po-
De lá, cruzaram a fronteira da Ho- anos que iniciara a busca, e final- o quadro do pai, que não conhecia a pulares do Museu de Arte Moderna
landa e, enfim, chegaram a Bruxelas, mente ali estava o Prado florido de história da obra quando a comprou na de Salzburgo. Depois de avaliar o pe-
onde ficariam durante toda a guerra. Klimt na coleção de Leonard Lauder, década de 1960, e não tinha a mínima dido de Georges, as autoridades aus-
Quanto à mãe e à avó de Georges, em herdeiro do império de cosméticos intenção de entregá-la. Nem era obri- tríacas declararam que “as condições
1941 elas foram embarcadas num trem de Estée Lauder. De acordo com o gado a isso. Na Áustria, a lei protege para a devolução do quadro foram

44 edição especial edição especial 45


Georges em
2011. Abaixo:
Crianças na volta
da escola,
encontrado na
África do Sul.

Igreja em Cassone, de Klimt,


foi leiloado pela Sotheby’s
em 2010 e vendido por
43,2 milhões de dólares.

cumpridas”, e o museu concordou em lances, o quadro foi vendido por 40,5


entregá-lo. Numa demonstração de milhões de dólares, mas Georges pa-
gratidão, Georges financiou a restau- recia impermeável ao frenesi. “Ele
ração de uma das alas do museu, que não era um homem expansivo”, ex-
hoje tem o nome da sua avó. plica Édith. Quando um jornalista ir- Georges compareceu à cerimônia
Litzlberg em Attersee foi vendido em landês lhe perguntou como se sentia, no museu no ano passado para come-
2 de novembro de 2011 na Sotheby’s respondeu com um simples “bem”. morar a chegada do quadro. Morreu
repentinamente, em 25 de setembro
“MEU AVÔ NUNCA FOI MOTIVADO PELO de 2012, com 84 anos. Passara mais
DINHEIRO”, DIZ ÉDITH. “QUERIA EXPRIMIR A SUA de uma década rastreando a herança
da família.
GRATIDÃO A QUEBEC POR RECEBÊ-LO COM A menina numa paisagem dos Alpes. Talvez Georges tenha deixado para
MULHER QUANDO CHEGARAM EM 1957.” Georges o encontrou na África do Sul trás um vislumbre seu em Crianças na
e o comprou com a intenção de doá- volta da escola. É fácil ver um paralelo
de Nova York. Assim como o quadro No entanto, a um repórter da televi- -lo ao Museu de Belas-Artes de Mon- entre os dois alunos decididos do qua-
do Lago Garda, fora furtado por um são alemã ele falou da “realização de treal. “É um dos únicos luxos a que se dro e o menininho judeu obrigado a se
austríaco chamado Freidrich Welz, toda uma vida”. permitiu depois de receber milhões esconder para sobreviver. Mas Georges
um dos maiores negociantes de obras de dólares de restituições”, diz Édith. sempre se recusou a lastimar o pas-

A
de arte do regime nazista. Dessa vez, inda restava a Georges encon- “Durante toda a sua busca, nunca foi sado ou sentir pena de si mesmo. “Ele
Édith compareceu ao leilão para fil- trar mais um quadro. Crianças motivado pelo dinheiro. Mas queria preferia olhar para a frente”, diz Édith.
mar a reação do avô ao pôr os olhos na volta da escola, do pintor exprimir a sua gratidão a Quebec por “Por isso foi bem-sucedido. Sua deter-
na obra pela primeira vez em 73 anos. austríaco Ferdinand Georg Wald- recebê-lo com a mulher quando che- minação foi um exemplo para mim, e
Depois de uma acirrada guerra de müller, mostrava um menino e uma garam em 1957.” tenho muito orgulho dele.”

46 edição especial edição especial 47


A pit bull marrom e de olhos suaves
conquistou o coração de David e
provocou grandes mudanças Publicado em
dezembro de 2014

Por
amor a
Lilly
por Anita Bartholomew

David Lanteigne não pretendia adotar outro animal de


estimação quando visitou a Liga de Resgate de Animais de
Boston, em março de 2009. Sua golden retriever Penny era
o máximo que aguentaria no pequeno apartamento na zona
leste da cidade. Mas ele imaginou que, ainda assim, poderia
ser voluntário e passear com os cães do abrigo para que se
sentissem amados. Numa volta pelas instalações, o policial A heroica pit bull
é amada pelos novos
de Boston, então com 25 anos, avistou, num canil dos fun- donos e por muitos
dos, uma doce pit bull marrom de 5 anos chamada Lilly e moradores de Boston.

48 edição especial edição especial 49


se ajoelhou para dizer alô. “Seus ficou tão tocada pela cadela quanto charam. Pouco antes de parar,
olhos eram lindos”, recorda ele. o filho. Assim, Lilly entrou para a fa- o maquinista sentiu um baque.
Quando estendeu a mão para aca- mília. Nos dias de folga de David, Lilly Correu a pé, esperando encon-
riciá-la, ela esticou o pescoço até a ficava com ele e Penny, sua nova me- trar dois cadáveres. Mas Lilly
grade. Ele notou cicatrizes na cabeça; lhor amiga. Mas a cadela morava com conseguira tirar Christine dos
teria sofrido maus-tratos? E ela estava Christine na grande casa branca em trilhos bem a tempo.
faminta do pouco de amor e afeto que frente à estação ferroviária da cidade Ainda incoerente de tão bê-
ele podia lhe dar pela porta do canil. de Shirley, em Massachusetts. bada, Christine foi presa. Lilly
Algo nela tocou o coração de David, E David tinha razão: as duas fizeram foi levada para uma clínica de
e ele detestou a ideia de deixá-la ali. bem uma à outra. Dedicada a Lilly, emergência veterinária.
David pensou na mãe, Christine Christine a levava a toda parte, prepa- David deixou o serviço e par-
Spain, que, de certo modo, era como rava sua comida, se aconchegava a seu tiu para Shirley, sufocando os
Lilly: tolhida por forças fora de seu lado à noite. Chegou a sair um pouco soluços, furioso com a mãe por
controle e precisando muito de al- da casca para conversar com quem ela correr tanto risco e atormentan-
guém para amar. e Lilly encontravam nos passeios. En- do-se por deixá-la adotar Lilly.
Christine lutara contra o alcoo- fim, tudo parecia ir bem. Ao chegar, encontrou Lilly
lismo e a doença mental durante toda ainda no carro de controle ani- David se apaixonou de imediato por Lilly.

E
a vida adulta. Em consequência, per- m 3 de maio de 2012, David co- mal da polícia. Embora ferida e Sabia que ela faria bem à sua mãe.
dera tudo, até os filhos. David e a irmã meçou o turno de trabalho à ensanguentada, ela balançou o rabo Gania apesar dos analgésicos, mas
foram morar com os avós quando meia-noite, policiando as ruas ao vê-lo. Quando ele a pegou no colo, sua situação era estável. E ela pareceu
ele tinha apenas 6 anos. No entanto, violentas do bairro de Mattapan, em a atadura improvisada caiu da pata se acalmar com a presença dele.

fotos da página dupla anterior e desta: © beth oram photography


fotos da página dupla anterior e desta: © beth oram photography
David nunca desistiu da mãe. Peda- Boston. Em seis anos como policial, já esmagada. Com cuidado, David colo- Assim que a cidade despertasse
lava oito quilômetros para visitá-la na vira de tudo. Achava que nada o aba- cou-a na traseira da picape e disparou para outra manhã, ele teria de deixá-
cidade vizinha. E era tão maravilhoso laria... até receber o torpedo de um de volta a Boston. -la. Ao chegar em casa às pressas, só
dividir com ela momentos de amor amigo que trabalhava como paramé- No Centro Médico Veterinário An- teve tempo de tomar um banho antes
que ele esquecia as vezes em que a dico em Shirley, a 80 quilômetros dali. gell, os médicos lhe disseram que a de se inscrever para um turno extra e
encontrava inconsciente no chão, cer- “Sua mãe quase foi atropelada por pata direita de Lilly fora “desluvada” começar a ganhar o dinheiro de que
cada de latas de cerveja vazias. um trem”, dizia o amigo. “Está bem, – a pele, os músculos e o tecido con- precisaria para pagar as contas.
Isso, porém, era passado. Sentia uma mas o cão dela não teve a mesma juntivo tinham sido arrancados. En- Só se passara uma hora desse turno
mistura de orgulho e alívio por saber sorte. Parece que perdeu uma pata.” tretanto, havia uma possibilidade de quando o hospital ligou. A pata dian-
que a mãe largara a bebida havia mais Um telefonema rápido à polícia lo- salvar a pata, mas só teriam certeza teira direita de Lilly não tinha salvação.
de dois anos. Entretanto, a ansiedade cal lhe deu mais detalhes. Um trem de depois de radiografias. O mais preocupante eram os quadris. A
e a depressão ainda a impediam de carga passava pela estação de Shirley Enquanto Lilly era levada para o cadela tinha várias fraturas no quadril
sair e conhecer gente nova. Ter um quando o maquinista avistou uma tratamento intensivo, David pediu um esquerdo e na pelve. Precisaria de uma
cão para cuidar daria a ela uma boa mulher desmaiada sobre os trilhos à empréstimo de 4 mil dólares, custo es- grande cirurgia para reparar os danos.
razão para sair e se relacionar. E a mãe frente, com um cão marrom ao lado. timado da amputação, caso precisasse Primeiro Lilly teria de sobreviver
seria um salva-vidas para Lilly. O cão puxava e empurrava, tentando ser feita. Finalmente, resolvida a pa- à amputação, explicou o veterinário.
Na semana seguinte, ele levou desesperadamente tirá-la dali. Os pelada, ele pôde visitá-la. Ela estava Caso sobrevivesse, eles esperariam
Christine para conhecer Lilly, e ela freios da imensa locomotiva guin- presa a um monte de tubos e soros. um ou dois dias, operariam o quadril

50 edição especial edição especial 51


tos onde antes havia uma pata. de pé, começara a mover as patas tra- os exercícios de alongamento receita-
“Ela parecia o Frankenstein.” seiras. Parecia um bom sinal. dos pela Dra. Suzanne. Juntos, mãe e
No sábado, 5 de maio, os ci- Em casa, completamente indefesa, filho aprenderam a levá-la para “pas-
rurgiões operaram o quadril e Lilly precisou de cuidados constan- sear”. Um deles ficava na frente, o ou-
a pelve. A lesão da articulação tes. Christine ficou no apartamento tro atrás, e ambos a carregavam num
do quadril era tão grave que foi do filho para se dedicar à recuperação arnês duplo especialmente projetado.
preciso extraí-la. de Lilly. Preparava-lhe frango cozido, Numa tarde ensolarada, David levou
Lilly, porém, sobreviveu. batata-doce e arroz. Lilly precisava os dois cães a um parque no centro de
Agora só restava o grande teste: de vários comprimidos – antibióticos, Boston. Lilly descansava na grama,
voltaria a andar? analgésicos, anti-inflamatórios –, que com Penny ao lado, quando uma mu-
A notícia da heroína que Christine ministrava com atenção. lher parou na calçada para olhar. Era
salvara sua dona se espalhou Lilly não conseguia se mexer, e Chris- claro que os reconhecera graças à
pelo Centro Veterinário Angell. tine não queria que ela dormisse sozi- atenção que Lilly recebera da mídia.
Rob Halpin, diretor de relações nha. Por isso, passava as noites com a Ela andou na direção deles sorrindo,
públicas do Angell, perguntou cadela no assoalho de madeira. abriu os braços e chamou: “Lilly!”
a David se ele concordaria em Embora nunca tenham conversado O olhar de Lilly se alegrou, como
contar à imprensa a história de sobre o que aconteceu naquela noite sempre acontecia. E, enquanto David
Lilly. Segundo Halpin, isso aju- nos trilhos da ferrovia, David ouviu observava espantado, Lilly conseguiu
daria a combater o injusto es- Christine chamar Lilly de “minha pe- se levantar e, cambaleante, deu al-
tigma enfrentado pelos pit bulls quena salva-vidas”, e sua dedicação à guns passos com as três patas restan-
Hoje, Christine é ainda mais dedicada a Lilly e que dificultava sua adoção. cadela dizia mais do que palavras. Mas tes para saudar a mulher.
e à própria saúde.
David concordou. A princí- nada disso adiantaria se a fisioterapia Ele reagiu depressa e se esticou
e instalariam uma placa de aço para pio, deu entrevistas a jornalistas locais, não pusesse Lilly em pé outra vez. para apoiar a cadela, com medo de
ajudá-la a sustentar o próprio peso. mas, quando a notícia do heroísmo de Vários dias depois da alta do Centro que ela caísse. E, com a mesma rapi-
David desanimou ao receber a no- Lilly se espalhou, o hospital começou Angell, David levou Lilly ao centro de dez, a alegria varreu o medo.
tícia. Se ela vivesse, será que conse- a receber telefonemas de repórteres reabilitação Paws in Motion e a pousou Tudo daria certo. Lilly ia conseguir.
guiria andar? O veterinário não podia do mundo inteiro. Halpin criou um com cuidado no chão. O máximo que a Voltaria a andar.
garantir. fundo para o tratamento de Lilly. fisioterapeuta Dra. Suzanne Starr pôde
Seria justo lhe impor mais dor só Em quatro dias, cerca de 76 mil dó- fazer com Lilly naquele primeiro dia Quando o texto foi publicado, cinco
para que morresse na mesa de cirur- lares foram doados, quantia mais que foram massagens e flexões das patas. anos depois, Lilly ainda dividia seu
gia? E se só ficasse com uma pata boa? suficiente para pagar as contas hospi- Na segunda sessão, a Dra. Suzanne tempo entre as duas casas, em Shirley e
Ele não queria que Lilly sofresse talares de Lilly e a fisioterapia intensiva pôs Lilly na esteira aquática. Por al- em Boston, andando alegremente com
mais, mas ela aguentara até ali. Não de que ela precisaria. O hospital guar- guns momentos, a sustentação da suas três patas. Também comparecia a
podia ser à toa. Lilly teve a pata dian- daria o que restasse das doações para água permitiu que a pit bull se er- eventos da entidade Lilly the Hero Pit
teira e o ombro direitos amputados no ajudar outros animais cujo tratamento guesse e andasse sozinha sem cair. Bull, criada para defender os pit bulls,
© ldancy design

dia seguinte. os donos não pudessem pagar. Fora d’água, porém, Lilly ficava tão arrecadar fundos para despesas veteri-
Após a cirurgia, David viu, pela grade Por fim, pouco mais de uma semana imóvel quanto antes, incapaz de su- nárias e ajudar esses cães a encontrar
do canil, um cão raspado e ferido, com após o acidente, Lilly teve alta do Cen- portar o próprio peso sobre três patas. um novo lar. Christine Spain estava
tubos e agulhas pelo corpo todo e pon- tro Angell. Embora ainda não ficasse Diligente, Christine fazia com Lilly bem e permanecia sóbria.

52 edição especial edição especial 53


Quem conseguiria
sobreviver 18 horas aqui
sem colete salva -vidas?

Michael Trapp
conseguiu.
Veja como.

por Derek Burnett


Publicado em
fotografado por Tamara Reynolds
abril de 2012

54 edição especial edição especial 55


M
ichael Trapp ia muito
bem, obrigado, pilo-
tando o seu Cessna
150 de 1966 sobre as
águas do Lago Hu-
ron, nos Estados Unidos. Era o meio
da tarde de 26 de julho de 2011. Ele
voava a confortáveis 900 metros de al-
titude, a caminho de uma reunião de
família em Eau Claire, tendo partido
de sua casa em Nova York. A mulher,
Julie, manifestou sua desaprovação,
chegando a pedir que fizesse o testa-
mento caso insistisse em ir, mas ele
não lhe dera atenção. É verdade que
era sua viagem mais longa até então,
que o avião era mais velho do que
ele, que nunca tivera de cruzar “tanta
água” e, claro, tinha apenas 130 horas
de experiência de voo – mas, de fato, o
que poderia dar errado? Já decolara e
pousara centenas de vezes, mapeara a
rota com todo o cuidado e até partira
um dia antes da data marcada para
fugir do mau tempo. Ainda economi-
zaria centenas de dólares evitando as
linhas comerciais. Para ele, jogar fora
O Cessna de Trapp
quase mil dólares pelo privilégio de
eternizado no quadro
ser revistado por seguranças e ficar de avisos da sua
apertado como sardinha em lata é oficina, ao lado de
coisa de maluco. outro brinquedo.
Então, o barulho do motor mudou.
Bastante. O combustível estaria aca-
bando? Não podia ser. Ele acionou o O avião continuou a descer. Michael rádio e deu sua posição e direção: “Es- frequência de rádio de emergência a
seletor para trocar o tanque de com- espiou pelo para-brisa: conseguia ver tou sobrevoando água e o motor está fim de que a equipe de resgate sou-
bustível. O motor continuou a perder terra à frente – a parte da costa do Mi- com problemas. Podem ficar de olho besse sua localização e identificação.
força e a altitude a se reduzir. Então chigan que, no mapa, parece o polegar em mim, por favor? Só para garantir A água se aproximava depressa: 30
ligou o sistema anticongelamento. de uma luva. que cheguei à margem?” metros. Ele voltou a falar com Lan-
Nenhuma mudança. Puxou o manete. Comunicou -se com Lansing pelo Orientaram Trapp a passar para a sing, gritando:

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– Vou cair na água! o brevê e financiou a maior parte dos
Ele tinha reduzido a velocidade para 13.900 dólares que pagou pelo Cessna.
80 km/h, sabendo que a 77 km/h o Os filhos e o enteado – Jeffrey, de 19
avião não ficaria mais no ar. O alarme anos, Nicholas, de 17, e Drake, de 11
de estol começou a soar. Ele abriu a – se empolgaram e até brigaram para
porta e tocou de leve o manche para ver quem voaria com ele sobre a Ca-
erguer o nariz. Só de implicância, de deia Adirondack e o Rio St. Lawrence,
repente o motor voltou à vida. Tarde olhando de cima os lagos, florestas e
demais. A cauda atingiu a água pri- cidadezinhas do norte do estado de
meiro. O avião deu um pulo, o para- Nova York. Mas Julie não ficou nada
-brisa explodiu e a água do lago entrou entusiasmada com essa história. O
na cabine com força total. A resposta avião a apavorava. Ela voou com ele
de Lansing ao pedido de socorro se apenas duas vezes. Se o marido que-
afogou na invasão furiosa da água. ria arriscar a vida, tudo bem, mas ela
Eram 16h12. realmente preferia ficar de fora.

T
Aos 42 anos, não se pode dizer que rapp prendeu a respiração e
Trapp estivesse em forma. O mecâ- soltou o cinto de segurança.
nico de automóveis e, em suas pró- Nadou debaixo d’água, saiu
prias palavras, maníaco por motores pela porta que se abriu com a queda
se pesava regularmente, sempre que e chegou à superfície agarrando-se à Trapp com o avião de
um amigo, o mesmo
competia no circuito local de Stock cauda. O avião continuava afundando.
tipo de Cessna que
Car. O físico de 1,75 m e 92 kg refletia Ele tirou a mão do Cessna e o viu des- perdeu quando o
sua postura tranquila diante da vida. cer 9, 12, 15 metros, até sumir nas carburador congelou.
Ele não se preocupava muito; gostava águas. “Adeus, meu bem”, disse ele. O
de rir e de fazer rir; cercava-se de ami- avião levou menos de um minuto para
gos e familiares. A princípio, podia afundar. transformar a calça num colete salva- Você acabou de sobreviver a um desas-
parecer um caçador de emoções, mas Bem, você está vivo, pensou. E a -vidas. Então, tirou os tênis e a calça, tre de avião, disse a si mesmo. E agora
o que realmente o atraía nas corridas água não está fria demais – entre 15oC amarrou as pernas, encheu-as de ar e vai se afogar. A calça ainda flutuava a
era a camaradagem. Gostava de traba- e 20oC. Sem o avião para se segurar e as enrolou no pescoço. Quando veio alguns metros; ele nadou até lá, pegou
lhar com os amigos nos carros tanto nenhuma boia, ele teria de nadar. O uma onda grande, a calça se retorceu a carteira e a enfiou na cueca. Assim,
quanto gostava de pilotá-los. problema era enfrentar as ondas de em volta de sua garganta e quase o conseguiriam identificar o corpo.
Voar não era um sonho antigo de quase dois metros que não paravam estrangulou. Bem, isso foi uma estu-
Trapp. Por acaso, apenas três anos de jogá -lo para debaixo d’água. Ele pidez, admitiu. Furioso, jogou a calça Julie recebeu um telefonema logo após
antes, acabara guiando o avião de saía cuspindo, debatendo-se, e era longe e continuou batendo os pés. as 18 horas. Eram poucos os detalhes.
um amigo que lhe disse: “Segure o só recuperar o fôlego para que outra Tentou boiar de costas para recu- Michael fizera um chamado de emer-
manche um minuto, Mike. Quero ti- onda o afundasse. Você vai precisar de perar o fôlego, mas as ondas eram gência. Desaparecera. A Guarda Cos-
rar umas fotos.” Trapp se apaixonou um plano, raciocinou. implacáveis. A água entrou-lhe pela teira iniciaria as buscas. Entrariam
na mesma hora. Meses depois, tirou Na marinha, fora treinado para garganta até o pulmão. Ele vomitou. em contato. Ela desligou, tonta e até

58 edição especial edição especial 59


zangada. “Eu avisei”, sussurrou. Mas para descansar. Uma vez, enquanto respirar, com os músculos exaustos, observando os satélites cruzarem o
não havia nada a fazer senão esperar. descansava com as orelhas debaixo e rolava de costas para descansar. céu, espantado com o número de me-
A Guarda Costeira despachou três d’água, ouviu um motor se aproximar. Quando se recuperava, tinha perdido teoros que se consegue ver quando
aviões e três barcos, mas as autorida- Tirou a cabeça da água e examinou o terreno. A primeira estrela surgiu. Ele não se tem mais nada para olhar.
des não tinham entendido direito a horizonte. Lá, a menos de 50 metros, fez um pedido. As ondas diminuíram e ele nadou
posição de Trapp antes da queda, e a flutuava um enorme cargueiro. Em- apenas para acompanhar os pontos
área de busca se estendia por quase bora acenasse e gritasse, o navio pas- Em Gouverneur, a família e os amigos quentes da água. Quando tremia de
5 mil km². E, com ondas de dois me- sou por ele e quase o afogou com a angustiados se reuniram na sua casa. frio, se forçava a parar e esfregava o
tros, uma cabeça humana fora d’água imensa onda da esteira. Naturalmente reservada, Julie pouco corpo até conseguir flutuar calma-
é bem difícil de localizar. O sol se punha diante dele quando falava; apenas esperava ao lado do mente outra vez.
percebeu que aquilo que perseguia telefone. Apreciava a demonstração Ele pensou naqueles a quem

B
em, ainda não estou disposto a não era boia nenhuma. Era o alto da de apoio, mas, acima de tudo, queria amava. Tanta gente dependia dele!
morrer, pensava Trapp. As on- chaminé de uma fábrica na costa. ficar sozinha. Finalmente, a casa se es- Julie, os filhos, os funcionários da
das eram grandes, tudo bem, Tudo bem, pensou. Melhor ainda: vaziou e ela foi se deitar, mas a cabeça oficina mecânica, os amigos. Viu que
mas ele se lembrou de ter visto na TV vou nadar até chegar a terra firme. fervilhava de possibilidades em que conseguia uma trégua do sofrimento
que uma menina de 12 anos cruzara Ele estava a três quilômetros das lu- preferia nem pensar. Quando adorme- quando se visualizava em casa com as
o Canal da Mancha a nado. Se uma zes cintilantes à beira d’água quando ceu, estava no lado da cama em que pessoas importantes para ele – rindo
menina de 12 anos consegue, eu posso deparou com uma forte corrente que Michael costumava dormir. com os amigos, aconchegado na cama
me aguentar e flutuar mais um pouco, o travou por completo. Nadava o má- Durante a noite, dois helicópteros, ao lado de Julie. Então uma onda ge-
pensou. Mas era difícil se desligar de ximo que podia até mal conseguir um avião C-130 da Carolina do Norte, lada lhe caía no rosto, ele tossia, expe-
tudo que deixara no avião – um do departamento do xerife local e lia a água e recomeçava.
o celular à prova d’água, por outro da Força Aérea canadense vas- Numa das tréguas, algo bateu com
exemplo, e dois pacotes de culharam a área de busca. Trapp não força no seu corpo. Mas que...? Ele ta-
rocambole, além da gela- os viu. O que viu foi a luz verde de teou, esperando encontrar um tronco
deira de isopor e a garrafa uma boia, mais longe, perto da costa. ou destroço. Não era nada disso. Era
d’água, que poderiam ajudá- De volta ao plano A, então: agarrar-se um peixe. Um peixe enorme. Sua ca-
-lo a se manter na superfície. a uma boia até o resgate. Mas a cor- beça foi a mil, imaginando mandíbu-
Começou a nadar cachorri- rente ainda o atrapalhava. Ele tentou las enormes subindo das profundezas
nho e alguma coisa chamou durante horas, enlouquecido pela tor- para jantá-lo. Opa! É melhor tirar essa
sua atenção. Uma boia de tura de ver a boia tão perto, nadando bobagem da cabeça. Agora não há
marcação? Exultante, foi até os membros amolecerem, descan- tempo para isso.
em direção a ela. Ora, ora, sando de costas à luz das estrelas e, Ele boiou e relaxou de novo. E um
pensou, vou simplesmente então, percebendo que estava mais mosquito começou a lhe picar a testa.
nadar e me agarrar àquela longe do que quando começara. Está de brincadeira? A três quilômetros
boia até que venham me bus- Ninguém virá esta noite, percebeu. da margem? Você não tem pena, não?
Julie Trapp aguardou
car, e depois serei bonzinho. É preciso relaxar e esperar que o sol Ele xingou, estapeou o ar, e o mos-
sozinha, junto ao
Ele nadou o máximo que telefone, notícias do nasça. Então, pela manhã, alguém quito foi embora.
pôde durante duas horas, paradeiro do marido. vai me ver e virá me buscar. Ele boiou Mais tarde, voltara à posição de
às vezes boiando de costas de costas, hipnotizado pelas estrelas, nadar cachorrinho para ver se estava

60 edição especial edição especial 61


Nas horas seguintes, mais dois ve- e recebeu tratamento para exaustão e
leiros passaram, e ele tentou chamá- hipotermia. Naquela noite, deitado na
-los em vão. Sentia que chegava ao cama do hospital, ele se maravilhava
seu limite físico. Já estava na água ha- com sua sorte quando ergueu os olhos
via umas 18 horas. e viu Julie em pé à porta.
Outro barco se aproximou. Com – Não quero machucar você, então
cãibra e fraco, Trapp nadou na di- não vou abraçá-lo muito apertado –
reção da embarcação com braçadas disse ela.
meio tortas. Parou e, novamente, co- – Não se preocupe com isso – respon-
meçou a agitar a meia e a refletir o deu Trapp, os olhos cheios de lágrimas.
Os salvadores de Trapp: Diane e Dean Petitpren, o comandante Erik Krueger, sol com o cartão de crédito. O barco E ela o abraçou o mais apertado
Marita Grobbel e o marido, Dennis Andrus. Krueger disse a Trapp, para descontrair: seguiu em frente. Por favor, por favor, que pôde.
“Está meio longe da margem, não é, colega?” por favor. Venha. Acho que não terei De acordo com a Força -Tarefa de
outra oportunidade. Por favor! Busca e Resgate dos Estados Unidos,
tudo bem quando uma sombra flu- tem muita opção, disse a si mesmo. Dean e Diane Petitpren e seus con- o usual é que, em águas entre 15oC e
tuou entre ele e as luzes da margem. Ou nada, ou morre. São as duas úni- vidados estavam a bordo da lancha de 20oC, a pessoa chegue à exaustão ou
Forçou os olhos na escuridão e viu o cas opções. Ele decidiu nadar na di- passeio Viking, de 58 pés, havia três à inconsciência em duas a sete horas.
que era – um cormorão, uma ave ma- reção da corrente para assim chegar horas quando Diane olhou em dire- O sofrimento de Trapp durou 18. Ele
rinha que deu várias voltas em torno à margem. Dava braçadas com força ção à margem e viu algo flutuando perdeu três quilos e passou três dias
dele e depois pousou na água escura e quando um barco de pesca se aproxi- na água. Não tirou o olho do que vira no hospital para se recuperar do nível
começou a nadar na sua direção. Que mou, cada vez mais perto, e foi como enquanto Erik Krueger, o comandante perigosamente alto de uma proteína
droga! Essa coisa vai me furar os olhos! se pudesse tocá-lo. Três homens an- contratado por eles, fazia o barco dar liberada pelos músculos demasia-
– Saia daqui! – berrou, e o pássaro, davam pelo convés. Ele gritou e ace- meia-volta. damente exigidos e que pode sobre-
espantado, obedeceu. nou o mais que pôde, até que não lhe carregar os rins. Quando voltou para

E
Enquanto esperava o nascer do sol, restavam mais forças e não teve opção ram 10h30 quando o telefone casa, foi recebido como herói.
ele pensou na vida. Nas coisas estú- a não ser boiar e se recuperar. Quando de Julie Trapp tocou. No barco, depois que os salvadores
pidas que fizera. Nas discussões à toa se sentiu melhor, a corrente o arras- – Alô? – atendeu, com receio. o tiraram da água, Trapp foi enrolado
com Julie. Começou a rezar. Por favor, tara para uns 500 metros do barco. – O seu marido se chama Michael? num grosso cobertor preto e lhe deram
me deixe abraçar minha mulher só mais – Droga! – gritou. – perguntou Marita Grobbel, convi- uma banana. Foi a suprema felicidade.
uma vez. Por favor, me deixe abraçar Não conseguia mais sentir as mãos dada na lancha dos Petitprens, en- – Aquela foi a melhor banana que
meus filhos só mais uma vez. Por favor, e havia um estranho formigamento quanto seguiam a toda para o porto já comi – diz ele. – E eu conseguia
faça com que algo de bom aconteça. nos braços. Você tem de relaxar, disse mais próximo. sentir o sol se irradiando pelo cober-
Mais barcos passaram, mas Trapp a si mesmo de novo. Mas era cada vez Julie não encontrou forças para tor e aquecendo meu corpo. Fiquei...
boiava ali tão invisível e insignificante mais difícil. Então, ergueu os olhos e responder. havia... – Trapp reorganiza os pen-
quanto um pedaço de pau. Quando viu um barco a vela se aproximar. Ti- – Nós o achamos no Lago Huron. samentos: – Há pouquíssimos mo-
o sol nasceu, o calor foi bem-vindo, rou o cartão de crédito da carteira e – Marita! Diga a ela que ele está mentos tão preciosos quanto aquele.
mas trouxe ondas maiores. Agora ele começou a refletir os raios de sol so- vivo! – berrou Dean Petitpren. Adoro a minha vida. É muito diver-
estava com muito frio, e a cãibra nos bre o barco. Alternava acenando com Mike Trapp foi levado para o hospi- tida. E ainda não estou disposto a
músculos exaustos era forte. Você não a meia. Sem resultado. tal Covenant Healthcare, no Michigan, abandoná-la.

62 edição especial edição especial 63


Mundos de
EUA A Biblioteca Beinecke de
Manuscritos e Livros Raros da
Universidade de Yale abriga meio
milhão de livros e vários milhões

sabedoria
de manuscritos. Cerca de 180 mil
livros e documentos raros estão
guardados num cubo de vidro,
a fim de serem preservados para a
posteridade. Ficam numa tempe-
ratura constante de 21°C e umi-
dade relativa de 60%, condições
ideais para sua conservação.

foto: © nathan benn/ottochrome/corbis


Vamos dar foto: © nathan benn/ottochrome/corbis
uma volta pelas
bibliotecas mais
espetaculares
do mundo

por Cornelia Kumfert

Publicado em
64 edição especial agosto de 2014 edição especial 65
Alemanha Mídia impressa e
digital têm a mesma importân-
cia na Biblioteca Pública de

(alto, à esquerda) © picture alliance/dpa; (embaixo, à esquerda) © getty images/look; (nesta página) © ana branco, ag. o globo
Stuttgart, eleita Biblioteca do
Ano da Alemanha em 2013. Em
suas instalações, 400 visitantes
podem ler ou trabalhar, inclu-
sive nos 140 notebooks disponí-
veis para uso público. À noite,
o prédio quadrado, que atrai
até 6 mil visitantes por dia,
fica banhado em luz azul.

Brasil O imponente prédio


da Biblioteca Nacional, no Rio
de Janeiro, data de 1910 e tem
estilo eclético, misturando
elementos neoclássicos e art
nouveau. Abriga a mais rica
coleção bibliográfica da Amé-
rica Latina, estimada em cerca
de 9 milhões de itens. Entre
suas preciosidades, está a rarís-
sima edição de 1515 da enciclo-
pédia Margarita philosophica,
na qual o Brasil aparece pela
primeira vez num mapa-múndi.

Espanha O Escorial, impo-


nente mosteiro e palácio perto
de Madri, ficou pronto em 1584.
A construção levou apenas
19 anos. O teto abobadado da
biblioteca, com seus afrescos
de anjos, é particularmente
impressionante, parecendo
retratar uma visão do paraíso.
Até hoje se encontram livros
do século 16, com páginas de
bordas douradas, nas belas
estantes de madeira.

66 edição especial edição especial 67


08•2014 | 67
Portugal O Palácio Nacional de
Mafra foi construído por ordem do rei
João V depois do nascimento da filha.
A biblioteca, que faz parte do palácio,
foi projetada em forma de cruz e
contém numerosos incunábulos,
livros impressos antes de 1500. Mas
esse não é o único motivo da fama da
biblioteca. Ela também é conhecida
por seus estranhos vigias noturnos.
Morcegos voam em seu interior,

(esquerda) ©getty images; (direita) © de agostini/getty images


comendo os insetos que poderiam
danificar os livros frágeis.

Áustria A Stiftsbibliothek Admont


é a maior biblioteca monástica do
mundo e uma obra de arte do barroco
tardio. O salão suntuoso tem 70 me-
tros de comprimento, 14 de largura
e 11 de altura. Ficou pronto em 1776
e, no início do século 19, foi muitas
vezes chamado de oitava maravilha
do mundo. Entre os seus tesouros
mais famosos estão As quatro últimas
coisas, de Josef Stammel, um dos
escultores mais importantes do
barroco, em tamanho maior que o
natural, representando a Morte,
o Juízo Final, o Paraíso e o Inferno.

68 edição especial edição especial 69


Inglaterra A Biblioteca de
Birmingham foi inaugurada em
2013 e ocupa uma área de
cerca de 31 mil m², sendo a
maior biblioteca municipal da
Europa. Um dos seus maiores
tesouros é o Audubon’s Birds of
America (Pássaros da América
de Audubon), talvez o livro
mais caro do mundo. Há ape-
nas 119 exemplares dessa obra
rara, um dos quais foi vendido

(esquerda e alto, à direita) © getty images; (direita, embaixo) © getty images/picture press rm
(esquerda e alto, à direita) © getty images; (direita, embaixo) © getty images/picture press rm
por 9 milhões de euros num
leilão, em 2010.

Suíça A Biblioteca da Abadia


de Saint Gall funciona até hoje
emprestando livros. Deve sua
fama mundial à coleção im-
pressionante de manuscritos
originais do início da Idade
Média. É a biblioteca mais
antiga da Suíça e uma das
maiores e mais antigas biblio-
tecas monásticas do mundo.
Alguns livros ali guardados
têm mais de mil anos.

Coreia do Sul O Templo


de Haeinsa abriga a Tripitaka
Koreana – a coleção mais
completa de textos budistas do
mundo – há cerca de 750 anos.
Consiste em 80 mil placas de
madeira, onde foram entalha-
dos uma imagem espelhada
de ensinamentos de Buda,
regras da ordem monástica,
normas de comportamento
e textos teóricos.

70 edição especial
70 | 08•2014 edição especial 71
De pai para
Publicado em
fevereiro de 2011

filho
Rick Kelly com Mikey
(à esquerda) e Christian,
após um jogo da
Liga Infantil, em
Saint Petersburg,
Flórida.
Agredido quando
criança, Rick Kelly foi
resgatado por um
casal amoroso. Ele
faria o mesmo por
outro menino?
Eis a história.
por Kenneth Miller

72 edição especial fotografado por Kelly Laduke edição especial 73


F
azia tempo que Rick Kelly mãe era viciada em drogas e já fora Rick passou anos sem ver a mãe e com o olho roxo. Certa vez, pulou do
saíra da casa dos pais ado- presa por pequenos crimes; estava acabou perdendo o contato com ela. telhado na piscina inflável, quebrando
tivos, mas ainda os visitava num quarto aos berros com o na- Os avós tinham pouco dinheiro e di- os suportes e jogando um tsunami de
sempre que possível. Na- morado, que quebrara as janelas do ficuldade de lidar com um menino dois metros na sala de estar. Mas os
quela tarde, ele foi se despe- carro dela num acesso de raiva. Os pés desobediente, ainda mais depois que pais adotivos viram o seu lado bom e
dir de Christian, menino que passara descalços de Christian se achavam atingiu a adolescência. “Eu tinha a fizeram com que soubesse disso. “Ele
os últimos dois anos sob os cuidados ensanguentados por causa do vidro es- boca suja e dava muito trabalho”, re- era generoso, gentil e engraçado”, diz
do casal. O garoto era um bebê des- tilhaçado e os dentes quebrados eram corda ele. Rick adorava pular de luga- Candy, hoje com 63 anos. “Trabalhava
controlado, com dentes quebrados resultado de uma das explosões ante- res perigosos e fugir com amigos. Os duro quando era algo que queria fazer.”
quando chegou à casa de Jon e Candy riores do namorado da mãe. avós dele perguntaram aos professo- Por sua vez, Rick se apaixonou pela
White, que Rick chamava de papai e Os Whites tinham experiência de li- res da escola dominical como mandá- nova família. “O dom da mamãe era a
mamãe. Desde então, Christian ficara dar com crianças abandonadas. Ainda -lo para o Boys Ranch, uma instituição empatia, o do papai, o ensino”, recorda.
muito mais calmo e já era um menino assim, raramente viam alguma tão fu- para jovens rebeldes. Os professores,
de 5 anos, esperto e com dotes atléti- riosa quanto Christian, que certa vez Jon e Candy White, se ofereceram para OS ACESSOS DE RAIVA
cos. Agora, um casal com uma filhinha chutou a parede do quarto com tanta levá-lo para casa.
e um cachorro planejava adotá-lo. Ele força que derrubou o detector de fu- Os Whites cuidavam de crianças
DE CHRISTIAN
se sentou no banco de trás da picape, maça. Um dos poucos que chegavam desde 1970, depois que Candy disse ESTAVAM ENTRE OS
empolgadíssimo, pronto para partir perto dele era Rick Kelly. ao marido que sempre admirara o PIORES QUE CANDY
para a sua nova vida. Como Christian, Rick teve um pas- trabalho da escritora Pearl Buck de
– Boa sorte, rapaz – disse Rick, des- sado triste. Nasceu no dia do 16-º ani- resgatar órfãos chineses. Naquela
JÁ TINHA VISTO. “NÃO
penteando o cabelo de Christian pela versário da mãe, o primeiro de nove época, Jon começava a carreira de SEI O QUE FAZER COM
janela. – Amamos você. filhos que viriam; nunca conheceu o engenheiro; Candy era dona de casa e ELE”, DISSE A RICK.
– Amo vocês também – respondeu pai, embora muitos homens frequen- cuidava do primeiro filho. O casal teve
Christian alegremente. Rick ficou no tassem o trailer no interior da Flórida mais três, adotou outros quatro e cui-
meio-fio com os Whites e acenou até onde Rick passou os primeiros anos. dou de centenas de crianças durante “Era um lar muito afetuoso, cheio de
o carro sumir de vista. A mãe era alcoólatra e doente men- períodos que iam de alguns dias a vá- calor humano. Barulhento e caótico,
tal; batia nele com um cinto, queima- rios anos. Algumas tinham problemas mas com uma sensação de ordem por
Christian fora para a casa dos va-o com o cigarro e lhe dava cerveja. de saúde; outras haviam sido agredi- trás.” Com a ajuda dos Whites, ele aca-
Whites, em Saint Petersburg, Flórida, Quando estava com 7 anos, ela lhe das, negligenciadas ou eram simples- bou aprendendo a canalizar a agres-
depois que outras duas famílias desisti- entregou um envelope endereçado aos mente indesejadas. “Enquanto morar sividade para o futebol americano e a
ram dele. Era irritado e travesso demais. avós do menino e o pôs num ônibus. conosco”, diziam Candy e Jon a todas luta romana, a controlar a bebida e a
Quando não lhe faziam a vontade, se Depois de abrir o envelope e encon- elas, “você não é apenas uma criança respeitar a autoridade. Terminou o se-
debatia e berrava por horas. trar um bilhete suicida, ele avisou o adotada. Você é nosso filho.” cundário e se alistou no Corpo de Fuzi-
O menino tinha razão de sobra para motorista; a polícia encontrou a mãe Rick chegou pouco depois de fazer leiros. Depois de servir durante quatro
se irritar. Morava em lares adotivos de Rick quase morta após uma over- 14 anos e se uniu a mais meia dúzia de anos, Rick experimentou várias profis-
desde que a polícia o encontrara pe- dose de comprimidos. Ela sobreviveu, crianças na casa térrea dos Whites, de sões – inclusive a de policial, no sul da
rambulando pelo estacionamento de mas o menino foi morar com os avós três quartos. Desde o princípio, foi um Califórnia –, fundou uma empresa de
um motel com os quatro irmãos e ir- numa comunidade de aposentados dos mais malcomportados. Nas festas, segurança e possuiu ou administrou
mãs, todos com menos de 10 anos. A perto de Saint Petersburg. bebia até passar mal, e voltava da escola várias outras empresas.

74 edição especial edição especial 75


O seu sucesso foi menor com as mu- Ela lhe falou sobre o histórico de impossível. Depois do divórcio, espe- lar adotivo adotando uma criança do
lheres e nunca conseguiu manter um Christian, que apanhava regularmente rava ficar solteiro para sempre. Nunca mesmo sistema. Isso foi bem legal.”
relacionamento duradouro. Algumas e, fora isso, praticamente ignorado. ouvira falar de homens solteiros que Ele se mudou para Sarasota, perto o
parceiras já tinham filhos, dos quais Sabia ser encantador e afetuoso, disse se tornassem pais adotivos. Assim, em suficiente para ver Christian todo dia,
se aproximou, mas a paternidade lhe ela, mas, quando ouvia uma sirene, 2007, quando um casal qualificado se e se candidatou a treinador da equipe
fugia. Embora concebesse um filho berrava: “Fora da janela! É a polícia!” ofereceu para ficar com o menino, ele de tee-ball do menino – esporte para
com a terceira esposa, ela perdeu o Era cheio de energia. E os seus acessos disse a si mesmo que seria o melhor. crianças que é uma introdução ao
bebê. E, em 2005, aos 44 anos, seu ca- de raiva eram os piores que já vira. Meses depois, porém, Rick soube beisebol. Rick se orgulhou ao ver Ch-
samento estava implodindo. – Não sei direito o que fazer com que Christian estava de novo num lar ristian se tornar um ótimo jogador, de

C
Christian – confidenciou. provisório. O casal desistira dele, di- braço forte e excelente reflexo, embora
erta tarde, naquele ve- – Que tal se eu saísse com ele para zendo que era incontrolável. os acessos de raiva às vezes ainda o for-
rão, Rick chegou à casa ficarmos um tempo sozinhos? – ofe- Rick ficou consternado e, como o çassem a retirar o menino do campo.
dos Whites e encontrou receu-se Rick. divórcio já fora concluído, estava livre
um menininho de dentes para fazer o que quisesse. Mas o pro- RICK SENTIU UMA
estragados de sentinela De tantas em tantas semanas, ele, blema era o mesmo: conseguiria criar
à porta. Era Christian. Depois de se que morava em Coral Springs, pas- Christian sozinho? As autoridades per-
CONEXÃO DIFERENTE
apresentar, Rick foi até a cozinha. sou a viajar quatro horas para visitar mitiriam? Seria justo com o menino? COM O GAROTO,
Lá, Candy preparava o jantar das seis Christian. Saíam para andar de caia- Consultou os Whites, que não pare- COMO SE TIVESSE
crianças que moravam sob o seu teto que, assistir a jogos de beisebol dos ciam ter dúvidas. “Ele será seu filho”,
na época. Enquanto os adultos con- Tampa Bay Rays ou às disputas dos não parava de dizer Wendy, a irmã
DEPARADO COM
versavam, Christian agarrou os joe- irmãos adotivos na Liga Infantil. Rick adotiva, como se isso fosse perfeita- UMA VERSÃO ANTIGA
lhos de Rick e perguntou se ele tinha deixava Christian subir nos seus om- mente óbvio. Rick torcia para que ela DE SI MESMO.
piscina. bros e lhe esfregar a cabeça raspada, estivesse certa.
– Tenho – disse Rick. mas também ralhava com o menino
– Então vou para a sua casa – decla- quando ele começava a ficar furioso. A primeira tarefa foi levar Chris- Rick previa criar Christian como pai
rou Christian. “Eu entendia sua raiva”, recorda, “e sa- tian de volta a um lar estável e amo- solteiro. Mas havia pouco começara a
Na época, Rick trabalhava como bia que ele precisava de alguém que roso. A pedido de Rick, os Whites sair com uma moça e achou que tal-
gerente de uma empresa de material mantivesse o controle. Às vezes, tive recuperaram a custódia. Enquanto vez fosse finalmente a escolha certa.
de construção; teve uma reunião de de levá-lo no colo para fora da praci- isso, ele começou o trabalhoso pro- Norma Pitzer era avaliadora de causas
negócios naquela tarde, mas Christian nha e prendê-lo no carro com o cinto cesso de se candidatar à adoção do trabalhistas, 43 anos, gentil e objetiva.
não lhe saiu da cabeça. Das crianças de segurança enquanto ele berrava e menino. Houve verificação do histó- Passara por dois casamentos, ambos
que conhecera na casa dos Whites, a chutava. Eu o levava para a casa da rico, investigação financeira, visitas sem filhos, e havia muito sonhava em
maioria era faminta de afeto, e essa mamãe, deixava-o no quarto e fe- residenciais e aulas obrigatórias de adotar uma criança. Quando soube
não era a primeira que se apegava a chava a porta.” criação de filhos. “Eles não me ensina- de Christian, recorda ela, “senti que o
ele. Mas Rick sentiu uma ligação di- Christian reagiu bem à atenção de ram nada que eu não soubesse”, diz ele, meu relacionamento com Rick estava
ferente com o menino, como se visse Rick; o seu humor ficou mais estável e “porque observei os meus pais fazendo predestinado. Como se fosse para onde
nele uma versão antiga de si mesmo. ele aguardava as visitas com expecta- isso durante muitos anos. O diretor do tínhamos de ir”.
No dia seguinte, ligou para Candy para tiva. Rick também. Pensou em se tor- programa disse que era a primeira Rick, no entanto, decidiu que não
saber mais. nar pai de Christian, mas isso parecia vez que tinham alguém que ficara em poderia se comprometer com Norma

76 edição especial edição especial 77


de como criar filhos. Em ju- Christian parece mais concentrado, anda curto. Felizmente, podem contar
lho seguinte, o casal alugou observa o pai, no campo e na sala de com um grupo de pessoas queridas.
uma casa, com piscina e aula. E, quando sorri, aqueles dentes Candy cuida das crianças em casa du-
pintada de rosa, a meia hora de leite quebrados já não existem mais, rante parte do dia enquanto Rick pro-
dos Whites. Pouco depois, e os novos crescem fortes e retos. cura emprego.
Rick teve permissão de le- Uma coisa que faz Christian rir é o “Ela e papai sempre nos deram todo
var Christian para casa nos meio-irmão Mikey, que acabou de fa- o apoio”, diz Rick. “Eles são como uma
fins de semana. Em março zer 2 anos. O lourinho de rosto doce laje de concreto.” Quase toda tarde,
de 2009, Christian se mu- grita “Dada!” enquanto cambaleia ele fica na casa deles o bastante para
dou definitivamente. Pouco pela sala, cheia de fotos da família e contar o que lhe vai na cabeça antes
antes do Dia dos Pais, ele e lembranças. Quando o processo de de pegar os meninos e voltar para casa.
Rick vestiram terno e gra- adoção de Christian estava quase ter- O lado bom do desemprego é que
vata, entraram no carro minado, Rick decidiu adotar também Rick está passando mais tempo com
com Norma e seguiram um dos irmãos do garoto. os filhos. À noite, como sempre, aju-
para o tribunal da cidade. “Queríamos que Christian crescesse dará Christian com o dever de casa
Os Whites e o restante da pelo menos com um dos irmãos”, diz antes de preparar o jantar. Rick leva
família também foram ver o Rick, que se candidatou e conseguiu os meninos para a cozinha, onde
juiz assinar os documentos tornar-se guardião permanente de Mi- o diploma de “cidadão do mês” de
finais da adoção. key, que espera adotar um dia. A prin- Christian, concedido pelo Clube Oti-
“Foi apenas uma forma- cípio, os assistentes sociais acharam mista da escola pelas boas notas e por
lidade legal”, diz Rick. “Mas que o bebê tinha problemas neurológi- ajudar os outros, está pendurado na
receber essa responsabili- cos em consequência do uso de drogas geladeira.
Rick, sua mulher, Norma, Mikey e Christian, na casa dade foi a melhor coisa pela mãe, mas, depois de entrar para “Ser pai é maravilhoso”, diz ele,
dos pais adotivos de Rick, em Saint Petersburg. que já consegui.” Seis me- o clã dos Kellys, os tiques e tremores servindo um copo de suco enquanto
ses depois, no dia de Ano- desapareceram. Christian traz o livro de matemática
sem o consentimento de Christian. A -novo, Rick e Norma se casaram numa Mas a família enfrenta um novo de- para a mesa da cozinha. “O dia pode
resposta veio naquele mês de novem- cerimônia discreta. safio: recentemente, Rick perdeu o ser terrivelmente estressante. Os far-
bro, quando Rick a levou à igreja para emprego numa empresa de transporte, dos da vida podem nos atingir. Mas,
conhecer a família que o criara. Chris- Hoje Christian tem 8 anos e a es- por causa da recessão. Embora Norma quando a gente vê o filho treinando
tian deitou a cabeça no braço de Norma tante debaixo da janela do quarto está ainda esteja empregada, o dinheiro com o taco, esquece de tudo.”
e ali ficou durante quase todo o culto. cheia de troféus. “O beisebol é o meu
Rick se espantou, porque nunca vira o esporte favorito, e o basquete vem em
menino tão à vontade com outras mu- segundo lugar”, diz ele, erguendo uma Doe seus instrumentos
lheres, nem mesmo com Candy. estatueta em cada mão. “Quer ver a Meu casaco favorito fala de doação de órgãos, com os dizeres:
– Talvez não seja fácil – avisou Rick medalha do meu time?” “Não leve seus órgãos para o céu. Deus sabe que precisamos
depois a Norma. – Está disposta a “Não consigo me lembrar da última deles aqui.” Ian, um menino de 8 anos, de quem sou babá,
continuar? vez que ele teve um ataque”, diz Rick. leu a frase e disse:
– Claro que estou! – disse ela. “E, quando acontece, dura uns dez
– Isso é óbvio! Todo mundo sabe que no céu se toca harpa!
Norma também começou a ter aulas minutos.” SUSAN M. NOBLE

78 edição especial edição especial 79


Publicado em
dezembro de 2014

Ele era um homem que


raramente sorria. Então algo
espantoso aconteceu.

O papa que
irradia
ALEGRIA
por Austen Ivereigh

Em junho de 2013, alguns meses depois da surpresa de


sua eleição, nos encontramos apenas por um minuto e,
embora mantivesse a mão no meu braço o tempo todo,
ele não falou. Minha mulher acha que foi porque não o
deixei abrir a boca.
Mas o líder mundial de 1,2 bilhão de católicos não
costuma falar muito se não tiver nada específico a dizer;
de qualquer modo, ele estava exausto. A respiração era
difícil – ele quase morreu numa cirurgia de pulmão aos
21 anos – e havia suor em sua testa. Era um homem de
76 anos que acabara de passar duas horas debaixo do sol
na Praça de São Pedro cumprimentando e abraçando o
santo povo fiel de Deus, como ele diz. De vez em quando

80 edição especial edição especial 81


– como na ocasião em que beijou o mas não apareceu muito durante seus
homem horrivelmente desfigurado 12 anos como cardeal. Ele não gostava
pela neurofibromatose –, a imagem de câmeras, dificilmente dava entre-
é tão terna que os jornais a publicam vistas e era famoso pela austeridade e
na primeira página, o que não é assim pela timidez. Ninguém o encontraria
tão comum com papas. num jantar festivo e, embora favela-
A questão é que, hoje, quem tem dos, prostitutas e grupos contrários ao
entrada para a primeira fila das au- tráfico de drogas o conhecessem bem,
diências de quarta-feira, como eu, ele entrava e saía do ônibus e do me-
fica por último. Não somos o foco do trô sem ser reconhecido. Suas palavras
papa Francisco. São os deficientes, os eram sempre elegantes e acertavam o
doentes, os idosos e os sem-teto que alvo, mas ele as proferia em voz baixa.
ele põe em primeiro lugar, como no Agora, olhem só como ele está, dizem
Evangelho. em Buenos Aires. Não dá para acredi-
No entanto, ele estava totalmente tar. Alegre como um dia na praia.
presente durante aquele minuto, es- Eis o que aconteceu. Não é segredo,
O papa Francisco na
SEU SORRISO NÃO APARECEU Praça de São Pedro,
em março de 2014.
MUITO DURANTE OS 12 ANOS
COMO CARDEAL NA ARGENTINA. Mas, depois de vestir a batina branca entrou na capela, parecia levar nos
papal e começar a atravessar o longo ombros todo o peso do mundo, mas,
cutando com atenção cada palavra porque ele revelou a várias pessoas, in- corredor rumo ao balcão da loggia da quando saiu, era um homem diferente,
minha em espanhol. E isso bastou clusive ao pastor evangélico de Buenos Catedral de São Pedro para se mos- como é agora. “É a graça do cargo”, diz o
para entender o que diz quem o co- Aires que me contou; mas poucos sa- trar ao mundo, ele foi de súbito inva- papa Francisco aos amigos argentinos
nhece: essa coisa, essa qualidade que bem. Na noite de sua eleição, em 13 de dido por tristeza e dúvidas. Por sorte, que lhe perguntam por que mudou.

foto: (página dupla anterior) stefano spaziani.


ele transmite. Justin Welby, arcebispo março de 2013, sob os grandes afrescos seu antecessor, Bento XVI, modificara Naquela noite, como comentarista
de Canterbury, a definiu muito bem de Michelangelo na Capela Sistina, os os procedimentos para permitir que do canal de TV britânico Sky News,
quando o encontrou alguns dias de- votos dos cardeais foram favoráveis o novo papa rezasse na Capela Pau- eu estava no telhado de um convento
pois de mim. O papa, disse ele, era “a a ele, passando dos 77 necessários, e lina antes de sair ao balcão. Lá, com o que dava para a praça. Ficaria tão
humanidade em chamas”. É isso. Se a lhe perguntaram se aceitava o cargo. amigo brasileiro, cardeal Cláudio Hum- desnorteado quanto os outros espe-

foto: © alessio mamo/redux


alegria fosse uma chama, seria preciso “Aceito”, disse, “embora eu seja um mes, ajoelhado a seu lado, Jorge Mario cialistas que não tinham o cardeal
ser de amianto para não ser queimado grande pecador.” À pergunta seguinte, Bergoglio teve uma experiência de luz e Bergoglio na lista não fosse a dica de
pelo papa Francisco. respondeu que adotaria o nome de liberdade que expulsou os sentimentos um cardeal velho demais para votar
Francisco em homenagem ao santo obscuros e nunca mais o abandonou. que o vira surgir como papável nas

E
m Buenos Aires, cidade natal pobre de Assis. Tudo foi feito com O diretor da TV Vaticano, que seguia reuniões de cardeais antes do con-
do papa, essa alegria espanta até muita confiança, sem um momento o papa com uma câmera, confirmou a clave. “Se for um conclave curto”, foi
quem o conhece melhor. Sim, de dúvida, porque ele sabia que agora história. O monsenhor Dario Viganò a mensagem que me chegou, “talvez
seu sorriso sempre foi encantador, seria essa sua tarefa, sua missão. disse que, quando o papa Francisco seja Bergoglio.” E tive poucos minutos

82 edição especial edição especial 83


para preparar algumas informações com a sorridente figura de branco políticos, os migrantes que moravam advogada amiga dele, estava num bar
(jesuíta de 76 anos, dedicado aos que apareceu no balcão naquela noite em favelas e os veteranos de guerra. ao receber a notícia inesperada e caiu
pobres, segundo lugar em conclaves de Roma refrescada pela chuva, que Cheguei a cortar o cabelo na mesma em lágrimas. “Ele é meu amigo”, disse a
anteriores, esse tipo de detalhes), mas baixou a cabeça e pediu orações. Na barbearia que ele frequentava. Às ve- todos, à guisa de explicação.
ao mesmo tempo não parava de pen- manhã seguinte essa sensação só zes, ao pegar a linha A do metrô – que Há duas chaves para entender o
sar: Uau! Elegeram um argentino! aumentou quando observei a men- costumava levá-lo da Praça de Maio, papa Francisco. Uma é que só se er-
sagem que ele mandou ao vivo para onde morava nas instalações dioce- radica a pobreza amando os pobres. A

E
u conhecia seu país. Há vinte casa, para o povo diante da catedral sanas, ao seu bairro natal de Flores –, outra é que não se pode amar os po-
anos, morei em Buenos Aires para na Praça de Maio. No balcão, falara em imaginei-o sentado à minha frente, a bres apegado às coisas – nossos pla-
pesquisar uma tese sobre Igreja italiano com sotaque; mas agora saía o cabeça inclinada enquanto escutava nos, nossas ideias – e que, quando nos
e política. Aprendi a amar aquela ci- portenho cantado e coloquial – pense as esperanças ou angústias de alguém. desapegamos, deixamos que Deus
dade cativante e irritante, seu povo e num papa que fale com o sotaque de As entrevistas mais comoventes fo- seja Deus. Era o que ele mostrava na
seus ritmos, a cultura, a história e a sua cidade e terá uma ideia. ram com quem o conhecia bem, pes- praça naquele dia. Por isso não pre-
soas que se despediram dele no início cisou dizer muito. E também por isso
É UM TIPO ESTRANHO DE PESAR: de 2013. Ele as tranquilizara e dissera, não precisei de mais de um minuto
rindo, que não havia risco, que era ve- com ele para ser inflamado.
SEU AMIGO, SEU PAI ESPIRITUAL, VAI A lho demais, que voltaria para a Páscoa.
ROMA ELEGER O PAPA E ACABA ELEITO. E nunca voltou. Mas não morreu nem
sumiu. Estava em bilhões de telas de Austen Ivereigh é um jornalista inglês,
biógrafo do papa Francisco, e, em 2020,
música; com o tempo, meu espanhol Sua mensagem pedia que cuidas- TV. É um tipo estranho de pesar: seu lançou com ele o livro Vamos sonhar juntos:
adotou sotaques locais e expressões sem uns dos outros, que não tratas- amigo, seu pai espiritual, vai a Roma o caminho para um futuro melhor
pitorescas. sem os semelhantes de forma errada. eleger o papa e acaba eleito. Alicia, (Intrínseca).
Jorge Mario Bergoglio, mais que Mas ele usou uma expressão coloquial
argentino, é portenho, da cidade por- – “não arranque o couro de ninguém”
tuária de Buenos Aires; toma chimar- – proveniente da época anterior à re-
rão numa cuia com bomba de metal e frigeração em que os gaúchos esfola- Equivalências em tempo empresarial
é louco pelo impetuoso San Lorenzo, vam o gado abatido e abandonavam Um segundinho = 5 minutos
seu time de futebol. Adora tangos e a carcaça. Soava estranho um papa Um minutinho = 10 minutos
milongas, e os poemas nostálgicos falando assim. E, a cada dia, enquanto Cinco minutinhos no máximo = 1 hora
de vaqueiros do século 19. Quando ele encantava o mundo, eu ficava mais
era ativo na ordem jesuíta, deu aulas e mais ansioso para conhecer seu pas- Reunião rápida = 3 horas
durante dois anos no ensino médio e sado. Então veio aquele minuto de Uma ajudinha = 1 semana
levou o grande contista Jorge Luis Bor- contato em junho. Um projetinho = 6 semanas intermináveis
ges para falar às crianças sobre poesia Em outubro de 2013, armado com o
Oportunidade interessante = 2 anos
gauchesca. Preciso continuar? O papa contrato de um livro, voltei a Buenos
é tão portenho quanto um casal que Aires e passei semanas entrevistando Emprego = Droga, tem certeza que já são X anos?
desliza ao som do bandoneón pela quem o conhecia: os jesuítas, os pa- Vamos dar uma olhada = Nunca voltaremos a tocar no assunto.
Avenida Corrientes. dres das paróquias e os bispos; os ra-
marco kaye, McSweeney’s Internet Tendency
Assim, senti uma estranha ligação binos, imãs e pastores; os filósofos e os

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UM PRESENTE
DO PASSADO
Um gesto generoso praticado 25 anos
antes salvou uma prisioneira de
Auschwitz da tortura e da morte

por Claire Rado de Hedervary

Publicado em
agosto de 1971

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N
o dia 13 de julho de 1944, o trem parou num compreendendo o que eles iam fazer frios. Nossas refeições eram uma sopa
– tomar a minha identidade. Fechei os rala e, de vez em quando, um pedaço
desvio e um pequeno grupo de prisioneiros olhos e pensei: “Não sou um número. de pão. Começamos a perder peso
políticos desceu com dificuldade. Diante deles Meu nome será lembrado como o de com uma rapidez alarmante. Todas as
havia um portão ornamental com a inscrição um membro do movimento antina- noites as chaminés do crematório fi-
Arbeit Macht Frei (O trabalho liberta). zista. Causei mais mal ao seu sistema cavam vermelhas com as chamas dos
do que o que você pode me causar. que tinham ficado muito fracos e não
Além do portão, um vasto campo com milhares de Não sou um número.” puderam trabalhar.
barracas, cercado de arame farpado e telas eletrificadas, Pouco abaixo do número, tatuaram
torres de vigia dotadas de holofotes, metralhadoras e cães uma pequena figura em forma de co- CADÁVERES
ração. (Descobri mais tarde que essa
policiais. A única liberdade que se podia alcançar ali era a
figura indicava que eu era prisioneira
SAQUEADOS
da morte, porque aquele era Auschwitz – o famigerado política.) No meu segundo mês, quando éramos
campo de concentração nazista na Polônia. Nós éramos Após a operação de tatuagem a levados de volta ao dormitório, uma
o mais recente grupo de prisioneiros a chegar. nossa nudez terminou. Havia um colega de prisão disse-me baixinho:
monte enorme de roupas sujas dei- “A Dra. Winkler quer falar com você.

Um pelotão de soldados SS de Hi- se apertavam apavorados uns contra


tler levou-nos marchando pelo por- os outros à esquerda eram os velhos,
NOSSAS REFEIÇÕES ERAM UMA SOPA RALA E,
tão. Lá dentro, ordenaram-nos que os enfermos e os muito jovens. Consi- DE VEZ EM QUANDO, UM PEDAÇO DE PÃO.
tirássemos todas as roupas e as pu- derados inaptos para o trabalho, esta-
séssemos em grandes latões. Quem vam destinados à câmara de gás.
mostrasse a mais leve hesitação era Quando chegou a minha vez, o mé-
brutalmente espancado. dico examinou o meu corpo e apon- xadas pelos que tinham ido para a Ela é radiologista do hospital munici-
Fomos levados em fila indiana a tou o polegar para a direita. Eu tinha câmara de gás. Recebemos ordem de pal de Budapeste e colabora com o Dr.
um homem com o impecável uni- 44 anos, era sadia, portanto ia viver apanhar uma blusa, uma calça e um Mengele em suas experiências.”
forme de médico militar. Alguns pas- – pelo menos enquanto tivesse forças par de sapatos; tínhamos de fazer isso Todo o campo sabia dos pormeno-
sos atrás dele ficavam seus auxiliares. para fazer trabalho braçal. enquanto éramos empurrados pelos res das experiências do Dr. Mengele.
Era o Dr. Joseph Mengele, chefe dos guardas. As roupas que apanhei ser- Ele praticava nos prisioneiros novas
médicos do campo, um homem alto, REDUZIDA viram mais ou menos para cobrir a técnicas cirúrgicas no coração, fígado
esbelto, simpático, e em ótima forma minha nudez, mas não tive sorte com e rins; fazia pesquisas de esterilização,
física. Não sabíamos que atrás da-
A UM NÚMERO os sapatos. Um tinha salto alto, o ou- utilizando cirurgia e radiologia em
quela imagem havia um monstro. Nosso grupo de sobreviventes foi le- tro não tinha nenhum, e ambos eram homens e mulheres.
Cada homem, mulher ou criança que vado a uma mesa onde havia várias do pé esquerdo. Mas não me queixei. O aviso de que a Dra. Winkler ti-
parava nu diante dele era examinado. agulhas de tatuagem. Olhei entre in- Nossa vida entrou numa rotina. Du- nha um recado para mim ressoava
Depois ele apontava o polegar para a crédula e fascinada a operação de gra- rante o dia fazíamos trabalho pesado em meus ouvidos, e me deixava in-
direita ou para a esquerda. Guardas vação de um número em meu braço de construção – eu transportava areia trigada. Talvez ela estivesse ligada a
SS empurravam o prisioneiro na di- – 82585. A dor foi pequena, mas senti num carrinho – e à noite dormíamos algum movimento clandestino para
reção indicada pelo médico. Os que um pavor crescendo à medida que fui sobre tábuas em enormes galpões organizar atos de sabotagem. Talvez

88 edição especial edição especial 89


estivesse ligada ao grupo secreto de de dormir. Não sei quantas horas Era importante que eu me escon- – Procura alguém? – perguntou ela
libertação. O fato de poder mandar passei ali. Já estava escuro quando desse, mas não tive coragem de entrar lá fora.
tantos recados era um indício. Mas um guarda finalmente apareceu e em nenhum dos dormitórios guarda- – A 82585. Ela fugiu de uma seleção.
eu precisava ter cautela. disse: “Você vai voltar para a sala de dos. Vi um galpãozinho com uma ta- – Para cá ela não veio – disse a Dra.
Com o trabalho pesado de constru- costura.” Iam me dar outra oportuni- buleta na entrada: PERIGO. Não faz Winkler. – Entre e veja se quiser.
ção que eu estava fazendo, minhas dade! O guarda levou-me para a sala mal, pensei. Qualquer coisa é melhor Foi uma cartada desesperada, por-
forças decaíam rapidamente. Graças de costura, empurrou-me para dentro do que o lugar de onde venho. que se o soldado me encontrasse
a uma série de truques, ajuda secreta e fechou a porta. Eu tinha caído numa Puxei a porta desesperadamente, nós duas seríamos executadas. Mas
e informações, fui admitida à sala de armadilha; 50 prisioneiras estavam mas no estado de fraqueza em que me o guarda, aborrecido com o trabalho
costura, que ficava perto de um dos sendo preparadas ali para a câmara achava não cheguei a abri-la. De re- que o meu desaparecimento estava
crematórios. Suas altas chaminés, de gás. Soldados SS logo apareceram pente, inesperadamente, a porta escan- dando, virou nos calcanhares e se
que expeliam fumaça negra e chamas para nos levar para o crematório. carou-se mostrando um vulto vestido afastou.
vermelhas, eram vistas da sala de de avental branco de médico. “Graças – Precisamos tirar você daqui antes
costura, onde trapos ensanguentados A DÍVIDA DA a Deus você veio”, disse uma voz meiga. do amanhecer – disse a Dra. Winkler.
pertencentes aos prisioneiros que ti-
nham ido para a câmara de gás eram
DOUTORA
remendados para serem usados por Os soldados que nos acompanhavam
“SE ME NEGASSE A CUMPRIR AS EXIGÊNCIAS DO
futuros candidatos. estavam nervosos e preocupados, e DR. MENGELE, ELE TERIA MANDADO ME FUZILAR.”
A sala de costura era comandada não levamos muito tempo para des-
por uma tenente cujo corpo sadio cobrir o motivo. Auschwitz estava na
constrastava escandalosamente com linha de marcha dos exércitos russos
a magreza das mulheres que traba- vitoriosos que avançavam de leste, e Agora eu já via que o vulto era uma Notei que as mãos dela tremiam. – Te-
lhavam curvadas sobre as máquinas. quando chegassem ao campo de con- mulher bonita. Deduzi imediata- nho uma amiga, uma médica italiana
Essa nazista arrogante logo implicou centração nós, prisioneiros, seríamos mente que era a Dra. Winkler. “Você que dirige a enfermaria de doenças
comigo. Uma tarde ela agarrou de re- libertados. É claro que os soldados deve ter ouvido que eu queria falar contagiosas. Nenhum guarda entra lá.
pente o pano que eu estava cosendo e nazistas estavam mais empenhados com você”, disse ela. “Eu queria aju- Ela pode esconder você até à chegada
disse: “Isto está horrível!” em salvar suas vidas do que em tirar da-la, mas não consegui um meio de dos russos.
Tentei explicar que eu não podia as nossas. Fui ficando para trás na me aproximar de você sem perigo. – Por que você está fazendo isso por
fazer melhor porque me tiraram os coluna e descobri que o soldado da Eu também sou prisioneira.” Fez um mim? – perguntei.
óculos, e ela não me deixou terminar. retaguarda não estava lá: tinha ido à gesto encabulado para a aparelha- – Você é a oportunidade que tenho
“Não interrompa uma oficial alemã!”, frente comentar as notícias com seus gem de raios X. “Se eu me recusasse a de pagar uma grande dívida com o ho-
gritou, e deu-me um bofetão no rosto. companheiros. Quando nossa coluna cumprir as exigências do Dr. Mengele, mem mais bondoso e mais sábio que
Instintivamente, ergui as mãos para dobrou à esquerda na esquina de um ele teria mandado fuzilar-me.” conheci. É Alexander Rado, seu pai.
proteger o rosto. As outras guardas se- prédio, eu deixei-a e colei-me à parede, De repente ela levou um dedo aos
guraram meus braços e gritaram: “Ela esperando o alarme. Não houve ne- lábios. Ouvimos o ruído de botas cra- DO FUNDO DO
agrediu uma oficial alemã!” nhum. Não havia nenhuma chance de vejadas se aproximando. Só podia ser
“Levem essa mulher!”, gritou a te- fugir de Auschwitz, mas mesmo assim algum guarda à minha procura. Man-
PASSADO
nente. “Levem de vez!” corri. Eu não tinha plano. Não pensei dando-me ficar escondida atrás da De repente eu me vi chorando. O
No dormitório, fui jogada na tábua em nenhum rumo. Apenas corri. porta, ela saiu do galpão. nome de meu pai trouxe-me à mente

90 edição especial edição especial 91


todas as boas recordações de minha “Eu sou uma das muitas pessoas distantes torres de vigia apareciam Fiquei comovida.
infância. Desde que aprendi a andar que seu pai ajudou”, disse-me Cathe- recortadas contra o céu. Andei colada – Não tive oportunidade de agra-
e pude acompanhar os passos de rine Winkler. “Minha mãe viúva não às paredes dos pavilhões durante um decer-lhe – disse eu. – Você salvou a
meu pai, eu fui sua companheira de podia pagar a escola de medicina para tempo que me pareceu horas, abaixan- minha vida.
passeios aos domingos. Ele nunca me mim, mas quando chegou a ocasião do-me toda vez que passava por uma – Não, Claire. Seu pai esticou a mão
tratava como a uma criança. Ele me o dinheiro apareceu milagrosamente. janela. Finalmente cheguei à enferma- do fundo do passado para salvar a sua
fazia sentir que eu tomava parte em Só depois que terminei o curso foi que ria de contagiosos e procurei a segunda vida. Para mim, isso é milagre, e acho
seus problemas. Lá em casa diziam ela me contou que o dinheiro viera de janela. Bati. Não demorou muito, a ja- que você também concorda.
que eu fui criada “com leite paterno”. Alexander Rado. nela se abriu. “Perugina”, murmurei. Pouco depois uma comissão da
Meu pai era muito conhecido em “Contrariando as instruções dele, Braços fortes puxaram-me para Cruz Vermelha Polonesa entrava em
Budapeste, porque era proprietário fui agradecer. Discutimos, e ele final- dentro. Fui levada a uma esteira, dei- Auschwitz na esteira dos exércitos
da agência de notícias que abastecia mente acedeu. ‘Você pode me agrade- tei-me e dormi imediatamente. russos e encontrava a equipe médica
os grandes jornais do mundo com cer prestando a outros a ajuda que lhe Durante alguns dias o nosso único morta numa vala a 20 quilômetros do
notícias dos Bálcãs. E era também o dei’, disse ele. ‘Descubra alguém que assunto era o avanço russo. Ouvíamos campo. Mas o Dr. Mengele nunca foi
intérprete daquele grupo de intelec- esteja em grande necessidade ou de- os canhões troando. Dia a dia, hora a encontrado, e presume-se que ainda
tuais húngaros que achavam que a sespero. Assim ficaremos quites.’ hora, o troar tornava-se mais forte, esteja vivo.* Entre os cadáveres en-
anunciando a hora da libertação. Um contrados na vala estava o de Cathe-
PROCUREI A SEGUNDA JANELA E BATI. LOGO A dia cedo a Dra. Winkler veio ver-me. rine Winkler, com um orifício de bala
Estava pálida mas calma. na têmpora esquerda.
JANELA SE ABRIU. “PERUGINA”, MURMUREI. – Vim me despedir – disse ela. – O
Dr. Mengele embarca hoje com sua * Após décadas de investigação, autori-
equipe para Berlim. dades alemães rastrearam o paradeiro
Depois de uma pausa, continuou de Joseph Mengele até o Brasil, onde
sociedade tinha obrigação de propor- “Abri consultório em Budapeste e a com voz calma: ele viveu desde 1961, com diferentes
cionar educação e oportunidades a clínica me absorveu. Um dia soldados – Se eu escapar desta guerra, vou identidades falsas, em várias cidades
todos os cidadãos. nazistas apareceram em meu consultó- dedicar o resto da minha vida a desco- do estado de São Paulo. Em 1992, exa-
A Primeira Guerra Mundial pôs fim rio. Precisando de um radiologista, o Dr. brir o paradeiro de Mengele, e quero mes de DNA realizados na Inglaterra
ao Império Áustro-Húngaro e impôs ao Mengele mandou me prender e me tra- relatar seus crimes. Acho que ele sabe confirmaram ser do médico nazista
povo húngaro a ditadura comunista do zer para Auschwitz. Quando eu soube disso. Ele pode até ter decidido ma- foragido os restos mortais enterrados
brutal Bela Kun, implantada em março que você estava aqui, resolvi salvá-la.” tar-me. Se isso acontecer, cabe a você sob o nome de Wolfgang Gerhard. Ele
de 1919. Pouco depois a polícia deu Trovoada a leste. Pela janela vi os dizer ao mundo o que se passou aqui morreu afogado após um mal súbito
uma busca em nosso apartamento à primeiros sinais da alvorada. sob o disfarce de ciência. numa praia de Bertioga (SP), em 1979.
noite, à procura de literatura subver- “Você precisa ir antes que clareie
siva. Vendo a brigada vermelha ar- mais”, disse a Dra. Winkler. “A enferma-
rombar a porta, meu pai se enfureceu, ria de contagiosos fica no Pavilhão 8.
protestou e mandou-os saírem. Nesse A Dra. Elvira dorme perto da segunda Só de brincadeira
momento ele caiu morto, vítima de um janela do lado norte. Bata na janela e Quando criança, eu fazia todos os meus brinquedos assistirem
ataque cardíaco. Ele não tinha o hábito dê a senha ‘Perugina’. Vá com Deus.” a Toy Story para que soubessem que eu estava de olho neles.
de se enfurecer. Ao primeiro clarão da aurora as @jakenotstfarm

92 edição especial edição especial 93


Publicado em
novembro de 1973

A vida
póstuma de
Sherlock Holmes
Até mesmo o seu criador tentou matá-lo,
mas o detetive de Baker Street continua
bem vivo, fazendo com que seus
admiradores, no mundo inteiro,
se recusem a distinguir entre a
realidade a ficção.
© moussa81/istock

por Peter Browne

94 edição especial edição especial 95


“A
í vem mais um”, disse verdade, mas que ainda continuava Entre 1891 e
o Comissário Alfred trabalhando. 1927, à medida
Blythe, enquanto Existem muitas pessoas, em todo o que se iam publi-
observávamos um mundo, que compartilham da mesma cando cada uma
turista, de máquina crença. Todas as semanas, é entregue das 59 histórias
a tiracolo, subindo à Abbey National um pacote de cartas consecutivas de
a Baker Street, em endereçadas a Sherlock, no n-º 221-B, Holmes (todas,
Londres, com a cabeça inclinada para cartas essas que são devidamente res- exceto duas, na revista Strand), tor-
ver os números das portas. Do lado de pondidas com uma cortesia não com- navam-se cada vez mais firmemente
fora do grande edifício de escritórios, prometedora: “Informamos a V. S a. gravadas na imaginação do público
onde Blythe ficava sentado à sua es- que o Sr. Holmes teve de desocupar as feições aquilinas e a figura magra,
crivaninha, no saguão, o turista parou, seus aposentos e infelizmente ignora- apresentadas nas ilustrações de Sid-
visivelmente perplexo, antes de entrar mos seu paradeiro atual.” ney Paget; e cada vez mais real pa-
timidamente e pedir auxílio: “Estou Da Polônia, um jovem pede o autó- recia o gênio do detetive que sabia
tentando localizar a casa de Sherlock grafo de Holmes; o presidente de um deduzir que um crime fora cometido
Holmes, no 221-B.” clube em Toronto convida Holmes por um homem alto e canhoto, que
Pela décima segunda vez, naquele para ser o conferencista de honra, num mancava, fumava charutos indianos,
dia, Blythe explicou que a Abbey Na- jantar. Até mesmo quando aqueles que calçava botas de caçador e levava no
tional Building Society, compreen- deviam saber que, se Holmes fosse bolso um canivete cego.
dendo os prédios de números 219 a vivo, teria hoje pelo menos 118 anos, Mas Conan Doyle, que gostava
223, já se ergue há muitos anos no continuam apelando à ilusão. “Talvez muito mais de escrever romances his-
local onde Holmes, ao que se supõe, V. Sa. se pergunte por que razão uma tóricos, como A Companhia Branca,
partilhava seus aposentos com o Dr. estudante sensata e perfeitamente nor- para o qual fizera pesquisas exaus- Fachada da casa e do museu de Sherlock
Watson. O turista pareceu desapon- mal quer escrever ao senhor”, disse, tivas, começou a considerar a insa- Holmes no n-º 221-B da Baker Street.
tado. “Diga-me”, indagou ele. “Sher- em carta, uma adolescente londrina. ciável procura popular de aventuras Foi aqui que Arthur Conan Doyle situou
lock foi um detetive de verdade?” “É que, para mim, o senhor é imortal.” de Holmes como um encargo into- o apartamento do famoso detetive.
Todos os anos, durante o verão, mi- A situação sempre foi assim, desde lerável. Em 1893, Doyle terminou de
lhares de turistas seguem, cheios de a época em que a primeira aventura escrever O Problema Final (obra em leitor iniciou assim sua carta de pro-
esperança, a pista que os leva até o de Sherlock Holmes (Um Estudo em que o autor fez Sherlock e o Profes- testo: “Seu Monstro!” Como se pode

© itchysan/istock; © okfoto/istock
n-º 221-B e fazem a mesma pergunta.

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Vermelho) foi publicada no Beeton’s sor Moriarty, o Napoleão do Crime, compreender, o editor da revista Strand
Suas assinaturas, no livro de visitan- Christmas Annual, em 1887, tão vivo se precipitarem pelas Quedas de Rei- sofria tanto quanto seus leitores e acio-
tes guardado por Alfred Blythe, de- era o retrato de Holmes, descrito por chenbach, na Suíça) e anotou, com nistas, descrevendo a morte de Holmes
monstram que, somente em agosto de Sir Arthur Conan Doyle, que, quase de alívio, em seu diário: “Matei Holmes.” como “um acontecimento trágico”.
1972, acorreram visitantes do Canadá, imediato, o autor começou a receber A reação do público deixou-o estu- Conan Doyle manteve-se intransi-
Estados Unidos, União Soviética, Ja- cartas implorando-lhe que pusesse pefato. Austeros negociantes da City gente durante oito anos, mas depois
pão, França, Espanha, Suécia, Índia, os signatários “em contato com o Sr. passaram a usar fumos de luto em suas cedeu, e ressuscitou Holmes, na mais
Itália, Brasil e Dinamarca. Alguns pa- Holmes”, a fim de que este esclare- cartolas de seda. Em Chicago, Boston e famosa de todas as histórias, O Cão
reciam convencidos de que Sherlock cesse um problema qualquer em seus São Francisco, surgiram clubes com a dos Baskervilles. Enquanto um caso se
Holmes não era só uma pessoa de assuntos particulares. legenda “Mantenha Holmes Vivo”. Um seguia a outro, a circulação da revista

96 edição especial edição especial 97


Strand aumentava em 30 mil exem- Sherlock Holmes, data de 1969. John um marquês, um vice-marechal-do- Do Japão, vem um tratado sobre o
plares, e os londrinos, impacientes, Barrymore, Clive Brook e Raymond -ar... e a filha de Conan Doyle. No Baker uso que Holmes fazia de cocaína. Seu
formavam filas para comprar a revista Massey foram intérpretes do grande Street Irregulars, de Nova York, o qua- conhecimento de diamante é esmiu-
diretamente da gráfica. As aventuras detetive. Mas foi o sardônico Basil dro de sócios conta hoje com 600, e tem çado por um físico da Alemanha. Um
brotavam com tanta facilidade da Rathbone, que figurou em 14 filmes, mais de 30 grupos afiliados, espalhados respeitável cirurgião de Londres ana-
imaginação de Conan Doyle, que ele entre 1939 e 1946, quem mais se apro- pelos Estados Unidos e Canadá, desde lisa seriamente o estado de saúde de
escreveu a maior parte de uma delas ximou do original, e quem, mais do o Speckled Band de Boston, até os Scho- Watson: “Uma deficiência de vitamina
sentado no assoalho do pavilhão do que qualquer outro ator, era Holmes lars of San Francisco. A, tendo como consequência a ce-
Lord’s, certa tarde, quando uma pan- para as plateias do mundo inteiro.* Os sherloquianos, conforme eles gueira noturna, torna-se aparente em
cada de chuva interrompeu uma par- próprios se denominam, operam par- A Faixa Sarapintada. Nesta obra, num

C
tida de críquete. erca de trinta peças teatrais tindo da agradável premissa de que as quarto escuro, Holmes conseguia ver
E, desde então, Holmes continua já foram apresentadas, e, entre histórias de Holmes são registros ver- claramente uma cobra descendo pelo
vivo. Os volumes de histórias que des- elas, um musical na Broadway, dadeiros, mas por vezes incompletos, cordão da campainha, e investia con-
crevem seus casos já venderam o que intitulado Baker Street, anunciado em de seus casos, compilados pelo narra- tra ela com sua bengala. “Mas eu nada
se avalia em 100 milhões de exempla- Nova York com cartazes que procla- dor, Dr. John H. Watson, ex-integrante vi”, escreveu Watson.
res, em 41 idiomas, do esquimó ao es- mavam: “Ele ensinou James Bond a do Departamento Médico do Exército
peranto, e estão sendo constantemente fazer tudo.” Embora ainda esteja para Britânico. Dorothy Sayers, autora de COMO WATSON ERA
reimpressos. Podem ser lidos em braile aparecer um “Sherlock no Gelo”, ele romances policiais, assim definiu as UM TANTO LENTO, AS
e em taquigrafia; são adaptados num já foi visto num bailado do Sadler’s regras básicas do jogo: “Ele deve ser jo-
curso de inglês espalhado pela Europa Wells, e seus casos são constante- gado com a mesma solenidade de um HISTÓRIAS DE HOLMES
e foram, em certa época, distribuídos mente adaptados para o rádio e a te- torneio municipal de críquete no Lord’s. SÃO CHEIAS DE
aos policiais egípcios como parte do levisão. Na União Soviética, Sherlock O menor toque de extravagância ou de DISCREPÂNCIAS.
seu treinamento. O nome de Holmes é reverenciado como “o extermina- brincadeira destrói a atmosfera.”
entrou para a linguagem da América dor de crimes e males, um modelo de Como Watson era um tanto lento
Latina, onde, nos países de língua es- força e de cultura magníficas”. Uma para entender as coisas, e um modelo
panhola, as deduções inteligentes são recente produção soviética apresen- de discrição vitoriana, as histórias de Os sherloquianos procuram pistas
conhecidas como “sherlockhólmitos”; tava Holmes e Watson, fiéis leitores Holmes são crivadas de discrepâncias, com um zelo digno de seu herói. Nor-
em língua portuguesa, existe o adjetivo do Times, lendo o jornal comunista o que fornece um campo rico para o man Crump, então redator do Sunday
“sherloquiano”. Estrela da Manhã. trabalho de investigação literária. Os Times, certo dia, fez uma viagem peri-
Há muito tempo o criminalista Na Escandinávia, Holanda, África do sherloquianos há muito concluíram gosa, a pé, ao longo das pistas do me-
de Baker Street transpôs os limites Sul, Austrália e Japão, florescem os clu- que, na verdade, Holmes nunca disse: trô, em Inner Circle, perto de Aldgate,
da página impressa, pois Holmes é bes dedicados a estudos profundos dos “Elementar, meu caro Watson”; nunca a fim de verificar se um trem levando
uma figura irresistível para os atores casos de Holmes. Entre os 500 sócios fumou um cachimbo curvo, nem usou em seu teto um cadáver (episódio de
teatrais. Foi em 1903 que o detetive da Sherlock Holmes Society of London o deerstalker, aquele boné de viagem Os Planos de Bruce-Partington) viajava,
apareceu pela primeira vez numa (“um grupo eminentemente biruta”, se- com abas móveis para tapar as orelhas. no momento, no sentido dos ponteiros
tela de cinema, em Sherlock Holmes gundo um dos membros), encontram- Hoje, as páginas das bem impres- do relógio, ou no sentido oposto. Para
Desconcertado. O número de filmes -se engenheiros, cientistas, médicos, sas revistas da Sherlock Holmes So- fixar a data precisa de A Coroa de Be-
se eleva hoje a perto de 150 – sendo estudantes, padres, jornalistas, vários ciety e do Baker Street Irregulars se rilos, obra em que as pegadas na neve
que o mais recente, A Vida Íntima de professores universitários, um barão, dedicam a assuntos mais esotéricos. têm papel importante, o autor Gavin

98 edição especial edição especial 99


Brend foi consultar os arquivos da Real com a seguinte inscrição: “Do outro chá de Holmes e Watson. Apesar de A sucursal do Baker Street Irregulars
Sociedade Meteorológica. lado deste caldeirão horrível, ocorreu ser pleno verão, uma pastelaria espe- em Tóquio mandou fazer uma placa
De ambos os lados do Atlântico, os o evento culminante da carreira de cializada em muffins prontificou-se a para comemorar o encontro realizado
sherloquianos organizam seu jantar Sherlock Holmes, o maior detetive do fornecer uma quantidade desses bo- no bar do Criterion, em Piccadilly, en-
anual em janeiro, mês no qual as pes- mundo, quando, a 4 de maio de 1891, linhos diariamente. tre o Dr. Watson e o Dr. Stamford, que
quisas fixam o aniversário de Holmes. ele venceu o Professor Moriarty.” Cerca de 54 mil pessoas foram ver o apresentou a Holmes. Os sherloquia-
Em Londres, o brinde é sempre este: “A Holmes chegou a receber a honra esse aposento. Quando ele foi trans- nos dos Estados Unidos fizeram uma
Memória Imortal.” Sabe-se de ocasiões máxima de ter um pub (bar) batizado portado para Nova York, e exibido subscrição para instalar outra placa no
em que os Irregulars de Nova York che- com o seu nome. O “Sherlock Hol- durante seis semanas, Thorne foi tam- Hospital St. Bartholomew, onde Hol-
garam ao jantar de fiacre; o martelo do mes”, perto da Trafalgar Square, con- bém. Lá, continuou a executar o seu mes e Watson se encontraram pela
presidente é feito de um pedaço da tém uma reprodução fiel da sala do primeiro dever de cada dia; dar uma primeira vez, no laboratório de pato-
porta de uma casa em Baker Street. detetive. Este aposento deve sua exis- mordida em cada um dos bolinhos logia. E o mais convincente de tudo
A sociedade londrina janta no Hotel tência aos membros do Conselho de com manteiga, transmitindo cuidado- é a existência, perto de Baker Street,
Charing Cross, que possui várias vin- St. Marylebone, distrito que abrange samente a impressão de que Holmes e de uma pequena passagem, batizada
culações com Holmes – por exemplo, Baker Street. Eles resolveram home- Watson tinham acabado de sair, para em 1937, pelo London County Coun-
no seu saguão, um rufião certa vez ar- nagear o seu morador mais ilustre, tratar de um caso urgente. Está visto cil, como Sherlock Mews (Cavalariça
rancou a murros um canino esquerdo por meio de uma exposição, num lo- que o detalhe era rigorosamente res- Sherlock).
de Sherlock. Os menus, naturalmente, cal da Baker Street, durante o Festival peitado: num dos bolinhos, a mordida Pensando bem, quase não nos sur-
são impressos em tipo Baskerville. da Grã-Bretanha, em 1951. voraz de um homem que está pen- preende que, durante uma pesquisa
O bibliotecário de Marylebone, sando em coisas mais elevadas; no feita em 1970, se tenha verificado que

O
s entusiastas mais extroverti- Jack Thorne, e o desenhista Michael outro, uma delicada incisão médica. quatro londrinos, entre cada dois mil
dos, às vezes, se vestem como Weight dedicaram-se a recriar o Sherlock continua e continuará a entrevistados, se declaravam conven-
os personagens das histórias: o ambiente, com uma perfeição sher- viver. A biblioteca pública de Maryle- cidos de que Holmes estava realmente
acontecimento mais deliciosamente loquiana, e insistiram em que até bone Road recebe consultas frequen- vivo. Para um sem-número de outros,
biruta dos últimos anos foi a peregri- mesmo a poeira encontrada no apo- tes de pesquisadores, como as daquele ele nunca morreu. Conforme escre-
nação, seguindo os passos de Holmes, sento fosse autenticamente vitoriana estudante da Universidade do Arizona, veu certa vez Vincent Starrett, grande
que levou 40 sherloquianos ingleses e – meticulosamente colhida num que está escrevendo uma tese sobre sherloquiano: “Holmes e Watson ainda
americanos, adequadamente vestidos sótão das proximidades, o qual, ao Holmes para obter o diploma. O Con- vivem, para todos os que os estimam,
e ostentando costeletas, até a Suíça, em que se saiba, não era aberto desde selho de Turismo de Londres vive pres- num cantinho romântico do coração,
1968. O ponto alto da excursão ocorreu a década de 1890. Os correios en- sionado para satisfazer a procura, por numa terra nostálgica do mundo ma-
à beira das Quedas de Reichenbach, traram na coisa, desencavando for- parte dos visitantes de outros países, ravilhoso da imaginação.”
quando Lord Gore-Booth, então pre- mulários de telegramas da época. A de reproduções do Guia Turístico da
sidente da Sherlock Holmes Society (e Scotland Yard, não podendo fornecer Londres de Sherlock Holmes, livro que * De 1973 para cá, os números aqui
até recentemente chefe do Ministério um molde em gesso das pegadas do apareceu no número de inverno de citados cresceram consideravelmente.
do Exterior) tomo a si o papel de Hol- Cão de Baskervilles, fez um molde 1970 do Sherlock Holmes Journal. (“Vi- Hoje, por exemplo, são mais de 200 fil-
mes. Repetiu a encenação da famosa da pata do maior cão policial da cor- ramos em Welbeck Street; na primeira mes, entre os quais um de 2020 (Enola
luta contra Moriarty (este último repre- poração. Eram necessários muffins esquina, acha-se Bentinck Street, onde Holmes), e outros grandes astros inter-
sentado por um ilustre Conselheiro da (bolinhos de trigo servidos quentes fracassou o plano de Moriarty para eli- pretaram Sherlock, como Robert Dow-
Rainha) antes de inaugurar uma placa com manteiga) para a bandeja de minar Holmes...”) ney Jr. e Henry Cavill.

100 edição especial edição especial 101


Ato
Hans Peter Michel alimenta
as vacas de sua propriedade
em Gorbenki, na Rússia.
Aos 40 anos, ele trocou a
tranquilidade da sua terra
natal pelos desafios que

de fé
o esperavam no
Leste Europeu.

Quando o fazendeiro
de 40 anos parou para
pensar no futuro, achou-o
totalmente sufocante.
O que fez em seguida
surpreendeu a todos.
por Natalya Klyukovkina

Publicado em
102 edição especial fotografado por andrei liankevich/anzenberger/redux 103
abril de 2011
edição especial
N
osso destino fica uns 190 Finalmente conhecemos o dono dessa Em 2003, quando leu numa publi- único que respondeu “100% de cer-
km a sudoeste de Moscou. pequena ilha de prosperidade parti- cação agrícola uma reportagem que teza”. Dois outros fazendeiros da via-
No marco miliário de 174 cular: Hans Peter Michel, um suíço de convidava fazendeiros a visitar a Rús- gem, Joseph Lussi, na época com 38
km, saímos da congestio- 48 anos. sia para trocar experiências e conhe- anos, e Jakob Bänninger, de 56, tam-
nada estrada Moscou-Kiev cer novas oportunidades de negócio, bém se interessaram, mas hesitavam
e caímos numa região campestre de Hans Peter cresceu na pequena fa- pensou: Por que não? Ligou e reser- em recomeçar a vida em terra estra-
densas florestas de pinheiros, planta- zenda da família, perto de Böningen, vou uma vaga. nha, principalmente Bänninger, que
ções que vão até o horizonte e tristo- na região central da Suíça. Gostava de Em julho, ele encontrou o grupo era casado. Da segunda viagem, em
nhos remanescentes arquitetônicos ser fazendeiro. Quando os dois irmãos de 34 fazendeiros que partia para a novembro, só participaram sete fa-
da era soviética – compridos muros e as duas irmãs foram seguir carreira Rússia. Hans Peter achou o modo de zendeiros, inclusive Hans Peter, Lussi
de concreto dilapidados, prédios na área de turismo, ele assumiu os 16 vida russo mais tranquilo e o povo e Bänninger.
melancólicos de tijolos cinzentos, hectares e as 15 vacas da fazenda. mais aberto que os suíços, embora, à A perspectiva mais interessante era
pequenas aldeias Mas, com o pas- primeira vista, alguns hábitos fossem a Fazenda Leite Suíço, em Gorbenki,
desoladas. A estrada sar dos anos, a ro- desconcertantes. No campo suíço, o uma propriedade leiteira de 300 hec-
estreita é cheia de
NÃO É PARTIR t i na d e t rab a l h o costume era cumprimentar todos na tares com vários prédios abandona-
lombadas e bura- QUE ME ASSUSTA, ficou menos satis- rua, conhecidos ou não. Os russos dos e 90 vacas. Anos antes, a Suíça
cos. A última aldeia MAS FICAR, PENSOU fatória. Ele se sentia passavam sem sequer olhar uns para criara em Kaluga um fundo para a
antes da ponte que limitado pelas mon- os outros. Mas, assim que passou a concessão de crédito a pequenas em-
nos leva a Gorbenki,
HANS PETER. tanhas e também conhecê-los, descobriu uma enorme presas e implementara um programa
nosso destino na re- pelas cidades, que diferença. Depois de apresentados, agrícola para comprar terras, recons-
gião de Kaluga, não roubavam o espaço os russos eram muito receptivos, che- truir fazendas antigas e equipar uma
tem luz elétrica; não há um único da natureza. A maioria dos fazendei- gando a convidar para o chá estranhos pequena fábrica para a produção de
poste à vista. ros suíços não podia nem sonhar em que tinham acabado de conhecer. leite. Mas o empreendimento não
A estrada faz uma curva, e um pré- expandir a propriedade. Certo dia, As coisas que repeliram os outros prosperou e a decisão foi vender a Fa-
dio grande e baixo, com um alegre te- ele pensou: Estou com 40 anos! Mais o estimularam. É verdade que muitas zenda Leite Suíço, que estava à beira
lhado vermelho, entra no campo de 20 ou 25 anos disso e me aposento. casas eram precárias e muitos aldeões da falência.
visão. Parece deslocado naquele am- Isso não é futuro para mim! mal conseguiam sobreviver. Mas,
biente. Um rebanho de vacas limpas Hans Peter se interessou pelo Leste mesmo após anos de problemas e di-
de um belo tom de bege marcha pela Europeu quando prestou o serviço ficuldades, ainda eram alegres. Claro
estrada rumo ao estábulo. Fardos de militar, em 1987. Na sua guarnição, que havia buracos na estrada, proble-
feno com cobertura protetora se es- havia 12 jovens russos, prisioneiros mas com as autoridades e as mu-
palham pelo campo. da guerra do Afeganistão. Ele desco- danças da economia, mas tudo
Quando paramos na entrada do briu que tinham sonhos e interesses mapa: 5w infographic podia ser resolvido. I
A
S
S
prédio de telhado vermelho, um ho- iguais aos seus. Mais tarde, durante No fim da viagem, o or-
mem de macacão cáqui e botas de um ano, para ganhar um dinheirinho ganizador perguntou ao Moscou
borracha vem nos receber. Ele es- extra, Peter acompanhou o transporte grupo sobre a proba- o Gorbenki
ic
tende a mão com um sorriso largo, de reses para a Hungria e o Kosovo. bilidade de fazerem nt
t lâ Boningen
A
os olhos azuis faiscantes, e diz : Muitas vezes pensava: Quem sabe há negócios na Rússia. o
an
“Bem-vindos à Fazenda Leite Suíço!” algo para mim? Hans Peter foi o e

c
O
104 edição especial edição especial 105
Á
F R I
Hans Peter achou que poderia fa- terminado com um gole de vodca por
zer o negócio dar certo. Não rompe- insistência do administrador, os suí-
ria laços ao se mudar para a Rússia. ços dormiram no chão do escritório.
Solteiro, não teria de desenraizar a No dia seguinte, compraram camas
família. Não falava russo, mas poderia e se mudaram para dois cômodos sem
usar intérpretes até aprender. Mas foi água em cima da garagem. Ali seria o
difícil tomar a decisão de vender a sua seu lar durante dois anos, até cons-
fazenda para levantar capital. truírem uma casa.
Não é partir que me assusta, o que Na Suíça, Hans Peter aprendera a
mais me assusta é ficar, pensou Hans dizer “olá”, “obrigado” e “como vai?”
Peter com os seus botões. O pai, no em russo, mas não tivera tempo de
entanto, não conseguia entender a aprender mais. Os sócios contrataram
decisão do filho de vender a fazenda uma garota de 16 anos para servir de
da família. intérprete.
No inverno de 2004, Hans Peter e As 90 vacas estavam subnutridas.
seus dois novos sócios, Lussi e Bän- Fora o feno, não havia quase nenhum
ninger, tomaram a firme decisão de alimento. Era óbvio que tinham de
adquirir a Fazenda Leite Suíço e pla- plantar milho, mas o equipamento
nejaram uma viagem à Rússia para estava danificado. Os tratores russos
efetuar a compra. Hans Peter teve a precisavam de consertos constantes.
súbita inspiração de convidar o pai Os suíços não estavam preparados
para acompanhá-los. E, como espe- para a atitude russa diante do traba-
rava, quando o pai conheceu os sócios lho. Com demasiada frequência, os
do filho, viu a região e a fazenda, en- tratoristas e ordenhadeiras sumiam
tendeu que a oportunidade era real- depois do primeiro salário. Acaba-
mente boa. Na Rússia, eles poderiam ram por demitir alguns e fazer quase
comprar ou arrendar toda a terra que todo o trabalho sozinhos. Os vizinhos
quisessem. estranharam: no mundo russo, donos

H
de empresas usam terno e têm moto-
ans Peter e os sócios se ristas. Os recém-chegados pareciam
mudaram para Gorbenki ainda mais exóticos por arregaçarem
em abril de 2004. Nada as mangas e se lançarem ao trabalho.
estava pronto quando – Houve vezes em que alguém pe-
Hans Peter, a mulher, Yulia, e os
filhos Johann-Ivan, de 3 anos, e chegaram: não havia in- dia para falar com o dono – recorda
Nastya, 9 anos. Yulia era térprete e nem carro à espera deles; Hans Peter, rindo. – Eu dizia: Sou o
empacotadora na Leite Suíço o administrador russo da fazenda, dono. Quase sempre pensavam que
quando os dois se conheceram. que fora mantido pelos sócios para eu não tinha entendido a pergunta.
“É como se tudo tivesse gerenciar o pessoal, não tinha onde Hans Peter se surpreendia a
acontecido por si só.” hospedá-los. Depois do primeiro dia, cada passo. No começo, os aldeões

106 edição especial edição especial 107


acharam que era tudo propriedade – Realmente não sei descrever como locais, os vizinhos admiram as realiza- – Assim os horizontes se ampliam.
comunitária. aconteceu – diz ele, timidamente. ções de Hans Peter e não entendem Na Suíça, há muitas montanhas ín-
– Um roubava diesel, outro vendia – É como se tudo tivesse acontecido como ele consegue colher mais milho gremes e não podemos ver ao longe
esterco – disse ele. – Não bastava dizer por si só – recorda Yulia. do que todos eles. “Usamos as mesmas – acrescenta.
as coisas uma vez. Ensinei e ensinei. E O casamento, em 2006, contou com sementes da fazenda vizinha”, diz Yulia Johann-Ivan, filho dele e de Yulia,
xinguei, xinguei, xinguei. Aos poucos, a presença de todos os parentes de com um sorriso, “mas não sei por que tem três anos agora. Hans Peter de-
tudo foi melhorando. Hans Peter. elas crescem mais nas nossas terras.” dica atenção especial a ensinar ale-
O pior problema era a bebida. Certa – Na Suíça, os casamentos vão da O sucesso transformou Hans Peter mão aos filhos. A filha Nastya, hoje
vez, um tratorista foi comemorar o ani- manhã à noite – diz ele. – Comemo- em celebridade no seu país natal. Não com 9 anos, já se comunica em ale-
versário da filha, se embebedou, saiu ramos durante uma semana. demorou muito para que os turistas mão com os hóspedes do hotel.
manobrando o trator e o quebrou. Hans A fazenda sobreviveu à crise econô- suíços tivessem uma nova atração na Ninguém da família se orgulha mais
Peter perdoou o pobre homem. “Foi a mica global e, em 2010, pela primeira Rússia: viajar de Moscou a Gorbenki do sucesso de Hans Peter do que o
primeira vez. Até en- vez, sobrou dinheiro para conhecer essa maravilha, uma pai. No verão de 2010, ele visitou Gor-
tão, ele era um exce- “QUEM É INFELIZ depois de pagos os fazenda suíça em terras russas. benki três vezes.
lente trabalhador.” empréstimos – uma Ele construiu uma casa para a família, Hans Peter diz que aprendeu uma
Finalmente, só tra-
NÃO CONSEGUE conquista que dei- outra para os hóspedes e, depois, um lição importante com a experiência:
balhadores aprova- TORNAR OS OUTROS xou os proprietários hotel. Quase todo ano, três ou quatro – Quem é infeliz não consegue tor-
dos continuaram na FELIZES.” orgulhosos. fazendeiros suíços chegam à fazenda nar os outros felizes. Cada geração
fazenda. Hans Peter O rebanho cres- para trabalhar e aprender. Como explica tem de seguir o próprio caminho. Vivi
considera o primeiro ceu para 700 ani- Hans Peter, “eles podem experimentar mais aqui em seis anos do que jamais
sucesso a ocasião em que todos os tra- mais saudáveis, dos quais 250 são algo novo falando a própria língua”. conseguiria viver na Suíça.
tores da fazenda estavam funcionando. vacas leiteiras que produzem 3.800
“Infelizmente, só durou meia hora.” litros de leite por dia, vendidos às al-

A
deias locais e à cidade de Kaluga. A Conselhos da mamãe
l g u m t e m p o d e p o i s fazenda cresceu de 300 para 700 hec- Para meus filhos que foram morar sozinhos,
da chegada, Hans Peter tares. Hans Peter e os sócios planejam
passo uma lista de lições de vida:
começou a notar uma construir um novo estábulo, aumen-
moça magra, de cabelo tar o plantel e fabricar queijos. 1. Evite casar-se com alguém que dá
louro e comprido, que Hoje, 39 pessoas trabalham na fa- a descarga de propósito quando você está no chuveiro.
trabalhava como empacotadora de zenda: 14 ordenhadeiras, três vete- 2. Quando alguém lhe avisar que o que vai
leite. Gostou dos olhos dela, do seu rinários, cinco empacotadores, 12 dizer é ”para o seu próprio bem”, espere o pior.
jeito de andar. Descobriu que o nome tratoristas e mais administrador, di- 3. Quando um político diz “Quero deixar uma coisa bem clara”,
da moça era Yulia e que tinha uma retor técnico, contador, auxiliar de lembre-se de que em geral ele não o fará.
filha de três anos. contabilidade e economista. Toda 4. Seus filhos podem sair de casa, mas seus pertences
Apesar da barreira do idioma, o manhã, dois micro-ônibus buscam ficarão para sempre no alto dos armários.
casal conseguiu se comunicar desde os funcionários nas aldeias próximas
5. Tenha pelo menos um amigo de verdade, afinal você não pode
o princípio. Todo dia ele aprendia al- e os levam para casa à noite.
dar um tapinha nas próprias costas e nem chorar no próprio ombro.
gumas palavras, e pagou aulas de ale- Apesar da Leite Suíço ser uma em-
charlotte johntone
mão para Yulia. presa de porte médio segundo padrões

108 edição especial edição especial 109


COMO SE CURAM
HOJE AS NEUROSES Publicado em
janeiro de 1944

DE GUERRA
Soldados abalados mentalmente
pelos horrores da guerra vão sendo
curados e restituídos ao serviço pelos
psiquiatras do exército

Por Frederick C. Painton


correspondente de guerra do reader’s digest no mediterrâneo

UM SARGENTO AMERICANO de infantaria conduzia o seu pelotão


para o alto de umas escarpas queimadas pelo sol que ficam
além da cidade de Ena, na Sicília. Dias seguidos, ele e os
seus homens, mal dormidos e mal alimentados, haviam

Royce DeGrie/Istock
DeGrie/Istock
permanecido sob o ruído constante de metralhadoras e
canhões. Súbito, uma bateria de obuses italianos, situada à
sua esquerda, lançou duas granadas. O sargento, ouvindo o
© Royce

som caraterístico dos projéteis a cortar o espaço, gritou aos


seus comandados que se abaixassem, e fez o mesmo. As
foto: ©

bombas caíram perto, e explodiram. Três dos soldados


foto:

morreram. O sargento foi arremessado duas vezes no ar por

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efeito das terríveis concussões que a curso das operações militares, e pra-
explosão produziu. ticamente não se aplicaria nenhum
Visivelmente ileso, levantou-se, e, tratamento curativo. Nas linhas de
sendo um oficial inferior com a exata frente, era difícil aos médicos dis-
noção do seu dever, prosseguiu com tinguir entre as vítimas de neuroses
os sobreviventes no desempenho reais e os que se deviam ter por em- NA SICÍLIA, NO AUGE
do encargo que lhe fora confiado de busteiros. Muitos dos combatentes DA LUTA, VIAM-SE
capturar a posição. Mais tarde, num
interregno tranquilo, eis que estre-
viam-se assim suspeitados de estar
simulando sintomas de várias enfer-
SOLDADOS A VAGAR
meceu sobressaltado ao olhar para a midades, para escapar desse modo ao COMO SONÂMBULOS.
sua mão direita. Estava ela metida no fogo do combate. Os outros soldados
bolso, e só com o auxílio da esquerda atiravam-lhes em rosto o epíteto de
conseguiu levantá-la, mas para vê-la “amarelos”, o que só contribuía para
cair de novo, como inerte. Contra- agravar-lhes o estado.
riado, apreensivo, tentou reanimá-la A seguir, eram submetidos a um
com pequenas pancadas. Não havia, duro tratamento. Colocados em iso-

A
porém, sensibilidade. Mão e braço lamento, não podiam receber visitas,
estavam sem dúvida paralisados. nem cartas; e escolhiam-se, para mi- alta porcentagem de ca- tratar de outra maneira os jovens
Deixou-se ficar assim por alguns nistrar-lhes, remédios incômodos, re- sos de neurose na Primeira acometidos de desordens nervosas. O
dias, quase uma semana, sem recor- pugnantes, amargos. Admitia-se que, Guerra Mundial foi atribu- tenente-coronel Perrin H. Long, que
rer ao médico, na esperança de que, em tais condições, acabariam talvez ída, algum tempo, à relativa já serviu no Hospital Johns Hopkins,
de um momento para outro, recupera- preferindo voltar às fileiras a supor- facilidade, sob o ponto de e atualmente faz parte do pessoal
ria os movimentos. Afinal, como não tar o rigor de semelhantes métodos vista do exame de sanidade men- do Corpo de Saúde em atividade na
se confirmasse a sua expectativa, não de cura. tal, com que se faziam as admissões África do Norte, teve ocasião de dizer-
houve jeito senão baixar ao hospital. Desnecessário é dizer que muito no exército. Assim, quando em 1940 -me: “O que a medicina tem feito aqui
Examinado detidamente, não se lhe poucos se restabeleceram; suas neu- se restabeleceu a conscrição, as exi- de mais importante é a prática de um
encontrou ferimento de espécie al- roses de guerra tenderam, ao con- gências quanto a condições, tanto tratamento que vai curando doentes
guma. Um psiquiatra deu-lhe uma trário, a acentuar-se. Milhares deles mentais como físicas, tornaram-se de neuroses de guerra, os quais re-
dose de pentotal de sódio e, sob a foram devolvidos aos respectivos rigorosas. Sem embargo, iniciada que gressam à linha de combate ou vão
ação deste hipnótico, o sargento mo- lugares de residência, onde se torna- foi a campanha da África do Norte, trabalhar utilmente, embora não com-
veu livremente o braço, a mão e os de- ram um ônus público. Os hospitais as neuroses de guerra, a que ainda se batendo, na retaguarda. Todos eles
dos. Fixou-se-lhe então o diagnóstico: neuropsiquiátricos, mantidos pelo dava o nome de “neurose traumática” voltarão à vida de paz em condições
“exaustão”; e foi ele segregado para governo, encheram-se destes destro- © johngomezpix/istock
© johngomezpix/istock (shell-shock), entraram, do mesmo de reajustamento a atividades úteis. O
tratamento especial. ços, remanescentes da guerra. modo, a manifestar-se, e atingindo homem a quem se deve sobretudo o
Se o caso houvesse ocorrido na Só mais tarde – muito tarde demais indistintamente homens dos mais salvamento de tantos soldados, para a
Primeira Guerra Mundial, teriam-no – compreendeu-se que aqueles ho- vários tipos, quanto a coeficientes de própria função militar, é o major Fre-
atribuído a “neurose traumática”, que mens foram atingidos realmente por ordem mental. derick Hanson.”
era então, em geral, o responsável um dos danos ou males mais terríveis Todavia, desta vez, o serviço mé- Conversei com o major Hanson,
pelas psiconeuroses verificadas no que a guerra pode infligir. dico do exército está deliberado a anteriormente médico clínico em

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Montreal, Canadá – magro, jovem, vão para a batalha em estado de an-
usando óculos, muito modesto, e que gústia. Mas conseguem dominá-la
só saiu da quietude, para falar com pela força de vontade, auxiliada pela
grande animação, quando eu lhe fiz experiência.
referência à “neurose traumática”.
“Não existe a ‘neurose traumática’”,
“Como quer que seja, a luta dura
e constante, coincidindo com a irre-
“ELE TREMIA DA
respondeu-me incontinenti. “Essa ex- gularidade de alimentação e de sono, CABEÇA AOS PÉS, E
pressão foi usada na última guerra,
porque então os médicos admitiam
conduz à exaustão física. Os riscos
tremendos que se correm a cada ins-
TUDO O QUE CONSEGUIA
que as vítimas de neuroses tinham tante acabam esgotando os nervos. DIZER ERA ‘QUEM?’”
sofrido concussão cerebral, oriunda Quanto mais se declara a exaustão
de explosões. Foram entretanto muito física, tanto mais a inquietação se
poucos os casos efetivamente de con- torna insuperável. Até que, um dado
cussão cerebral. Mas o nome ‘neurose momento, uma explosão de granada,
traumática’ estava lançado, e persis- ou a morte de um amigo, representa
tiu, fazendo grande mal. O soldado o papel da última gota que faz trans-
que recebia tal diagnóstico supunha- bordar a taça. O que deles se ouve
-se logo vítima de insanidade mental mais frequentemente são frases como
e piorava. Assim, aqui na África, pre- esta: ‘Aguentei o mais que pude; mas riam se restabelecer. O tratamento, hospitais, só dois por cento puderam
ferimos dizer ‘exaustão’, que é o termo já não podia mais’.” entretanto, fazia maravilhas. Davam- ser devolvidos às linhas de combate.

O
provavelmente mais adequado aos vá- -se-lhes sedativos, para ajudar-lhes o Os majores Hanson e Louis Tureen
rios tipos de neurose de guerra. caso é de fazer pena. Na Si- sono; alimentação regular e aqueci- decidiram fazer a experiência de
“Outra coisa a ter em mente é que a cília, no auge da luta, viam-se mento; enquanto, por outro lado, sob tratar 95 dos acometidos do mal, na
exaustão, ou a neurose de guerra, não soldados a chorar histerica- a ação narcótica do pentotal, tratava- própria linha de frente, ao som dos
distingue entre os soldados. A bravura mente, ou recuando, a vagar, -se de livrá-los mentalmente do pesa- canhões, e sob ataques aéreos que
ou a covardia pouco influem no caso. das linhas de frente, como delo que os oprimia. Explicava-lhes o se verificavam com frequência. Ses-
Tampouco exerce influência o tempo sonâmbulos. Traziam na face a pali- psiquiatra o que lhes havia sucedido, senta deles, ao fim de quatro dias,
de treinamento militar que o homem dez do terror; olhos vagos, boca lassa; e as razões do fenômeno, falando-lhes retornavam ao combate; e a inspe-
tenha tido. Homens selecionados, tremiam como se estivessem com em termos destinados a revigorar-lhes ção realizada, três semanas depois,
como sejam pilotos e tripulantes de frio; andavam com os joelhos a do- o eu. Em vez de submetê-los à situ- relativamente a 44 dos 60, mostrou
aviões de combate e bombardeio, po- brar como se não pudessem suportar ação de doentes, mantinha-se-lhes a que todos, com exceção de cinco, se
dem apresentar os mesmos sintomas. o peso do próprio corpo. Alguns não disciplina de soldados, deixando-os haviam portado convenientemente,
“A causa mais decisiva da exaustão podiam dizer uma palavra, senão a © johngomezpix/istock em contato com os homens das suas ainda em fortes refregas. Quase to-
© johngomezpix/istock

estará na luta íntima entre o desejo gaguejar. Como crianças em confu- próprias unidades. O fato é que mui- dos permaneceram em pleno serviço
de bem cumprir o dever e o instinto são, assustadas, estremeciam violen- tos se restabeleceram dentro de qua- ativo, até o fim da campanha, sem
poderoso que incita a poupar a vida. tamente ao mais leve ruído. E eram tro a cinco semanas, e alguns mesmo recaída. Os 35 que não melhoraram
Não nos esqueçamos de que o medo como crianças, no modo aflito como em poucos dias. ao termo dos quatro dias foram man-
é a reação normal do ser humano em pediam socorro. Mas uma conclusão se tirou: das dados para o hospital da base, onde a
perigo de morte. Todos os soldados Parecia que nunca mais consegui- vítimas de exaustão mandadas para grande maioria se refez em condições

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de ser aproveitada em serviços não estado em constante combate durante caso de um jovem tenente de infan- carregar feridos através de uma chuva
combatentes. muitos dias. Em Kasserine Pass, o sar- taria que foi arremessado ao ar por de granadas. Sem embargo, fizeram o
O major Hanson descreveu um caso gento do tanque, pondo a cabeça fora uma explosão de granada. “Quando serviço, entregando os pacientes ao
típico de angústia, com caráter grave: da torre, foi atingido no rosto por uma o recebemos, ele tremia da cabeça posto médico respectivo. Em seguida,
“No combate, perto de Sedjenane, um granada 88. O corpo, sem cabeça, caiu aos pés, e tudo o que conseguia dizer sentaram-se, rompendo em pran-
soldado de infantaria foi encontrado para trás, ao lado do condutor. Este era ‘Quem?’ Reconheceu um irmão, tos, numa crise histérica. Dentro de
a vaguear nas imediações, depois de parou o tanque, pulou fora, e deitou a também oficial, mas só por sinais quatro dias, um deles estava bom. O
haver suportado muito fogo, de ca- correr para um lado e para outro, tor- conseguia revelar-lhe o que tinha outro, porém, apresentou gaguez, tor-
nhões e bombardeios de mergulho. cendo as mãos. Trouxeram-no à nossa acontecido. Quando se fazia referên- nando-se a cura difícil. Casos como
Não falava, tremia fortemente, e bas- presença. Manifestava grande depres- cia a certos homens da sua compa- aquele do sargento que sentia a mão
tava se lhe tocasse em qualquer parte são física, e não continha as lágrimas. nhia, gemia, cobrindo o rosto com paralisada são também de um trata-
do corpo, ainda que fosse com o dedo, Demos-lhe sedativos, alimentação e as mãos, e em seguida suspirava e mento muito difícil e delicado.
para que redobrasse de agitação. Nós explicamos-lhe o que ocorrera. Decor- abanava a cabeça. Reconheceu tam- “Penso que os numerosos casos de
o pusemos na cama, o alimentamos ridos quatro dias, voltava ele à sua uni- bém a fotografia da mulher, conser- depressão, em que os homens sofrem
devidamente e lhe demos sedativos dade, e manteve-se na linha de frente o vando-a à cabeceira. Aplicamos-lhe pela impressão de terem falhado,
para dormir. Passadas duas semanas, resto da campanha.” o tratamento do costume. Ele porém mostram o alto senso geral, que pre-

D
o homem podia falar, mas também ria continuou deprimido; dizia que tinha domina, de responsabilidade e dever.
e gritava “Bombardeiros de mergu- epois de uma pausa, obser- falhado, deixara de cumprir o seu de- Os casos de simulação têm sido pou-
lho!” e escondia-se embaixo da cama. vou o major: “Naturalmente, ver, e nunca mais poderia voltar a sua cos. E não tem havido psicoses reais
Tocava harmônica, porém sempre a o ideal seria que os oficiais casa e encarar a esposa e os pais. – loucura – produzidas pela guerra. Os
mesma música: Maybe. E, quando to- do serviço médico atuassem “Tivemos muitos assim. Alguns únicos soldados atingidos por psicose
cava, caía em êxtase, e as lágrimas lhe ainda em tempo de evitar pensavam que haviam faltado aos são os que já traziam consigo prece-
corriam pelo rosto. propriamente que a exaustão domi- seus camaradas, ou que, por sua dentes de insanidade.
“Sob a narcose do pentotal, revivia nasse os pacientes, como aliás se pro- culpa, algum companheiro tinha mor- “Temos adiante de nós uma grande
as lembranças de guerra, e expandia- cede para com o pessoal dos aviões. rido. Em tal hipótese, mostram-se, em tarefa, e damos apenas os primeiros
-se a respeito. Descobrimos que ele Mas, numerosa e dispersa como é a geral, obstinados. É contudo espan- passos. Mas estamos tratando a exaus-
partira para a luta preocupado com a tropa de terra, não é possível fazê-lo. toso observar quantos destes rapazes tão com indiscutível êxito; estamos a
situação da mulher que estava grávida. Instruímos, todavia, os oficiais médi- ficam firmes, pela simples ação da arrancar homens ao terrível pesadelo
Maybe era justamente uma canção de cos em serviço nas linhas avançadas, força de vontade, levando o combate de ideias fixas que os atormentem, e
que esta gostava muito. O paciente res- habilitando-os a reconhecer os sinto- ao fim, para só depois manifestarem possam desintegrá-los mentalmente.
tabeleceu-se em quatro semanas de mas e interpretar os casos. Quando a os efeitos da exaustão. Houve dois pa- Nossos rapazes voltarão ao seio de
tratamento. Não voltará à frente, mas tropa se torna mais amadurecida, e dioleiros que trabalharam duramente suas famílias em boa forma, e não
poderá exercer atividades normais, e de alguma forma expurgada de per- ao longo de toda a campanha. Ainda como destroços cambaleantes de um
nenhuma desordem mental de caráter sonalidades menos fortes, o número quando esta se findava, coube-lhes sistema nervoso arruinado.”
permanente o transformará, depois da de casos vai diminuindo.”
guerra, em carga pública.” Algumas vezes, explicou o major
Referiu o major Hanson este outro Hanson, o restabelecimento é re- Provérbio persa
caso, mais simples: tardado em virtude ou por efeito de “A mão leve conduz o elefante por um fio.”
“Um jovem condutor de tanque tinha melancolia profunda. Contou então o annick cottreau

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Publicado em
março de 2017

A mente humana tem uma


aptidão para se recuperar
que antes era desconhecida.
Eis a história de um rapaz e
sua jornada de volta à vida.
por Stephen S. Hall, da revista new york

OOMILAGRE
MILAGREDO
DOCÉ
CÉ REBRO
REBRODE
DEDYLAN
118 edição especial
DYLAN © dylan coulter edição especial 119
DIA ZERO Apesar da fortaleza óssea que o envolve, o cérebro humano recorreriam a cronogramas padro-
nizados, e o prognóstico guiaria o
é muito vulnerável a lesões físicas. Todos os anos milhões de pessoas no tratamento. Mas, como admitem os
mundo sofrem lesões cerebrais traumáticas e, embora a maioria seja leve neurologistas, os primeiros prognósti-
ou moderada, milhares delas causam dano cerebral grave. Essas lesões cos são muito difíceis, os diagnósticos
têm muitas falhas e os cronogramas
sempre acontecem no mesmo dia: o dia zero, que marca o início de um que orientam a recuperação são re-
calendário de prognósticos fatídicos e muitas vezes falhos. futados por pacientes que não obe-
decem à estatística. Novas pesquisas
também indicam que muitos pacien-
Para Dylan Rizzo, 19 anos, o dia zero num poste telefônico. Dylan estava in- tes que parecem inconscientes têm
foi 28 de dezembro de 2010. Alto e ma- consciente. Sua respiração parecia o mais consciência do que se pensava e,
gro, com um senso de humor irônico, gorgolejar de um canudo num copo apesar da gravidade das lesões, uma
Dylan era louco por esportes: jogava quase vazio. Ele mal percorrera 200 probabilidade significativa de recu- 31-º dia: As incisões mostram onde partes
hóquei, competia em salto em altura metros antes de bater no poste, talvez peração. Em termos simples, a neuro- do crânio de Dylan foram removidas na
por sua escola de Lynnfield, Massachu- depois de derrapar no gelo. Não es- ciência está mudando o significado de cirurgia.
setts, e torcia pelos Boston Bruins. tava com o cinto de segurança. “caso perdido”.
Às 20h30, indo de carro para jogar Os socorristas levaram 8 minutos sejam contestadas por médicos e
videogame na casa do amigo Ryan, para tirá-lo de lá. Havia tanto sangue 2-º DIA pesquisadores.
Dylan ligou para a mãe. Não conse- e pele lacerada que os paramédicos Dylan tem uma família grande e é de
guia encontrar o controle do Xbox. não conseguiram inserir o tubo do cidade pequena. Para manter todos in- 5-º DIA
– Você sempre mexe nas minhas respirador durante os 29 minutos de formados, os pais Tracy e Steve Rizzo Na UTI, os Rizzos puseram para to-
coisas – disse ele. ambulância até Boston. No Hospital publicaram relatórios diários no site car um iPod com as músicas predi-
– Não mexo, não – respondeu Tracy Geral de Massachusetts, Dylan fez CarePages. “Dylan sofreu recentemente letas de Dylan. Algumas enfermeiras
Rizzo. uma tomografia e foi levado às pres- um acidente de carro”, começava a pri- achavam que Dylan não precisava de
Depois de desligar, a mãe achou o sas para a cirurgia. Os neurocirurgiões meira postagem. “Sua situação é está- estímulos, mas provavelmente não
controle no carro dela. removeram o lado esquerdo do crânio vel, porém ainda muito grave [...] Os importava. Em nível neurológico, o

foto páginas de abertura: © dylan coulter


foto páginas de abertura: © dylan coulter
– Liguei para Dylan – recordou e parte do lado direito para estan- três próximos dias serão difíceis, mas coma é como um sono profundo. O
Tracy. – Ele não atendeu. car as várias hemorragias cerebrais. ele está lutando muito para superar.” cérebro não estimulado fica adorme-
Ela mandou uma mensagem a Quando foi transferido para a unidade Na UTI neurológica, a definição de cido, esperando o sinal de um gera-
Ryan: “Quando Dylan chegar, diga neurointensiva, parecia uma esfinge consciência se reduz a duas condi- dor interno. Esse gerador reside em
que achei o controle.” de rosto inchado: os olhos fechados, ções: estar acordado (ou desperto) e vários “núcleos de estimulação” no
cortesia da família rizzo
Alguns momentos depois, Ryan te- a cabeça envolta em ataduras, com cortesia da família rizzo estar atento. O coma é a perda dessas tronco cerebral, em aglomerações de
lefonou para Tracy Rizzo e disse que agulhas espetadas, ligado ao ventila- duas características. Uma revelação células pouco maiores do que grãos
tinha acontecido um acidente. dor mecânico. O rosto se estilhaçara; recente é que os transtornos de cons- de sal. Quando estamos conscientes,
a perna esquerda estava quebrada. E ciência são dinâmicos; os pacientes essas aglomerações são nosso marca-
1-º DIA ele, em coma profundo. podem voltar do coma numa série de -passo neural, que nos mantém des-
Os socorristas encontraram a porta do Para avaliar a probabilidade de fases intermediárias cada vez mais pertos quando estamos acordados e
motorista do SUV de Dylan esmagada recuperação de Dylan, os médicos demarcadas, embora algumas ainda nos “desliga” para dormir.

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A mesma área controla outras fun- perdidos nos primeiros dias. De acordo reconheceria”, contou Tracy, as lágri- “Sabíamos que não era provável
ções autônomas do corpo, como com Giacino, pode demorar muito mas se acumulando. “Mas eles acha- ele ficar muito tempo em coma”, disse
respiração, batimentos cardíacos e re- mais do que isso para a probabilidade vam que não chegaria nem a isso.” Giacino, “porque quase ninguém fica
gulação da temperatura. O gorgolejo de recuperação ficar clara. A literatura Praticamente o único fator a favor em coma mais de duas semanas. E en-
inicial de Dylan indicava que o acidente recente indica que, se o paciente exibir de Dylan era a juventude. Depois que tão a pergunta é: o que teremos nesse
atingira a função do tronco cerebral, o qualquer forma de atenção consciente os médicos saíram, o pai de Dylan ponto?”
que poderia impedi-lo de acordar. Os em 60 dias, a probabilidade é conside- saiu correndo e segurou um deles.
médicos só saberiam quando fizessem ravelmente maior. Giacino é realista e – Olhe só – disse ele –, não preci- 17-º DIA
uma ressonância magnética, depois sabe que dificilmente alguém – família, samos de tempo para pensar. Vocês Dylan abriu os olhos.
que ele ficasse mais estável. médicos, planos de saúde – pode espe- precisam fazer todo o possível... O que Ele passara do coma para o estado
rar todo esse tempo. você faria se o filho fosse seu? vegetativo, uma situação de incons-
8-º DIA Quando examinaram as imagens – Queremos fazer tudo – respondeu ciência desperta: olhos abertos, mas
No mesmo dia da primeira ressonân- da ressonância de Dylan, os médicos o médico. mente fechada. O tronco cerebral
cia de Dylan, o neuropsicólogo Joseph ficaram chocados com as lesões. Em Tracy e a irmã ficaram na sala de re- começara a mandar impulsos para
Giacino fez um exame chamado Escala um acidente de trânsito, o impacto faz uniões e choraram durante meia hora. o resto do cérebro acordar, mas ele
do Coma. Ele abriu os olhos de Dylan o cérebro ricochetear dentro do crâ- “Quando sairmos daqui, não vamos ainda não tinha consciência.
para ver se havia algum sinal de acom- nio. “Isso corta ou, literalmente, rasga contar nada disso a ninguém”, disse Durante décadas, pesquisadores
panhamento visual. Não havia. Dylan os axônios, os fios que enviam sinais Tracy à irmã e ao marido. como Giacino encontraram indícios
fez 1 ponto na escala, que chega a 23. de uma parte a outra do cérebro”, E não contaram. “Saímos e, quando de que sinais sutis de consciência não
Diretor de neuropsicologia de reabi- disse o neurologista Brian Edlow, da familiares e amigos perguntaram são percebidos em pacientes suposta-
litação do Hospital Spaulding e auto- equipe que tratava de Dylan. A resso- como tinha sido a reunião, responde- mente vegetativos. Eles propuseram
ridade em transtornos de consciência, nância mostrou fios arrebentados por mos: ‘Foi boa. E vamos fazer todo o uma nova categoria de diagnóstico,
Giacino foi chamado para avaliar o toda parte. Em suas anotações, Gia- possível por Dylan’.” o estado minimamente consciente.
caso de Dylan. Ele pertence ao nú- cino escreveu que “a probabilidade Muitos clínicos consideraram pacien-
mero crescente de especialistas que de recuperação da independência 15-º DIA tes vegetativos e minimamente cons-
chamam atenção para o perigo que de- funcional, vocacional e social é baixa”. Dylan usava uma rede de eletrodos na cientes como “portadores de lesões
nominam avaliação apressada na pre- cabeça para acompanhar a atividade cerebrais sem esperança de recupe-
visão do que acontecerá com pacientes 10-º DIA cerebral. Nada penetrava em sua es- ração”, mas essa visão está mudando,
com traumatismo craniano. Os familiares de Dylan reuniram-se curidão neural, mas isso não impedia pois a tecnologia permite aos pesqui-
Num estudo feito em centros cana- numa sala com os médicos, que lhes que tivesse “convulsões”, ou seja, a sadores perceber atividade consciente
denses de traumatologia, os pesqui- mostraram os exames. “Eles ficavam chamada atividade simpática paroxís- em pessoas que não têm sinais exter-
sadores relataram que um terço dos dizendo, em cerca de 90% do que es- tica; os pacientes com lesões cerebrais nos de consciência.
pacientes que chegaram à emergência távamos olhando: ‘Esta área nunca vai costumam suar profusamente e ter pi- De acordo com dois estudos, em
com lesões cerebrais traumáticas gra- se recuperar, essa nunca vai se recu- cos de febre e mover os membros em cerca de um terço dos casos os pacien-
ves morreram. Metade morreu nas pri- perar’”, Steve recordou. espasmos. Outro transtorno provoca tes minimamente conscientes recebem
meiras 72 horas. Em quase dois terços “Eles nos disseram que ele nunca sede extrema e micção. Os pais leram o diagnóstico errado de vegetativos.
dessas mortes precoces, os tratamen- mais poderia morar em casa, que mensagens para ele e lhe disseram “Na verdade, 30% a 40% dos consi-
tos de suporte foram suspensos, indi- provavelmente ficaria internado e te- que os Bruins tinham mandado uma derados inconscientes retêm alguma
cando que os casos foram considerados ria momentos de clareza em que nos camisa autografada. E aguardaram. atenção consciente”, disse Giacino.

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25-º DIA 43-º DIA 45-º DIA
Uma das grandes tensões no acom- Como o cérebro de Dylan fez a tran- Dylan ainda ia e vinha. Às vezes, pa-
panhamento da luta do paciente para sição para a consciência? Pesquisas recia prestar atenção; outras, ficava
recuperar a consciência é a lacuna indicam que a consciência começa a desligado. Em meados de fevereiro, os
entre a experiência dos médicos, que ressurgir quando as partes do cérebro Rizzos levaram para o hospital o con-
observam o paciente de forma inter- que recebem informações sensoriais trole do Xbox. Quando o puseram em
mitente, e a observação dos familiares, restabelecem o contato com os lobos suas mãos, ele o fitou alguns minutos.
que ficam ali do lado, vendo tudo sem frontais, que interpretam as informa- Então, começou a apertar os botões e
saber interpretar o que veem. Sempre ções e atuam sobre elas. Depois que mexer no joystick. Uma enfermeira lhe
havia algum parente com Dylan. Tracy Dylan foi transferido da UTI para um entregou um tubo de protetor labial.
largou o emprego para passar as noites quarto, os Rizzos ligaram a TV em pro- Ele o levou aos lábios. Mas para a fa-
com ele; Steve, empreiteiro, passou a gramas que sabiam que o filho gosta- mília o maior progresso veio da con-
sair mais cedo do trabalho. No restante ria, como jogos de hóquei dos Bruins fluência espontânea de equipamento
do tempo, três avós e mais 70 familia- ou de basquete dos Celtics. Certa noite, médico com humor juvenil. Dylan an-
res mantiveram a vigília constante. os Bruins estavam jogando, e os dois dava puxando o tubo plástico que se 45-º dia: Passos na direção da mãe com a
goleiros começaram a brigar. Dylan ligava à sua traqueia. Para distraí-lo, a ajuda de dois terapeutas.
27-º DIA prestou atenção. “Ele não tira os olhos família lhe deu um tubo curto de bor-
Dylan passou dias tendo convulsões. da TV”, contou a família. “Está me- racha. Em certo momento, Steve pegou convulsões tão violentas que chegaram
Tracy e a mãe ficaram ao lado dele, e xendo a boca, tentando dizer algo.” a outra ponta do tubo e soprou, fa- a falar em levá-lo de volta ao trata-
Tracy limpava o suor da testa do filho. zendo um barulho de pum. Dylan riu. mento intensivo.
Então algo extraordinário aconteceu: 44-º DIA Para Tracy, foi um vislumbre não só de
Tracy foi limpar a cabeça dele e Dylan Os médicos de Dylan fizeram uma consciência, mas de personalidade: 60-º DIA
levantou a mão. Quando ele fez isso segunda ressonância. O resultado ex- “Todos pensamos: Meu Deus! Ele No fim de fevereiro, Dylan foi transferido
pela segunda vez, ela pôs o pano na traordinário foi que parte dos axônios sabe o que é um pum! Ele ainda está aí!” para o Hospital Spaulding de Reabilita-
mão dele e disse: “Dylan, limpe você lesionados tinha começado a se recu- Certa sexta-feira, os fisioterapeutas ção. Ainda considerado minimamente
mesmo.” E o rapaz começou a limpar perar. “Até onde sabemos”, observaram vieram pôr Dylan em pé. Apoiado ne- consciente, ele se sentava na cama com
a boca e o nariz. os médicos mais tarde, “esse tipo de re- les, Dylan deu alguns passos camba- ajuda; conseguia responder sem pala-
versão ainda não foi descrito em exa- leantes na direção de Steve. Quando vras a perguntas biográficas com cerca
33-º DIA mes de neuroimagem serial nem em pai e filho estavam frente a frente, de 75% de acerto; e obedecia a ordens
Na quinta semana, Dylan começou a casos com lesões em axônios de tama- Dylan estendeu os braços, e os dois se simples cerca de 40% das vezes.
mostrar mais sinais de que recuperava nha extensão.” O processo de reparo, abraçaram. “Dylan acariciou as costas
a consciência do mundo exterior. Os chamado de plasticidade, é muito mais do pai, para cima e para baixo, e de- 65-º DIA
olhos seguiram um espelho em mo- robusto nos cérebros jovens do que pois lhe deu um tapinha no ombro”, Dylan começou a estagnar. Estava agi-
vimento. Quando o médico apertou nos velhos, explicou o neurologista escreveu a família no blog. “Dava para tado e inquieto. Tinha surtos de fortes
suas unhas, Dylan tentou tirar a mão. Edlow. Uma revelação das pesquisas ouvir a queda de uma lágrima.” contrações musculares involuntárias
Ele passara para o estado minima- recentes são os indícios de que lesões Segundo Giacino, as reações emo- nos braços e nos pés, que causavam
mente consciente, aumentando no graves podem ativar mecanismos de cionais também são pistas precoces uma dor insuportável, o que a família
mesmo instante a probabilidade de desenvolvimento neuronal que nor- da volta da consciência. percebeu quando os médicos puseram
recuperação. malmente acontecem na infância. No dia seguinte, Dylan piorou e teve uma válvula sonora no tubo traqueal

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198-º DIA 271-º DIA Dylan sorriu. A lembrança mais
Dylan entrou no estado de confu- Dylan passou dois meses em outro visível da lesão era um leve afunda-
são pós-traumática. Reconhecia o centro de reabilitação antes de voltar mento da têmpora esquerda e duas
cachorro, mas não sabia a hora nem para casa. Começou a caminhar com linhas lustrosas de pele nua que co-
o ano. Conseguia conduzir a cadeira o andador e conseguia subir alguns meçam no alto da testa. Hoje com 23
de rodas até o lado de fora (usando degraus, mas tinha dificuldade com anos, ele é funcionalmente indepen-
capacete), mas não sabia onde es- tarefas cognitivas. No 366-º dia, um dente. É auxiliar voluntário do treina-
tava. A ressonância mostrou que a exame do cérebro confirmou a exten- dor de corrida de sua antiga escola,
substância branca continuava a sa- são da recuperação e a permanência ajuda o pai em projetos de construção
rar, mas ele permanecia desorien- de outras lesões. No lobo frontal es- e espera frequentar a faculdade. Con-
tado. Os pais passaram filmes que querdo, parte do tecido tinha atro- tinua precisando de terapia cognitiva
Steve achava horríveis, mas de que fiado e não se recuperaria. Ainda e fonoaudiológica.
Dylan gostava: Beerfest. Ace Ventura: assim, num evento para levantar re- “Dylan ainda tem problemas de
um detetive diferente. O âncora. Dy- cursos em julho, ele dançou. memória, organização e gerencia-
1.460-º dia: Compras numa loja de lan riu nas partes certas, e também mento do tempo”, disse Tracy.
cervejas especiais.
reagia aos jogos de hóquei quando 746-º DIA Ele não se lembra de nada nos seis
marcavam gols. Certa vez, quando Dylan foi subir uma parede de esca- meses anteriores ao acidente e nos sete
para que Dylan conseguisse vocalizar. Dylan parecia estar dormindo, a tia lada. Os Rizzos mandaram o vídeo a meses posteriores. Ele é funcional, mas
A primeira coisa que ele fez foi chorar. contou à mãe uma piada suja. Dylan Giacino, que o mostra em palestras do jeito fervente de alguém de vinte e
explodiu em gargalhadas. sobre a recuperação de pacientes que poucos anos. Quando saímos para al-
97-º DIA atingiram o estado minimamente moçar, Dylan pediu uma amostra de
A pedido dos pais, Dylan foi trans- 208-º DIA consciente 60 dias depois da lesão. É microcervejas (“O neurologista diz
ferido para o andar da pediatria. Ele Enfermeiras, pacientes, médicos e a personalização viva de sua defesa da que ele pode tomar uma ou duas”, ex-
começou a melhorar. Reabilitar um cé- interessados se reuniram na recep- paciência. “O que isso nos revela”, disse plicou Tracy). Em casa, pedi para ver
rebro minimamente consciente é pare- ção para uma festa de despedida. No Giacino, “é que a história não termina seu quarto. Dylan subiu a escada sem
cido com recapitular a infância. Dylan vídeo, Dylan está numa cadeira de em doze meses.” esforço e me levou até lá. Havia um
reaprendeu atividades básicas: levan- rodas, acenando e sorrindo. O sorriso Dylan pertence a um número cres- televisor de tela plana e um bastão de
tar-se, andar, vestir uma camisa. Em é tão deslumbrante quanto antes do cente de pacientes que desafiam a lacrosse encostado num canto. A cama
alguns dias, se mostrava bem coope- acidente, mas o aceno tem um atraso probabilidade. “Não sabemos quantas estava feita, e Steve abriu o armário
rativo; em outros, não se concentrava. de dois segundos, quase em câmera exceções à regra existem”, diz Giacino. para mostrar as camisetas penduradas
lenta. Esse dia é a primeira coisa de “Portanto, não acredito mais na regra.” e ordenadas pela cor. “Não havia nada
142-º DIA que ele se lembra desde o acidente. aqui antes do acidente. Ficava tudo no
As enfermeiras da fisioterapia puse- “Sair daquilo foi como se eu estivesse 1.541-º DIA chão”, disse ele, rindo. “Reprogramar o
ram Dylan diante de um espelho e es- dormindo e voltasse à vida”, expli- “Impecável”, dizia Dylan. Estávamos cérebro até que dá certo.”
creveram no vidro com um marcador: cou ele depois. “Foi no último dia no na casa dos Rizzos, e ele descrevia seu
“Dylan adora os Yankees” e “Bruins Spaulding que me senti vivo.” quarto. A mãe falava sobre as mudan- Dez anos depois, Dylan continua a fa-
são ruins”. Dylan pegou um apagador Antes de sair do hospital, ele atingiu ças do filho. “Ele é a mesma pessoa”, zer progressos. Ele dá palestras sobre
e limpou os insultos – “bem depressa”, mais um marco: disse a primeira pala- disse Tracy. “Só mais organizado. Ele sua recuperação e a superação das di-
disseram os pais, “até para Dylan”. vra desde o acidente. era bagunceiro antes do acidente.” ficuldades e planeja tornar-se DJ.

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