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As relações possíveis entre "O entre-lugar do discurso

latino-americano", de Silviano Santiago, e "Meu tio, o Iauratê",


de Guimarães Rosa.

● O conto de Rosa apresenta relações com o texto de Santiago porque: (I) utiliza uma
linguagem regional, quebrando a ideia de que para fazer literatura, é necessária a
utilização da norma culta e também porque a literatura de Rosa é totalmente diferente
da literatura padrão. (II) pode ser entendida como uma metáfora entre o colonizador
(Iauratê) e os colonizados (onças) onde o verdadeiro “predador” é quem está
dominando. (III) Rosa, se utilizando da sua realidade e da linguagem regional, produz
um texto tão bom quanto os textos europeus, mostrando assim resistência ao que lhe
foi imposto. (IV) Além disso, reforça a ideia expressa por Santiago de que o escritor
latino americano escreve a sua realidade.

“O entre-lugar do discurso latino americano”, capítulo do livro Uma Literatura nos


Trópicos, de Silviano Santiago, aborda o espaço em que a literatura produzida na América
Latina se encontra. Essa literatura possui identidades culturais bem marcantes, que
caracterizam a literatura no Novo Mundo, como a região era conhecida nos séculos passados.
De acordo com o capítulo, os colonizadores, que se referiam a ela com essa denominação,
também influenciaram a maneira do fazer literário por parte dos autores latinos: toda a
dinâmica da colonização influenciou e moldou a visão de mundo dos colonizados fazendo,
assim, com que a literatura produzida pelos mesmos tivesse, mesmo que indiretamente, a
“mão” do europeu. Mesmo diante desse cenário, os escritores enfrentaram e representaram os
desafios sociais e políticos em suas obras, além de retratar com maestria as realidades
latino-americanas. Para Santiago, os autores latino-americanos também usam a linguagem
como uma forma de resistência ao escreverem de acordo com suas realidades, ou seja,
utilizando a língua regional, a que é falada em sua região.
Um exemplo expressivo das teorias apresentadas por Santiago no primeiro capítulo de
seu livro é a literatura de João Guimarães Rosa no conto "Meu tio, o Iauratê". O conto
apresenta um monólogo entre um caçador de onças e um viajante anônimo onde o onceiro
fala sobre suas vivências nesta profissão e como ela molda toda a sua existência.
É interessante como Rosa constrói a história: utiliza experiências reais de pessoas que
praticavam o ofício de onceiro, ambienta-a em uma região comum aos seus contemporâneos
e, o mais notável, vale-se de expressões características da região, dando ênfase à oralidade.
Além disso, não segue a estrutura sintática comumente adotada na literatura clássica. Isso
evidencia o que foi dito por Santiago: “A América Latina institui seu lugar no mapa da
civilização ocidental graças ao movimento de desvio da norma, ativo e destruidor (...)”. Esses
fatores dão originalidade à literatura latina. Literatura que pode ser caracterizada como uma
literatura de resistência, ao adotar características regionais, renegando ao que lhe é imposto.
Ainda no que diz respeito a uma literatura de resistência, Guimarães Rosa, dispondo
da sua realidade e da linguagem regional, produz um texto tão bom quanto os textos
europeus, pois o material produzido pelo autor não “passa despercebido” por seus
contemporâneos. Nas palavras de Silviano Santiago:

“Nesse sentido, as críticas que muitas vezes são dirigidas à


alienação do escritor latino-americano, por exemplo, são inúteis e
mesmo ridículas. Se ele só fala de sua própria experiência de vida,
seu texto passa despercebido entre seus contemporâneos.” (p. 20)

Portanto, Rosa se equipara aos grandes autores europeus, pois suas obras tiveram
impactos expressivos em sua época e ainda hoje. Por exemplo, ao retratar a caatinga
da região centro-oeste do Brasil e os modos de vida ali existentes, em sua famosa obra
Grande Sertão: Veredas, bem como no cerrado, no conto aqui discutido.
Outro aspecto da obra de Rosa que se encaixa nas teorias exploradas por Silviano
Santiago é a de que o escritor latino americano escreve a sua realidade. Transparece
em "Meu tio, o Iauratê" o quanto o autor se preocupa em retratar o cotidiano do
personagem:
“Tem carne, tem mandioca. Eh, oh, paçoca. Muita pimenta. Sal,
tenho não. Tem mais não. Que cheira bom, bonito, é carne.
Tamanduá que eu cacei. Mecê não come? Tamanduá é bom. Tem
farinha, rapadura. Cê pode comer tudo,’ manhã eu caço mais, mato
veado.” (p. 2)

Isso mostra que o autor latino americano age sobre a sua realidade ao evidenciá-la
para o leitor fazendo com que este a conheça e também aja sobre ela.
Portanto, as relações entre os textos "O entre-lugar do discurso latino-americano", de
Silviano Santiago, e "Meu tio, o Iauratê", de Guimarães Rosa são claras. Uma
exemplifica a outra, tendo assim uma relação de complementaridade. O texto de
Santiago discute o “lugar” da literatura latino americana: literatura que agride, se
rebela contra o que lhe é imposto ao se valer de sua própria identidade. Já o conto de
Rosa atesta as teses de Santiago ao ir contra a norma padrão sintática, ambientar o
conto em um local comum aos seus contemporâneos, utilizar uma linguagem voltada
à oralidade a ponto de não “passar despercebido” por seus leitores, o que o faz se
equiparar à autores europeus de renome. Além disso, é perceptível que Rosa possui
uma literatura de resistência ao fazer de suas obras uma ferramenta social e política,
pois elas geraram (e ainda geram) impactos significativos nos leitores. Esta é a
literatura latino americana: uma literatura, antes de tudo, política e social.

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