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NATAL
2022
LORENNA ARACELLY CABRAL DE OLIVEIRA
NATAL
2022
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Universidade Federal do Rio Grande do Norte - UFRN
Sistema de Bibliotecas - SISBI
Catalogação de Publicação na Fonte. UFRN - Biblioteca Setorial do Centro de Ciências Humanas, Letras e Artes -
CCHLA
BANCA EXAMINADORA
__________________________________________
Prof.ª Dr.ª Valquíria Aparecida Passos Kneipp – UFRN
Orientadora
___________________________________________
Profº. Drº. Marcelo Bolshaw Gomes – UFRN
Membro Interno
___________________________________________
Profº. Drº. Hélcio Pacheco de Medeiros – UFRN
Membro Externo
___________________________________________
Profª. Drª. Suelly Maria Maux Dias – UFPB
Membro Externo
Dedico este trabalho aos meus pais, que
não pouparam esforços para que eu
pudesse realizar o sonho de me tornar
uma pesquisadora.
AGRADECIMENTOS
Esta pesquisa analisa a presença da técnica storytelling aplicada nos podcasts narrativos -
contemplando estratégias utilizadas para a construção de narrativas. O objeto de pesquisa
consiste na quarta temporada do podcast Projeto Humanos – O Caso Evandro. A produção
apresenta uma investigação aprofundada do assassinato do garoto Evandro, questionando
a veracidade dos acontecimentos, bem como, a autoria do crime. A série jornalística põe
em diálogo o gênero true crime com o formato storytelling. Essa pesquisa compreende
além dos episódios do podcast, os elementos parassonoros (KISCHINHEVSKY E
MODESTO, 2014) que compõe a enciclopédia do Caso Evandro. A pesquisa analisou
como se configura o processo de produção da técnica storytelling aplicada aos podcasts e
em que medida os elementos parassonoros são utilizados para compor a narrativa. A base
teórica do estudo parte do conceito de podcast, discute a composição das produções em
áudio no formato storytelling (VICENTE E SOARES, 2021) e como os elementos
parassonoros (KISCHINHEVSKY E MODESTO, 2014) complementam a narrativa
central do podcast. O objetivo deste trabalho foi analisar a técnica de storytelling utilizada
na produção do Caso Evandro e como essa estratégia auxilia a narrativa do podcast. Como
procedimentos metodológicos, utilizamos uma abordagem multimétodos que se apoia nas
fases exploratória, descritiva e explicativa, e se desdobra neste estudo na utilização das
ferramentas de análise de conteúdo (BARDIN, 2011) e estudo de caso (YIN, 2001). A
análise permitiu considerar que o podcast ocupa na atualidade papel importante na
construção de narrativas em áudio, através de seus formatos e técnicas utilizadas e trabalha
a fim de construir o universo narrativo através da linguagem radiofônica e elementos do
storytelling, bem como, com a utilização de elementos parassonoros.
This dissertation analyzes the presence of the storytelling technique applied in narrative
podcasts ー contemplating strategies used for the construction of narratives. The research
object is the fourth season of the podcast Projeto Humanos – O Caso Evandro. The
production presents an in-depth investigation on the murder of the boy Evandro, and
questions the veracity of the events, as well as the authorship of the crime. The journalistic
series puts the true crime genre into dialogue with the storytelling format. In addition to
the podcast episodes, it is also understood the parasound elements (KISCHINHEVSKY
AND MODESTO, 2014) that comprise the encyclopedia of the “O Caso Evandro”. The
research analyzed how the production process of the storytelling technique applied to
podcasts is configured and to what extent the parasound elements are used to comprise the
narrative. The theoretical basis of the study starts from the concept of “podcast”, discusses
the composition of audio productions in the storytelling format (VICENTE AND
SOARES, 2021), and how the parasound elements (KISCHINHEVSKY AND
MODESTO, 2014) complement the central narrative of the podcast. This work aimed to
analyze the storytelling technique used in the production of “O Caso Evandro” and how
this strategy assists the narrative of the podcast. As methodological procedures, a
multimethod approach was used, based on the exploratory, descriptive, and explanatory
phases, and unfolded into this study from the use of Content Analysis (BARDIN, 2011)
and Case Study (YIN, 2001). The analysis considered that the podcast currently occupies
an important role in the construction of audio narratives through its used formats and
techniques. Moreover, it also works to build the narrative universe through radio language
and storytelling elements, as well as parasound elements.
INTRODUÇÃO
1 O livro “O caso Evandro: Sete acusados, duas polícias, o corpo e uma trama diabólica” de Ivan Mizanzuk
foi lançado em junho de 2021 pela Happer Collins Brasil.
2 A série documental “O Caso Evandro” em nove episódios, original Globoplay (2021) em parceria com a
uma busca rápida pela rede social Facebook encontramos pelo menos 3 grupos privados
sobre o podcast criados em 2019 e que variam entre 2 mil e 14 mil participantes3 .
Relatos de crimes reais geram muito interesse do público. Biressi (2001) explica
que o interesse ocorre através da tentativa de capturar a experiência peculiar de certos
acontecimentos e as consequências para os envolvidos, da forma mais verdadeira possível.
Portanto, seguindo essa vocação natural de contar histórias, os podcasts de crimes reais
tornaram-se bastante comuns. O surgimento do gênero True Crime como uma forma de
prestígio cultural em várias mídias - da televisão aos filmes e séries, aos livros e podcasts
- oferece uma oportunidade atraente para investigar um gênero específico que midiatiza
conteúdo jornalístico e investigativo como crimes em série, desaparecimentos,
assassinatos, feminicídios e outros.
Kischinhevsky (2018), aponta que os mais populares abordam crimes ou envolvem
investigações marcadas por controvérsias, sempre histórias reais que tiveram alguma
cobertura da imprensa, mas não com a devida profundidade. Tal envolvimento parte em
muito do cenário no qual, Caso Evandro prosperou. O programa carrega a marca de outros
sucessos e acontecimento presentes na cultura pop atual como, Serial 4 (2014). Bonini
(2015) afirma que um grande número de programas se destacou nesse grupo inicial de
produtores de rádio narrativo que trabalhavam em emissoras públicas americanas, sendo a
série investigativa de Sarah Koenig o caso mais popular. Haja vista, é sabido que a escuta
de podcast tem uma distribuição de cauda longa (ANDERSON, 2006), com os grandes
sucessos liderando o caminho.
Diante disso, reconhecer o Projeto Humanos e o seu protagonismo no Brasil, e
possivelmente na América Latina, nos posiciona no cenário conceitual sobre podcast
narrativo no mundo, pois com a ausência de emissoras públicas, o papel determinante no
cenário nacional é dos atores independentes, sem vínculo com empresas de mídia
hegemônica e/ou comercial, sendo o idealizador Ivan Mizanzuk e como consequência o
Caso Evandro, o representante desse movimento que se conecta ao público com um modelo
autossustentável e conquista o espaço até então disponível no ambiente digital.
O trabalho tem por foco analisar o podcast a partir da lógica de uma mídia em
ascensão, a partir da noção de ecologia midiática (SCOLARI, 2015). Essa metáfora
ecológica aplicada aos meios de comunicação admite duas interpretações: primeiro, que
eles constituem um ambiente que modifica a nossa percepção e cognição; segundo, que as
mídias são espécies que vivem em um ecossistema e estabelecem relações entre si e com
os seus usuários. Neste sentido, os meios assumem papéis distintos dos que antes possuíam,
e complementares entre si.
O conceito de rádio expandido (KISCHINHEVSKY, 2016) compreende o rádio
como um meio que extrapola as ondas hertzianas. Dessa forma, o rádio se expande para
além do aparelho tradicional, tal como, nos dispositivos móveis, TV por assinatura,
internet, redes sociais, webrádios, podcasts, entre outros. O rádio, ao inserir-se na cultura
da convergência, “foi forçado a se reinventar mais uma vez e, surpreendentemente, mostrou
maior capacidade de reação do que outros meios de comunicação” (KISCHINHEVSKY,
2016, p. 13). E uma dessas revoluções palpáveis de se investigar é justamente a nova
roupagem pela qual o rádio expandido (KISCHINHEVSKY, 2016) e hipermidiático
(LOPEZ, 2010), assume através do podcast.
Essa pesquisa nasce no contexto do aumento do interesse sobre os podcasts no
Brasil. De acordo com dados divulgados pela PodPesquisa 5 , realizada pela Associação
Brasileira de Podcasters (ABPOD) em 2018 - ano de lançamento da quarta temporada do
Projeto Humanos, havia mais de 2 mil programas ativos no Brasil. Paralelamente ao
aumento da produção, cresce também o número de ouvintes. Fato corroborado pela
pesquisa Kantar Ibope (2021), que afirma que 31% dos ouvintes com acesso à internet ou
com aplicativos de áudio ouviram podcasts (pesquisa avaliou o período de três meses
daquele ano) - um aumento de 32% em relação ao ano de 2020 6 , o que confirma a
relevância e o crescimento do interesse dos brasileiros em relação a esse tipo de narrativa
digital. Esses dados colaboram para que o podcast seja percebido como uma tendência
global, relacionada a utilização dos recursos da linguagem sonora e radiofônica.
A abordagem pesquisada compreende o podcast enquanto uma forma cultural que
se baseia nas novas formas de sociabilidade e na construção de uma rede de identificações
culturais, valorizadas e prestigiadas pelos usuários (HERSCHMANN;
KISCHINHEVSKY, 2007). Ocorre que com a possibilidade de usos diferenciados,
permitiu que qualquer usuário pudesse criar seu próprio conteúdo sob demanda. É através
dessa prática social comunicativa onde são estabelecidas novas formas de mediação
sociocultural.
Logo, facilitado pelo acesso aos smartphones, tornou-se na atualidade para uma
grande maioria de pessoas a principal maneira de consumir conteúdo em áudio. Da mesma
forma, as transformações nos aplicativos de escuta teriam um importante papel nas formas
de experimentações da mídia sonora digital (MORRIS; PATTERSON, 2015).
No caso do objeto dessa pesquisa, histórias reais humanizam emoções complexas e
mostram exemplos de comportamento humano sob ameaças e como as pessoas mudam
com o tempo. Elas tornam o assunto mais claro e significativo para o seu público ouvinte.
À primeira vista, o Caso Evandro é um drama em áudio que narra um evento imersivo,
onde um garoto comum sofre um horror indescritível. Apesar disso, também é a história
dos acusados que confessaram o crime sob tortura. Ambas as histórias são seguidas por um
jornalista investigativo cavando seu caminho através de uma teia de perguntas sem
respostas.
Com o foco nessas transformações, deslocamos nossa atenção para um elemento
crucial na narrativa do Caso Evandro e que parece, inicialmente, ser o responsável por
organizar em todos os níveis e conduzir a história: o storytelling. “Vivemos em um mundo
mediado por informações que, unidas, constroem narrativas” (MUSSE, FERNANDEZ,
2017, p. 2). Ao utilizar a técnica storytelling para contar histórias de uma forma que capta
a atenção e envolve o público, o formato oferece um design de áudio que eleva a
experiência de imersão, transformando a narrativa de forma significativa. Incorporando,
desta forma, uma nova prática social na produção de conteúdo sonoro.
Storytelling é uma palavra em inglês que pode ser definida como a arte ou atividade
de escrever, ler ou contar histórias, segundo o Cambridge Dictionary7 . Como podemos ver
nesta tradução do original inglês, optamos nesta pesquisa por não traduzir o vocábulo. A
razão considera alguns fatores como: a aceitação do termo para definir um campo de
estudos mais abrangente; e o fato de não existir uma palavra de tradução direta ao conceito.
Não se referindo a uma mídia específica, em sua tradução literal é algo como “contar
histórias”. A possível tradução de “Storytelling” para “Contação de história”, poderia
remeter a prática pedagógica de narrar histórias na educação infantil. Por essas razões, Ivan
Mizanzuk, idealizador e produtor do podcast o caso Evandro, opta por sua aplicação em
inglês. Nessa pesquisa, o storytelling pode ser interpretado como storytelling sonoro, no
qual a narrativa ocorre através do som, que contempla um roteiro reflexivo infundido em
uma dimensão sonora.
O termo é utilizado para construir narrativas com base na habilidade de contar
histórias, como ressalta a definição feita pela National Storytelling Network (2022):
“storytelling é a arte interativa de usar palavras e ações para revelar os elementos e as
imagens de uma história, incentivando a imaginação do ouvinte” 8 .
Aqui vale ressaltar que, embora o vocábulo storytelling não esteja - ainda -
incorporado à língua portuguesa de acordo com o acordo ortográfico da língua portuguesa,
mantido pela Academia Brasileira de Letras, sendo ainda um estrangeirismo, optamos por
não utilizar o termo em itálico, reservando este recurso para ênfases no texto, haja vista,
que este conceito refere-se a principal abordagem teórica e tem seu uso recorrente nessa
pesquisa. É preciso distinguir que, nesta pesquisa, o significado assumido pelo termo
storytelling por vezes pode assumir a perspectiva de técnica ou de formato. Afinal de
contas, o que é storytelling? Percebe-se, nas definições, certa tendência em considerar
como uma arte de contar histórias, ou seja, um conjunto de técnicas narrativas para
construção de uma história. Nessa perspectiva, pode ser entendido como um recurso, ou
seja, um meio que utiliza elementos que auxiliam o detalhamento dos acontecimentos de
um texto narrativo.
Isto posto, nessa pesquisa especificamente, atua como técnica quando incorporar a
aplicação desse conceito para a construção do fazer narrativo; será formato quando o
resultado da aplicação dessa técnica resultar num produto, seja um episódio ou série com
personagens, conflitos e arcos narrativos que conferem significado as intencionalidades
narrativas.
O storytelling, de modo amplo, pode ser aplicado por meio de vários formatos.
Tomando emprestado o aforismo de Marshall McLuhan (1911-1980), neste caso o meio é
a mensagem, já que o meio é um recurso sonoro transformador que reorganiza experiências
de maneiras únicas. Portanto, a utilização do storytelling em mídias sonoras une a
possibilidade de contar histórias relevantes com técnicas que permitem criar a sensação de
uma narrativa atrativa e onde o público se sinta imerso (VIANA, 2020a).
Para a escolha do podcast que compõem o corpus, delimitou-se a análise da
temporada que investiga os personagens e eventos sob uma lógica narrativa estruturada
8No original: “Storytelling is the interactive art of using words and actions to reveal the elements and
images of a story while encouraging the listener’s imagination” (NETWORK, 2022).
17
com uma técnica que utiliza recursos que mantém o ouvinte atraído o tempo todo. O uso
da produção de som é uma das características do Caso Evandro que imprime identidade ao
programa, o silêncio, sua trilha musical, depoimentos gravados, narração e efeitos sonoros
são combinados de uma maneira harmoniosa. Ao contrário de outros podcasts em que há
interação entre mais de uma pessoa, Ivan Mizanzuk narra sozinho e conta o caso em
primeira pessoa, como um narrador padrão. Utilizando a voz num tom confessional, tecendo
comentários e suas indagações fruto da sua consciência. Ele levanta questões, interroga e faz
observações.
A aplicação correta da sua entonação e o ritmo com que as palavras são proferidas
confere emoção ao roteiro. Esses componentes conseguem imprimir ritmo e originalidade
para a obra. Lindgren (2016) atribui a popularidade do formato narrativo em podcasts ao
envolvimento dos apresentadores, que têm em comum uma abordagem mais pessoal ao
contar as histórias. São essas transformações que vão organizando a escuta e dando
significação aos personagens e seus respectivos atos.
Identifica-se que ao ressignificar as “maneiras de fazer” (CERTEAU, 2000), o
podcast faz uso dessa forma de composição para expressar tecnicidades relacionadas ao
processo narrativo. A partir disso, a escolha do Caso Evandro se mostrou adequada por ser
o podcast que congrega, enredo forte, personagens interessantes, pesquisa sólida e uma
estrutura narrativa definida a partir do modo de produção (WILLIAMS, 2011) evidenciado
pelo recurso storytelling.
Posto isso, a pesquisa realizou um estudo de caso a partir da análise da quarta
temporada do Projeto Humanos – O caso Evandro. As formas narrativas e os processos
midiáticos que se instauram no âmbito da produção e técnica desta temporada são
fundamentais para que pudéssemos fazer uma análise dos podcasts narrativos de forma
mais complexa e representativa, a fim de tecer uma definição delimitadora e sistemática do
formato storytelling como prática social. Partindo dessa compreensão, esta dissertação
possui potencial comunicacional, pois utiliza novas formas e linguagens para aprimorar
esse recurso de áudio, possibilitando uma relevante contribuição no estudo desta nova
prática social.
O objetivo foi, assim, por um lado, analisar a técnica storytelling aplicada em
podcasts, e, por outro, relacioná-lo a uma ampla produção de obras centradas em
radiojornalismo narrativo em podcast (KISCHINHEVSKY, 2018) cuja classificação,
define serem histórias relatadas quase que como numa grande reportagem e tem como foco
as produções que carregam a narrativa como eixo central do relato jornalístico. Tendo em
18
vista que, apesar dos estudos reconhecerem o formato storytelling como uma técnica, e as
características próprias dessa narrativa não ficcional, precisamos, em um primeiro
momento, organizar seus conceitos, corpus e peculiaridades próprias. Depois, tendo em
mãos essas ferramentas, fazer uma análise da estrutura do formato, descrevendo os
elementos e como eles contribuem para a construção do universo narrativo.
Como primeiro passo na delimitação do formato storytelling, a pesquisa optou por
partir dos mesmos princípios de que a técnica, posteriormente, será utilizada para tentar
rastrear as particularidades pertinentes a essa categoria.
De modo, que com o cenário em constante evolução e o surgimento dos
podcasts, esta nova plataforma de distribuição de conteúdo que além de utilizar
linguagem similar ao empregado no rádio, aplicam técnicas narrativas que aumentam o
envolvimento emocional do ouvinte e transformam em uma experiência mais imersiva.
Contudo, apenas recentemente o formato começou a se popularizar no Brasil. Lançado em
2015, o podcast Projeto Humanos é considerado um dos pioneiros desse formato.
Diante do exposto, o ponto nodal da presente pesquisa foi: como se configura o
processo de produção da técnica storytelling aplicada aos podcasts tendo como foco a
quarta temporada do Projeto Humanos – O Caso Evandro e em que medida os elementos
parassonoros são utilizados para compor essa narrativa?
Pelo fato da técnica storytelling aplicada aos pod casts possuir características
próprias que compreende um estilo e elementos específicos, trabalhamos com a hipótese
que esse formato de podcast propicia a criação de nova identidade narrativa que articula
uma linguagem própria para o meio sonoro; e considera tanto as técnicas
literárias/narrativas como a textura sonora, apresentando uma experiência informativa e
imersiva.
A partir da relação entre podcast, formato e storytelling, e de observações prévias
realizadas sobre o podcast selecionado, destacou-se como objetivo geral: analisar a técnica
storytelling utilizada na produção do Caso Evandro e como essa estratégia auxilia a
construção da narrativa deste podcast. Norteamos a pesquisa de acordo com três objetivos
específicos: investigar nos episódios quais os principais elementos da técnica storytelling
praticada pelo Caso Evandro; classificar as principais características da estrutura narrativa
na quarta temporada do podcast Projeto Humanos; compreender e analisar os elementos
parassonoros disponibilizados através da enciclopédia e como eles contribuem na
construção do universo narrativo no podcast Caso Evandro.
19
9Os smart speakers são um sistema de inteligência artificial de voz e avançam em seu aprendizado de
acordo com o uso dado a eles (KISCHINHEVSKY, LOPEZ, 2018).
20
10No original: “[...] Overall, what this symposium offers us as scholars is an opportunity to reflect that what
may make podcasting successful is not its status as a radio disruptor (as some of the early discourse predicted),
but rather as a platform that has breathed new life into established, and in some cases largely forgo tten tropes
and forms”.
22
O termo podcasting foi utilizado pela primeira vez no artigo Audible Revolution, de
12 de fevereiro de 2004, escrito pelo jornalista britânico Ben Hammersley para o jornal
The Guardian, que indagava:
11 É a sigla em inglês para Rich Site Summary ou Really Simple Syndication, uma forma simplificada de
apresentar o conteúdo de um site.
12 No original: “Adam Curry’s main role in podcasting was the popularization of the medium. His Daily
and weblogging an established part of the internet; all the ingredients are there for a new boom in amateur
radio. But what to call it? Audioblogging? Podcasting? GuerillaMedia?”. Disponível em:
https://www.theguardian.com/media/2004/feb/12/broadcasting.digitalmedia . Acesso em: 22 jun. 2021
23
14No original: “El feed RSS es un documento de texto en el que se recogen los datos básicos de una sucesión
de publicaciones: El nombre de la obra, su descripción, su autor, los títulos de las entregas que lo componen,
sus descripciones, y dónde podemos encontrarlas”.
24
15 Em trabalho pioneiro, Gisela (2005), destacou as questões relacionadas ao consumo dos arquivos sonoros
digitais (KISCHINHEVSKY, 2011).
16 No Original: “media content delivered automatically to a subscriber via the Internet ”.
26
A palavra, que até poucos anos era desconhecida da maioria das pessoas, foi
classificada e organizada de acordo com suas características de produção. Ao longo dos
anos, conforme o quadro, podemos perceber que os autores buscaram construir um
significado que evidenciasse as diferenças entre os termos. Embora, podcast e podcasting
sejam vocábulos utilizados para se referir ao formato, ambos indicam ideias diferentes.
Assim, para compreendermos os termos e partindo do pensamento de McLuhan,
junto a outros ecólogos da mídia como ressaltam Strate, Braga, Levinson (2019, p. 45), “ao
dizer que o meio é a mensagem, McLuhan está nos dizendo para trocar a figura pelo fundo,
a mensagem pelo meio. Geralmente ignoramos o meio e prestamos atenção apenas ao
conteúdo, mas é o meio que tem maior impacto em nossa vida”.
O que fica evidente no uso do podcast, que pode ser utilizado tanto para o
entretenimento quanto para o se informar, porém, tudo isso será insignificante diante da
revolução sonora causada pelo uso do podcasting, a partir das práticas criadas com essa
tecnologia. Essa inovação tornou o conteúdo sonoro muito mais acessível, permitindo o
público a possibilidade de ouvir onde quiser, como quiser e quando quiser, como também
participativo já que qualquer pessoa pode produzir um podcast e distribuir pela internet.
De modo que, o podcasting é a prática cultural e social de produção e consumo de conteúdo
sonoro digital (BONINI, 2020), que envolve suas formas de circulação, interação e
características. Sendo mais amplo e complexo que o próprio podcast. E o podcast é o
produto (episódio ou série) resultado dessa prática social, conforme figura 2:
27
Revista Vocêpod, estamos mostrando ao mundo que o Brasil está se preparando para
acolher esta nova ‘mania’ que é o podcast” (SILVA, 2005, p. 4).
Os podcasts brasileiros se assemelhavam aos programas americanos e tinham
pouquíssimas edições remetendo aos programas ao vivo de rádio. Os programas buscavam
utilizar trilha e efeitos sonoros que valorizavam a presença do locutor. Esses programas em
áudio eram voltados para os jovens com pautas leves, repletos de humor (LUIZ, 2014).
Apostando nesse formato surge em abril de 2006 o podcast Nerd Connection, que
mais tarde veio a se tornar conhecido como, Nerdcast. O conteúdo em áudio compõe o blog
Jovem Nerd, criado em 2002 por Alexandre Jovem Nerd Ottoni e Deive Azaghal. O
formato baseia-se em uma conversa informal sobre temas gerais do ponto de vista do nerd,
que podem variar entre ciência, inovação, tecnologia e entretenimento, sempre com humor.
Atualmente é um dos mais antigos podcasts em exercício na podosfera brasileira, estando
entre os mais ouvidos, foi o primeiro podcast brasileiro e o terceiro do mundo a atingir a
marca de 1 bilhão de downloads17 , e o mais premiado. Além disso, é o caso brasileiro mais
citado em bibliografia acadêmica (FREIRE, 2015).
Desde 2010 o tema podcast é presença marcante nas ed ições da Campus Party
Brasil. O evento focado em inovação, criatividade, ciências e empreendedorismo reuniu
nesse ano numa banca extraoficial, dezenas de produtores numa participação conjunta em
diversos programas e a criação de um site Campus Metacast, que concentrava a divulgação
através de blog e feed RSS de episódios que tivessem a campus party como tema ou foram
produzidos durante o evento (LUIZ e ASSIS, 2010).
No ano seguinte, a bancada de Podcasters realizaram uma Maratona Podcastal, a
hashtag #maratonapod foi tão comentada que chegou ao trending topics do Twitter. Em
2012, a campus party disponibilizou um estúdio totalmente equipado, visando a geração
contínua de conteúdo durante o evento, o Cubo Geek. A programação exclusiva foi
transmitida por streaming. Diversas atividades ocorreram, entre elas o Podcast Tutorial
Live (tutoriais sobre podcast), gravação de podcasts ao vivo, além de 10 podcasts
escolhidos entre os inscritos puderam usufruir do horário de experimentação
(BONASSOLI, 2016).
A tradição de podcasters no evento se confirma na edição 2020 com a criação da
Arena Podcast, coordenado pela Abpod com palestras voltadas para o conteúdo em áudio.
18 A pesquisa foi realizada entre os dias 13 e 23 de abril de 2022 e está disponível no endereço eletrônico:
https://www.mobiletime.com.br/pesquisas/uso-de-apps-no-brasil-junho-de-2022/. Acesso em 22 jul 2022.
32
Figura 3: Busca pela palavra Podcast no Brasil de 2004 até julho 2021
De forma resumida, Viana e Chagas (2021, p. 14) argumenta que, “os eixos
estruturais nos ajudam a compreender melhor os componentes dos podcasts para além dos
35
gêneros e formatos, já que estes dois, quando especificamente relacionados a esta mídia,
estão em constante mutação e experimentação”.
O objeto de estudo desta pesquisa se enquadra no eixo categorial narrativas da
realidade ou radiojornalismo narrativo em podcasting (KISCHINHEVSKY, 2018), pois se
propõe a relatar histórias de crimes reais. Assim, após esse breve levantamento das
principais propostas de classificação e dos podcasts, passaremos ao estudo específico do
gênero true crime empregado na temporada aqui analisada.
A expressão True Crime quer dizer crime de verdade ou crime real, mas costuma
ser utilizado sem tradução, em inglês. Segundo Gaspar (2013, p. 1) “o ‘crime real’ é um
gênero literário de não ficção em que o autor examina um crime verídico e constrói uma
narrativa sobre as ações das pessoas envolvidas no caso”. Ocorre de forma recorrente no
meio literário, podcast e audiovisual, onde um crime verdadeiro é esmiuçado, mostrando o
detalhamento das ações de pessoas reais e a sua investigação, onde “são promovidas como
histórias de entretenimento, apesar dos seus conteúdos sérios e pesados” (GASPAR, 2013,
p. 1).
Oriundo da literatura, a origem do true crime moderno, tem como marco inicial,
para alguns autores, a obra A Sangue Frio (1966), de Truman Capote (1924 -1984). O
grande atrativo foram as mudanças das passagens dos meros relatos de crime para o estilo
novelístico atual (GASPAR, 2013). Capote, em entrevista à Plimpton em 1966, explica a
escolha de um crime como tema do seu livro; “sendo o coração humano do jeito que é,
assassinato era um tema que provavelmente não iria ser obscurecido ou envelhecer com o
tempo” (PLIMPTON, 1966, on-line, tradução nossa)19 . Em síntese, A Sangue Frio relata
os acontecimentos posteriores ao assassinato de da família Clutter em sua casa em
Holcomb no Kansas.
As narrativas de crimes são tão antigas quanto a criação do mundo relatada na Bíblia
Sagrada. Em sua obra Punnett (2018, p. 5-6) observa que quando Caim matou seu irmão
Abel e tentou encobri-lo, “um motivo foi estabelecido, o assassinato foi cometid o, um
No original: “(...) the human heart being what it is, murder was a theme not likely to darken and yellow
19
with time”.
36
encobrimento foi tentado, o crime foi resolvido, e o perpetrador foi levado à justiça – com
Deus como o primeiro detetive de homicídios”.
Esse tipo de relato foi se perpetuando ao longo dos séculos. Histórias sobre
assassinatos e outros tipos de violência reais começaram a ser impressas em panfletos
durante o século XVI e XVII para assegurar a ordem pública. Os relatos jornalísticos de
atos criminais, pelo menos no mundo ocidental, sugerem uma concepção mais antiga de
pecado, ligando suas histórias a uma mensagem cristã (GASPAR, 2013).
Em 1773, no Reino Unido, George Wilkinson publicou The Newgate Calendar que
surgiu como uma compilação de diversos crimes da época, incluindo detalhes do dia-a-dia
particulares aos envolvidos e diferente dos panfletos, eram feitas em edições bem-
acabadas, consideravelmente mais caras e destinadas a uma burguesia capaz de pagar por
seus custos (SILVA, 2019).
Nos Estados Unidos, essa narrativa começou nas revistas policiais, segundo Scaggs
(2005) as revistas pulp impressas em papel de baixo custo, eram publicações semanais
baratas e de capas extravagantes, destinadas a atrair um público interessado em histórias
consideradas sensacionalistas e melodramáticas, “a revista True Detective, em específico,
foi pioneira em apresentar histórias baseadas em crimes reais, circulando nos Estados
Unidos entre 1924 e 1995” (BORGES, 2017, p. 26).
Nesse sentido, “como uma vertente definida, o true crime se organizaria apenas no
século XX” (SILVA, 2019, p. 69). Aqui no Brasil, na década de 70 e 80, relatos de crimes
dominavam o rádio através do radialista Gil Gomes, que já naquela época utilizava-se de
técnicas narrativas para descrever os personagens e cenários dos crimes, sempre repetindo
frases e acompanhados de uma trilha sonora de suspense que despertava sensações ao
aumentar o volume conforme o desenrolar dos fatos. Para Martins (2009) a forma de narrar
e dramatizar os fatos, consagrou estilo de diversos radialistas, tudo isso aliado a uma
estrutura semelhante à de uma novela radiofônica para noticiar os crimes.
As histórias sobre crimes reais incluem assassinatos geralmente em série, crimes
hediondos, casos misteriosos e atos bárbaros. O enfoque varia entre a mente do criminoso,
a cena do crime e os acontecimentos do caso – incluindo detalhes sobre as investigações e
as falhas que possam ter ocorrido –, os investigadores, as vítimas, explicação do método
do criminoso (o modus operandi), o julgamento e a condenação. Gaspar (2013, p. 07)
ressalta que “o crime real é um testemunho e um embelezamento da violência bruta”.
As obras em sua maioria são documentais com abordagem jornalística, incluindo
entrevistas, áudios do processo, gravação em tribunais/salas de audiência, reportagens e
37
20Também conhecido como whodunit é um recurso narrativo utilizado nas histórias policiais que significa
“quem fez isso?”, referindo-se ao culpado do assassinato na trama. (MAYER, 2010).
38
22 No original: “Investigative or true-crime podcasts require huge investments of time and resources and
should not be lightly undertaken”.
23 Disponível em: https://noticias.uol.com.br/podcast/uol-investiga/. Acesso em: 17 a go 2022.
41
Ao passo que o vício dos ouvintes em casos arquivados, crimes não identificados
ou suspeitas de condenações injustas, contendo descrições exageradas dos acontecimentos
e narrando cenas sanguinárias, as investigações amadoras pelos podcasters continua, pois
“não existe uma teoria abrangente que determine o que é e o que não é crime verdadeiro” 28
(PUNNETT, 2018, p. 02, tradução nossa).
Segundo Punnett (2018), existe sete critérios comuns ao gênero. Porém, nem todo
produto de crime verdadeiro exibirá todos os fatores. O primeiro tema, teleologia, é
relacionado por todo o gênero. Dessa forma, assume-se que toda narrativa de crime
verdadeira seja verdadeira ou, ao menos, pretenda ser não-ficção, “há um pacto implícito
sobre essas produções que deve ser respeitado, o fato de tratar-se de casos reais” (VIANA,
PERNIZA JR, 2020, p. 4). Outros códigos incluem a busca de justiça (com foco nas
vítimas); subversão do status quo (por exemplo, questionar vereditos ou interrogar normas
sociais); geográfico (onde a localidade e a hora dos eventos são essenciais para a narrativa);
forense (os elementos sistemáticos e científicos da criminologia); elementos vocativos (por
exemplo, narradores não neutros) e folclóricos (apelo emocional ou mensagem moral da
história).
No entanto, o relato de histórias sobre crimes reais e seus desdobramentos pode
conduzir o ouvinte a caminhos equivocados ao apresentar informações cuidadosamente
selecionadas, porém, incompletas e em alguns casos, dando voz apenas a uma versão dos
fatos. Alguns podcasts relatam estar educando a sua audiência sobre o funcionamento do
sistema judiciário criminal, ainda que seus programas possam influenciar a opinião pública
sobre os processos judiciais.
Além disso, existe uma longa lista de críticas sobre os princípios morais desses
programas, “devido à mediação e representação que o gênero proporciona dos
acontecimentos criminais na sociedade, acabam por surgir algumas problemáticas éticas e
críticas que não podem deixar de ser abordadas” (GASPAR, 2013, p. 6), como a constante
exploração de crimes envolvendo mulheres.
28 No original: “there is no overarching theory that determines what is and what is not true crime”.
43
A partir do ano 2020, inúmeros podcasts sobre crimes reais surgiram na podosfera
brasileira, o que possibilitou o ganho da importância na produção deste gênero. Nesse
campo, alguns dos mais conhecidos exemplos, tem a opção de cobrir um novo caso a cada
episódio, tal como o Modus Operandi29 e 1001 crimes30 , ou apresentam uma história ao
longo de uma temporada, no caso Evandro, por exemplo, cada uma dessas possibilidades
moldou o gênero à sua maneira.
Alguns são resultados de jornalismo investigativo profundo; como a produção da
Folha de São Paulo, A mulher da casa abandonada 31 , e outros, como a produção Praia dos
Ossos32 , mudaram completamente a maneira como pensamos sobre a narrativa de crimes.
Embora possa não se encaixar no estereótipo do crime verdadeiro, não há como negar que
os podcasts produzidos pela Rádio Novelo 33 , Praia dos Ossos e Crime e Castigo 34
incentivaram as discussões sobre gênero e justiça a partir de crimes reais na sociedade. Há
ainda os produzidos por veículos de comunicação, o Ficha Criminal do UOL 35 , ou até
internacionais traduzidos para o português, como a série original Assassinos em Série36
produzida pelo Spotify Studios.
Conforme foi exposto, os podcasts sobre crimes reais são parte integrante do
cenário de mídia e abordam desde tragédias a mistérios. Entretanto, ainda que existam em
abundância e abordem casos mais antigos e menos notórios, é necessária uma habilidade
investigativa que contemple pesquisa, especialistas, contexto e ética de trabalho para serem
realizados.
Uma variedade de versões em áudio, com técnicas de narração e trilha sonora sobre
histórias de crimes verdadeiros, foram refinadas e utilizam a técnica storytelling com
grande efeito e popularidade na atualidade, como será abordado no próximo capítulo.
Há algo sobre contar histórias que transcende a língua que falamos. Contar histórias
está na essência do ser humano. A narrativa sendo uma característica inerente da linguagem
humana, organiza os pensamentos e confere significado ao conectar fatos e experiências.
A existência humana é em si uma grande narrativa construída sobre muitas outras
narrativas concomitantes, complementares ou divergentes, porém em constante diálogo
(FERNANDES, 2019). A narrativa do Caso Evandro tem como foco a abordagem do crime
e outras várias tramas entre elas a intolerância religiosa, o sistema criminal brasileiro e a
tortura.
As narrativas nos moldam e nos transformam, partimos da ideia que o storytelling
é a capacidade de contar histórias a partir de narrativas envolventes. Para isso, compreende
que os podcasters são contadores de histórias e que a narrativa em áudio compreende em
certa maneira um encaixe de palavras que utiliza com destreza de elementos como efeitos
sonoros, música e silêncio para criar uma estrutura imersiva. O Caso Evandro recorre a
várias estratégias de storytelling e aproveita as potencialidades do áudio para o uso dessa
técnica, propiciando uma narrativa atrativa, em que os ouvintes experienciem a
imersividade.
Dessa forma, o terceiro capítulo inicia com uma breve abordagem sobre narrativas,
para em seguida aprofundar os fundamentos do storytelling aplicado ao áudio e como esta
técnica foi transformada pelo podcasting. O outro subcapítulo discorre sobre os elementos
parassonoros que compõem as narrativas sonoras sobre crimes, buscando entender de que
maneira esses recursos surgiram para agregar valores ao formato em áudio.
para a espécie humana e reproduziu conhecimentos por meio de artes rupestres, ao redor
de fogueiras, em tábuas e pedras com inscrições milenares, em pergaminhos e livros com
relatos e experiências que perduram de geração em geração. Ainda que se faça isso
naturalmente, compreende-se a importância do papel de contar histórias na constituição do
homem como um ser social. Para Barthes (2013, p. 19), “a narrativa está presente em todos
os tempos, em todos os lugares, em todas as sociedades; a narrativa começa com a própria
história da humanidade”.
Os primeiros estudos sobre a narrativa começaram entre 335 a.C. e 323 a.C., na
Grécia Antiga, com Aristóteles, em um conjunto de anotações que ficou conhecido como
Poética. O manual para criação de formas narrativas apresenta “uma sistematização sobre
o discurso literário, na qual são discutidas a natureza da poesia e suas espécies, critérios
distintos de imitação narrativa, gêneros e verossimilhança” (ARAÚJO, M., 2011, p. 72).
Sua análise da vida no teatro através da tragédia e da comédia foi tão completa que
influenciou inúmeras teorias sobre narração e escrita de relatos literários e até hoje, sua
obra ainda remete à compreensão da narrativa.
Atualmente se consome mais narrativas do que em qualquer outro momento ao
longo da trajetória histórica. Seja o que se vê na internet, anúncios, músicas, todos contêm
narrativa (GLASS, 2009). Pois, vale registrar que narrativas nada mais são do que histórias.
De forma simples, pode ser definida como a apresentação de uma sequência de eventos,
cuja disposição no tempo implica conexão casual. Sendo composta por duas partes: a
fábula, que consiste no conteúdo da história; e a narração, que consiste no modo como esse
conteúdo é contado (MARCONDES FILHO, 2009), produzindo significados visando
atrair, envolver e convencer o interlocutor por meio de uma troca de sentidos (MOTTA,
2013).
A ordenação sequencial de eventos do início ao fim, conhecido por narrativa,
possuem características e elementos próprios tais como enredo, personagens, tempo,
espaço, foco narrativo, etc. Hergesel (2020) destaca algumas vertentes estruturalistas
distintas, porém complementares para se entender uma narrativa:
Uma maneira de refletir sobre narrativas é como uma história pode ser contada.
Araújo (2011) informa que a partir da segunda metade do século XX, os estudos dos
teóricos Roland Barthes, Claude Bremond, Gérard Genette, A. J. Greimas e entre outros,
iniciaram uma mudança radical nos pressupostos conceituais da narrativa. “Com isso, a
narrativa deixa de estar associada apenas à linguagem verbal escrita, para ser encarada
como um fenômeno universal, amplamente vasto, susceptível de apresentar-se sob
diferentes suportes e em tempos diversos” (ARAÚJO, B., 2011, p. 4).
O produtor e apresentador do programa de rádio This is American Life, Ira Glass
(2009), em uma entrevista a Current TV relatou sobre os dois blocos básicos para construir
uma história a ser contada através dos meios de comunicação. Glass descreve o que ele
denomina de anedota que, na verdade, é uma sequência de ações. Algo como, isso estava
acontecendo, isso levou a isso e depois disso, veio a seguir. Onde não importa o quão
desinteressante seja uma ação, se ela é colocada em cadeia sequencial, dá a impressão de
que algo interessante está para acontecer e que a história caminha para uma direção onde
algo será descoberto. O outro bloco de construção refere-se à reflexão, que consiste em
levantar questões e respondê-las gradualmente. Sendo necessário intercalar os dois blocos
para criar momentos de ação e reflexão:
por que estou perdendo tempo ouvindo essa história? você tem as duas
partes da estrutura, você tem a anedota e o momento de reflexão, e muitas
vezes você terá uma anedota que simplesmente mata, [...] isso é tão
interessante, mas no final não significa absolutamente nada, não lhe diz
nada de novo. E às vezes sabemos que temos algo aqui, algo meio
atraente, mas simplesmente não parece se encaixar, e muitas vezes é seu
trabalho ser implacável e entender que ou você não tem uma sequência
de ações ou você não tem um momento de reflexão e vai precisar de
ambos (GLASS, 2009, Tradução nossa) 37 .
37No original: “Why am I wasting time hearing this story? you have the two parts of the structure, you have
the anedocte and the moment of reflection, and often you'll have an anedocte t hat just kills, [...] that is so
interesting, but in the end it means absolutely nothing,it doesn’t tell you anything new. And sometimes we
know we have something here, something kind of compelling but it just doesn’t seem to become together...
and often it's your job to be kind of ruthless and understand that either you don't have a sequence of actions
or you don't have a moment of reflection, and you're going to need both”.
47
Para Field (2001), a estrutura em três atos tem como estratégia mostrar os destaques
de uma boa história reunindo as diferentes partes, como ações, cenas, entrevistas,
descrições que compõem a construção narrativa e os personagens (figura 4).
Comparato (2000, p. 369) afirma que “dentro dos três atos estão situados os eixos
sobre os quais giram os acontecimentos é que propulsionam a história para um estágio
superior”. Nesse sentido, o Ato I ou início, sendo uma unidade de introdução, para
apresentar a história e seus principais elementos como personagens e situações. O Ato II
ou meio é a confrontação sendo representada pelos problemas. Field (2001, p. 15) afirma
que “sem conflito, não há personagem; sem personagem, não há ação; sem ação, não há
história; e sem história, não há roteiro” e por fim, o Ato III, ou Resolução. Field (2001)
lembra que resolução não significa fim e sim solução. Não sendo, portanto, necessário um
final feliz.
Após apresentar a teoria geral sobre a prática narrativa, algumas reflexões em
relação aos modelos clássicos de construção de enredos, neste ponto, serão feitas a
aplicação da técnica à realidade do contexto sonoro. No áudio, a narrativa ganha espaço na
ficção (audiosséries, radionovelas), no radiojornalismo (reportagens, audiodocumentários,
narração de fatos) e de modo específico, nos podcasts.
Vicente e Soares (2021) compreende que o conceito de narrativa é definido como
mais abrangente que o de storytelling. Ao fazer isso, aqui surge o storytelling como “uma
das estratégias utilizadas na construção de narrativas por meio de palavras, imagens e sons,
mas não esgota todas as possibilidades contidas no ato de contar histórias” (VICENTE,
48
SOARES, 2021, p. 258). De modo que, Mcsill (2013, p. 31) esclarece que o “storytelling
é a arte de contar uma história, ou seja, por meio da palavra escrita, da música, da mímica,
das imagens, do som ou dos meios digitais”.
Isso posto, o storytelling deve respeitar regras e normas (estrutura), porque essa é a
única maneira de obter uma (boa) narrativa que influenciará o público. Em consonância,
Palacios e Terenzzo (2016, p. 87) afirmam que o storytelling enquanto técnica é um
processo que pode ser aprendido, pois “existem regras que não podem ser quebradas para
que o seu mecanismo funcione”.
Segundo Xavier (2015) é possível definir o storytelling conforme três pontos de
vistas diferentes: pragmática, pictórica ou poética.
Ao longo de toda a história do rádio, o veículo tem dado provas que é um meio
propício para contação de histórias. Esta qualidade é exemplificada na célebre
dramatização de “A Guerra dos Mundos”, por Orson Welles e sua equipe, em 1938. Na
época a rádio CBS, nos Estados Unidos, realizou uma transmissão, que era, na verdade,
uma apresentação de radioteatro e causou o pânico em mais de um milhão de seus ouvintes.
Adaptando uma ficção, The War of the Worlds, do escritor inglês Herbert George Wells,
que utilizou de todos os recursos do radiojornalismo, como entrevistas com autoridades,
reportagens externas e narrou a possível invasão do planeta por alienígenas (MEDITSCH,
2008).
No período conhecido como “Época de Ouro do Rádio” (ORTRIWANO, 1985),
Santos (2016), destaca que o rádio brasileiro viveu uma fase de apogeu e desenvolveu seu
maior potencial criativo. Foi diante da influência de importantes dramas radiofônicos
americanos que as produções brasileiras, normalmente seriadas, passaram a utilizar o
recurso de dramatização da realidade (SANTOS, 2016). Uma das principais produções
baseadas em fatos reais dramatizados, O Crime não compensa, exibido pela Rádio Record
entre o final dos anos 1940 e início dos anos 1950, reconstituía cenas de crimes e “tinham,
portanto, uma característica documental, uma natureza de não-ficção" (GUERRINI JR.,
2013, p.25).
A estrutura narrativa nas produções radiofônicas como as radionovelas, seriados,
radioteatros e até os recentes podcasts narrativos não ficcionais carregam internamente uma
série de critérios norteadores da técnica storytelling. Nesse contexto, o uso da técnica
revelou um nicho no mercado para boas e bem contadas histórias em formatos que já não
encontravam espaço no rádio hertiziano, como o podcast.
Desde o seu surgimento no início dos anos 2000, o podcasting firmou-se como uma
mídia favorável para experimentações em áudio: de um lado, as produções no estilo
metáfora do rádio (MEDEIROS, 2006) e, por outro, pelo uso alternativo da mídia nas
experimentações sonoras, de formatos e gêneros. Conforme Palacios e Tererenzzo (2016,
p. 40) “toda vez que aparece um novo meio de comunicação — e essas ferramentas cada
vez mais estão vinculadas à tecnologia — os olhos do mercado se voltam para ele, em
busca de novas formas de diálogo com a audiência”.
50
McHugh (2022) explica que podcasts bem executados podem alcançar uma
intimidade única, aprimorada quando você ouve por meio de fones de ouvido e alimentada
pelo poder afetivo da voz com os apresentadores dos programas. Essa conexão dá aos
podcasts uma sensação de autenticidade valorizada porque estabelece uma produção de
empatia e emoção por intermédio do poder afetivo do som e da voz.
As rádios públicas americanas desempenharam um papel fundamental na criação
de um ecossistema de podcasts narrativos. Criado em 1995, This American Life é um
programa de rádio semanal americano de uma hora apresentado por Ira Glass e produzido
pela WBEZ. Com foco em jornalismo de não ficção, apresenta relatos de pessoas comuns
sobre acontecimentos que marcaram suas vidas. Semanalmente, Glass segue um tema e
52
compartilha as histórias como “pequenos filmes para rádio” (THIS AMERICAN LIFE,
2022).
Desde 1999, quando a American Journalism Review declarou que o programa
estava “na vanguarda de uma revolução jornalística” 39 , surgiu uma geração de podcasts e
programas de rádio utilizando as lições sobre jornalismo narrativo e servindo de referência
para outros produtos em áudio ao redor do mundo. Como Radiolab, no ar desde 2002, é
um programa documental narrativo com temas científicos, filosóficos e políticos. Cada
episódio com uma hora de duração, normalmente trata de um tópico específico e o investiga
de vários ângulos diferentes. Destaca-se pelo design de som inovador, intercalando
informações e música. Ganhador de dois prêmios Peabody40 , está entre os podcasts mais
ouvidos dos EUA. Outros exemplos de podcasts narrativos influenciados por This
American Life são Invisibilia, StartUp, Reply All, Snap Judgment, Love + Rádio,
Heavyweight.
De forma geral, McHugh (2022) destaca que os podcasts narrativos contam com
enredo, personagens, voz e som. “Eles também precisam de uma estrutura forte para
suportar um formato episódico” (p. 14, tradução nossa)41 . No podcast, o conceito no que
se refere a mensagem pode seguir algumas abordagens; cada episódio do programa como
uma narrativa independente ou uma série de episódios de podcasts formando uma
temporada.
Para Nuzum (2019) existem três categorias narrativas, sendo: 1) narrativa sazonal:
contada ao longo de vários episódios, seu arco narrativo emerge ao longo de uma
temporada ou um período designado. Essa característica está presente na quarta temporada
do Projeto Humanos - O caso Evandro; 2) narrativa episódica: cada episódio do programa
contém uma única história contada ao longo desse produto e ainda; 3) narrativas múltiplas:
um único episódio contém várias histórias narrativas (por vezes combinadas em um tema
unificador). Todas podem ser formas eficazes de narrar uma história, depende do formato,
do assunto e da maneira como será contada.
Silva e Oliveira (2020) caracterizam podcasts storytelling como narrativas em série,
geralmente divididos em temporadas que apresentam roteiro bem construído e com
Fonte: Elaborada pela autora com base nas informações de Mizanzuk (2020).
44No original: “A successful focus sentence is the most basic, bare bones version of your narrative arc.
You’ve got a motivated character that’s on some kind of journey, a journey set off by an event, some kind
of change of circumstances. That’s what the “but” in the focus sentence points to”.
56
45 Jornalista de rádio integrou as equipes de This American Life e Planet Money, fundador da red e de podcasts
Gimlet Media.
46 No original: “I’m doing a story about X. And what’s interesting about it is Y”.
47 No original: “Someone is motivated to do this thing he’s doing because of this… but then this happens,
and so he has to do this… And therefore, this…which leads to this…and finally, you won’t believe it, but
THIS… And the reason this matters to everyone walking the face of the earth is THIS”.
57
As fórmulas narrativas não são necessariamente uma inovação, mas a forma como
os podcasters as recombinam contribui para que o produto final se apresente de forma
absolutamente nova. Assim, em resumo a premissa básica das fórmulas, fundamenta-se na
ideia de que:
48No original: “The focus sentence is a baby narrative arc. The XY Story Formula will tell you the hook:
why will you listen? What’s odd or unusual or surprising about the situation or events of the story? The
Soren encapsulates the major chronological points of the story (and demands that the events in question be
fucking unbelieveable)”.
58
O poder do áudio como artifício para contar histórias por intermédio do podcast
permite ao ouvinte visualizar essas cenas em sua cabeça e viajar com o interlocutor através
da sua jornada sonora, proporcionando uma experiência imersiva. “As cenas consistem em
imagens, imagens que existem apenas na mente do ouvinte, mas evocam lugares (onde as
coisas acontecem) e ações (o que acontece lá)” (NUZUM, 2019, p. 114, tradução nossa) 50 .
E isso vem do princípio mais básico da narrativa, o qual é: mostre, não diga. Que consiste
em apontar detalhes da trama que o ouvinte desconhece, em detrimento de apenas falar.
Contadores de história em áudio recomendam ter parcimônia ao ato de descrever, o ideal é
empregar uma descrição contextualizada utilizando fatos e ações.
As cenas contêm personagens. Os personagens estão no centro das narrativas; eles
são os indivíduos que seguimos na jornada de cada história. Os personagens podem ser
pessoas, animais, objetos ou lugares que acompanhamos durante toda a história. As lições
que aprendem, os desafios que enfrentam e os sentimentos que sentem será compartilhado
pelo público. O desenvolvimento do personagem impulsiona o processo da narrativa. Pode
se dizer que, algumas importantes narrativas em áudio que surgiram nos últimos anos
foram construídas com base em um jornalismo literário, focados em personagen s
(VICENTE, SOARES, 2021).
O arco do personagem é influenciado pelas possíveis escolhas e motivações para
superar os obstáculos e levá-los a ação. “Ação são os atos literais iniciados pelos
personagens em busca de algo” (NUZUM, 2019, p. 117, tradução nossa) 51 . Através da ação
surgem os obstáculos e/ou dilemas, todos esses fatores contribuem para tornar não somente
a cena, como os personagens e a histórias mais complexos e, consequentemente, mais
profundos e interessantes. Ainda que, nem sempre a trama seja encerrada com um desfecho
favorável, a resolução é um elemento intrigante na narrativa e sua ausência só funciona
caso seja proposital (NUZUM, 2019).
49 No original: “Great audio stories contain SCENES. Scenes contain CHARACTERS. Characters have
MOTIVATIONS. Motivations lead them to ACTION. They encounter RESISTANCE. The story has
RESOLUTION. Ultimately, the story has a LESSON. And the best stories offer TWISTS”.
50 No original: “Scenes consist of images, images that exist only in the listener’s mind, yet evoke places
Nuzum (2019), destaca que “toda história tem uma moral” (p. 119, tradução
nossa) 52 , ainda que essa lição seja óbvia ou implícita, todas carregam consigo uma
mensagem a ser aprendida. Porém, as melhores histórias têm reviravoltas. A partir dessa
afirmação, pode-se deduzir que uma boa reviravolta é um item essencial para o
desenvolvimento da narrativa (NUZUM, 2019).
O storytelling, portanto, utiliza elementos próprios de uma narrativa clássica – ação,
conflito, superação desse conflito –, de modo que após compreendermos a utilização dos
elementos e blocos de construção da história, partimos ao entendimento de como unir todos
de modo coerente, através do roteiro.
Os podcasts narrativos investem no roteiro como recurso para contar uma história
de maneira memorável. São diversos elementos como trechos de entrevistas, personagens,
cenas, falas e ações espontâneas, construídos sobre um arco narrativo que auxiliam na
narrativa.
A construção do roteiro é considerada um processo central nesse tipo de produção,
haja vista é nessa estrutura que são listados todos os itens ou recursos para narrar uma trama
envolvente. Para além de empregar uma linguagem descritiva para colocar o ouvinte em
vários locais, o roteiro em áudio carrega uma grande diferença do roteiro para ser lido ou
assistido. E essa é, muitas vezes, a etapa mais difícil da produção de um episódio. Um
roteiro para ser ouvido deve agrupar algumas particularidades como clareza e naturalidade
ao falar, sentenças curtas seguida de pequenas pausas que permita aos ouvintes absorver o
que ouvem, tudo isso intercalando várias camadas de sons (músicas, efeitos sonoros,
ambiente natural e silêncio) para criar uma subjetividade (McHUGH, 2022).
É artifício também do áudio dissociar tempo e espaço, de modo que nas narrativas
sonoras, todos os níveis espaciais e temporais podem ser rapidamente conectados ou
alterados. Essa escolha oferece possibilidades criativas onde a trama pode desenvolver-se
descontinuamente sem seguir uma linha cronológica (PREGER, 2019).
Narrativas em áudio têm atenção especial em sua ambientação, a fim de criar uma
experiência, oferecem um mergulho nos sons utilizando material de gravação autêntico
como também, detalhes sonoros intrigantes acerca da trama. Para Schafer, a paisagem
sonora pode ser “um ambiente real ou uma construção abstrata qualquer, como
composições musicais, programas de rádio, etc.” (1991, p. 274-275). A atmosfera criada a
partir da paisagem sonora consegue transmitir além dos sons, sentimentos e sensações,
53No original: “In Radio und Podcast wird der Erzähler fast immer als echte Person erkennbar sein. Allein
durch seine Stimme”.
61
muito impactantes. Embora, fique claro, cada programa requer seu próprio nível único de
detalhes na edição.
Independentemente disso, o áudio como forma de contar histórias ainda está em
evolução. Assim, encerrando-se a exposição dos conceitos aqui elencados, essenciais para
a fundamentação da definição do storytelling aplicado ao meio sonoro, nos lançaremos ao
estudo dos aspectos teóricos dos elementos parassonoros que podem complementar o
áudio.
54
No original: “Radio’s flirty first cousin, podcasting, arrived quietly as a techinnovation in 2001[...]”.
63
que podem variar de textos, fotografias, documentos judiciais e vídeos que complementam
a narrativa central do episódio. Os textos estão interconectados com links e hiperlinks que
permitem a maior contextualização da informação. Em diversos episódios a fotografia é a
ferramenta que contextualiza o conteúdo histórico ao oferecer imagens e recortes de jornais
para ilustrar o enredo do áudio.
É importante ressaltar do emprego de fotografias, pois estas dispõem de recursos
imagéticos que comunicam tanto quanto um texto escrito e/ou falado. Os vídeos
disponibilizados pela enciclopédia são registros dos acontecimentos produzidos por outros
meios de comunicação ou pela polícia. Parte desses conteúdos em vídeo foram
digitalizados e são a versão completa de confissões ou entrevistas que foram parcialmente
transmitidos pelo podcast.
Em Personagens, estão listados em ordem alfabética 208 pessoas que, de alguma
forma, estão envolvidos na história. Em Polícias, são apresentadas as, quatros instâncias
policiais envolvidas, o grupo AGUIA da polícia militar, grupo TIGRE da polícia civil, o
Serviço de Investigação de Crianças Desaparecidas - SICRIDE e a Polícia Federal.
O uso dos elementos parassonoros pode abrir a possibilidade de permitir que as
pessoas que precisam de mais informações obtenham rapidamente caso precisem de algo
ou talvez alguma explicação de fundo. E esse tipo de uso permite que os elementos
colaborem para o entendimento geral da história ou a informações mais aprofundadas sobre
personagens, cenários e tramas. A pesquisa entende que o podcast Caso Evando constrói
narrativas distintas daquelas veiculadas somente pelo sonoro e possibilita formas de escuta
particulares ao integrar elementos parassonoros.
67
56 É uma rede de podcasts com os mais variados temas, criado em 2011 por Ivan Mizanzuk, Marcos Beccari
e Rafael Ancara. No seu início, era um programa dedicado a falar sobre design, comunicação e cultura.
57 Disponível em: https://www.projetohumanos.com.br/especiais/ph0/. Acesso em 25 out 2021.
68
teve quando criança em Curitiba. Após ser bem recebido pelos ouvintes do Anticast, o que
serviu de estímulo para a criação da primeira série de programas no estilo de temporad as,
tendo em vista o tempo de produção. Mizanzuk em entrevista ao Rodrigo Tigre para seu
livro relata como iniciou o podcast: “Foi, então, uma questão de juntar o que eu gostava no
áudio com o que eu gostava de ler e contar histórias e como adaptar tudo isso para o áudio.
E daí nasceu o Projeto Humanos” (TIGRE, 2021, p. 35-36).
A primeira temporada do Projeto Humanos, denominada As Filhas da Guerra 58 ,
surgiu em agosto de 2015 e narrava a história de uma sobrevivente do holocausto, a judia
iugoslava, Lili Jaffe. No mesmo ano foram realizadas uma série de programas especiais,
entre eles; A Verdade Nua e Crua59 e a série Crônicas60 . No episódio A Verdade nua e crua,
narra o período no qual uma mulher tem fotos íntimas vazadas na internet, fazendo da sua
vida um caos. A série Crônicas, formada por 4 episódios com foco em narrativas em
primeira pessoa, foi resultado de um treinamento realizado por Mizanzuk com candidatos
a colaboradores, ensinando técnicas de gravação, entrevista, storytelling e edição.
O Coração do Mundo61 ; a segunda temporada estreou em março de 2016 com 14
episódios e buscava contar as experiências individuais de brasileiros e refugiados que se
envolveram com conflitos no Oriente Médio, desde o 11 de Setembro até a Guerra da Síria.
A partir de treinamentos realizados entre 2015 e 2016 foi idealizada a terceira
temporada, “O Que faz um Herói?”62 . A temporada conta com 6 histórias independentes
entre si que explora momentos de heroísmo realizados por pessoas comuns (PROJETO
HUMANOS, 2015). Pensando em facilitar a compreensão dos eventos, foi elaborada uma
linha do tempo cronológica como mostra a figura 9 a seguir:
2021.
62 Disponível em: https://www.projetohumanos.com.br/temporada/o-que-faz-um-heroi/. Acesso em: 14 set
2021.
69
Fonte: Autoria própria com base nas informações do site Projeto Humanos.
apresentar o caso para um público mais abrangente, a quarta temporada também lança luz
sobre temas importantes como tortura, investigações questionáveis, problemas processuais,
pânico satânico65 , entre outros. Mizanzuk (2021) ressalta ainda que, “o podcast é a minha
tentativa de fazer uma profunda reflexão sobre segurança pública no Brasil” 66 .
O caso Evandro, por sua complexidade que é fruto de seus elementos reais,
criminais, narrativos, fornece um conteúdo rico para leituras em relação aos processos de
produção, articulando entre as várias peculiaridades apresentadas nesta temporada. A
figura 11 representa as características e os aspectos predominantes envolvidos na quarta
temporada do Projeto Humanos identificados por esse estudo.
Desse modo, o podcast enquadra-se: como não ficcional, pois aborda um fato real;
investigativo, pois não está apenas investigando a morte de um garoto e seus
desdobramentos, mas falhas sistêmicas nos inquéritos policiais; documental, pois se utiliza
65
O pânico satânico é um fenômeno midiático e social que surgiu nos EUA na década de 1980, centrado na
crença em rituais e cultos satanistas e na certeza de que o Mal, encarnado, está por trás de algum crime.
66 Disponível em: https://oglobo.globo.com/cultura/fenomeno-na-web-podcast-caso-evandro-inspira -serie-
3.3 O CRIME
O podcast resgata o caso real de assassinato que envolve elementos como vingança,
conspiração política e rituais macabros. Em 6 de abril de 1992, o garoto Evandro, com 6
anos, desapareceu a caminho da escola na cidade de Guaratuba, no litoral do estado do
Paraná. Dias depois, em 11 de abril de 1992, seu corpo foi encontrado sem mãos, cabelos
e vísceras em um matagal a 1900 metros da casa de Evandro.
Em julho do mesmo ano, após meses de investigações, o inquérito policial concluiu
que o crime foi praticado em um ritual macabro. Sete pessoas foram presas, o pai-de-santo
Osvaldo Marceneiro, o pintor Vicente Paulo Ferreira, o artesão Davi dos Santos, o
serralheiro Airton Bardelli dos Santos, Francisco Sérgio Cristofollini, além da então
primeira-dama da cidade Celina Abagge e sua filha, Beatriz Abagge. Tornando-se assim
conhecido o caso popularmente como as “Bruxas de Guaratuba” (PROJETO HUMANOS,
2018).
Em junho, o engenheiro Diógenes Caetano da Silva realizou denúncia ao ministério
público de que a morte do sobrinho teria ocorrido em um ritual satânico. A investigação
que acabou envolvendo políticos locais foi primeiramente investigada pelo Grupo TIGRE
(Tático Integrado de Grupos de Repressão Especial) da Polícia Civil do Paraná. Logo em
seguida, sem o devido conhecimento da unidade, o Ministério Público passou o caso para
o Grupo ÁGUIA (Ação de Grupo Unido de Inteligência e Ataque) da Polícia Militar do
Paraná no dia 21 de junho de 1992.
Onze dias depois, o caso havia sido solucionado e os setes suspeitos presos. Dentre
eles, Beatriz Abagge, Osvaldo Marcineiro, Davi dos Santos Soares e Vicente de Paula
possuem confissões gravadas em áudio ou vídeo, mas depois alegaram que foram
torturados pelos policiais para confessar o crime. Até hoje, trinta anos depois, após cinco
julgamentos diferentes e embora seja considerado pela Justiça do Paraná como um caso
solucionado, o crime não foi totalmente esclarecido.
73
Em 1998, ocorreu o primeiro julgamento que ficou conhecido como o mais longo
júri da história do Brasil, com 34 dias. Celina e Beatriz Abagge foram julgadas no Fórum
de São José dos Pinhais e consideradas inocentes. Ainda que, Ademir Caetano tenha
reconhecido o corpo da criança como sendo de seu filho Evandro, com base nas roupas e
em uma marca de nascença, os jurados entenderam que o corpo encontrado não seria do
menino. Porém, essa decisão foi anulada pelo Tribunal de Justiça do Paraná, que garantiu
haver prova científica de que o corpo era do garoto.
Osvaldo Marceneiro, Vicente Paulo Ferreira e Davi dos Santos foram a julgamento
em 1999, em um júri que não chegou ao fim. Em um novo julgamento, em 2004, os três
foram condenados. Marceneiro e Ferreira são condenados por homicídio triplamente
qualificado e sequestro. Eles foram sentenciados a 20 anos e d ois meses de reclusão cada,
mas recorreram da decisão. Ferreira faleceu enquanto estava preso e Santos foi condenado
apenas por homicídio. Ele deveria ficar detido por 18 anos, mas cumpre pena em liberdade.
Em 2005, Airton Bardelli dos Santos e Francisco Sérgio Cristofollini, que nunca
chegaram a confessar o crime, foram absolvidos pelo júri. Em 2011, Beatriz foi julgada
novamente na 2ª vara do Tribunal do Júri de Curitiba e condenada a 21 anos de prisão. O
crime já havia prescrito para Celina, que naquela data estava com mais de 70 anos.
Atualmente, todos estão em liberdade.
Um detalhe que chama a atenção foi o novo acontecimento que emergiu durante a
temporada de exibição do podcast. No dia 10 de março de 2020, foi publicado o episódio
25 intitulado “Sete Segundos”, em que áudios encontrados em mini-fitas cassetes, podem
comprovar que os então suspeitos pelo desaparecimento e morte de Evandro Ramos
Caetano foram torturados para confessar o crime.
O caso não é contado em ordem cronológica e está dividido em seis partes, de forma
que cada uma delas é dedicada a um tema específico da história, conforme podemos
observar no quadro 3 com as características detalhadas sobre a primeira temporada do
podcast. Esse formato torna o grande número de informações mais inteligível e assim o
ouvinte termina o primeiro episódio com uma convicção, no segundo tem outra e assim por
diante.
74
Cada capítulo é acompanhado por uma pequena descrição, e logo abaixo o link para
a enciclopédia onde o ouvinte-internauta (LOPEZ, 2010), encontra diversos conteúdos
relacionados. Não há no site oficial, um espaço para os ouvintes do podcast comentarem
e/ou debaterem o conteúdo da série.
duas polícias, o corpo e uma trama diabólica, lançado em junho de 2021 pela Harper
Collins Brasil, relata a partir de suas pesquisas as investigações sobre o caso. Segundo
Moreira e Bonafé (2022) durante a semana do seu lançamento o livro entrou na lista dos
mais vendidos da revista Veja na categoria não ficção. Já a série documental em oito
episódios com direção de Aly Muritiba e Michelle Chevrand é a primeira a ser adaptada de
um podcast, sendo uma produção audiovisual do Globoplay em parceria com a Glaz
Entretenimento. Mizanzuk participa como consultor, além de dar depoimentos.
67
No original: “One of the signature tropes in podcasting is the centrality of the host, as a character in their
own right. [...] they can reveal themselves as real people, with foibles, fears, strengths and weaknesses”.
68 No original: “Ein allwissender, distanzierter Präsentator ist keine erfolgversprechende Wahl. Der Erzähler
ist neben dem Protagonisten die wichtigste Figur (wenn es nicht sogar dieselbe ist). Er leitet durch die
Geschichte und bindet mit seiner Persönlichkeit den Hörer an die Geschichte”.
81
No ano 2013, lançou o livro “Existe Design?”, d o qual foi co-autor e em 2014,
lançou o romance de terror de sua autoria, “Até o Fim da Queda”, que segundo Mizanzuk
(2021, p. 401), “eu me inspirava, em parte, na história das “bruxas de Guaratuba” – apesar
de à época conhecer apenas superficialmente o caso” (grifo do autor). Em 2015 lançou o
Arcano XV, a história de um homem que recebe visitas noturnas de uma entidade
sobrenatural.
Com essa prerrogativa, Mizanzuk já estava realizando um estudo para o futuro
trabalho - narrar histórias de crimes reais através do podcast. O podcaster utiliza uma
estrutura narrativa que explora a técnica storytelling. É necessário sublinhar que o trabalho
de Mizanzuk, no podcast ao mesmo tempo que é narrador/escritor/investigador, é saber
manejar bem as técnicas narrativas, de modo que possa contar uma história agradável,
informativa e imersiva.
Mais do que um recurso estilístico, percebe-se uma ideia bem sucedida, que
renovou as formas de contar histórias em áudio. Tal empenho, rendeu a Ivan Mizanzuk o
convite da Rede Globo para integrar o hub de podcasts do Globoplay. Atualmente, mantém
duas produções em áudio: o podcast de entrevistas chamado Conversas Paralelas 69 , que
segundo sua descrição “explora os interesses secretos de pessoas ilustres ou os
conhecimentos ilustres de pessoas interessantes” (CONVERSAS PARALELAS, 2021), e
a quinta temporada do Projeto Humanos, intitulada Altamira 70 , que investiga uma série de
crimes onde vários garotos foram mortos e emasculados na cidade de Altamira, no Pará.
restrinja apenas aos episódios do podcast. Para começar, faremos algumas considerações
metodológicas que explicam como o podcast foi pela pesquisa investigado.
A escolha por esses episódios foi resultado do que eles representam na estruturação
dos acontecimentos narrativos ao longo da temporada: são eles o primeiro e último episódio
pertencente as seis partes do conjunto da temporada do podcast. Outrossim, a escolha por
esses episódios se deu em virtude ao grande número de episódios e da quantidade de horas
da produção sonora71 , resultando em uma temporada extensa, sendo necessário realizar um
71A produção sonora referente a quarta temporada do projeto Humanos em seus 36 episódios totalizou 54
horas.
84
recorte baseado na organização e na forma que Mizanzuk considera mais coerente e melhor
traduz os efeitos de sentido pretendidos por ele.
A temporada d’O Caso Evandro parte de uma narrativa de áudio serializada, em
que os episódios foram lançados semanalmente, havendo alguns blocos de espaço entre a
disponibilização das partes, uma vez que a pesquisa e consequentemente a história estava
realmente evoluindo à medida que seu idealizador a contava. Caracterizada como uma
narrativa sazonal (NUZUM, 2019), onde as informações fornecidas em um episódio
oferecem o que você precisa entender para o próximo.
Sobre os elementos parassonoros, tivemos como norte enciclopédia voltada para o
ambiente digital que reúne em sua estrutura um agrupamento de arquivos que auxiliam a
compreensão da narrativa sonora. Dessa forma, com o foco na integração do conteúdo em
áudio com os outros elementos multimídias, a produção explora uma inovação narrativa na
tentativa de expandir ou explicar melhor detalhes dos episódios.
Logo, a pesquisa trabalha com um corpus que constituem os episódios sonoros e os
elementos parassonoros que estão presentes na ecologia das mídias (SCOLARI, 2015). O
objetivo dessa escolha é ter como fenômeno estudado a técnica storytelling como estratégia
narrativa no meio sonoro, através do podcast. Dessa forma, poderemos estabelecer como a
técnica storytelling auxilia essas produções narrativas para apontar tendências e
perspectivas.
Esse método permite que sejam construídas interpretações, pois tem por finalidade
a descrição objetiva, sistemática como define Bardin (1977):
88
Quadro 5: Quadro Matricial das Categorias para análise no podcast Caso Evandro
inserido no podcast de maneira rápida e enfática para demonstrar medo e/ou tensão e vem
sempre acompanhado de uma trilha musical que ressalta sua função. Por último, elementos
parassonoros consistem em conteúdos extras e conteúdos históricos.
Visto essas unidades de análise, a segunda fase da codificação corresponde às regras
de enumeração que dizem respeito ao modo de contagem das unidades de registro. A
terceira fase do processo de análise do conteúdo é denominada tratamento dos resultados –
a inferência e interpretação. Após os resultados brutos, o pesquisador visa torná-los
significativos e válidos, permitindo que compreendamos o significado do que foi coletado.
1) Personagem
vez que são relatados através da voz dos personagens reais. “Este é um depoimento de
Luiz Carlos de Oliveira prestado em 2005, no julgamento dos réus Airton Bardelli e Sérgio
Cristofolini, quem está fazendo as perguntas é o juiz Rogério Etzel (O CASO EVANDRO,
2018).
Como a temporada contém mais de duzentos personagens, sempre que o indivíduo
é inserido na trama, Mizanzuk o apresenta novamente de modo que não reste dúvidas de
quem está realizando o relato.
A temporada é centrada no desenvolvimento dos setes acusados, porém cada
personagem, entre delegados, promotores, jornalistas e inclusive o narrador tem o seu
momento de passar de coadjuvante a protagonista, revelando aspectos até então
insuspeitados. Dessa forma, a figura de Mizanzuk é visto como personagem dessa história
tanto quanto Evandro e os acusados, tornando-se um personagem intrigante para a
narrativa.
Sodré e Ferrari (1986, p. 125) ressalta que, “existe sempre um momento na narrativa
em que a ação se interrompe para dar lugar à descrição (interior ou exterior) de um
personagem”. Como podemos verificar no episódio 7 – As Fitas VHS, Mizanzuk descreve
o momento em que Davi está sendo interrogado diante de uma câmera de vídeo. “Davi tem
cabelos longos, um cavanhaque está na frente da mesma parede branca. Usa uma camisa
polo Clara também tem as mãos algemadas e também parece estar bem cansado” (O CASO
EVANDRO, 2018).
Assim, com base nessa categoria, percebemos que todos os personagens são
ilustrados de modo a criar uma imagem mental, que contribui não apenas para uma
concepção física, como também de algumas características da personalidade das pessoas
que compõem essa narrativa.
2) Narração:
não apenas nos conta o resultado de suas reflexões, mas também nos deixa participar de
seu processo de descoberta. Desta forma, permanece sempre transparente e confiável.
Mizanzuk assume o papel do narrador viajante apresentado por Benjamin (1987),
na medida em que este recorre do seu conhecimento advindo da sua experiência enquanto
pesquisador e com diferentes lugares e situações toda a espécie de fatos sobre o crime para
trazê-los aos ouvintes a partir de sua interpretação.
Mizanzuk solicita: “Antes de começar eu gostaria de pedir que você faça algo por
mim” (O CASO EVANDRO, 2018). Mizanzuk usa um estilo coloquial, uma abordagem
mais relaxada quando relata seu pedido e que gera uma enorme intimidade.
Em diversos momentos ao longo da temporada Mizanzuk expressa suas dúvidas e
inquietações como nesses trechos do episódio 6: “Eu não tive como verificar nada disso
então eu só deixo aqui o aviso e vocês tirem suas conclusões” ou “o problema talvez seja
o seguinte e aqui eu estou chutando...” (O CASO EVANDRO, 2018). Benjamin (1987)
afirma que cabe ao narrador narrar o miraculoso, o extraordinário, deixando que as
interpretações e que a psicologia fique a cargo de cad a ouvinte. Dessa forma, “ele é livre
para interpretar a história como quiser, e com isso o episódio narrado atinge uma amplitude
que não existe na informação” (BENJAMIN, 1987, p. 203).
Não apenas estamos a par das interpretações e conjecturas de Mizanzuk, mas
ganhamos uma camada extra de compreensão através de seu tom – sua raiva, seu desgosto,
sua tristeza. A presença de Mizanzuk enquanto narrador e personagem dessa trama é tão
forte que ao longo da temporada o ouvinte é estimulado a vibrar e lamentar junto com ele
a cada novo acontecimento.
3) Características da Narrativa:
a) Arco Narrativo
O podcast se constrói por meio de um arco narrativo que utiliza técnicas narrativas
como suspense (cliffhanger) e reviravoltas (plot twist) para estabelecer uma narrativa
elíptica e fragmentada entre os episódios em que a todo momento os ouvintes se perguntam
o que irá acontecer em seguida, além de múltiplos fios narrativos. Souza (2021) relata que:
94
consequências e a gerar mais dúvidas nos ouvintes. Cada narrativa inconclusiva, seja dos
personagens principais ou dos secundários, gera outros questionamentos.
Com base, nessa premissa identificamos que o podcast Caso Evandro possui um
roteiro que emprega uma escolha criativa que reforça alguns plot twists (reviravoltas) no
enredo, como quando se é revelado que os acusados foram na verdade torturados para
confessar o crime ou quando médico legista testemunha de acusação se suicida dias antes
de comparecer ao fórum para ser interrogado.
A temporada também traz diversos fios narrativos. Convém destacar que fio
narrativo é caracterizado como um conjunto de eventos interligados que envolvem os
personagens em uma ação (WOLF, 2012). O episódio seis explora uma das ramificações
da trama que é o caso Leandro Bossi. Embora ela seja tratada de modo mais detalhado
nesse episódio o próprio Mizanzuk ressalta que a história de João Bossi não se encerra por
aqui. Assim como, o episódio 33 que se dedica a contar o rumo e os suspeitos que se
delineava nas semanas seguintes ao assassinato de Evandro. Conforme podemos verificar
nesse excerto:
MIZANZUK: A ideia é então contar os casos de Testemunhas e suspeitos
que mais tiveram a atenção do grupo TIGRE. É consenso que a operação
do grupo águia da polícia militar destruiu e contaminou o trabalho de
investigação que estava sendo feito, a partir das prisões tudo vira um
misto de confusão e paranoia. Por isso eu quero tentar olhar para antes de
toda loucura que o caso se tornou e ver se algo pode ser aproveitado.
Então vamos voltar no tempo e olhar para o primeiro suspeito preso pelo
caso Evandro, antes dos sete acusados. [Ivan Mizanzuk, apresentador do
Projeto Humanos, no episódio 33 – 04’24’’].
b) Descrição de cenas:
Esse tipo de descrição auxilia na compreensão dos fatos narrados. Esse artifício é
utilizado também pelos convidados de modo a apresentar os cenários e acontecimentos
para os ouvintes, conforme o exemplo do episódio 13.
ZIPPIN: então eu fui aí esse é um alojamento que tinha ali na rua Santo
Antônio, do lado do quartel da polícia militar, conversei com as duas
pessoalmente, ali numa sala separada lá sem qualquer vamos dizer assim
97
Essas descrições oferecem uma proximidade com o real, de modo que possibilitam
uma incursão detalhada nos ambientes através das descrições desses espaços, que tendem
não somente retratar apenas a aparência desses lugares, mas seu funcionamento,
localização, relação com os espaços comuns e etc.
c) Criatividade:
pesquisa e entrevistas com diversos personagens criando cenas sonoras com o “ propósito
de iluminar novos caminhos para a compreensão do leitor” (LIMA, 2009, p. 385), e aqui,
de modo particular, ao ouvinte. Isso pode ser visto no último episódio quando Mizanzuk
apresenta prováveis caminhos e as algumas teorias pessoais:
d) Recapitulação
4) Linguagem sonora:
a) Trilha Musical:
b) Efeitos Sonoros
[Efeito da TV]
REPÓRTER: O corpo de Evandro foi encontrado no dia 11 de abril, um
sábado. Desde o primeiro dia em que Evandro desapareceu, houve vigília
na casa do garoto, nem a polícia dispensou a ajuda de videntes para
encontrar Evandro. A família e a polícia checavam imediatamente toda a
pista, desespero da família aumentava. No dia 11 de abril a presença de
urubus no Matagal que fica perto da casa de Evandro chamou a atenção
de um lenhador... (Episódio 1 – 40’14”)
102
c) Voz:
MIZANZUK: “Para mim tudo isso são indícios fortes de que no mínimo
algo de muito estranho aconteceu nesse circo todo. Então fica aqui o re-
gistro de algo que me chamou bastante atenção, quem falou seita satânica
e coisas do tipo foi a imprensa e autoridades. Mesmo que os sete fossem
culpados já haveria em um forte indício de como que os acusados foram
retratados para a população em geral” [Ivan Mizanzuk, apresentador do
Projeto Humanos, no episódio 12 – 45’51’’]
5) Elementos parassonoros:
a) Conteúdo Extra
Tendo em mente que o áudio é a espinha dorsal dessa produção, Mizanzuk descreve
em detalhes o conteúdo de uma fotografia e oferece a possibilidade de consulta na
enciclopédia, ressaltando o caráter de complementação dos elementos parassonoros, sem
descaracterizar o áudio.
Figura 13: Imagem explicativa presente na Enciclopédia do Caso Evandro (EP 32)
Temos uma narrativa que vai além do áudio, mas o tem como elemento central,
assim os ouvintes-internautas podem acessar o conteúdo, ver fotografias, ter acesso aos
materiais que compõem cada episódio do podcast e a história que eles contam.
105
b) Conteúdo histórico
Nessa unidade de análise, buscamos mídias (fotos, vídeos, áudios) que rementem a
acontecimentos passados, e como essa reconstituição da memória se relaciona com o áudio
da narrativa.
Por se tratar de uma história que ocorreu na década de 90 e tendo em vista, “o papel
fundamental da imprensa na construção do caso, o uso de tais materiais (especialmente os
anexados no processo) tornou-se imprescindível” (O CASO EVANDRO, 2018). A
perspectiva do compartilhamento de conteúdo através da enciclopédia permite “encontrar
registros da cobertura midiática do crime nas reproduções dos jornais e revista da época e
vídeos de reportagens sobre o caso. Estes conteúdos assumem papel de complementar os
episódios ampliando o conhecimento sobre o contexto histórico” (OLIVEIRA, KNEIPP,
2021, p. 6-7).
Como fonte de pesquisa, foram utilizadas diversas matérias de TV de redes e
emissoras como Rede Globo e SBT, assim como também emissoras que não existem mais
como a Rede OM e TV Independência. Isso pode ser ilustrado brevemente nessa passagem:
Os demais vídeos foram obtidos através de arquivos pessoais ou ainda na rede social
YouTube. Com essa diversidade de possibilidades de utilização dos conteúdos
audiovisuais, foi possível acessar inúmeras informações sobre acontecimentos
relacionados ao crime. Outra reconstituição dessa memória ocorre no dossiê que reúne
todas as matérias no antigo Jornal Hora H, de Curitiba, hoje extinto disponibilizado na
enciclopédia.
Assim, os textos sonoros também nos chegam por meio de formas não sonoras
historicamente situadas – pelas matérias impressas e audiovisuais sobre o caso, e nosso
percurso histórico em relação ao podcast leva em consideração além do áudio, esses
documentos disponibilizados na enciclopédia.
107
CONSIDERAÇÕES FINAIS
são utilizados a partir de novas perspectivas e com funções demarcadas a fim de gerar um
efeito deliberado de maior envolvimento e interação com o público.
A partir dos resultados obtidos na análise, a classificação é de que a temporada tem
como principais características; além do formato storytelling, atributos elencados como
uma narrativa de não-ficção, fundamentada no jornalismo investigativo e documental, do
gênero true crime, com aspectos serializada, sazonal e sendo considerada também uma
narrativa longa. As características, citada no capítulo três, se materializa por meio das
explicações que contextualizam e explicam minuciosamente que a temporada pode assumir
estas peculiaridades. De modo que, o podcast caso Evandro pode ser considerado, uma
história não ficcional baseada em um true crime, o eixo da narrativa é centrado numa
história humana, de modo a enfatizar uma trama que envolve drama, suspense e emoção.
Ao apresentarmos atributos definidores da temporada, acreditamos que as
produções em geral podem possuir a maior parte das características, mas não
necessariamente todas.
Reafirmamos a importância do tema analisado pelo fato de existirem ainda poucos
estudos no Brasil que tratam da técnica storytelling como um recurso narrativo aplicado ao
meio podcasting. No que toca a questão do mapeamento das características da produção
brasileira, contribuímos seja identificando, seja no levantamento de um repertório de
procedimentos narrativos utilizados por podcasters, assim como na geração de novos
dados, coletados a partir do livro de códigos da análise de conteúdo.
A articulação dessa técnica facilita o modo de produção e abre possibilidades
criativas de uso, uma vez que combina as ideias de forma a apresentar uma abordagem
única para entrevistas e composição de histórias. A especificidade e a complexidade da
técnica storytelling, dita legitimamente os processos de produção de um podcast narrativo,
contribuindo assim para a sua consolidação, popularização e relevância num contexto
midiático de crescente plataformização.
A análise permitiu considerar que o podcast ocupa na atualidade papel importante
na construção de narrativas em áudio, através de seus formatos e técnicas utilizadas.
Constatamos que o produto sonoro é o principal condutor da narrativa (mídia regente) e
trabalha como o propósito de construir o universo narrativo através não somente da
linguagem radiofônica e elementos do storytelling, bem como, com a utilização de
elementos parassonoros e a criação de um banco de dados, por meio da enciclopédia
(estratégias de transmidiação). A fim de que, ouvinte possa se movimentar em outras
direções inspirados pela escuta, mas não se limitando somente ao áudio.
110
Esta pesquisa não esgota o tema, mas permite a expansão da discussão para novos
contextos. De modo que, deixa-se como sugestão um futuro estudo, a fim de verificar as
novas possibilidades narrativas de expansão do conteúdo e a união de outras plataformas e
suportes ao conteúdo em áudio, adequadas à nova era de ouro do áudio digital e transmídia,
que perpassa pelos novos formatos presentes na ecologia das mídias.
112
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