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PREFÁCIO

por Marge Piercy

Prefácio publicado em 2016 na edição comemorativa de 40 anos do


romance, publicado originalmente em 1976.

Por que escrever um romance como Uma mulher no limiar do


tempo, cuja história se passa no futuro? O motivo de escrever sobre
o futuro não é prevê-lo; não estou fingindo ser o Nostradamus. O
motivo de tal escrita é influenciar o presente ao extrapolar
tendências atuais, sejam avanços ou recuos. Ninguém é bom em
previsões. Se fôssemos bons em adivinhar eventos que
aconteceriam daqui a um ano ou alguns meses ou semanas, nossa
taxa de divórcios seria zero, não entraríamos em relacionamentos
idiotas e ninguém perderia dinheiro na bolsa de valores ou em
apostas. O motivo de criar futuros é fazer as pessoas imaginarem o
que querem e o que não querem que aconteça daqui em diante,
para que talvez façam alguma coisa sobre isso.
Uma mulher no limiar do tempo foi publicado pela primeira vez há
quarenta anos, mas começou três anos e meio antes. O começo da
década de setenta foi uma época de grande ebulição política e
otimismo entre aqueles de nós que desejavam mudanças a favor de
uma sociedade mais justa e igualitária, com mais oportunidades
para todas as pessoas, não apenas para algumas.
Desde então, essa desigualdade aumentou. Desde que escrevi
este livro, aumentou o número de pobres, assim como o de pessoas
que precisam trabalhar em dois ou três empregos para conseguir
sobreviver, ou que descobrem que suas economias e, portanto,
seus futuros estão sendo destruídos pela falta de saúde ou pelo
desemprego. Pessoas em situação de rua estão por todo lado, não
apenas pessoas solteiras e sem sorte, ou velhas mendigas, mas
famílias inteiras com seus filhos. Há menos oportunidades para que
os jovens das classes mais baixas façam faculdade; se
conseguirem, certamente serão assombrados por dívidas enormes
durante boa parte de suas vidas adultas. Muitas profissões que
antes permitiam que os trabalhadores ganhassem o suficiente para
comprar e quitar uma casa, sonhar com uma vida melhor para as
crianças, foram transferidas para outros países, onde pessoas ainda
mais pobres fazem a mesma coisa ganhando apenas centavos. Os
sindicatos que protegiam os trabalhadores perderam muito de sua
influência e, com o passar dos anos, representam cada vez menos
trabalhadores.
À época em que escrevi este romance, as mulheres estavam
conquistando diversos direitos sobre seus corpos e suas vidas.
Hoje, não apenas esse ímpeto foi perdido como muitos dos direitos
que tanto lutamos para conquistar estão sendo tirados de nós pelo
Congresso e seus legisladores a cada ano.
Mas também precisamos entender que o interesse em retirar das
mulheres o controle dos seus corpos é parte de um objetivo maior
que visa retirar da maioria da população o controle real sobre suas
vidas. Hoje, as grandes corporações e o 1% mais rico controlam as
eleições; a mídia é a máquina de manipulação e os únicos que
fazem investigação séria são a hbo, a Comedy Central ou a
internet.
Os poderosos permitiram certos ganhos sociais, mas não
econômicos. Finalmente temos em todo os Estados Unidos a
maconha legalizada e o casamento gay. Contudo, os sindicatos e a
rede de segurança do New Deal e da era Johnson estão sendo
esmagados, uma lei de cada vez, e as mulheres são forçadas a
realizar abortos ilegais, que matam tantas de nós. Temos alguns
ganhos sociais, mas muitas perdas econômicas. O poder de compra
real dos trabalhadores diminui a cada ano.
Durante o sucesso da segunda onda do movimento feminista, uma
série de utopias foram criadas (Female Man, de Joanna Russ;
Houston, Houston Do you read, de James Tiptree Jr. [Alice Sheldon];
Os Despossuídos, de Ursula Le Guin; My Own Utopia, de Elizabeth
Mann Borgese; The Wanderground, de Sally Miller Gearhart, entre
outras), mas agora não surgem outras. Por quê? As utopias
feministas foram criadas a partir de um desejo ardente pelo que não
tínhamos em um momento em que a mudança parecia não apenas
possível, mas provável. Utopias surgiram de um desejo de imaginar
uma sociedade melhor quando ousávamos imaginar. Quando nossa
energia política é canalizada para defender os direitos e projetos
que conquistamos e criamos e que agora estão sob ataque, sobra
muito menos energia para imaginarmos sociedades futuras
completamente projetadas nas quais gostaríamos de viver.
Escrever sobre uma comunidade forte que socializa as crianças e
integra os idosos é um produto da existência feminina em uma
sociedade em que uma mãe fica sozinha com suas crianças, as
quais são economicamente dependentes apenas dela, e que trata
os idosos só um pouco melhor do que trata os animais
abandonados, diariamente sacrificados em currais e abrigos.
Nunca estivemos tão isolados do contato íntimo com os outros.
Muitos homens preferem a pornografia ao sexo real, no qual
precisam agradar uma mulher ou pelo menos tentar. Tenho feito
leituras dos meus poemas em lugares onde estudantes escreviam
aos celulares em vez de ouvir ou reagir. Almocei em restaurantes
com “amigos” que ficavam jogando nos seus celulares ou tablets.
Quantas pessoas você vê andando distraídas pelas ruas enquanto
falam ao celular? De acordo com uma recente pesquisa, muitas
pessoas contam que seus amigos mais íntimos são seus animais de
estimação ou alguma personalidade da tv.
Também quis que este romance mostrasse uma sociedade
ecologicamente consciente. Todas as vidas, instituições e rituais de
Matapoisett enfatizam que somos parte da natureza e responsáveis
pelo mundo natural. Ao imaginar uma sociedade boa, eu me vali de
todos os movimentos progressistas da época. Como a maioria das
utopias escritas por mulheres, Uma mulher no limiar do tempo é
profundamente anarquista e visa integrar as pessoas de volta ao
mundo natural e eliminar as relações de poder. A família tradicional
aparece raramente nas utopias feministas e foi eliminada neste
romance.
A parte mais controversa de Matapoisett é, provavelmente, a
criadeira, já que muitas mulheres sentiam que não estariam
dispostas a desistir da gestação. Se eu tivesse de reescrever o livro,
incluiria um grupo que escolheu seguir gestando os bebês. Nas
minhas anotações iniciais, isso era algo que eu queria fazer, mas,
durante o longo e complicado processo de escrita do livro, acabei
não acrescentando essa questão.
Em vez de rotular as mulheres como vadias, projetei uma
sociedade na qual o sexo é algo disponível, aceito e não hierárquico
— e totalmente independente de salário, status social e poder. Não
há mulheres servindo de prêmio, nenhuma ocultação, nenhuma
punição ou ostracismo por preferir um tipo de amante a outro. Não
há necessidade de vender ou comprar sexo, nem de permanecer
em um casamento sem amor, como minha mãe, que não tinha
meios de se sustentar. Na distopia dentro de Uma mulher no limiar
do tempo, as mulheres são transformadas em mercadorias,
geneticamente modificadas e indefesas.
Antes de começar a escrever este romance, li todas as narrativas
utópicas que pude encontrar, em parte para estudar as estratégias
narrativas que tinham funcionado e aquelas que eram estáticas
demais para atrair o público leitor contemporâneo. Também li tantos
romances distópicos quanto os utópicos, talvez até mais. A ficção
científica dos anos cinquenta era abundante de mundos pós-
holocaustos nucleares, então passei minha adolescência lendo uma
boa parcela deles.
O outro gênero com o qual trabalho é a viagem no tempo. Estava
cansada de ver apenas homens brancos e ricos utilizando o gênero,
e não sentia que eles eram o tipo de visitante que eu gostaria de
receber se fosse uma sociedade boa do futuro. Quando era jovem,
percebi que nem a história que me ensinavam, nem as narrativas
que me contavam pareciam se relacionar comigo. Comecei a
arrumá-las, algo que tenho feito desde então; precisamos de um
passado que chegue até nós. De forma semelhante, o que
imaginamos sobre o futuro tem muito peso em definir o que é
importante ser feito para produzir o futuro que queremos e evitar o
futuro que tememos.
Naquela época, eu entrava escondida em instituições para
doentes mentais com a ajuda de funcionários, para poder
experimentar as condições do lugar. Aquelas pessoas arriscavam
seus empregos para me ajudar. Agora, os doentes mentais são
jogados nas ruas sem assistência nenhuma. Ainda damos
medicamentos, mas não damos nenhum tipo de apoio psicológico
ou moradia digna. Não houve melhoria nenhuma.
Sempre tenho interesse em quem controla a tecnologia em dada
sociedade e período histórico. Quem decide que bondes e trens
estão obsoletos, mas carros são imprescindíveis, a ponto de nossas
cidades serem construídas em função deles, como se fossem os
habitantes primários? Quem escolhe qual tecnologia vai ser
explorada? Quem determina quais riscos são perigosos ou quais
são aceitáveis? São os contribuintes que dão subsídio a usinas
nucleares mesmo que não haja escapatória para as pessoas que
moram perto dessas usinas quando acidentes inevitavelmente
acontecem. Para benefício de quem certas opções são exploradas?
Quem decide o que é feito e para quem? Um dos temas deste
romance é como as decisões podem ser tomadas de forma
igualitária e justa.
Também tenho muito interesse na socialização e nos mecanismos
interpessoais de uma sociedade. Como lidam com conflitos?
Novamente, quem decide e sobre a cabeça e as costas de quem
pesam essas decisões? Como aquela sociedade lida com a solidão
e a alienação? Como lidam com o nascimento, o crescimento, a
aprendizagem, a sexualidade, a natalidade, as doenças e a cura, a
morte e os ritos funerários? Como nós lidamos com nossas
memórias coletivas — nossa história —, a qual estamos
constantemente remodelando?
A utopia nasce de um desejo por algo melhor, sustentando-se na
esperança como motor da imaginação de tal futuro. A verdadeira
gênese de Uma mulher no limiar do tempo foi meu desejo de reunir
aquilo que considerava as ideias mais férteis dos vários movimentos
de mudanças sociais, a fim de torná-las vívidas e concretas.
...

Marge Piercy nasceu em 31 de março de 1936, em Detroit, Estados Unidos.

Sua infância foi feliz, porém, na adolescência, começou a apresentar

problemas de saúde. Em sua doença, ela se refugiou nos livros.

Ganhou uma bolsa de estudos para a Universidade de Michigan e foi a

primeira pessoa de sua família a ir para a faculdade. Foi secretária,

telefonista, balconista em uma loja de departamentos, modelo de artistas e

professora de meio período. Com o tempo, envolveu-se com política, com o

movimento dos direitos civis, com o feminismo e com a renovação judaica.

Casou-se com seu atual marido, Ira Wood, em 1982, após escreverem

juntos a peça The Last White Class. Em 1997, fundaram a Leapfrog Press,

uma pequena editora literária, e em 1998, escreveram juntos o romance

Storm Tide.

Marge queria escrever ficção com uma dimensão política, e queria escrever

sobre mulheres que ela pudesse reconhecer, pessoas da classe trabalhadora

que não fossem tão simples como esperava-se que elas fossem.

Ao longo do tempo, Marge entendeu que a rotina da vida cotidiana é

importante para sobreviver como escritora política no longo prazo. No


passado, quando não tinha apoio em casa, ela se sentia como se estivesse

lutando em todas as frentes ao mesmo tempo. Hoje, seu lar é seu local de

apoio. Em sua poesia, ela dá graças ao que lhe foi dado e testemunha o que

nos foi negado.

Hoje ela viaja pelos Estados Unidos e o mundo realizando leituras,

workshops e palestras. Escreveu 17 romances, 20 coletâneas de poesias e

recebeu o Arthur C. Clarke Award pela obra He, She and It.
CAPÍTULO 1

Connie se levantou da mesa e deu passos lentos até a porta. “Ou eu


vi ele ou não vi nada e estou realmente louca dessa vez”, ela
pensou.
— Sou eu, a Dolly! — Sua sobrinha gritava no hall de entrada. —
Me deixa entrar! Vamos!
— Momentito. — Connie se atrapalhou com o ferrolho e com a
corrente de segurança, finalmente escancarando a porta. Dolly
quase caiu em cima dela, seu rosto todo manchado de sangue.
Connie agarrou o braço de Dolly, tentando perceber a gravidade dos
ferimentos. — ¿Qué pasa? Quem fez isso?
O sangue escorria de um machucado em sua boca e ela segurava
um pedaço amarrotado de papel reciclado dobrado em quatro, sujo
de um sangue velho e marrom, com pequenas manchas vermelhas
de sangue fresco. Seu olho esquerdo mal se abria de tão inchado.
— O Geraldo me deu uma surra. — Dolly deixou que Connie
retirasse seu pesado casaco azul com detalhes imitando pele de
algum animal e largou-se na cadeira da cozinha, que balançou sob
seus quadris largos. Ali, Dolly desabou em soluços e lágrimas. Meio
sem jeito, Connie abraçou os ombros dela, mas suas mãos
escorregavam no cetim da blusa.
— A cadeira está quente — Dolly disse após alguns minutos. —
Me dá um lenço.
Connie trouxe papel higiênico do banheiro do corredor externo —
ela não tinha nada além disso — e cuidadosamente trancou a porta
de entrada. Então colocou um pouco do pó de café dominicano que
guardava para ocasiões especiais no coador e pôs água para ferver
num bule.
— Está frio aqui dentro — Dolly choramingou.
— Vou esquentar já. — Ela acendeu o forno e todas as quatro
bocas do fogão. — Logo vai estar parecendo aquela estufa de
vocês... O Geraldo te deu uma surra?
Dolly abriu bem a boca, como se fosse um bocejo.
— Fãe... Fãe.
Com o máximo de cuidado, Connie tocou na boca ferida de Dolly,
quase podendo sentir a dor.
Dolly se esquivou.
— Ele quebrou um dente, não quebrou? Aquele cafetão safado!
Eu vou perder um dente?
— Acho que tem um quebrado e outro meio mole. Mas quem sou
eu pra dizer? Não sou dentista não. Você ainda está sangrando!
— Ele é maluco, aquele imbecil! Ele quer me bagunçar a cabeça.
Connie, como assim você não queria me deixar entrar? Eu fiquei por
horas gritando no hall.
— Não foram nem cinco minutos...
— Juro que ouvi vozes. Tem alguém aqui? — Ela esticou o
pescoço, tentando olhar no outro cômodo, o quarto.
— Quem estaria aqui? Eu estava com a televisão ligada.
— Dói tanto. Me dá alguma coisa pra dor.
— Aspirina?
— Ah, me poupe. Dói muito.
— Hija mia, acha mesmo que eu tenho outra coisa? — Connie fez
sinal com as mãos para mostrar que elas estavam vazias. Sempre
vazias.
— Aqueles comprimidos que eles faziam você tomar, do governo.
— Vou pegar gelo pra você.
Então Dolly tinha ouvido ela conversar com Luciente. Portanto, ele
existia. Ou a sobrinha tinha ouvido ela falando consigo mesma?
Dolly tinha dito que a cadeira estava quente, mas ela tinha se
sentado na outra cadeira, com seu prato de janta: feijão com ovos.
Mas não deveria pensar nisso, e sim focar na dor que Dolly sentia. A
história dele era inacreditável demais! “Não, não pense nisso”. Ela
embrulhou uns cubos de gelo num pano de prato e o entregou para
a sobrinha.
— A receita venceu já faz um ano. — Não que ela tivesse tomado
os calmantes. Tinha vendido os comprimidos pra ter uma renda
extra, comprar carne de porco ou frango uma vez por semana, pasta
de louça etc. Era difícil acreditar que alguém quisesse tomar aquele
veneno por vontade própria, mas era possível repassar qualquer
medicamento em El Barrio. Mesmo assim, havia o transtorno de ir
até o Hospital Bellevue, já que ela morava perto de Dolly quando
tinha sido internada e desde então nunca havia conseguido
transferir seu prontuário.
— Consuelo! — Dolly recostou a bochecha inchada no ombro de
Connie. — Dói tudo! Estou com tanto medo. Ele me socou na
barriga pra valer.
— Por que você continua com ele? Que bem ele te faz? Com a
sua filha, pra que ter um cabrón1 desses por perto?
Dolly olhou para ela de forma engraçada, de um jeito que talvez
fosse acontecer para o resto da vida dela toda vez que comentasse
sobre o bem-estar de alguma criança; ou teria ela apenas imaginado
isso?
— Consuelo, me sinto tão mal. Estou um caco mesmo. Preciso
deitar. Ah, se ele me fizer perder o bebê, eu mato ele!
Enquanto ajudava a sobrinha a chegar meio carregada ao quarto,
ela sentiu um lampejo de medo ou talvez de esperança de que
Luciente ainda estivesse por ali. Mas o minúsculo cômodo tinha
apenas a sua cama com o colchão meio afundado, a cadeira com
seu despertador, a cômoda, a moringa de vinho com umas flores
secas dentro, a janela de ventilação mal coberta por umas cortinas
velhas, compradas nos tempos das vacas gordas. Ela despiu Dolly
cuidadosamente, como se fosse um bebê, mas a menina reclamava,
gemia e chorava ainda. A blusa de cetim de bolinhas estava toda
manchada de sangue, e um pouco havia escorrido em seu sutiã de
cetim preto.
— Mas não vai aparecer no seu sutiã lindo — Connie tentava
animá-la enquanto ela continuava lamentando pelas roupas, pelo
corpo e pela pele. Escoriações já haviam se formado sob a pele
aveludada do ventre de Dolly, nos braços finos e na clavícula.
— Mira! Tem sangue na minha calcinha? Veja se ele me fez
sangrar lá.
— Você não está sangrando lá, te prometo. Se cubra agora. Oye,
Dolly, não é tão fácil assim perder um bebê. No sexto mês, se ele te
bater assim, talvez. Mas no segundo mês a criança está mais
protegida que você. — Ela tirou o alarme e o colocou no chão para
poder se sentar na cadeira dura ao lado da cama e segurar a mão
trêmula de Dolly. — Olha, vou te levar pro pronto-socorro. Pro
Hospital Municipal.
— Não me leva pra lugar nenhum não. Está tudo doendo demais.
— Podem te dar algo pra dor. Vou pegar um táxi clandestino pra
nos levar. São só quinze quarteirões.
— Que vergonha! Vão falar: “O que aconteceu com você?”. “Ah,
meu cafetão bateu em mim”. De manhã eu vou no meu dentista.
Você me leva lá, no doutor Otera na rua Canal. Você liga pra ele às
nove e meia e diz para me atender imediatamente. Agora segura o
gelo no meu queixo.
— Dolly, como sabe que o Geraldo não vai vir aqui encher o saco?
— Consuelo! — Dolly pronunciou cada sílaba devagar, seguido de
um longo gemido de dor. — Seja boazinha comigo! Não fica me
pressionando também! Estou com dor, eu quero descansar. Seja
carinhosa comigo. Me dá um pouco da erva, está na minha bolsa,
no fundo do maço de cigarro.
— Dolly! Você está maluca de andar por aí sangrando e com
droga na bolsa? Imagina se os policiais te param?
— Ah, tive muito tempo pra separar as coisas da minha bolsa
enquanto saía correndo de casa! Vai, pega lá pra mim!
Ela estava fuçando na enorme bolsa de couro cheia dos pertences
de Dolly, se sentindo meio culpada por estar se intrometendo na
intimidade de outra mulher, quando ouviu passos pesados subindo
as escadas, de uns homens com pressa. Ela parou. Por quê?
Homens corriam para cima e para baixo das escadas do prédio a
noite toda. Mas ela já adivinhava.
Geraldo esmurrou a porta. Ela ficou parada, quieta. No quarto,
Dolly gemeu e se pôs a chorar novamente.
Geraldo bateu na porta com mais força.
— Abre a porta, sua piranha velha! Abre ou eu vou arrombar. Anda
logo, vai, abre essa merda de porta! — Ele começou a chutá-la tão
forte que a madeira rangia e já começava a ceder. Com certeza ele
a quebraria. Ela gritou:
— Espera! Espera! Já estou indo!
Nenhuma outra porta se abriu no corredor. Ninguém veio ver o que
estava acontecendo. Ela desarmou as trancas e pulou para trás
antes que ele empurrasse a porta com toda força e a esmagasse
contra a parede. Geraldo entrou rapidamente, batendo a porta
contra a parede como ela sabia que ele faria, sendo seguido por um
velho magricelo que vestia um sobretudo cinza todo abotoado e um
bato loco brutamontes chamado Slick, que ela já tinha visto com
Geraldo antes. Todos se amontoaram na cozinha e ele fechou a
porta depois que o último entrou.
Geraldo era o namorado de Dolly. Ele havia sido um vendadero e
se dava bem o suficiente para sustentar Dolly e a filhinha dela, Nita,
do primeiro casamento. Mas seu esquema com tráfico de drogas foi
interrompido quando ele foi detido, ainda que nem tivesse ficado
preso. Agora ele fazia Dolly trabalhar como prostituta, vendendo o
corpo dela pra qualquer canalha da cidade. Ele tinha três outras
garotas que provavelmente agenciava ao mesmo tempo; Dolly era a
quarta.
Connie o odiava. Fluía através de suas veias, como um líquido
eletrizado, o quanto ela o odiava. O ódio dela causava uma
descarga nos nervos, como se tivesse tomado rebite. Geraldo não
era nem alto, nem baixo, tinha pele clara, os olhos acinzentados,
cabelo crespo — pelo alambre — que ele normalmente mantinha
num penteado black power bem cortado. Era elegante. Todas as
vezes em que os olhos dela recaíam sobre ele, Geraldo estava
metido em algum traje de esplendor gigolônico. Ela sonhava com o
dia em que pegaria aquelas botas imitando pele de lagarto, com um
pequeno salto e bem polidas, e as enfiaria goela abaixo dele.
Sonhava em arrancar do seu dedo aquele anel com um pequeno
diamante acinzentado, do qual ele se gabava combinar com seus
olhos de malandro, e com ele lhe cortar o pescoço, para que seu
sangue venenoso saísse todo.
— Tía Consuelo — ele murmurou. — Caca de puta. Velha vadia!
Tira seu traseiro gordo e inútil do caminho. Sai da frente!
— Sai da minha casa! Você já machucou ela o suficiente. Saia!
— Não o tanto que vou machucar aquela vadia se ela não entrar
na linha. — O braço dele parecia uma cascavel, e ele a empurrou
contra a pia. Então deu mais alguns passos largos, parando na
porta do quarto e a bloqueando. Ele sempre gostava de ficar se
olhando nos espelhos que encontrava, se admirando, vendo o
quanto ele era o cara. — Ah, vadia, para de choramingar. Eu trouxe
um médico pra você.
— Que tipo de médico? — Connie murmurou, quase como um
grito. Ela tinha se abaixado um pouco e fugido do golpe dele, que
acertou apenas a quina da pia. Depois se encolheu, quase se
agachando. — Um açougueiro! Só se for esse tipo de médico!
— Aquele pulgueiro te ensinou tudo sobre médicos, hã?
— Deixa ela em paz, Geraldo. A Dolly só quer ter esse bebê, deixa
ela aqui comigo.
— Pra você poder retalhar ele, sua doida? Agora cala a boca
senão o Slick vai calar ela pra você. — Ele se apoiou no batente da
porta, acedendo um cigarro e jogando o fósforo ainda aceso no
chão, onde foi se apagando aos poucos, deixando uma mancha
preta de queimado no piso de tacos velhos. — Está na hora de
levantar e sair fora. Eu trouxe o médico pra te dar um jeito. Levanta
agora, anda!
— Não! Eu não quero que ele me toque! Geraldo, querido, quero
ter esse filho.
— Que merda você está falando? Você acha que eu vou ficar
trabalhando que nem um condenado pra dar de comer pro filho de
um qualquer? Você nem mesmo sabe a cor do verme que tem
dentro da maçã.
— É seu filho! É sim. Em Porto Rico, eu não tomei a pílula.
— Mulher, tantos homens entraram em você que esse bebê pode
ser filho de gente suficiente pra encher um vagão de metrô.
— Em San Juan eu nunca tomei as pílulas. Eu já te falei! —
Quanto mais ele gritava, mais baixo e cordial ela respondia.
— Você me contou? Não nessa vida, princesa. Como você passou
o tempo enquanto eu estava ocupado em La Perla, hã? — Ele
começou a tirar uns fiapos do colete.
— Você não quis me levar pra conhecer a sua família!
Geraldo tinha levado Dolly para viajar nas férias. Connie tinha
quase certeza de que Dolly tinha tentado de fato engravidar,
acreditando que Geraldo a deixaria sair da vida de prostituição. Ela
queria ter outro filho e ficar em casa. Como se fossem dobraduras,
como um presépio de papelão, uma fantasia havia surgido dentro de
Connie desde a conversa que tinha tido com Dolly naquela mesma
manhã: ela, Dolly e seus filhos iriam morar juntos. Ela teria uma
família de novo, finalmente.
Ela seria cuidadosa e boa e faria qualquer coisa, qualquer coisa
mesmo, para que eles ficassem juntos. Nunca teria ciúmes da
sobrinha, não importa quantos namorados ela tivesse. Dolly podia
passar a noite fora e viajar nos fins de semana, até mesmo ir pra
Flórida, e ela ficaria com a Nita e com o bebê. Como se alguém
fosse deixar ela sozinha de novo com uma criança. O sonho era
como aquelas bonecas de papel, as únicas que ela tinha tido
quando criança, bonecas com cabelo loiro, traços brancos e
grandes sorrisos de papel. Saber em seu coração de cinzas que o
sonho era inútil não o tornava menos precioso. Toda alma precisa
de um pouco de doçura. Ela pensou nos talos de cana-de-açúcar
que as crianças compravam do homem que vendia frutas e
verduras, doce na boca enquanto mastigavam, e então cuspiam o
bagaço e eles ficavam na rua. Oca, efêmera, por um momento doce
na boca. Cana, com a qual a avó dela tinha adoçado o chocolate
tanto tempo atrás em El Paso.
— Desliga aquela merda de chaleira! — Geraldo gritou e ela pulou
para desligar o fogo. O café que não tinha terminado de fazer. A
chaleira havia quase secado. Ela desligou o fogo e as outras bocas
porque agora seus dois pequenos cômodos estavam sufocantes de
calor. Olha como ela tinha pulado para o fogão depois de ele ter
vociferado aquela ordem brusca. Ela se ressentiu por ter obedecido
automaticamente, reagindo por instinto à sonora ordem masculina.
A beleza dele só o fazia mais detestável. Seu rosto, de grandes
olhos acinzentados, nariz largo, uma boca farta e cruel, as mãos
como longas garras, o porte altivo — ele era o cara que havia
cafetinado sua sobrinha preferida, a bebê da titia, o cafetão que
havia batido nela e a vendido para que aqueles porcos pudessem se
esvaziar nela; que a havia roubado e batido na sua filha Nita e tirado
todo dinheiro que pôde espremer da carne poluída de Dolly para
comprar botas de couro de lagarto e cocaína e outras mulheres.
Geraldo era como o pai de Connie, que havia batido nela durante
toda a sua infância. Era como o segundo marido dela, que a tinha
mandado ao pronto-socorro com sangue escorrendo pelas pernas.
Ele era El Muro, que a havia estuprado e depois batido nela porque
ela não conseguira mentir e dizer que tinha gostado. Ela tivera
forças apenas para correr, fugir. No ônibus noturno, no dia seguinte,
deixou seu lar em Chicago, seu pai e irmãs, os túmulos de sua mãe
e do seu primeiro (e verdadeiro) marido, Martín. Faltava para Dolly
aquela força bruta que havia salvado Connie naquela época. Mas
Dolly já tinha a Nita e um bebê a caminho.
— Fíjate, Geraldo — Connie gritou. — Ela está carregando um
filho seu. Ela voltou assim de San Juan. Eu falei pra ela que ela
estava grávida na primeira vez que bati o olho nela. Que tipo de
desmiolado você é pra permitir que seu próprio filho seja trucidado
por um médico de cachorros?
Revirando-se, Geraldo a esbofeteou e ela perdeu o equilíbrio,
caindo em direção ao fogão. O metal quente a marcou numa linha
longa, e ela mordeu os lábios, incapaz de produzir qualquer som por
causa da surpresa e da dor. Ela caiu no chão e não conseguiu falar
nem se mover.
— Puta, levanta e vai com o doutor Medias, ou eu vou fazer ele te
operar aí na cama da bruxa. Se mexe!
— Não! Não! — Dolly estava se debatendo na cama, gritando aos
soluços. Geraldo entrou no quarto, fora do ângulo de visão de
Connie. Ela tentou se virar. O médico magricela estava sentado na
beirada da cadeira da cozinha. Ele devia ter cinquenta e poucos
anos. Suas roupas eram novas e tradicionais, sua atitude era de
apreensão e seu pé batia contra o chão nervosamente. Slick estava
apoiado na porta de saída, fumando um baseado e sorrindo
largamente.
Connie perguntou em espanhol:
— Você é um médico de verdade?
— Claro. — Ele não olhou para ela, mas respondeu tão baixinho
quanto ela havia perguntado. Ao ouvir seu sotaque, ela apertou os
olhos.
— Onde você é médico? — Ela conseguiu se apoiar no cotovelo e
tentou se levantar. — Minhas costas estão doendo, queimou pra
valer. Você é mexicano.
— O que te importa?
— De onde você é?
— Cidade do México.
— Não, é de Chihuahua, né?
— Me deixa em paz, mulher, você está querendo problema.
— De você? Você já tem problemas suficientes, praticando
medicina sem licença. Por que quer ferir a gente? Meus pais
também vieram de Chihuahua.
— Chihuahua que vá pro inferno.
— O pai dela é um empresário em Nova Jersey. Ele tem um
grande viveiro de plantas. Aquele cafetão podre te falou isso? Se
você encostar um dedo nela, o pai dela vai te complicar a vida, é
sério.
Dolly soltou um gemido longo e aterrorizante que ficou ressoando
no crânio de Connie. Ela não ouvia um grito tão desesperado desde
que havia deixado o hospício. Geraldo chamou o dr. Medias. Ele se
levantou lentamente e tentou alcançar uma sacola que tinha
colocado do lado da cadeira. Connie conseguiu se levantar usando
o pé da mesa como apoio, chutou-o no queixo o mais forte que pôde
e correu para o quarto. Ela tinha de pará-los!
A boca de Dolly estava sangrando novamente. O sangue escorria
pelo travesseiro e pela camisola esfarrapada que Connie havia
vestido nela. Ela tentava se desvencilhar de Geraldo, que a havia
imobilizado. Ele a mataria! Com sua perfídia, ele mataria Dolly e seu
bebê. Ela sangraria até a morte naquela cama.
Connie agarrou uma garrafa que estava num canto, uma garrafa
que já havia estado cheia de vinho californiano, mas que agora
servia de apoio para flores secas e gramíneas, colhidas em um raro
piquenique com Dolly, Nita, Luis (pai de Dolly e seu irmão) e a
família atual dele. Espalhando todo aquele mato nostálgico, ela
sacudiu o vidro e correu na direção de Geraldo. Ele não conseguiu
se soltar de Dolly rápido o suficiente para se defender, e ela quebrou
a garrafa no rosto dele. Seu nariz se achatou como um inseto
esmagado quando bate no para-brisa. Ele se desequilibrou,
encostando-se na parede e soltando grunhidos de raiva. Ela
levantou o jarro para bater nele novamente, mas algo segurou seus
braços por trás. Ela se torceu. Alguém a atingiu com um golpe forte
na nuca e ela tentou se virar. Outro golpe e ela perdeu os sentidos.

...

Connie estava deitada, amarrada a uma cama, olhando para cima,


vendo ali apenas uma lâmpada, empapuçada por medicamentos.
Amplictil? Parecia algo pior, mais forte, uma dose cavalar.
Tranquilizantes de hospital faziam-na se sentir atropelada por um
caminhão, depois de ficar tanto tempo sem eles. Diserim? Cada vez
que ficava inconsciente, Connie era torturada por câimbras nos
quadris, nos seios; estava presa novamente no incêndio no velho
apartamento de Chicago. As chamas lambiam sua pele, e seus
pulmões se enchiam de fumaça, asfixiando-a. Tentava se
desvencilhar de algo que havia caído sobre ela para poder escapar,
mas não conseguia se mover.
Seu corpo doía. Sua cabeça doía por inteiro. Geraldo e seu
capanga Slick tinham batido nela duas vezes: uma logo que havia
quebrado o nariz de Geraldo e de novo no carro dele, a caminho de
Bellevue. Sentia uma dor terrível nas costelas do lado direito e
imaginou que uma ou duas podiam estar quebradas. Provavelmente
Geraldo a tinha chutado enquanto estava caída no chão. No carro,
ela recobrara os sentidos e ele começou a socá-la no rosto, no peito
e nos braços. Ele bateu nela até Dolly implorar para que parasse e
começar a chorar e ameaçar saltar do carro em movimento.
Cada vez que inspirava o ar, sentia dor. Como ela podia fazer o
hospital tirar um raio x para saber se não tinha nenhuma costela
quebrada? Até então ninguém tinha ouvido uma única palavra do
que ela tinha a dizer, o que não era de se admirar. Geraldo era
esperto — trazê-la para Bellevue, por exemplo, em vez de ir para o
Hospital Metropolitano na rua 96. Bellevue tinha registros dela da
outra vez. Ele inventou que ela havia atacado Dolly e ele no
apartamento dela na rua Rivington. Ele não queria correr o risco de
que não a admitissem como doida.
O médico nem a havia entrevistado, conversando exclusivamente
com Geraldo e trocando apenas algumas palavras com Dolly.
Geraldo a segurava pelo cotovelo, o rosto dela ainda inchado. Dolly
tinha mentido e entregado Connie para Bellevue, e para quê? Para
salvar a própria pele, já poluída? Por causa do nariz do seu precioso
cafetão? Pela chance de foder mais clientes? Como Dolly pôde se
sentar ali choramingando e balançar a cabeça afirmativamente
quando o médico perguntou se Connie tinha feito aquilo ao rosto
dela?
Connie se contorceu na cama, afivelada com folga o suficiente
apenas para alguns maneios. Eles a haviam imobilizado
imediatamente e a enchido de remédio. Ela estava gritando — está
certo! Eles achavam que precisava ser louco para reclamar sobre o
fato de ser imobilizado? Sim, achavam. Diziam que a relutância a
ser hospitalizada era sinal de doença, supondo que você estava
doente, em um daqueles ciclos de dupla perda. Da última vez, ela
não havia lutado, mas vindo de boa vontade com a assistente social,
acreditando na sua doença. Tinha vindo na humildade, pruída de
auto-ódio e cansada da própria vida.
Sua canela esquerda começou a formigar. Ela quis guinchar, de
tão aguda que era a dor. Desejava ardentemente massagear a
canela com as próprias mãos. O músculo formara uma bola rígida.
Se ela gritasse, talvez eles nunca a liberassem das amarras.
Tinham-na esquecido, trancando-a nesse depósito de vassouras
para passar fome. Ela já tinha se mijado. O que poderia fazer?
Agora estava deitada no seu próprio fedor molhado. Fazia muito frio
e agora vinha um calor do próprio corpo, além do mau cheiro.
Ela virou a cabeça, levantando-a para observar pela fenda na
porta, larga e baixa como uma boca. Caso visse um atendente olhar
para dentro, ela poderia sinalizar. Suas costas supuravam entre as
escápulas, bem onde havia sido queimada pelo fogão. Os dois
atendentes a tinham amarrado fortemente, e a injeção lhe entrara
nas veias como chumbo derretido. Dobrando um lençol, quente
recém-saído da máquina de secar, dobra, dobra, alisa, termina. O
processamento já havia começado. A atendente no balcão de
registros tinha segurado sua velha bolsa de plástico vermelha e
remendada com fita como se fosse algo sujo, um pedaço de lixo das
ruas. Sem cerimônia, a mulher espalhou suas poucas posses pelo
balcão e, com um gesto como se estivesse esvaziando um cinzeiro,
jogou tudo dentro de um envelope e o fechou.
Sua bolsa, as chaves, o pedaço de papel marrom no qual ela
estava fazendo as contas do orçamento de abril, seu recibo de
aluguel, a caneta esferográfica com o nome de uma empresa de
produtos de escritório que ela tinha encontrado no metrô, seu pente
de plástico preto, seu velho e amado estojo de pó adornado com um
pavão de cauda aberta que Claud tinha dado a ela de aniversário,
escolhendo com seus dedos sensíveis a aparência do modelo, o
batom vermelho da loja de 1,99 que ela usava apenas em ocasiões
especiais, evitando o dia em que ele acabaria e ela não teria
dinheiro para comprar outro — a menos que Dolly desse um para
ela. Dolly, que a tinha traído e abandonado! Que a tinha vendido de
volta aos grilhões. Na entrada, seus cartões de identificação tinham
sido tomados: cartão do seguro-desemprego, cartão de saúde,
cartão da biblioteca, fotos da Dolly com a Nita, de Angelina ainda
bebê, com um ano no colo do pai, Eddie, com dois no colo dela e
com três anos de mãos dadas com Claud, com aquele sorriso que
parecia uma canoa — do jeito que ela desenhava bocas. Não havia
fotos de Angelina aos quatro anos de idade ou depois.
Por meio de alguma ligação de sangue como um cordão umbilical
fantástico, será que Angelina, em Larchmont ou Scarsdale, podia
sentir a mãe na pior? Suas costas doíam tanto, sua canela doía, seu
rosto latejava, sua costela ardia quando respirava, seu ombro
estava ferido onde Geraldo lhe havia torcido o braço no banco de
trás do carro até ela achar que iria quebrá-lo. Sua língua estava
inchada e a boca, cheia de sangue, assim como estava a de Dolly.
Um gosto detestável: o dela mesma. O cheiro do seu mijo encheu-
lhe as narinas. Ela começou a chorar, então engasgou-se nas
próprias lágrimas e parou, em pânico. Não podia assoar o nariz. As
lágrimas escorreram para sua boca. Ela estava amarrada como uma
ave de festa pronta para ser assada.
Aquele médico. Como era o nome dele? Jovenzinho, com um
cabelo castanho e fino, esvoaçante, nem muito curto, nem muito
comprido, que ficava bocejando e tentando disfarçar bocejos de
forma que os músculos da sua mandíbula se flexionavam
estranhamente enquanto ele questionava Geraldo e registrava
informações em um formulário. Geraldo estava quase acanhado. Ele
sabia bem lidar com as autoridades, como qualquer bom cafetão
deveria saber, respeitoso, mas confiante. De homem para homem,
cafetão e médico discutiam a condição dela, ao passo que Dolly
chorava. O médico lhe perguntou apenas o nome e a data. Primeiro
ela disse que era dia catorze e então mudou para dia quinze,
pensando que já deveria ter passado da meia-noite. Ela não fazia
ideia de por quanto tempo tinha estado inconsciente.
— Olha, doutor, eu não bati nela! Leva minha sobrinha pra outra
sala, longe dele, e pergunta se eu bati nela. Foi ele que bateu nela!
O médico continuou fazendo anotações no formulário. Ela era um
corpo que estava sendo admitido no necrotério, carne sendo
marcada para as balanças.
Tentou dizer para a enfermeira que lhe aplicava a injeção, para os
atendentes que a amarraram na maca, que ela era inocente, que
estava com uma costela quebrada, que Geraldo havia batido nela.
Era como se falasse outra língua, aquela língua que um camarada
de Claud estava aprendendo e que ninguém conhecia: iorubá. Eles
agiam como se não pudessem ouvi-la. Se reclamasse, leriam nisso
um sinal de doença. “A autoridade do médico se enfraquece se o
paciente tem a pretensão de expressar um diagnóstico”, tinha
ouvido um médico dizer a um residente, ensinando-o a não dar
ouvido aos pacientes. Ela tinha passado por isso da última vez em
que estivera internada, quando tivera uma dor de dente que se
transformou em um abcesso antes de a enfermeira e os atendentes
pararem de interpretar suas reclamações como um “padrão de
comportamento da doença”.
Besta, muito besta! Ela tinha sido trancafiada novamente. Tinha
pulado direto para o fogo. Por que tinha feito aquilo? Por quê?
Ainda assim, deitada e forçada a refletir, ela descobriu uma raiva
límpida espumando dentro de si. Odiava Geraldo, e essa era a coisa
certa a fazer. Atacá-lo foi diferente de quando ela transformara sua
raiva, sua dor e a perda de Claud em auto-ódio, em drogas e
calmantes, em álcool, em vinho, em ver a si mesma em Angelina e
abusar daquela parte de sua personalidade novamente arrastada
para dentro de um mundo sujo. Sim, dessa vez era diferente. Ela
não tinha atacado a si mesma, nem a si projetada em outro, mas
sim Geraldo, o inimigo. Ela não havia errado ao defender Dolly, sua
pessoa mais querida agora, sangue do seu sangue, quase uma
filha. Como ela podia deixar Geraldo desfigurar o corpo de Dolly?
Ela tinha quebrado o nariz dele, sim; e mesmo com toda a dor que
sentia, ela sorriu ao rever esse momento. Ela tinha acabado com o
nariz dele, que jamais teria a mesma aparência. Na última vez
internada, tinha aceitado o fardo da doença, o peso do julgamento
cruel que tinham feito ali, ao qual tinha se curvado. Dessa vez não
estava envergonhada. Ela sairia logo. Claramente, seria
considerada sã, competente, autoconfiante.
Por quanto tempo ela jazia amarrada naquela cama? Dia e noite
eram iguais. Eles a haviam esquecido e ela morreria ali no próprio
mijo. Às vezes, não aguentava mais e gritava tão alto quanto podia,
implorando para que as paredes se abrissem. Momentos duravam
uma eternidade. Ela estava ficando louca. As drogas deixavam sua
mente estranha. Tinha sido apanhada, estava estagnada. Ela
flutuava presa como um embrião num vidro de álcool, aquela coisa
horrorosa que o pessoal do Direito à Vida tinha na van que ela vira
na rua. Ela estava aprisionada em um momento fora do tempo que
não acabaria nunca, não se completaria jamais. Ela estava louca.
Sim, agora ela tinha enlouquecido. Como podia duvidar disso,
deitada ensopada no próprio mijo enquanto seu corpo gritava e a
droga a deixava endurecida como um pedaço de metal?
Às vezes ela se entregava a um cochilo mormacento e quente, e
às vezes a dor nas costas ou na costela ou na boca atrapalhava seu
sono e ela acordava doida de dor e chorava.
— Por favor, por favor, por favor, vem aqui. Me deixem sair.
Alguém, por favor! — Nenhuma resposta. Aquilo era loucura.
Chorava e gritava e xingava e berrava, mas era como se ela não
tivesse feito nada. Ela estava cochilando naquele sono inquieto e
febril, sem descanso ou alívio, quando a porta se escancarou com
um barulho. Duas atendentes entraram e a desamarraram.
Ela cambaleou para frente, fraca como um barbante. Podia ver
estampado em seus rostos nojo, enfado. Ela estava cheirando mal,
fedendo! Elas a arrastaram por um corredor como se fosse um saco
de lixo e não prestavam atenção ao que ela tentava dizer.
— Por favor, eu imploro, me escuta. Me bateram antes de me
deixarem aqui. Minha costela dói muito. Por favor, me escuta!
— Então eu disse pra ela: está bom pra você. Você não tem que
lidar com esses animais o dia todo. — A mulher tinha o cabelo
fortemente tingido de loiro e falava com um sotaque da Europa
Central. — Tudo que você faz é vir dois dias e jogar uns jogos com
os melhores. É fácil pra você dar opiniões.
— Aqueles terapeutas ocupacionais levam uma vida fácil. — A
outra mulher, com um metro e oitenta, era uma negra corpulenta. —
Melhor acreditar nisso. A gente não vive direito, Annette. Somos só
força bruta.
— Mas a Byrd me dá nos nervos. Ela não é nada demais. Sabe,
ela mora com um cara que não é casado com ela. Vive com ele
abertamente num apartamento em Chelsea.
— Ummm. — A negra tinha o olhar neutro, desinteressado. —
Aqui, pro chuveiro você, tranqueira — ela disse para Connie por
cima do ombro. Elas começaram a despi-la.
— Eu posso tirar minha roupa.
— Olha só, nossa senhora, essa daqui não está um bagaço? Ela
pulou de uma janela ou algo assim?
— Eu apanhei. De um cafetão. Não era meu — ela rapidamente
consertou. — Ele estava batendo na minha sobrinha. Foi ele que me
trouxe pra cá.
— Agora, no que você está metida? — a atendente negra se
perguntou, jogando-a para debaixo do jato do chuveiro como se
fosse um cachorro. — Umas belezas de hematomas que você
arranjou!
— Ela vai ficar mais cheirosa depois que terminar. É de se pensar
como eles conseguem viver assim, sem tomar banho nunca. Mas
isso faz parte da doença — disse a loira de forma altiva. —
Provavelmente ela anda dormindo na rua, em algum capacho. Eu
vejo muita gente assim por aí.
Connie queria gritar que tomava banho tanto quanto elas, que elas
é que tinham feito ela cheirar mal, se sujar, mas não teve coragem.
Primeiro, não iam ouvi-la, e depois, pode ser que a machucassem.
Quem se importaria?
Já que suas roupas estavam imundas, deram-lhe um pijama azul
três tamanhos maior que o dela e uma camisola desbotada. Maldita
sorte de ter sido confinada logo que chegou. Se tivesse podido
caminhar até a ala em que ficaria, eles a teriam deixado ficar com a
roupa da rua e mais algumas coisas. Nesse lugar, um pedaço de
papel, um livro, um lenço, um pedaço de lápis, um grampo eram
preciosos além da imaginação de quem estava fora, verdadeiros
tesouros insubstituíveis.
Ela percebeu que estava andando de uma forma estranha, mas
não por causa dos machucados. Ah, a velha e conhecida dose de
Amplictil. Ela não conseguia mais se mover de forma graciosa e
rápida, apesar de sua robustez. A atendente negra a encaminhou
até a sala comum, um cômodo grande e lúgubre entre a ala
feminina e a masculina, bem ao lado da porta trancada que dava
para o corredor e para os elevadores. Lentamente, olhou ao redor.
Viu de relance um relógio enquanto entrava, então sabia que eram
onze da manhã. Não estava com fome, apesar de fazer muito tempo
que tinha comido. O remédio tirava o apetite a ponto de ela se sentir
vazia, fraca, mas não faminta. A costela a incomodava, se sentia
febril, e provavelmente estava, mas não havia nada que pudesse
fazer. Sua única esperança era conseguir a atenção de um médico
assim que cruzasse seu caminho na ala ou então convencer uma
das atendentes de que ela precisava mesmo de atendimento
médico, então a atendente falaria com o médico. Levaria dias para
conquistar um relacionamento assim com uma atendente, e nesse
meio tempo ela poderia morrer.
Como estava quente aquela ala! Vapor quente saía dos radiadores
ligados a todo vapor. Ela manuseou a pulseira plástica de
identificação presa ao seu pulso. Mulheres com roupa da rua ou
com as roupas que o hospital havia lhes dado sentavam-se ao longo
das paredes, olhando para o nada ou para um aparelho de televisão
colocado numa prateleira alta que ninguém conseguia alcançar para
mudar de canal ou o volume. Estava menos lotado do que da outra
vez que estivera ali, de uma forma evidente. Em frente a ela, duas
senhoras conversavam animadas com um sotaque judeu do
Brooklyn, como se fossem duas fofoqueiras no banco da praça em
vez de duas loucas num banco de plástico do manicômio. Mas
talvez elas fossem apenas idosas e não malucas. Aos pés delas,
uma jovenzinha jazia imóvel com as mãos cobrindo o rosto, como
um cão adormecido. Havia muito menos mulheres dessa vez. Será
que havia uma nova lixeira para os velhos?
Quatro porto-riquenhos sentados a uma mesa de cartas jogavam
dominó com pedaços de papel em câmera lenta, resultado do alto
grau de medicação sob o qual estavam todos ali. O jogo parecia
acontecer debaixo d’água. Uma criança, um menino com seus oito
ou nove anos de idade, estava sentado perto deles e cutucava o
nariz na mesma velocidade lenta, com um olhar vazio e
desesperado, de forma que ela preferiu desviar o olhar. A maioria
das mulheres estava sentada em cadeiras plásticas que se
espalhavam de quatro em quatro encostadas nas paredes, mas
havia mais mulheres que cadeiras. Apesar de algumas serem mais
velhas, havia crianças, negras, pardas, brancas, todas mais ou
menos parecidas e com a mesma expressão no rosto. Ela sabia que
em pouco tempo aquela ala, como todas as outras onde já havia
estado, estaria povoada de personalidades marcantes, uma rede de
romances e brigas e estratégias de sobrevivência. Ela se cansou só
de imaginar. Quem precisava ser colocada nesse limbo desolado
para sobreviver no limite da sorte? Ela já havia tido muitos
problemas, chega!
— Almoço, meninas, almoço. Entrem na fila agora! Vamos, mexam
esses traseiros, mocinhas! — A sala de jantar ficava depois de uma
curva no corredor naquela mesma ala. De cá para lá eles iam no
espaço confinado, saindo do banheiro sem porta para a sala de
jantar, para a reclusão (chamada ali de salas de tratamento), para
os dormitórios, para a sala comum.
O almoço era um caldo cinza e uma salada institucional de aipo e
uma gelatina laranja com uvas passas. A comida não tinha sabor,
exceto pelo doce da gelatina, e ela teve de comer tudo com uma
colher de plástico. Pelo menos não precisava mastigar a comida
com sua boca machucada. Os objetos no caldo estavam sem
consistência, pedaços de pequenos destroços numa gororoba
morna. Ela tentou pensar em como sair dali, mas sua mente estava
enlameada.
O almoço terminou em quinze minutos e então eles voltaram para
a sala comum, vagueando até formarem uma fila para a medicação.
Ela precisava ser esperta para planejar uma forma de sair dali. Os
efeitos da injeção ainda não tinham passado, então ela não esboçou
nenhuma reação no momento em que viu o copo descartável com
os comprimidos. Grácias, grácias. Era fácil lidar com os
comprimidos, diferente do líquido, que precisava ser engolido de
uma vez. Ela os posicionou sob a língua, engoliu a água e se sentou
em uma cadeira laranja. Não adiantava se dirigir imediatamente
para o banheiro para cuspir, então ela os manteve debaixo da língua
até as cápsulas derreterem e ela começar a sentir o gosto amargo
do remédio.
O horário de visita chegou no meio da tarde. A esperança lhe deu
pontadas quando a atendente veio dizer que ela tinha um visitante.
Dolly estava com uma maquiagem muito forte. Não vestia seu
casaco com gola de pele, e sim o velho casaco vermelho com cinto,
o qual Connie lembrava ser do ano que ela tinha se casado e estava
grávida da Nita.
— Dolly, me tira daqui!
— Querida, eu ainda não posso. Seja um pouco paciente. Lá pro
meio da semana que vem.
— Dolly, por favor! No puedo vivir en esto hoyo. Hija mía,
ayúdame!2
Dolly preferiu responder em inglês:
— É só por alguns dias, Connie. Não vai ser como da última vez.
— Educadamente lembrando-lhe que ficar trancafiada em um
manicômio era algo ao qual ela já deveria estar acostumada.
— Dolly, como você pôde dizer que eu bati em você? Eu?
— O Geraldo... me fez falar isso.
Ela baixou o tom de voz:
— Você fez a operação?
— Vou pro hospital na segunda. — Dolly mexeu no cabelo. — Eu
convenci ele a não usar aquele açougueiro em mim. É caro, mas vai
ser no hospital mesmo, não com aquele açougueiro que opera todas
as putas por uma ninharia — Dolly falou com orgulho.
Connie deu de ombros, sua boca arqueou.
— Você podia deixar a cidade.
— O papai também não vai me deixar ter o bebê, aquele velho...
— Dolly cutucou a cutícula, destruindo parte da lisa camada de
esmalte vermelho. — Perguntei mesmo pra ele. Disse que lavava as
mãos. Olha, Connie, se eu operar, o Geraldo disse que eu posso
parar. Ele vai se casar comigo. Vamos ter um casamento de
verdade mês que vem, assim que tiver melhorado da operação.
Então, veja, as coisas estão dando certo. E assim que eu sair do
hospital tiro você daqui. É só uma semana.
— Por favor, Dolly, me tira daqui antes de ir pra operação. Não
consigo aguentar ficar aqui.
— Não dá. — Dolly balançou a cabeça. — Você realmente acabou
com o nariz dele. Ele vai ter que passar por uma cirurgia! Vai ser
uma facada, Consuelo. Ele está horrível, com um curativo tapando o
nariz todo. Parece um pássaro! Uma águia louca com aquele bico
enorme no meio da cara. — Dolly começou a rir, cobrindo a boca
com uma das mãos.
Connie sorriu mesmo com dor.
— Estou feliz por ter batido nele!
— Bom... — Dolly revirou os olhos. — Acho que dá pra consertar
com cirurgia plástica. Você realmente desceu o cacete! Mamá, você
arrebentou a fuça dele com a garrafa de vinho. Pensei que ele ia te
matar.
— Queria eu ter matado ele — Connie falou muito, muito
suavemente. — Como você pode se importar com ele e sua cara de
pau estando ainda inchada por causa da surra que ele te deu?
— Ele é meu homem — disse Dolly, dando de ombros. — O que
que eu posso fazer?
— Olha, você pode me trazer umas roupas e umas coisas antes
de ir pro hospital? — Quando impedida, faça manobras para
sobreviver, a primeira regra da vida internada.
— Claro. O que você quer? Amanhã eu trago pra você, mais ou
menos nesse horário.
Ela foi para o banheiro depois que Dolly saiu e ficou lá pelo tempo
que pôde. Cabines sem portas. Apesar do fedor, era um lugar para
se estar sozinha, o que era precioso no hospital. Como ela pôde
gritar com Dolly? Pra quê? Dolly escolheu acreditar no Geraldo; se
tentasse convencê-la de que sua crença estava errada, Dolly se
afastaria dela. Então não a ajudaria a sair, não traria mais roupas e
as miudezas de que precisava para fazer aqueles dias vazios
passarem de forma mais suportável. Ela julgava a sobrinha por ter
escolhido o Geraldo em vez de seu bebê recém-concebido e a
própria tia, mas ela mesma não tinha escolhido prantear Claud
quase até se matar?
Lá fora, será que a chuva molhava a Primeira Avenida? O sol
conseguia sangrar de luz aquele dia nublado e feio? Será que
estava fazendo um raro dia de céu azul, no qual os prédios ficavam
até mais nítidos? Lá estava a hora da medicação. Lá estava a hora
de entrar na fila para encher a boca com a água daqueles copos
descartáveis. Lá estava a hora de se enfileirar para receber aquelas
refeições industrializadas. Lá estava a hora de se enfileirar para
receber mais remédios. Lá estava a hora de se sentar e se sentar e
se sentar. Lá estava a hora de cumprimentar uma face negra
familiar mais uma vez.
— É, fui trazida uns três ou quatro dias atrás — Connie disse para
ela. — Está aqui faz tempo?
— Minha assistente social me trouxe na segunda. Pelo mesmo
motivo da última vez também?
— Sim, foi minha assistente social. — Connie anuiu.
Lá estava a hora de se sentar e encarar a assistente social, a
senhorita Ferguson, que olhava para os registros espalhados na
mesa em vez de olhar para ela. Ferguson se sentou ereta e de
tempos em tempos dava uma olhadela para a porta.
— Você não deve ficar ansiosa por minha causa — Connie falou.
— Eu não fiz o que o cafetão do Geraldo falou. Não bati na minha
sobrinha. Não machucaria nem um fio de cabelo dela. Nele sim, eu
bati, é verdade. Mas só bati nele porque ele estava dando uma surra
nela.
— Foi assim também que aconteceu com a sua filha? — Ela tinha
o cabelo castanho claro encaracolado nas pontas. Usava óculos de
senhora e calça azul desbotada. Uma espinha tinha surgido na
ponta do nariz, e sua mão direita insistia em ir cutucá-la.
— Não foi a mesma coisa! Não foi!
— Como podemos ajudá-la se você não nos permite ajudar? — A
mulher deu uma olhadela no relógio enquanto reorganizava os
papéis em sua pasta. — Há três anos você foi internada em
Bellevue por recomendação conjunta da assistente social da Vara
do Bem-Estar da Criança, da sua assistente social do seguro-
desemprego e do seu oficial da condicional. Foi então hospitalizada
no Hospital Psiquiátrico Estadual Rockover por oito meses.
— Eles disseram que eu estava doente e concordei. Alguém
próximo tinha morrido e eu não queria seguir vivendo.
— Você tem um histórico de violência contra menor.
— Uma vez! E eu estava doente!
— Seus direitos parentais foram suspensos. Sua filha, Angelina
Ramos, foi colocada para adoção.
— Nunca deveria ter concordado com isso. Não entendia o que
estava acontecendo! Achei que eles iam apenas cuidar dela.
— Foi uma decisão clínica do psiquiatra legal, que indicou que sua
filha estaria em melhores condições com pais adotivos. — A espinha
crescia enquanto ela observava. Ferguson continuava a mexer nela
disfarçadamente, enquanto fingia não fazer aquilo.
— Eles estavam errados em tirar minha filha de mim! — Connie
viu a moça franzir o cenho. — Imagine... se fosse sua filha. Eu a
machuquei uma vez. Foi algo horrível que fiz, eu sei. Mas me punir
por isso pelo resto da minha vida?
A assistente social estava olhando para ela como se visse uma
barata. A maioria das pessoas batia nos filhos, mas se você
dependia do seguro-desemprego e estava em condicional, então o
representante da ordem social tinha o direito de entrar em sua
cozinha, xeretar nos armários e embaixo da cama, contar os
percevejos e a quantidade de sapatos, e era melhor não bater nos
filhos nem uma vez. Ela tinha sido má com a Angie, a criança
negligenciada e maltratada, como a tinham chamado oficialmente.
Aqueles meses depois de ter recebido a notícia da morte de Claud
se passaram em meio a calmantes e vinho tinto barato, além de
algumas injeções de anfetamina. Ela achava que nada mais podia
feri-la — até perder Angelina. Talvez sempre se tenha algo a mais
para perder, até que, como fizeram com Claud, levam a sua vida
também.
— O conhecido que morreu, ele seria seu... o trombadinha negro e
deficiente de quem você era ajudante?
Connie mudou radicalmente de expressão. A arapuca era simples:
eles faziam você dizer algo e dali sacavam alguma interpretação
que explicava a sua vida, que por fim encaixavam num padrão de
doença. Ela nem conseguia dizer cego. Ele não era deficiente, era
um bom saxofonista e um trombadinha talentoso que trazia para
casa coisas boas para ela e o bebê. Ele tinha sido bom para Angie e
a tratava como se fosse sua própria filhinha. E tinha sido bom para
ela também, o homem mais doce que ela já havia tido. Enfureceu-
se. Como se Claud pudesse ser resumido nos arquivos podres
deles, tanto pela doçura quanto pela dor. Eles o tinham matado
também. Na cadeia, ele tinha feito parte de um experimento médico
por dinheiro e redução da pena. Eles o haviam injetado com o vírus
da hepatite; a doença seguiu seu curso e ele morreu. O oficial de
condicional dela, Biggs, não a tinha deixado ir ao funeral, aquele
cretino! Ele achava que os dois iam planejar alguma coisa, com o
Claud dentro de seu caixão selado?
— O homem porto-riquenho que você descreve como “cafetão” da
sua sobrinha é o mesmo homem que é noivo dela?
— Ele é o cafetão dela. Esse é o ganha pão dele. Tem mais três
garotas. — Connie se aprumou na cadeira, desistindo. Não tente
ganhar agora, apenas sobreviver. — Olha, por favor, senhorita
Ferguson, olha pra minha boca, onde ele me bateu. Você olharia pra
mim apenas por um momento, por favor? Aqui do lado, dói muito.
Depois que eles me nocautearam, ele me chutou enquanto eu
estava caída. Quando respiro, toda vez, o tempo todo, dói. Eu
acho... — Ela estava prestes a dizer que sua costela estava
quebrada ou fraturada, mas eles se ressentiam se você dissesse
algo num linguajar médico. — Acho que tem algo errado dentro de
mim, onde ele me chutou quando eu estava no chão.
— Quem são “eles” que você acredita terem te nocauteado? Você
se refere à sua sobrinha Dolores Campos?
— Não! Ele veio com um... — Connie percebeu que não queria
dizer “médico”. Ela tinha de medir todas as palavras com eles. —
...com uns outros caras, uns capangas. Quando eu bati nele, eles
me nocautearam.
— Você então admite que se lembra de tê-lo acertado?
— Sim, ele estava batendo na Dolly.
— Sua sobrinha afirma que você a atacou.
— Ela me disse que ele a forçou a dizer isso. Pergunte pra ela em
particular. Eu lhe imploro, pergunte pra ela sozinha. Ela morre de
medo de contradizer o Geraldo. — Suas mãos se juntaram numa
postura de oração e ela ouviu a própria voz suplicante — Por favor,
senhorita Ferguson, veja se um médico pode dar uma olhada em
mim. Estou com tanta dor. Por favor, eu imploro, olha a minha boca.
— Você diz que está machucada. Onde você acredita sentir dor?
— Na lateral do peito. Minhas costelas. Na minha boca também. E
minhas costas estão queimadas. São os lugares piores. O resto é só
de machucados.
— Na lateral do peito?
— Dói toda vez que eu respiro. Por favor?
— Bem, você realmente está com alguns ferimentos. Tudo bem,
vou conversar com a enfermeira. — Ferguson acarinhou a espinha,
fingindo arrumar os óculos. Então dispensou Connie com um aceno
de cabeça.
Finalmente, na terça-feira, Connie tirou um raio x e sua costela
quebrada foi imobilizada e sua boca, examinada. Um atendente a
levou para uma consulta com o dentista. Nisso, perdeu o horário de
visita, então não sabia se Dolly já tinha saído do hospital. Mas no
dia seguinte com certeza ela viria e conversaria sobre sua alta. Se
ela conseguisse fazer Dolly dizer a verdade para o médico, para a
enfermeira, até mesmo para a assistente social, então eles a
deixariam ir... Resolver toda a questão da liberação levaria uns dois
dias, então ela já estaria fora na sexta-feira à noite.
Connie se sentou numa cadeira bamba no corredor do consultório
do dentista; a atendente sentou-se ao lado, lendo com toda a
atenção uma revista de astrologia. Como ela comemoraria a sua
liberação! Seu esquálido apartamento de quarto e sala com
banheiro externo brilhou em sua mente, parecendo-lhe vasto e
luxuoso depois daquele hospital. Portas que ela podia fechar!
Cadeiras para se sentar, uma mesa para poder comer, uma
televisão que ela podia ligar e desligar e colocar em qualquer
programa que quisesse, sua própria cama com lençóis limpos e
nada daquele fedor de mijo velho. Teria sua liberdade e privacidade
de volta! Como eram preciosas!
Sim, ela levantaria de manhã na hora que quisesse, em vez de
quando o atendente viesse gritando. Não teria mais de tomar
Amplictil, nem remédio para dormir, então não sentiria mais aquela
embriaguez e a infinita e profunda moleza. Noites de sono com
sonhos reais. Ela passaria fome por uma semana só para ter o
prazer de comer uma laranja de verdade, um abacate. Não haveria
ninguém para dizer-lhe o que fazer. Ela andaria alegremente pelas
ruas sem a companhia de um atendente e iria respirar o belo ar
poluído. Andaria até ter vontade de se sentar.
Na cozinha, iria cantar e dançar rodando, cantaria músicas para as
cucarachas e os percevejos, seus percevejos! Sua vida, que parecia
tão desgastada, agora se assemelhava a uma rosa vermelha e
aveludada — a rosa que Claud uma vez tinha trazido para ela, que
adorou pela maciez, pela fragrância, sem saber que na verdade
tinha um tom vermelho escuro. Sua vida comum e cheia de tostões
se materializava perante ela com uma completude que se estendia
para além da possibilidade de saborear cada momento. Era uma
vida recheada, transbordando de aromas de café, fumaça de
maconha nos corredores, fritura em óleo reutilizado enquanto ela
subia as escadas do seu conjunto habitacional, da fragrância de
mato recém-cortado e dos novos botões desabrochando no Central
Park. Vendedores ambulantes. Cuchifritos.3 O ritmo dos tambores
de conga nas ruas durante a primavera.
Esperando pelo dentista na cadeira bamba, sua boca se enchia de
saliva e ela olhava com inveja para o café que a atendente estava
bebericando. Café com leite, provavelmente também adoçado. Para
puxar conversa, ela perguntou:
— Qual é o seu signo?
A mulher olhou para ela de soslaio.
— Sagitário. — Connie não fazia ideia quando era aquilo.
— Sou de Áries.
— Seu signo é lelé, menina. — E voltou para a revista, virando um
pouco o corpo para o lado.
Ela seria liberada logo. Logo! Engula todos os insultos. Fique
quieta. Ela teria coisas melhores do que o café de uma cafeteira!
Faria para si mesma café com o pó de café dominicano que tinha
aberto naquela noite para a Dolly. Ela estava com tanta vontade de
comida mexicana! A comida porto-riquenha era diferente. Ela tinha
aprendido a comê-la, a gostar dela. Na verdade, tinha até cozinhado
salcocho, mondongo, asopao,4 e muitos pratos com banana da terra
para o Eddie e para a Dolly também, cuja mãe, Carmela, era de
Porto Rico. Mas até mesmo as bancas da feira eram diferentes,
todos aqueles tubérculos — mandioca, batata yacon, taro —,
bacalao, o bacalhau salgado, em vez de uma base de milho e feijão.
Ela tinha crescido comendo o feijão carioca, enquanto os porto-
riquenhos comiam o feijão preto. Connie tinha notado uns
restaurantes mexicanos em Nova Iorque, mas eles eram caros
demais para ela. Parecia ridículo morar em um lugar onde a sua
comida do coração era mais cara do que se podia pagar. Ela
acabava comendo mais comida chinesa do que mexicana.
Respirar o ar da liberdade seria o suficiente. Ela não tinha se saído
bem na entrevista com a Ferguson. Deveria ter falado sobre arranjar
um trabalho. Ela poderia tentar de novo. Talvez tivesse desistido
muito cedo da jornada de ir de escritório em escritório. Talvez
pudesse conseguir algum trabalho temporário em escritório, ou pelo
menos convencer a assistente social de que iria tentar. Eles
gostavam disso, de que você os convencesse de que conseguiria
um emprego. Então pensou na Ferguson e desanimou.
Provavelmente seria diferente na próxima vez.
Fazia quanto tempo que não datilografava? Quatro anos? Cinco?
Da última vez que estivera internada, ela tinha se inscrito para ser
datilógrafa, mas eles gostavam de contratar garotas mais novas.
Talvez tivessem uma máquina ali para ela praticar; precisava
melhorar os ângulos. O melhor seria ela mesma acreditar que
conseguiria um emprego, uma chicana gorda com trinta e sete anos
de idade, sem marido, sem a filha, sem as roupas certas, com sua
bolsa de plástico rachada na lateral e remendada com fita crepe,
além de uma ficha policial e um prontuário psiquiátrico. A secretária
do dentista se aproximou com passos leves para levá-las para
dentro, e a atendente a colocou de pé como se fosse uma boneca
de pano e a fez marchar para dentro para ser tratada.
A quarta-feira e a quinta-feira passaram vagarosamente, como
longos trens de carga, e finalmente chegou a sexta-feira. Na sua
ala, dois pacientes tinham uma liberação de final de semana e foram
para casa. Três outras mulheres estavam sendo dispensadas; suas
miudezas vieram em sacolas e os parentes as levaram embora.
Mais mulheres foram trazidas. Dolly não apareceu para vê-la. Então
a enfermeira, assobiando uma canção com uma batida latina que
tocava nas rádios ultimamente, mesmo naquelas que só tocavam
música de branco, parou e falou com ela:
— Muito bem, sra. Ramos, se arrume.
— Vou sair! Sabia! Estou sendo liberada, né?
— Você vai pro campo. Árvores e grama verdinha, pro descanso
de que precisa.
— Não me fala isso! — Ela se abraçou. — Vocês não podem me
mandar pra lá. Estou internada apenas pra observação.
— Sua família quer que você melhore, assim como o médico...
— O médico só falou comigo por cinco minutos!
— Você é uma mulher que está doente. Todo mundo quer que
você melhore outra vez — a enfermeira disse isso com uma falsa
doçura. — Você não quer melhorar?
— Quem autorizou minha transferência? Minha sobrinha fez isso?
— Seu irmão Lewis. Assim você não se machuca nem machuca
mais ninguém. Você foi uma menina má de novo, sra. Ramos.
— Pra onde estão me mandando?
— Vá juntar suas coisas. Você vai descobrir. — A enfermeira saiu
andando e assobiando aquela música chiclete da banda War, que
tinha tocado por todo El Barrio durante semanas.
...

A chuva veio forte. O dia estava úmido e rajadas de vento


espalhavam a água como se fossem ondas se quebrando contra as
laterais fechadas do ônibus-ambulância. Ela se sentou para poder
enxergar pela fresta, vestindo roupas suas, que Dolly tinha levado
para ela. A chuva tamborilava no teto metálico violentamente.
Debaixo d’água. Estava se afogando.
Ali estava ela, com a vida já pela metade, no meio do caminho
daquela jornada sombria que a tinha tirado das mãos da parteira em
El Paso e a carregado pela zona oeste de Chicago, pelo Bronx e
pela zona leste baixa de Nova Iorque até El Barrio. A dama de ferro
a carregava para o Hospital Rockover de novo. Luis a tinha
transferido. Um acordo tinha sido feito, uma espécie de trégua entre
os dois homens sobre os corpos de suas mulheres. Luis, que nunca
tinha admitido que sua filha mais velha fosse prostituta, mas que a
fazia se sentir como tal toda vez que ela ia até a casa dele. A dama
de ferro sacolejava bastante e seguia viagem, tratando-a com
dureza. No meio do caminho dos anos difíceis pelos quais todas as
mulheres tinham de passar, ela se encontrava então imobilizada,
aprisionada, drogada pelo Amplictil, que isso esgotava sua vontade
e anestesiava seu cérebro, drenando as energias do seu corpo.
Ela tinha perdido peso e o velho vestido amarelo agora estava
largo. Seus lábios e unhas estavam rachados por causa da
medicação e da falta de proteína. O dentista tinha lhe arrancado um
dente e obturado precariamente outros dois. Sua costela doía. A
faixa a apertava como se fosse um espartilho por baixo do vestido
solto. Dentro do estômago do monstro de lata, ela era carregada em
direção à escuridão incomum da tempestade de abril sem nada
enxergar.
O ônibus-ambulância parou de repente. Então fez curvas fechadas
e reduziu a velocidade de novo. Ela apertou os olhos contra a fenda
e olhou para as árvores que cresciam, os arbustos. À distância,
vislumbrou através do véu da chuva os muros que ela conhecia tão
bem, aquele lugar de punição, de tristeza, de morte lenta ou rápida,
o lugar que se chamava Hospital Estadual de Rockover.
Talvez ela merecesse a punição pela loucura que ninguém tinha
percebido, as perguntas que ninguém tinha feito, a história que
ninguém tinha tirado dela ainda: durante todo o mês anterior ela
tinha alucinado, cada vez mais e com mais detalhes, com um
homem estranho. Primeiro ela tinha sonhado com ele, e depois tinha
sonhado acordada e finalmente visto na rua aquele rosto de índio
imberbe.
Os portões engoliram o ônibus-ambulância e ela, deixando para
trás o mundo e entrando no submundo onde todos os indesejados,
aqueles que eram como dentes tortos de uma engrenagem, que não
tinham lugar ou que se encaixavam de través nos lugares em que
tinham sido martelados, eram aglomerados para se arrependerem
de sua contrariedade ou para seguirem com suas loucuras até as
profundezas do poço de terror. O ônibus já sem suspensão parecia
galopar para dentro do manicômio que nada oferecia. Por cima dos
velhos edifícios, a chuva caía como grandes cordas cinzas,
formando cascatas que percorriam as paredes de tijolos. Enquanto
faziam sinal para que ela descesse logo, Connie se surpreendeu
com umas andorinhas que revoluteavam pelo céu, mais para dentro
da ilha, como se estivessem sobrevoando depósitos de lixo. Pouco
era reciclado ali. Ela era lixo humano sendo carregada para o lixão.
CAPÍTULO 2

A primeira vez. Houve uma primeira vez? Os sonhos certamente


tinham começado em algum momento, mas ela tinha a impressão,
na primeira manhã em que acordara lembrando-se do sonho, de
que havia mais que ela não conseguia recordar, numa sensação
enevoada, mas convincente de estar retornando para um lugar que
já conhecia. Naquele momento, ela estava de barriga para cima no
meio esburacado de sua cama, numa espécie de vale que a deixava
duplamente consciente de sua solidão. Uma de suas tranças havia
se desfeito e se enrolava em sua garganta como uma cobra negra e
quente.
Normalmente, ao despertar, era sempre a mesma coisa: de novo
contas, de novo fome, de novo dor, de novo perda, de novo
problemas, de novo sem Claud, de novo sem Angelina, de novo
aluguel vencendo, de novo nenhum trabalho, nenhuma esperança.
Mas agora tinha acordado com um gosto doce na boca. A luz fraca
iluminava seu pequeno apartamento através da janela que dava
para um vão entre os prédios.
— No! No, mamacíta, no hágalo!5 — Alguma coisa pesada caiu no
andar de cima. Ela fechou os olhos.
O que flutuava na superfície do sono leve? O rosto de um jovem
rapaz, com a mão estendida. Apontando para alguma coisa?
Tentando pegar a mão dela? Um jovem de altura mediana com
cabelos pretos e brilhosos até os ombros, e uma feição
marcadamente indígena. Mais do que ela, até. Olhos juntos e
negros como feijões pretos, nariz grande, bochechas imberbes, uma
pele tão lisa quanto a dela... tinha sido. Nunca mais. Aquela pele
bronzeada e lisa como pêssego, lembrando ouro; como sua pele
tinha sido linda. Os chicanos estavam mais dispostos agora a
chamar a pele marrom de bonita do que na época em que ela tinha
a pele perfeita. La gente bronze. A tristeza subia pela sua garganta
como se fosse uma neblina; ela se virou e começou a tossir.
Chacoalhava inteira com a tosse. Viajava por uma estrada de terra
na caçamba do táxi do seu tio Manuel, enquanto a poeira levantada
pela passagem do carro criava uma longa nuvem na rabeira que
encobria a terra ressequida. Ela procurou no escuro pelo maço
amarrotado; ainda havia um, dois cigarros. Acendendo um, tragou a
doce fumaça e tossiu mais ainda, e então, com os pés no chão, se
levantou. Sua visão escureceu, depois ficou nítida. Chão frio. Ela se
atrapalhou com os sapatos, entortados nas laterais pelo tempo.
Adoraria ter pantufas, sim, pantufas fofinhas e bobas. Então
lembrou-se das pequenas pantufas cor-de-rosa para bebês nos pés
da Angie, presente do Luis, que chamava a si mesmo de Lewis.
Babaca! Luis, seu irmão, o anglo. Angelina tinha então sete anos,
quatro meses, vinte e dois dias... e oito horas. Ela tragou forte a
fumaça, explodiu num acesso de tosse e se arrastou até a cozinha,
para encarar o dia, que já estava bastante avançado. Alinhar, limpar
e organizar, aparar todas as rebarbas. Sua agente do seguro social,
sra. Polcari, vinha hoje.
Sua refeição matinal foi uma caneca de café light e adoçado, com
uma fatia de pão velho mergulhada nele, a ponta do último pão de
forma que havia na casa. Então, cuidadosamente ela recalculou seu
orçamento, algo que sempre fazia após cada ida ao mercadinho,
onde os preços estavam sempre subindo. Ainda estava faminta,
mas enganou o estômago tomando duas xícaras de água quente,
que limparam o último gostinho do café. Depois, limpou tudinho nos
seus dois cômodos minúsculos vagarosamente. Arrumou a cama de
forma impecável, até mesmo a bonita garrafa de vinho que servia de
vaso, coberta por folhas e flores, algumas com as hastes
quebradas. No piquenique, de onde ela havia trazido essas
lembranças, Nita, que estava aprendendo a andar, tinha caído no
sono nos braços de Connie de tanto cansaço. Ela havia se sentado
sobre o cobertor estendido, embevecida por aquele serzinho de
respiração leve e rosto corado. Uma borboleta preta e laranja tinha
pousado no seu braço e ela havia ficado tão imóvel curvando-se
sobre a bebê que, por alguns momentos, a borboleta ficou ali,
flexionando suas asas, abrindo e fechando aquelas telas coloridas.
Às onze horas bateram à porta. A sra. Polcari era magra, de lisos
cabelos castanhos e curtos, como uma vasilha de madeira polida
que descia até suas bochechas. Hoje ela estava usando brincos de
prata com pequenas pedras verdes que poderiam ser jades.
Grandes olhos castanho acinzentados com fartos cílios escondidos
por trás de óculos de armação dourada olhavam para ela com
surpresa. Uma vez Connie tinha perguntado por que a sra. Polcari
não usava lentes de contato e recebera em troca um olhar frio. Mas
eram olhos tão lindos. Se você tivesse dinheiro e fosse uma jovem
como ela, por que não? Sua grande boca carnuda se abria em um
sorriso branco e brilhante nas raras ocasiões em que ela sorria.
Mocinha, em dia com a moda, parecida com aquelas garotas da
faculdade que ela costumava ver quando trabalhava com o
professor Silvester. A sra. Polcari tinha cheiro de Arpège.
Hoje, tentava convencê-la a participar de um programa que
parecia a ideia brilhante de alguém em busca de trabalho doméstico
barato sem ter de importar mulheres do Haiti.
— Ah, não sei — ela disse para a sra. Polcari. — Quando você fica
sem emprego por tanto tempo, quem vai te contratar? — Limpar a
cozinha de alguma mulher branca era praticamente o último item da
lista do que ela estava disposta a fazer para sobreviver.
— Não seja tão... negativa, sra. Ramos. Olhe para mim. Eu voltei a
trabalhar depois que meus filhos começaram a estudar. Não
trabalhei durante todos aqueles anos.
— Como assim, você teve filho tão jovem? Se casou no colegial?
— Era tão estranho uma mulher branca ter filhos antes de fazer
dezoito anos.
A sra. Polcari fez uma careta.
— Não puxe o meu saco, sra. Ramos. Não me casei antes de
completar vinte e seis anos. Minha mãe tinha certeza de que eu iria
morrer uma velha solteirona.
— Quantos anos têm seus filhos então, sra. Polcari?
— O mais velho tem dez agora, e o mais novo acabou de fazer
oito.
Então ela devia ter pelo menos trinta e seis anos.
Depois que a sra. Polcari foi embora, Connie se olhou no espelho
acima da pia, tocando suas bochechas. Como as dela ficaram tão
jovens? Tomava algum remédio? No decorrer dos anos, algo
mantinha intactas as mulheres de cabelos limpos com cheiro de
Arpège, essas mulheres que iam para a faculdade e conseguiam
bons empregos e se casavam com profissionais bem-sucedidos e
viviam em casas cheias de aparelhos e cercadas de grama. Ela não
tinha aquela aparência tão jovem desde... desde antes de Angelina
nascer.
Inveja com certeza, mas igualmente um senso de ter sido traída a
azedava, e a vergonha, a vergonha de ser artigo de segunda
categoria. Rapidamente desgastada. Mercadoria fuleira.
— A gente se desgasta tão cedo — disse para o espelho, sem
muita certeza de quem era esse “a gente”. A vida dela tinha sido
pobre daquilo que significava “a gente”. Uma vez ela tinha ouvido
uma assistente social falando sobre os porto-riquenhos, ou “eles”,
como eram popularmente conhecidos na clínica (da mesma forma
que gente como ela era conhecida no Texas), dizendo que “eles
ficavam velhos cedo e morriam jovens”, assim a aluna que a estava
acompanhando em seu trabalho de campo não ficaria surpresa com
alguma doença que eles tivessem, por exemplo, tuberculose. Isso a
lembrava do Luis, falando sobre o peixe dos trópicos que ele
mantinha na sala de estar, casamento após casamento: “Ah, eles
morrem fácil, esses tetras cardinais neon, é só você comprar mais
quando o aquário esvaziar”.
Pelo menos seu orgulho obstinado a mantinha afastada dos
projetos de limpeza da sra. Polcari, a qual não estava sujeita às
mesmas leis da física, à mesma decadência, à mesma tirania dos
malefícios do tempo. Deixe a sra. Polcari olhar para ela como um
caso com antecedentes ruins, um caso-problema, mas ela não
encontraria uma sujeira que fosse na cadeira em que sentava o seu
traseiro, nem qualquer sujeira na mesa na qual ela concordava em
tomar um café instantâneo, sem açúcar.
Depois de dois dias varrendo o chão da cidade (programa do
seguro-desemprego), ela acordou muito cedo com uma dor matinal
na lombar, mas percebeu que havia despertado sorrindo. La
madrugada — o alvorecer —, uma palavra que sempre deixava um
gosto doce na sua boca. O rosto do jovem índio sorrindo, acenando,
curiosamente gentil. Ele não tinha aquela presença masculina dos
homens da sua família, nem a força maciça do Claud, ou a
combatividade irritável do Eddy. As mãos dele, quando seguravam
as suas, no entanto, não eram macias. Mãos tremulantes? Absurdo.
Quentes, calejadas, com um cheiro fraco de produto químico.
— Como devo chamar você? — a voz havia perguntado. Uma voz
aguda, quase efeminada, mas agradável, sem nenhum traço de
sotaque.
— Connie — ela havia dito. — Me chama de Connie.
— Meu nome é Luciente.
Estranhou que havia sonhado em inglês. Me llamo Luciente:
reluzente, brilhante, cheio de luz. Estranhou que com alguém
obviamente mexicano-americano ela não tivesse dito Consuelo. Me
llamo Consuelo.
— Venha — ele a havia impelido, e ela se lembrava do toque
daquela mão quente, gentil e calejada no seu braço nu, tentando
levá-la para algum lugar.
Na maior parte das vezes ela sonhava em inglês, mas ainda tinha
sonhos ocasionais em espanhol. Anos atrás, durante seus preciosos
quase dois anos na faculdade comunitária, quando cursara
psicologia, havia tentado entender os tipos de sonhos que tinha em
cada língua. Não deveria ter se retraído diante do jovem com voz
aguda e agradável e mãos de trabalhador. Ela deveria ter
caminhado ao seu lado e encostado seus seios no peito dele.
Mesmo durante o sono ela não conseguira fazer isso. Esfregou o
braço indolentemente no lugar onde a mão quente dele a tinha
tocado. Lisonjeiro. Agora ela tinha dado para sonhar com garotões.
Talvez, enquanto envelhecia, os garotos nos seus sonhos iam
ficando mais jovens, imberbes e magrelos como palitos.
Ela se virou na cama, começou a tossir e se engasgou com o
catarro. Xingando, cuspiu em um pedaço de papel higiênico e tentou
alcançar o maço de cigarro amarrotado na cadeira. Então ela parou.
Seus dedos. Aquele cheiro. Cheirou seu braço. Sim, o braço dela
exalava aquele cheiro de produto químico dos dedos de Luciente.
Os pelos da nuca dela se arrepiaram.
Idiota! Logo eles iriam trancafiá-la de novo. Então ela tinha
encostado o braço em algum lugar, provavelmente enquanto
limpava aquele escritório, e sonhara com isso, assim como
transformava o som de um alarme no badalar de sinos. O catarro
que ela tinha cuspido era marrom. Havia um pouco de sangue da
sua garganta, e era com isso que ela deveria estar preocupada.
Estava ansiosa demais para parar de fumar, mesmo sabendo que
isso a prejudicava. Ah, bom, um táxi a atropelaria antes que ela
pudesse morrer de câncer. Um assaltante espatifaria sua cabeça.
Ela pegaria câncer de comer as porcarias que comia com o pouco
dinheiro que recebia do seguro-desemprego.
A vizinha dela, a sra. Silva, bateu à porta assim que ela chegou do
mercado, onde havia comprado dois rolos de papel higiênico, pão,
bananas, espaguete e ovos. Queria hambúrguer, mas não tinha
dinheiro para a carne. Sua sobrinha Dolores, a Dolly, estava ao
telefone. Ela era a filha mais velha do Luis, do seu primeiro
casamento. Luis tinha se casado várias vezes e tido filhos com
todas as mulheres. A favorita dela era Dolly, que tinha vinte e dois
anos, era gordinha e doce, como inhame caramelizado. Quando
Dolly queria falar com ela, ligava para a sra. Silva.
Dolly pediu para ela descer até a rua Rivington, então ela agarrou
a velha carteira verde e sua bolsa de plástico rasgada e se dirigiu ao
metrô. No expresso para a ponte do Brooklyn, teve um pequeno
golpe de sorte. Quando estava entrando no vagão, viu uma
esferográfica no chão perto do assento e, quando a testou, estava
com tinta. Tinha um nome de uma papelaria do centro comercial e
era de tinta azul. Ela não tinha uma caneta que funcionasse há
meses. Tinha de escrever cartas com lápis. Agora escreveria com
caneta, como deveria ser. Naquela noite, com sua caneta nova,
escreveria para as duas irmãs. Colocou-a com cuidado dentro da
bolsa antes de mudar de linha, conferindo se a fita crepe ainda
tampava o buraco para que a caneta não escapasse. Ela também
pegou um jornal que um homem tinha largado no banco.
Na conexão entre Essex e Delancey, Connie pegou o trem para o
norte até Rivington, com uma forte e estranha consciência de sua
proximidade com a rua Norfolk, a cerca de um quarteirão de
distância, onde ela havia morado com Angelina numa quitinete,
naquele péssimo ano depois que Claud foi para a prisão. Aquele
cômodo era como uma caixa de dor. Dolly o tinha encontrado para si
depois de ter sido enxotada do apartamento que dividia com Claud.
Tinha três cômodos e banheiro próprio, e ficava a apenas dois
quarteirões da rua Mount Morris Park. Dolly, na época, morava com
o marido em Rivington, onde ainda morava com a filha Nita e às
vezes o cafetão dela, Geraldo. Havia a bodega onde Connie tentava
comprar fiado até o dia em que seu cheque chegasse, assim como
a loja de bebida que ela conhecia bem, com prateleiras e mais
prateleiras de vinho doce e barato.
O apartamento de Dolly estava parecendo uma sauna, como
sempre. Nita comia sentada em um cadeirão que estava ficando
pequeno demais para ela, terminando um pudim de coco de
caixinha e colocando quase tudo na boca de uma vez.
— Ahora comes como una santa! — Connie andava em torno da
filha da sobrinha. — Ela come direitinho agora. É uma menina tão
boa. Me dá um sorriso, Nita? Hazme los ojitos! Sim? Qué preciosa!6
O rosto de Dolly estava inchado de tanto chorar e ela dobrou a
manga da blusa para mostrar um hematoma.
— Um cliente fez isso com você?
— Foi o Geraldo!
— Por que você aguenta ele? É ruim até o último fio de cabelo.
Dolly suspirou e enrolou um baseado numa seda com cheiro de
licor de que ela gostava.
— Sabe quando eu voltei de San Juan e você me falou que eu
estava de barriga?
Connie assentiu, aceitando o baseado. Assim que soltou a
fumaça, disse:
— Você já sabia. Você queria muito uma criança.
— Ainda quero! Eu fiz um daqueles testes. Não desceu pra mim
desde aquela época.
— O que deu no teste?
Dolly deu uns tapinhas na barriga.
— Contei pro Geraldo ontem. Ele começou a gritar comigo que
tinha sido algum cliente e começou a bater em mim!
— Ele me deixa tão puta. Ele faz você sair com os caras e depois
te xinga por isso. É filho dele. Você voltou de Porto Rico grávida já.
— Connie tinha adivinhado assim que a vira. Dolly se levantou.
— Os clientes são um bom negócio. Não rebaixa isso, me dá um
bom sustento. Não trago os clientes aqui, faço o serviço em hotéis
ou na casa do Geraldo. Olha, toda mulher se vende. Jackie Onassis
se vendia. E daí?
— Então como é transar com eles?
— É um trabalho. — Dolly sugou a fumaça, franzindo o cenho.
Ficaram uns minutos em silêncio. Finalmente Dolly fungou. — Você
se odeia, você odeia o jogo. Nunca conheci uma mulher que não
odiasse cada movimento desse jogo.
— Larga ele, carita, larga ele. Deixa ele pra lá. Ele não vale nem a
unha do seu mindinho.
— Ele é esperto, Connie, a mente dele trabalha assim. — Ela
estalou os dedos. — Ele tem estilo. Todas as putas ficam espertas
querendo chamar a atenção dele quando ele está por perto... Eu
pensei: por que não ter um filho dele? Daí eu posso largar a vida.
Vou ficar igual era antes, só que melhor. Um homem te respeita
mais se você tem um filho dele. Por que não?
— Daí você não tomou a pílula em Porto Rico?
— Eu deixei elas aqui, nem coloquei na bolsa. Pensei também que
daria sorte, um bebê feito na ilha. Quero ter esse filho, Connie!
— Por que não? Filho único é sempre solitário. Por que não ter
outro? Você é uma boa mãe. Você larga a vida e tem esse bebê.
— Ele não deixa! Disse que eu tenho que fazer um aborto!
— Não! — Connie bateu com os punhos na mesa, um gesto
estranho vindo dela. Dolly ficou parada, olhando. — Você vai ter
esse filho sim. Vou te ajudar a cuidar das crianças. Eu ia adorar,
você sabe, é a verdade...
O telefone tocou. Era um cliente. Dolly saiu do banheiro para
retocar a maquiagem e se recompor. Connie a beijou, ficou
brincando com Nita por algum tempo e então, relutante, tomou seu
caminho descendo as escadas. Na rua, um vento úmido e irregular
vindo dos lados de East River alisou seu rosto. Ela se aninhou mais
dentro do casaco verde. O forro já era. Ela se sentia amolecida e
brisada com a erva, chapada demais para encarar o metrô de cara.
Decidiu andar o caminho inteiro até a rua Spring, pegar o metrô lá
em direção norte, mesmo que fosse uma caminhada de dez
quarteirões.
Na rua Elizabeth, havia um parquinho onde umas meninas
estavam brincando de estátua. Ela se curvou para frente, contra o
vento, não sabendo se poderia se aproximar, parar e olhar, até que
percebeu estar com o rosto colado na grade. A maioria delas era
morena, da idade certa. Angie seria uma das meninas mais claras,
mais miúdas. Eddie, o pai dela, era claro e baixinho. Ela podia ser
aquela magrela e serelepe com o cabelo preto e a pele brilhosa e
um largo sorriso encantador. Depois de ser pega, ela daria um
showzinho fazendo birra. Sim, a menina que fizesse birra seria a
dela!
Dois homens carregando um carrinho de mão na calçada olharam
para ela, e um falou com o outro, rindo. Lágrimas corriam pelo seu
rosto. Bagulho de quinta deixava ela sentimental. Connie maluca.
Voltou a andar enxergando da rua só um palmo na frente do nariz,
enquanto tentava limpar o rosto com a manga do casaco. As
lágrimas corriam dos seus olhos doloridos como duas torneiras
pingando. Pingos mornos e molhados nas bochechas. Ela entrou na
rua Prince e sentou-se na entrada de um prédio de apartamentos,
num degrau de cimento que dava acesso direto ao hall, com
grandes portas como as de um celeiro. Ela abriu o jornal para forrar
onde iria se sentar. Ninguém por perto. Assoou o nariz com força
num chumaço de papel higiênico. Qualquer um acharia que ela tinha
amado a filha.
Uma sombra a encobriu. Ela começou a se levantar, mas aquela
mão se estendeu novamente.
— Qual o problema? Você está chorando. Connie, eu te assustei?
Mais baixo que no seu sonho, apenas alguns centímetros mais
alto do que ela se estivesse de pé. Ele se curvou em sua direção,
rosto bolachudo, olhos pretos como feijões, aquele sorriso gentil.
— Estou enlouquecendo! Mas pode ser o bagulho. Muito poderoso
mesmo...
— Estou aqui. Tenho tentado te alcançar, mas você se amedronta,
Connie. — Luciente sorriu. De fato, ele era afeminado. Mariquita?
— O que você quer de mim? — Histórias terríveis de brujos,
feitiços, demônios. Um monte de lixo, mas como esse garoto podia
entrar de fininho nos sonhos dela?
— Só conversar. Para você relaxar e conversar comigo.
— Ah, ninguém nunca quer conversar comigo, nem a minha
assistente social, a dona Polcari. Eu deprimo ela.
Connie se levantou de repente. Alisando a barra do casaco velho e
dobrando o jornal, ela se desviou dele, mas seu braço esbarrou no
dele. Ele era de verdade sim, e seu braço musculoso se destacava
na jaqueta de couro. Connie sentiu o abdômen se contrair de medo.
Lembrou-se de El Muro e de como ele iria esperar por ela. Naquela
época, ela era jovem e gostosa como um frango assado. Agora, era
o que Geraldo sempre a chamava, uma balofa — uma balofa cheia
de dor e de problemas. Ela queria muito um cigarro, mas estava
com medo de abrir a bolsa na frente dele; seria muito fácil arrancá-la
dela. Ela tinha a carteira de plástico enfiada debaixo do braço junto
com o jornal, do lado contrário ao dele, que caminhava a seu lado
com passos enérgicos e relaxados. Não, ele não andava se
balançando, tinha um caminhar gracioso como o de um gato. Movia-
se com graça, mas com autoridade. Dentro da bolsa ela tinha
dezessete dólares, algumas moedas e dois bilhetes de metrô, além
do cartão do seguro-desemprego e das chaves do apartamento.
Como conseguiria de volta os dezessete dólares? Ele podieria
roubar a televisãozinha dela para penhoar, e ela ainda teria de
esperar duas semanas até o próximo cheque, se não atrasasse.
Ele não estava vestido como um mendigo. Apesar de não usar
nada novo ou espalhafatoso, suas roupas eram bem-feitas e
pareciam protegê-lo bem. Botas grandes e pesadas, como as que
crianças usavam, calças pretas num tecido parecido com jeans,
uma camisa vermelha que ela conseguia enxergar em volta do
pescoço, uma jaqueta de couro batida, mas bonita, sem insígnia de
gangue ou clube, apenas um padrão de contas e conchas nas
mangas. Não usava luvas e ela se lembrava das mãos dele. Teria
gostado de pegar a mão dele e levá-la até o nariz. A pele estava
manchada, mas não era nicotina. Que tipo de trabalho deixaria as
mãos manchadas de roxo? Era a cor da tinta usada para marcar
números na carne.
— Por mais quanto tempo você planeja me seguir? — disse ela
com uma voz brava.
— Eu prefiro conversar com você em casa, se me permitir. —
Luciente se retraiu quando um caminhão passou a toda velocidade
e tapou o nariz.
— Não. Por que te levaria lá? Quem é você?
— Você sabe meu nome, Connie. Luciente!
— Espertinho. O que você quer comigo?
Com olhos lacrimejados, ele pegou um lenço com um padrão de
cores brilhantes do bolso e passou com cuidado sobre os olhos.
— Você é uma pessoa incomum. Sua mente é incomum. Você é
uma captadora, uma receptiva.
— Você gosta de mulheres mais velhas? — Ela já tinha ouvido
falar disso, mas nunca tinha acreditado. Estava assustada, mas
levemente... levemente intrigada.
— Velha? — Luciente riu. — Claro, só mulheres acima dos
setenta. Vou esperar você chegar lá. Me diz, eu dou muito medo?
Não me classificam como pessoa que capta, sou mais o que
chamamo de remetente. — Ele ficava olhando para os carros
passando por trás dela, para os prédios dos dois lados da rua, para
cima e para baixo, como um jíbaro, um caipira que havia acabado
de descer do avião. Ele a lembrava da avó, que, quando ia
atravessar a rua no centro em El Paso, recusava-se a olhar para os
carros e saltava da calçada como se estivesse se jogando em alto-
mar.
“Ele é louco, é isso”, pensou e apertou o passo em direção à
estação de metrô.
— Estou indo rápido demais, mas por onde devo começar pra que
você possa compreender? Pra você relaxar e começar a entender.
Uma pessoa captadora é alguém cuja mente e o sistema nervoso
estão abertos, receptivos, em um grau incomum... É difícil explicar
isso. — Um jatinho passou pelo céu e ele parou para olhar,
embasbacado, até que um prédio bloqueou a visão. — Pra explicar
alguma coisa exótica, você precisa transmitir ao mesmo tempo a
coisa e o vocabulário adequado para falar sobre essa coisa... Seu
vocabulário é reconhecidamente fraco pra falar sobre estados
mentais, habilidades mentais e atos mentais...
— Eu fiz dois anos de faculdade! Só porque sou chicana e
dependo do seguro-desemprego não tente me dizer que uso um
vocabulário pobre pra falar. Aposto que eu leio mais do que você!
— Eu disse “seu” querendo generalizar, me perdoe. Uma fraqueza
que se mantém na minha língua, apesar de a gente ter reformado os
pronomes. Quis dizer a sua língua, a do seu tempo, da sua cultura.
Sem atiramentos pessoais. Pode crer, Connie, tenho respeito por
você. Ficamo tentando uma conexão por três meses antes que eu
pudesse calhar com a sua mente. Você é uma pessoa captadora de
primeira. Na nossa cultura, você seria muito respeitada, o que penso
não ser a verdade nessa aqui.
— Sua cultura? Você se envolveu com o que, afinal? Alguma
daquelas baboseiras do orgulho mexicano, La Raza? Aquela viagem
de volta às raízes astecas?
— Agora falta vocabulário pra mim. — Luciente fez um movimento
em direção ao pulso, mas se interrompeu. — Devemo nos esforçar
pra comunir, pois a gente tem padrões muito diferentes de lucidar.
Mas só o fato de que estamo nos vendo, isso clarquessim me dá
asas. — Dois táxis avançaram o cruzamento e ambos pisaram no
freio bruscamente. Luciente começou a murmurar.
— Você é de onde, afinal? Do alto dos Andes?
Luciente fez uma careta.
— Espacialmente, não de tão longe. Da Baía de Buzzards.
Toda vez que entravam em uma rua, Luciente agia como se fosse
perder o controle. Devia ter escapado de Bellevue. Que sorte a dele!
Ficava olhando para cima e para os lados e então tentava não fazer
isso. Estavam quase na Sexta Avenida quando ele disse:
— Olha, devo partir. Este lugar me enerva. O ar é poluído, o
barulho faz meus ossos tremerem. Admiro sua compostura. Pense
em mim quando estiver só, ok?
— Por que eu deveria? Você é louco como um mergulhão!
Luciente se iluminou, apanhando as mãos dela num aperto quente
e seco.
— Já viu um mergulhão, Connie? É o som que eles fazem que é
maluco. São aves simples, mas graciosas, que deslizam apenas
com as cabeças pra fora d’água. Nadam na superfície como
tartarugas. Talvez eu possa te mostrar os mergulhões quando
migrarem... Não me tema. Sinto que você tem inimigues,
clarquessim, mas não sou como eles... Preciso muito da sua ajuda,
mas não vou te fazer mal. — E com isso, Luciente de repente não
estava mais lá.
Não foi antes que estivesse de pé no metrô lotado que ela levou
ao nariz a mão que ele havia apertado. Sim, cheirava a produto
químico. Ela ficou com medo.
O metrô partiu e ela ficou ali, balançando entre as pessoas à
direita, à esquerda, atrás, abraçando sua bolsa e o Daily News
contra o peito com uma mão enquanto a outra segurava a alça do
pega-mão. Ele estava certo sobre... como ele tinha chamado? A
parte da receptividade. Coisas doentias aconteciam com ela. Connie
não falava muito sobre esses acontecimentos — havia falado um
pouco com a Dolly, que consultava leitoras de mão e comprava
ervas das chicas botánicas, apesar de falar espanhol tão mal quanto
o pai dela, Luis, que se vangloriava de ter esquecido o idioma. Às
vezes, sabia coisas sobre os outros que ela não deveria saber. Ela
soube que Luis deixaria uma de suas esposas antes que ele mesmo
decidisse isso. O marido dela, Eddie, a tinha chamado de bruxa
mais de uma vez — por exemplo, quando ele tinha estado com
outra mulher e voltava para casa com aquela presença e orgulho
misturados com culpa tremulando como chamas amarelas
sulfurosas ao seu redor.
— Quem te falou esse lixo? Aquelas fofoqueiras! Você não faz
nada o dia todo além de ouvir mentiras!
— Você está me contando! Você mesmo me conta assim que
entra!
Sábia ela não era. Nunca pôde prever nada, nem para si, nem
para os outros. Tinha tentado prever o futuro, mas sempre
adivinhava errado, e sabia no seu íntimo que estava apenas
imaginando. E havia outra coisa que não era algo que ela tentava
fazer, mas que era como ver um rato passeando pelo corredor: a
informação entrava nela como um som entrava pelos ouvidos.
Normalmente, quando Eddie estava prestes a bater nela, ela sabia e
se esquivava antes que ele fechasse o punho para desferir o golpe.
Se isso era um dom, nunca lhe tinha feito nenhum bem. Quando
Eddie queria bater nela, ele batia. Talvez isso desse a ela tempo
para levantar um braço e proteger o rosto, mas, se ele a derrubasse,
doeria de qualquer maneira. Os seus hematomas continuavam
sendo doloridos e vergonhosos demais, e suas lágrimas, realmente
amargas.
O fato de ela saber que ele tinha estado com outra mulher não
fazia Eddie amá-la de forma diferente, não devolvia a ela aquele
sabor picante, mas breve, que seu corpo tinha quando estava com
ele, não o fazia querer levá-la para a cama. Só era sinal de que ela
não teria o conforto de quando ele, de tempos em tempos, era
carinhoso com ela, a fim de conseguir algo que ele queria. Ler o
desprezo dele fez o sangue dela ficar ácido nas veias e o
casamento deles durar menos do que deveria.
Ela podia ter herdado um pouco da resignação da mãe. Quando
Connie lutava contra seu destino difícil e azedo, parecia sair mais
machucada, mais humilhada, mais solitária — depois que Eddie a
largou, deixando-a sozinha com a filha Angelina e sem marido, sem
emprego, sem dinheiro e grávida de um bebê que ela deveria
abortar. Era um pouco tarde para um aborto, já passado o primeiro
trimestre, e isso dificultava as coisas. Quando o médico lhe contou
que ela estava esperando um menino, Connie sentiu um triunfo
amargo. Na verdade, ela foi até o bar que Eddie costumava
frequentar, marchou até ele e lhe contou a novidade. Ele bateu nela
uma última vez.
Uma receptora, era disso que o cholo, o caboclo, a tinha chamado.
A palavra desprezível rangia dentro dela, deixando em sua mente
uma trilha de orgulho ferido como o rastro melequento de uma
lesma. Era como negros chamando uns aos outros de neguinhos.
Ela estava irritada com os ares de Luciente, seu belo sotaque
naquela voz alta. “Eu quis dizer a sua língua, a do seu tempo, da
sua cultura...” Em que tipo de esquema ele estava trabalhando? O
que esperava conseguir dela? Se ele quisesse seu cheque do
seguro-desemprego, era só dar-lhe um golpe na cabeça. Ela estava
assustada. Ele tinha desligado a mente dela de Dolly, deixando-a
quase com inveja da tristeza da sobrinha, que seria mais
interessante do que esse mistério, o qual devia encobrir alguma
maldade, como uma barata embaixo de um prato.
Receptiva. Passiva. A mulher mexicana Consuelo, a piedosa,
vestida de preto e com os olhos colados ao chão, nunca falando a
menos que falassem com ela. Sua mãe ajoelhando-se para a virgem
negra. Não que sua mãe, Mariana, tivesse vivido como uma
camponesa. Mariana tinha sido criada em uma vila perto de
Namiquipa, chamada Los Calcinados,7 migrando com a família para
o Texas para trabalhar nas lavouras. Em El Paso, Mariana conheceu
o pai de Connie, Jesús, e teve os três primeiros filhos que
sobreviveram: Luis, o mais velho e mais importante dos filhos, daí
Connie e então o irmão dela, Joe, seu preferido, que tinha morrido
logo depois de sair da cadeia na Califórnia. Joe era o mais parecido
com ela em idade e temperamento. E em fracasso.
Quando Connie tinha sete anos, eles se mudaram para Chicago,
onde Teresa e Inez chegaram, assim como o último filho homem,
natimorto. O bebê quase tinha levado Mariana consigo, e ela nunca
se recuperou completamente disso. Eles tiraram o útero dela no
hospital. Depois, isso virou um xingamento que Jesús jogava na
cara dela: que ela não era mais uma mulher, apenas uma concha
vazia.
Fatigada, Connie se arrastou pelas escadas na estação da 110th
com a Lexinton. “Pasajes seguros”8, o toldo sacudia. Aquilo era um
sonho. Desceu o olhar para si mesma naquele casaco verde batido.
Ela também estava esterilizada. Tinham tirado o útero dela no
Hospital Metropolitano depois dar entrada sangrando, após aquele
aborto e a surra do Eddie. Tinham feito uma histerectomia completa
apenas porque os médicos residentes queriam praticar. Ela não
precisava mais se preocupar com a barriga inchada ou ter a
esperança de conceber um bebê. Uma raiva inútil começou a surgir,
e de modo instintivo ela voltou o rosto para a direção de onde vinha
um cheiro agradável. Cuchifritos, jugos tropicales, frituras.9 Ela
atravessou a Lexington perto de “cheques descontados, cupom de
refeição, conta de água e luz”, para onde ela levava seus cheques
do seguro-desemprego. Caixa postal: portão do inferno.
Seus joelhos estavam moles e as costas doíam perto da lombar.
Um vento que vinha do East River fustigava seu rosto. A ferrovia
escura como muros de uma cidade antiga, os carros entrando em
túneis. Pelo menos sua casa era um refúgio; um rato também devia
se sentir assim sobre sua toca, um lugar para adentrar rastejando e
se largar. Mesmo assim, ela não estava a salvo de Luciente ali, da
mesma forma que não tinha estado a salvo de El Muro no
apartamento de Chicago, pois ele simplesmente havia pressionado
a pessoa que fazia a limpeza até conseguir a chave. “Já vivi em três
cidades”, pensou enquanto virava a esquina na 111th com suas três
faixas brancas pintadas no chão, “e conheci as profundezas de
todas”. Crianças brincavam na rua na frente do jardim de infância
Primeiros Passos; mães buscavam seus pequeninos na creche que
ficava na igrejinha metodista espanhola do outro lado da rua.
Marteladas por todos os lados. Era primavera, mesmo que fosse
difícil para ela acreditar. O burburinho de salsa estava tão alto
quanto o barulho do trânsito, as barulhentas batidas do coração do
gueto.
Aos quinze anos, ela ficava na cozinha do apartamento da família,
que margeava a ferrovia perto da West Side de Chicago, encostada
na pia vestindo calça jeans e um suéter rosa choque. Ela podia se
lembrar de si mesma aos quinze anos e não via muita diferença; era
mais estridente, mais definida.
— Não vou crescer como você, Mamá! Pra sofrer e servir, sem
nunca conseguir viver minha própria vida! Não vou!
— Você vai fazer o que as mulheres fazem. Vai pagar suas dívidas
com a sua família com o seu sangue. Que você ame os seus filhos
tanto quanto eu amo os meus.
— Você não ama as meninas do jeito que ama os meninos! É tudo
pro Luis e nada pra mim, sempre foi assim.
— Nunca levante a voz pra mim. Vou contar pro seu pai. Você está
parecendo as filhas dos gângsters aqui de perto.
— Vou bem na escola. Vou pra a faculdade, você vai ver!
— Os livros afetaram sua cabeça! Faculdade? Nem o Luis
consegue ir pra lá.
— Eu consigo! Vou ganhar uma bolsa de estudos. Não vou
simplesmente me deitar e ser enterrada na cova da família, família e
família! Estou cansada dessa palavra, Mamá! Nada na minha vida a
não ser ter filhos e cozinhar e limpar a casa. Mamacita, acredita em
mim, oígame, Mamá, eu te amo! Mas vou viajar. Vou ser alguém!
— Não tem nada pra uma mulher ver além de problemas. Queria
nunca ter saído de Los Calcinados. — Mariana fechou os olhos e
Connie achou que ela fosse começar a chorar, mas ela apenas
suspirou. — Eu viajei por centenas e centenas de quilômetros em
um país estranho cheio de pessoas estranhas e violentas. Queria
nunca ter visto a estrada que saía da vila onde nasci.
Da mãe, ela havia herdado os traços dos maias, o queixo
pequeno, o nariz sensual, os olhos amendoados. Eles viajaram
bastante, e tudo na pior classe possível. Ela sabia que a família de
sua mãe era originalmente de Campeche, no México, perto de
Xbonil. Dificuldades tinham levado a família para o norte, depois
mais ao norte, e mais ao norte, geração após geração mourejando
em direção ao frio do norte, à servidão, los desmadrados, ou seja,
aqueles que haviam sido tirados muito cedo de suas mães ou que
elas não puderam nutrir. Sua mãe havia morrido quando Connie
tinha vinte anos, o ano de seu primeiro aborto. Um ano de sangue.
Aos quinze, aos dezessete, ela havia discutido com a mãe como se
o papel da mulher mexicana que nunca se senta com a família, que
come depois, como uma empregada, fosse algo que a mãe tivesse
inventado. Connie bramia sobre quão melhor teria sido sua vida, até
o pai chegar e mostrar a ela a força dos seus punhos. Sim, como os
professores e professoras que admirava no ensino médio, ela não
iria se casar antes dos vinte e cinco, bem mais velha. Como a
senhora Polcari, ela teria apenas dois filhos e iria mantê-los
arrumadinhos, como nos comerciais. Aqueles cômodos lindos,
aqueles homens asseados vestindo ternos, aqueles belos bebês
higiênicos, nada parecidos com Teresa ou Inez, quando ela tinha de
trocá-las ou limpar a comida que tinham derrubado.
Entendia agora, subindo os degraus do seu prédio, que ela queria
a aprovação da mãe. Queria o conforto da mãe, queria que a mãe
tivesse vindo até ela em busca de conhecimento e de um jeito
melhor de viver. Ela nunca tinha sido cuidada o suficiente e havia
crescido com uma sede por cuidado, por ser amada, como Luis
tinha sido. Só a mais nova, Inez, tinha tido aquilo. Depois de terem
roubado o útero de Mariana, ela havia derramado toda a afeição na
caçula.
Então, quem era a mais idiota, ela aos quinze anos, cheia de fogo
e planos, ou a mulher aos trinta e sete que desistira de fazer
qualquer plano? O desespero a havia manchado com sua lavagem
sombria e coado dela todos os seus planos e ideais da época da
escola.
Na caixa do correio, encontrou uma carta da Teresa, casada e com
quatro filhos, morando em Chicago, vários quilômetros de distância
mais a oeste do apartamento de infância deles. Teresa vivia perto do
velho aeroporto Midway, numa casinha que ficava numa rua em que
as casas eram todas parecidas com uma caixa de sapatos. Mas
Connie não podia torcer o nariz para isso! Afinal, ela morava ou não
num pardieiro fedido? Teresa escrevia com caligrafia grande, todas
as letras do mesmo tamanho:
“O pequeno Joey está com gripe e dor de garganta de novo,
coitadinho. Parece que é uma atrás da outra. Odeio ver ele
doente. A Laura também estava gripada, mas não ficou tão mal,
está grande pra idade e forte. O médico disse que talvez precise
tirar as amídalas do Joey. Espero que não, não só pelo gasto,
mas custa tão caro e ele vai ficar com muita dor. Imagina as
crianças irem pro hospital. Tenho ido à missa sempre que posso,
menos quando não posso sair de casa por causa das crianças.
Não quero ter que levar o Joey pro hospital e deixar ele lá.
O aniversário da Marilyn é 28 de abril, sei que você lembra. O
que ela mais gosta são aquelas bonecas com cabelo de verdade
que pode lavar e arrumar...”
Connie colocou a carta na mesa. O que a Teresa achava que ela
iria fazer? Ela não tinha de onde tirar o dinheiro para nenhum
presente. Não tinha dinheiro para presentes de Natal ou de qualquer
tipo de aniversário desde que ela e Claud tinham sido pegos, já há
quase quatro anos. Teresa tinha se casado cedo, no ensino médio,
e nunca havia trabalhado. O marido dela era motorista de ônibus.
Connie queria se lembrar das suas sobrinhas e sobrinhos, e, na
época em que trabalhava, costumava mandar presentes duas vezes
ao ano para cada um deles, levar roupas bonitas e brinquedos para
as várias famílias do Luis, todas convenientemente residindo na
área metropolitana de Nova Iorque. A primeira mulher, Carmel, a
porto-riquenha, estava no Bronx; a segunda, Shirley, a italiana, vivia
em Staten Island; e a terceira, Adele, a branca anglo-saxã
protestante, morava com Luis em Bound Brook, Nova Jersey. Leu o
resto da carta por cima, para ver se havia alguma catástrofe, e
decidiu que a leria com mais atenção depois. Sentiu uma vontade
de sair de novo, mesmo cansada como estava. Se ela se deitasse,
iria se deprimir mais. Acendeu a luz da cozinha. O começo da noite
adensava os ruídos da rua.
Na geladeira, achou feijão carioquinha em um molho chili, ainda
bom para comer. Ela fritaria uns ovos para comer com o feijão
requentado. Estava farta de ovos e desejava muito carne. Como
seria maravilhoso afundar os dentes numa costelinha de porco...
Sua boca encheu-se d’água numa falsa esperança. Ela ligou a
pequena televisão preto e branca que transitava entre o quarto e a
cozinha. Estava passando o noticiário. Ouvia meio sem prestar
atenção, não estava muito alto. O aparelho fazia companhia, a voz
de um ser humano — ou quase isso. Ela tendia a deixar a tv ligada
mesmo quando estava cozinhando ou lendo. Era a família dela,
tinha dito isso ironicamente para a sra. Polcari, mas ela não havia
entendido.
Ficou mexendo o feijão devagar e esperando o óleo na frigideira
preta aquecer para poder quebrar os ovos. Não estava com pressa.
Teria pressa para quê? Lá embaixo na rua, a noite zumbia aos
ritmos de tambores, altos e baixos, uma maré crescente de tráfico e
prostituição, a vontade dos jovens e dos não tão jovens de se dar
bem, de transar. Na fervura, as morosas bolhas elevando-se no ar
pesado, sexo e tráfico, agitavam El Barrio. Em milhares de
encontros — casuais, casuais de propósito, clandestinos, amorosos
ou de paquera —, homens pegavam mulheres em esquinas, em
escadarias, nos apartamentos familiares, casais desciam as
escadas quebradas, braço no ombro, indo a restaurantes e cinemas
e bares e bailes. Mulheres sem dinheiro nenhum faziam mágica em
frente a espelhos embaçados, caretas de concentração, enquanto
esperavam seus homens chegarem. Casais subiam nos carros e
disparavam pela noite; casais pegavam costelinhas com molho
barbecue e chicharrones;10 casais carregavam embalagens de
comida chino-cubana para viagem e cervejas para seus quartos no
andar superior. Homens se encontravam com seus traficantes e
fornecedores, ou os perdiam e ficavam na vontade. Nos telhados,
pombos voavam livres, circulavam juntos, flutuando como lenços
limpos por entre as chaminés onde a molecada aparecia e injetava
umas e onde pacotes e dinheiro eram trocados.
Aquela eletricidade nas ruas a fazia sentir em si uma certa
estática. Desejava ardentemente estar se movendo em direção a
alguém. Queria ir até alguém, alguém para encontrar, alguém que
viesse até ela. Queria ser tocada e abraçada. Fazia tanto tempo!
Talvez nunca mais acontecesse.
Para que ela vivia? O feijão estava grudando no fundo da panela,
então diminuiu o fogo e mexeu. Para proteger a Dolly? Ela podia
mesmo proteger a Dolly? Pelo sonho de talvez um dia recuperar a
filha, que nem a reconheceria mais? Essa é a mulher de quem o
tribunal achou mais adequado te tirar, sua mãe, maligna e
criminosa. Como Angelina tinha chorado. Tão pequena, tão magra,
e tantas lágrimas. Tantas lágrimas.
— Sou orgulhosa demais pra me matar. Orgulhosa demais pra ter
uma overdose e morrer — disse em voz alta. Aumentou o volume do
programa do Walter Cronkite e se sentou para jantar com ele. Não
que ele fosse espontaneamente comer com ela, mas, preso na
caixa com seu rosto público fixo na tela, ele não tinha muita escolha.
— Quer uma garfada de chili, Walter? — Ela estendeu um garfo que
estava com os dentes dobrados. Ojalá! Seria ótimo se ela tivesse
uma taça de tinto. Até mesmo cerveja seria uma delícia e a deixaria
mais soltinha, mas ela só tinha refrigerante da marca do
supermercado, e nem tinha muito.
Em certa época ela costumava comprar o The New York Times
toda noite, quando trabalhava como secretária — vamos falar a
verdade, secretária-amante — para o professor Silvester da cuny
(Universidade da Cidade de Nova Iorque), na qual passara outra
curta temporada, além dos seus quase dois anos na faculdade
comunitária, quando ela tinha sido feliz. Ela conseguira o emprego
logo depois de ter saído de Chicago e chegado em Nova Iorque. Ela
amava ser secretária — ou melhor, secretária, amante, faz-tudo,
lavadeira, empregada, assistente de pesquisa — do professor
Everett Silvester. Ele era sofisticado. Se fechasse os olhos agora,
era lá onde ela quase gostaria de estar.
— Na verdade, você me faz lembrar do professor Everett Silvester
— disse ela para Eric Severeid, e desligou o som. Eric fazia caretas
na tv e ela sorriu, secando os ovos e o resto do feijão com uma
ponta de pão. Eric estava repreendendo sindicatos sobre o quanto
eles eram gananciosos. Everett Silvester adorava repreender o
mundo, um item de cada vez. Através da parede ela podia ouvir
uma briga no apartamento ao lado, uma briga em espanhol sobre
dinheiro. Apesar de estar passando uma propaganda de uma
petrolífera, com um oceano cheio de peixes cantando, ela voltou a
ligar o som. Finalmente, abriu o Daily News e deu uma lida por cima.
“Mulher atira em médico em briga de casal em Los Angeles”.
Sorriu, apoiando o queixo nas mãos. Ela se viu marchando até o
apartamento de Everett na Riverside Drive e sacando um cano
quente de uma sacola. Mamá, quanto medo ele teria, ele se cagaria
de terror. Será que os jornalistas iam pedir para ela se sentar numa
mesa mostrando as pernas? Seria sórdido, ainda que nada
desagradável, atirar várias balas no professor Everett Silvester do
Departamento de Línguas Românicas da cuny, mas com cuidado
para não errar, o professor gostava de ter secretárias falantes de
espanhol, quer dizer, tinha uma nova todo ano — a anterior era
dispensada quando ele saía de férias. Ele chamava todas elas de
Nanica, como a banana. Tantos anos tinham se passado desde
então que ele provavelmente não a reconheceria, talvez a
confundisse com alguma outra das secretárias latinas gostosas. A
raiva do mais fraco nunca se dissipa, professor, só fica meio
mofada. Vai mofando como um belo queijo gorgonzola no escuro,
ficando mais forte e mais interessante. Os pobres e os mais fracos
morrem com sua raiva toda intacta, e essa raiva segue crescendo
no escuro de suas sepulturas, como as unhas e o cabelo.
Ah, ela deveria estar pensando na Dolly. Dolly deveria deixar o
Geraldo; e fazer o que para ter dinheiro? Tentar tirar dinheiro do Luis
era como tentar espremer um clipe de papel para conseguir suco de
laranja... Dolly e ela viveriam juntas. Seu apartamento era pequeno
para todas elas, mas isso manteria Dolly longe de Geraldo e daí
elas poderiam procurar juntas um outro apartamento. Dinheiro.
Como conseguir dinheiro? Ela acordaria de novo numa casa com
crianças. Ajudaria Dolly durante a gravidez e iria cozinhar, limpar e
massagear as costas dela. Mas Dolly confiaria nela? Deixar seus
pequenos com uma agressora de menor — pelo amor! Era assim
que Luis a fazia se sentir. Carmel ficaria meio indecisa, com um
pouco de ciúmes, um pouco de alívio. Carmel trabalhava num salão
de beleza e seu cabelo estava sempre de alguma cor berrante e
encrespado com cachos que lembravam as lascas de madeira
coloridas que costumavam vir nas cestas de Páscoa, mas ela ficava
de pé numa corrente de ar quente por dez horas todo dia, noites
também, tentando se virar. Carmel não tinha conseguido quase
nada do Luis, porque ela o havia amado verdadeiramente, mas não
tinha conseguido se casar com ele no papel. Ela havia sido sua
esposa por união estável, um casamento consensual que a família
toda via como um casamento perfeitamente lícito, até que os
advogados da família de Shirley provaram que nunca tinha existido.
Seu pai, Jesús, tinha trazido umas cestas de Páscoa uma vez
quando ela tinha dez anos, pequenas cestinhas da loja de 1,99
cheias de celofane e jujubas e um coelhinho de chocolate
embrulhado em papel alumínio. Ela adoraria algo doce naquela
noite, um coelhinho de chocolate, até mesmo uma jujuba roxa.
Acendeu seu cigarro pós-jantar e zapeou por todos os canais. Nada.
Tossindo do fundo do peito, virava as páginas do jornal amassado,
procurando alguma coisa para lhe atiçar a mente.
Ela sentia-se tão solitária, tão consciente de estar sozinha numa
noite de sexta-feira de primavera que, quando acabou de fumar o
cigarro até o filtro, recostou o rosto no cotovelo dobrado e fechou os
olhos. Cheiro de tinta de jornal. Luciente tinha pedido que ela
pensasse nele. Quem iria saber o que ele queria? Matá-la e então
acabar tudo e pronto. Fechou os olhos e tentou não pensar em nada
enquanto os escombros do dia passavam voando. O rosto de Dolly
desfigurado pela preocupação. Então, viu a face daquele índio. Ela
não ligou. Passiva. Receptiva. Lá estava ela, dobrando-se à
poderosa vontade de mais um homem, deixando-se ser usada,
dessa vez nem mesmo para algo simples como sexo, comida ou
conforto, mas para algo sombrio. Só podia ser algo ruim. Ainda
assim, ela se pegou pensando naquele rosto, esperando.
Talvez uma vida pudesse se tornar puída o suficiente para que até
os desastres mudassem, a ponto de terem uma aparência diferente
daquela comum aos problemas.
— Então venha, Luciente. Veja, dessa vez você pode vir sem eu
estar dormindo ou chapada. — Ela estava enlouquecendo de uma
forma nova. Afinal, não tinha mais uma filhinha para punir por ser
dela.
Mesmo assim, deu um pulo quando uma mão lhe deu um tapinha
no ombro.
— Agradeço, Connie. Assim é muito mais fácil.
— Mais fácil pra quê? Me roubar? Me matar? — Ela se sentou
ereta, balançando o cabelo.
Luciente sentou-se na cadeira onde a sra. Polcari sempre se
sentava.
— Por favor, você me embaraça. Não entendo o que faço que te
amedronta. Me diga como te deixar com menos... ansiedade.
— Como? Muito fácil. O que você quer? Como entrou aqui?
— Obviamente estender uma toalha de mesa sobre o esterco não
é nada bom, acredite em mim, e digo isso sabendo que você não vai
mesmo. — Luciente riu como uma criança, mostrando dentes
brancos e fortes. — Não sou do seu tempo.
— Claro, você é de Marte e veio no seu grande disco voador
verde. Eu li sobre isso na Enquirer.
— Não, não! Sou de uma vila no Massachusetts, chamada
Mattapoisett. Só que eu vivo lá em 2137.
Connie bufou e jogou o cabelo para trás.
— E você veio voando até mim na sua máquina do tempo.
— Sabia que seria assim! — Luciente deu de ombros, jogando as
mãos para o alto. Naquela noite, ele estava usando um anel com
uma pedra azul com a qual ficava brincando, girando e girando
enquanto falava. — Na verdade... não estou aqui.
— Não me diga!
— Estamo em contato. Você não está alucinando. Se alguma outra
pessoa pode me ver, não tenho certeza. Francamente, esse...
contato é experimental. É até mesmo, perceba, potencialmente
perigoso... para nós, quero dizer. Por favor, não se assuste de novo.
Você fica mais feliz quando está sendo sarcastique.
— Deixa ver se eu entendi. Você é do futuro e me escolheu pra
visitar em vez do presidente dos Estados Unidos, naturalmente,
porque sou uma pessoa tão importante e maravilhosa.
— Clarquessim, não iríamo escolher essa pessoa por razões
políticas, já que entendemo a história do seu tempo. Alguém da
hierarquia que tome as decisões? O status quo, como vocês dizem?
Eu sei disso, apesar de não ter estudado tanto a sua história. Na
verdade, sou geneticista de plantas.
— Soluções corantes! — Connie apontou para as mãos dele. Ela
tinha feito uma disciplina de biologia no seu primeiro ano de
faculdade.
— Estou trabalhando em uma safra de abobrinhas resistentes a
uma forma mutante de broca que consegue penetrar os caules mais
fortes, que desenvolvemo uns quinze anos atrás.
— Você fez uma graduação? — Talvez ele não quisesse bater nela
ou roubá-la, só mantê-la em uma escravidão refinada, como o
professor Silvester.
— O que é isso?
Olharam-se numa confusão mútua.
— É onde você vai pra estudar. Pra conseguir um grau — Connie
falou rapidamente.
— Um grau de calor? Não... Como uma sociedade hierárquica,
vocês têm graus de classificação. Como lordes e condes? —
Luciente parecia não entender. — Estudar eu entendo. Eu mesmo
estudei com Rose de Ithaca! — Ele parou, esperando a aprovação
dela, então deu de ombros, um pouco decepcionado. — Clarque o
nome não quer dizer nada pra você.
— Ok, onde você vai pra estudar? Uma faculdade. O que eles te
dão se você consegue terminar? Um grau. — Connie acendeu um
cigarro. Luciente deu um salto para trás e recuou.
— Eu sei o que é isso! Imploro, apague. É venenoso, você não
sabia?
Estupefata, ela olhou fixamente para ele, que parecia estar mesmo
aterrorizado, como se ela estivesse segurando uma bomba, e
realmente sua mão estava mexendo nas travas da porta atrás dele.
Perplexa, ela esmagou o cigarro para apagá-lo e, depois que a
fumaça se dissipou, ele se aproximou lentamente da mesa,
abanando-se muito.
— Estudamo com qualquer pessoa que possa nos ensinar.
Começamo aprendendo na nossa própria vila, claro. Mas, depois da
nomeação, vamo onde quer que devemo ir pra aprender, mas só até
uma quantidade que quem ensina possa lidar. Esperei dois anos pra
Rose me aceitar. Aonde você vai depende do que quer estudar. Por
exemplo, se eu tivesse atração por cultivo oceanográfico, teria ido
pra Ilha Gardiners ou Woods Hole. Apesar de viver perto do mar,
sou uma pessoa planta-da-terra. — Luciente levou as mãos ao
rosto. — Tagarelando sobre mim! Eu me distraio. Deve haver algum
assunto pra começarmo, deve estar na minha cara. Bem, pelo
menos você não está mais com medo de mim.
— Então, você quer um refri? Ou talvez café? Não tenho vinho,
nem cerveja. A menos que refrigerante também te assuste.
— Nada, gratidão. Comi antes de vir — disse sorrindo
inocentemente e tocando a mão dela. — Além do mais, confesso
que tenho medo de comer aqui. As histórias de terror nos nossos
livros de história não seriam verdade, ou seriam? Que a comida de
vocês era cheia de produtos químicos venenosos, nitratos, resíduos
de hormônios, pesticidas, hidrocarbonetos, benzoato de sódio... que
vocês comiam comida saturada de conservantes?
— Algumas pessoas são boas cozinheiras! Eu sou, quando tenho
dinheiro. Eu poderia cozinhar uma refeição que ia fazer você
implorar pra repetir.
— Não quis magoar seus sentimentos, Connie. Tenho certeza de
que muito dos contos que ouvimo são exageros absurdos. Como a
ideia de que vocês, de que todo mundo, joga seu cocô na água
potável.
— Nunca ouvi uma besteira maior que essa! — Connie levantou-
se num salto e abriu a torneira da pia. — Isso é água potável. —
Então ela o agarrou pelo braço e o puxou até o corredor. Ele se
recusou a andar, assustadiço, até que ela disse: — Não tem
ninguém. — Então ele caminhou furtivamente atrás dela, enquanto
ela abria a porta e mostrava para ele o vaso sanitário. Desejou
internamente que estivesse mais limpo, ficando um pouco
envergonhada. As outras pessoas que o usavam nunca o limpavam,
e ela os xingava quando tinha de limpá-lo uma vez por semana. Ela
deu descarga, puxando a cordinha para demonstrar. —Viu? Ela
desce e é levada pra longe. — Seguindo-o de volta ao apartamento
e realizando a rotina de fechar o trinco, a fechadura de chave e o
trinco de chão, ela mordeu o lábio, satisfeita. Pela primeira vez tinha
marcado um ponto. Então percebeu que sua reação só fazia sentido
se ela fosse uma idiota ingênua que acreditasse no conto de fadas
dele.
— Então aquilo era um vaso sanitário?! — Luciente coçou o couro
cabeludo, bagunçando todo seu cabelo grosso e negro. — Não
acredito! Então é tudo verdade.
— O que é verdade? A água sai de uma torneira na pia, então
você usa a descarga e a água vai embora.
— E o lixo? Pra onde os restos de comida vão?
— Colocamos lá embaixo, em latas. Pode crer, algumas pessoas
por aqui jogam pra fora da janela. Mas pra que emporcalhar seu
próprio ninho? Eu até levaria tudo pro centro e colocaria na frente da
prefeitura, pra forçar eles a melhorar a coleta de lixo. No verão, fede
pra caramba! Nos bairros dos brancos, acredita em mim, eles não
se afogam no próprio lixo. Lá, eles têm um funcionário que recolhe o
lixo no corredor. Ou então eles têm um elevador de carga, aqueles
elevadores pequenos, e o lixo desce pro porão, onde o funcionário
descarrega tudo.
— Funcionário é o nome da tarefa? A pessoa que faz o trabalho
de devolver o lixo pra terra?
— Ele coloca em latas na rua e a prefeitura vem e leva embora.
— E o que a prefeitura faz com ele?
— Queima.
— É tudo verdade! — Luciente gritou com surpresa. Mais
gentilmente, acrescentou: — Às vezes eu suspeitava que nossa
história era infectada com propaganda. Muites da minha geração e
mais ainda dessa geração do Lebre suspeitavam que a Era da
Ganância e do Desperdício tinha sido... cruelmente exagerada. Mas
queimar sua compostagem! Colocar seus dejetos na água que
outros, rio abaixo, vão tomar! Onde os peixes devem viver! Em rios
cujos estuários e mangues são elos na cadeia alimentar de todo
alto-mar! Espera até eu contar a Lebre e Abelha. Ninguém vai
acreditar em mim. Isso tudo serve para mostrar que você pode ser
esperte demais pra ver o degrau do meio e cair de cara no pulo.
— Certo, espertinho. O que vocês fazem com o lixo e com a
merda? Mandam pra Lua?
— Mandamo pra terra. Compostamo tudo que for compostável e
reusamo todo o resto.
Ela deu de ombros. Ele devia estar zoando ela.
— Você está falando em... casinhas?
— Casinha? Uma casa muito pequena? — Luciente fez uma
careta de desespero. — Não era pra bombardear você com
tecnologia, mas isso é mais do que posso lucidar. — Ele levou o
relógio de pulso ao ouvido para ver se estava funcionando e seus
lábios se moveram.
— Quis dizer como costumava ser na fazenda do meu tio Manuel
no Texas, por exemplo. Eles eram pobres demais pra terem
encanamento interno, então tinham uma casinha. Moscas por todo
lado. Você se senta numa tábua com um buraco nela e vai tudo pra
um buraco na terra.
— Essa é uma forma primitiva, quero dizer, rudimentar. Clarque
agora, e quero dizer no meu tempo, tudo é compostado por grupos
de casas e, logo que fica pronto, usado na agricultura.
— Você está tentando me convencer que veio mesmo do futuro?
Olha só, em cinquenta anos vamos nos alimentar de tabletes e não
vamos mais cagar!
— Tentaram fazer isso, vai acontecer mais pra frente no seu
século, a comida petroquímica. Desastre total. Pense em como as
pessoas sofreram com a mudança de uma dieta ultraprocessada,
câncer de colo...
— Você fica tão sério quando fala de comida e merda, me lembra
da Shirley, a segunda esposa do meu irmão Luis. Ela é uma doida à
la Adelle Davis. — Connie riu.
Luciente balançou a cabeça triste, com os olhos escuros quase
lacrimejantes.
— Eu me envermelho por isso, mas não encontro a porta pro que
você quer dizer metade do tempo. — Ele passou os dedos por entre
os grossos fios de cabelo. — Trabalhei seimeses com nove outres
remetentes fortes. Clarquessim somo um prato misturado. Uma
pessoa que é criadora de perus, uma testadora de embriões,
mergulhadora de plataforma, negociadora de voos, realizadora de
rituais, uma é inspetora, telemetrista, cultivadora de escudo e
estudante de baleias azuis. A pessoa mais nova tem dezoito e a
mais velha, sessenta e dois. Da Baía James até Poughkeepsie é
nossa região toda. Somo chamado de Projeto Manhattan; é uma
piada baseada num grupo...
— Sei o que o Projeto Manhattan fez — Connie disse com uma
frieza orgulhosa. — O que vocês estão planejando explodir? Tudo o
que puderem?
— É uma lorota, sabe, porque ali foi um momento de virada
quando a tecnologia se tornou uma ameaça... porque somo uma
mobilização de recursos de intrasabedoria; mentais, sabe? Somo os
primeiros viajantes no tempo, clarquessim, não que eu esteja
realmente viajando pra algum lugar.
— Como o pássaro que voa em círculos cada vez menores até
que entra na própria bunda.
— A gente tem essa lorota também. — Luciente se iluminou. —
Não devemo nos esfriar. Se você for paciente, apesar das minhas
tropeçadas, vamo ter sucesso na intervisão e compreensão mútua.
Alia, que estuda as baleias azuis, me disse que depois de meses
com elas pôde intrasaber apenas emoções mais grosseiras e
mensagens. Aquelas longas óperas épicas que são o passatempo
principal das baleias ainda são apenas distorção prassôa. Depois de
toda uma geração de comunicação com os Yif, só estamo
transmitindo códigos digitais. Consideramo os Yif seres super-
racionais, um mundo de matemáticos, e talvez seja assim que eles
nos visionem... Enfim, se você e eu tomarmo paciência, falharemo
em clarear nosso contato? Estamo nisso há poucas semanas, e veja
como estamo conversando forte e claro. Se eu e você trabalharmo
nisso, devemo ouvir cada vez melhor.
— Trabalhar nisso? — Connie riu alto, lembrando-se do professor
Silvester na cama, trabalhando no sexo. Seu corpo era um problema
que ele estava resolvendo. Ele colocava tudo em termos de
aprovado-reprovado. — Você é demente, sabia? Se não for eu a
doida.
— Demente? Não, na verdade, nunca fui capaz de ser. Lebre já
enlouqueceu aos treze anos e depois aos quinze...
— Quem é esse Lebre?
— Sou amigue doce de Lebre. Também de Abelha. São membres
da minha família. Se trabalharmo nisso, espero que você conheça
todes logo. Mesmo que você ria de mim por falar isso, meu próprio
trabalho é veludo pra mim. E isso também me fascina. — Luciente
pegou as mãos dela e as apertou.
— Então o trabalho deve vir depois das baleias azuis e dos Yif,
seja lá o que forem!
— Não pra mim, de verdade — Luciente lhe garantiu, balançando
a cabeça com vigor. — Eu vejo você com muitas dores, feridas,
raiva acumulada, mas também vejo bondade e alguém aberte pra
outres.
— Ahá, você sabe que eu sou fracassada frente e verso? —
Connie retirou rapidamente suas mãos das de Luciente.
— Enciclopédia: definir fracassada frente e verso. — Dessa vez,
notou que o que achava ser um relógio de pulso não era apenas
isso, ou não era nem relógio. Ele não o estava levando até o ouvido
para ouvir o tique-taque, mas porque o objeto falava de uma forma
quase inaudível.
— O que é isso?
— Meu cognescedor. Ligação com o computador? Na verdade, é
um computador também, meu anexo de memória pessoal. Eu não
entendi muito o que você disse, mas euzinhe fiz coisas das quais
me arrependo. Coisas que machucaram outres. Estraguei
experimentos...
— Sou especialista em estragar as coisas!
Alguém esmurrou a porta. Luciente ficou de pé imediatamente,
olhando à sua volta.
— Quem é? — Connie gritou.
— Sou eu, a Dolly. Me deixa entrar! Vamos!
Luciente a beijou na bochecha antes que ela pudesse desviar e
deu passadas largas até o quarto, dizendo por cima de seu ombro
magro:
— Até quando! Me rumine quando estiver livre.
Ela ficou por um momento se recompondo. Dolly estava
esmurrando a porta e gritando. Era uma hora estranha para ela
chegar, sexta à noite, quando sempre estava trabalhando. Enquanto
abria as travas, sentia que a presença de Luciente se evaporava.
Ela sacudiu a cabeça como um cachorro molhado. Uma vez o Eddie
tinha ficado chapado por vinte quatro horas por causa de uma erva
da pesada.
Dolly correu para dentro, sangue escorrendo da sua boca
machucada.
CAPÍTULO 3

Trancafiada e sozinha, Connie se sentou no chão perto do radiador


que vazava, com os joelhos encostados no peito, lentamente
emergindo de uma dose maciça de remédios. Fraca e sentindo o
corpo todo empapuçado, ela ainda se sentia enjoada, sua cabeça
doía, seus olhos e garganta ardiam, a língua estava inchada na
boca seca, mas pelo menos agora ela conseguia pensar. Seu
cérebro não parecia mais um caroço esmagado no fundo do crânio,
enquanto o peso frio e moroso do tempo começava a deslizar para
frente novamente.
Seus lábios estavam rachados, a pele estava ressecada por causa
dos tranquilizantes, seu intestino estava endurecido e as mãos
tremiam. Os remédios pareciam suprimir a tosse crônica, que trazia
consigo muco e sangue. Chegar ali tinha sido algo tão difícil, tão
sombrio. Na sua primeira vez, tinha tido medo dos outros pacientes
— animais violentos, loucos, fora de controle. Mas tinha aprendido;
era nos funcionários que ela deveria prestar atenção. No entanto, a
desesperança de estar presa ali de novo tinha surgido duas manhãs
atrás, quando os pacientes da sua ala se enfileiraram para tomar o
Diserim líquido, que ela recusou. Os comprimidos ela podia jogar na
privada, mas o líquido era impossível, e isso a matava aos poucos.
Connie lutou cegamente, até que afundaram uma injeção em seu
braço e ela desabou.
Perder o controle assim tinha feito com que eles caíssem matando
em cima dela. Connie continuava na solitária, e já tinha recebido
quatro vezes a dose da droga, mesmo depois de tanto lutar para
não recebê-la. O cativeiro estava diante dela, um corredor sem
portas e janelas, bocejando sob luzes fracas. Claramente ela
morreria ali. Seu coração bateria cada vez mais devagar e então iria
parar, como um relógio ficando sem bateria. Ao pensar nisso, seu
coração acelerou no peito. Ela encarou a sala vazia, exceto pelo
colchão e pelas manchas estranhas, nomes, datas, palavras
rabiscadas de alguma forma na parede com sangue, unhas, tubos
de caneta e merda: como tinha ido parar naquele lugar
desesperador?
Com a cabeça apoiada na parede, pensou que seria pior dessa
vez — já que na última ela tinha se julgado doente e chafurdado
tanto em pena de si mesma quanto em auto-ódio, como se fossem
fontes termais sulfurosas a escaldá-la. Todos aqueles especialistas
enfileirados contra ela em um júri todo vestido de branco-médico ou
preto-judicial — assistentes sociais, psicólogos clínicos, oficiais de
condicional —, todos aqueles rostos frios e respeitáveis a tinham
flagrado e prendido em suas redes de jargões, jogados como se
fossem pequenos anzóis envenenados, rasgando sua pele e
enfraquecendo sua vontade. Ela estava marcada com o estigma
sangrento da vergonha e tinha desejado cooperar, ficar bem.
Mesmo quando piorava, ela ficava num canto e chorava muito,
aplainada pela culpa, e isso também fazia parte de estar doente;
provava que ela estava doente, não que era perversa. Reze cem
pais-nossos, diga que entende o quão doente esteve e como você
quer aprender a sair disso. Você quer parar de armar barracos. Fale
alguma coisa na terapia em grupo da terça-feira (mas não muito,
nem sobre os funcionários ou o quão torpe é este lugar) e se
voluntarie para limpar o que fizerem os pacientes incontinentes.
— Como mãe, suas ações foram descontroladas e vergonhosas —
a assistente social disse de forma ameaçadora, zangada e
enfastiada ao mesmo tempo. Angelina estava sentada em uma
cadeira de escritório na qual seus pés não alcançavam o chão, e ela
chupava uma caneta que havia pegado da mesa da assistente
social. Connie queria tirar a caneta dela (envenenamento por
chumbo, nunca mastigue canetas!), mas jamais ousaria tocar na
filha na frente de uma burocrata do Bem-Estar Infantil. Tinham dado
uma chupeta para a Angelina mais cedo e agora obviamente ela
queria outra. Uma chupeta era um acontecimento para ela. Naquela
tarde, era para ela ser levada para o centro de detenção infantil,
enquanto Connie aguardava uma determinação sobre o caso. O
caso de Connie tinha sido determinado, está certo. Abuso
intencional com dano à pessoa ou à saúde de menor, foi o que
disseram, mas também disseram que ela não era responsável pelos
seus atos. Insistiam em dizer como Angelina era bonita, e Connie
suspeitou que de certa forma eles estivessem expressando surpresa
de que a filha dela fosse tão clara.
— Não vai ser difícil achar um lugar para ela, mesmo aos quatro
anos de idade — ouviu a assistente social dizer ao oficial da
condicional. — Ela não aparenta... quero dizer, ela podia ser
qualquer coisa.
Era isso que as pessoas brancas percebiam sobre sua bebê, mas
os traços de Angelina eram os traços dela, o belo nariz largo e em
forma de gancho, estilo maia, a boca pequena, que enrugava
quando ela fazia beicinho, o queixo delicado, os olhos de um
amendoado escuro brilhante. Na verdade, o que Connie via quando
olhava para a filha era uma pequena versão de si mesma. Era ela
encolhendo-se na cadeira, choramingando. Era ela tentando
levantar aquele queixinho e gritando enquanto fazia uma careta: “Eu
vou! Eu vou! Eu vou também! Eu vou também!”. Era ela começando
tudo de novo, sem nenhuma chance de conseguir mais do que uma
série de chutes nos dentes.
Depois da morte de Claud por hepatite em Clinton, ela ficou de luto
por ele em um frenesi de álcool e remédios para dormir, mergulhada
no esquecimento e esperando a morte chegar. Permaneceu sentada
por semanas em uma cadeira, deixando Angelina chorar e gritar até
dormir com medo e com fome. Connie se rasgava com as próprias
unhas, com garrafas, tomava comprimidos, deixava de comer e
tentou todo tipo de estratégia suicida, até que, em um final de tarde,
teve um pesadelo e acordou tremendo e suando no sofá que ficava
bem embaixo da janela que dava para a rua Norfolk, enquanto a luz
azul da sirene de uma viatura policial parada do lado de fora
brincava no teto.
Ela tinha sonhado que Claud nascia de novo, que o luto dela o
arrancava da sepultura e arrastava sua alma sem descanso para um
corpo de bebê. Claud era esmagado para dentro do mundo da sua
mãe viciada, e esperando por ele estava a panela equilibrada na
beirada do fogão que o cegaria e tiraria seu rosto para sempre da
luz do mundo. Reformatórios, tribunais, sentenças pesadas para
garotos envolvidos em crimes federais, aquelas malditas sentenças
indeterminadas de sessenta-dias-a-seis-anos, todas as instituições
que iriam puni-lo por ser negro e cego e sobrevivente. Todo o
desprezo e os ganchos de açougue do mundo estavam esperando
para tirar pedaços da sua doce carne. Quando Claud se viu preso
dentro do corpo contorcido do bebê, sendo forçado a habitar tão
pouca carne e em tão vasto terror, ele xingou Connie.
Ela despertou suando frio no sofá, as costas doendo, e a primeira
coisa que ouviu foi Angelina gritando. Angelina estava de pé a uns
três metros de distância, na quitinete delas, berrando de raiva e
chutando a parede e a perna metálica da mesa. Connie se arrastou
da cama, sentindo a ressaca e a fraqueza, e caiu-lhe a ficha de que
ter um filho era um crime — que talvez aqueles desgraçados que a
tinham esterilizado apenas para treinar, para se divertir, estivessem
certos. Pensou que era um crime ela ter nascido tudo de novo, e
que era um crime nascer pobre, assim como era um crime nascer
parda. Ela tinha permitido que uma nova mulher crescesse onde ela
tinha crescido, e isso era um crime. Então saiu cambaleante do sofá
e viu Angie chutando a mesa, chutando a parede — cada batida era
uma martelada em sua cabeça dolorida — e causando um furo nos
seus sapatinhos baratos. Aqueles eram os únicos sapatos que ela
tinha, e onde diabos Connie iria conseguir comprar-lhe outro par?
Angie não poderia sair sem sapatos. Surgia diante dela um longo
labirinto de conversas com a assistente social, de explicações, de
apelos e formulários em três vias, quatro vias, e idas até o escritório
dela para esperar o dia inteiro, primeiro no frio do lado de fora e
depois dentro, na fila, a vida inteira, por causa de uma bosta de par
de sapatos para substituir a bosta de par de sapatos que ela tinha
acabado de destruir.
— Sua merdinha! — gritou e bateu nela. Bateu forte demais. A
menina atravessou a sala e se esborrachou na porta. O braço de
Angie atingiu a tranca de metal e o pulso dela se abriu. Esse ato se
passou em um instante; as consequências ela iria sentir durante
todo o tempo em que respirasse.
Enquanto se afundava na parede da sombria cela da solitária,
lágrimas caíam no seu colo, molhando o vestido amarelo e
desbotado de tantas lavagens. Lágrimas por Claud morto, por
Angelina adotada por uma família branca de classe média
suburbana e se transformando na bela e exótica filha deles. E se
lembraria do quê?
Por que Dolly a tinha traído? Bom, por que ela tinha traído a
própria filha? Tinha afastado Angelina pela dor de ter perdido Claud.
Ela devia ter amado mais a filha, mas, para amá-la, tinha de amar a
si mesma, agora ela sabia disso. Principalmente para amar uma
filha que via como uma nova versão de si mesma. Ela se apoiou
contra a parede, agarrando os joelhos, e tentou se concentrar na dor
da velha queimadura que nunca tinha sarado para apagar as
memórias.
Sentiu então uma sensação de aproximação, quase como se
alguém estivesse atrás de si, querendo estabelecer contato, aquela
presença tocando de leve sua consciência. O sentimento era uma
mistura de irritação e alívio. Ela limpou o nariz na manga, já que não
tinha mais nada, e fez uma careta de nojo pelo desleixo. Como
detestava ficar suja. Sentia-se feia, inchada por causa dos
remédios, pele quebradiça e descascando, lábios secos e rachados,
cabelo fino e sujo e sem brilho por causa do suor febril. A garganta
estava inflamada e a nuca doía o tempo todo.
Vaidade antes de uma alucinação? Se ela podia pensar em
Luciente de forma tão clara, por que não podia pensar em si mesma
estando limpa e bonita? Pelo menos uma alucinação seria um tipo
de companhia, então ela fechou os olhos, recostou-se na parede e
permitiu que aquela presença a preenchesse. Continuou assim por
cerca de dez minutos, a cabeça para trás e olhos bem fechados.
— Connie, finalmente! Clarquessim faz mais de três semanas!
— Essa é a primeira vez que estou sendo eu mesma desde aquela
primeira noite.
— É por nossa causa que você está aqui?
— Não. — Ela não abriu os olhos imediatamente.
— Serássessim? Você não está apenas pintando osso?
Ela descreveu brevemente a noite de sua prisão. Quando abriu os
olhos, viu Luciente consultando o relógio que murmurava.
— A dificuldade pra eu compreender está desabalada. — Luciente
disse na sua voz aguda e animada. — Podia ser língua Yif. Membre
de sua família tem amigue doce que abusa dissôa e que... vende
sua irmã?
— O cafetão dela, Geraldo. E ela é minha sobrinha, não irmã.
Geraldo é um porco! Ele não quis o filho dela.
Luciente pareceu estar bastante consternado. Passando as mãos
pela boca, ele mudou a perna de apoio, agachando-se diante dela.
— Ah, sei que vocês aqui comiam bastante carne. Mas é comum
se alimentar de pessoas? Ou seria isso escravização, que eu achei
que já estava encerrada na sua época?
— Às vezes não temos nada pra nos alimentar a não ser nossa
dor e uns aos outros... — A vontade de chorar ainda queimava em
seus olhos. — O que você quis dizer com essa coisa da carne?
— Como Geraldo vendeu a carne dissôa então e... porcos
também?
— Ela faz programa! — Percebendo que não tinha sido
compreendida, ela bufou e disse sem censuras: — Puta, vadia,
piranha!
Luciente começou a mexer no aparelho no seu pulso até que
Connie estendeu a mão e o interrompeu. Ele tinha ossos pequenos,
talvez pouco mais pesados do que os dela.
— Com quem você fala nessa coisa?
— Meu cognescedor? Ele se liga a uma enciclopédia, um
computador de conhecimentos. Também se liga ao transporte e
armazenagem. Pode servir de localizador e comunicador. — O rosto
de Luciente mudou de repente e então sorriu. — Ah, tinha a ver com
sexo. Prostituição? Já li sobre isso e vi um drama sobre isso
também, pessoa que vendia o corpo dissôa pra alimentar a família.
— Acho que ninguém onde você mora se vende, né? Como dizem
que é na China Comunista.
— Não vendemo nem compramo nada.
— Mas as pessoas transam, não é mesmo? — Connie se sentou,
cruzando os braços sobre os peitos enquanto balançava seu cabelo
longo e engordurado. — Suponho que já que você está vivo e
nasceu, eles ainda fazem as coisinhas, quando não estão ocupados
com seus computadores?
— As duas frases não seguem. — Luciente abriu-lhe um sorriso
largo. — Clarquessim casalamo. Não por dinheiro, não como
profissão. Por amor, por prazer, por alívio, pelo hábito, curiosidade
ou desejo. Como vocês, né?
Como se fosse um raio de sol em sua cela, ele parecia tão
humano, ajoelhado ali, que ela se ouviu perguntar com uma voz
envergonhada:
— Você gosta de mulheres?
— Todas as mulheres? — Luciente olhou para ela meio
estupefato. — Ah, pra casalar? Em verdade, a união mais intensa
da minha vida foi uma mulher chamada Diana, o fogo que me
recoze, como Lebre diz em um poema. Mas foi uma amarração,
sabe, obcecamo. Não é bom pro crescimento. A gente se prende.
Mas ainda amo Diana e às vezes nos encontramo. Mas, na maior
parte do tempo, gosto de homem.
— Foi o que pensei. — Por que isso a fazia se sentir tão
entristecida? Ele não tinha demonstrado nenhum sinal de interesse
sexual por ela, exceto por todo aquele excesso de carinho e ficar
pegando na mão. Mas uma fantasia da sua mente não deveria pelo
menos satisfazê-la? Talvez estar louca fosse sempre algo baseado
em auto-ódio e ela iria, é claro, ver um viado.
— Você está solitárie aqui, e eu só te decepciono.
Verdadeiramente, não sou de rigidez e gosto de você. — Luciente
tomou as mãos dela nas suas mãos quentes, secas e calejadas. —
O que é esse lugar? Você parece estar trancada. Já vi hologras
sobre as prisões e campos de vocês. É um desses lugares?
— Não. Preferia estar na prisão. Mesmo que esteja esperando a
sentença, pelo menos sabe quando vai sair. Eles podem me manter
aqui até que eu saia enrolada num saco preto. É uma lata de lixo
pra lunáticos, um manicômio.
Luciente consultou o pulso.
— Ah, uma casa de loucura! A gente tem sim. — Olhou em volta.
— Mas parece... feia. Fundopoço!
— A de vocês é chique?
— A céu aberto e agradável, clarquessim. Nunca fiquei em uma...
— Grande coisa! — Ela livrou suas mãos do aperto.
— Mas Lebre já... bem antes de a gente se fixar, e temo sido
amigues doces há três anos. Abelha e eu somo amantes há doze,
num é estranho? Não mofar depois de tanto tempo. E a Diana
enlouquece ano sim ano não. Tem visões. Pessoa se terrremota,
afunda, emerge e se coloca a trabalhar com uma paixão em
arreios... Mas tenho que te falar, em verdade de você não parecer
estar em loucura pra mim. Sei que nunca enlouqueci pessoalmente,
sou... diligente... demais. Pé no chão, então está além da minha
experiência. Abelha me diz que sou a pessoa menos receptiva da
nossa base, e pessoa tem que gritar no meu ouvido pra ser
entendida... Não pretendo me intrometer ou acusar ninguém, mas
você verdadeiramente enlouqueceu?
— Aqui eles dizem que se você acha que não está doente, isso é
sinal de doença.
— Você está... doente?
— Doente. Louca.
— Não usamo essas palavras pra significar a mesma coisa. —
Luciente fez a cabeça pender para um lado. — Será que você está
blefando? Verdadeiramente, eu nunca desci tanto, mas fiquei perto
da Diana quando pessoa estava bem ensimesmade, e... você
parece coerente demais. Talvez esteja cansade, incapaz de lidar por
um tempo. Às vezes, isso acontece entre nós.
— Não acho que tenha alguma coisa errada comigo, além de ver
você; esse é o melhor sinal de loucura que eu consigo pensar.
— Não, estou em contato com você, realmente. — Luciente franziu
o cenho observando a sala. — Esse lugar me enfundece. Você
gostaria de dar uma volta?
— A porta está trancada. Ou você tem uma chave?
— Não um passeio aqui e agora. Eu desejo convidar você pra
minha casa, pra uma breve visita, digamo, uma hora?
— Quer dizer do mesmo jeito que você vem aqui?
— Você não gostaria de ver a minha vila?
— Gostaria de ver qualquer coisa menos essas quatro paredes
imundas, pode crer. Mas vou conseguir voltar? — Ela riu parecendo
um pio. — Por que deveria me importar? Melhor eu ficar presa em
algum outro lugar do que ficar apodrecendo aqui!
— Tristemente, você não pode permanecer no meu tempo. Um
lapso de atentividade provavelmente quebraria nosso contato. —
Luciente se levantou de forma graciosa e estendeu a mão para ela
segurar. — Como assinalei, a aparição não será uma presença
física, mas é... como se fosse. Agora vamo ver se esse truque
funciona. Pra confessar, não faço a insignificante ideia se posso
realmente puxar você pro meu tempo. Mas o pior que pode
acontecer é a gente abrir os olhos e ainda estar neste quarto
enfadonho, que devia servir apenas pra guardar maquinário!
— Você devia tentar ficar aqui vinte e quatro horas por dia. Chega
uma hora que te destrói.
— Então por que você vem aqui? Parece inadequado.
— Não venho, pode crer. Fui arrastada aos berros. Meu irmão Luis
me internou.
— Nossas casas de loucura são lugares pronde as pessoas se
retiram quando querem se aprofundar em si mesmas, entrar em
colapso, seguir adiante, ter visões, ouvir vozes de profecia, bater
nas paredes, retornar à infância, entrar em contato com o eu
enterrado e o interior da mente. Todes perdemo partes de nós
mesmos. Todes fazemo escolhas que dão errado... Como outra
pessoa pode decidir que é hora de eu me desintegrar, me
reintegrar?
— Aqui você é colocada se sua família ou outras pessoas não te
querem por perto, e essa é a versão completa e a resumida. — Ela
finalmente mostrou as mãos e deixou Luciente dar o impulso para
levantá-la.
— A primeira vez costuma ser a mais difícil, mas, francamente,
somo as primeiras pessoas a tentar. Essa é a teoria, de qualquer
forma, pelo que pesa. Aqui vem a prática, BEBES.
— Bebes? O quê? Água?
— BEBES: Besteira Entra, Besteira Entrada Sai, esse é o lema em
cada cognescedor. Significa que sua teoria não é melhor que sua
prática, ou o seu corpo não é melhor que sua nutrição. Sua
enciclopédia só produz a informação ou a desinformação alimentada
nela. Assim por diante. — Luciente gentilmente a trouxe para perto
dele e a segurou em seus braços para que as testas deles se
tocassem. — Você deve ser uma pessoa captadora de primeira e eu
devo ser remetente superforte... Como as pessoas dizem, com
teoria e um prego, você tem um prego.
Pressionada de forma relutante contra Luciente, ela sentiu a
aspereza do tecido de sua camisa e... peitos! Ela deu um salto para
trás.
— Você é mulher! Não, uma daquelas pessoas que fazem
operação de sexo!
— Se você ficar pulando, nunca vamo conseguir acertar... Clarque
sou do sexo feminino. — Luciente pareceu um pouco indisposta.
Connie ficou olhando fixamente para Luciente. Agora começava a
ver ele/ela como uma mulher. Bochechas imberbes, cabelos lisos na
altura dos ombros e a mesma cara de índio gentil. Com um toque de
sarcasmo, ela disse:
— Você é meio musculosa pra uma mulher. — Com raiva, deu a
volta e se afastou por alguns passos. Uma sapatão, claro. Aquele
bar em Chicago que as sapatonas chicanas frequentavam, jogando
bilhar e xingando os homens, xavecando as mulheres que
passavam. Ainda assim, elas nunca tinham dado a ela a sensação
de ameaça que um grupo de homens daria, afinal, por baixo das
roupas também eram apenas mulheres.
— Não sou estranhamente forte. — O rosto de Luciente estava
retorcido pela surpresa. Ela ainda estendeu as mãos para puxar
Connie para perto. — Estou na média. Fazemo mais trabalho físico
do que a maioria das pessoas fazia na sua época, creio. É mais
saudável, e é clarque vocês, palermas, estavam queimando todo
aquele combustível fóssil... Você se surpreendeu por descobrir que
sou mulher?
Sentindo-se uma idiota, Connie escolheu não responder. Em vez
disso, caminhou até a porta com o olho mágico e então até o
radiador. Quando Luciente falava, ela se movia com aquele ar de
autoridade ativa e meio despretensiosa que Connie associava aos
homens. Luciente se sentava ocupando mais espaço do que uma
mulher ocuparia, se acocorava, se espalhava, andava sem se
importar com como seu corpo se mostrava. Era difícil andar de um
lado para o outro com dignidade no pequeno espaço entre o colchão
manchado e a parede. Connie não se sentia mais com medo de
Luciente.
— Por favor, Connie. — Luciente se aproximou e com cuidado
colocou o braço nos ombros dela. — Não entendo o que está
errado. Deixe-me fazer uma tentativa. A gente nem realizou nosso
experimento. Você realmente quer ficar aqui o dia todo? Isso não te
enfundece?
— Até a alma.
Ela ficou de pé, sentindo-se um pouco desconfortável, e deixou
Luciente puxá-la para perto e encostar a testa na dela. Muito
raramente ela abraçava outra mulher em um contato tão completo,
de corpo todo, era difícil distrair a mente. Ela conseguia sentir
Luciente se concentrando, podia sentir um cone de energia se
formando à sua volta. Isso a lembrou da velha intensidade de um
homem desejando... alguma coisa — o corpo, o tempo, o conforto
dela —, aquela energia que queria agarrá-la e fazê-la afundar. Mas
ela estava exausta e machucada e cedeu à pressão. Afinal, o que
tinha a perder?
Apesar de poder sentir em Luciente uma impaciência velada, a
mulher a segurava de forma gentil. Uma energia direcionada estava
em ação e controlava essa geneticista com peitos como uma deusa
da fertilidade por baixo daquele tecido rústico da camisa de trabalho
vermelha. Uma benevolência ríspida e ignorante a tocou de leve.
Então ela sentiu o cheiro de sal no ar, um cheiro penetrante de
mangue. Uma brisa arreliou com os trapos que ela estava vestindo,
gelando suas canelas. Sob seus pés, sentia pedras. Uma andorinha
gritou e outra mais acima respondeu. Luciente relaxou o abraço.
— Livre e em casa. Você vai ficar o dia todo parade aí com os
olhos fechados? Olha!
Foguetes, arranha-céus que atingiam a estratosfera, um mundo
subterrâneo de túneis a quilômetros de profundidade, domos de
vidro cobrindo tudo? Ela estava relutando em ver aquele mundo.
Vozes próximas, distantes, risadas, pássaros, muitos pássaros... em
algum lugar um cachorro latiu. Será que... sim, um galo cantando ao
meio-dia. Aquilo a forçou a abrir os olhos. Um galo?! Temerosa, ela
encarou Luciente, cuja face estava partida por um sorriso de triunfo.
— Onde a gente está?
— Você pode olhar à sua volta! Aqui é onde eu moro. — Luciente
a pegou pelo braço e foi caminhando ao seu lado. — Essa é nossa
vila. Aproximadamente 600 habitantes.
Ela olhou em volta lentamente. Viu... um rio, pequenas
construções, estranhas estruturas que pareciam aves com pernas
muito longa e velas que giravam com o vento, alguns grandes
edifícios em tons de amarelo e vermelho tijolo e um domo azul.
Eram edifícios irregulares, nenhum maior que um supermercado dos
seus dias, daqueles comuns de shopping centers. Os objetos que
pareciam aves eram as maiores coisas à vista, e mal ultrapassavam
os maiores pinheiros que ela podia ver. Havia ainda algumas
estruturas rugosas e disformes cobertas de trepadeiras. Nenhum
arranha-céu, nem espaçoporto, nem tráfego intenso no céu.
— Tem certeza de que a gente foi pra direção certa? Pro futuro?
— É a minha época, sim! Clarquessim, olha que lindeza!
— Você mora numa vila, como disse. Longe de tudo e de todos.
Tipo, se a gente for pra uma cidade, seria... mais moderno?
— Não tem cidades grandes, elas não funcionam. Você parece
desapontade, Connie.
— Não é como eu imaginava.
A maioria dos prédios eram pequenos e espalhavam-se sem muito
planejamento por entre árvores e arbustos e jardins, construídos
com madeira antiga, velhos tijolos, pedras e blocos de cimento
recuperados de escavações. Muitos eram ampla ou até
excessivamente decorados com trepadeiras. Connie viu bicicletas e
pessoas a pé. Havia roupas estendidas em um varal perto de um
prédio comprido — camisas esvoaçando nos varais! A uma certa
distância para além do domo azul, vacas estavam pastando, vacas
comuns malhadas de preto e branco, de marrom e branco,
mascando um capim comum que ficava do outro lado de uma cerca
de pedra. Diversos lotes com hortaliças plantadas se estendiam por
entre as cabanas até perder de vista. Em um canteiro elevado
próximo, um homem de pele escura mexia no que parecia ser uma
plantação de espinafre.
— Atravessou, hã? — ele disse a Luciente.
— Você consegue ver a pessoa do passado? — Luciente
perguntou.
— Claro, fiz o reajuste de visão no mês passado.
— Eita! — Luciente se virou, dando pulos de alegria. — Bom que
tomamo cuidado no seu tempo. Posso estar visível lá também; isso
pode ser perigoso.
— Por que não é perigoso eu ser vista aqui?
— Todo mundo sabe por que está aqui.
— Todo mundo menos eu. — Os telhados das... cabanas (era a
única palavra que lhe vinha à mente) eram estranhos. — O que tem
ali em cima? Algum tipo de claraboia?
— Reservatório de água de chuva e energia solar. Nossas
habitações não são subterrâneas por causa das infiltrações, já que o
lençol freático é muito próximo da superfície. Somo quase um
pantanal, mas não exatamente, então está tudo bem construir aqui.
Vou te mostrar outras vilas diferentes... Acho que, comparando com
o seu tempo, tem menos pra ver e ouvir. Aquela vez em que apareci
nas ruas de Manhattan, achei que ia ficar surde!... De certa forma,
podíamo meio que invejar vocês, uma época tão gorda,
extravagante e cheia de coisas!
— Não é tão gorda pra mim.
— Você é o que eles chamam de pobre?
Connie se arrepiou, então deu de ombros.
— Estive na pior por um tempo. Uma sequência de momentos
difíceis.
Luciente passou um braço ao redor da cintura dela e gentilmente
fez com que ela continuasse o passeio. Uma galinha extravagante
passou empertigando-se pelo caminho, seguida por outra. A trilha
era feita de pedras encaixadas umas nas outras, formando um
padrão de cores claras e naturais. Ao longo dela, flores amarelo-
mostarda floresciam. Tulipas de caule curto se espalhavam como
estrelas brilhantes no chão.
Ela sentiu o cheiro deles antes mesmo de poder vê-los.
— Bodes! Jesús y Maria, parece a fazenda do meu tio Manuel no
Texas. Um bando de refugiados ilegais! Bodes, galinhas correndo
por aí, cabanas construídas com lixo da classe média branca. Tudo
o que falta são alguns carros velhos estacionados em blocos de
concreto no quintal. O que aconteceu? Será que foi aquela grande
guerra com bombas atômicas que falam sempre?
— Mas gostamo desse jeito! Ah, Connie, achávamo que ia gostar
também! — Luciente parecia chateada quando franziu o rosto. — A
gente mudaria se não gostasse, como não? Estamo sempre
mudando as coisas de lugar. Como dizem, o que não está vivo,
morre... Estou sempre citando homilias. Lebre diz que minhas
palavras saem como estouradores. — Luciente percebeu a cara de
paisagem de Connie. — Os componentes miniaturizados e
empacotados de um circuito? Lebre quer dizer que está tudo numa
caixa. — Luciente ainda tinha uma feição preocupada.
— Então você tem algumas máquinas? Não é proibido pela
religião ou algo assim?
— Clarquessim tem máquinas. — Luciente tocou seu
cognescedor. Ela parecia confiante no seu lugar de origem. —
Quando vir mais, vai gostar melhor. — Seu braço ao redor de
Connie dava apertos carinhosos enquanto andavam, e com o braço
livre ela apontava, acenava, gesticulava e fazia mímicas. Ela falava
cada vez mais alto e rápido. — Criamo galinhas, patos, faisões,
perdizes, perus, galinhas d’angola, gansos, bodes, vacas, tartarugas
e porcos. Nós de Mattapoisett somo famosos pelos gansos e
tartarugas. Mas nossa maior fonte de proteína são as plantas. Todas
as regiões tentam ser autoalimentadas.
— Auto o quê?
— Autoalimentadas. Tão autossuficientes quanto possível em
proteínas. — Luciente parou de repente e apertou os ombros de
Connie efusivamente. — Eu refuto isso, mas acabei de pensar em
uma coisa importante. Você tem razão, Connie, somo camponesies.
Somo todes camponesies.
— Adiante, pro passado? Certo, é melhor viver num campo verde
do que na 111th. Mas toda aquela luta e esforço pra terminar no
mesmo velho problema. Presos de novo na fazenda. Voltar a ser
peões! Voltar à mesma pilha de bosta com dez galinhas e um bode?
Era desse tipo de vida que meus avós tentaram fugir. Isso me
entristece.
— Connie, espere um pouco, confie um pouco. A gente tem
grande confiança na nossa forma de viver. Deixa eu mostrar pra
você... Não! Deixa nossas ações mostrarem por si mesmas. Deixa
as pessoas se abrirem e revelarem... Pense nisso dessa forma:
havia muitas coisas boas na vida que nosses ancestrais levavam
aqui nesse continente antes que o homem branco chegasse
conquistando tudo. Muito do que foi trazido era útil. Levou muito
tempo pra colocar o bem antigo com o bem novo pra criar um bem
maior... Você está congelando. Vamo pegar um casaco pra você.
Daí você vem conhecer minha família no almoço.
— Não vou conhecer um monte de estranhos nesse vestido
carcomido e imundo. Não mesmo! Além disso, não estou com fome.
O Amplictil tira todo meu apetite.
— Podemo trabalhar nisso mais tarde. Pode ser que possamo
ensinar você a controlar os efeitos do medicamento, mas sobre as
roupas... Venha, vamo pegar algumas pra você e um casaco. Sou
tão sensível quanto sal grosso, como dizem Abelha e Lebre, então
venha pra minha casa e vamo achar alguma coisa. — Luciente a
guiou através de um labirinto de caminhos e cabanas e pequenos
jardins onde pessoas, que deveriam ser mulheres, porque
carregavam bebês nas costas, plantavam sementes. Elas se
apressaram, passando por uma série de laguinhos de peixe e
estufas, até uma cabana perto do rio onde patos selvagens e
domésticos se misturavam, alimentando-se por entre as plantas
aquáticas. Elas tinham chegado perto da colina onde estavam os
objetos aracnoides, que deviam ser moinhos de vento. De novo ela
se lembrou dos moinhos nas planícies secas, nos ranchos sem luz
elétrica. A cabana era construída a partir de blocos erodidos de
cimento velho em contornos suaves e tomada por uma rosa
trepadeira que tinha acabado de espalhar um punhado de folhinhas
bordô amarrotadas. — Euzinhe criei isso! Espere até você ver ela
florescer! Chamei de Diana. Grande, branca, robusta com traços
vermelhos e um intenso aroma de musgo, suporta climas abaixo de
zero. É popular lá no Maine e em New Hampshire, porque é muito
resistente pra uma trepadeira. Eu a enxertei com a espécie Rugosa,
usando a criação de Molly Maguire... Opa! Disparei, desculpe.
Venha!
A porta estava destrancada e, na realidade, tinha apenas um trinco
do lado de dentro. Janelas nos dois lados clareavam o ambiente. Os
móveis de cerejeira e pinheiro eram firmes e grandes: uma
escrivaninha, uma mesa de trabalho e outra mesa grande, sobre a
qual uma colcha de lã estava estendida de forma casual, com um
pedaço caído em uma das pontas. O chão era de madeira e nele
dois carpetes claros e outros tecidos jaziam como um padrão de
rostos olhando para algo, com duas frutas tropicais saindo do meio
da folhagem. Desenhos e pinturas de crianças estavam pendurados
aqui e ali, assim como gráficos e tabelas, presos às paredes de
alguma maneira. Obviamente Luciente gostava de vermelho e
dourado e vários tons de marrom.
— Três de vocês moram aqui?
— Três? Não. Este é meu espaço.
— Pensei que você vivesse com dois homens. O Abelha e o Lebre
que você está sempre falando.
— Somo amigues doces. Algunes de nós usamo o termo “núcleo”,
praqueles de quem somo mais próximos. Outres acham que essa
distinção é ruim. Debatemo. Euzinhe uso núcleo, porque acho que
significa algo real. Abelha, Lebre e Lontra são meu núcleo...
— Outro amante!
— Não, Lontra é amigue de fazer, não amigue de dormir. Somo
aproximade desde que tínhamo dezesseis anos. Politicamente somo
muito aproximade...
— Mas se você mora sozinha, com quem eles moram?
— Cada um de nós tem seu próprio espaço! — Luciente pareceu
um pouco chocada. — Só bebês compartilham espaço! Eu li mesmo
que as pessoas costumavam viver apinhadas. — Luciente deu de
ombros. — Connie, você tem o seu próprio espaço. Como pessoa
poderia viver de outra forma? Como meditar, pensar, compor
música, dormir, estudar?
— Ninguém mora com a família? E as crianças? As mães e seus
filhos devem morar juntos.
— Todes vivemo entre a nossa família. Hoje você vai conhecer
todo mundo na minha família e no meu núcleo, exceto Abelha, que
está na defesa até mêsquivem. Todes outres membres tão por aqui,
acredito... — Luciente deslizou uma porta para o lado, de onde tirou
calças e uma camisa. — Se esses não servirem, pegue o que
quiser. Me contaram que vocês têm tabu com o corpo? Vou esperar
lá fora enquanto você se veste.
Sozinha, Connie vestiu as roupas rapidamente. Luciente era mais
alta e um pouco mais larga nos ombros, mas Connie era mais
corpulenta nos quadris e glúteos, então a princípio ela não
conseguiu fechar a calça. Daí encontrou um ajuste na bainha para
que ela fosse apertada ou alargada, encurtada ou esticada. Uma
mulher não deixaria de usá-la mesmo se ganhasse ou perdesse dez
quilos. Bem, tinham inventado alguma coisa nesse cafundó do
futuro. Depois de vestir a camisa, olhou ao redor no cômodo. Na
escrivaninha, uma tela estava acoplada na parede. Uma televisão?
Curiosa, ela apertou o botão de ligar.
— Bualuz, você quer visual, comunicação ou transmissão? Você
se esqueceu de apertar o botão de pedido — disse a voz de uma
mulher. Como Connie ficou apenas olhando para ela, o aparelho
repetiu exatamente o que tinha dito, e ela percebeu que era uma
gravação.
Ela apertou o botão T para transmissão, ou assim esperava. A tela
começou a piscar nomes de artigos ou falas, obviamente sobre
genética botânica. Enquanto a tela mostrava os títulos que nada
significavam para ela, começou a ler os outros botões. Um dizia
PRÉ-C, e ela o apertou. Uma descrição como um pequeno resumo
de livro apareceu e ficou ali por uns dois minutos.
“Tentativas de aumentar o conteúdo nutricional em grãos de
inverno (Triticale siberica), adequado para breves cultivos em
plantações do norte, mantendo resistência a insetos e ferrugem.
Direção promissora. Informações da criação completas. James Bay
Cree, Grupo Pato Negro, 10 pp. 5 cd. 2 sp.”.
Sentindo-se vigiada, ela desligou o aparelho de forma culpada e
deu um salto para trás. Então, viu que um gato peludo e cor de
pêssego tinha se levantado de uma saliência na janela — uma
prateleira construída do lado de dentro para algumas plantas e
talvez o próprio gato tomar sol. O gato caminhou até ela com um ar
cheio de propósito, saltitou para a cadeira e a encarou com
expectativa.
— Miau? Minhau? — O gato piscou, desviou o olhar, então olhou
novamente. Repetiu o gesto várias vezes, cada vez mais devagar,
com uma pausa entre eles quando seu olhar cor de âmbar se fixava
nela. Connie sentiu um pouco de medo. Será que o gato pensava
que ela era um rato gigante? Ele esperava ser alimentado?
Finalmente, bufando, o gato saltitou para fora da cadeira e,
intencionalmente (ao menos foi a impressão que ela teve), deu-lhe
as costas e sacudiu-se de volta para a janela ensolarada, mas ainda
mantinha as orelhas viradas na sua direção.
Ao abrir a porta, encontrou Luciente do lado de fora na grama alta,
sentada de cócoras como um peão, observando uma pequena
borboleta azul escura. Parecia que ela ficaria ali acocorada o dia
inteiro. “Bom, o que eu esperava do futuro?”, Connie se perguntou.
“Céu rosa? Robôs marchando? Pessoas com transistores? Acho
que nos explodimos e agora estamos de volta na idade das trevas,
para começar tudo de novo”. Ela ficou ali parada por um instante,
enfraquecida por uma tristeza que não conseguia definir. Um mundo
melhor para as crianças — essa tinha sido a fantasia de sempre;
que, não importando o quanto as coisas estivessem ruins, elas iriam
melhorar. Mas se a Angelina tivesse um filho, e esse filho tivesse
outro filho, esse era o mundo onde essa criança iria nascer dali a
cinco gerações. Quão diferente era daquele México rural, com seus
povoados empoeirados, com poeira no traseiro?
— É uma Primavera Azure — Luciente disse. — Formigas
ordenham elas.
— Você tem filhos?
— Menores de doze anos são quarenta e nove na nossa vila.
Estamo mantendo uma população estável.
— Quis dizer você particularmente: você já teve filho?
— Euzinhe? Sim, duas vezes. Sou o que chamam de
criançavinculadeire, ou seja, sou mãe de filhes de todo mundo. —
Segurando-a pelo braço, Luciente a dirigiu ao domo azul que ela
tinha apontado e dito ser a comideira. — Vamo nos apressar. Eu
coloquei uma etiqueta de visitante pra você, se tivéssemo
conseguido atravessar. Sou mãe de Alvorada. Já fui mãe de
Neruda, que está esperando pra estudar agricultura vertical. Pessoa
vai começar no outono. Estou muito animada. Clarque não sou mais
mãe de Neruda, não desde a nomeação. Ninguém jovem quer ter
mãe. — Durante todo esse tempo, Luciente apressava Connie por
um caminho em direção ao domo azul translúcido.
Connie esperou para conseguir falar.
— Então, qual a idade das suas crianças?
— Neruda tem treze. Alvorada tem sete.
Isso colocava Luciente na faixa dos trinta anos.
— Seu amante Abelha é o pai? Ou é o outro?
— Pai? — Luciente levantou o pulso, mas foi parada por Connie.
— Papai. Véio. Você sabe, o genitor masculino.
— Ah, não. Nem Abelha, nem Lebre. Comães geralmente não são
amigues doces, se pudermo evitar, pra que a criança não esteja
envolvida em picuinhas de amor.
— Comães?
— Minhes coo-mães — ela alongou a pronúncia do o. — Com
Alvorada são Lontra e Estrela d’Alva. Você vai conhecer todes agora
mesmo.
A sala onde entraram tomava metade do domo e estava repleta de
grandes mesas com quinze lugares cada. A maioria das pessoas ali
vestia as mesmas roupas comuns de trabalho que Luciente usava, e
as crianças vestiam uma versão menor. As calças, camisas, um ou
outro macacão ou túnica eram de todas as cores que Connie
conhecia, muitas desbotadas por lavagens ou pelo tempo, ainda que
os tecidos parecessem fortes. Todos ali pareciam estar falando ao
mesmo tempo, mas o lugar não estava barulhento. A cena era mais
animada do que a alimentação institucional costumava ser. Uma
criança escalava um banco para contar uma história, agitando os
dois braços. No canto, um homem de bigode estava chorando
copiosamente, com lágrimas caindo na sua sopa, enquanto ao seu
redor as pessoas davam tapinhas nas suas costas e faziam uma
algazarra. As pessoas estavam discutindo calorosamente, rindo,
contando piadas, e uma criança cantava em voz alta em uma mesa
perto da porta. De fato, esse poderia ser o refeitório de um
manicômio, pela forma como as pessoas se sentavam, sem
esconder suas emoções, mas havia um nível elevado de energia ali.
A pulsação da sala era positiva, mas um pouco excessiva. Ela se
sentiu ferida. Por que não era mais barulhento? Algo absorvia os
sons, emudecia as vozes que gritavam e falavam sem parar, os
fragmentos de melodia e risadas, os gritos, os barulhos de facas e
garfos e pratos, o arrastar de cadeiras no chão — todo de taco, pelo
que podia ver, a não ser que fosse algum tipo de imitação
inteligente? Ela não conseguia acreditar em quantas coisas eles
conseguiam fazer com a madeira. Alguns painéis nas paredes-teto
do domo eram transparentes, outros eram translúcidos, mas do lado
de fora ela não tinha notado qualquer diferença.
— Não tem razão pra desconfiar. A comideira precisa ser bem
provadissom, ou, em noites de festas, nos festivais, ninguém que
não queira acompanhar conseguiria dormir. Os painéis com a borda
azul são destacáveis. Pegamo a brisa do rio, e quando fica muito
quente, tiramo os painéis todos. — Luciente estava se dirigindo para
uma mesa mais afastada, onde todos, exceto a menor das crianças,
pararam de comer para observar a aproximação deles. — Você
consegue enxergar através de alguns, mas de outros não, porque
há quem goste de comer em lugar fechado, e outros, como eu,
querem ver tudo. A comideira é um refúgio pra todos nós. Um local
acolhedor.
Nos painéis translúcidos, vários desenhos tinham sido pintados ou
gravados — ela não conseguiu distinguir — numa variedade doida
de estilos e níveis de competência, indo dos abstratos sofisticados,
paisagens, retratos até o que pareciam ser desenhos de crianças.
— De onde veio essa arte?
— Nas paredes? — Luciente pareceu surpresa. — Ora, da gente,
ou de alguns de nós. Eu não perco tempo com isso. Sou parte dos
sessenta por cento que não podem. Descobrimo que toda arte se
resume a uma proporção de sessenta/quarenta por cento da
população, não importa se for dança, composição ou escultura. É a
mesma curva. Euzinhe toco tambor que é uma maravilha!
Como uma criança! Connie não imaginava nenhuma mulher da
idade que elas deveriam ter dizendo em El Barrio, ou em qualquer
outro lugar em que já tinha morado: “Euzinha toco tambor que é
uma maravilha!”. Era verdade, eles eram meio infantis, todos com
seus babadores unissex, sentados nas compridas mesas do jardim
da infância, comendo grandes pratos de comida e fazendo piadas.
— Entendo a vontade de olhar pros desenhos dos filhos, mas
outras pessoas não se cansam disso?
Elas haviam chegado à mesa em meio a um mar de aromas de
temperos que traziam seu estômago de volta à vida. Duas cadeiras
estavam vagas; diante delas, belos pratos de cerâmica cor de terra,
copos de vidro de um lado e talheres feitos de uma substância lisa
que não era nem prata nem aço inox e talvez nem mesmo metal.
Alguém — magro, jovem — saltou e abraçou Luciente, estendeu-lhe
os braços, conferiu o gesto e sorriu, dando-lhe calorosas boas-
vindas.
— Vocês atravessaram! Espera até todes saberem disso!
— Deixa pra lá. Você guardou almoço pra nós? Estou
emagrecendo a cada segundo — Luciente falou, abraçando a
pessoa jovem de volta.
Elas foram literalmente acarinhadas até seus lugares, e Connie se
percebeu cheia de inquietação. Toques e carinhos, abraços e
apertos, eles se tocavam constantemente. De certa forma, ela se
lembrou novamente da sua infância, quando cada emoção parecia
encontrar uma manifestação física, quando tanto o amor quanto o
castigo eram expressos diretamente em sua pele.
Grandes travessas de comida passavam de mão em mão: uma
broa de milho com uma crosta grossa e uma camada de creme,
além de uma cobertura que lembrava trigo; manteiga, não em barra,
mas num montinho, esbranquiçada, adocicada e cremosa; mel
numa jarra aberta, escuro e com um sabor forte. A sopa era grossa,
com feijões brancos, cenouras, umas verduras claras que ela não
conseguia identificar, com gosto forte quando eram mastigadas e
um sutil toque de curry. Na salada havia somente algumas verduras,
cebolinha e ervas, mas ela tinha um gosto picante, com diversas
folhas misturadas num óleo de amêndoas e um vinagre com gosto
de... sálvia? Comida boa, boa no paladar e no estômago. Comida
deliciosa.
Luciente estava dizendo o nome de todo mundo, deixando-a
confusa. Ninguém parecia ter mais de um nome.
— Vocês não têm último nome?
— Quando a gente morre? — Barbarossa, um homem de olhos
azuis e uma barba vermelha, franziu o cenho para ela. —
Devolvemo o nome que tínhamo então.
— Sobrenomes. Olha, meu nome é Consuelo Ramos. Connie, pra
facilitar. Consuelo é meu nome de batismo, meu primeiro nome.
Ramos é meu último nome. Quando nasci, eu me chamava
Consuelo Camacho. Ramos é o nome do meu segundo marido,
portanto, eu sou Consuelo Camacho Ramos. — Ela deixou de fora o
Álvarez, o sobrenome de Martín, seu primeiro marido, para
simplificar.
Eles se olharam, diversos adultos e crianças todos consultando
seus cognescedores nos pulsos. Afinal, Luciente disse:
— A gente não tem nenhum equivalente.
Connie se sentiu contrariada.
— Suponho que tenham números. Acho que vocês se chamam só
pelo primeiro nome porque seus nomes reais, suas identificações,
são os números que são atribuídos ao nascerem.
— Por que teríamo números? A gente consegue saber quem é
quem — a pessoa alta e agitada respondeu. Lebre, Luciente havia
dito, portanto, homem. Ele tinha cabelos fartos em cachos castanho-
claros e havia enrolado as mangas da sua camisa azul clara de
trabalho, expondo diversas pulseiras trabalhadas em prata e
turquesa em cada um dos braços torneados.
— Mas e o governo? Como ele identifica vocês?
— Quando eu nasci, minhas mães me chamaram de Peônia...
— Peônia parece nome de menina.
— Não entendo. Foi o nome escolhido pra mim. Quando cheguei
na nomeação, eu peguei meu próprio nome. Não importa qual era.
Mas quando Luciente me trouxe pra terra, eu estava altivoando,
então me tornei Lebre. Veja. Por causa das minhas pernas longas e
minha fome enorme e meu pênis grande e meus pulos pela grama
da nossa vida comum. Quando Luciente e Abelha terminarem de me
reformar, vou mudar meu nome novamente pra Gato no Sol. — Com
perfeição, ele imitou com o rosto magro o gato laranja de Luciente
apertando os olhos. — Mas por que ter dois nomes ao mesmo
tempo? Na nossa vila só tem um Lebre; quando visito outros
lugares, sou Lebre de Mattapoisett.
— Você muda de nome a qualquer momento que quiser?
— Se fizer isso com muita frequência, ninguém vai se lembrar do
seu nome — Barbarossa disse de forma solene, como se fosse um
professor primário. — Às vezes, jovens fazem isso nos primeiros
anos depois da nomeação.
Uma pessoa morena... uma mulher, talvez — Connie ficava
confusa por não saber com certeza —, que tinha sido apresentada
como Sojourner, estava rindo.
— Elus sempre estão experimentando novos rótulos extravagantes
toda semana, até que ninguém mais consegue chamar elus de nada
que não seja “ei, você” ou “amigue”. Isso vai diminuindo com o
tempo.
— Certo. Vocês têm essas coisas no pulso. Em algum lugar tem
um grande computador. Como ele reconhece vocês?
— Meu anexo de memória é meu cognescedor — Luciente disse.
— Com transporte de enciclopédia, você pergunta o que quer saber.
— Mas e a polícia? E o governo? Como eles sabem o paradeiro
de vocês se ficam mudando de nome?
De novo uma grande confusão e muitas conferências nos
cognescedores por toda a mesa, com alguns interpelando os outros.
— Isso é complicado! — A idosa Sojourner balançou a cabeça. —
Governo, acho que eu compreendo. Luciente pode te mostrar o
governo, mas ninguém está trabalhando lá hoje.
— Talvez da próxima vez. Vou tentar estudar isso, mas é muito
difícil — Luciente reclamou.
— Devíamo estudar todes pra ajudar Luci — falou uma criança.
— Enquanto isso, talvez você possa perguntar algo mais fácil?
Você disse algo sobre os desenhos?
— Não era importante. Só achei engraçado que vocês preguem os
desenhos das crianças. Quer dizer, sei que todo mundo quer olhar o
dos próprios filhos, mas ninguém quer ficar vendo os desenhos dos
filhos dos outros.
Um homem meio loiro, Estrela da Manhã, olhou para ela
estupefato.
— Mas eles todos a gente que fez.
— Mudamo os painéis de tempos em tempos — Lebre falou. —
Por exemplo, digamo que eu faça um e mais tarde ele embolora em
mim. Faço um novo. Ou se todes se cansam de um, discutimo e
mudamo. Eu fiz todo aquele postérico com o rio ali ao leste, porque
todo mundo queria.
— Tem algo errado, Connie? — Luciente soltou o garfo.
— Connie está exauste — Lebre falou. — Desconhecides, essus
palermas todes fazendo perguntas, mantendo contato. Você acha
que não tem nenhuma redução de energia na captação?
— Você parece esvaziade. — Luciente a abraçou. — Lembre-se
de que essa comida não sustenta.
— Por que não? — Ela se sentiu pesada de cansaço e a sala toda
tremeu. — Posso sentir o gosto dela.
— Como nos sonhos. Você experimenta através de mim... É
melhor voltarmo.
— Termina seu almoço primeiro. — As vozes pareciam flutuar ao
seu redor e suas pálpebras se fecharam.
— Essa exaustão me preocupa. Devo lhe ensinar uns exercícios...
— Aqui não. Impossível pensar. Muita gente.
— Vamo! Me dê o braço. Você vem visitar de novo. Isso é apenas
uma falsa primavera, o degelo de janeiro começando. Lá vai você
de volta.
Ela se sentiu pesada como chumbo, seus pés dando passos em
areia fina. Enquanto eles sumiam, Luciente parecia preocupada.
Novamente no caminho de pedras, Connie murmurou:
— Roupas. Devo trocar.
— Seu corpo está onde estava, com as mesmas roupas. Entenda,
você não está realmente aqui. Se me batessem na cabeça e eu
ficasse inconsciente, digamo em estado de nevel completo, você
voltaria ao seu tempo instantaneamente... — Luciente a puxou para
um forte abraço, testas se tocando. Connie estava cansada demais
para fazer qualquer coisa além de se deixar cair na consciência de
Luciente como num riacho de correnteza rápida, as águas
espumando aos seus pés. Quando deu por si, estava agachada
contra a parede da solitária. As lágrimas na manga de seu vestido
velho haviam secado. Ela deitou-se imediatamente no colchão
urinado e sem lençol e adormeceu.
CAPÍTULO 4

A primavera na ala violenta era apenas uma extensão do inverno,


exceto por uma irritação nos olhos quando Connie olhava pela
janela alta e bem gradeada. Os radiadores ainda emitiam rajadas de
calor no ar, cujo cheiro de desinfetante e mofo transformava seu
quarto num caldo imundo. Dor e terror coloriam o ar da ala L-6. A
dor prateava o ar, e quando Connie estava se embalando num sono
de medicamentos, a dor patinhava pelas camas dos outros. Ainda
assim, a primavera finalmente chegou numa quarta-feira de abril.
Ela estava sentada perto do balcão, esperando algum tipo de
trabalho para fazer e mendigar cigarros. Como uma das pacientes
funcionais, ela se dava bem com os atendentes, exceto com a vadia
ruiva maldosa e racista que vinha nos fins de semana, e com uma
delas, a sra. Fargo, ela se dava muito bem. A sra. Fargo se parecia
com ela em cor, porte físico e idade, mas era negra e livre — tão
livre quanto uma mulher que ganhava aquele tipo de salário e tinha
seis filhos em casa podia ser.
— Gosto da senhora Coisinha — Fargo dizia para ela com um
sorriso mostrando a falta de dentes. — Porque tenho seis criança
em casa e nenhum marido, e isso me coloca na frente em saber
como as coisa deve ser. A senhora faz tudo certinho.
Fargo conversava com ela quase com dignidade. Quando estava
trabalhando, normalmente atendia perto do balcão envidraçado e,
às vezes, pedia para Connie varrer o chão, ou levar uma paciente
ao banheiro, ou segurar um paciente que ia tomar injeção, ou
sentar-se com um paciente que estava vindo do eletrochoque. Daí
Fargo lhe dava uns cigarros a mais.
Ela odiava ficar perto da sala de choque; dava medo.
Regularmente, pacientes da L-6 eram levados para o choque. Se de
manhã não lhe dessem café da manhã, então você já sabia.
Levavam você numa maca corredor acima, davam uma injeção para
te derrubar e aplicavam alguma coisa que fazia seus músculos
virarem gelatina, e até os pulmões paravam. Você ficava por um fio
da morte. Daí mandavam uma corrente de volts que arregaçava seu
cérebro e chacoalhava seu corpo em convulsões. Depois disso, te
davam oxigênio e deixavam você voltar à vida, mas a uma vida de
alguém atrapalhado, fraco, babando — voltava daquele
chamuscado gosto de morte com partes da sua memória queimadas
para sempre; um pouco de dano cerebral para te sacudir e fazer
você se comportar direito. Às vezes funcionava. Às vezes uma
mulher esquecia o que a tinha assustado, com o que ela estava se
preocupando. Às vezes uma mulher ficava com medo de que
fossem queimar seu cérebro de novo, daí ela ia para casa, para a
família, lavar a louça e limpar a casa. Então, talvez por um instante,
ela iria se lembrar e se rebelar, e voltaria para mais um pouco de
churrasquinho de cérebro. Nas alas de trás jaziam os zumbis do
choque, seus cérebros tão lancinados que não se lembravam de
nada, rindo como velhos pacientes lobotomizados.
Naquela quarta-feira, Connie estava sentada ali cheia de
esperança, mas Fargo estava entretida na fofoca com outra
atendente negra. Connie tinha ido até elas uma vez para acender o
cigarro — a única forma que os internos podiam conseguir um
cigarro era implorando — e tinham dito para ela esperar um minuto,
queridinha, meia hora atrás. Quatro outros pacientes também
esperavam, todos com pequenos pedidos. Ela sabia que não
adiantava abordá-las de novo. No seu colo estava aberto o jornal do
dia anterior, um presente da Fargo por ter limpado uma poça de
vômito, mas ela já tinha lido ele todo, até os anúncios de nascimento
e morte e os avisos oficiais. A sra. Martínez se aproximou dela,
olhando em seus olhos e depois desviando o olhar, em um gesto
que lembrava o gato laranja de Luciente. Várias semanas haviam se
passado desde seu contato com o futuro, apesar de que ela sentia a
presença de Luciente diariamente, pedindo permissão para
atravessar. Ali na ala dos violentos, estava preocupada em
estabelecer contato, já que tinha de ficar de olho em cada passo
que dava. Nunca estava sozinha, nem mesmo nos banheiros sem
porta, nunca estava livre de vigilância.
A sra. Martínez estava quase na frente dela, um pouco para o
lado, e com o olhar fixo e desejoso no jornal, olhava para ela de
forma questionadora e então desviava o olhar para o nada. Havia
meses que não falava. Os atendentes a tratavam como peça da
mobília. Muitos dos isolados tinham a sua forma de falar sem
palavras para qualquer um que estivesse disposto a entendê-los, e
Connie nunca tinha tido problemas para entender o que a sra.
Martínez queria. Ela entregou-lhe o jornal.
— Ok, já terminei de ler. Mas devolve, pra eu sentar depois. — Um
jornal como aquele daria um bom travesseiro e ela não tinha
intenção de abandoná-lo.
A sra. Martínez sorriu, seus olhos agradeceram Connie e, com
cuidado, como se estivesse carregando um bebê, levou o jornal
para o canto para poder folheá-lo. Connie decidiu ficar de olho para
se certificar de que ninguém arrancaria o jornal dela. Martínez já
teria sido transferida da ala de casos agudos para a ala de casos
crônicos e seria colocada lá para apodrecer, mas seu marido era do
escritório da procuradoria e vinha todo último domingo do mês com
as crianças para visitá-la, apesar de elas nunca entrarem, e ela
ficava então na janela, chorando e chorando e acenando para elas.
Ele a tirava de lá nos feriados, mas sempre, um mês ou dois depois,
a trazia de volta.
Connie observava Martínez virar as páginas lentamente quando
dois enfermeiros trouxeram uma mulher algemada a uma maca,
sacudindo-a pelo caminho enquanto ela vociferava protestos
abafados. Um lençol estava amarrado sobre seu corpo e apenas
seu cabelo era visível, de um ruivo escuro, empapado de sangue
fresco coagulado. Sua voz elevou-se do lençol, decolando como
uma águia furiosa batendo suas asas castanho-avermelhadas.
— Sybil! — Connie gritou e quase se levantou. Então se calou.
Nunca entregue o jogo. Ela observou a luta que foi levar Sybil para o
isolamento e ouviu o baque quando a jogaram contra a parede. O
corpo esguio e alto dela estaria se debatendo de dor, quase
explodindo de raiva, até que o medicamento fizesse efeito e ela não
pudesse mais se mover.
Sentada em silêncio, Connie apertou as mãos no colo. Sybil
estava lá. Um leve calor passou pelo seu corpo. Tinha estado
sozinha, já que poucas mulheres na L-6 tinham energia para
interagir, na ânsia de lidar com mamãe, papai, a morte e a matéria-
prima do medo. Sua esperança era de que os atendentes não
tivessem batido muito na sua amiga, e que Sybil se acalmasse e
saísse logo do isolamento. Ela tinha de tentar passar uma
mensagem para Sybil através da porta trancada, já que não era
permitido aos pacientes se comunicarem uns com os outros quando
estavam nas celas de isolamento.
Na última vez dela ali, elas tinham se conhecido e, na estranha
infância lusco-fusco do manicômio, com suas promoções e
rebaixamentos, seus privilégios e punições, seu ar sombrio de
colégio, haviam sido confinadas duas vezes na mesma ala por
tempo suficiente para se tornarem amigas. Todo paciente subia ou
descia pelos obscuros anéis do inferno, ganhando ou perdendo
privilégios, sendo mandados para as alas mais violentas, para o
eletrochoque, arquivados entre os cânceres vivos das alas crônicas,
premiados por estarem convalescentes, permitindo que fizessem
trabalho doméstico não remunerado e irem para a terapia de dança;
mas por duas vezes elas tinham podido descansar no mesmo
degrau e tinham conversado e conversado, desabafando uma com a
outra.
Paciência era a única virtude verdadeira que contava por ali.
“Pacientes sobrevivem pela paciência”, ela imaginava bordar essa
frase em um pano de prato, assim como “Dios bendiga nuestro
hogar”11. Uma semana foi o tempo que levou para Sybil aparecer na
ala.
Naquela manhã, ela havia se sentado longe do balcão para ter
mais privacidade. Quando Sybil entrou, parecia alta e cansada.
Connie só a cumprimentou com o olhar. Não fazia bem presumir
demais ou forçar a situação. Às vezes, os loucos demonstravam
uma delicada cortesia uns com os outros. Ela não queria se
intrometer em alguma batalha interna desesperada ou num looping
mental. Sybil encontrou seu olhar, atravessou a ala num
reconhecimento desconfiado, então fez seu corpanzil cair ao lado
dela.
— Oi, querida! Quando novamente nos juntamos, no meio dos
raios e trovões que amamos?
— Parece um dia bonito pra mim, Sybil, vendo você de novo.
— Somos duas bruxas, quero dizer. Pense no que poderíamos
fazer com um conciliábulo.
Sybil realmente achava que era uma bruxa, que podia curar com
ervas, que podia conjurar magias, tanto brancas quanto negras.
Elas tinham brigado da última vez por causa desses nomes. Connie
tinha dito que usar magia negra para o mal e magia branca para o
bem era lançar mão de termos racistas. Finalmente, Sybil tinha
concordado em chamar a magia de vermelha para sangue e
vingança e verde para crescimento e cura. Ela pensou se Sybil
ainda se lembrava disso, ou se ela tinha voltado a usar os nomes
antigos.
— Quanto tempo você vai ficar aqui dessa vez? Você sabe? —
Connie perguntou.
— Acabei de chegar. Estava enfeitiçando um juiz. — Sybil levantou
as mãos magras e elegantes, cheias de marcas esbranquiçadas dos
anéis que usava, que eles sempre tiravam dela sob protestos
ululantes. — Tiram eles de mim porque sentem o tanto de poder que
têm esses anéis. Estão agora em um forno de micro-ondas sendo
bombardeados com raios pra tirar os poderes deles. Quando
recupero eles, demora semanas pra restaurar o poder. —
Gentilmente, Sybil tocou uma mecha do cabelo de Connie. — Você
acabou de chegar?
Ela sorriu para Sybil e começou a contar sua história.
— Dessa vez não fiz nada pra me envergonhar, apesar de que,
como você, enfeitiçando juízes, talvez eu não tenha sido muito
esperta. — Sua narrativa durou toda a fila do jantar, ao qual Sybil se
referia como Caldinho de Sapo, e a fila da medicação e o espaço
vazio de tempo até que as luzes fossem apagadas.
— Amanhã é a sua vez de me atualizar.
— Ah, isso vai levar pelo menos uma semana — Sybil prometeu.
Sybil era sua melhor amiga depois de Dolly, que era da família,
mas Sybil morava em Albany, então nunca conseguiam se ver fora
do hospital. Ah, Sybil era louca, mas Connie não via problema em
conversar com ela. Ela era perseguida por ser uma bruxa praticante,
por dizer às mulheres como se curar e encorajá-las a abandonar
seus maridos, por ser magra e absurdamente elegante e ter 1,80m
de altura estando descalça, por ter uma voz penetrante e costas que
não se curvavam e um temperamento que estava enraizado nela,
chicoteando como a cauda de uma leoa. Sybil não hesitava em
mostrar os punhos para alguém, então ela tinha uma cicatriz que
cortava sua testa alta e redonda, descendo até arrancar um naco da
sua sobrancelha esquerda. Tinha perdido um dente da frente e
encontrava para mostrar para Connie um ponto sem cabelo onde
um atendente a tinha puxado na vez anterior, que teria sido a última
em que ela seria obrigada a ficar internada.
Por que ela gostava tanto de Sybil? Seu coração se aquecia
quando via o corpo alongado dela contorcendo-se de fúria. Sybil
tinha maçãs do rosto bem marcadas e um maxilar retangular, um
nariz empinado e olhos de um cinza escuro esfumaçado. Do lado de
fora, ela usava maquiagem espalhafatosa e delineador preto nos
olhos, mas dentro do hospital eles não deixavam que ela sequer se
aproximasse dos seus cosméticos. Em resumo, Sybil era uma
lutadora e lutava contra aqueles que a ameaçavam em vez de se
odiar. Não se negava e não tinha se vendido para nenhum homem.
Connie adorava a forma como ela lutava e não desistia ou se
deixava corromper — ainda não. Tudo o que ela mesma podia dar
para qualquer um ali era que tinha sobrevivido por todo esse tempo.
Elas conversavam apaixonadamente, sentadas lado a lado,
encostadas em uma parede, às vezes interrompendo o fluxo das
palavras por meia hora ou uma hora, às vezes murmurando pelos
cantos das bocas como se fossem crianças conversando na escola.
Animação demais, um prazer óbvio demais com a companhia uma
da outra traria punições. O hospital considerava Sybil lésbica, mas,
na verdade, ela não tinha uma vida sexual.
— Quem quer ser um buraco? — Sybil perguntou. — Você quer
ser uma porra de um buraco onde as pessoas colocam coisas ou
esfregam coisas? Já o sexo me lembra uma vez que fui no dentista,
na única vez que tentei. Agora, quando você olha objetivamente pra
coisa, de fora, Consuelo, com um pouco de distanciamento, você vê
o quão fútil — fúuuu-til, ela pronunciava, alongando e amando o
som das vogais —, fútil tudo isso aparenta ser, e quão sórdido é,
além disso.
— Mas as pessoas fazem o tempo todo, Sybil. — Ela sorria. —
Deve ter alguma coisa nele, não?
— Consuelo! — Sybil pronunciava o nome dela com cuidado e
com uma afetação para acertar o espanhol. — As pessoas jogam
Canastra ou Paciência e nós duas sabemos o tanto que esses
passatempos são chatos. Pessoas montam quebra-cabeças
também. Os atendentes gostam que você brinque de quebra-
cabeça; pensam que isso é se relacionar com a realidade, pobres
cretinos. Todo mundo que está atualmente se tocando — esse era o
verbo que elas usavam para as situações em que os internos
respondiam aos estímulos exteriores — já leu cada palavra do jornal
embaixo de você. Você sabe, você leu também, até a página dos
esportes, apesar de não saber a diferença entre tênis e futebol
americano.
— É verdade, quando a pessoa está entediada, ela... quer ir mais
pra cama. É como as piadas sobre a longa noite de inverno dos
esquimós. Quando não tem nada pra fazer, você, sozinha, vira seu
brinquedo. Olha toda a... paquera que rola por aqui.
— Acho que somos ensinadas que queremos sexo quando nos
sentimos infelizes ou quando nos falta algo. Mas normalmente o que
queremos é algo mais elevado.
— Pra mim, sexo tem mais força do que isso — Connie disse um
pouco triste. — Mas acho que a gente acaba ficando com o sexo
quando quer amor. E normalmente a gente quer amor quando
precisa de outra coisa, como um trabalho ou uma chance de voltar a
estudar.
— As pessoas falam demais sobre sexo — Perlmutter disse, com
a mão dentro do vestido dado pelo hospital, sentindo o próprio seio.
Nos raros dias bons, o hospício lembrava a sensação de estar na
faculdade, naqueles dois anos antes de ela pegar barriga. A
similaridade jazia em ter conversas sérias, na tranquilidade de
discutir sobre Deus e o sexo e o Estado e o bem maior. Quem mais
se sentaria por aí falando de filosofia além de estudantes da
faculdade? Lá fora, dias inteiros de sua vida escorreriam pelo ralo
sem ela poder ter uma conversa profunda. Sybil era uma pessoa
esperta, não esperta das ruas como Claud, mas pensativa sobre
como as coisas eram ou deveriam ser. Lá fora, quem conversava
com ela?
Na ala L-6, todos os dias tinham o mesmo cheiro, a mesma
aparência, os mesmos sons. Os pacientes alternavam entre seus
ciclos particulares de dia e noite, toque e recolhimento, letárgicos
pelos medicamentos fortes. Ela não era mais a favorita de Fargo,
porque passava muito tempo com a Sybil. Era sexta, um dia
perigoso, de portas se fechando e se abrindo.
Um médico veio até a ala L-6, um médico jovem com cabelo claro
e olhos azul-claros e avermelhados. Chegou duas horas depois do
movimento dos médicos, falando apenas com as enfermeiras e os
assistentes, enquanto os pacientes que estavam conscientes
naquele dia corriam atrás dele, implorando atenção, mudança na
medicação, permissão para sair, privilégios, mudança de ala. Os
atendentes chamavam esses pacientes de perdigueiros, e corriam
para interferir. Esse médico branquinho estava mostrando uns
papéis para Fargo e ela e a enfermeira analisavam uns registros de
pacientes com ele; todos os comentários escritos ali poderiam levá-
la para o choque ou para um ou dois níveis mais perto da saída.
Até mesmo os pacientes que não estavam falando, que não
deveriam estar conscientes, sabiam que tinha algo acontecendo. A
excitação crescia como um vento quente e seco e as mulheres
começaram a cochichar. A sra. Martínez se arrastou até um canto,
encostando o rosto contra a parede. A Joana começou a falar, no
que o pessoal chamava de “salada de palavras”, sobre a mãe e
Deus e o fbi.
— Eles vêm e vêm e vêm de novo. Raspa isso do teto. Garota má.
Má! Coma isso no café. Toc toc, quem está aí? Do outro lado e sobe
e faz uma cruz. Uma cruz dupla. Entra e sai. Em todo canto, eca,
sujo. Garota suja. Toc toc, é um pássaro sujo. O pombo que fez
isso. Mau, mau, comeu de novo! Tudo se revela. Toc toc toc. Bolo
transversal quente. Bater em você de novo. Bater no bumbum.
Quente, dolorido. Má de novo! Má! — A voz dela ficou aguda num
grito de fúria, mas sua expressão não mudou.
— O que você acha que o inquisidor procura? Tão caçando bruxas
com agulhas hoje? — Sybil perguntou do canto da boca.
De fato, tanto o médico quanto Fargo olharam diretamente para
elas, que se calaram. Connie se virou, mas quando deu uma
olhadinha para o balcão de novo, as duas ainda estavam sendo
vigiadas. Será que tinham se comportado de forma muito íntima?
Fargo deu passos rápidos até ela e içou Sybil pelo braço. Sybil
tentou sacudir o braço para se livrar, mas Fargo a imobilizou sem
dificuldades. Quando Sybil se zangava, ela conseguia armar uma
boa briga até que fosse sedada, mas, naquele momento, ela estava
mais curiosa do que zangada. Ela se aprumou para encarar o
médico balançando seu nariz fino e fazendo-o perceber na hora que
ela era três dedos mais alta.
— Você gosta de visitar o zoológico? Quer ser veterinário quando
crescer? — ela arrulhou.
— Ela é do time das grandes — o médico falou. — Não acho que
vá servir.
Fargo soltou Sybil de uma vez, dando-lhe uma rasteira que fez as
pernas bambearem, e então agarrou a Connie.
— Essa está agindo direitinho. Ajuda um poco. Está tentando
cooperar. Mas ela anda com aquela bocuda.
— Algum ataque ultimamente?
— Não desde que chegou na minha ala. Ela estava bem louca
quando chegou, mas a gente colocou ela na linha.
O médico deu meia volta e Fargo soltou Connie. Fraca, sempre
fraca, ela sentiu que os ossos tinham virado corda molhada. Seus
joelhos cederam e ela se jogou ao lado de Sybil. Ela começou a
falar, mas Sybil a calou e caminhou furtivamente até o balcão
envidraçado onde o médico e Fargo olhavam novamente o livro de
registros da ala. Sybil estava tentando ler os lábios deles pelo vidro.
Por fim, eles saíram de lá e a porta externa foi destrancada com o
costumeiro som metálico.
— Está certo, prepare aquela ali na segunda de manhã e leve-a ao
doutor Redding... Ah, ela fala inglês? Quero dizer, razoavelmente?
— Claro, sem problema, dr. Morgan. Eu não te falaria na hora se
ela não pudesse falar?
— Ok. Faça a higiene dela e a encaminhe na segunda de manhã.
Sybil e ela se entreolharam, cheias de tensão. Sybil sussurrou:
— Tudo o que deu pra entender foi ele mencionando (nunca ouvi
falar dele) um tal de doutor Redding isso, doutor Redding aquilo. E a
frase “possível candidata”.
— Ai! Ai! — Joana murmurou. Ela saltou da cama e correu para
olhar nos olhos de Connie. — Toc, toc! Cuidado! — Joana correu de
volta para a cama e fez a mímica da rotina de se trancar, o que ela
parecia acreditar que a manteria protegida.
— O que acha que vão fazer comigo na segunda?
Sybil balançou a cabeça, fechando o cenho.
— Gostam de você porque é pequena. Acham que vai ser fácil
empurrar você pra lá e pra cá.
Ela estava assustada, porém, alerta. Talvez fosse uma nova forma
de terapia? Geralmente não tiravam os pacientes da L-6 para as
terapias em grupo, o único tipo que havia no hospital. Se fosse
choque, não fariam tanto alarde. Talvez estivessem testando
medicamentos, como tinham feito com Claud. O amigo do Claud,
Otis, disse que eles tinham transmitido hepatite, a doença maldita
que tinha matado Claud, para uma porção de crianças em
Willowbrook, uma instituição estadual. Uns médicos tinham injetado
a doença em criancinhas que não tinham feito nada de errado além
de terem nascido estúpidas, e tinham faturado com isso. O que
fariam com ela?
Na segunda de manhã, ela foi levada da ala L-6, atravessando
quase o hospital todo até chegar ao prédio central — o verdadeiro
hospital dentro do manicômio. Normalmente era um prédio
modorrento e com poucos funcionários, mas um andar parecia ter
sofrido mudanças. Ela só conseguiu um vislumbre de uns vinte
pacientes, homens e mulheres, esperando nas cadeiras no corredor,
antes que Fargo a levasse para longe.
— Se comporta agora. Quero usar o banheiro da equipe do
hospital. Fica quieta e não bisbilhota. — Fargo a colocou ao lado
das pias brancas e limpas com porta-sabonetes que funcionavam.
Sentindo inveja, ela se aproximou. Fargo estava mijando. Acima do
porta-sabonete com seu líquido verde-amarelado escorrendo, ela
viu uma mulher apagada e de aparência risível. Rapidamente
desviou o olhar. Lá fora não passava um dia sem que ela se visse
em espelhos, nas vitrines, refletida em toda parte, enquanto o velho
espelho de alumínio da ala L-6 mostrava apenas pequenas ondas
de distorção.
Seu cabelo estava nojento: não apenas despenteado, pontas
desfiadas, sujo, mas também com as raízes brancas aparecendo
bastante. Os cabelos dela tinham ficado brancos, como o pelo de
um gambá, assim que ela fez trinta anos. Dolly lhe dava dinheiro
para tintura, que ela escondia da assistente social como se fosse
droga. Era seu vício secreto, tingir o cabelo, mas era também um
pequeno ato de autoafirmação. Enquanto sua vontade mantivesse
seu cabelo preto, como sempre tinha sido, como deveria ser, ela
continuaria sendo em parte aquela Consuelo que tinha ganhado
uma bolsa para a faculdade, que tinha tido peito para partir de
Chicago rumo ao desconhecido para fugir de um estuprador, que
tinha quebrado o nariz de Geraldo — sim, disso ela se orgulhava.
Sua definição de Connie incluía cabelo preto.
Bom, pelo menos ela não estava mais obesa, mas estava flácida.
Em casa ela fazia o exercício de subir e descer quatro lances de
escada dez vezes por dia, sempre que precisava de algo do
mercadinho ou da loja de conveniência, toda vez que conferia a
caixa de correio, levava o lixo para fora, comprava um maço de
cigarro, mandava uma carta, ia para o serviço social, ia fazer aquele
serviço de limpeza que o serviço social a mandava fazer. Carregava
as compras, a roupa lavada, o lixo. Andava muitos quarteirões. Aqui,
seu único exercício era ser arrebanhada aos chuveiros e de volta ao
quarto.
Pequenas partículas de pele morta davam um tom cinzento ao seu
corpo. Se ao menos ela tivesse uma escova, podia desembaraçar
os cabelos, tirar os nós e o sebo. Ah, ela parecia uma pilha de roupa
suja do hospital!
Fargo a arrastou adiante. O jovem médico estava inquieto no
saguão, sendo seguido por uma secretária e alguns assistentes.
Fargo a entregou para um desses assistentes, um homem de rosto
gordo e rosado, que a colocou numa fileira de cadeiras plásticas
verdes onde homens e mulheres aguardavam sentados. Assim que
cada novo rosto se apresentava, todos os pacientes que esperavam
o encaravam, na expectativa de que algo no recém-chegado fosse
deixar mais claro do que se tratava aquela situação.
— Você sabe no que estamos metidos? O que vão fazer com a
gente? — ela murmurou para o jovem rapaz sentado na cadeira ao
lado.
— Sei lá. — Ele era branco, magro, alto e com pernas compridas e
fartos cabelos castanhos e crespos. — Vieram pra minha ala na
semana passada e escolheram cinco de nós. Aquele médico loiro e
um assistente. Mas só trouxeram eu e ele ali. — Apontava para o
negro ao lado dele.
— Não disseram pra quê?
— Algum tipo de teste, ouvi dizer... Parece que aquela sala no final
do corredor foi transformada num laboratório. Ali, depois dos
escritórios.
— Um laboratório? Que tipo de experimentos podem fazer com a
gente?
— Cara, sei lá. — Ele deu de ombros. — Seja o que for, aposto
que vai doer. — Suspirou, passando as mãos nervosas pelos
cabelos longos e embaraçados. — Meu nome é Skip. Esse é
Orville... Você não teria um pouco de erva, né? Por algum milagre?
Posso comprar.
— Sou a Connie. Queria ter. Da última vez que estava internada,
todo mundo tinha.
— Em alguns prédios você acha, em outros não. Em alguns você
consegue qualquer coisa. Não no nosso. Meu Deus, você consegue
imaginar os incríveis atos de brutalidade que íamos cometer se a
gente tivesse uma droguinha? Monstros como a gente. Você já
esteve aqui, né? — Ele aguardou enquanto ela assentia. — Eu
também. Sete vezes em vários hospitais, uma pra cada vez que
tentei acabar com a minha vida. Na verdade, foram só cinco vezes.
— E nunca conseguiu? — Ela riu.
— Sou persistente. Talvez tenha uma atração pelo fracasso.
Orville aqui, ele retalhou a namorada. Você fez algo parecido, por
acaso?
Orville falou meio automático (provavelmente pela sexagésima
vez, como ela bem sabia):
— Estava trabalhando demais. Tinha esse emprego de vigilante
noturno e estava entregando pizza no final de semana. Não
consegui lidar com isso tudo.
— Tipo isso. — Ela se abraçou. — Eu estourei uma garrafa na
cara do cafetão da minha sobrinha. — Ela sorriu. — Não estava
trabalhando demais. Só o odeio mesmo. — Dizer aquilo de forma
tão franca e deixar ali pairando no ar lhe deu uma sensação de
leveza, como se estivesse flutuando. Apesar disso, essa sensação
já dava lugar a outra coisa, porque ela tinha sido criada sob um
código segundo o qual uma mulher não fazia nada daquilo, muito
menos falava a respeito.
— Pelo que percebo, todos podemos falar e andar — o rapaz
continuou. — Somos loucos funcionais. Todos quebramos as regras.
Espero que não estejam prestes a nos mandar pra uma prisão de
segurança máxima, não que aqui já não seja bem complicado.
— Você tem ficha policial?
— Sim, roubo. Mas o terapeuta escreveu coisa pior na minha
ficha. — Ele a cutucou com o ombro ossudo. — Aquele médico é o
manda-chuva. O outro é só um lacaio dele.
De estatura e peso medianos, cabelo castanho, óculos fundo de
garrafa, com seus quarenta e tantos, ele exalava imponência como
uma grande Harley-Davidson estourando pela 111th, sendo
montada por um motoqueiro de gangue. Ele esfregava as mãos uma
na outra com um som alegre e seco enquanto caminhava pela fileira
de pacientes esfarrapados nas cadeiras plásticas verdes; na sua
cola vinham um homem pálido, dr. Morgan, uma enfermeira, um
rapaz com roupa de estudante, uma mulher de avental branco cujas
mãos quase tocavam a do rapaz que parecia estudante, um par de
assistentes, um homem e uma mulher, e uma secretária que
segurava um calhamaço de fichas e uns outros papéis que pareciam
ser sinistros. Então, o dr. Redding, como ela ouviu que ele se
chamava, pegou vários papéis e os examinou, assentiu e os
entregou para o dr. Morgan.
— Está bem, está bem. Vamos começar os trabalhos. Morgan,
Acker e eu vamos fazer a seleção, e Patty e a senhorita Moynihan
vão assessorar. Vamos acabar com essa leva antes das duas horas,
porque eu tenho que ir pra universidade pra encontrar com um
daqueles figurões da fundação.
Todos, exceto os assistentes e a enfermeira, seguiram atrás dele,
enquanto os pacientes se entreolhavam e a porta se fechou. Um de
cada vez foram chamados para entrar. A manhã passou. Nenhuma
providência foi tomada para que tivessem almoço, que foi trazido em
bandejas para os funcionários, então eles ficaram apenas ali
parados no corredor, resmungando, tanto aqueles que já haviam
passado pela triagem como os que ainda não haviam.
— Não é diferente da entrevista com o psiquiatra — disse a
quarentona, que também os informou de que era professora. — Eu
dou aula de auditório — ela falou. Aquilo soou para Connie de forma
muito peculiar, como se ela falasse que dava aula de garagem ou de
sala de estar. Os médicos simplesmente fazem as mesmas velhas
perguntas. A sua ficha está bem ali, então sabem as respostas, ou
acham que sabem... “Talvez eu esteja sendo reclassificada,
finalmente. Vão dar atenção aos nossos casos”.
Lá pela uma hora, Connie foi chamada e Skip saiu. Pigarreando de
nervoso, sentou-se em uma cadeira que estava atrás de uma mesa,
de frente para vários deles. Médicos e juízes, assistentes sociais e
do governo, oficiais de condicional, policiais, psiquiatras. Seu
coração disparado, suas mãos suando, sua garganta fazendo a voz
falsear. Ela não fazia ideia de como poderia responder de forma
correta. O que eles buscavam? Seria melhor cair na rede ou passar
pelo meio dela? Se ela soubesse no que consistia aquela rede!
Estava fazendo a prova de uma matéria e sequer sabia qual era o
curso.
O jovem médico que a tinha trazido da ala fez a maioria das
perguntas primeiro, com o tipinho de jeans falso interferindo de
tempos em tempos. As mesmas perguntas sobre Dolly e Geraldo,
sua filha, a época com Claud, a bebida, o uso de drogas, sua
dificuldade em obter trabalho. Era como dizer as respostas na
missa. Quando o que ela dizia não se encaixava nas ideias fixas
deles, era ignorado. Eles chamavam de resistência quando a
pessoa não concordava, mas não pareciam muito interessados no
fato de ela ter uma boa atitude terapêutica. O que eles estavam
ouvindo, se é que estavam sequer ouvindo? Aquele doutor Redding
a encarava não como se visse uma pessoa, mas talvez como se
olhasse para uma árvore, uma pintura ou um tigre num zoológico.
Falavam agora do irmão dela, Joe. O espírito santo do pobre Joe,
que tinha morrido por causa de uma úlcera perfurada assim que
saíra do xilindró por ter assaltado uma drogaria. Agora eles estavam
perguntando para ela sobre as surras que o pai dava quando era
criança. Ela mantinha a face impassível, o tom de voz neutro. Afeto
inapropriado, eles chamavam — como se ter estranhos cavocando
os retalhos de sua vida como roupas de segunda mão em um bazar
não fosse doloroso o suficiente para exigir dela todo seu
autocontrole. Sua mãe, pai, irmão, amante, marido, filha, todos
manuseados, medidos, dissecados, etiquetados. Ainda assim, a
cara branca deles parecia enfastiada. O de jeans, Acker, e a srta.
Moynihan estavam trocando olhares de paquera. Eles podiam
comê-la de sobremesa, entrevistar mais seis e nem arrotar. Eles
eram brancos e se mantinham brancos como pão Pullman, brancos
e cheios de buracos.
De repente, o dr. Redding despertou e assumiu o comando.
— Você sofre de dores de cabeça? Dores em qualquer parte
dessa região?
— Dores de cabeça? — O que era aquilo agora? — A medicação
me dá um pouco às vezes — ela disse cautelosamente.
— A medicação?
— Os tranquilizantes.
— Ah, outras vezes, fora do hospital. Você já teve dores de cabeça
fora do hospital, Connie? — Ele era um daqueles médicos que te
tratam pelo primeiro nome, como se você tivesse cinco anos de
idade.
— Geralmente não.
— Com qual frequência?
Ela deu de ombros. Aonde ele queria chegar? Estavam querendo
experimentar algum remédio novo?
— Minhas costas doem. Meus pés, às vezes. Fora as cólicas
menstruais. Já meus olhos, minha cabeça nunca me deram
problema na vida, Deus me livre.
— Nem mesmo com relação aos incidentes pelos quais você
passou? Vejo no incidente em que usou violência contra sua filha,
há menção nos registros de que se sentiu mal.
— Doutor, estava de ressaca, chapada. Estava muito mal, tinha
passado os três meses antes bebendo.
— Connie, você está se autodiagnosticando, não é? — Ele parecia
suspeitar que ela escondia as dores de cabeça. — Tontura?
Apagões?
— Tipo desmaio? Não, nunca desmaiei na vida.
— Ainda assim, diz ter estado inconsciente na noite em que foi
internada em Bellevue.
— Geraldo e Slick me bateram na cabeça. O Slick me nocauteou.
— Você se lembra de alguma outra pancada anterior na cabeça?
Além desse último incidente que a trouxe de volta para Bellevue?
— Claro, de vez em quando.
— Por que não nos descreve essas vezes?
— Não me lembro delas todas... — Ela fez uma pausa quando viu
o médico tomando notas, satisfeito. — Eddie. Eddie Ramos, meu
marido, costumava me bater na cabeça às vezes.
— Esse é o segundo marido, com o qual ela ainda está casada —
Acker, o tipo vestindo jeans, disse.
— Ele não assinou o termo, cadê ele? — o doutor Redding
perguntou de forma firme para Acker.
— Paradeiro desconhecido, doutor.
— Creio que não tentaram encontrar nosso pugilista com muito
afinco — disse o médico com um sorriso. — Connie, lembra se
tiraram raio x da sua cabeça depois desses incidentes com seu
segundo marido?
— Não. Nunca me bateram tanto pra ter que ir pro hospital tirar
raio x. — Só podia ser brincadeira. Quando estava com Eddie, ela
não tinha o seguro-desemprego, então quem teria pagado pelas
consultas e os exames? A única vez que ela tinha ido pro hospital
tinha sido por causa do sangramento depois do aborto, e aquilo
tinha provocado consequências terríveis.
— Não foi tanto assim, Connie...? Ele chegou a te deixar
inconsciente?
— Claro. — Ela já tinha notado antes como homens brancos se
deleitavam com descrições de negras e mulatas apanhando. “Hay
que tratarlas mal”12, costumavam sempre dizer.
— Tire um conjunto de raios x dela antes de começar o
monitoramento do eletroencefalograma — o doutor Redding disse
ao doutor Morgan. — Vamos com essa daqui nos estágios iniciais.
Quantos vivos a gente tem hoje?
— Sete, doutor — a secretária arrulhou.
— Só isso? Vamos dar uma apressada. Ok, Connie. Podem levá-
la. — O doutor Redding já mexia na próxima pilha de registros
enquanto ela era empurrada para fora e largada em uma cadeira de
novo.
Às duas horas, os funcionários voltaram a sair e o doutor Redding
parecia irritado.
— Isso não vai servir. Precisamos de mais. Temos que dar uma
olhada em mais registros. Talvez possamos conseguir alguns até
mesmo nas alas crônicas.
As primeiras consequências daquela entrevista viriam dentro de
uma semana, quando disseram para Connie que deveria arrumar as
coisas porque ela seria transferida.
— Que sortuda, menina. Disse coisas boas de você, mas sei que
te veremos por aqui de novo! — Fargo a despachou para a ala G-2,
muito mais aberta que a ala L-6.
Sybil lhe lançou um olhar chateado, que a fez se lembrar de
despedidas dos melhores amigos na infância.
— Tente sair daqui. Fique quietinha um pouco. — Connie disse.
— Vou ser tão dócil quanto uma vaquinha de presépio — Sybil
disse sem muita convicção. — Afinal, nunca vou sair daqui se não
começar a tentar, a menos que aprenda a voar. E tenho muito pra
fazer ainda esse ano.
A ala G-2 era no prédio G, tão velho e triste quanto o outro, porém,
mais bem conservado. Era um prédio de tijolos vermelhos, parecido
com um quartel, próximo ao prédio onde a tinham entrevistado.
Connie se sentou no seu novo leito e olhou todo o ambiente,
tentando calcular suas potencialidades e ameaças. O extenso
cômodo com as camas tinha várias janelas cujos parapeitos eram
tomados como território de reunião de panelinhas de mulheres,
sendo negras em uma janela e brancas na outra. G-2 era uma ala
trancada, mas muito mais ativa. A grande porta do lado da estação
de enfermagem estalava e abria para deixar entrar terapeutas
ocupacionais e voluntários ocasionais, e para deixar sair alguns
pacientes que conseguiam permissão para deixar a ala. Sessões de
terapia em grupo aconteciam na ala duas vezes por semana.
Pequenos armários ficavam do lado de cada uma das camas
imundas e, no final do cômodo, pequenas mesas de armar haviam
sido colocadas. Em um dos lados, havia uma estreita sacada com
redes de segurança onde os pacientes podiam caminhar. Havia uma
sala comum com a ala masculina, mal iluminada e com cadeiras em
fileiras na frente de uma televisão trancada. Era estranho se ver no
meio de homens de novo.
Enquanto ela estava na fila para a medicação, sentiu vontade de
cantar de alegria quando viu pequenos copos, uns com pílulas
dentro e outros com água. Não seria mais Amplictil líquido
queimando sua garganta. Ela mordeu a parte interna das bochechas
para manter o rosto imóvel. Estar naquela ala significava estar
menos letárgica. A fila se movia tão vagarosamente que ela teve
chance de esconder sua alegria, de esmagá-la em um pequeno
canto no qual podia mantê-la intacta até que tivesse uma chance de
examiná-la com segurança. Sim, sua mente ficaria mais limpa. Hoje
não. Era nova na ala e os enfermeiros a observavam atentamente
enquanto tomava a medicação. Depois ela se moveu lentamente
pela ala, tanto quanto os outros internos se moviam. Ela se
lembrava de ter ficado horrorizada com aquilo da primeira vez que
tinha estado lá. Os medicamentos causam uma letargia profunda,
assim como a ausência de algum lugar aonde ir e tempo, um tempo
pesado, para gastar.
Meio sedada, ela andava pelo cômodo de dormir e entrava na sala
de passar o dia. Ali ela conseguia fazer um pouco de exercício ao
caminhar, mas tinha de tomar cuidado para que não percebessem
que ela estava passeando. Isso seria uma violação que iria para seu
relatório: paciente passeia pela ala. Havia mais o que fazer ali, mas
também havia mais informantes, espiões.
Ela caminhou até a sacada. Fazia frio, mas não se importou. Ela
tinha captado um vislumbre de alguns casacos em um armário perto
da estação de enfermagem, o que significava que alguns internos
tinham privilégios. Ela pressionou o rosto contra a grade enferrujada
e observou as árvores que perdiam as folhas, os galhos e o
gramado. Ela seria bem legal, bastante colaborativa. Como queria
caminhar na relva lá embaixo! Sua mudança para a G-2 devia se
provar um novo passo para sair dali — um passo mais próximo da
livre e ampla luz do dia.
CAPÍTULO 5

Connie se sentou na varanda com uma toalha ao redor dos ombros


para se aquecer. O dia frio e chuvoso de junho sob o céu cinza tinha
cheiro de umidade como em um porão. Ela estava tão contente por
estar do lado de fora, mesmo na varanda, onde a rede enferrujada
dava um tom meio sépia para as calçadas e prédios de tijolos, que
nem se importava que seu traseiro doía com o frio dos tacos. Ela
sentiu uma alegria pungente por estar sozinha pela primeira vez
desde a solitária, já que ninguém mais tinha saído no frio e na
umidade.
Ela estava exultante por respirar o ar externo, por ver mais do que
quatro paredes, por sentir o cheiro das árvores em vez de
medicamento e diarreia e desinfetante. O cinza do dia a acalmava;
cores mais fortes teriam machucado seus olhos. Todo dia era uma
lição de como os olhos se tornavam sedentos por matizes, por
vermelhos e dourados, e de quão sedentos os ouvidos se tornavam
por batidas de conga, pelo barulho do tráfego, cachorros latindo, o
barulho de fundo dos jogos de beisebol na tv, vozes falando
monotonamente, em tom de conversa, com alegria crescente em
espanhol, as crianças brincando na rua, as crianças porto-
riquenhas, cujas vozes soavam mais rápidas e duras do que o
espanhol das crianças chicanas, como se houvesse mais metal em
suas gargantas.
Ela sentiu a presença de Luciente claramente pela primeira vez
desde que tinha saído da reclusão; não aqueles arremedos de
presença que apareciam e desapareciam, mas a força sólida de
concentração se materializando ao seu redor. Ela resistiu. Sentar-se
na varanda ainda era novidade, um prazer convalescente, como a
primeira vez fora da cama depois de uma longa doença. Ainda
assim, ela sentia a presença forte e era como se ela estivesse se
recusando a atender a campainha para uma amiga que sabia que
ela estava em casa. Como podia pensar em Luciente como uma
amiga? Mas já tinha começado a fazê-lo.
— Eu também, em verdade — disse a voz se formando em sua
mente. — Senti sua falta.
— Por que não toma forma? Ninguém está aqui fora além de mim.
— Feche os olhos. Vamo pro meu espaço. Hoje, no meu ano, o
clima está melhor.
— Vocês controlam o tempo?
— Os Tubarões controlaram nos anos 1990; já passou. Quero
dizer, antes de nós. Mas o resultado foram aqueles desastres
costumeiros. Choveu por quarenta dias na costa do Golfo até a
maior parte dele flutuar pelo mar. Vejamo, as correntes de jato polar
foram empurradas do Canadá pro sul, quase provocando uma era
do gelo. Houve uma seca de cinco anos na Austrália. Pragas de
insetos... Abra os olhos.
Elas estavam no chalé de Luciente, com a luz do sol irradiando da
janela ao sul, que estava aberta e coberta por uma cortina de tecido
fino.
— Vocês ainda devem ter mosquitos!
— São parte da cadeia alimentar. Eliminamo os mais irritantes...
Sobre o clima, quando fica desastroso, às vezes ajustamo um
pouco. Mas todas as regiões devem concordar. Compreende,
quando uma região sofre de seca, preferimo entregar comida do que
aprovar uma mudança climática. É perigo. A gente suspeita de
experimentos grosseiros. “Em biossistemas, todos os fatores nunca
são conhecíveis”. Primeira regra que aprendemo quando estudamo
seres vivos em relação... Você parece tão magre! — Luciente disse
em tom de reprovação, se aproximando dela.
— Você diz isso como se fosse ruim. Ser magro não é bonito pra
vocês? Fiquei atarracada por uns três anos. Não que eu não esteja
com uma aparência tão péssima por fora como por dentro naquele
pardieiro.
— Lebre é magrolinde. Abelha é grandelinde. Alvorada é
pequenelinde. Tilia é alaranjadelinde. — Luciente acenou com a
cabeça para seu gato, que se levantou, como se esperasse por
algo. — Tilia me falou que você era idiota e eu expliquei que
pessoas da sua época não falavam com gates.
Ela se lembrou do gato alaranjado saltando para longe. Sentiu que
ele olhava fixamente para ela, agora sem medo, com malícia.
— As pessoas do meu tempo falavam com os gatos, cachorros,
hamsters. Com periquitos e peixinhos dourados. Até com as
paredes os mais solitários falavam. Olha, aquele pardieiro está
cheio de mulher que começou a falar com a Santíssima Virgem
Maria porque os maridos não ouviam elas.
— Quis dizer linguagem de sinais. Por exemplo, Tilia e eu falamo
linguagem de sinal baseado nos sinais dos gatos, mas modificado,
porque muitas coisas devem ser ditas entre gato e humano diferente
do que é dito entre gato e gato.
— Ah, o que vocês conversam? Sobre o gosto de rato cru?
— Muito é apenas demonstração de afeto, raiva, desapontamento.
Eu quero, Tilia quer. Peixe, leite, iogurte, sair, paz e sossego, pega o
rato, não toque naquele pássaro, me penteia, me deixa trabalhar.
Tilia tem um forte senso estético e comenta livremente sobre frívolis
ou até mesmo fantasias. Tilia odiou tanto a última colcha da cama e
a enterrou com tanto afinco (aquele gesto de cobrir a merda) que
tive que trocar por outra.
— Você pode falar com ela agora? Perguntar se ela acredita em
Deus ou o que ela acha de nudez em público?
— Você não está acreditando em mim!
— Ou você está me zoando, ou é mais louca que eu.
— Vou te ensinar como se encontrar com gates. Elus são formais
com apresentações. Fui altamente repreendida da última vez. Se
Tilia dá um salto na minha cômoda de cima do guarda-roupa, tenho
a noção clara de que está insatisfeite com minha conduta. —
Luciente olhou de soslaio, manteve os olhos fechados por alguns
segundos, olhou de soslaio de novo, repetindo toda a sequência, e
então desviou o olhar definitivamente. — Assim é como você
conhece gate se suas intenções são amigáveis. Se você pretende
fazer mal, por exemplo, quando está se aproximando de gate que
está sobre o corpo de chapim local, então você olha firme, você
encara.
— Você parece... ridícula. — Connie sentou-se na cama larga,
rindo.
— Para gate, presumo que eu pareça sempre ridícule. Criaturas
desajeitadas em comparação, gingando por aí de roupa. Venha!
Falar é ridículo para animais que se comunem por cheiros, cores e
linguagem corporal, toda aquela minuciosa movimentação da língua,
dentes e lábios. — Luciente fez uma expressão como se pedisse
algo. — Vamo, faça apenas uma vez pra que a gente possa
continuar com as explorações do dia. Faça apenas uma vez e
pronto.
— Você quer que eu faça caretas pra sua gata?
— Só pra se apresentar. Tilia pensa que você é hostil.
— Minha vida toda eu fui obrigada a fazer coisas pelo meu pai,
pelo meu irmão Luis, pelas escolas, patrões, policiais, médicos e
advogados e assistentes sociais e cafetões e proprietários. Por todo
mundo que podia me obrigar, mas Deus me livre se um gato quiser
me aporrinhar.
Luciente a encarou, sustentando o olhar com aqueles olhos de
feijão negro.
— Pessoa não deve fazer aquilo que pessoa não pode. Vamo. Não
— ela disse para Tilia e tentou tocar a gata. Tilia correu pelo
corredor, levantou uma pata e a movimentou rápido. Luciente a
deixou sair no lado mais distante da porta de tela, até que ela parou
e enterrou a casa e seus habitantes num gesto de desdém.
Elas seguiram o gato para fora. A roseira da cabana estava cheia
de flores e os aromas se espalhavam pelo ar. As rosas eram de
voluptuosas pétalas brancas com as bordas tingidas de vermelho.
— Sua roseira é linda.
— Deixa eu cortar uma pra você. — Luciente usou o cortador de
um canivete com várias partes. — Pro seu cabelo.
— Meu cabelo, que vergonha. Odeio ele assim.
— Por que não muda, então?
— Costumava tingir na parte que estava ficando branca. Mas, no
hospital, não posso arrumar.
— Quando queremo mudar a cor de nosso cabelo, mudamo as
proteínas. Não cresce como era. — Luciente a empurrava adiante,
com os braços em seus ombros. Usando uma regata de verão de
um dourado discreto, seu corpo era obviamente feminino. Connie
sorriu para si. Talvez fossem as roupas mais leves, talvez fosse uma
questão de expectativa; de qualquer forma, Luciente agora parecia
uma mulher. O rosto de Luciente e a voz e o corpo agora pareciam
femininos, ainda que nada delicados; confiantes demais,
despreocupados demais, agressivos e certeiros e graciosos de uma
forma totalmente errada sobre o que era ser uma mulher, mas,
ainda assim, uma mulher.
— Queria poder ajudar com seu cabelo — Luciente falou. —
Euzinhe nunca altero minha aparência, a menos que seja pra me
arrumar pros festivais. Mas muites de nós brincam com a aparência.
— Me diga mais sobre essa coisa de fazer caretas pros animais.
Vocês fazem com filhotes de cachorro e ratos e cupins também?
— A gente tem um feriado, Dia de Washoe, quando celebramo
nossa nova comunidade. Esse nome foi dado por causa de une
heroíne do seu tempo, une chimpanzé que foi primeire animal a
aprender língua de sinais entre as espécies. Agora a gente tem uma
linguagem de sinais rudimentar com muites mamíferes. Algunes,
como macaques, usam língua de sinais entre si. A maioria, como
cachorres e gates, tem outras formas de se comunir e somente
sinalizam para nós.
— Me diga, o que vocês falam pras vacas que estão prestes a
comer?
— Exatamente, isso mudou nossa dieta, assim como a decisão de
alimentar todes bem. Cada região decidiu ser autoalimentada, e até
que todas ex-colônias estejam iguais em produção, carne de
mamífero é uso não eficiente de grãos. Algumas regiões criam gado
em pastos...
— Vocês nunca comem carne? Deve ser como viver do seguro-
desemprego.
— Comemo nos feriados, e tem bastante, pra poder controlar
rebanho. Dizemo o que estamo fazendo. Elus sabem. No mesmo
espírito, em novembro, caçamo por um breve período. Quer dizer,
nosse tribo caça. Somo índigenas wampanoaug. Precisamo de
alguma experiência com animais em liberdade, como predadores e
presas, pra corporificar o passado de nosse tribo mais
integralmente... Apesar de que eu confesso que nunca caço.
Algunes de nós certamente íamo abrir mão desse costume logo,
mas falta os votos pra fazer isso.
— Vocês são o quê? Índios loiros? Índios com barba ruiva?
— Barbarossa tinge a barba dissôa, na real. Não é linda? Estava
castanha antes.
— Você! Você se parece comigo. Meus ancestrais eram maias,
mas dificilmente seriam wampanoaug! Isso é ser tão diferente
quanto... italianos e suecos!
— Somo todes um saco de genes misturados — Luciente falou. —
Agora eu já sei pra onde vamo. — Ela dedilhou com seu
cognescedor. — Bualuz! Sou eu, Luciente. Você pode nos encontrar
na criadeira? Estou com Connie, a pessoa do passado. Pede pra
Carvalho Branco continuar pra você. Vamo trabalhar com mais
afinco depois. — Ela se voltou para Connie. — Acabei de pedir pra
Abelha nos encontrar na criadeira. É o prédio amarelo que acabou
de aparecer no oeste. Tanto pra explanar! — Luciente começou a
caminhar mais velozmente, mas viu que estava deixando Connie
para trás, então esperou. — Você determina o passo.
— Abelha é o seu namorado que acabou de sair do exército? Ele
foi convocado?
— Convidade? Todes têm a sua vez. Todes podemo usar armas,
somo treinades pra luta corpo a corpo, todes podemo lidar com
facetas de operações mais complicadas. Posso usar uma
tralhadora.
— Mulheres também? Você teve que ir?
— Clarquessim eu fui. Duas vezes. Uma quando tinha dezessete
anos e outra quando tivemo uma grande mobilização. Lutei as duas
vezes.
— Lutou? Mas não gosta de ir caçar?
Luciente parou, seus olhos expressando confusão.
— Um contradito. Já fui obrigade a desconflituar nisso, ainda
assim, a caça continua. Compreende, você nunca sabe se está
lutando contra pessoas ou máquinas; elus quase sempre usam
robôs ou cibernautas. Nunca se sabe... Mesmo assim, eu iria de
novo. Em algum momento depois da nomeação, você decide se
está pronte pra ir.
— Pronta! Aposto que um monte de gente decide não ir. Ou
alguém decide pra você?
— Como poderiam? É como ser mãe. Algunes nunca maternam,
algunes nunca vão pra defesa. — Luciente franziu a testa, passando
os dedos por seus fartos cabelos negros. — Na defesa, sua vida
pode depender de alguém. Se pessoa não quer estar lá, pessoa
pode cometer descuido e você pode sofrer. Se pessoa não queria
ser mãe e você era aquele bebê, pode ser que você não receba
amor o suficiente para crescer com carinho e forte. Pessoa não
deve fazer o que pessoa não pode fazer.
— Já ouviu falar de gente preguiçosa? Suponha que eu não queira
me levantar de manhã.
— Então tenho que fazer o seu trabalho além do meu se estou na
sua base ou na sua família. Devo fazer a sua defesa ou sua
maternidade. Vou me importar com isso. Quem quer ser objeto de
ressentimento? Tais pessoas são convidades a ir embora e elus vão
vagar de vila em vila, cada vez mais amargues e autocomiserando.
Nós nos entristecemo com isso. — Luciente deu de ombros. — Às
vezes, curandeires como minha velhe amigue Diana podem ajudar.
Diana, a rosa. Curandeire pode caminhar com você e ajudar a
crescer de novo. É como cair e depois fazer uma difícil escalada.
Mas muites curam bem. Diana capta, como você.
O prédio amarelo era estranho, como um cogumelo cor de limão
siciliano brotando do chão. Decorado com formas de árvores
esculpidas, não tinha janelas e zumbia bem baixinho. Ela percebeu
que, exceto pelo rangido dos moinhos, esse era o primeiro som de
maquinário que ouvia ali. De fato, a porta sentiu a presença deles e
se abriu, permitindo que acessassem uma antecâmara, então
deslizou para se fechar e prendê-las entre as portas externas e
internas sob uma iluminação azulada.
— O que é isso tudo? — Connie se movia com nervosismo.
— Desinfetação. Essa é a criadeira, onde nosso material genético
é guardado e onde os embriões crescem.
As portas internas se abriram como um zíper, dando acesso a um
espaço que parecia mais um aquário do que um laboratório. O piso
era acarpetado com um padrão em azul e tinha música tocando,
uma música estranha aos ouvidos dela, mas não desagradável. Um
homem negro e robusto que estava apoiado em um tanque pintando
umas enguias e vitórias-régias acenou para elas.
— Sou Abelha. Que seja boa sua chegada ao que compreendo ser
o pesadelo da sua era.
— Bebês de proveta!
— Nenhuma proveta envolvida. Mas clarquessim todes nascemo
aqui.
— E você também é um índio wampanaug?
Abelha sorriu. Ele era um homem musculoso e bem constituído,
com alguma gordura no abdômen, já que se movia mais lentamente
que Luciente, com a calma e majestade dos grandes navios. Ele se
movia placidamente entre os estranhos aparatos, os tanques e
máquinas e compartimentos fechados, algo que batia numa parede
como as batidas de um grande coração, os galhos mais
proeminentes enganchando aqui e ali. Ou Abelha era careca ou
raspava a cabeça, e as mangas da sua camisa rosa de trabalho
estavam arregaçadas, revelando em cada bíceps uma tatuagem —
apesar de as cores serem mais sutis e o traçado mais fino do que
qualquer uma que ela já tivesse visto. No braço esquerdo, ele tinha
o que parecia ser um desenho japonês de uma abelha voando. No
direito, ele tinha uma forma que parecia uma onda se quebrando.
— Aqui os embriões estão crescendo, quase prontos pra nascer.
Fazemo isso aos nove meses e duas semanas ou três. Às vezes
esperamo dez meses. Descobrimo que esse tempo extra nos dá
bebês mais fortes. — Ele apertou um botão e uma porta deslizou
para o lado, revelando sete bebês humanos de ponta-cabeça se
mexendo lentamente, cada um dentro de um saco separado em um
receptáculo maior preenchido de fluído.
Connie perdeu o ar, seu estômago se revirando. Todos os bebês
se moviam em uma fila melequenta, como peixes no aquário em
Coney Island. Mãe, a máquina. Os olhos deles estavam fechados.
Uma menina de pele muito escura estava chutando; um menino
rosado — ela podia ver claramente pelo pênis saliente — chorava.
Languidamente, eles estavam à deriva em uma escola de cegos.
Abelha apertou algo e a encorajou a se aproximar da escotilha para
ouvir. Batidas de coração, vozes conversando.
— Isso não pode ser os bebês conversando!
— Não! — Abelha riu. — Apesar de elus fazerem barulho sim.
Música, vozes, a batida do coração, todos esses sons elus podem
ouvir.
— Luz, Sacco-Vanzetti. Como tudo voa? — Luciente falou para a
recém-chegada.
A pessoa devia estar com seus dezesseis anos. Era esguia,
cabelo castanho preso em tranças, amorenada, usando um
uniforme amarelo muito parecido com as roupas de trabalho dos
outros.
— É a mulher do passado?
Luciente fez as apresentações. Sacco-Vanzetti, cujo sexo ela não
conseguia precisar, a encarou.
— Você gestou na sua barriga?
— Ora, vamo, Sacco-Vanzetti, não aja com estreiteza! — Luciente
fez uma careta.
— Se você quis dizer se eu já tive um bebê, sim. — Connie
aprumou o rosto.
— Tinha um monte de sangue?
— Eu estava apagada, como vou saber?
— Foi excitante? Deu tesão?
— Dói pra caramba! — Connie explodiu, voltando-se ao muro
cheio de bebês. — Todos vocês nasceram dessa máquina maluca?
— Quase todo mundo atualmente sim — a pessoa jovem falou. —
Preciso ir até os três meses pra conferir as soluções. Mantenho
contato. Se lembrar de mais coisas sobre gestação no corpo, ficaria
mais leve em ouvir a respeito. — Então saiu, e Abelha fechou a
portinhola.
— Indígenas wampanaug são a fonte da nossa cultura. Nosso
passado. Toda vila tem uma cultura.
Interessante a forma como ele respondeu à pergunta, como se
tivesse acabado de ser inquerido, como se a pergunta boiasse nele
pacientemente até que ele estivesse pronto para responder: a
memória de uma dor doce e intrincada. Talvez ela tivesse um fraco
por homens negros e graúdos que se moviam com graciosidade
maciça, mesmo que Claud se movesse de forma diferente. Por
causa da cegueira, Claud mantinha a cabeça levemente inclinada
para o lado, o que sempre a fazia se lembrar de um pássaro. Os
pássaros viravam a lateral da cabeça para você porque seus olhos
ficavam dos lados, e Claud via com os ouvidos.
— Achei isso porque você é negro. No meu tempo, os negros
tinham acabado de descobrir o orgulho em serem negros. O meu
povo, os chicanos, estavam começando a sentir isso também. Agora
parece que se perdeu de novo.
Luciente começou a dizer algo, mas se controlou.
Abelha estava radiante, movendo-se em direção a outro tanque
cuja portinhola ele abriu.
— Tenho uma amizade colorida que mora em Cranberry que é de
pele tão escura quanto a minha e a tribo dissôa é Harlem-Negro.
Posso me mudar pra lá a qualquer momento. Mas, se for lá, não vai
encontrar todo mundo de pele negra como eu ou sôa. Assim como
nem todo mundo será alto ou terá pézão. — Ele parou, olhando
intensamente para um pequeno embrião completamente formado e
que flutuava abaixo da altura do seu ombro. — No grã-selho, o
grande conselho, decisões foram tomadas quarenta anos atrás pra
que muitas pessoas de pele escura fossem criadas e pra espalhar
bem os genes pela população. Ao mesmo tempo, decidimo manter
identidades culturais separadas. Mas quebramo a ligação entre
gene e cultura, quebramo pra sempre. Não queremo que haja
chance pro racismo de novo, mas não queremo uma sopa rala no
final. Queremo diversidade, pois a estranheza gera riqueza.
— É tão... inventado. Artificial. Tem irlandeses negros ou judeus
negros e italianos negros e chineses negros?
— Clarquessim, como não? Quando você cresce, pode se manter
na cultura em que foi criade ou pode se fundir a outra. Mas aquela
em que fomo criades normalmente tem... um significado mais doce
pra nós.
— Dizemo “nós” — Luciente começou a dizer — quando falamo
sobre coisas que aconteceram antes de a gente nascer, porque nos
identificamo com aquelas decisões. Eu costumava achar que nossa
história era exagerada, mas tenho menos certeza depois que
comecei a tempoviajar. — Luciente a puxou para a próxima
portinhola.
— Acho que não quero mais olhar pra nenhum... bebê. — Seu
estômago deu uma pontada ao ver o pequenino de três meses que
a pessoa cuidadora tinha mostrado para ela na bacia. — Não me
sinto muito bem.
— Vamo sair. — Abelha tomou seu braço. — Talvez seja o ar
filtrado? Compreende, o plasma é precioso. A vida flui daqui para
dezesseis vilas no total, o distrito todo.
Já do lado de fora, ela respirou fundo, sentindo o ar marinho, e se
soltou de Abelha. O orgulho delicado e ferido de Claud era como
uma orquídea com dentes. O que um homem desse ridículo futuro
do cafundó, em que as crianças nasciam de máquinas e as pessoas
negociavam diplomaticamente com as vacas, podia saber sobre
crescer negro ou pardo nos Estados Unidos? A dor tinha lapidado a
esperteza do Claud. Em comparação, esse homem era uma criança.
— Você está dizendo que não tem mais racismo? Paraíso na
Terra, todos os filhos de Deus são iguais?
— Diferentes tribos têm diferentes rituais, mas Deus é um conceito
patriarcal. — Luciente tomou o braço de Abelha e o dela. — Nosses
membres, nossas crianças, nosses amigues são pessoas de
diferentes misturas genéticas. Nossas mães também.
— Mas os filhos de Abelha serão negros. Os seus, morenos.
— Minha criança Inocente tem a pele mais clara que você. —
Abelha parou para admirar uma trilha margeada por arbustos de
rosas amarelas, laranjas e cor de creme. — Não há nenhuma
ligação genética e, se houver, não prestamo muita atenção.
— Então essa criança não é sua mesmo?
— Sou mãe de Inocente!
— Como homens podem ser mães?! Como uma criança que não
tem relação com você pode ser sua filha? — Ela se desvencilhou e
se virou irritada. O ar pastoral do lugar começou a enfurecê-la, os
jardins por todos os lados, as flores, as malditas galinhas que
pareciam animadas andando pelo chão. Luciente pediu que ela os
seguisse.
— Estamo acompanhando Abelha de volta ao laboratório. É onde
eu estaria com outres geneticistas de plantas da nossa base se não
estivesse com você. Abelha e eu trabalhamo juntes. Talvez é por
isso que somo amigues doces por tanto tempo, doze anos já.
— Pensei que era porque tenho preguiça demais pra correr de
você, como qualquer camarade em sã consciência faria. Nunca
percebi outros núcleos que trabalhassem na mesma base e
ficassem tanto tempo juntos.
— A gente é tão inadequade que não conseguimo desistir. Connie,
flor da macieira, me ouça...
— Levante a guarda quando Luci te chamar por nomes fofinhos.
— Abelha conseguia caminhar mais vagarosamente que elas e,
ainda assim, manter o passo.
— Fez parte da longa revolução das mulheres. Quando estávamo
quebrando as velhas hierarquias. Finalmente teve a coisa da qual
tivemo que desistir, o único poder que algum dia tivemo, em troca de
não haver mais poder pra ninguém: a produção original, o poder de
dar à luz. Pois, enquanto as mulheres estivessem biologicamente
acorrentadas, nunca seríamo iguais. E os homens nunca seriam
humanizados para serem carinhosos e amáveis. Então todes nós
viramo mães. Toda criança tem três, pra quebrar o vínculo binuclear.
— Três?! Isso não faz o menor sentido! Três mães! — Ela pensou
de repente no dia dos três reis magos e nas histórias de Natal
inglesas que Angelina tinha aprendido na televisão. Podia até ouvir
a voz esganiçada dela cantando naquele tom invariável, mas com
alegria na monotonia (a segurança):
Nós três reis do Oregon somos.
Com presentes, de longe viemos.
Lágrimas queimavam suas pálpebras. “Angelina, Angelina, se
tivesse três mães como eu, você estaria morta em vez de ter sido
vendida para algum casal careta de Larchmont. Disseram que você
teve sorte de ter sido levada aos quatro anos. Não entendi até que
saquei o que eles tinham feito! Sorte de ter sido tirada de mim”.
“Angelina, filha do meu corpo dolorido e ensanguentado, filha do
meu casamento triste que nunca fez sentido, como um par de
sapatos velhos que soltam um pedaço da sola. Mas você faz
sentido. O enfermeiro disse que tinha que te levar, mas você já foi
direto no meu peito. Você mamou na horinha. Eu me lembro de
como você agarrou com sua boquinha macia o meu peito e
começou a retirar leite de mim, como me pareceu a coisa mais
doce. Como alguém pode saber o que significa ser mãe sem nunca
ter carregado uma criança por nove meses debaixo do coração, sem
nunca ter carregado um bebê em sangue e dor, sem nunca ter dado
de mamar a um bebê? Retiram filhos de uma máquina, do mesmo
jeito que aquele casal branco e rico ficou com a carne da minha
carne e sangue do meu sangue. Tudo já feito, uma criança enlatada,
só dê o dinheiro. O que eles sabem de maternidade?”.
Ela estava sentada encostada na parede da sacada, lágrimas
rolando pela sua face. A dor tinha desfeito a alucinação? Não
importava. Ela os odiava, aqueles monstros sem graça do futuro
nascidos de tubos de ensaio, nascidos sem dor, multicoloridos como
marionetes sem os estigmas de raça ou gênero.
CAPÍTULO 6

— Escutem, meninas — a sra. Richard disse, balançando seu


indicador gordo. — Nenhuma de vocês vai sair desta ala enquanto
não me disserem quem colocou aquela droga atrás do radiador. E
estou falando sério!
Era uma caixa de aspirina com drogas que a Glenda tinha
conseguido com o namorado dela na ala dos homens. A Glenda era
casada e o namorado também, mas ninguém contava isso como
algo negativo contra eles. Lá fora, acabaria; eles estariam presos
novamente na estrutura da qual tinham saído, com uma nova cola
de medo para fixá-los ali. Romances entre os pacientes fazia Connie
se lembrar das paixões escolares, notar um olhar numa janela alta,
mandar bilhetes nos carrinhos, ficar de mãos dadas na sala comum,
tocar-se disfarçadamente na terapia de grupo, dançar junto na festa
de Natal. Às vezes, dizia-se que alguns pacientes que tinham
privilégios trepavam em algum almoxarifado ou atrás da moita, mas
isso era majoritariamente fantasia. Para os funcionários, era
diferente.
A sra. Richard e a enfermeira Wright lembravam professoras de
colégio. Sua primeira escola nem tinha sido tão ruim assim. Ela ia
de mãos dadas com Luis. As crianças eram todas mexicanas e a
escola ficava a uma caminhada de distância. Não, a escola de que
ela se lembrava com pesar era a de Chicago.
— Diga sentar.
— Sentá.
— Sentar, agora diga corretamente, Consula.
— Sentá.
Luis tinha dominado aquele som do inglês e ensinado para os
irmãos com os punhos até que eles falassem do jeito que ele falava.
Ter Luis batendo em seu braço era melhor do que ter a professora
branca olhando para ela com aquela cara de enfado e impaciência
porque ela iria falhar de novo e de novo em pronunciar aquele som
que parecia ter sido inventado para envergonhá-la. Luis não queria
ensiná-la a dizer “sentar”; a palavra em que finalmente ela teve
sucesso foi “trepar”.
— Posso ir no banheiro? Preciso muito ir. — Aqui ela ia até a
estação de enfermagem e implorava por um pedaço de papel, uma
caneta, um cigarro, um isqueiro, uma chance de conversar com um
médico, permissão para fazer uma ligação. Qualquer uma dessas
coisas, exceto ser drogada ou levada na maca para o eletrochoque
era um privilégio. Um trabalho fora da ala, uma chance para dar
uma volta, um doce.
Um dos privilégios era ir até o salão de beleza, onde eles faziam
mulheres da idade dela ficarem parecidas com o que mulheres da
idade dela deveriam se parecer. Ela não ia sair de lá parecendo a
sra. Polcari. Da última vez que tinha saído da detenção, o salão de
beleza tinha feito com ela o que a mãe de Dolly, Carmel, fazia com
as porto-riquenhas que vinham para ser recheadas e cozidas para
casamentos ou festas importantes. Ela tinha ficado dez anos
defasada na moda, coberta em cachos torcidos e com uma base
forte, a qual enfatizava cada uma das suas linhas, sombra verde e
batom laranja brilhante e bastante rímel nos cílios, como um pano
de fundo novo em vitrine de loja de quinquilharia.
Quando chegou ao hotel do seguro-desemprego, onde pôde morar
nos primeiros meses — havia viciados nos corredores e dez
crianças em um cômodo com a pia entupida —, ela foi saudada por
uma velha com rosto de boneca desgastado e sujo, como se tivesse
chegado de uma longa viagem. Esparramada na cama, ela
imaginava o fantasma de Claud tocando sua pele com seus dedos
hábeis, aqueles dedos mais rápidos que qualquer outra parte dele e
que terminavam em bulbos sensíveis. Como ele teria reclamado
sobre o que estava empastelado na sua cara.
— Você se parece com travesseiros de cetim. Como os lençóis de
cetim em que dorme o rei dos cafetões. Vou passar o domingo
inteiro me refestelando, procurando e agarrando punhados dessa
coisa gostosa.
Claud fazia amor como se tivesse todo o tempo do mundo. Ele
podia não ter vontade por uma semana, podia desaparecer, podia
se sentir muito desanimado ou sarcástico, mas, quando se
predispunha, ele era doce e amava cada pedacinho dela. Ele
acarinhava a pele sedosa na lateral do seu braço até que seus seios
queimassem, então brincava com eles, provocando de leve, e
depois pegando punhados e aconchegando-se e chupando, até que
o estômago dela doesse de desejo. Ele se esfregava nela de forma
lânguida, e a penetrava devagar e então tirava, entrava e tirava, até
ela mesma o levar para dentro com a mão. Depois que ele gozava,
parava um pouco, mas continuava duro. Daí ele continuava mais.
Era tão paciente e deliberado com ela, tão lento e fácil, que ela
podia amá-lo livremente, curtir a gozada dele, a sensação das peles
deles se tocando, sabendo que ela sentiria o êxtase desabrochando
lenta e completamente dentro dela.
Ela tinha ido ao bar na Second Avenue — um dos poucos bares
que tinha uma clientela mista de negros e porto-riquenhos —
procurando Eddie, que tinha parado de pagar a pensão para a filha
deles. Ela estava sentada na mesa sozinha, sem pensar em nada,
sentindo que deveria parecer alguém que estava esperando uma
cantada. Ela tinha notado Claud mais ao fundo, bebendo com os
amigos. Com prudência, notava todos os homens que iam e vinham.
Ela segurava um jornal aberto e balançava no copo uma cerveja já
quente, esperando que Eddie ou algum dos compadres dele
entrasse.
Depois de algumas brincadeiras com o garçom do bar, Claud
começou a tocar seu saxofone: blues, spirituals, algumas canções
populares. Ela se alegrou. Ele tocava bem, mas ela estava feliz
porque teria alguma coisa para fazer ali: podia assistir ao grande
negro com os óculos escuros tocando saxofone e podia
acompanhar o tempo da música — e de rabo de olho continuar
vigiando a porta. Só depois que Claud terminou e começou a passar
o chapéu foi que ela percebeu que ele era cego. Aquilo a pegou de
surpresa. Então, quando ele voltou até a mesa dela, devolveu os
trocados que ela tinha dado e perguntou se podia se sentar e lhe
pagar uma cerveja, e ela disse sim — para não ser rude, porque a
cegueira dele a pegara desprevenida.
Voltou ao presente, ao lugar podre, que não lhe dava nada para
fazer e ainda lhe dava muito tempo para fazer esse nada. Ali estava
ela com saudades de Claud de novo. Ela não aguentava, ficava
arrasada quando se lembrava dele, morta.
Dez e meia. Já estava de pé há quatro horas e o grande evento do
dia tinha sido esperar na fila do café por meia hora. Era um dia ruim
na sua ala. A sra. Richard encontrara a menina negra de dezesseis
anos, Sylvia, apoiada no radiador com metade do rosto queimado.
Ela fora arrastada para a solitária e anestesiada com os
medicamentos, mas o que quer que fossem fazer com ela, tratar a
queimadura não estava na lista.
Então a velha sra. Stein saiu do banheiro com um pedaço de cocô
preso no cabelo, e enquanto um dos assistentes a levava de volta
para dentro, sem qualquer aviso Sharma começou a bater na
Glenda.
— Sua puta dos infernos! Eu sei que você está se engraçando
com meu marido. Vocês dois acham que eu sou burra? Puta da
Babilônia! Você está pegando os médicos tudo. Todo mundo está
falando de você, sua puta! Você transa com todos eles!
Lá pelas onze e meia, metade das celas de solitária daquela ala
estavam cheia e os pacientes haviam sido enfileirados para uma
dose extra de tranquilizantes, administrados de forma líquida, que
queimava na garganta e a deixava rouca. Ela podia sentir por toda
ala as mentes das pessoas agitadas como papoulas no meio de
uma tempestade, e de vez em quando um galho frágil se quebrava e
caía no chão. Eles estavam com raiva por terem sido encarcerados
sem nenhuma das pequenas pausas na rotina que faziam parte da
vida na G-2. Connie se sentou no chão em um lugar onde podia ter
um vislumbre de uma janela com vista para nada além de folhas,
caso olhasse no ângulo certo. Sentada na posição correta, ela não
enxergava os outros prédios, então o verde enchia seus olhos.
Os remédios a entristeciam, enchendo sua mente com chumaços
de algodão e estranhos fragmentos de memórias e alucinações. A
cabeça dela doía: a cabeça daqueles embriões flutuando na
criadeira, aquelas enormes cabeças pensantes flutuando de ponta-
cabeça atrás do vidro. Queria dormir, mas não era permitido aos
pacientes se deitar durante o dia.
Finalmente um acontecimento: hora de fazer fila para o almoço.
Eles foram fazendo uma fila desordenada, andando sem rumo até
que os atendentes os colocassem no lugar. Esperavam muito até as
portas se destrancarem. Todos nas alas no prédio G almoçavam no
térreo, mas em escalas meio confusas. Glenda, com o rosto inchado
depois do ataque de Sharma, veio e ficou do lado dela. Connie
esperou para ver se ela iria falar, então perguntou:
— Seu rosto está doendo?
— Ela nunca faz. Plástica é melhor.
— Eu sei que Sharma não quis dizer o que ela disse.
— Tenho uma coisa pra te dizer. Ela foi até o final do corredor e os
atendentes pegaram ela.
Connie esperou. Sabia que Glenda estava falando de si mesma e
tinha algo urgente para dizer.
— Vamos agora — zurrava a sra. Richard. Ela tinha medo das
pacientes, que sabiam disso. — Arruma essa fila. Vamos! Uma atrás
da outra!
— Ela viu sua amiga com os pés saindo pra fora.
— Sybil? — Ela imaginou o corpo da amiga sob um lençol, o
cabelo ruivo esvoaçando. — O que estavam fazendo com a Sybil?
— Levando ela pra ser queimada. Santa Joana. Ela me disse pra
eu te falar que ela lamenta pela sua amiga.
— Choque? Estavam levando a Sybil pro choque?
— Eles queimam tudo, depois enchem com cimento. — Glenda
olhou fundo nos seus olhos e depois foi cambaleando até o final da
fila.
Ela queria se deitar. Queria se arrastar para debaixo de uma
mesa. Sybil a reconheceria depois? Às vezes, depois do choque, os
internos não se lembravam de amigos ou amantes. Connie se sentiu
pequena e inútil. Sybil já tinha ido para o choque antes. “Eles vão
fazer de tudo, menos me enforcar”, ela dizia. Sybil lutava contra
eles, mas eles estavam vencendo, fazendo fortes correntes
atravessarem sua alma. Sybil inconsciente era apenas outra mulher
indefesa.
Deliberadamente, porém sendo discreta, ela saiu da fila e se
sentou no seu colchonete. A sra. Richard caminhou rápido atrás
dela, sua pequena boca fazendo um biquinho de preocupação.
— Sra. Ramos, volte para a fila. É hora do almoço.
— Por que eu devo ficar ali vinte minutos esperando? — Ela
tentou formular isso com uma tímida dignidade, mas a medicação
enrolou sua língua. — A medicação me deixa tonta. Vou esperar
aqui.
Ela leu o medo nos olhos da sra. Richard, ela, que odiava os
pacientes e cujas mãos tremiam um pouco toda vez que precisava
tocar em algum deles, liberava um medo fedido que parecia a
Connie o cheiro de gás escapando das bocas de um fogão.
— Sra. Ramos, você está confusa. Você está muito confusa. Está
na hora de fazer fila pro almoço.
— Por que devemos ficar de pé ali? É só lixo quando chega nossa
vez. Quem quer ficar na fila pra um lixo daqueles? — Ela tentou
articular bem o que dizia, mas ficou enojada ao ouvir sua língua
enrolando as palavras, como se estivesse bêbada.
— Vem comigo agora! Volta pra fila! Você não está cooperando.
Todos os outros estão esperando na fila pra almoçar.
De fato, Glenda tinha saído da formação e estava zanzando por
entre os leitos. Connie ficou esperando para ver o que a sra.
Richard faria, esperando que ela fosse chamar a enfermeira e
empurrá-la de volta para a fila, mas aquela sua pequena rebelião
tinha de ser punida. Mandaram ela pra solitária. Deitada no chão,
ela se sentia uma idiota. Mas como podia descer para comer
enquanto Sybil queimava?
Ela cochilou, um sono inquieto e incômodo. O aposento fedia a
bosta velha. Ela não olhou em volta para não se deparar com aquilo.
Bateu com as mãos abertas na porta, esperando que eles viessem e
a deixassem usar o banheiro, mas não apareceu ninguém.
Ela estava sentada no Boca de Oro - Comidas Chinas y Criollas,
um pequeno restaurante cubano-chinês com cabines tamanho
família na 116th. Ela e Claud gostavam de ir lá. Angie nunca fora de
comer muito, e nos restaurantes ela tinha mais vontade de
choramingar do que de comer. Mas Angie gostava do Boca de Oro,
em parte por causa do miojo oleoso que o garçom servia para ela
sem muita cerimônia, em parte por causa de um mural de que ela
gostava. Connie dizia para Claud o quão sortudo ele era por não
poder enxergar aquilo: señoritas dançantes vestidas com enormes
mantillas e um touro que mais lembrava um cachorro gordo prestes
a espirrar.
Eles se sentavam em uma das cabines, uma família mais real nas
suas cores, tamanhos e formatos variados do que a que ela, Angie e
Eddie jamais haviam formado. Claud sentava-se sozinho de um lado
e encostava sua bengala-guia do lado de Angie para ela brincar, e
Connie e Angie sentavam-se de frente para ele, enquanto Angie
dava gritinhos de alegria e pedia para ir ao banheiro a cada cinco
minutos.
— Você não pode ir no nosso banheiro — ela ficava dizendo ao
Claud. Angie era fascinada com banheiros masculinos e femininos e
porque eles tinham de usar o mesmo em casa, mas ali não.
Ultimamente, ela fazia perguntas sobre banheiros por horas; Connie
ficava louca. Quanto mais irritada ela ficava, mais Angie fazia
perguntas. Ela tinha o dom de pressentir quando a mãe não queria
falar sobre algum assunto e isso provocava um desejo vívido e
instintivo de saber o porquê.
— Você daria uma boa policial — Claud disse para Angie uma vez.
— Uma policial detetive capitã especial.
Connie estava até serena, de tanta alegria: por terem algum
dinheiro, por estarem juntos, por serem uma boa família, por Angie
estar se comportando e comendo seu miojo, por Claud estar
sentado ali com toda sua presença radiante e sólida e calorosa.
Como um sol, a presença dele brilhava sobre ela. Connie comia do
prato dele, do seu próprio, pegava um pouquinho do que Angie não
comia. Tudo era bem temperado e gostoso. Era primavera, logo
depois da Páscoa, e Claud tinha dado dinheiro para ela comprar um
vestido novo. O vestido era turquesa, justo na cintura e balançava
quando ela andava. Ele dizia que o vestido era macio e agradável
ao toque. Ela tinha acabado de fazer o cabelo no sábado, e então
usava um creme rinse, que deixava o cabelo macio para o Claud.
Eles foram apanhados duas semanas depois.
Ela estava na solitária, chorando. Claud, Angie. O advogado
indicado pelo tribunal tinha entrado com um pedido de recurso, e ela
havia recebido uma sentença como cúmplice de furto. Ela ficou
várias semanas na cadeia até o julgamento e a Angie tinha ido para
um abrigo para menores pela primeira vez. O oficial de condicional
não permitia o contato dela com o homem que ela considerava seu
marido. O Estado dizia que o marido dela era o Eddie, pois nunca
tinha tido dinheiro para se divorciar dele por abandono. Para quê?
Somente algumas vezes ela tinha sentido que o sobrenome Ramos
era um fardo pesado, um peso morto que ela carregava nos ombros.
A espessura desse peso era o corpo de um homem magro, mas
ossudo, com a pele áspera contra a sua. Claud tinha sido franco
com ela e com todos — o juiz, o oficial da condicional, Luis, todo
mundo — que tinham tentado fazer ela se envergonhar de estar
com ele, um negro cego.
Ela odiava se lembrar daquilo! Tinha se sentido enojada com
Luciente e Abelha, mas isso não importava. Ela tinha de sair dali e
desligar a memória. Tentou abrir a mente, convidar. Por um tempo
longo, bem longo, nada pareceu acontecer. Nada além do tempo,
grudando-se nela como se fosse graxa.
Então, finalmente sentiu algo. No mesmo instante, ela suplicou:
— Luciente, deixa eu te visitar.
A presença ficou mais forte.
— Você podia ser remetente também. Que mistura incomum e
poderosa.
— Não puxa meu saco.
— Por que não elogiar as qualidades? Fale bem quando puder, e
criticar não vai ferir. Deixe, agora, deixe comigo.
Sentiu o abraço forte de Luciente e então se viu na cabana da
amiga.
— Perdemo você de repente na última vez. — Luciente a abraçou.
— Você sofreu ferimento?
— Acho que se eu me lembrar de algo com muita emoção, isso se
quebra... não lembro como você chama essa ligação.
— Vai ver você para de captar quando sua atença muda. Acho que
vai se acostumar a essas discorporações repentinas e pulos pra cá
e pra lá no tempo. — Luciente vestia shorts e uma camiseta regata.
Ela lembrava uma atleta, uma tenista, apesar de que eram poucas
tenistas que tinham a pele tão escura quanto a dela. Abelha,
sentado na beirada da cama, usava um roupão longo preto e
vermelho cheio de bordados finos que o deixavam engomado, com
um capuz que cobria seus ombros largos.
— Vem! — Luciente a apressou, a voz saindo rouca. — Rápido! As
comães de Abelha esperam.
Era isso mesmo. Agachadas do lado de fora, com cuidado para
não manchar as roupas estranhas, estavam duas mulheres vestidas
como Abelha, que ela reconheceu da mesa do almoço. Uma vestia
camisa e calça tipo legging de camurça clara, tudo cheio de apliques
de penas e conchas; tinha o cabelo longo e escuro preso em um
coque meio desalinhado por tiras de couro tingido. O cabelo marrom
da outra estava solto e ela usava brincos longos de filigrana e uma
toga esvoaçante azul. Com uma destreza graciosa, ambas se
levantaram para cumprimentá-los.
Sentada em uma pedra um pouco afastada estava uma garota de
cabelo claro, de uns treze anos mais ou menos. Era fácil para
Connie perceber que se tratava de uma garota, porque a camisa de
algodão dela estava aberta na frente, como uma jaqueta, e os seus
pequenos seios ficaram visíveis quando ela se levantou e veio na
direção deles. A pele do peito dela parecia tatuada, e Connie olhou
fixamente. Quando ela se aproximou mais, viu que era tinta. A
menina usava calça e a camisa aberta e, aos seus pés, havia uma
cesta, que ela encaixou no braço como uma mochila. Ela também
pegou um arco e o encaixou no outro ombro. Connie pôde ver uma
bainha de faca na cintura, pendurada logo abaixo da camisa-
jaqueta.
— Essa é nossa criança, Inocente. Inocente, essa é Connie, do
passado. — Abelha se virou para ela, com movimentos comedidos.
— É o dia da nomeação de Inocente. Lontra, Luxemburgo e eu
vamo partir juntes de flutuador para ver se o pouso dissôa vai ser
tranquilo. Fomo as mães de Inocente e esse é o fim da maternidade.
— Como se vocês não fossem ficar trambolhades de se ver livres
de mim! — Inocente mostrou a língua para ele.
— Você adivinhou. Planejamo te largar na baía.
— Mas o problema é que você flutua como uma boia — falou
Lontra, a mulher de camurça.
— Quando for comida de urso, vocês vão se enfundecer.
— Une coisinhe magrele como você? — Lontra disse, passando o
braço ao redor de Inocente. — E dure? Deve ser como mastigar
acácia-bastarda.
— Você não quer ir? — perguntou Luxemburgo, com sua toga azul
esvoaçante. — Diga, não se procupe. Se não está na hora, espere.
Não estamo nos beliscando pra você escapar da gente.
Inocente torceu o nariz, chutando umas pedras com as botas que
pareciam novas.
— Clarquessim eu quero ir. Não é que estou ansiose de me livrar
de vocês, palermas. Apenas que minhes dues melhores amigues já
são jovens. Acho que é a hora. Fico sonhando com isso. Além
disso, que nome coisinho vocês me deram. Eu devo ser inocente do
quê?
— Você disse que sonhou em ir duas vezes — Lontra comentou.
— Isso parece o suficiente. Ninguém nunca sente certeza yin-yang.
— Sobre isso e sobre qualquer coisa nesse mundo. — Abelha
acarinhou o ombro da criança. — Você deve me culpar por isso.
Inocente foi um nome do coração, em parte por causa de Luciente,
que fala espanhol; tínhamo sido amantes por pouco tempo. Em
parte, porque gosto do som, belo na boca. Finalmente, eu tinha
acabado de terminar um período de ajuda na reconstrução das
antigas colônias quando voltei e me inscrevi pra ser mãe. Tinha
viajado por um ano pela América Latina. Isso me fez meditar sobre
aqueles séculos de estupro da terra, as riquezas roubadas, a
violência e a fome que duraram por gerações... em direção a um
dia, quando toda a pilhagem vai ser curada... Foi assim que te
nomeamo. Depende de você agora melhorar isso. — Abelha recuou
um pouco. — Você afiou sua faca?
— Clarquessim. Conferi tudo. Cantil, corda do meu arco, pontas
das flechas. — Inocente olhou para Connie. — Você vem também?
— Não sei — ela respondeu. — Pra onde exatamente você vai?
— Pra onde foi decidido. — Inocente deu uma risada seca e
agitada.
— Inocente vai ser deixade em uma das áreas selvagens que
usamo — Luciente disse. — É assim que transitamo da infância pra
ser membre efetive da comunidade.
— Deixar ela no meio do mato? Sozinha? — Sua voz se alterou.
— Clarquessim vou sozinhe — Inocente disse com indignação. —
Senão, qual seria o objetivo? Já fui bastante pro mato.
— Ela fica lá de um dia pro outro? — Connie se virou para Abelha.
Eles deviam ser doidos.
— Por uma semana. Então as tias que pessoa selecionou como
conselheires para os próximos anos vão buscar sôa. Não a gente.
— Lontra arrumou o penteado elaborado.
— Mas elus não vão poder falar comigo tresmês depois que eu
voltar. — Inocente parecia animadíssima. — É proibido.
— A menos que a gente esqueça que não somo mais mães e
pessoa seja une membre igual. Tresmês normalmente dá uma
segurança sólida e quebra velhos hábitos de dependência — Lontra
continuou.
— Vamos dizer que ela quebre a perna. Que seja picada por uma
cobra. Que ela tenha apendicite!
Abelha sorriu para ela, quase triste.
— Arriscamo. Não encontramo outra maneira de quebrar
dependências sem algum risco. O que não podemo arriscar é nosso
pessoal preso a velhos padrões, brigando durante o que vocês
chamava de adolescência.
— Um rito de passagem que não envolve algum perigo é um
presente bom demais que não cria confiança — Luxemburgo disse
com sua voz suave e profunda.
— Estou com medo de ir, mas quero muito, clarquessim. Como
assim você não fala comigo? Você só fala com elus — Inocente
disse para Connie.
— Como você pode saber onde está se metendo? Você é apenas
uma criança! — Ela se virou para Abelha. — É criminoso deixar ela
no meio do mato com os animais, plantas venenosas e quem sabe o
que mais? Como ela vai comer, se limpar e se cuidar?
— Sei o que comer no mato! Tenho doze anos e meio, não quatro.
Posso voar um flutuador sem ajuda, me pergunte se não consigo!
Só tem mais uma pessoa de doze anos que consegue voar sozinhe
em toda região. Você não pode querer que eu passe minha vida
toda com um nome que não mereci, que está comigo desde quando
eu nem era consciente. Como posso me aprofundar em euzinhe e
desenvolver minhas qualidades se eu não descobrir quem sou
sozinhe, se sempre estou com os outros? Intão?
— Entendo que é estranho pra você. — Luciente pegou Connie
pela mão. — Mas os seus jovens permaneciam economicamente
dependentes muito tempo depois de estarem prontos pro trabalho.
Nós libertamo nossas crianças.
— Venha ver a gente partir. É a hora. — Abelha aprumou as
dobras do seu roupão. — Venha com a gente no flutuador se quiser,
ou fique com Luciente e pessoa pode te mostrar a casa das
crianças. Temo uma hora de voo. Queremo que Inocente tenha
horas de luz do sol para fixar acampamento, encontrar alimento e se
familiarizar com a área.
Inocente foi caminhando e os outros seguiram atrás. Logo eles
estavam caminhando juntos, Inocente de braços dados com
Luxemburgo, que murmurava em seu ouvido conselhos e
precauções, enquanto Luciente e Lontra andavam juntas, Luciente
contando uma história detalhada sobre a nomeação de Neruda.
— Vocês vão jogar ela de paraquedas na floresta e vão voltar? —
Connie perguntou para Abelha.
— Paraquedas? Nós descemo até o solo com sôa e marcamo o
local com uma boia de rádio e um grande sinalizador vermelho.
Luciente se aproximou, sorrindo.
— Ainda não colocamo nenhuma criança em situação ruim. Você
tem razão, acidentes acontecem... Mas por que controlar tudo?
Compreende, achamo que controle interfere no prazer e no comunir,
e nos importamo com os dois.
— Não vou junto. Não quero ver uma criança ser abandonada.
— Connie, você não consegue perceber que Inocente quer ir?
— As crianças podem sofrer lavagem cerebral pra quererem
qualquer porcaria. Minha própria filha chorou por uma semana
querendo um boneco que andava que ela viu na televisão, mas
custava mais do que podia acreditar. Eu deveria ter ficado duas
semanas sem ter o que comer pra comprar o brinquedo e fazer ela
parar de chorar?
— Vamo ver todes partirem. Vão ficar mais felizes sozinhes. É
bonito o fim da maternidade. Percebe, nós transpiramo nossos
rituais juntos. Mudamo, mudamo eles o tempo todo. Mas eles
corporizam nosso senso do que é bom.
Abelha gentilmente ajustou a jaqueta de Inocente.
— Não demore ou se distraia até que tenha construído o abrigo,
compreende?
Assim que terminaram uma ladeira, havia uma subida maior.
Incrustada nas laterais estava uma estrutura que parecia um hangar,
com o teto aberto como se fosse uma caixa de papelão aberta. Ali
havia três máquinas que lembravam gafanhotos, mas do tamanho
de helicópteros da polícia. O hangar parecia ter sido construído para
acomodar muito mais do que aquelas três máquinas, como se em
outros momentos houvesse mais delas ou alguma outra coisa.
Uma mulher loira, usando macacão, veio até eles do flutuador
mais à frente. Era bronzeada, seu cabelo estava preso em uma
bandana, o nariz avermelhado pelo sol, olhos grandes e azuis, com
os braços definidos cobertos por uma crosta de graxa.
— Intão, uma boa nomeação, Inocente. Já vai agora?
— Você aprontou o flutuador, Estrela Vermelha?
— Tudo conferido. Vai voar hoje?
— Ahá! Eles disseram que não. O que você acha?
— Você nem sabe pra onde está indo, ou já adivinhou?
— Se eu tivesse adivinhado, já teriam mudado.
Aos poucos, outras pessoas chegaram ao hangar vindas dos
campos de milho, dos jardins altamente cultivados, da comideira, da
criadeira, das cabanas espalhadas pelos jardins, dos prédios sem
forma que eles chamavam de recém-crescidos, das docas no rio —
onde ela podia ver barcos de pesca, convencionais e estranhos, que
não tocavam na água, além de equipamentos de mergulho, redes e
molinetes. Abraçavam Abelha, Lontra e Luxemburgo e aguardavam
Inocente terminar de inspecionar a máquina para que pudessem
cumprimentá-la. Luciente ficou com Connie na ladeira, um pouco
afastadas. Parecia que era uma ocasião um tanto formal, ainda que
familiar, de um grande clã se despedindo de alguém que iria para a
guerra ou tinha se casado. Claro que eles eram muitos para serem
uma família de verdade. Nem mesmo seu clã dos Camacho, lá em
El Paso, com um reforço adicional de visitas vindas de Chihuahua,
conseguiu chegar àquele número para vê-los partir no velho Ford
para Chicago, na promessa de trabalho nas metalúrgicas — essa foi
a última vez que ela tinha visto no mesmo lugar tanta gente do
mesmo sangue junta.
Eles, porém, não eram assim. Ninguém ali sabia o que isso
significava, só agiam como se fossem parentes. Estavam se
beijando e se abraçando e Lontra começou a chorar. Inocente se
afastou dela, talvez por vergonha, indo mexer no flutuador e
deixando as pessoas a cumprimentarem. Mesmo ela não parecia
achar os abraços e as lágrimas ruins. Luciente tinha deixado Connie
e ido abraçar Abelha, e os dois choravam. Gordas lágrimas corriam
pelo rosto largo dele. Imagine se Claud choraria! Mesmo depois de
o sentenciarem, ele tinha sorrido e dado de ombros e dito com o
canto da boca: “Merda, podia ser pior. O tempo é difícil, mas você
cumpre e já era”. De novo eles pareciam crianças para Connie, até
os homens. Só Inocente não chorou, teimosamente animada.
— Ai puxa, ai vida. — Assoando o nariz em um lenço multicolorido,
Luciente subiu até onde ela estava, suspirando. Abelha e Lebre,
aquele moleque magrelo e irrequieto, que também era amante de
Luciente, estavam abraçados.
— Luciente, às vezes uma criança deve se virar sem as mães. E
se alguém morre? E se alguém vai embora? O que aconteceria com
a criança se você fosse, vamos dizer, pra Califórnia? Se é que ela
não afundou no mar. Você pode ir ou tem que ficar aqui? De
qualquer forma, você poderia levar sua filha ou suas comães não
iriam deixar?
— Ah, tantas perguntas! Clarquessim eu posso ir se quiser. Como
eu iria trabalhar bem, contribuir com minha vila se não quisesse
estar aqui? Tentamo não ir quando somo mães. Mas se encasqueto
que tenho que ir, Alvorada iria ficar, porque partir seria um terrível
desterro. Então, se a criança já tiver uma certa idade, pessoa
escolhe uma outra terceira mãe. Se não, a gente voluntaria. Toda
criança tem três. Se morremo, acontece o mesmo. — Novamente
Luciente assoou o nariz, de um jeito barulhento, no lenço com
padrões complexos e espalhafatosos. “Um lenço que foi presente”,
Connie pensou. “Aposto que as pessoas ainda dão lenços de
presente quando não conseguem pensar em outra coisa”.
O movimento de entra e sai, os cumprimentos e despedidas, os
abraços e o choro, os tapinhas nas costas e os apertos de mão
atingiram o clímax, e Abelha, Lontra e Luxemburgo finalmente
subiram no flutuador com Inocente. Luxemburgo pilotava. Todos
acenaram e gritaram. Cestas de lanche apareceram e até uma
garrafa de champanhe.
— Volte com um nome melhor!
— Até quando, Inocente. Vou na semana que vem!
— Toma cuidado!
— Tenha um bom sonho!
— Não repare na solidão!
— Te vemo em uma semana!
Por fim, o flutuador, pintado com desenhos retorcidos em tons
pastéis, ejetou um aparato parecido com uma bolsa acima dele e
lentamente foi subindo, em silêncio. Ele subiu uns 300 metros e
então voou, com outro mecanismo que girava e assobiava.
Graciosamente vagueou pelo ar como se fosse um balão e logo
desapareceu. Mais uma vez Luciente assoou o nariz no lenço de
muitas cores e enfiou em um bolso no momento em que Lebre se
afastava da bagunça para abraçá-la. Sim, eles não eram como os
anglos, eram mais como os chicanos ou porto-riquenhos, com
aqueles toques, as crianças no meio de tudo, o sentimento de
comunidade e fiesta. Depois de toda aquela comoção, todos foram
embora, alegres e serenados. Lebre foi andando enquanto
massageava a nuca de Luciente.
— Luciente, esse lenço... foi um presente? — Connie perguntou.
— Esse? Clarquessim, Alvorada que fez pelo Dia das Mães.
— Dia das Mães? — Ela riu. — Vocês ainda têm o Dia das Mães?
— Tem dezenas e dezenas de feriados — Lebre se gabou. — Por
causa de libertadores importantes. Pelos eventos relevantes, como
a domesticação do milho ou do trigo. A virada do sol do norte pro
sul. Batalhas famosas... Sua sociedade não usa rituais para
corporificar o que acha ser bom? Como jogos de futebol, paradas,
executações públicas...
— Não fazemos isso! Isso foi no passado, muito tempo atrás.
— Eu pensei que nos seus hologras primitivos...
— Na tv, você quer dizer? Pelo menos tinha programas regulares!
— Você não assistia bombardeios, incêndios, facadas? Pessoas
atirando umas nas outras? Em todo grupo, espectadeires
corporificam suas ideias do que é bom. Sempre as pessoas tentam
ser boas quando veem, não é? — Sua mão livre balançava.
Caminhavam até a vila lá embaixo.
— Não sei. Tem uma ideia religiosa de ser bom, um pouco a ver
com o que você chama de bom, ser gentil e preocupado com o seu
próximo. Mas pra ser um bom homem, por exemplo, um homem
deve ser... forte, resistente ao álcool, atraente pras mulheres, capaz
de bater em outros homens, sortudo, durão, macho, a gente diz,
muy hombre... não ser feito de trouxa, não se envolver, querer ser o
primeiro, ganhar um bom salário. Pra se dar bem, você pisa nas
outras pessoas, como meu irmão Luis. Você se agarra nos que
estão em cima e pisa nos que ficam por baixo... — Ela deu de
ombros, meio cansada, passando pelas cabanas rodeadas por
parreiras e roseiras, os pomares carregados de frutas verdes, os
tanques cobertos, nos quais peixes deslizavam sob domos
translúcidos. Parecia que o crescimento se espalhava pela terra. —
Bondade? Minha mãe era boa. Mas o que adiantou pra ela além de
ter sangrado até a morte aos quarenta e quatro anos? Parecia que
ela tinha sessenta. — Ela quis muito um cigarro, mas não tinha visto
nenhum ali e se lembrou do medo de Luciente. — Eu nunca fui
capaz de fazer o bem a ponto de me sentir boa, nem capaz de fazer
o mal a ponto de ser bom pra mim.
Uma mulher mais velha se aproximou, estendendo a mão para
Connie.
— Sou Carvalho Branco. Trabalho na mesma base que Abelha e
Luciente. Elus me contaram sobre você, compreende, fofocamo
sobre você. Mas nunca nos conhecemo. Minha criança nomeou
pessoa mesma esse mês também, quer dizer, pessoa que era
minha criança. Agora é Relâmpago e não podemo nos falar ainda
por sete semanas.
— Relâmpago? — Luciente mostrou interesse. — Espero que não
estejamo em um verão de nomes titânicos. Luz Saltitante, Bola de
Fogo Estupenda, A Terra Dança, Estrelas Paradas, Fervor Heróico
Revolucionário, Mao Susan B. Ferenzi, Liberdade pela Luta
Constante.
— Acredito que você escolheu Luciente logo de cara — Lebre
murmurou, dando um puxão no cabelo dela. — Acho que você era
sensível, mesmo aos treze anos, pra escolher um nome besta.
— Na verdade, me chamei de Luz Branca quando vim da
nomeação, então você vê que não desviei muito. Mas, confessando,
eu me deixei levar pelas estranhezas de sempre. Quando fiquei com
Diana pela primeira vez, me chamei de Ártemis.
— Na verdade, o gêmeo de Ártemis era Apolo. Ou você queria ser
a Diana? — Lebre se movia ao lado delas, meio desengonçado,
rebolando. — Você queria a Lua, Luci, em vez de se reconhecer
como uma criatura pragmática do dia.
— Euzinhe fui Pantera por um tempo — disse Carvalho Branco. —
Como se eu algum dia tivesse visto uma, fora de um hologra. E
Liríope, uma planta que estávamo cultivando pro controle de erosão
em antigos pontos de batalha quando cheguei na nossa base.
— Acho lindo esse — Lebre disse. — Liríope... — Saltou para
frente e assumiu a posição de uma planta florescendo: cabeça
pendendo para trás, boca aberta, braços arqueados acima da
cabeça.
— Dioneia, a planta carnívora — disse Carvalho Branco. — Não
me provoque. Lembro bem quando você se mudou pra cá, ficava
com um nome por semana.
— Lorde Byron, O que Faz a Onda, Lua Escura, Ganso
Selvagem... — Luciente murmurou.
— E eu entrei na comideira um dia e você me disse que ia me dar
o nome da semana, Costelinha Selvagem. Foi a primeira vez que te
notei. Agora, melhor você esquecer, tenho muito mais malícia que
você! — Ele saltou até o lado de Connie. — Você nunca teve outro
nome? Ou você fica mudando aquele segundo nome?
Caminhavam por um caminho largo margeando o rio de maré. A
cada quinze metros havia um banco de madeira. Carvalho Branco
sentou-se e, apoiada na mesa, convidou os outros a olharem para o
fluxo das correntes, a maré subindo lentamente. Um barco daqueles
suspensos passou por eles, descendo o rio contra a maré.
— É engraçado, mas o jeito que vocês falam me lembra das
pessoas nas... na instituição onde estou encarcerada. Lá a gente
não fala com os outros em grande parte do tempo, mas tem...
menos barreiras do que do lado de fora. Enfim, de uma certa forma,
sempre tive três nomes dentro de mim. Consuelo, meu nome de
batismo. Consuelo é uma mulher mexicana, serva das servas,
silenciosa como argila. A mulher que sofre, que suporta e resiste.
Daí eu sou Connie, que conseguiu fazer dois anos de faculdade, até
que a Consuelo engravidou. Connie teve trabalhos decentes de
tempos em tempos e brigou com o governo pra ter um pouco mais
de dinheiro pra filha. Foi Connie que me colocou em um ônibus
quando tive que deixar Chicago. Foi ela que se casou com o Eddie,
achando que era o melhor a se fazer. E por fim sou Conchita, a
parte de mim mais malvada e despudorada, que foi parar na cadeia,
no manicômio, que não ama nenhum homem bom, que machucou a
filha...
Quando ela parou de repente, percebeu que os outros não
pareciam assustados nem julgadores. Como de costume, Luciente
foi a primeira a falar:
— Talvez Diana consiga te ajudar a juntar as três mulheres numa
só.
— Eu tinha uma personalidade minguante aos treze anos. Não
achava que deveria querer as coisas que eu queria, então coloquei
elas pra fora de mim, pra me afligir e me ameaçar — Lebre falou
com um tom de ironia, mas não uma ironia direcionada a ela. — Eu
me dilacerei tanto, entristeci que tinha passado pela minha
nomeação. Queria voltar pra casa das crianças, com minhas mães
prestes a aparecer quando eu chamava. Comecei a treinar pra ser
mergulhadore, mas não queria aquilo. Ao mesmo tempo, não
conseguia sentir o que eu realmente queria... Você por dentro não
acredita que é três mulheres; essa é uma forma útil de falar sobre
sua vida. Mas eu acreditava mesmo que o oceano estava tentando
me afogar, porque me senti engolide pelo treinamento...
— O que aconteceu com você? — Connie perguntou.
— Fiquei maluque pelo medo. Na casa de loucura, conheci
Bolívar, e pessoa foi boa pra mim e me ensinou a dizer “eu quero,
eu quero”. Tinha brincado muito quando era criança com tintas e
hologras e me senti... muito vívide então. Eu tinha que fazer aquilo
no centro da minha vida. Tinha que seguir minha intui e até ousar
mais. Então Bolívar e eu fomo estudar com Marika de Amherst.
Estudei depois em Provincetown com Peixe Negro. Veja, sou do tipo
carente e, toda vez que me falta, eu adiciono. Da vez seguinte que
me desarticulei, me agarrei em Luciente.
— Veio de Fall River? — Carvalho Branco perguntou a ele, que
anuiu.
— Mudei pra cá pra ficar com Bolívar.
— Sorte nossa. — Carvalho Branco sorriu. — Não pelo seu
otimismo de sempre, mas você faz coisas bonitas e hologras fortes.
Na oficina ontem eu estava analisando lotes dos novos negativos de
Luciente com a barriga pro sol.
— Carvalho Branco, você me rumina assim — Luciente disse. —
Como pode dizer que é minha barriga?
— Pessoa tem uma barriga bonita — Lebre falou. — Gosto de
barrigas redondas e bonitas. Como a sua, Carvalho Branco.
Eles flertavam na frente de Luciente e ninguém parecia se
importar. Carvalho Branco devia ter uns vinte e cinco anos a mais
que Lebre, apesar de serem todos tão atléticos que era difícil dizer
com certeza. O cabelo de Carvalho Branco era abundante e estava
solto, mas ela tinha uma rede de linhas de expressão ao redor da
boca e dos olhos.
O cognescedor de Carvalho Branco fez um barulho.
— Aqui estou, Carvalho Branco — ela disse para o aparelho.
— Intão, vamo correr pra fazer o novo teste hoje ou não? — Uma
voz agitada subiu do pulso dela. — Estamo coxeando sem Abelha
até as três horas e Luciente até sabe-se lá quando.
— Voando. — Carvalho Branco suspirou. — Desde que começou
a coordenar esses seis, Coridora observa o relógio como se ele
fosse casalar com sôa!
— Sem atiramentos em camaradas. Coridora está fazendo um
bom trabalho — Luciente afirmou. — Mesmo se pessoa tenta me
entregar culpa na bandeja sobre ter sido chamade para esse projeto
temporal. Pena que vocês, palermas, têm que trabalhar duplamente
mais. — Ela fez uma careta que não dava para definir se de
escárnio ou pena.
— Coridora é sua chefe?
— Coordenamo por sorteio — Luciente explicou enquanto
Carvalho Branco corria para longe. — Seismês por vez.
— Por que vocês fazem assim? — Connie perguntou. — Algumas
pessoas sabem coordenar um laboratório e outros não sabem,
certo?
— Quando a gente decide que está amadurecide pra se juntar a
uma base de trabalho, nos fundimo como membres efetives.
Compatilhamo as tarefas divertidas e as enfadonhas. Não
acreditamo que dizer pra uma pessoa o que fazer seja uma
habilidade real do mundo. Agora, pra fazer parte de uma base...
algumas pessoas ficam onde estudaram. Outras vão embora pra
estudar e depois voltam pra casa...
— O lugar importa pra nós — disse Lebre. — Um sentimento com
a nossa terra, vila, base e família. Somo muito enraizades. As
pessoas do seu tempo não eram? Foi o que me disseram, já que me
falta viajação no tempo, como Luciente. Prassôa, isso também não
serve pra nada. Aposto que pessoa fala pelos cotovelos no seu
século e não atenta nada.
— Onde estou agora não tem muito pra ver... — Connie riu. —
Você... você ficou louco uma segunda vez?
— Lebre tem ciúmes da minha missão. Lebre capta como você,
mas pessoa transmuta tudo!... Sempre escolho captadories! —
Luciente franziu o cenho, olhando para as mãos grandes dela.
— Tenho ciúmes dos dons de todo mundo. Queria ser todo mundo
e sentir tudo e fazer tudo. Onde quer que esteja, onde não estou me
atormenta. Desde que eu não tenha que acordar cedo demais pra
fazer. — Ele se espreguiçou languidamente. — A segunda vez que
louqueci, Diana me ajudou. Tenho certeza de que Luci falou sobre
Diana. Bastante.
— A gente tem ciúmes do passado une de outre — Luciente disse
com uma tristeza repentina. — Vamo ter que ter uma
desconflituação algum dia.
— Não tenho medo de desconflituar, toda aquela atença... Diana
estava acabando de emergir da jornada dissôa, e foi mais atenciose
do que posso admitir. Precisei só de doismês e saí mais forte da
cura do que da primeira vez.
— Você conta pra todo mundo que conhece que foi louco duas
vezes? — Ela se ressentiu do tom casual e quase orgulhoso dele.
Ela carregava aquele fato radioativo por Nova Iorque como uma
ferida escondida. Saber que tinha estado em uma instituição
assustava as pessoas, e como assustava. Era arriscado demais dar-
lhe um emprego; temiam que a loucura fosse algo contagioso.
Lebre olhou nos seus olhos com uma curiosidade penetrante.
— Por que não? Por que esconder isso de você e não que estudei
com Marika?
— No meu tempo, você teria vergonha... Quando as pessoas
descobrem, elas se afastam o mais rápido que podem.
Abruptamente. Depois, se elas têm que lidar comigo, ficam
pensando que vou perder as estribeiras e começar a subir pelas
paredes ou pular da janela. Ou não acreditam em nada do que digo.
— As pessoas do seu tempo me confundem, não parecem ter uma
intrasabedoria forte nem uma extroversão forte. Exceto os casais.
Díades instáveis, ferozes e vorazes, tentando corporificar o laço
original mãe-criança. Parece trágico e insensato!
— Conheço Connie há algum tempo, e eu não chamaria pessoa
de insensate. —Luciente disse rápido. — Connie tem uma forte
capacidade de responder a outres. Não devemo soar arrogantes
porque a gente tem uma sociedade mais evoluída, afinal, viemo
deles.
— Mais evoluída?! — Connie bufou. — Diria que as coisas
andaram pra trás.
— Nossa tecnologia não se desenvolveu como uma linha reta da
de vocês — Luciente disse, com um ar de seriedade, a encarando
com aqueles olhos negros e brilhantes, contente, alerta de uma
maneira que colocava uma impostação graciosa em cada palavra.
— A gente tem recursos limitados. Planejamo de forma cooperativa.
Não podemo nos permitir desperdiçar nada. Pode dizer que
nossas... você diria religião?... ideias nos fazem ver as pessoas em
parceria com a água, as aves, os peixes, as árvores.
— Aprendemo muito de sociedades que as pessoas chamavam de
primitivas. Tecnicamente primitivas, mas socialmente sofisticadas.
— Lebre andava para os lados, franzindo o cenho. — Buscamo
aprender com culturas que lidavam com a resolução de conflitos,
promoção da cooperação, envelhecimento, desenvolvimento de um
senso de comunidade, adoecimento, senilidade, loucura, morte...
— Pois é, mas vocês ainda enlouquecem. Ainda adoecem.
Envelhecem. Morrem. Pensei que daqui a cento e cinquenta anos
alguns desses problemas teriam sido de alguma forma resolvidos.
— Mas, Connie, alguns desses problemas você só resolve se
parar de ser humano e se tornar metal, plástico, um robô
computador. Será que morrer é um problema? — Luciente se
levantou para dar uma última e longa olhada no rio. — Venha.
Abelha me incitou a te levar pra casa das crianças.
— Não posso resistir a isso! Uma casa pra crianças? — Suas
pernas ficaram pesadas. De repente, ela estava escorregando de
volta para seu corpo real no seu próprio tempo. Uma onda de
tristeza fluiu pela sua barriga e quadril. Pior do que nunca ter sido
amada de novo foi nunca ter segurado uma criança contra o peito
novamente. Sua criança, carne da sua carne. Sentiu-se enfraquecer,
o que provocou aquele deslize da conexão com Luciente, voltando
ao hospital. Por um instante, respirou o calor sufocante da solitária,
sentiu os odores de fezes antigas, de corpos enjaulados e
amedrontados. Ela lutou como uma nadadora que afunda. Lançou
um apelo silencioso para Luciente: “me ajuda!”. Por um longo e
nauseante instante, só viu tudo enevoado e então não estava em
lugar algum, perdida e apavorada.
CAPÍTULO 7

Lebre estava de pé sobre ela, ajudando-a a se levantar, seu rosto


magro cheio de boa intenção. Ele a apoiou em seu corpo, num
abraço forte com seu braço fino enquanto a outra mão gentilmente
tirava o cabelo dela da frente dos olhos.
— Não entristeça, Pimenta e Sal, não suma da gente. — O rosto
dela estava alinhado com a camisa de trabalho desabotoada dele, o
peito bronzeado cheio de pelos cor de cobre, e a voz dele a fez se
arrepiar toda. — Seria estúpido se a gente não sentisse que você
está confinade contra vontade, que você se magoa e entristece lá e
que ninguém parece querer te ajudar a se curar. Que te dão drogas
que machucam seu corpo. Aproveite conosco. Não suma por dor
antiga e retorne pra dor presente. Sintasincasa aqui um pouco.
Sem erro, enquanto a voz dele ouriçava a pele dela e sua mão
massageava-lhe a nuca, pedindo que ela relaxasse, Connie sentiu a
ereção dele, o endurecimento contra seu corpo. Ela se debateu para
se livrar e ele instantaneamente a liberou.
— Eu capto sexualmente. — Ele deu de ombros. — Não aborreça
mais. Verdadeiramente, eu queria te acalmar.
— Ele não te deixa louca de ciúmes? Por que você deixa que ele
aja desse jeito? — ela perguntou para Luciente, que estava
tentando segurar um ataque de riso.
— Lebre não fez por mal; pessoa tentava te consolar, mas quer
casalar com todo mundo.
— Ei, não todo mundo. Não o tempo todo.
— Só a maioria das pessoas a maior parte do tempo. — Luciente
entrelaçou um braço com o dela e o outro com o de Lebre. — Pra
casa das crianças.
Quando uma cantada não era uma cantada? Quando artistas de
dezenove anos abraçavam mulheres duas vezes mais velhas saídas
do manicômio? Pequena Pimenta e Sal: que coisa estranha chamá-
la assim, por causa das raízes brancas do cabelo dela crescendo
desordenadas junto ao preto. Aquilo a lembrava de novo da família
no Texas, porque eles inventavam apelidos grosseiros uns para os
outros, como Um Braço ou Velho Paspalho. Os anglos achavam
aquilo meio cruel, e ela tinha aprendido a aceitar o julgamento e
esperar um verniz de educação que impedia de admitir os defeitos
alheios.
— Vocês não têm que trabalhar? — ela perguntou meio irritada.
Passavam por estufas meio enterradas, ouvindo o som de quedas
d’água. — Todos aqueles adultos parando tudo pra ver uma pré-
adolescente ir dar um passeio. Vocês têm uma atitude meio
mañana, muita preguiça.
— A gente tem uma alta produção! — Os olhos negros de Luciente
brilharam de indignação. — Foz-de-Mattapoisett exporta proteínas
em linguados, arenques, alosas cinzentas, tartarugas, gansos, patos
e nosso próprio queijo roqueforte. Manufaturamo casacos de pena
de ganso, edredons e travesseiros. Somo um centro criador de
plantas pra esse setor todo: abóboras, pepinos, feijão e milho.
Construímo tralhadoras, equipamento de mergulho e as melhores
redes deste lado de Orleans, em Cape Cod. Além de tudo,
exportamo lindos poemas, trabalhos manuais, hologras, rituais,
caldos e um novo estilo de cozinhar sopa de tartaruga.
— Mas por que não tem ninguém com pressa? Por que as
crianças tão sempre por perto? Como podem desperdiçar tanto
tempo conversando?
— Quantas horas demora pra cultivar alimento e fazer objetos
úteis? — Lebre sacudia os braços para cima e para baixo. — Além
disso, cuidamo da criadeira, cozinhamo na comideira, cuidamo dos
animais, fazemo a rotina básica de limpar, politicar e encontrar. Isso
nos deixa horas pra conversar, estudar, brincar, amar e aproveitar o
rio.
— Na primavera, plantamo; na colheita, quando as tempestades
vêm, quando alguma crise explode, trabalhamo, ficamo até
doloridos e caímo de cansaço... Conheço as velhas lendas sobre
como tinham que se esfolar o tempo todo. Como foi longa a luta pra
acabar com isso e mudar as coisas. Depois, que bagunça foi o yin-
yang da coisa toda do pico até o nível do mar. — Luciente acenou
para o horizonte. — Agora a gente não tem que se preocupar tanto
na vida comum... Compreende, depois que dispensamo os trabalhos
de dizer pras pessoas o que fazer, contar o dinheiro e mover ele pra
lá e pra cá, paramo de obrigar as pessoas de fazerem o que elas
não queriam ou punir elas por fazerem o que queriam e assim temo
muitas pessoas pra trabalhar. Crianças trabalham, idoses trabalham,
todes trabalham. Nós damo muito trabalho pra poder alimentar todo
mundo sem destruir o solo, mantendo a saúde dele e a fertilidade.
Com quase todo mundo fazendo isso meio período, ninguém morre
de trabalhar ou rala do nascer ao pôr do sol, como os antigos
trabalhadories rurais... Exemplo, em março eu trabalho dezesseis
horas. Em dezembro, quatro...
— Você disse que fazem tralhadoras, edredons. Cadê as fábricas?
— Acabamo de passar pela fábrica de edredom e travesseiro.
— Posso ver? — Quando conheceu o Eddie, ela estava
trabalhando em um galpão onde muitas hispânicas costuravam
roupas infantis. Lebre foi na frente e uma porta se abriu. Dentro do
cubo cor pastel ela não viu ninguém. O maquinário fazia o barulho
que ela tinha ouvido na vila. — É tudo automatizado? — ela gritou.
— Clarquessim — Lebre respondeu. — Quem quer encher
travesseiro? Eu rasguei um uma vez batendo na cabeça de Bolívar.
Que bagunça! Entra no nariz. E as jaquetas forradas são quentes,
mas quem ia querer ficar forrando cada uma?
— São forrados primeiro, depois costurados — ela disse. — Então
ninguém trabalha nessa fábrica? Nem mesmo um supervisor?
— É mecânico — Luciente afirmou. — Tem une analisadore que
supervisiona, com monitoramento constante e feedback. Em
operações como a criadeira, quase tudo é automatizado, mas
precisamo de presença humana, porque erros são sérios demais.
— Isso funciona com energia solar?
— Não, gás metano da compostagem dos restos.
— Certo, vocês podem automatizar uma fábrica inteira — ela disse
enquanto voltavam para o lado de fora. — Então por que não vejo
as pessoas dando duro na plantação de brócolis, tirando as
lagartas? Por que está todo mundo indo pra lá e pra cá a pé ou de
bicicleta?
— A nossa energia vem tanto do sol, tanto do vento, da
decomposição dos resíduos, das ondas, do rio, do álcool das
plantas, do gás retirado da madeira. — Luciente contava nos dedos.
— Isso é uma quantidade fixa. Fabricação e mineração são
melhores se feitas por máquinas. Quem quer ir pro fundo da terra,
se arrastar em túneis, respirando poeira de rocha e nunca ver o sol?
Quem quer se sentar numa fábrica costurando os mesmos três ou
quatro padrões de edredons?
— Tem dez, na verdade — disse Lebre. — Já contei.
— Só você já se deitou em camas o suficiente para ter certeza —
Luciente disse com um sorriso meio disfarçado. Andaram na direção
de um grupo de edifícios sem forma definida, com curvas sinuosas
que sugeriam uma montanha de ovos, mas com algumas estruturas
retorcidas, arcos e arcadas altas. O prédio mais próximo tinha cor
de terracota. Uma parreira se estendia por todo o lado sul, com
flores grandes e aveludadas que soltavam uma fragrância de
cravos. De cada saliência podia-se ver alimentadores de pássaros
pendurados, nas janelas, nos postes. O teto estava lotado de casas
para pássaros e um pombal, como se a alvenaria fosse interrompida
para os pombos passarem voando e piando.
Pequenos jardins ladeavam aquele amontoado de edifícios, com
vegetais e flores misturados, tomateiros crescendo com roseiras e
pés de cebola, amores-perfeitos e pés de feijão. Alguns eram
plantados sem nenhuma divisória e outros eram rodeados por
cercas finas e brilhantes como teias de aranha. No horizonte, perto
da baía, uma massa de nuvens cinzas se formava e crescia,
enquanto o vento ficava mais forte.
— Cheiro de chuva — Lebre falou. — O dia está virando.
— Se vai chover, espero que Inocente tenha tempo de completar o
abrigo. — Luciente observou as nuvens. — Espero que Abelha e
Lontra voltem antes da tempestade. Lux também, quer dizer —
adicionou meio culpada.
— Quando estava na minha nomeação, choveu todo maldito dia —
Lebre disse. — Devia ter voltado como Ratazana Afogada.
Em um dos jardins cercados pelas teias de aranha, um velho com
cabelo espesso e branco e um rosto todo sulcado, braços como
toras de madeira flutuantes escavados pelo sal e pelo vento, estava
colhendo e colocando ervilhas em uma cesta e ervas daninhas em
outra, com duas crianças de nove ou dez anos trabalhando de cada
lado.
— Como assim elas não estão na escola? — Connie perguntou. —
Já começaram as férias de verão?
— Isso é a escola — Luciente falou, levando Connie para mais
perto deles.
— Esse aqui é espinafre selvagem, não? — uma das crianças
estava perguntando. — Dá pra comer?
— Clarquessim. Olhe pro formato da flor da ervilha. A maioria dos
legumes tem flores irregulares com cinco pétalas, está vendo, os
dois mais baixos se juntam formando uma quilha, como as quilhas
dos barcos pesqueiros. Os dois dos lados são como asas abertas.
Então vocês têm um em cima. A maioria dos legumes tem folhas
desse jeito.
— Alternado. Composto. Com essas coisas enroladas que
seguram...?
— Gavinhas. Em vez disso, alguns têm espinhos. Depois que
acabar de tirar as ervas daninhas, vamo ver uma árvore que evoluiu
como as leguminosas, que tem espinhos de alguns centímetros. —
Os dedos longos dele mostravam o tamanho. Assim que
prosseguiram, Connie disse:
— Mas elas não podem aprender tanto quanto aprenderiam em
uma sala de aula, com um livro!
— Elus sabem ler. Todo mundo sabe com quatro ou cinco anos —
disse Lebre. — Mas quem quer crescer com uma cabeça cheia de
fatos em caixas? Nunca saímo da escola e vamo trabalhar. Sempre
estamo trabalhando, sempre estudando. Pensamo que o que
pessoa acha que sabe deve ser exercitado o tempo todo, usado em
favor do que as pessoas precisam. Nós nos importamo muito em
como as coisas são feitas.
— A cada sete anos a gente pega um ano sabático — Luciente
completou. — Ficamo fora da produção por um ano e só ficamo
responsáveis pelas coisas de família. Algumas pessoas vão estudar
no seu campo. Outres aprendem línguas ou viajam, eremitam no
meio do mato. Perseguem alguma linha de pesquisa pessoal, ou
pintam, ou escrevem um livro.
— Vejo muitas pessoas velhas aqui. — Connie estava olhando
para os lados. — Esse prédio funciona como um asilo também?
Do lado de fora, em um gramado, o primeiro que ela tinha visto ali,
um círculo de crianças pequenas sentavam-se ao redor de uma
velha com o cabelo em tranças e o rosto com a feição desafiadora
de uma águia. Apesar da idade, ainda tinha alguns dentes — eram
amarelos e irregulares demais para ser dentadura —, e ela estava
contando uma história com uma voz tremulante e dramática.
— Então Fogo Verde veio até Tartaruga da Caixa e quando
Tartaruga da Caixa viu, fechou a caixa dissôa forte com um barulho
de ar. — Suas mãos em forma de garras anciãs se tornaram a
tartaruga fechando. — Fogo Verde se sentou em silêncio sobre os
próprios pés e esperou. E esperou. E esperou. Finalmente,
Tartaruga da Caixa abriu a casca um pedacinho e espiou pra fora.
— Quando era pequeno, essa era minha história favorita — Lebre
falou. — Imaginei que quando fizesse doze anos ia escolher esse
nome, Fogo Verde.
— A cabeça enrugada de Tartaruga da Caixa pra fora da casca e
os olhinhos vermelhos dissôa encararam Fogo Verde. “O que você
quer, ó, de longas pernas?”, perguntou Tartaruga da Caixa. “Quero
aprender a me esconder como você”, disse Fogo Verde. “Se
esconder é fácil quando você sabe como”, disse Tartaruga da Caixa.
“Mas primeiro você deve trocar suas pernas longas que correm
tanto, antes de aprender a se esconder do jeito que eu me
escondo”.
— Safo pessoa mesma inventou esse causo muito tempo atrás —
Lebre estava observando a velha com admiração. — Muites agora
contam essa história, mas ninguém faz melhor. No Quebragelo,
gravei sôa contando com as últimas várias mudanças pro arquivo de
hologra. Os contos de Safo têm grande força e esplendor.
— Nunca respondemo a sua pergunta. — Luciente estalou os
dedos. Passaram por um arco e entraram em uma sala cheia de
livros em prateleiras, telas encaixadas em pequenas alcovas,
mostradores e equipamento de som e imagem e material para artes.
Uma dúzia de crianças estavam ocupadas na sala. Um velho — ou
talvez velha — com o corpo hirsuto e frágil pela idade mostrava para
uma criancinha como fazer funcionar um aparelho de televisão que
cuspia resmas de papel ao toque de um botão. Lebre se afastou
para ir ver o que as crianças estavam fazendo, trabalhando em um
pequeno projetor de hologra. Luciente ficou ao lado dela, dizendo:
— Achamo que crianças e idoses estão ligados. Existe mais
espaço nos dois extremos da vida. A proximidade com o nascimento
e com a morte faz com que tenham uma preocupação comum com
as grandes questões e com padrões básicos. Achamo que idoses,
por causa da distância dos problemas com seu próprio
amadurecimento, possuem mais paciência e podem ficar mais
silencioses para ouvir o que as crianças querem. Mas não todo
mundo que ensina as crianças tem idade avançada; todo mundo
ensina. As crianças trabalham com a gente. Tentamo compartilhar o
que já aprendemo e o que ainda não sabemo... Acho que crescer é
menos misterioso pra nós porque o mundo adulto não é separado.
Que melhor lugar pra aprender anatomia do que uma clínica? Que
melhor lugar pra aprender botânica do que uma plantação de milho?
Que melhor lugar pra estudar mecânica do que uma oficina?
— Como Estrela Vermelha consegue consertar um flutuador com
um monte de crianças ao redor?
— Um monte de crianças? — Luciente sacudiu o cabelo para trás
bruscamente. — Me confunde, admito... O que achamo das crianças
é tão diferente que nos faz desconversar, amigue... Pedimo muito
das crianças, mas... com carinho? Não é o laço unitário que você
tinha com a sua filha, pelo que diz. Tem mais espaço, mais pessoas
pra nos amar. Crescemo perto de nossas mães, mas ficamo perto
de nosses membres, ou de algunes, pelo menos. — Luciente sorriu.
— Tem amigues de trabalho, amigues doces, além de outras
crianças na casa das crianças... É difícil pra mim intrasaber como
seria se eu amasse apenas uma pessoa e tivesse apenas uma alma
pra me amar.
Andando sem rumo pelas salas, ela encontrou algumas com teto
baixo, outras que davam para janelas com vidro olho de peixe,
outras para estufas ou sacadas. Algumas salas desembocavam em
recantos, pequenas escadarias. Outras os levavam para jardins
cheios de plantas, aparatos delicados, relógios de sol e de água,
mapas estelares e telescópios. Uma fonte gorgolejava, na qual três
crianças nuas chapinhavam com um cachorrinho de pelo
encaracolado. Pássaros pulavam nas videiras, carpas deslizavam
num pequeno riacho que fluía por uma sala que zunia com umas
máquinas e terminava num pátio, onde acontecia um projeto de
construção com crianças de sete ou oito anos que empunhavam
miniaturas de martelos, plainas e serrotes.
Em uma sala escura que tinha um cheiro agradável e fresco, uma
garota nua estava escutando ao que ela disse ser uma sonata de
Bach para solo de flauta. Que... maravilhoso era aquilo ali. Uma sala
onde as paredes eram um mosaico de garrafas velhas. Uma sala
toda de tijolos brancos e uns colchonetes velhos no chão. Uma sala
onde uma película fina de gaze, como aquelas cercas de teia de
aranha, separava o lado de dentro do de fora. Por todo lado, as
crianças iam e vinham nas suas brincadeiras ou interagiam com os
adultos, com crianças mais novas ou mais velhas, com cachorros,
coelhos; crianças utilizando o que Luciente disse a ela serem
poderosos microscópios, espectroscópios, scanners moleculares,
leitores genéticos, terminais de computador, lápis de luz, câmera de
hologras de luz e som superleves e transmissores que criavam
imagens tão reais que ela acreditou que fosse mesmo, até passar a
mão através de um elefante no meio da sala, percebendo enfim que
era apenas uma imagem tridimensional. Ela atravessou o elefante
incapaz de evitar que seu coração se acelerasse quando ele
levantou sua cabeça com as presas e bramiu.
— Você acha que só porque não gestamo não podemo amar
nossas crianças — Luciente disse em um tom suave, rouco,
segurando o cotovelo de Connie nas suas mãos calejadas. — Mas
amamo, com todo nosso coração.
O berçário era um cômodo alto e arredondado no andar térreo,
com janelas formando um círculo e um pequeno domo flutuante no
teto; ali os bebês balbuciavam, choravam, babavam e murmuravam.
Uma pessoa jovem com uma bata verde longa e folgada e aberta
dos lados até as coxas estava sentada descalça, tocando um
instrumento de cordas e cantando em contralto e suave, com um
pedal ligado em vários berços que balançavam ao mesmo tempo.
Uma criança estava brincando com um dos bebês, fazendo cócegas
e caretas. Os pequenos dormiam em berços baixos com os estrados
ligados a fivelas que os faziam se mover para frente e para trás.
Connie contou cinco bebês, incluindo um que se esgoelava, e três
berços vazios, também balançando. Barbarossa entrou correndo,
sem fôlego.
— Estou te ouvindo, estou te ouvindo. Você quase fez o
cognescedor pular do meu pulso, pestinha! Que par de pulmões! —
Ele pegou o bebê que chorava. — Elus conseguem te ouvir a cinco
quilômetros daqui na fazenda marinha, seu monstrinho cabeludo. —
Ele sentou-se com o bebê no banco acolchoado perto da janela e
desabotoou a blusa. Então Connie se sentiu nauseada.
Ele tinha seios! Não muito grandes, pequenos seios, como o de
uma mulher de seios pequenos, mas cheios de leite. Com sua barba
ruiva, seu rosto queimado de sol aos quarenta e cinco anos de
idade, olhar austero, nariz longo, lábios finos, ele começou a
amamentar. O bebê parou de chorar e começou a sugar com
voracidade. Uma expressão de alegria e serenidade se espalhou
pelo rosto intelectual de professor de colégio de Barbarossa. Ele se
esqueceu de onde estava, de tudo, e viajou. Os peitos de Connie
doeram com a lembrança. Ela amava dar de mamar — aquela
conexão leitosa profunda e acalorada que parecia começar no seu
útero e se espalhar por todo o abdômen até as pontas dos seus
mamilos escuros. Os seios pesados dela se abriam para o rosto em
flor de Angelina, o pequeno girassol aninhado em seu colo. Ela
estava sendo arrastada pelas correntes daquela conexão íntima e
sensual, mais calma e mais gentil que fazer amor, porém, tão
satisfatória quanto. Ela tinha cuidado de Angelina até que Eddie
exigiu que parasse; por oito meses a tinha amamentado. Angie tinha
sido um bebê gordo e saudável. Só depois que o Eddie a fez parar
de amamentar que ela ficou chata para comer e se tornou aquela
criança magra e assustadiça das fotografias.
Connie ficou irada. Sim, como um homem ousava compartilhar
aquele prazer? Essas mulheres achavam que tinham ganhado, mas
elas tinham aberto mão e dado aos homens o último refúgio
feminino. O que tinha de especial em ser uma mulher ali? Tinham
desistido de tudo, tinham deixado os homens roubarem delas os
últimos poderes remanescentes ancestrais, aqueles selados em
sangue e leite.
— Acredito que usem hormônios pra isso — ela disse com
afetação.
— Pelo menos duas das três mães concordam em amamentar. Da
forma que fazemo, ninguém tem que fazer sozinhe, mas dois ou os
três juntes compartilham a amamentação.
— Pra que tanto alarde? Vai me dizer que vocês não conseguem
fazer papinha de bebê?
— Mas a intimidade! Suspeitamo que os prazeres amorosos e
sexuais estão enraizados em ser embalado e sugar e acarinhar.
— Onde estão os bebês desses berços vazios? Estão doentes?
— Lá fora, com as mães ou com alguém. Muitas vezes, quando
estamo trabalhando, levamo o bebê em uma mochila. Elus tomam
ar puro. Quando a amamentação termina, todo mundo que quiser
leva os bebês pra cá e pra lá.
— Vamos supor que eu leve o bebê de Barbarrosa e queira ficar
com ele. Barbarrosa não se incomodaria?
— Pra que servem os cognescedores? É só perguntar.
Ela olhou em volta, verde relva, verde limão e azul. A luz do sol se
derretia pelo círculo de janelas e uma luz clara e esverdeada passou
pelo domo. As janelas estavam abertas para receber a brisa. A
pessoa de roupa verde estava trocando uma fralda e secando o
berço. Tanto o pano quanto a fralda desceram por uma calha.
— Bom, pelo menos vocês não ficaram tão loucos da ecologia
para lavar as fraldas.
— São feitas de casca de milho e sabugos e são compostadas.
Muito macias, sinta. — As fraldas eram destacadas de um grande
rolo que ficava num suporte com a forma de uma cobra dançando,
com muitos guizos amarrados. Acima dos berços, vários móbiles
viravam e se mexiam. Nada de azul e rosa, nenhum animal da
Disney espreitando, nenhum porco de desenho animado com roupa
de gente. O berçário era arejado, tranquilizador, cheio de barulhos e
pequenos sinos e campainhas de vento e o som de instrumentos de
corda, os berços balançando. No assento perto da janela,
Barbarossa aninhou o bebê no seu peito, e toda pose sisuda do seu
rosto havia se dissolvido. Ela podia quase odiá-lo por estar
experimentando uma alegria pacífica à qual ele não tinha direito. Ela
podia quase adorá-lo pela forma como se abria como uma
margarida para a boca sedenta da criança.
A pessoa de verde embalava o bebê que tinha acabado de trocar
e começou a cantar uma canção de ninar meio triste:
Ninguém sabe
Como flui
Enquanto vai.
Ninguém vai
Onde surge
Onde flui.
— Onde está o Lebre? — Connie perguntou, percebendo que, em
algum lugar no labirinto de salas e pátios, ele tinha escapulido.
— Foi brincar. Essa casa o seduz.
Ninguém escolheu
Como cresce
Como flui.
Como cresce
Como brilha
No coração de uma rosa...
Enquanto subiam por uma escadaria larga e metálica, aquela
música, queixosa e contínua, seguia-os.
— Tirando o berçário e as crianças bem novas, não têm
brinquedos — ela disse de repente.
— A maior parte do que as crianças devem aprender, aprendem
fazendo. Antes dos cinco anos, clarquessim precisam de brinquedos
para aprender coordenação, destreza; praticam carinho em
bonecas... Estou procurando Madalena. — Casualmente, Luciente
tocou o seu cognescedor. — Madalena? Ah, pessoa está vindo.
Madalena é incomum. Pessoa não muda de trabalho, mas é chefe
permanente da casa das crianças. É o chamado dissôa. Às vezes,
um dom se expressa tão fortemente, como a necessidade de
Madalena de trabalhar com as crianças, ou como em Lebre de criar
cor e forma, que isso dá forma à vida. Pessoa não deve fazer o que
pessoa não pode fazer. Você ouviu a gente falar isso cem vezes,
mas, da mesma forma, pessoa deve fazer aquilo que pessoa
precisa fazer.
Uma pequena figura com pele aveludada e negra — tinha de ser
mulher pela delicadeza dos ossos —, um pescoço comprido, cabelo
raspado e uma roupa com padrões curvilíneos, vinha até elas,
sorrindo de leve. Ela desceu lentamente, se abaixando para pegar
folhas mortas que haviam caído da videira que crescia em um dos
lados abertos da escadaria. Ela não era mais alta que alguém de
dez ou onze anos.
— Madalena não tem família. Pessoa quis isso no lugar. Pessoa
permanece em castidade e solitude entre os adultos — Luciente
disse enquanto Madalena vinha vagarosamente na direção delas.
— Quer dizer que é uma solteirona?
— Não conheço esse termo. Você o usa com desdém?
— Sim, é um insulto. Uma mulher que não consegue um homem.
— Connie, a gente não consegue outras pessoas. E respeitamo as
pessoas que não querem casalar. É o jeito dissôa, o jeito para
Madalena.
Com uma voz alegre como um grilo, Madalena as cumprimentou.
— Seja convidade, mulher do passado. — Ela estendeu a
mãozinha. O aperto era quente, ébano aquecido ao sol. — Sou
Madalena.
— Você é a única mulher que eu conheci que tem um nome
verdadeiro. Quer dizer, o nome de alguém que poderia morar no
meu quarteirão.
— É o nome de uma mulher queimada até a morte por bruxaria na
Alemanha muitos séculos atrás. Uma pessoa sábia que curava com
ervas. Eu vi sôa em um transe na minha nomeação. — Madalena
sorriu, um raio de marfim no seu rosto ativo. Ela tinha uns sessenta
anos? Mais? Talvez as pessoas mais velhas mantivessem uma
certa força porque se sentiam úteis. Quando ela pensava em
envelhecer, ficava assustada e triste; a velhice era tão ameaçadora
quanto aquelas máscaras de bruxa que as crianças compravam em
lojas de doce e usavam nas ruas de El Barrio no Halloween.
— Queria saber sobre os brinquedos. Vocês têm todos esses
aparelhos aqui. Comparado com as cabanas de vocês, é... chique.
Mas não vejo muitos brinquedos pras crianças mais velhas. Vocês
não têm dinheiro para comprar brinquedos pra elas? Não tem
ninguém rico aqui, mas não vejo ninguém pobre. Fico pensando que
triste é pras famílias como a minha, que não pode dar pros seus
filhos as lindas bonecas com cabelo real, os trenós, as bicicletas e
carrinhos de corrida das propagandas. Se eu tivesse uma casa de
crianças, daria todos os brinquedos do mundo a elas! Não deixaria
faltar nada!
Madalena tocou sua bochecha.
— Elus brincam de agricultura e cozinha e conserto e pescaria e
mergulho e fabricação e criação de plantas e cuidado de criança.
Quando as crianças não são afastadas do trabalho real, elus não
têm a mesma necessidade de coisas imitadas. Estudei um pouco
sobre o trato com as crianças em eras antigas, então entendo mais
que Luciente sobre o que você está falando. Naquela época,
Luciente, elus tinham muitos brinquedos para ensinar os papéis
sexuais para as crianças. Mantinham as crianças em edifícios
separados durante o dia todo e mesmo depois da puberdade não
deveriam começar uma vida completa.
Devagar eles desceram pela larga escadaria até o fim e foram
andando por umas arcadas. Assim que viraram um corredor, em um
pequeno recanto que era tanto banco quanto caramanchão, uma
videira de glicínia abundante e retorcida, antiga e integrada como
uma rede de músculos, segurava como um abraço protetor um
banco de madeira curvado que era do tamanho ideal para se
aninhar e tirar uma soneca ou ler, para se sentar e lamentar sobre
si, para sonhar acordado, imaginar viagens e aventuras, para
sussurrar segredos a um amigo. Ali, duas crianças, um garoto e
uma garota de seis ou sete anos, tinham pendurado suas túnicas de
verão na videira, como bandeiras, e estavam bastante entretidos
numa tentativa de fazer sexo. Não parecia muito uma tentativa que
iria se provar bem-sucedida imediatamente, mas eles estavam
realmente se esforçando.
A garota olhou para eles bastante indignada. Madalena puxou
Connie para longe pelo braço, Luciente se retirando ainda mais
rapidamente. Enquanto Madalena a afastava, Connie perguntou:
— Vocês não vão parar aquilo?
Madalena largou o braço dela e começou a rir, e ainda que
Luciente estivesse por um momento tentando se manter séria, ela
começou a rir junto. Connie parou, furiosa.
— São bebês! Se eles estivessem... brincando com facas, vocês
iriam parar aquilo? O que tem de errado com vocês?
Madalena balançou a cabeça surpresa.
— Elus aprendem como usar facas... E aprendem sexo unes com
outres. Se a criança tem problema, a gente tenta curar, ajudar,
mas...
— Elas podem se machucar!
— Como? Se uma criança é rude, as outras lidam com isso. Se eu
noto uma criança assediando outra, tento trabalhar com aquela
criança, com as mães e as famílias para reforçar os melhores jeitos.
Luciente a cutucou nas costelas.
— Intão, quando criança você nunca brincou de sexo com outras
crianças? Nunquinha?
Connie caminhou para frente, fazendo uma careta. Ela se apoiou
no corrimão do pátio.
— Ah, claro. — Na verdade, o irmão dela, Luis, tinha abaixado a
calça dela embaixo da sacada e mexido nela com os dedos,
terminando com uma ameaça de não contar para mamá. Ela não
tinha gostado daquele toque de Luis, que não tinha tirado a própria
calça, mas tinha dado uma ideia para ela. De vez em quando, e
mais gentilmente, ela tinha começado a fazer brincadeiras com o
José, seu irmão favorito, um ano e dois meses mais novo.
Ela geralmente cuidava dele. Luis não precisava fazer isso, então
ele saía com os meninos. Ela pegava José pela mão e eles
brincavam juntos. Noventa e nove por cento das brincadeiras era
com bonecas de papel, o pato de madeira do José, o vagão do Luis,
se ele o deixasse por ali. Com bonecas feitas de flores silvestres,
brincavam de escolinha, de se sentar em mesas imaginárias para
comer refeições de sopa de capim e ralhar com os bebês, de
charros, de polícia e ladrão e de velho-oeste. Mas, às vezes, eles
subiam no velho carro que ficava suspenso por tijolos atrás do
galinheiro do vizinho e se tocavam onde era mais gostoso de tocar.
Eles não precisavam ameaçar ninguém para não contar nada. Os
dois sentiam que algo que fazia tão bem devia ser proibido. Era uma
brincadeira silenciosa e prazerosa que já tinha parado quando se
mudaram para Chicago. Mas nem um centímetro do corpo de
Connie acreditava que aquilo tivesse feito algum mal.
— Certo — ela disse devagar. — Talvez não faça mal. Mas sei que
seu eu visse minha filha brincando desse jeito, iria ter que parar ela.
Me sentiria culpada se não parasse! Iria me sentir uma mãe ruim,
uma mãe depravada.
— Que interessante — Madalena disse educadamente, inclinando
a cabeça. — Nossa noção de maldade é centrada em poder e
ganância; tirar das pessoas seu alimento, sua liberdade, sua saúde,
suas terras, seus costumes e seu orgulho. Não achamo que casalar
é ruim, a menos que seja não consentido ou envolva dor. — Ela
parou perto de uma porta fechada. — Venha. Assista uma aula.
Ali dentro, um garotinho com a pele morena-avermelhada sentava-
se de pernas cruzadas em uma cadeira de madeira e usava uma
touca metálica como uma rede de cabelo de ouro. Os olhos dele
estavam fechados e sua respiração era lenta, como se estivesse
dormindo. Madalena sinalizou com seu dedo minúsculo que ficasse
em silêncio. O garoto abriu os olhos e se virou para uma tela na qual
uma luz se movia, mostrando ondas que deslizavam uniformemente.
— Boa, Pardal! Agora sem o guia — disse um velho encostado na
parede como um saco de ossos, com apenas alguns tufos de
cabelos brancos ainda fixos no seu crânio enorme.
— O que ele está aprendendo?
— Pulsação e pressão sanguínea — o garoto respondeu. — Como
você começa na sua vila?
— Começa o quê?
— Intraconhecimento — a criança respondeu admirado. — Você
tem um nome diferente para isso de onde vem?
Ela se virou para Madalena, que disse:
— Na sua época, parte disso era chamado de ioga, meditação,
biorresposta, e parte nem tinha nome.
— Não somo loucos por controlar — Luciente disse —, mas
queremo evitar reações exageradas, como ataques do coração,
indigestão, pânico. Queremo nos acostumar a saber exatamente o
que sentimo, para não jogar nas outras pessoas o que está vindo de
dentro.
— Queremo ensinar intraconhecimento e interconhecimento. —
Madalena fez um gesto se desculpando e levou as mulheres
gentilmente de volta ao corredor, fechando a porta atrás de si. —
Sentir com os outros seres. Captar, quando a habilidade existe...
exemplo tão forte em você. Ensinamo a apurar os sentidos.
Espertizar, fundopoçar, como atingir o névelo, como reduzir quando
necessário.
— O que é tudo isso?
— Estados de consciência. Tipos de sentimentos.
— Como você consegue ensinar alguém a sentir? Com os livros,
podemo aprender a tabuada. Mas como pode ensinar a amar?
— Mas toda mãe tem que ensinar. Ou falha. — Percebendo algo
no rosto de Connie, Madalena continuou sem dar tempo de ela
retrucar. — Educamo os sentidos, a imaginação, o ser social, os
músculos, o sistema nervoso, a intuição, o senso de beleza, tanto
quanto a memória e o intelecto. Pelo menos, tentamo! — Ela riu de
novo, aquela risada contagiante que fez Luciente sorrir. — Pessoas
colocam aqui, na nossa cabeça ossuda — Madalena dava
pequenas cutucadas na cabeça de Connie —, quão fácil é se sentir
em isolamento. Queremo enraizar essa parte frontal do cérebro de
volta a uma rede de conexão. — Ela se virou para Luciente, sorrindo
generosamente. — Lá vem Lebre e Alvorada. Pela estrada, sua
criança cresce cada vez melhor nas artes de defesa. Vai te dar asas
quando você vir a próxima gravação!
O esguio e pernudo Lebre vinha aos saltos pelas arcadas, fazendo
uns barulhos altos de relincho. Trazia uma menina de pele morena
com longas tranças escuras agarrada ao pescoço, rindo e com a
boca aberta que mostrava todos os seus dentinhos. Dentes ávidos
apareceram de relance. Braços bem apertados, ela segurava no
pescoço dele e ria, ria e chutava as costelas dele com os pés
descalços. Ela tinha uns sete anos e usava uma túnica de verão cor
de lavanda. E tinha um machucado no joelho redondo, muito
bronzeado e altamente beijável. E como ria, igual sinos secos, sinos
de som abafado, como ela ria! Os olhos castanho-dourados dela
encontraram os de Connie. O coração de Connie disparou no peito.
Seu coração riscou como uma adaga e parou.
— Angelina! — ela gritou, e a voz explodiu como bolhas de sangue
saindo da sua boca. Então ela estava de volta na cela da solitária,
grudada em uma das paredes, como se tivesse sido empurrada
para lá. Segurava as duas mãos contra o peito dolorido.
Angelina! Ou qualquer outra garota de sete anos de idade de pele
morena e com olhos castanho-dourados. Como ela sabia como
Angelina se parecia depois de três anos? Ela não estaria descalça
em Scarsdale.
De repente, assentiu de todo coração à Angelina de Mattapoisett,
a Angelina escondida para sempre cento e cinquenta anos no
futuro, mesmo se nunca mais fosse vê-la. Pela primeira vez, seu
coração concordou com Luciente, Abelha, Madalena. “Sim, vocês
podem ficar com minha filha, podem manter ela aí. Mesmo com as
obscenidades de vocês e os gatos falantes, ela vai ser forte aí, bem
alimentada, bem educada, vai morar bem, vai crescer muito melhor
e mais forte e esperta do que eu. Eu concordo, dou meu corpo
maltratado e meu coração carcomido. Peguem ela, fiquem com ela!
Quero acreditar que ela é minha. Dou ela pra Luciente ser mãe, com
alegria eu a entrego. Ela nunca vai ser ferida como eu fui. Ela vai
ser estranha, mas será feliz e forte e não vai ter medo. Ela vai ter o
suficiente. Vai ter orgulho. Vai ser forte como um homem e nunca vai
vender seu corpo e vai cuidar dos seus bebês como uma mulher e
viver apaixonada como no jardim daquela casa de crianças
multicolorida. Povo do arco-íris com o final fixo na terra, eu dou ela
pra vocês!”.
CAPÍTULO 8

Naquela segunda-feira, um dos assistentes do dr. Redding, um


rapaz encurvado e pançudo com vários vasinhos estourados no
nariz, sinais do alcoolismo, veio buscar Connie. Enquanto a
enfermeira mexia nos papéis para validar sua saída, ela podia sentir
a inveja palpável ao redor. Não importava o que iria fazer: ela estava
saindo da ala. A enfermeira Wright estava pegando um casaco para
ela, mas o assistente falou:
— Não precisa. Está chovendo pra caramba. Vou levar eles pelo
túnel.
A enfermeira franziu os lábios.
— Melhor você levar um casaco de qualquer forma. Outra pessoa
talvez tenha que trazer os pacientes de volta.
O casaco era tão grande que descia abaixo do joelho, e as
mangas escondiam as mãos dela, mas Connie sabia que não
adiantava reclamar. Ela caminhou atrás do assistente, dobrando as
mangas para que pudesse usar as mãos para fechar os dois únicos
botões sobreviventes.
Todos os antigos edifícios eram ligados por túneis pelos quais
equipamentos, suprimentos e às vezes pacientes eram levados para
lá e para cá. Por vezes, pacientes com privilégios podiam ficar nos
túneis fumando, conversando, paquerando ou achando um canto
escuro para dormir. Ninguém da equipe acima dos atendentes
parecia usá-los.
— Oi, Mack. Oi, Tomo. Como vocês estão? — o rapaz
cumprimentou dois homens que vinham arrastando um carrinho
coberto.
— Bem, bem — o baixinho disse rapidamente. — E você?
— Oi, Gordo! Cara, esse lugar está assustador hoje — o mais
novo disse. — Se continuar chovendo assim, o lugar inteiro vai ficar
com uns centímetros de mofo.
— Odeio quando chove todo dia — Gordo disse. — Ei, você
conseguiu algo legal essa semana?
— Tudo, cara. Barbies, rebite, bala. TCH nepalês genuíno. O
melhor padê que você já cheirou. Mas você não quer ficar ligadão,
então que tal os calmantes? Você curte esses, né, Gordo? Muito de
boas.
O homem com o sotaque piscou para eles com um pouco de
desprezo e começou a ler o que parecia ser uma revista esportiva
em japonês, retirada do seu bolso sob o avental branco. Os loucos
são invisíveis. Aqueles homens não tinham medo de que eles os
prejudicassem. Na verdade, se ela tentasse, acabaria apenas se
machucando. A vingança era fácil para os funcionários.
— O que tem embaixo da toalha? — Gordo apertou o volume que
tinha no carrinho.
— Uma velhote da uti. — Mack tirou o lençol. Um rosto fino e
esquelético de uma senhora. Seus olhos petrificados pela morte
encaravam o teto com raiva. Mack colocou o lençol sobre ela de
novo, mas ficou preso em seu nariz adunco, então ele o soltou. —
Bateu as botas ontem. Tem que mandar o caminhão levar pro
açougue.
— Não sei pra que os médicos querem abrir cada louco que
aparece. Depois que viu um, viu todos.
— Eles têm que botar algo na certidão de óbito.
— Parada cardíaca. — Gordo deu um soco no braço de Mack. —
Esse é o segredo.
— Nos vemos por aí, cara. — Mack voltou a empurrar o carrinho e
Tomo correu para puxá-lo, apesar de ser um carrinho pequeno o
suficiente para apenas um deles levar.
Da última vez que tinha sido chamada, fizeram o maior número de
exames físicos da sua vida, e, como efeito colateral, trataram de
uma queimadura antiga dela e a mandaram para o dentista ver os
dentes maltratados. Quando foi empurrada para dentro, olhou para
os pacientes alinhados nas cadeiras como de costume: o gracioso
índio do oeste, Capitão Creme, a minúscula negra, srta. Green, o
Orville, o Alvin, que era branco, tinha quarenta e dois anos e era o
mais próximo de alguém realmente louco que ela tinha conhecido
ali, a sra. Ortiz, uma porto-riquenha magra e assustada que piscava
para ela, e o Skip, que tinha guardado um lugar para ela ao seu
lado.
— Qual é a boa de hoje? — ela perguntou a ele.
— O que eles carinhosamente chamam de bateria de testes. Teste
de Rorschach, o de desenhar uma pessoa, completar a frase, o de
Escala de Inteligência Wechsler para Adultos, o de Escala Wechsler
de Memória, o Inventário Multifásico Minnesota de Personalidade...
— O que fazem com a gente? Machuca? — Ela segurou nos
ombros.
— Só quando você ri... Não acredito! Estou sendo testado desde
quando tinha onze anos. Nunca teve a sorte de brincarem com
você?
Ela balançou a cabeça negando.
— O que vai acontecer?
— Ah, eles perguntam se você prefere pilotar um avião ou brincar
de boneca. Seguem os estereótipos. Mas por que eu tenho que
fingir que eu prefiro ver um jogo de futebol do que um balé para não
ser classificado como viado? O primeiro homem com quem fiz sexo
foi um auxiliar no Wynmont, que é uma fazenda particular badalada
pra onde me mandaram quando eu tinha treze anos.
— Tão jovem. Pra que fizeram isso?
— Meus pais achavam que eu não funcionava direito, então
mandaram me consertar. Sabe, você manda o cortador de grama de
volta pra fábrica quando ele vira um trambolho. Por que não um
filho?
— Você já entendeu o que é essa coisa toda?
— Algum projeto de pesquisa, com a gente de cobaia. Mas estou
de olho. Vou estragar o joguinho deles. O Gordo está a fim de mim.
— Esse dr. Redding... não gosto dele. Ele se acha tão superior a
nós. Ele nem fica com medo da gente como alguns ficam, com
medo de pegar o que a gente tem. Parece que ele nunca pensa que
pode enlouquecer.
— Já o Morgan não. Se você encarar ele um pouco, ele começa a
se agitar. Dá pra entrar em competição de sustentar o olhar com ele,
e ele até tenta ganhar. Mas o Redding, pois é, ele é bem frio. Ele
olha através da gente pra algo mais adiante que ele quer alcançar.
Uma mulher foi largada do lado dela, uma negra de pele de
veludo, magra e alta, com um cabelo afro bem armado.
— Acho que somos os finalistas da seleção deles — Connie disse
para ela. — Vi você no raio x, mas não nos conhecemos. Sou
Connie Ramos.
— Alice Traseira Azul, querida. Você é porto-riquenha?
— Não, sou chicana. Nasci no Texas.
— Não brinca! Não parece. Eu consegui nascer em Biloxi,
Mississippi. Já esteve lá?
Ela balançou a cabeça.
— Cresci em Chicago desde os sete anos.
— Quer saber, menina? Eu estive cinco anos em Chicago no
South Side, trabalhando de garçonete no Clube Kit-Kat. Saí de lá e
vim pro Harlem com um babaca que conheci.
— Vim pra Nova Iorque pra fugir de um cara de quem tinha medo.
— Motivo melhor que o meu, docinho, apesar que nenhum homem
me fez ter medo na vida. Eu como eles no café da manhã, dois de
cada vez. Por que estava com medo dele?
— Ele... me obrigava. Pegava meus contracheques e dizia que ia
me dar um pouco. Subornava o zelador pra entrar no meu
apartamento, ou ameaçava ele com uma faca, vai saber. Quando
chegava em casa do trabalho (eu trabalhava num escritório na
época, tinha um bom emprego de secretária de um agente
imobiliário chicano), ele estava no apartamento.
— Nenhum homem colocou um dedo em mim sem eu pedir, senão
eu catava minha peixeira, e sei como usar ela. Já furei mais homens
que você conseguiria contar nas duas mãos, não me trataram
direito. Se você aguenta as merdas, você é uma merda, menina. Se
o cara era bom pra mim, eu era bom pra ele. Todo mundo sabe
disso sobre mim.
— Por que você se chama Alice Traseira Azul? — Skip perguntou,
sorrindo e agitando os longos cílios.
— Branquelo magrelo, bem que você queria saber isso! — Ela
pendeu o enorme pescoço para trás e riu, com os seios balançando
livres dentro do vestido vermelho. Ela tinha seu próprio guarda-
roupa, com certeza. Algum auxiliar a tinha feito costurar o decote
alguns centímetros com uma linha da cor errada, mas o vestido
ainda era mais curto e com caimento melhor do que qualquer coisa
naquela sala. — Sou tão negra que fico azul, talvez. Mas de jeito
nenhum você vai descobrir.
— Esse é o Skip — Connie falou. — Você sabe alguma coisa
desse projeto, pra que estão usando a gente?
— Papelada, só isso. É a única coisa que eles fazem. Você sabe
que o tempo todo que fica sentada naquela bosta de terapia de
grupo esses médicos ficam pensando como eles vão escrever tudo.
Como eles vão aumentar a montanha deles na próxima reunião de
funcionários. Besteira!
O nome da Alice foi chamado e ela acompanhou a enfermeira,
balançando sua bunda grande e empinada pela sala de espera. Um
auxiliar trouxe Sybil para fora do consultório, e Connie meio que se
levantou. Sybil a viu e seus olhares trocaram mensagens de
esperança. O Gordo a colocou em uma cadeira longe da fila. Assim
que ele se virou, Sybil ficou de pé num salto e furtivamente sentou-
se ao seu lado na cadeira onde estava Alice.
— Sybil, que bom te ver! Ouvi dizer que estavam te dando choque.
Ela levou a mão magra e elegante até a própria testa.
— Tenho dores de cabeça horríveis. Estou com dificuldade de
lembrar palavras, os nomes dos objetos. Ontem não conseguia
lembrar como se chamava a madeira em volta da porta. Quase
chorei de raiva... Qual sua ala?
— G-2. Não é tão ruim. Você ainda está na L-6?
— Não, na D-5. Queria estar na mesma que você. Tem privilégios
lá?
— Ainda não, estou tentando.
— Ei, você! — Gordo caminhou até Sybil. — Eu te coloquei lá no
final, não vem com gracinha pra cima de mim.
— A gente se conhece — Connie explicou. A voz dela amansou.
— Estamos conversando. Não é bom que a gente se relacione?
— Não vem com papinho — Gordo falou. — Vocês são tudo
violentas ou não estariam aqui. Faz o que eu mando e a gente se dá
bem. Senão, vocês vão comer poeira. — Ele arrastou Sybil de volta
para a cadeira onde a tinha deixado.
— Vocês são namoradas? — Skip perguntou sem malícia.
— Não, somos boas amigas. Conheci ela da última vez aqui. —
Ela não se importava com a pergunta dele, de verdade. Melhor do
que achar que era e nunca perguntar.
— Eles quase não iam incluir ela. Acho que o doutor Morgan tem
medo de mulheres grandes. Mas o Redding passou por cima dele,
disse que podia lidar com qualquer um de nós como se fôssemos
filhotinhos de gato recém-nascidos. Foi o que ele disse, o
queridinho.
— Ummm. — Ela sorriu. — Aposto que ele nunca viu a Sybil
lutando como uma doida. Precisa de dois auxiliares pra segurar ela.
— Queria fantasiar a esse respeito. Mas tudo que parece
acontecer é eu me machucar.
— Eu também. Exceto pelo que me colocou aqui dentro. Olha,
Skip, se você se odiasse completamente, estaria morto a essa
altura, certo? Então parte de você te ama.
Ele riu muito.
— Que romântico. Parte de mim me ama. Assinado, com algum
amor, Skip. — Ele ficou de pé quando viu Gordo vindo buscá-lo.
No dia seguinte, a chuva ainda caía em rajadas de vento,
molhando o chão e a varanda, que estava molhada demais para se
sentar. Sonolenta por causa da medicação, ela foi para a sala
comum. Sharma estava sentada na frente da televisão, franzindo o
cenho.
— O que houve? — perguntou a Sharma enquanto passava.
— Maldição — ela respondeu. Isso era algo que ela não diria se
algum auxiliar estivesse próximo. As pacientes eram punidas por
comportamentos pouco femininos. — Eu gosto dessa novela Luz
Perigosa, sempre assisto em casa. Enfim, à uma e meia eu fui pedir
pro Richard destravar a tv e colocar no canal cinco. Esperei meia
hora enquanto eles papeavam. Daí finalmente eles deixaram a Lois
sair e pegaram o esfregão pra Glenda usar. Eles trancam até o
esfregão! Daí a sra. Stein fez uma pergunta sobre a medicação.
Disse que os médicos mudaram. Discutiram uns dez minutos. Por
fim foram conferir, mexeram na papelada outros dez minutos, e
então decidiram que o médico assinou a mudança. Daí ficaram
matutando sobre isso por um tempo. Na hora que consegui que o
Richard colocasse no canal cinco, já estava acabando o episódio.
Tem essa mulher que está atrás do marido da Maggie, quero ver o
que está acontecendo. É como o meu marido; as mulheres estão
sempre atrás dele.
Ela murmurou que entendia, meio distraída já. O aparelho de tv
piscou, o que dava uma desculpa para se sentar no canto
escurecido. Ela pegou uma cadeira no fundo e fechou os olhos.
Estava mergulhando em um sono abafado por causa do Amplictil
quando sentiu a presença de Luciente e lançou-se, meio sem jeito,
para encontrá-la.
— Está chovendo aqui também — disse com um desapontamento
na sua voz embargada.
— Você não tem plantação, Connie, senão não iria se sentir mal
com a chuva. — Luciente olhava para o seu rosto. — Está tão
drogade que não está completamente comigo. Posso ajudar? —
Luciente colocou as mãos quentes e secas nas têmporas de Connie
e pressionou cuidadosa e firmemente. Começou então a explorar
pontos na cabeça de Connie e aplicar pressão. — Aqui, senta no
banco. — Luciente falou em um tom baixo, convidativo. — Relaxa,
relaxa. Isso. Se abre. Isso. Flui comigo. Relaxa.
Ela sabia que estava sendo hipnotizada e que a gaiola de metal
que prendia seu cérebro estava cedendo. Um peso saiu da sua
cabeça.
— Intão? Melhor? — Luciente deu pra ela um chapéu impermeável
para não molhar a cabeça, grande o suficiente para proteger até os
ombros, mas diferente de um guarda-chuva, já que não tinha um
cabo para segurar. E assim foram pelas trilhas escorregadias da
vila. — Venha, vamo bicicletar até a granja. O edifício é lindo e tem
trezentos anos de idade, todo de madeira! — No final da vila, depois
dos tanques de criação de peixes, havia bicicletários.
— Mas eu não subo numa bicicleta há anos. Não dá!
— Bom, podemo pegar a de dois assentos. Eu pedalo e você faz o
que puder.
— Vi muitos prédios de madeira, Luciente! E vi prédios mais
antigos que esse no Texas.
— Você queria ver o “governo”. Estão trabalhando hoje.
— O governo da cidade? Como um prefeito? Um conselho?
— Observe lá e vamo descobrir com o que ele se parece, tudo
bem? — Luciente fez uma careta, jogando a perna com a calça
folgada por cima da bicicleta. Elas partiram por um caminho estreito
e pavimentado, passeando por uma rota agradável, por cima de
uma ponte alta curvada que atravessava um rio, debaixo de árvores
altas e baixas, passando debaixo de rosas que se dobravam com o
peso da chuva, por salgueiros, barcos e plantações de milho
interpoladas por plantações de feijão e abóbora, e pelos limites de
outra vila marcados por um outro bicicletário.
— Aqui é Cranberry — Luciente disse, apertando os freios e
fazendo o barulho típico de parada. — Todo mundo está sempre
fazendo listas do que eu deveria mostrar pra você. Cada palerma na
minha base, minhes membres, todo mundo no conselho. Até meu
esquadrão de defesa. Estou me arrastando no exercício e as
pessoas me dando listas do que eu deveria mostrar pra você. É uma
vila com sabor de Harlem-negro.
— Vejo jardins, moinhos, pessoas, estufas. Onde tão as cabanas?
— Abaixo. — Luciente desceu da bicicleta perto do bordo e a
ajudou a descer. — Vamo dar uma passadinha na moradia de
Erzulia. — Ela usou o cognescedor. — Zuli, é a Luci! Trouxe a
mulher do passado. Encontra a gente no seu espaço pra mostrar
uma habitação de Cranberry, favor?
— Não tanto — disse uma voz que parecia muito mais com uma
negra do seu tempo do que qualquer pessoa que ela tinha
conhecido ali. — Estou com uma fratura pélvica, pessoa idosa de
Fall River. Passa no meu espaço e mostra você.
— Erzulia e Abelha são amigues doces — Luciente falou. —
Erzulia tem dez amantes. Pessoa nunca cansa de ninguém, só
adiciona. Ali! — Ela apontou para um edifício de dois andares. — O
hospital onde Zuli trabalha, o hospital do nosso distrito. Aquela
estufa enorme é onde eles criam fiandeiros, aquelas criaturas
unicelulares que usamo pra cercas e barreiras.
— Criaturas! Estão vivos?!
— Clarquessim. Elus se consertam.
Ao andarem, ela viu pátios escavados na terra, na altura de um
andar alto, cercados por arbustos densos e espinhosos de amoras e
framboesas. Um animal ou uma criança não conseguiria passar. No
nível do chão, árvores cresciam, jardins floresciam, caminhos se
uniam, balanços pendurados nos galhos e pessoas caminhavam ou
andavam de bicicleta. Cabras e vacas pastavam, galinhas corriam e
ciscavam, um gato brincava com um filhote de coelho morto. Os
coletores de luz solar e as cisternas para água da chuva decoravam
a superfície como uma escultura, alguns enfeitados com máscaras
entalhadas, outros cortados em curvas ou com mosaicos de vidro e
conchas.
Luciente a pegou pela mão e desceram uns degraus largos, que
espiralavam e terminavam em um pátio submerso. O quintal era
pavimentado e tinha no centro uma mesa desgastada com bancos e
algumas cadeiras ao redor. Sobre a mesa, um jogo de xadrez com
as peças posicionadas, debaixo de uma cobertura como as que
Connie colocaria sobre os bolos. As quatro paredes ao redor do
quintal eram de vidro com filetes que lembravam aranhas, quase
finas demais para serem percebidas individualmente.
— O vidro pode ser opacificado ou mostrar só um lado — Luciente
explicou.
— A casa toda é da Erzulia? — Talvez as pessoas fossem mais
ricas ali.
— Não! Eles moram em famílias. Todo mundo tem seu espaço
privado, mas há espaços comuns também, pra família. Pra comer,
jogar, assistir hologras. As paredes são bem grossas, caso queira
quietude.
Cômodos individuais se abriam para pátios que serviam tanto
como corredores quanto como espaços coletivos. Corredores
ligavam os cômodos a outros pátios. Luciente a guiou pelo labirinto,
às vezes consultando o cognescedor para pedir permissão para
abrir uma porta. Atravessaram uma cozinha, onde Luciente pediu
para provar um caldo de frutos do mar bem apimentado. Só dois
cômodos estavam ocupados naquela hora do dia. Em um, Luciente
disse, alguém estava meditando. Na porta, estava pendurada uma
mão de papel com os dedos para cima.
— Isso é o que eles usam quando não querem que ninguém entre.
Digo que estão meditando, mas claro, podem estar casalando,
lendo, dormindo ou só fazendo beicinho.
O quarto de Erzulia era voltado para o oeste. Era espaçoso, com
paredes cobertas de badulaques costurados ou bordados, textura
sobre textura e cor sobre cor. A cama dela era uma plataforma alta
que se alcançava por uma escada, e o espaço embaixo era fechado
com penduricalhos para formar uma caverna escura de almofadas.
Havia também um pequeno altar, prateleiras de ervas em garrafas e
móveis de uma substância escura e nodosa que lembrava bambu.
Na cama, havia um estranho traje azul.
— Não devíamo ficar aqui. Essa é a indumentária de Erzulia. —
Luciente usou uma palavra velha e formal.
— Ela é uma mãe se preparando para uma nomeação?
— Zuli nunca foi mãe. Safo está morrendo e Erzulia é amiga
dessôa. Elus compartilham um sentimento com os velhos ritos. Zuli
segue o vudu como disciplina, como muitos em Cranberry, enquanto
Safo crê no indianismo. Mas compartilham uma proximidade a...
mitos, arquétipos.
— Safo? A velha que estava contando histórias para as crianças?
— Isso mesmo. Grande formadore de histórias. Agora pessoa está
muito velha. Está na hora dissôa morrer.
— Eita. — Ela viu o rosto afilado do corpo no túnel. — Imagino se
ela acha que seja a hora.
— Corpo dissôa enfraqueceu desde quarta. Chega a hora de toda
fruta cair. É uma boa morte a que chega quando você está
preparade, não?
Elas subiram mais degraus largos e saíram na superfície, onde a
chuva estava amainando e as nuvens escuras passavam rápidas
em direção à baía. O ar tinha um aroma de frescor e algodão.
Na torre octagonal branca e antiga do salão da granja, de vinte e
cinco a trinta pessoas sentavam-se ao redor de uma mesa oblonga
discutindo sobre cimento, zinco, alumínio, cobre, platina, aço,
cascalho, calcário e coisas que ela não conseguiu identificar. Muitas
pareciam ser mulheres, apesar de ela achar que tinha errado ao
ouvir a voz da pessoa. Variavam entre dezesseis anos e uma idade
muito avançada. Poucas aparentavam ser completamente brancas,
apesar de o bronzeado delas dificultar o julgamento de Connie mais
do que se estivessem no meio do inverno. Falavam com um tom de
voz comum e não pareciam estar fazendo discursos. Atrás dos que
estavam sentados à mesa, havia outros também sentados, ouvindo
atentamente e, por vezes, acrescentando comentários e fazendo
perguntas.
— Tem um limite de fala de cinco minutos. Descobrimo que
qualquer coisa que pessoa não possa dizer em cinco minutos é
melhor nem dizer. — Luciente e ela puxaram umas cadeiras para se
sentarem atrás de Lontra, que ela não tinha reconhecido até aquele
momento, com o cabelo escuro preso em uma trança única e um
macacão coberto de lama e sal. Lontra deu um sorriso rápido para
elas antes de se voltar para uma das telas, colocadas na mesa para
cada dois delegados, que mostrava números, alocações, gráficos do
que estavam discutindo.
— Isso é o governo de vocês?
— Isso é o conselho de planejamento do nosso distrito.
— Eles são eleitos?
— Escolhides por sorteio. Você fica por um ano: tresmês com
deputade que está antes, três com a pessoa que vem depois e seis
sozinhe.
— A gente quer diminuir um pouco os bosques em Goat Hill. —
Um mapa apareceu nos monitores da mesa. A pessoa falando tinha
costeletas e um bigode farto. Alguém arrastou no mapa indicando a
região a que ele se referia. — Queríamo aumentar nossa plantação
de trigo sarraceno.
— Deputade de Goat Hill, uma vila rio acima com sabor de Cabo
Verde — Luciente murmurou.
— A mim me parece que corta bem no meio da área de captação
de águas pluviais. A gente não tem tanta água assim, pessoal —
uma pessoa com cabelo verde falou.
— Estamo pensando em uma questão de apenas cinquenta,
sessenta acres de madeira de segundo crescimento e vegetação
rasteira. Nossa região importa grãos demais, todos concordamo
com isso — o bigodudo argumentou.
— Sem água, não podemo cultivar nada. Nossos ancestrais
destruíram as águas como se houvesse uma quantidade infinita
dela, sugando da terra, sujando e envenenando enquanto ela corria
— Lontra disse indignada. — Não vamo fazer cerimônia pra falar de
água. O que o banco de solo diz?
— Vou dirigir-lhes o questionamento.
Luciente se aproximou do ouvido dela.
— É deputade de Cranberry. Pessoa é líder hoje.
— Quem é aquela com cabelo verde?
— Advogade da Terra, fala pelos direitos totais do meio ambiente.
Ao lado dissôa, Advogade dos Animais. Essas posições não são
estritamente escolhidas por sorteio, mas por sonho. Toda primavera,
pessoas sonham que são Advogades dos Animais e da Terra.
Aquelus que sentem isso se juntam e a escolha entre elus é por
meio do sorteio.
O computador exibia números e mais números nas telas. Depois
que todos os tinham analisado, a pessoa que deputava por Ned’s
Point falou:
— O bosque em questão clarquessim é área de captação. Tirar
esses acres de floresta iria reduzir a capacidade de nosso lençol
freático.
— Como podemo encimar nossa produção de grãos se não
podemo pegar umas terras de vegetação rasteira pra cultivar? — o
representante de Cranberry perguntou.
— Então devemo encimar a produção na terra que a gente tem —
a pessoa que era Advogada da Terra falou. — Estamo apenas
começando a descobrir formas de cultivar de forma intensiva, pra
que o solo seja mais fértil em vez de sangrar até virar pó.
— Esse bosque tem bétulas, cerejeiras, álamos e pinheiros
brancos em crescimento. — Lontra ainda estudava o monitor, a sua
trança farta pendurada em um ombro. — Em dez anos, vai ser uma
floresta de pinheiros. A história do lugar segundo consta: floresta de
clímax, desmatada para cultivo, abandonada, rasteira pra clímax de
novo, arrancada para habitação, queimada, agora voltando a ser
floresta.
No ouvido dela, Luciente murmurou:
— Chegamo com as necessidades de cada vila e tentamo dividir
os parcos recursos de forma justa. Geralmente precisamo visitar o
local. O próximo nível é o planejamento regional. Deputades
escolhides por sorteio de cada distrito vão ao regional para discutir
coisas maiores. As necessidades sobem e as possibilidades
diminuem. Se pessoas travam em uma decisão, vão e discutem, ou
permutam diretamente com lugares que precisam dos mesmos
recursos e fazem um acordo.
Decidiram votar, e Goat Hill perdeu. A pessoa que deputava por
Marion sugeriu:
— Vamo pedir pra grãocultivadores de Springfield virem até Goat
Hill e ver se eles sugerem como plantar trigo sarraceno sem
desmatar nenhuma terra. Daria a nós de Marion asas receber os
convidados.
O cognescedor de Luciente chamou.
— Quanto tempo? — Connie a ouviu dizer. — Já vamo.
— A ponte velha é bonita — um homem de meia-idade
argumentou. — Trezentos anos, de ferro verdadeiro moldado. A
gente tem une artesane habilidose pra restaurar ela.
— Ninguém na sua vila sangrou com o fato de a ponte não está
mais lá. Precisamo de metal pras tralhadoras — uma velha disse. —
A ponte é linda, mas nossa liberdade depende de tralhadoras.
Cabeça depois o rabo.
— Não sugeriram pra vocês no ano passado procurar ligas que
usem menos minério? — a pessoa deputada de Cranberry disse.
— Estamo trabalhando nisso. Todo mundo está.
— Pra ponte, por que não usar uma biológica? Corrói menos e se
regenera — sugeriu a pessoa que deputava por Goat Hill.
— Precisamo sair de fininho agora — Luciente falou, fazendo ela
ficar de pé. — Rápido. Vamo saltar num mergulhão.
— E a bicicleta?
Luciente olhou para ela sem entender.
— Alguém vai usar ela.
O mergulhão era um objeto como um ônibus-trem que se
locomovia em uma almofada de ar cerca de trinta centímetros acima
do solo até parar, quando pousava com um suspiro. Ele se movia a
uma velocidade média, parando em cada vila, e as pessoas subiam
e desciam com pacotes e bebês e animais e até um peixe-espada
embrulhado em folhas.
Elas se sentaram em um compartimento e um senhor as encarou,
enrugado como uma uva passa, bastante inquieto, com um ar
satisfeito e um cobertor enrolado em seu bebê.
— Por que vocês têm um ônibus dividido em pequenas cabines
desse jeito? Caberia mais pessoas se fossem do jeito que
costumávamos ter, só um grande espaço dentro.
— É mais fácil conversar assim — Luciente disse. — Mais
caloroso.
— Você é convidade? — o velho disse. — De onde? Ou é
andarilhe?
— Do passado — Luciente explicou.
— Ah, eu ouvi falar. Então... — Ele olhou para ela curioso.
— Onde você mora? — Luciente perguntou.
— Ned’s Point, onde eu subi, onde mais seria? Somo asquenazes
— ele contou para elas.
— Não sei o que é isso.
— Somo o sabor dos judeus da Europa Oriental. Freud, Marx,
Trotsky, Singer, Aleichem, Reich, Luxemburgo, Wassermann,
Vittova... todes elus eram asquenazes!
— Elus constroem cognescedores — Luciente falou. — Estávamo
visitando os planejadores.
— Olha, não entendo — Connie disse. — Se os trabalhadores,
vamos supor, de uma fábrica de cognescedores decidem fazer mais
cognescedores e os planejadores decidem dar menos material pra
eles, quem ganha?
— A gente discute — o homem falou. — Que outro jeito?
— Não tem uma autoridade final, Connie — Luciente falou.
— Tem que ter. Quem no final diz o sim ou não?
— Discutimo até fechar em uma concordância. Vamo continuando.
Ah, é desagradável às vezes. Te enfundece.
— Depois de uma longa briga política, convidamo unes e outres —
o homem disse. — Quem vence tem que alimentar quem perde e
dar presentes. Você já esteve numa reunião da cidade? — Quando
Connie balançou negativamente a cabeça, ele fez um som gutural e
sacudiu o dedo para Luciente. — Você deve levar sôa. Como
pessoa vai aprender sobre nós?
— Clarquessim — Luciente disse, contrafeita. — Estou tentando!
Compreende, decisões políticas, como aumentar ou diminuir a
população, têm caminhos diferentes. Conversamo localmente e
escolhemo une deputade pra informar nossa posição na reunião da
área. Daí, sentamo em trans-simuladores de hologra pra cada
deputade dizer a posição de sua vila. Daí, voltamo pra reunião local
pra fundir nossa palavra final. Daí, todes deputades discutem mais
uma vez com todo mundo. Daí, todo mundo vota.
— Vocês devem desperdiçar tempo pra caramba nessas reuniões.
— Shalom, desço aqui — o velho disse. — Faz sôa trazer você pra
Ned’s Point. Sou Rebekah e moro na área leste da sinagoga.
Luciente se despediu acenando.
— Como as pessoas poderiam controlar suas vidas sem passar
muito tempo em reuniões?
— Vocês não se cansam uns dos outros?
— O ranço normalmente tem um motivo. Mas você sempre pode ir
embora, vaguear por aí, ou encontrar uma nova vila.
— Certo, mas vamos supor que não quero ir pras reuniões.
— Quem poderia te forçar? As pessoas iriam perguntar por que
você não se importa mais. Amigues iriam sugerir que você fizesse
um retiro ou falasse com curadore. Se sentissem que você excluiu
elus, pediriam pra você ir embora. Se muites na vila se isolassem,
as vilas vizinhas iriam mandar um time de envolvedories.
— Uns anos atrás, eu estava morando em Chicago e me envolvi
desse jeito. Reuniões, reuniões, reuniões! Minha vida estava tão
ocupada, minha cabeça fervilhava. Senti tanta esperança. Foi
depois que meu marido Martín foi... morto. Eu era jovem e ingênua e
era pra ser uma guerra contra a pobreza... Mas foi só a mesma
máquina política e nós éramos os pobres estúpidos... os idiotas que
pensavam que estavam no controle, pra variar. Acabamos voltando
à estaca zero. Deram uns empregos registrados pros ditos líderes
da comunidade. Todas aquelas reuniões. No fim, eu só ganhei dor e
uma sensação de tempo perdido.
— Você perde até ganhar, esse é um ditado que aquelus que
mudaram nosso mundo deixaram pra nós. As pessoas pobres
conseguiram se juntar. — Luciente ficou de pé e se aprontou para
descer enquanto o mergulhão pousava na grama. Ela falou no
cognescedor. — Localize Safo.
— Safo se localiza na tenda perto do moinho — o cognescedor
falou.
Elas tomaram o caminho do rio para o lado sul da vila, onde uma
grande tenda tinha sido montada. A chuva tinha diminuído para uma
garoa fina, e o vento vinha fresco no sentido da corrente. O rio
formava redemoinhos na virada da maré, impedindo seus
movimentos. A velha Safo estava deitada em uma maca debaixo de
uma tenda baixa. Ela vestia uma calça legging de camurça e uma
túnica que ficava folgada e estava puída, mas lindamente decorada
com espinhos pintados de cores suaves. Mais esquelética que
nunca, seu rosto parecia se afastar do seu nariz bicudo de índia.
Seus lábios tinham se afinado quase até sumir. O escalpo aparecia
por entre os cabelos ralos, diferente da pele enrugada da testa e
das bochechas. Os olhos escuros de Safo estavam parados e
Connie não tinha certeza se ela conseguia enxergar, ainda assim,
ela virava a cabeça para os lados para seguir as conversas, a
cabeça pesada se virando com cansaço no minúsculo pescoço,
como uma vagem num caule seco.
— Safo, estou aqui, Luciente, vim pra ficar com você. Trouxe a
mulher do passado.
— Luciente, criança da terra e do fogo, como uma boa tigela. A
outra pessoa eu não conheço. Deixa.
— Ela quer que eu deixe a tenda? — Connie sussurrou.
— Não, não — Luciente falou no seu tom de voz alto normal. —
Pessoa só não quer que tentem lembrar sôa de quem você é.
— Andorinha veio? Onde está minha criança? — A voz fraca dela
só arranhava os ouvidos.
Ajoelhado perto da maca, Lebre falou em seu cognescedor. Então
respondeu para ela:
— Bolívar está num flutuador quarenta minutos de distância.
Pessoa está correndo, Safo.
— Vou com a maré. Andorinha devia se apressar.
— Bolívar, anda logo! É Lebre. Safo deseja morrer logo. Você não
pode se impulsionar?
— Enfia, meu amor, já estou indo o mais rápido que posso! — A
voz masculina parecia irritada. — Você diz pra Safo esperar. Pessoa
não tem paciência. Estou numa grande turbulência, fazendo o vento
piar, e tenho que continuar aumentando a altitude. Você se cansou
tanto do meu corpo esguio que quer ver ele todo espalhado nos
Berkshires?
— Andorinha sempre se atrasa. — Safo sorriu para o teto da
tenda. — Andorinha acredita que nada vai acontecer sem sôa.
Uma jovem com um rosto de marfim em formato de coração e
cabelos longos e castanhos que desciam até a altura do bumbum se
mexeu de onde estava e ajoelhou-se ao lado da maca. Colando o
rosto ao peito quase imóvel de Safo, ela começou a chorar.
— Louise-Michel?
— Não, não, é Álamo! Você não me reconhece?
— Álamo? Mas eu me lembro de Louise-Michel e tantas outras
pessoas que amei... Álamo, não chore em mim. Quero ir com as
águas, tranquilamente.
— Não morra! Espere! Se me ama, espere!
Um frêmito de mau humor passou pelo rosto de Safo.
— Se me ama, corte seu cabelo. Isso, serei enterrade com seu
cabelo.
Álamo se levantou e disse com mais compostura:
— Eu vou agora mesmo cortar. — Ela marchou e saiu.
— Por que você fez isso, sa bruxe? — Lebre falou. — Foi cruel.
— Pessoa estava me incomodando. É a minha morte. — Safo
respirava com dificuldade. — Além do mais, vai fazer sôa se sentir
melhor. Você verá.
— Quem era Louise-Michel? — Lebre perguntou.
— Amante número dois. Boa amizade. Pessoa tinha cabelo longo
também, mas pessoa era forte. Morreu num acidente de mergulho...
eu não devia ter tido amigue de travesseiro tão tarde. Foi vaidade.
Tinha pouco pra oferecer... o mesmo com Andorinha. Tarde demais
pra pedir outra criança... Vaidade.
— Mentira — Lebre disse. — O poder em você se manteve forte.
Bolívar tem muito de você que eu amo.
— Fiz boas histórias, não?
— Elas vão sobreviver por muitas gerações — Carvalho Branco
disse da parte mais distante da maca.
— Luciente! — Connie a puxou com força pelo cotovelo. — Se ela
está morrendo, por que está aqui fora na chuva?
— Mas Safo está debaixo da tenda. Pessoa quer morrer do lado
do rio.
— Mas por que não tem um médico aqui? Se ela estivesse no
hospital, talvez não morra, Luciente. Poderá viver mais.
— Mas por que não morrer? — Luciente olhou fixamente para ela,
com seu rosto de camponesa cheio de incompreensão. — Safo tem
oitenta e dois anos. Um bom tempo para devolver.
— Vocês vão deixar ela deitada aqui pegando friagem até ela
morrer?
— Mas por que não? — Luciente franziu as sobrancelhas,
confusa. — Todo mundo devolve. Todos carregamo a morte no
nosso âmago; se você não sabe disso, sua vida é vazia, não? Essa
é uma boa morte. Espero que Andorinha consiga... agora Safo me
fez fazer isso. Pessoa é tão malvada e maliciosa. Safo insiste em
usar hoje o nome de criança de Bolívar.
— Tia Safo! — Uma criancinha estava puxando a sua mão
largada. — Vim dizer adeus.
— Quem é? — Os olhos de Safo estavam fechados e ela não os
abriu. — Que esquilo morde a minha mão?
— Sou eu... Luna. Você não vai mais contar histórias?
— Nunca! Outra pessoa, mas nunca como eu! — Um leve
espasmo a tomou e a deixou com a boca levemente aberta.
— Em centenas, em milhares de crianças suas histórias criaram
padrões fortes — disse Carvalho Branco. — Suas histórias
alteraram nossos sonhos.
Safo não falou por um longo tempo. Então, ela disse:
— Me levem pra perto do rio. Não estou ouvindo ele.
Lebre e Carvalho Branco carregaram a maca, um em cada
extremidade. Carvalho Branco perguntou:
— Safo, velhe queride, está perto o bastante?
Safo não respondeu diretamente, mas virou a cabeça.
— Me leve mais perto. Não ouço ele. — Levaram a maca o mais
próximo que ousaram, mas ela ainda reclamava.
— A audição dissôa já era — Carvalho Branco disse. — Levante
Safo com cuidado e vamo mergulhar os dedos dissôa na água.
Pessoa vai entender.
Lebre pegou-a gentilmente no colo, com muito cuidado, e
lentamente se ajoelhou, ainda a segurando, enquanto Carvalho
Branco levou a mão de Safo até a água e a segurou na corrente. Os
dedos se soltaram, a mão lentamente se abriu.
— Ah — ela murmurou. — A maré está baixando.
— Bolívar não vai conseguir — Carvalho Branco disse
suavemente, apesar de Safo não poder mais ouvir.
— Bolívar, Safo está morrendo agora! — Lebre falou
atabalhoadamente no seu cognescedor.
— Dez minutos, camarada, dez míseros minutos!
Álamo voltou com o cabelo cortado. Ajoelhou-se ao lado da maca,
onde Lebre tinha retornado o corpo quase sem vida de Safo.
Entendendo depois de um momento que Safo não podia mais ouvi-
la, ela apertou o cabelo tosquiado na mão flácida da velha. A mão
de Safo tateou o cabelo e de novo sua boca se torceu no que
poderia ser uma tentativa de um sorriso.
— Álamo, criança... plante uma amoreira para os pássaros que
amam as frutas.
— Safo não vai aguentar até Bolívar chegar — disse uma mulher
com uma voz baixa, mas penetrante. — Álamo, sente-se perto
daquela estaca. Silencie o choro... você está nublando minha
conição.
— Erzulia, você devia ter chegado mais cedo! — Luciente falou
num tom reprovador. — Você não está ornamentade?
— Pessoa não me chamou. Vim só pra morte, em respeito. Safo
está longe, longe no passado, o amor antigo.
— Erzulia, você consegue segurar Safo até Bolívar chegar? —
Carvalho Branco falou.
— Vá às pressas até o ponto de flutuador. Emita um aviso de
velocidade e traga Bolívar de velocicador. Vou conizar forte e tentar.
— Erzulia não ficou olhando para ver se a obedeciam, mas sentou-
se na beirada da maca e segurou a cabeça frágil de Safo entre suas
mãos negras de dedos longos. O cabelo dela estava preso em
dúzias de pequenas tranças que se ajeitavam como uma colmeia e
pareciam um capacete. Ela usava uma saia longa de tecido azul
dobrado, tingida com padrões de cobras e flores, deixando seus
seios e seus ombros ágeis e poderosos à mostra. Seus olhos
escuros se vidraram quando ela segurou Safo, e suor começou a
aparecer em sua testa larga. Parada, rígida, ela sentou-se com a
cabeça de Safo entre os dedos. O suor descia pelas bochechas e
escorria pelos seios pontudos e cônicos, emanando dela numa
névoa de calor como se tivesse corrido uma maratona.
Luciente falou suavemente no seu cognescedor:
— Abelha, você devia vir pra tenda. Erzulia está segurando Safo
numa trava mental até Bolívar chegar.
— Não dá agora — a voz de Abelha respondeu. — No meio de um
teste. Vou colocar meu cognescedor para alertar quando Bolívar
pousar e corro toda a distância.
— Cuidado, então! Bolívar sempre sobrecarrega. Fazer muita
coisa ao mesmo tempo é um tipo de arrogância. Por isso pessoa
está em atraso de novo.
— Luciente! Se pessoa estivesse adiantade, você leria arrogância
nisso também, Bolívar achando que Safo não podia morrer sem sôa.
Até quando?
— Isso tudo parece... engraçado pra mim — Connie disse. — Um
bando de amadores.
— Quem é profissional com a morte? Cada um só tem uma vez,
sem práticas. — Luciente passou o braço pela cintura dela.
— Na minha família no México, as pessoas morriam desse jeito.
Mas, na cidade, os pobres morrem nos hospitais. Os auxiliares
colocam uma divisória e os enfermeiros ficam de olho em você se
não estiverem muito ocupados... Minha mãe morreu num hospital
em Chicago... tão assustada. Antes, quando estivera no hospital,
tiraram o útero dela.
— A gente não costuma tirar muita coisa. Quando tiramo, a gente
cultiva um novo. Programamo as células locais. Uma cura lenta,
mas melhora garantida.
— Não conheci nenhum médico. Como assim não tem médicos?
— Olha! Erzulia é curandeire. — Luciente apontou.
— Uma médica bruxa?!
— Você disse isso como um insulto? Erzulia trabalha no hospital
de Cranberry. Elus têm um hospital que atende o distrito.
— O que ela faz no hospital?
— Ah, pessoa ensina outras a se curarem, faz cirurgias,
manipulação, redução de dor, ligação de ossos. Erzulia é habilidosa!
Pessoa treinou centenas de curandeires e pioneirou novos métodos
de ligação de ossos e redução de dor. Tem uma técnica de ajustar
fraturas pélvicas que ganhou o nome dissôa.
Ela olhou para a negra alta sentada de pernas cruzadas na maca,
com suor vertendo de seus braços musculosos e seios fartos, sem
conseguir ver uma médica de jaleco branco num grande hospital.
— Como alguém pode entender vudu e medicina? Não faz
sentido!
— Cada um faz um tipo diferente de sentido, sim? Como não?
Ela estava deitada no leito com o médico rodeando e contando
piadas para a diversão dos residentes por sobre o corpo de
pacientes mulheres, em sua maioria negras e porto-riquenhas, para
quem alguns problemas femininos as haviam trazido para aquela
difícil praia branca, aquele arrecife esterilizado. Davam para elas
assinarem algumas permissões, cuidadosamente vagas, para que
os residentes pudessem fazer as operações que precisassem. No
leito ao lado dela havia uma garota negra de dezenove anos,
desempregada, que tinha sido internada para um aborto na décima
quarta semana, mas que tinha sofrido uma histerectomia em vez de
um envenenamento salino. A mulher tinha entrado em choque, o
que fez dela uma paciente silenciosa. Ninguém se importava com
ela enquanto encarava o teto. As mulheres com sífilis eram
obrigadas a ouvir piadas obscenas. O que todos os médicos
respondiam a qualquer reclamação era: “Estamos te dando algum
remédio que vai resolver isso”. Eles realizavam cirurgias pélvicas ou
retais sete ou oito vezes, uma atrás da outra, nos casos
interessantes, para que todos os médicos e residentes pudessem
dar uma olhadinha, sem oferecer qualquer explicação.
— Você está muito doente, garotinha — o médico dizia para uma
mulher de quarenta e dois anos cujos intestinos tinham sido
perfurados acidentalmente enquanto eles retiravam um diu.
A raiva começou a fazer a cena embaçar e ela se movimentou
para perto de Luciente para se escorar, sentindo o chão se
solidificar aos seus pés. De repente, a animação correu a tenda
como uma lufada de vento.
— Bolívar pousou — Lebre gritou. Um sino começou a badalar.
— O que é esse sino? — ela perguntou.
— Pela morte — Luciente disse.
— Mas ela não está morta ainda!
— Mas pessoa vai morrer logo. — Lebre se entristeceu. —
Pimenta e Sal, nem sempre é ruim morrer, é? Quem quer ser feito
de metal e continuar vivendo mesmo depois que as pessoas que
nasceram na sua vez na criadeira, todes ses membres e amigues e
mães, todos ses amigues doces já se foram?
Connie bufou e se virou. O sino badalava pelo ar úmido em
pesadas ondas de som. Aos poucos, mais pessoas começaram a se
dirigir à tenda, evitando o lado que dava para a plataforma de
flutuadores. Finalmente, ela ouviu um som agudo de sirene e um
veículo rápido com luzes vermelhas se aproximou guinchando na
direção deles, a uns trinta centímetros do chão. Parou de repente do
lado de fora da tenda e pousou com um chiado. Carvalho Branco
saltou para fora e uma pessoa — a voz era masculina, Connie
pensou — de cerca de 1,75m, parrudo, pulou pelo outro lado e
caminhou com uma graça sibilante e veloz. Bolívar, ela imaginou,
tinha cabelo crespo arranjado em tranças elaboradas, como as de
Erzulia, mas sua pele era clara e cheia de sardas de tomar sol. Ele
usava um... não podia chamar de nada que não fosse um vestido,
que descia até a altura do joelho, com fitas na bainha.
Luciente fez uma mesura quando ele passou.
— Erzulia está segurando Safo pra você.
— Por que não você? Você poderia! — ele retrucou.
— Não com a pessoa do passado junto.
— Huumm. — Brevemente ele encarou Connie, seus olhos cinzas
e céticos e frios como uma rocha. Então ele se dirigiu à maca,
abraçou Lebre rapidamente e colocou as mãos na cabeça de Safo
do lado das mãos de Erzulia. Depois de alguns instantes, Erzulia
pareceu dar por si e foi diminuindo a pressão que fazia. Ela rolou da
maca para o chão. Álamo a amparou e Abelha se aproximou.
— Vou levar Zuli agora. Pessoa está exauste e deve dormir. —
Gentilmente Abelha se levantou com ela apoiada em seu ombro e a
carregou pelo caminho ao longo do rio em direção à ponte adiante,
assobiando tranquilo enquanto se afastavam.
Todos se afastaram para deixar Bolívar com Safo. Ele segurou a
cabeça dela, com os dedos flexionados, se movimentando, e pela
primeira vez em quinze minutos os lábios dela se moveram,
tentando formar palavras.
— Bom... Aqui! Bom — foi tudo que ela disse. Então, com um
estremecimento, exalou o último suspiro e ficou imóvel. Bolívar se
levantou.
— A pessoa que era Safo está morta.
Lebre falou no seu cognescedor, repetindo cerimoniosamente:
— A pessoa que era Safo está morta.
O sino badalou mais devagar. Barbarossa se desviou do grupo de
pessoas, carregando uma prancha. Colocou-a no chão e Luciente
se adiantou para ajudar Lebre e Bolívar a erguerem Safo e a
colocarem na prancha. Carvalho Branco e Álamo, chorando
copiosamente, se abraçaram. A mão de Bolívar estava branca,
agarrada ao braço de Lebre. As sardas nos seus dedos se
destacavam como manchas de envelhecimento da pele. Carvalho
Branco continuou acarinhando a cabeça raspada de Álamo.
Lebre foi uma das quatro pessoas que ergueram as pontas da
prancha e começaram a carregar Safo sob a fina chuva que caía. O
maço de cabelo de Álamo jazia como um buquê de gramíneas
brilhantes encravado entre as pequenas mãos dobradas sobre o
peito estreito de Safo. Álamo, Carvalho Branco e Bolívar iam aos
tropeços atrás do corpo; Carvalho Branco andava com o braço ao
redor de Álamo, e Bolívar, um pouco mais à frente, caminhava com
uma dignidade sisuda, como se suas únicas articulações fossem
seus joelhos à mostra. Luciente ia logo atrás deles com Connie.
— Aonde estamos indo? Pra funerária?
— A família, amantes e amigues mais próximes sentam-se com o
corpo pra liberar o luto dessôas. Depois do jantar, todo mundo na
vila vai se reunir pra uma vigília no grande salão de reunião, onde a
gente politica, assiste hologras e realiza rituais internos.
— Quando é o funeral?
— Funeral? — Luciente consultou o cognescedor. — Não tem
isso. A noite toda ficamo acordades falando de Safo. Daí, na
alvorada, a gente cava um túmulo e coloca o corpo. Daí plantamo a
amoreira que Safo queria. Alguém vai até o berçário de árvores em
Marion pra isso. Daí, antes de dormir, visitamo a criadeira e
sinalizamo o desejo de começar um novo bebê.
— Direto? Isso é cruel! Sai um, entra outro.
— Por que cruel? Tradicionalmente, em uma semana, quando
estamo ocupades com trabalho e descanso, discutimo em qual
família a criança deve nascer e quem vão ser as mães. Começamo
a meditar sobre os mortos.
— Parece... malfeito, de alguma forma. Sem funeral, sem
funerária. Só cava e joga dentro.
— Connie, as velhas formas parecem barbarizadas pra nós,
tentando manter o corpo em putrefação. Fingir que a gente não é
feito de elementos tão antigos quanto a Terra, que não devemo
devolver esses elementos pra teia de tudo que vive... Pra nós, uma
boa morte é a que vem na completude da idade, sem muita dor e
com lucidez. Uma vida plena é uma vida bem usada! Pessoa devia
estar cansada... Você devia ficar na vigília com a gente! Vai ver. É
lindo e dá uma sensação boa. Vai ver a beleza que Lebre faz;
pessoa e Bolívar espetaculizam juntos. Bolívar é um ritualizador.
Euzinhe me apresento hoje à noite na bateria, e a gente tem que ir
buscar correndo depois que eles arrumarem tudo na casa de
reuniões.
— Tem algo errado! — Ela sentiu uma ameaça a sacudir. — Me
solta, Luciente, deixa eu ir!
— Vai depressa, Connie! — Luciente recuou e Connie sentiu um
apagão, só percebendo a cadeira na penumbra do salão comum. A
enfermeira Wright dava tapas no seu rosto, fazendo sua mandíbula
doer.
— Por favor... não!
— Pensei que você tinha... entrado em coma.
— Estou me sentindo estranha hoje. Acho que cochilei ou
desmaiei. A medicação... estou me sentindo meio estranha depois
que tomei a medicação hoje.
A enfermeira Wright era uma mulher maternal com seus cinquenta
e poucos anos, mas estressada. Ela tinha desistido e andava pela
ala dando muito o que fazer para seus auxiliares. Connie gostava
dela, mas sentia que não podia confiar. A enfermeira olhou-a nos
olhos.
— Hum, vou dizer pro médico. Talvez seja a dosagem errada.
— Acho que tenho sensibilidade pra remédio, talvez — ela disse
humildemente. Ainda estava tremendo por causa do efeito da
transição. Seu coração estava disparado e a enfermeira Wright, ao
tomar-lhe o pulso, fez uma careta ao verificar isso.
— Vou dizer pro médico. Talvez seja uma dosagem muito alta,
talvez não. Ele que vai dizer no fim. Agora, de pé.
— Me sinto estranha. — Ela levantou-se cambaleante.
— Agora vem. É hora de entrar na fila pro jantar.
CAPÍTULO 9

— Estão mudando a gente pra uma ala especial — Skip falou. —


Aqui pro prédio dos médicos.
— Quem disse? — Connie perguntou. Boatos tinham galopado
para lá e para cá no pequeno grupo deles por duas semanas.
— Gordo, o auxiliar simpático. Ele disse que logo a gente vai ser
mudado pra uma ala feita pra gente.
— Homens e mulheres juntos? Uma ala trancada? — Mesmo se
fosse trancada, pelo menos ela podia ficar na mesma ala que Sybil
de novo.
— Acho que trancada. — Skip ficou chateado. — Não parece que
estão fazendo as coisas pra nos soltar. Recebi uma carta estranha
do meu pai, dizendo que ele está orgulhoso que fui escolhido pra
um projeto piloto de atenção especial e espera que eu vá cooperar e
melhorar. Que temos sorte de ter um médico tão famoso, que até
aparece na revista Time.
— O Redding?
— Ele mesmo. Mas eles ficaram mais encantados pelo tal de
doutor Argent, que é chefe de algum instituto.
— Argent? Não tem ninguém com esse nome aqui.
— Não entendi também. O que me incomoda é que o hospital foi
atrás deles pra assinar uma permissão pra alguma coisa.
Ela se abraçou, tentando juntar um pouco de coragem. Skip tinha
as próprias roupas, parecia sempre ter um pouco de dinheiro e até
cigarros.
— Skip... você me emprestaria um dinheiro pra ligar pra minha
sobrinha em Nova Iorque? Não recebi nenhuma visita desde que
cheguei aqui. Se eu falar com ela, consigo que ela me traga algum
dinheiro, umas roupas. Eles estão com vergonha e fingem que eu
não existo desde que me internaram.
— Meus velhos se culpam por terem me mandado pra um hospital
público. Eles não vêm, mas me depositam uma mesada. — Skip
levantou a blusa e sacou uma pochete que tinha feito na Terapia
Ocupacional. Ela sonhava com os privilégios da Terapia
Ocupacional, mas não podia tê-los, porque a sra. Richard tinha
escrito umas coisas ruins no histórico dela. A t.o. acontecia por uma
hora, semana sim, semana não (os homens iam numa semana e as
mulheres em outra), para brincar com argila ou cortar couro, mas
era algo para fazer. Claro que você não conseguia relaxar, porque a
t.o. tinha que justificar o que ela fizesse, escrevendo um relatório
também (“paciente não-responsivo, fez uma mulher com caracteres
sexuais superdesenvolvidos”), mas era uma espécie de mudança.
Skip escondeu a pochete de novo sob da camisa e colocou um dólar
na mão dela. — Espero que te ajude em algo.
Ela escondeu o dólar em um compartimento secreto que ficava no
fundo de uma sacola de mercado dentro de outra sacola de
mercado — ambas já finas e enfraquecidas pelo uso e remendadas
duas vezes nas alças.
— Brigado, Skip. Olha, se eu falar com ela, ela vem. Ela tem que
vir.
— Eles não gostam da gente, somos leprosos... Sabe qual foi o
último experimento que fizeram comigo? Eles colocaram uns
eletrodos no meu pinto e me mostraram umas fotos de sacanagem,
e quando eu ficava de pau duro por causa de homem, eles davam
um choque. Seja o que for que eles estão aprontando aqui, não
pode ser tão doloroso assim, certo?
Sentados ali no banco, esperando Acker, o psicólogo de jeans, vir
aplicar mais testes neles, Connie se sentiu melhor. Ela tinha uma
chave secreta para o mundo, só faltava conseguir permissão para
usar o telefone naquela noite. A hora em que eles podiam fazer
ligações era determinada: depois do jantar e antes da chamada para
os quartos. Ela ficou na fila para pedir permissão.
— Por favor, me dá um pedaço de papel higiênico? — Sharma
pediu.
— De novo? O que está fazendo no banheiro, Sharma?
— É a medicação. Me faz querer mijar o tempo todo, enfermeira.
— Não faz isso com nenhum outro paciente. Por que faria com
você? Se você não brincasse sozinha, não iria ter que urinar a cada
cinco minutos. — Dois pedaços de papel foram a dádiva dela.
— Por favor, posso fazer uma ligação? — Sylvia perguntou.
— Pra quem você quer ligar?
A negra se reequilibrou.
— Meu namorado.
— Qual o nome dele?
— Duster.
A enfermeira ficou esperando. Com relutância, Sylvia acrescentou:
— Duster MacPhee. Ele mora em Yonkers.
— Você tem o dinheiro?
— Sim, claro que tenho.
— Certo. O auxiliar do masculino está de plantão no corredor. — A
enfermeira agia como se estivesse realizando um grande favor.
— Preciso de umas aspirinas. Estou com uma dor de cabeça
horrível hoje. — Uma paciente nova, sra. Souza, estendia a mão
com impaciência.
— Sua medicação está listada na ficha, mas não inclui aspirina —
a enfermeira da noite disse.
— Mas estou com dor de cabeça. Não preciso de nenhuma...
medicação. Só uma simples aspirina.
— Você virou médica agora, pra fazer prescrição, sra. Souza? É
isso que está fazendo em um hospital, pensando que é médica?
— Não estou pedindo morfina, enfermeira. Só aspirina! Como as
que a gente vende na farmácia que tenho com meu marido, em
pacotes com uma ou com centenas. Aspirina!
— Queridinha, você pode ser dona de uma farmácia ou não, mas
está confusa agora. Você não é a pessoa que prescreve pros
pacientes aqui. Agora vai sentar. Agora! Ou vou mandar te sedar.
A sra. Souza não conseguia acreditar. Ela se virou para Connie,
que era a próxima da fila.
— Eu estava pedindo uma reles aspirina, pra dor de cabeça! Vou
falar com o médico sobre isso.
— Melhor sentar — Connie disse com calma. Não podia arriscar
dizer mais nada. Ela deu um passo à frente e, com seu tom mais
pedinte, ela começou: — Por favor, eu ficaria muito agradecida se
pudesse ligar pra minha sobrinha Dolly Campos, na cidade de Nova
Iorque.
— Tem o dinheiro?
Mostrou as moedas preciosa, trocadinhos que ela tinha
conseguido com a sra. Stein.
— Viu? O suficiente pra ligar pra ela. Por favor. Ficarei tão
agradecida, enfermeira, tanto, tanto.
— Queria saber mesmo é onde conseguiu isso, sra. Ramos.
— É meu, viu? Por favor. — De novo, ela estendeu as mãos com
as moedas preciosas na palma. — Gostaria muito de falar com
minha sobrinha, Dolly Campos, em Manhattan. Ela está na lista de
familiares, se quiser conferir.
— Pode ir. Apesar de eu querer saber o que você fez pra ganhar
esse dinheiro. E tudo já trocadinho.
Um rapaz estava no orelhão e havia mais quatro pessoas na frente
dela, inclusive a Sylvia. Todo mundo podia ouvir, apesar de o
homem colocar a boca perto do fone e cobri-la com a outra mão.
Ainda assim, quando a mulher dele conseguia ouvi-lo, eles também
o ouviam.
— Então por que você não trouxe? Não estou bravo... Não posso
falar mais alto, amor... Então vende a merda da casa antes que eles
te despejem! Não importa o que o seu irmão disse... Agora escuta...
Não estou gritando! Escuta, você liga pro cara da imobiliária, é pra
isso que eles servem... Esquece o que ele disse, a comissão está
inclusa no preço. Se eles não vendem, não ganham nada,
Margarete. Escuta o que estou falando!
— Vamos, cara — o menino que era o próximo da fila falou. —
Tenho que ligar umas oito horas. Você já está aí faz dez minutos!
A fila toda se mexeu com ansiedade, alegria, a terrível força de
concentrar toda a sua vontade naquele objeto negro que esperava
para devorar as preciosas moedas de todos. O auxiliar se apoiava
na parede afastada, fumando e flertando com uma paciente que
tinha pequenas explosões de riso nervoso, com o olhar fixo nos
sapatos dele. Talvez Dolly não estivesse em casa. Talvez estivesse
com um cliente. Talvez o Geraldo estivesse com ela e desligasse.
Ser atendida pelo Geraldo era pior do que não ter ninguém, porque
isso o alertaria de que Connie estava tentando falar com a sobrinha.
Ah, se ela pudesse ligar de manhã...
O menino estava falando com a mãe e o pai ao mesmo tempo,
parecia ter cada um em uma extensão. Ele devia ter uns quinze
anos, cheio de espinhas, gordo e baixinho, as mãos tremiam no
telefone. Ela ficava arrasada de ver uma criança com as mãos
tremendo. Ficou olhando para a textura na parede em frente, como
a pele oleosa de um velho lagarto. As botas chiques de pele de
lagarto do Geraldo. Ele estaria lá, iria atender o telefone. Ela podia
disfarçar a voz. Se ele atendesse e ela desligasse na hora, talvez
todas as moedas voltassem. Não, aquilo não iria funcionar; assim
que ele atendesse, o dinheiro já era e a chance também.
O menino deixou o telefone pendurado e saiu cambaleando.
— Puta, puta, puta — ele murmurava e deu um encontrão na
parede da frente. O auxiliar o pegou pelo colarinho.
Sylvia agarrou o telefone. Atrás delas, havia mais cinco
esperando. Sylvia discou o número. Ocupado. Seu rosto não
conseguia aceitar aquilo. Discou de novo. Ocupado de novo. Sem
dizer uma palavra, foi para o final da fila, esperar mais uma vez. Seu
rosto era de quem estava concentrada, pensando com quem o
namorado estava falando. Ela começou a dar nomes a mulheres,
inventando mulheres com quem ele estava prestes a se encontrar,
pular na cama e amar, completamente esquecido dela.
Connie mexeu nas moedas, derrubou uma de dez centavos, pisou
nela e a apanhou com pressa por medo de perder sua vez na fila.
Discou com cuidado, nem devagar demais nem rápido demais.
Chamou. Depois do terceiro toque, alguém atendeu. O coração dela
disparou como um elevador expresso.
— Olá, aqui é a residência de Dolly Campos. Estou ocupada no
momento, mas vou retornar assim que ficar livre. Por favor, diga seu
nome e telefone e vou retornar assim que possível. Prometo! Com
amor, Dolly. Você tem sessenta segundos depois do bipe.
Ela ficou sem entender por um momento e então percebeu que era
uma secretária eletrônica. Disse rápido, pois já tinha perdido uns
segundos:
— Dolly, minha querida, sou eu, a Connie, no hospital. Por favor,
venha me ver! Neste fim de semana ou no outro. Por favor! Me traz
algum dinheiro e umas roupas! Me escreva. Por favor, Dolly. Não se
esqueça de mim! — Tocou o bipe de novo antes que ela
conseguisse dizer — Não esqueça de mim — para o telefone mudo.
Ela desligou e foi caminhando devagar. Uma máquina. Do outro lado
do corredor o auxiliar estava sussurrando no ouvido da paciente,
que se agitava e balançava a cabeça languidamente.
O que a Dolly estava fazendo com uma secretária eletrônica? Ela
ainda devia estar na vida. Dessa forma, ela podia escolher quem
queria? Até parece. Uma máquina! Ela tinha bajulado Skip para falar
com uma merda de máquina.
Na sexta, recebeu uma carta que tinha sido aberta e lida,
examinada, inspecionada e repassada pelos funcionários, mas era
de Dolly, em inglês. Eles demorariam uma semana mais se fosse
em espanhol; talvez Dolly se lembrasse disso, ou, o que era mais
provável, ela não sabia escrever em espanhol.

Querida Connie,
Recebi seu recado, gostou da minha secretária nova? Não é
uma chiquesza? Eu quase caí da cadeira quando ouvi sua voz.
Me poupa de perde ligações quando tou ocupada. Me poupa $$$
tb.
Nita está mais bonita a cada dia, espra pra vc ver ela. Eu tô
bem. Geraldo, aquele desgrassado, me largou c/ a conta da
minha operação no ospital. Ainda tô pagando. Tou c/ um cara
novo, mas é só profisssional. Esse é legal, vc vai gosta dele. Ele
chama Vic e era jogadorr de beisebol de verdade. Vo pedi pra ele
me leva no domingo, sábado tenho uns compromisso. Domingo
levo a Nita. Vo passa no meu pai e pega suas coisa. Vc não falo
o que queria, vo leva o que achar. Se quise alguma coisa, me
liga e diz pra secretária que eu te levo.
Bj bj bj
C/ amor, Dolly.

No sábado, a ansiedade dela a deixava por um fio. Prestava


atenção em cada visitante. Então aquele era o marido da Sharma, o
que ela estava acusando de dormir com outras mulheres — um
menino na meia-idade, com uma cara sonolenta e estranha, que
ficava bocejando sem nunca olhar diretamente para quem estava ao
seu redor. Tendo sido apresentada a ele ao passar — Sharma
estava orgulhosa com a visita dele —, ela tentou olhá-lo nos olhos,
mas ele estava olhando fixamente para o torso dela, na altura dos
peitos. Desconfiou dele instantaneamente. Sim, sentiu que ele já
tinha outra mulher, que preparava o café da manhã dele, lavava as
camisas e deitava-se na cama. Ela sentia isso emanando dele, e
Sharma também sabia. Connie se afastou rápido.
Os fins de semana eram ruins, exceto quando se recebia visita. As
portas trancadas da ala raramente se moviam, e não era para o
trabalho voluntário chamado terapia industrial, nem para a terapia
ocupacional, nem para terapia de grupo, nem para o médico na sua
visita relâmpago.
A medicação noturna não funcionou com ela. A adrenalina zumbia
na ala escura como um gerador e queimava o Amplictil e o Seconal
como se fossem gasolina. Ela estava terrivelmente alerta e
entediada. Quantas horas ainda passariam até que a alvorada
tingisse as janelas mais altas? Quantas horas do dia deveriam fluir
como um rio de gordura passando por ela até que Dolly chegasse?
Ela tinha de convencer Dolly a tentar tirá-la dali, antes que Luis
assinasse qualquer permissão que os médicos quisessem.
Restabelecer contato era primordial, mas sem pressionar Dolly. Em
contrapartida, todo mundo do lado de fora tinha liberdade e poder.
Mesmo o mais pobre, ferrado, fodido, na pior, mal pago e drogado
do Harlem tinha mais liberdade, mais espaço, maior riqueza de
escolhas, uma dignidade mais doce do que o paciente com mais
privilégios no pardieiro todo.
Ela abriu a mente para Luciente e esperou. Nada aconteceu. O
tempo se arrastava como formigas passando sobre as pálpebras
apertadas dela e nada se movia. “Ei, Luciente!”, pensou. “Oye, onde
diabos você está? Não me larga aqui!”. Ela imaginou Luciente na
cama com... Abelha?
Uma presença morosa a tocou.
— Humm, sou eu, Luciente. Um momento.
— Estou interrompendo?
— Não estava esperando você... passada com vinho e maconha.
Espere. Vou clarear e já volto. — O contato se apagou.
Com culpa, ela se virou no leito. Invadindo o prazer de Luciente.
Ao mesmo tempo, uma inveja severa tomou a sua mente. Sábado à
noite era uma festa em todo lugar, mesmo no futuro. Todo mundo
estava se divertindo, todas as pessoas do mundo, do universo, todo
mundo menos ela, sozinha e entediada. Todo mundo estava se
amando, bebendo vinho e puxando uma e dançando e se sentando
no colo dos outros e sussurrando nos ouvidos alheios. Todo mundo
estava dando boa noite para os filhos, colocando-os para dormir e
voltando para atender seus convidados na mesa comprida com os
restos de leitão assado, el lechón asado, como no casamento da
Dolly. Todo mundo menos ela.
— Estou aqui — Luciente disse. — Venha agora. Estou conando.
— Olha, me desculpa por ter incomodado você. Volta pra sua
festa.
— Por que você não deveria vir? Não pensei nisso... mas por que
não? Todes aqui dizem que seria ótimo convidar você. — Luciente
deu o que pareceu um puxão bruto e impaciente e no minuto
seguinte ela estava agarrada ao bíceps de Luciente e de pé em uma
noite morna, iluminada por lâmpadas flutuantes, como grandes
vagalumes cor pastel, algumas fixas, outras piscando, mas todas
com aquela luz agradável.
Crianças passaram correndo, rindo e gritando, carregando
bandeiras que flamulavam e faziam barulho imitando uma corrida,
vestidas em fantasias berrantes de borboleta com os rostos
pintados. Dois cachorros as perseguiam, e um deles tinha laços
entrelaçados na cauda peluda.
— Estamo entretendo Cranberry. Ganhamo uma decisão sobre as
rotas de mergulhão.
Ela deu um passo atrás para examinar Luciente, que estava
usando um vestido sem costas de chifon carmim translúcido,
amarrado atrás do pescoço. A saia tinha um corte diagonal, sendo
bem curta de um lado e comprida do outro.
— Nunca te vi num vestido.
— É meu frívoli de gala; Lebre que desenhou... Um frívoli é uma
vestimenta descartável pra festivais, feita de alga e corantes
naturais. Jogamo na compostagem depois. Não são como os trajes.
Trajes circulam, como o robe que Abelha usou para a nomeação,
sabe? Trajes você pede na biblioteca pra uma vez ou pro mês, daí
eles voltam pra outra pessoa. Mas frívolis são para uma vez só.
Parte do prazer de um festival é desenvolver frívolis ousados,
bestas, um que te esconde, um que vai te deixar em
maravilhosidade e desejo por todo mundo no distrito!
— Esse deve ser o seu.
Luciente levantou as mãos.
— Num festival, por que não ser olhade?
— E eu? Você consegue me arrumar?
— Não tenho um frívoli pra você. — Luciente parecia consternada.
Então estalou os dedos. — Tudo corre lindo. Você coloca o frívoli de
Estrela Vermelha. Pessoa pediu um, mas sofreu acidente colhendo
cereja e está curando em Cranberry. Vamo pegar o frívoli dissôa pra
você.
Luciente a pegou pela mão e desviaram dos grupos que
caminhavam pelos passeios da vila, pessoas vestidas com frívolis
brilhantes e chamativos, delicados ou sofisticados, carregando
garrafas de vinho e passando baseados e comendo bolinhos que
deixavam um aroma de tempero no ar, com guirlandas de flores nos
cabelos e barbas, tocando flautas ou com rádios e violões e
estranhos instrumentos de corda, cujo som era choroso, alto e
difuso, tocando tambor ou atabaques e carregado objetos que
produziam som, luz e cheiros.
As salas da casa das crianças estavam brilhantes e passos
ecoavam pelas escadas, risadas e gritinhos saiam de todos os
recantos. Adultos e crianças com seus frívolis brincavam de pega-
pega com objetos flutuantes que se moviam em forma de S em
câmera lenta. Numa sala cheia de ferramentas e aparelhos,
Luciente se dirigiu a uma máquina.
— Entregue o frívoli pedido por Estrela Vermelha. — De uma
portinhola, uma vestimenta saiu lentamente, como se fosse papel
toalha saindo do rolo. Luciente agarrou e sacudiu para tirar. — Aqui.
Coloque.
— Aqui? — Ela olhou ao redor, para o corredor cheio de pessoas.
— Vou me virar — Luciente disse com uma paciência exagerada,
e deu de ombros para as paredes.
A vestimenta era molenga, feita de pequenas bolhas, levíssima e
mal costurada, para que as bolhas balançassem e se chocassem e
captassem a luz quando ela se movia. A vestimenta encostava de
leve nos ombros dela e não tocava seu corpo em mais nenhum
lugar. Ela se sentiu bem nua.
— Que inteligente. — Luciente examinou o frívoli, andando ao
redor dela. — Maravilhoso o jeito que treme e se move. Você deu
muita sorte.
— Ele não é... transparente?
— Transparente? Quase nada. Venha!
Na comideira, muitos dos painéis tinham sido removidos para que
a brisa do rio pudesse soprar livremente na sala de jantar, onde
pequenos grupos estavam sentados servindo-se de restos da
refeição, fofocando e fumando e bebendo. Em uma mesa, estavam
cantando numa língua estrangeira, fazendo o ritmo com batidas na
mesa.
— O que vocês comeram? — ela perguntou com a paixão por
comida típica daqueles presos em instituições mentais.
— Quer umas sobras? Claro, vou fazer um prato.
Uma sopa fria de pepino com menta. Fatias de uma carne escura
e gordurosa que ela não reconheceu em um molho com gosto de
vinho do porto, montinhos de um tubérculo que parecia inhame, mas
menos doce e mais crocante — talvez abóbora? Luciente tinha dito
que eles cultivavam abóboras ali. Uma salada verde com um molho
de ovo e alho. Algo borrachudo, feito em conserva, apimentado
como chili, mas de gosto estranho e almiscarado. Vinho tinto jovem
e encorpado.
— Lembra que isso não vai te nutrir — Luciente disse, pesarosa,
roubando um pedaço do prato dela. — O pão já era. Assamo pão
fresco todo dia. Era de frutas cristalizadas e cada pedaço foi
devorado.
— Quem cozinha? Que carne é essa? — ela perguntou entre
garfadas.
— Ganso assado. E nós alternamo. Gavião, a pessoa que era
Inocente, lembra? Gavião e eu assamo os gansos no espeto. Por
rotação, toda noite tem uma pessoa que chefia e quatro assistentes.
— Quem limpa tudo?
— Feito de forma mecânica. Ninguém quer lavar a louça.
— No meu tempo também não. Como funciona de fato?
— Melhor que as pessoas, mais paciente. Pra lavar pratos, estamo
dispostes a utilizar energias preciosas.
— Mas uma máquina não poderia cozinhar também?
— Clarquessim, mas não inventivamente. Ser chef é como ser
mãe: devemo voluntariar, nos sentir impelidos. Euzinhe não tenho o
dom e só ajudo na cozinha. Mas Abelha é chef, e na próxima
festividade pessoa vai criar o menu e dirigir. Será o festival do
dezenove de julho, data da Convenção por Direitos Iguais de
Sêneca, que deu início ao movimento feminista. Euzinhe interpreto
Harriet Tubman. Faço um grande discurso, “Eu não sou uma
mulher?”, antes de liderar escravizades numa rebelião e saque ao
Pentágono, uma grande máquina produzindo radiação no Potomac;
uma máquina militar industrial?
— Ah, foi isso que aconteceu? — ela disse. — Em que século foi
essa batalha?
— Compreende, essa é a essência da coisa. A história fica um
pouco telescopada. As crianças ficam entediadas se os rituais
duram muito tempo. Elus gostam mais da parte em que o
Pentágono é saqueado. Todo mundo vem participar e então, no
fundo, tem uns bolos de mel decorados com citações de mulheres
revolucionárias e histórias da vida delas, daí você pega seu bolo e
pode comer. Daí, vamo todes pra festa.
— Isso é daqui a duas semanas. Vocês têm grandes feriados a
cada duas semanas?
— Tem dezoito feriados regulares e dez menores, além dos
festivais, quando ganhamo ou perdemo uma decisão e quando
ultrapassamo as metas de produção. Gostamo de feriados, são
momentos pra relembrar heroínes, aliviar tensões, se divertir,
celebrar a história que trouxe até nós...
— Como Harriet Tubman saqueando o Pentágono?
— Intão, isso realmente corporifica ideias na luta... A história que
vocês celebram, toda essa coisa de reis e presidentes e Colombo
descobrindo um continente convenientemente vazio que já tinha
sido descoberto por outros povos que por acaso estavam morando
aqui, tudo isso é tão lendário quanto a nossa... Você gostou da
comida?
— Vocês comem bem aqui, de qualquer modo.
— Muito importante! Comida o suficiente, comida boa, comida
nutritiva. Pra gente, é muito importante que todes tenham isso.
Ninguém que nasce em lugar nenhum do mundo, Connie, nasce
para ter menos que isso nas áreas que controlamo. Eles ainda
mantêm as plataformas espaciais, a lua e a Antártida. Euzinhe, meu
feriado favorito no ano todo é o dia de Ação de Agradecimentos. Daí
a gente jejua por vinte e quatro horas e sai por aí pedindo perdão
para todes que ofendemo no ano anterior. Acontece bem no final da
colheita de outono, quando todos os cultivos já estão armazenados,
exceto por alguns tubérculos que deixamo durante o inverno e o que
tiver nas estufas. Então festejamo e vamo pra comideira e repartimo
o pão, e comemo lentamente por horas e horas. Vinho e peru e...
ah, demora mais um dia pra descansar disso tudo.
Quando Connie terminou seu prato, as pessoas começaram a sair
da comideira, e elas as seguiram. Nas árvores altas do lado de fora
da casa das crianças, muitos balanços tinham sido amarrados, os
convencionais, balanços para uma pessoa, trapézios, balanços para
duas ou três pessoas, parecendo gaiolas, balanços redondos,
balanços em que pessoas se deitavam. De todos os balanços e
trapézios, crianças e pessoas de meia idade, e até uma senhora
com cabelos longos, estavam deslocando-se pelo ar, gritando uns
para os outros como um bando de macacos.
— Aquelu é Tacumesh. — Luciente apontou para uma garota que
se pendurava com um pé descalço em um trapézio, fazendo
piruetas como se o corpo dela não tivesse ossos. — Tacumesh
ganhou primeiro lugar em ginástica hoje. Como pessoa é graciose e
fluíde!
— Quantos anos ela tem?
— Dezesseis, acho. Tacumesh esperou até uns anos atrás pra
nomeação.
— Então vocês têm esportes. Você disse que ensina as crianças a
não competir, mas ela ganhou em primeiro lugar.
— Mas tentamo fazer as coisas bem-feitas. Isso é divertido... Uma
criança, quando brinca sozinha, tenta pular mais alto do que pulou
no dia anterior, não? Não ficamo de cerimônia pra saudar alguém
que fez bem. Queremo que todes se sintam... apreciades?... É um
ponto de ênfase, não? Talvez sempre alguma cooperação, alguma
competição aconteça. Em vez de competir pra viver, por recursos
escassos, por comida, tentamo cooperar nessas coisas. Competir é
como... decoração. Algo que pertence aos esportes, jogos, lutas,
corridas, saraus, carnavais...
No campo, perto do pouso do flutuador, as pessoas faziam
brincadeiras que envolviam contato ou muita corrida ou imitações ou
gritaria. Alguns eram jogos com objetos, como espadas macias que
se desmontavam, travesseiros que estouravam como bolhas.
Algumas estavam planando em grandes asas, saltando do morro
perto do rio, e de vez em quando alguém caía e nadava até a
margem enquanto as asas se dissolviam.
— Vocês fazem muitas coisas que desmancham rápido. Fizeram
isso no meu tempo também. Chamavam de obsolescência
programada.
— Brinquedos, frívolis, algumas coisas bonitas a gente faz pro
momento. São chamados de borboletas. Mas objetos que fazemo
pro dia a dia, fazemo pra durar. Seria uma pena usar recursos
escassos como o cobre ou aço numa máquina que funciona mal.
— Hummm. Itens de luxo são feitos pra uma vez apenas e os
necessários pra durar?
— Não exatamente. — Luciente parou em frente a uma parede
espelhada para admirar o vestido, dando voltinhas como uma
criança de roupa nova. — Luxos caem em duas categorias:
circulantes e descartáveis. Olha, estão jogando rede. Estão ali Lebre
e Bolívar.
Umas dez pessoas brincavam com umas cordas luminosas, que
eles prendiam de algum jeito em intervalos, e entrelaçadas elas
formavam uma grande teia brilhante na qual as pessoas eram
apanhadas. Uma caixa seria construída ao redor deles antes que
pudessem se dar conta e fugir, e então eles seriam prisioneiros até
que fossem abraçados, e podiam sair quando todos ficassem presos
e só uma pessoa ficasse solta. Lebre estava pulando entre os
cabos, num ágil zigue-zague.
— Luxos circulantes passam pelas bibliotecas de cada vila; novos
objetos bonitos são adicionados e algumas coisas são danificadas
ou desgastam. Trajes, joias, vasos, pinturas e esculturas; alguns
estão sempre emprestados na nossa vila. Outros passam adiante.
Alguns são pra uso pessoal, em festivais ou rituais. Alguns são para
diversão na casa das crianças, na casa de encontros, na comideira,
nos laboratórios, na fábrica de equipamento de mergulho. Ou
quando passeamo.
— Mas vocês têm que devolver. Vocês não ficam com nada! Tudo
pertence ao governo?
— Queremo passar adiante o prazer, Pimenta e Sal. Pensa, pro
meu aniversário no ano passado, eu usei uma capa negra como a
da Rainha da Noite. Já usei esmeraldas e, por um mês, um
Michelangelo ficou pendurado onde eu pudesse ver todo dia. Todo
prazer que consigo sorver dessas coisas eu tive e passei esse
prazer adiante.
Bolívar estava para ser fechado em uma caixa. Rapidamente,
Lebre saltou para frente e ficou preso com ele. Os outros riram e
gritaram. Lebre e Bolívar se abraçaram, se friccionando no
confinamento da cela, as paredes de corda luminosa. Connie podia
sentir que Luciente não estava contente. Ciúmes, ela podia sentir
como um vento podre. Ficou triste por Luciente. Então eles tinham
ciúmes ali. Os dois rapazes estavam vestidos iguais, nus exceto por
uma capa na altura do joelho jogada para trás. Ambos tinham
pintada no peito uma flor elaborada; Lebre tinha uma peônia
exuberante e Bolívar, um pálido lírio berrante. Luciente esqueceu o
que estava dizendo, esqueceu suas explicações bruscas, e seus
olhos se focaram nos dois amarrados pela teia, seus corpos magros
se abraçando debaixo das dobras das suas capas. Bolívar tinha sido
amante de Lebre bem antes que Luciente, era mais velho que
Lebre, mas muito mais novo que Luciente, que ficou dedilhando a
seda do vestido, desajeitada diante da similaridade direta, flexível e
ágil deles, sentindo-se excluída da teia luminosa da brincadeira
deles.
Ela pegou Luciente pelo braço, como ela tinha feito com Connie
muitas vezes, e a puxou ladeira abaixo em outra direção.
— Me mostre mais. Tantas pessoas. São todos só de Mattapoisett
e Cranberry?
Luciente olhou para o rosto dela e os olhos negros diziam que
haviam compreendido a gentileza de Connie. Com cuidado,
Luciente deu um selinho em Connie.
— Não. O festival é apenas para Cranberry e nós, a parte do
banquete. Mas a tarde de jogos é para todo mundo, e agora de noite
tem pessoas de todas as cidades da região de Foz-de-Mattapoisett.
Pra quem queira festejar com a gente.
Sentindo que tinha invadido a privacidade de Luciente, o que ela
mal podia evitar quando estavam conectadas, Connie quis dar para
a amiga uma parcela da própria vida.
— Amanhã minha sobrinha Dolly vem me visitar pela primeira vez
desde que me internaram.
— Dolly... Ah, pessoa que você protegeu de quem vendia sôa em
uma situação de brutalidade e exploração! Eu lembro. Está ansiose
pra ver sôa?
— Sim.
— Bom. Deixe o amor fluir entre vocês. Você deve perdoar Dolly
por te trair e Dolly deve perdoar você por tentar salvar sôa e ter
falhado, não?
— Estou muito feliz. Ela terminou com o Geraldo! Vou começar a
convencer ela a me soltar. Logo vou estar livre!
— Livre. Nossos ancestrais diziam que essa era a palavra mais
bonita da língua. — Luciente parou para pedir um gole de vinho para
Carvalho Branco, que vestia uma túnica longa aberta dos lados e
balançava uma caneca de vinho tinto. — Connie! Me diga por que
demorou tanto pra vocês palermas começarem? Compreende,
parece às vezes que vocês aguentavam tudo, qualquer coisa, e
pagavam por isso com o que tinham e não tinham. Como assim
demorou tanto pra vocês se unirem e começarem a lutar pelo que
era de vocês? Facilita a inteligência do saber ao olhar em
retrospectiva, mas parece que vocês lutavam mais contra os que
tinham um pouquinho menos ou mais que vocês, em vez dos
palermas que ficavam cada vez mais ricos.
— Quem você pode odiar do jeito que odeia seu vizinho? —
Connie pegou o vinho.
— Se não gostasse de minhes vizinhes, eu não moraria perto
delus.
— Às vezes, Luciente, nos odiamos mais do que odiamos os ricos.
Quando eu conheci um ricaço pessoalmente? O mais perto que
cheguei de alguém com poder foi quando estava de pé na audiência
com o juiz que me sentenciou. As pessoas que odiei, o poder que
elas têm sobre mim. Grande coisa, um poderzinho! Assistentes
sociais, cafetões, funcionários públicos.
— Não entendo muito do que foi dar em nós — Luciente disse
gentilmente, passando o braço pela cintura dela enquanto desciam
a ladeira. — Mas não inevitavelmente, compreende? Aquelus do
seu tempo que lutaram muito pra mudar geralmente tinham mitos de
que uma revolução era inevitável. Mas nada é! Todas as coisas se
interligam. Somo apenas um futuro possível. Você compreende? —
As mãos de Luciente ficaram duras como ferro em suas costelas.
Sua voz era penetrante e séria.
— Mas vocês existem. — Ela tentou rir. — Então tudo deu certo.
— Talvez. Sua época é tempo-crucial. Universos alternativos
coexistem. Probabilidades se chocam e possibilidades piscam e se
apagam pra sempre.
— Do que você está falando?
— Você está aprendendo, como não? — Luciente inclinou-se para
olhar para o rosto de Connie. — Nosse ancestral.
— Eu?! — Connie assobiou. — Honorável ancestral! Claro, reze
pelo meu espírito. Não esqueça de colocar bastante carne de porco
e galinha como sacrifício.
Quatro pessoas mais velhas tocavam violinos e outros
instrumentos em conjunto debaixo de um amontoado daquelas luzes
flutuantes agradáveis. As outras pessoas se espalhavam pelo chão
para ouvir. A música era mais antiga que ela.
— Beethoven — Luciente indicou. — Quarteto em Si bemol. A
Grande Fuga.
— O amigo do Claud, Otis, costumava dizer que, depois da
revolução toda, a Kulchur deles iria queimar nas ruas e ninguém
mais se incomodaria com essas coisas todas vindas da Europa.
— A gente não aproveita uma cultura, mas muitas, muitas artes,
todas com suas próprias intrasabedorias, visões, intenções e
belezas. Clarquessim parte do que a gente herdou parece...
fechado, trivial, embebido de ego, posturas de palermas que tinham
que atrair a aprovação de patronagens ricas ou corporações pra
sobreviver... mas muito disso a gente tem que amar, Connie.
Para além do brilho da pequena lagoa de luz flutuante, vagalumes
verdadeiros piscavam devagar no ar fresco. Em um bordo gigante,
uma criança encostada com os olhos fechados contava até cem de
cinco em cinco: esconde-esconde, uma brincadeira antiga já na sua
infância, mas que ela tinha amado quando criança nas ruas quentes
e empoeiradas do Texas. Correndo para se esconder, talvez
sozinha, talvez com sua melhor amiga Lupe, cujas tranças robustas
emolduravam o rosto escuro e parecido com um coração.
Esperando ser encontrada. O suspense crescia nela como um
arrepio quase sexual enquanto ela esperava, ou quando esperavam
juntas, rindo e abraçadas. O pior era não ser encontrada, ficar
esperando. O propósito aparente da brincadeira (se esconder de
uma forma tão boa que ninguém te encontre) dava lugar ao
verdadeiro propósito: sair de fininho livremente. Talvez, talvez
melhor ainda se Neftali, em cujo rosto de bronze ela tinha projetado
um anel de fogo, estivesse prestes a encontrá-la. Sim, esconde-
esconde realizava sua mágica ritual de geração a geração, algo
oculto na vida interior das crianças. “Vou fugir de casa e vocês não
vão mais me ver! Mas venham e me procurem”. O medo de que eles
não iriam se importar, não viriam atrás. Estar escondida e então ser
encontrada e alegremente ser trazida para junto do outros. Ainda
assim, temerosa, ela ficava deitada, seu coração batendo acelerado
na poeira debaixo da caminhonete. Quem viria? O que eles fariam?
A criança se virou da árvore e ficou parada piscando na escuridão,
hesitante, equilibrada em um pé só.
— É ela! — Connie gritou.
— Minha criança, Alvorada — Luciente disse suavemente na
penumbra. — Deixe elus brincarem.
O frívoli tinha um pedaço de pele falsa e um rabo peludo.
— Ela é um esquilo?
— Sim, pessoa tem uma fixação por esquilos ultimamente. Outras
crianças alimentam os pássaros e constroem alimentadores de aves
a prova de esquilos. Alvorada montou um alimentador de esquilos.
Alvorada disparou para os arbustos e, um momento depois,
ouviram um gritinho de descoberta. Alvorada veio correndo atrás de
um menino que estava a uns passos na frente dela, indo em direção
à árvore para se salvar. Bem perto da árvore, ela saltou e deu um
encontrão nele que o derrubou.
— Te peguei!
— Ela parece tão delicada.
— Boa coordenação, bons músculos. Reflexos rápidos. Alvorada
pratica bastante artes marciais. Você devia ter visto sôa lutando hoje
de tarde. — O entusiasmo de Luciente voltou e ela arrastou Connie
um pouco rápido demais para uma brincadeira com um grande
tabuleiro com pessoas em cima em vez de peças. O jogo parecia
conflituoso e barulhento, e os jogadores debatiam, com os rostos
escondidos por máscaras. Elas tinham acabado de chegar na lateral
do tabuleiro pintado quando o cognescedor de Luciente anunciou:
— Nova hologra na casa de reuniões. Nome: “O Espetáculo de
Perdição”. Duração: uma hora. Começa: nesta hora em dez
minutos.
— É a hologra nova de Lebre e Bolívar! Trabalharam nisso a
semana toda.
— Bolívar ficou desde que Safo morreu?
— Basicamente, Bolívar trabalha como espetaculadore. Essa é a
vila dissôa, mas pessoa fica longe mais do que aqui. Fica de plantão
para as vilas que querem rituais, festas, concursos. Bolívar é
excelente. Quando trabalham juntos, lindos eventos acontecem. —
Luciente falou com uma voz afetada, mantendo-se cuidadosamente
justa. — Lebre faz rituais sozinhe às vezes, mas, na maior parte do
tempo, pessoa trabalha com artes gráficas. — De braços dados,
elas caminharam para a casa de encontros, um prédio longo e
baixo, como uma bisnaga de pão.
Por dentro, era maior do que ela teria imaginado, porque era
construído em uma colina.
— Pra reuniões a gente só usa uma parte, então ficamo mais
próximos. As paredes podem ser tiradas em qualquer ponto. Desse
jeito é o maior que fica.
O teto arredondado a lembrou de um planetário, o mesmo em que
ela tinha levado Angie para a sessão de Páscoa. Angie tinha ficado
com medo do escuro e das estrelas que corriam na direção delas, e,
se arrastando até seu colo, afundou a cabeça, se recusando a olhar.
Gradualmente, Connie despertou a curiosidade dela e conseguiu
fazê-la dar uma espiada no céu de noite estrelada no teto.
O teto que via então também se tornou um céu noturno com mais
púrpura na escuridão do que aquele que elas não viam mais. Uma
pálida lua esverdeada surgia ao sul, sob uma das entradas. Aos
poucos, enquanto as pessoas iam chegando e tomando seus
lugares, uma lua de cor diferente surgia majestosa sob cada uma
das entradas: branca ao norte, amarela ao leste, vermelha à oeste e
verde ao sul. Assim que as luas atingiam o zênite, as quatro
começaram uma dança faustosa ao som de uma música que
aumentava gradativamente. A forma delas começou a mudar de
redondas para alongadas, crescente e em forma de asas de
pássaros, com imagens de voos imponentes, então uma corte
saltitante de grous americanos enormes estendiam suas asas
largas.
Assim que o lugar se encheu e as portas se fecharam, os grous
desceram do teto e se tornaram de carne e osso — apesar de ela
ter aprendido que aquelas imagens vívidas e tridimensionais eram
apenas um truque com projetores e luzes. Uma voz como a de uma
ave, uma voz de junco, sobrepôs-se à música sobre os grous
enormes e se desfez na canção. A imagem se alargou. Um enorme
grou a invadiu e então a cabeça dele se espalhou como nuvens e os
pés viraram água. Pequenos pontos pretos e brancos vieram se
agitando nas ondas que vinham em direção a eles, o pato-do-
labrador; o último dessa espécie tinha sido morto em 1875 nas
redondezas de Long Island.
O grande abutre, o condor californiano, pairou com uma
envergadura de três metros e meio. A águia-de-cabeça-branca
gritou e carregou um peixe para longe, para enfiar no bico de sua
ninhada, filhotes desajeitados em um ninho feito de galhos no topo
de um pinheiro seco. O urso cinzento manteve certa distância. A
baleia-jubarte rolou e mergulhou e vagou pelas profundezas
escuras, cantando seus épicos improvisados nos antigos padrões
de sua vasta cultura oral — levou um tiro de um navio processador e
sua carne fresca foi arrancada ali mesmo para virar comida de
cachorro. A última habitante de pele escura da Tasmânia, a última
de um ramo delicado e de pequeno porte da família humana, sendo
caçada e tomando um tiro em uma elevação de rocha, o corpo dela
esmagado contra a rocha nua. Pombos-passageiros escureciam o
céu com sua passagem agitada, daí pousavam em árvores que
brilhavam como eles, de um azul claro e avermelhado; o piado
deles, o calor empenado de seus peitos rosados e macios enchiam
o ar. Alarmados, debandaram em voo, o farfalhar das milhares de
asas agitando o ar e balançando as árvores. Levaram tiros, levaram
pauladas, foram capturados para se tornarem decoração, com os
pés pregados nos poleiros; foram arrastados de suas habitações,
foram chacinados e entregues como comida para os rebanhos.
Finalmente se foram todos, a última fêmea morrendo em um
zoológico em Cincinnati. Ishi, o último dos yaquis da Califórnia, saiu
de um bosque onde vivia sozinho, o último de um povo caçado, para
um mundo onde ninguém falava a língua dele, e morreu no Museu
de História Natural. Leões de pedra arcaicos sentados em fila na
Delos fustigada pelos ventos, leões marchando pelas paredes de
azulejos da Babilônia, deram lugar ao último dos leões asiáticos,
que morreu de fome sob uma árvore morta pela seca na Índia. O
corpo do leão se tornou as pradarias do oeste, onde o General
Sherman liderou uma campanha contra os índios e os búfalos.
Pilhas de corpos apodreciam sob o sol escaldante. Trigo cresceu
pelos corpos e o vento soprou a terra para longe em tempestades
de areia que escureciam o céu. Brevemente, os corpos se tornaram
ossos voando e então o céu ficou vazio como um crânio.
Os ossos estavam na poeira. Lentamente, eles criaram raízes que
se fincaram na terra desolada. Dos ossos brotaram pequenas
varinhas de mudas. As varas viraram uma árvore. O carvalho atirou
suas raízes nas profundezas e esticou seus maciços galhos. A
árvore se tornou um casal humano se abraçando, um homem e uma
mulher. Eles se apertavam, se abraçavam, lutavam, se
estrangulavam. Finalmente, passaram para dentro e através um do
outro. Dois seres andróginos ficaram: um ágil com pele negra, olhos
azuis e cabelos ruivos, que se abaixou para tocar a terra com as
mãos dela ou dele. O outro, atarracado, com pele morena clara e
cabelos pretos e olhos castanhos estendeu os braços dele ou dela
para as árvores e o céu e um gavião pousou em seu pulso. Uma
teia verde e marrom fluiu deles e para dentro do outro. Eles estavam
apoiando-se no ombro de uma enorme formiga. Parreiras nasciam
das pontas dos seus dedos. Abelhas em bando passavam pelas
cabeças. As imagens dos animais pareciam reais, não pareciam
animações, mas seres vivos. A última imagem foi a água fluindo,
que se transformou em um grou voando.
Apenas em nós vive quem morre.
As águas descem e nos atravessam.
O sol esfria nos nossos ossos.
Nos juntamo a tudo o que vive.
Em uma teia de energia que canta.
Em nós vive quem morreu e nos fez.
Em nós vivem as crianças por nascer.
Respirando o ar une de outre.
Bebendo a água une de outre.
Comendo a carne une de outre crescemo.
Como uma árvore da terra.
O grou voou para o teto e lentamente se dividiu em quatro luas,
que se puseram em quatro diferentes direções. O salão se iluminou.
Ela viu o rosto de Alvorada olhando para o alto a duas fileiras de
distância, observando a lua oriental em sua descida. No futuro real
deles, Connie já estava morta há cem anos ou mais; era a morta
que vivia neles, uma ancestral. Sentindo-se distante daquele
momento, seus olhos se fixaram no rosto pensativo de Alvorada.
Um terrível desejo de abraçar aquele corpo infantil provocou em sua
pele um comichão de desejo. Tocá-la gentilmente, só uma vez.
Luciente sabia ou leu seu olhar. Quando o salão iluminou-se, ela
chamou:
— Alvorada? Por favor, venha um minuto.
Alvorada olhou ao redor, olhou para elas e veio de forma ágil pelos
corredores que estavam se esvaziando.
— Bualuz! Você é pessoa do passado!
— O nome dissôa é Connie — Luciente disse, beijando a orelhinha
que aparecia em meio ao cabelo escorrido.
— Posso te beijar? — a voz de Connie vacilou.
Alvorada olhou para ela com um olhar límpido e castanho como
areia, inquisitivo. Hesitante. O tremor na voz dela. Queria demais,
assustou a criança. Mas Alvorada disse afinal:
— Tudo bem.
Rapidamente ela beijou a bochecha da menina, segurando-a
ternamente pelos ombros. Ela era duas vezes maior do que
Angelina quando a vira pela última vez, mas ainda era pequena.
Ossatura pequena. Alvorada saltou para longe, olhando para trás
com curiosidade. Daí seguiu de perto duas outras crianças que
corriam.
— Adeus, esquilinha — ela disse, depois que a menina se foi.
— Alvorada gosta mais de esquilos vermelhos, porque são
menores, porém, mais corajosos.
— Como ela.
Caminharam até a entrada oeste.
— Aos quatro anos, Alvorada era tímide. Nós nos preocupamo.
Eu, as comães. Lutamo pra trazer sôa pra fora.
— Mas você disse que respeitam as diferenças.
— Diferentes qualidades, respeitamo. Não fraquezas. Qual é a
utilidade de não se engajar com a vida? De qualquer modo, isso
passa.
— Às vezes, você não tem escolha. — Ela pensou no sanatório.
Do lado de fora, na noite suave, música flutuava no ar. Na praça
perto da casa de reuniões, seis músicos estavam tocando. As
pessoas começaram a dançar sozinhas, em casais, em pequenos e
grandes círculos. Abelha e Erzulia estavam deitados de braços
dados um pouco mais distantes, conversando com o rosto próximo
um do outro. A música era sutil com uma batida forte e
contratempos: ritmo cruzando com ritmo, mas penetrando pelos pés,
pernas, quadris, bunda, ombros. Alvorada estava dançando com as
duas crianças que ela tinha perseguido antes, girando e girando e
segurando nos braços fininhos umas das outras.
— As crianças ainda estão de pé. Deve ser dez e meia, onze
horas.
— Elus trabalham bastante. Acordam cedo todo dia, exceto nos
festivais. Não deveriam ter feriados? Quando não conseguem mais
ficar acordades, caem no sono. Se adormecem no gramado, alguém
carrega pra casa.
— Vocês têm uma fé maravilhosa nas outras pessoas!
— Sem essa fé social, que fardo seria ter crianças! As crianças
são as herdeiras de todes, a preocupação de todes, o futuro de
todes.
Uma memória de um jantar com comida de cachorro. Ela se
preocupava, pois nunca mais tinha conseguido comprar carne
depois da prisão de Claud. Os preços dos alimentos aumentavam
toda semana no supermercado, e ela nem podia se dar ao luxo de
furtar algo, porque estava em condicional. A única carne que
conseguia comprar era comida de cachorro enlatada. Deveria ter
servido a Angie em uma tigela no chão. Quem sabia o que
colocavam nessas latas? O melhor amigo do homem era um
cachorro policial enorme, não uma criança morena como Angie. Os
cachorros serviam como defesa contra pessoas pobres como ela.
— Come, Angie, por favor! É um virado gostoso. — Ela tinha
colocado chili em pó e ervas.
— Por quê? — Angie apontou para a foto do cachorro. — Por que
tem uma foto de cachorro?
— É só uma figura que eles colocam. Como Pernalonga no cereal.
Angie ficou com medo de que elas estivessem comendo um
cachorro. Ela não queria comer carne de cachorro, explicou. Ay de
mi!
— É carne! Como hamburguer. Não daria cachorro pra você
comer! — Será que não daria mesmo, se encontrasse um barato à
venda? Ela tinha de alimentar Angie com qualquer coisa que
encontrasse para encher as barrigas delas. Que escolha tinha?
Luciente a segurava pelos ombros.
— Você está sumindo! Venha. Fique. Dance comigo. — Empurrou-
a até a praça.
— Não sei dançar!
— Do jeito que você quiser. É pra se divertir.
Ela semicerrou os olhos e seu corpo começou a sentir a música.
Ela ainda ficava alarmada quando mexia os quadris e o frívoli com
todas as suas bolhas que mexiam e se afastavam do seu corpo nu.
Mas ninguém estava vestindo muita roupa mesmo. Ela não tinha
dançado desde... a primeira vez no manicômio, uma triste festa de
Natal, uma paródia de um baile antiquado, valsa e foxtrote e uma
rumba ocasional e tímida, giros e mais giros sob os olhos atentos
dos funcionários e os olhares sedentos da maioria que não dançava.
Luciente era uma parceira melhor do que qualquer outra que ela
tinha tido naquela noite cheia de “com licenças” e melancolia e um
apertão apressado e ocasional. Ah, nada era mais triste que olhar
em volta e ver aqueles pacientes, negros e latinos, observando uns
aos outros tentarem agitar as cadeiras, tão aparvalhados pelo
Amplictil que mal conseguiam fazer os passinhos de zumbi.
Ela abriu os olhos enquanto a banda começava uma música mais
rápida e viu Bolívar e Lebre dançando. Lebre se movia de forma
louca e largada e explosiva. Bolívar era um pouco mais contido,
fazia o que fazia bem, mas não era muito criativo. Movia-se com
uma elegância medida, mas Lebre explodia ao seu redor. Luciente
estava dançando para Lebre sem nem mesmo olhar para ele, e
Lebre estava consciente disso também, assim como um ressentido
Bolívar.
Connie encorajou Luciente a continuar. Abelha estava agora com
Carvalho Branco, batendo papo e observando. Erzulia dançava
sozinha, absorvida em uma espécie de transe no qual nada vivia,
apenas ela, e a música se focou nos tambores pulsantes. Alguém
mais observava também, uma moça alta que estava com duas
outras nos degraus que levavam à casa de encontros. O cabelo dela
estava em um turbante branco e um seio estava à mostra, assim
como seus pés. No pescoço, ela tinha um pingente de lua
crescente, que se destacava no branco do seu vestido. Ela deixou
as duas mulheres na escadaria e se esgueirou em meio aos que
dançavam, indo na direção delas, aproximando-se de Luciente por
trás. Abelha se moveu para dentro do quadrado e começou a
dançar ao lado delas. Ele sorriu para Connie com uma alegria que
ela não entendeu.
A mulher alta parou atrás de Luciente, seus olhos castanhos
enrugados de tanta malícia. Desfazendo seu turbante de modo que
o cabelo ruivo se espalhasse pelos ombros, ela segurou as duas
pontas do lenço e jogou por cima de Luciente, laçando-a na altura
da cintura e puxando-a para trás. Desequilibrada, Luciente caiu e
ficou ali, presa, sua cara pasma com a surpresa.
— O que é isso?
— Você dança tão maldosamente quanto na época que tinha
dezoito anos. Sem vergonha ainda, brilhando no escuro. E esse
vestido é decadente. Você vai morrer como Safo aos oitenta e ainda
mordiscando jovens amantes!
— Diana! Não me provoca assim. — Ela tentou virar a cabeça,
mas Diana a tinha imobilizado. — Essa é Connie, a pessoa do
passado.
— Sou Diana, a pessoa do passado de Luciente — disse Diana de
modo espalhafatoso, uma risada vinda do fundo do peito. — Esse
frívoli me dá arrepios — ela murmurou, olhando de cima a baixo. —
Tem o mesmo gosto duvidoso daqueles dois vestidos de Aquiles e
Pátroclo ali.
— Diana! — Luciente se virou na confusão que o lenço tinha
formado e colocou as mãos nos ombros da moça mais alta. — Você
não veio me abordar pra critar meu frívoli.
— Pra tirar ele, talvez? — Diana soltou o lenço. — Vem caminhar
comigo... Já faz muito tempo que não caminhamo sob a lua.
Luciente deu uma risada alegre e sonora.
— Que falsidade! Não tem lua hoje. E você não me convence de
que está triste e abandonade com sua turba de amigues doces me
dando aqueles olhares ali da escadaria.
— Sempre tão literal. Você nem consegue dizer como tão olhando
dessa lonjura! Estou usando minha lua... vem!
— Agora você vai ter que aceitar meu salvamento. — Abelha falou
no ouvido de Connie.
Luciente se virou para eles, desculpas estampadas no rosto,
corando como uma menina de quinze anos. Então, deu a mão para
Diana e elas se foram rápido por entre os que dançavam e para o
escuro.
Connie olhava para elas, perplexa.
— Não sou uma cabra com a dança — Abelha disse ao lado dela.
— Vim te buscar quando vi Diana descendo. Quando gosto da
música, quero deixar minha mente viajar com ela. — Com esse
cuidado reconfortante, ele tomou seu braço e a levou para fora da
praça. A mão grande dele era pesada e quente na sua: uma
aceitação afetuosa por ela como a de Luciente, mas diferente,
porque seu braço inchou e ficou quente onde ele a tocava.
— Eu não te conheço — disse hesitante.
— Somente por Luciente a gente se conhece.
— Mas você me lembra alguém.
— É mesmo? — Engraçado e acolhedor ao mesmo tempo.
Depois de se afastarem do barulho da música — que estava alta
na praça, mas abafada por defletores mais distanciados —, a noite
se encheu de pequenos ruídos. Alguém cantava e tocava bandolim.
As pessoas iam de braços dados, ombros e cinturas coladas, para
as cabanas onde as luzes tinham começado a piscar, acendendo ou
apagando. Lontra, seus longos cabelos, livres das tranças, lisos e
escuros como um cetim até a cintura, estava sob uma das luzes
flutuantes olhando para uma pessoa jovem que também a olhava
fixamente. Lontra tocava o rosto da outra pessoa com as pontas dos
dedos e então riu, sem fôlego, como se mal conseguisse respirar.
Uma pessoa velha, bêbada, com o rosto enrugado, estava
recostada e com a boca aberta olhando para as estrelas que podiam
ser vistas agora em meio às luzes flutuantes, cantando com uma
voz fina em um tom menor:
Como amávamo,
Deitades numa cama,
Enquanto a noite corria
Como água lépida, célere
Para os dentes da alvorada:
Devo abandonar,
continuar.
Meus flancos doem.
O arco atirou sua
Flecha e a corda
quebra.
No escuro, uma outra pessoa ouvia e começou a acompanhar a
música com uma trombeta. O mel e vinagre metálicos escorreram
por seu corpo. Sua mão apertou a de Abelha mais forte. Ele
respondeu ao aperto e largou a mão. Ela se sentiu envergonhada,
até que o braço dele a enlaçou, puxando-a para mais perto de si
enquanto caminhavam cada vez mais devagar, o quadril dela
chocando-se contra a coxa dele. Ela não conseguia falar, sua carne
parecia doce e pesada nos seus ossos. Ela se sentia cheia de
velhas lágrimas e desejos, a memória de Claud e a presença de
Abelha, que não era Claud, mas que a fazia se lembrar dele. Uma
mão enorme em sua cintura, e o polegar que tocava seu seio por
entre o frívoli que se partia para aquele dedo robusto e quente, a
inquirindo e recebendo como resposta uma tremura nos joelhos e
fôlego alterado, movendo-se por instinto mais rápido do que a
vontade de pedir que ele parasse. O polegar servia como um
mensageiro de outro membro que ela podia sentir ao se colar ao
corpo dele para um beijo. No momento em que os lábios dele se
moveram até os dela para um beijo longo, sensual e paciente, uma
voz cantava, rouca e alegre:
Que bom lutar ao seu lado,
Povo da minha base.
Com vocês trabalho
Cara a cara.
Com vocês planto milho,
Retiro os frutos das macieiras.
Que bom lutar ao seu lado,
Amizade de longa data,
Mãe das minhas crianças.
Compartimo a sopa e os pães,
Os problemas e as reuniões
Que duram até o alvorecer.
Que bom lutar ao seu lado.
Um exército de amantes não pode perder,
Um exército de amantes não pode perder.
Que bom lutar une por outre.
— Como alguém pode cantar sobre luta em uma noite como essa?
— ela perguntou, aninhada no peito dele, dando um suspiro.
— Em uma noite como essa, pessoas morrem nos fronts, como
em qualquer outra — ele disse. — Esse frívoli atrapalha com as
bolhas. — Ele apontou para a escuridão. — Aqui é meu espaço.
Quer entrar?
— Você sabe que eu quero. — Ela riu. Ficou admirada ao ouvir
aquela velha risada sincera, aquela risada sensual que o Claud
adorava ouvir quando colocava as mãos nela. Nos últimos anos, ela
tinha rido pouco e nunca daquele jeito.
Eles andaram trôpegos pelo caminho e subiram dois degraus e
abriram a porta, que se abriu com uma puxada. A porta se fechou
atrás deles com uma batida. Ele tateou a parede.
— Vou acender a luz.
— Não, por favor. Deixa assim escuro. — Ela não queria ver o
espaço dele, a estranheza de outro tempo. Ela queria estar em um
simples espaço com uma cama, o espaço de um corpo no outro,
que era constante em todos os tempos.
— Como você quiser. Eu te vejo com meus dedos.
Ela ficou assustada quando ele disse aquilo, como se tivesse lido
sua mente, seus desejos e lembranças. Quanto Luciente tinha
absorvido e conhecido dela? Ainda assim, sentia a gentileza dele
irradiando em sua direção e relaxou e aceitou tudo assim como
tinha aceitado a brisa que entrava pela janela aberta.
— O que é aquilo ali fora? — Um pássaro na noite.
— Notibó. — Os braços dele a envolveram, ele a levou até uma
cama firme e baixa, coberta de coisas macias, sedosa e pegajosa,
mas grossa, como se fosse uma pilha de cetim. Ajoelhado, ele a
puxou para baixo e ela se deixou cair na cama invisível. Enquanto
ele a ajudava a se livrar do frívoli, ele se deitou ao lado dela, já nu, a
vastidão do corpo dele por todos os lados. O choque de veludo
poderoso de pele na pele. Ela soltou a cabeça para trás, agarrando
as costas dele com as unhas. Ele lentamente começou a construir o
corpo dela no escuro, pintando-a a cada toque para que toda a pele
dela, como uma janela, brilhasse de dentro para fora.
Mais uma vez a noite deu a ela uma grande e generosa boca nas
suas costas arqueadas, seus seios queimando como uma fogueira,
sua barriga se movendo ao comando das mãos dele. A cabeça era
diferente, lisa como uma rocha quente. Seu corpo explorando cada
parte do dela. A pela macia contra suas coxas, a cabeça dele
repousando ali, lábios e língua dentro dela, onde só Claud tinha
estado assim antes, fazendo o prazer surgir molhado, e ela se
derreteu para ele mesmo antes que ele tirasse sua boca e se
movesse para cima, se encaixando e a penetrando. Ela se sentiu
tão plena. O gosto pegajoso e salgado dela na boca dele. Ela
imaginava que jamais fosse sentir aquele peso de novo, o outro
corpo pesado, por ela toda, as línguas se entrelaçando enquanto
seus sexos se moviam juntos. Tão bom, tão bom, todos os dedos
dela se espalhavam pelo enorme traseiro firme dele, cada dedo
alerta ao extremo e fincando-se na carne macia dele. Ela se sentiu
enorme e inchada de prazer, tão sensível a cada estocada daquele
mastro enquanto ela o cavalgava, ela sentia como se também o
penetrasse de alguma forma. Uma vez mais se moviam juntos e
completos, ela preenchida por ele, aberta e latejante; uma vez mais
ela podia sentir o fluxo quente do gozo dele a inundando; uma vez
mais ela se apertava contra ele, ainda ereto, e sentia ele se mover
para cima para poder aumentar o contato das peles; uma vez mais
ela sentia o prazer se aprofundando e se espalhando como uma
corda que tocava todas as oitavas ao mesmo tempo, sustentando o
som, que ficava ali em suspenso até se desfazer em pequenos
acordes.
As mãos dela amoleceram e ela as deixou cair. Ele diminuiu o
ritmo, esperou e parou. Ela sentiu o peso sobre si. Eles se
separaram, mas ficaram lado a lado. Quando ela abriu os olhos,
pôde ver fracamente os objetos, o formato da mesa, da cadeira com
algo pendurado nela. As folhas balançavam com um som úmido do
lado de fora.
— Tenho que voltar logo. Eles nos acordam cedo todo dia. Pra
fazer nada.
— Cada vez que você nos deixa, nos sentimo mal. Entristecemo
por não te ajudar.
— Isso ajudou. — Ela se apoiou no cotovelo para se levantar. —
Mas... como posso estar aqui ainda sem Luciente?
— Luciente está ajudando.
— Ajudando a gente...?
Ele passou as costas das mãos pela bochecha dela.
— Como não? De que outra forma poderíamo estar juntes?
Ela se endireitou e se cobriu com a colcha.
— Ela está sabendo da gente... na cama?
— Sal e Pimenta, não seja abobalhade. Todes nos importamo com
você. Mas você é de uma sociedade com muitos tabus. É mais fácil
pra mim abraçar você por todes nós.
— Agora vai me dizer que vocês planejaram isso.
— Não, não. — Abelha riu entre os dentes, acarinhando o ombro
dela. — Mas nós comunimo bem une com outre.
— Ela... você... estavam me dando Claud de volta por uma noite.
— Não sou o Claud. Talvez eu me pareça com Claud. Talvez me
mova como sôa. Você acha isso. — Sua voz ressoou. — Talvez eu
seja potencialidades em sôa que não puderam florescer na sua
época. Mas também sou eu, Abelha, amigue de Luciente e de você.
Ela tocou de leve o peito dele.
— Com certeza. Não importa como faça, o que quer que isso
signifique, foi muito bom. Você sabe.
De manhã, ela se sentia meio grogue e de ressaca quando a
música de elevador invadiu o sistema de som com a voz masculina
anunciando que era hora de os pacientes se levantarem. Enquanto
estava na fila para o banho, memórias sensuais brincaram nas suas
coxas, na sua barriga. As mãos dele, a boca, o peso dele em cima
dela, a maciez da pele linda. A alegria atravessava os refugos da
manhã. Ela se sentia sonolenta, a fatiga gritando dentro do crânio,
mas ela não ligava. O dia, para variar, acenava com possibilidades.
Tinha uma forma de esperança completa; a tarde era como uma
ladeira que dava para uma linda vista, então ela deveria subir.
Não era impaciência o que sentia enquanto esperava na fila para o
costumeiro café da manhã, que consistia em uma poça descorada
de mingau de aveia e a racionada xícara de café amargo, mais
precioso do que droga. O dia todo se estendia em direção à
chegada de Dolly. Ela manteve a lembrança da noite forte antes que
se dissipasse, como um doce que ela podia chupar longamente
durante a semana em vez de comer de uma vez.
Será que ela podia contar para Dolly sobre o Abelha? Podia se
referir a ele como um paciente que a estava paquerando. Como
será que era o namorado novo da Dolly? Ela devia estar se dando
melhor com ele do que com Geraldo. Dava para ver na carta que ele
também era o cafetão dela. Como ela podia gostar de um cafetão?
Parasitas dos esforços das mulheres. Piolhos. Por que a Dolly ainda
estava nas ruas? Dívidas, dinheiro, a filha Nita para alimentar.
Sem julgamentos! Deixe o amor fluir: Luciente acenava com sua
mão cheia de calos. Connie penteava sem parar seu cabelo crespo.
Aquelas raízes brancas. Como a aparência dela estava maltratada,
sua pele parecia um cinzeiro. Dolly, tão jovem e rechonchuda e
suculenta, como ela poderia querer continuar ali depois que visse a
tia? Uma maluca com o cabelo de gambá dentro de um vestido
velho e vários tamanhos maior que o seu, se arrastando para se
encontrar com ela como algo que tivesse acabado de voar da
parede.
A senhora Yoshiko, auxiliar do final de semana, trouxe para ela um
batom vermelho brilhante. Ela devia ter o mesmo peso de Connie, e
riu e colocou uns grampos no cabelo dela para que parecessem
diferente e um pouco melhor.
— Agora sim. — Ela falava pouco inglês, mas às vezes sorria e
olhava para eles quando falavam.
Depois do almoço, Connie se sentou na mesa de baralho e jogou
buraco com a sra. Stein e perdeu muitas das fichinhas brancas que
elas cortavam de uma revista para usar como dinheiro. Ela esperou.
Uma hora! O horário de visita começou. Ninguém para ela.
Claro que ela não podia esperar que a Dolly fosse chegar à uma
hora! Levava duas horas para chegar ali de Nova Iorque; mais se
tivesse trânsito. Num domingo de verão, talvez umas três horas? Se
tivesse trânsito, três horas e meia! Não deveria ficar esperando
até... vamos ver: suponhamos que Dolly acorde às dez. Dez e meia
se ela tivesse trabalhado até tarde. Vamos dizer às onze. Ela não
sairia de casa antes do meio-dia. O namorado a pegaria. Digamos
meio-dia e meia. Então eles não deveriam chegar antes das quatro.
Decidiu que só começaria a esperar por Dolly depois das três e
meia.
Mesmo assim, cada vez que o telefone tocava na sala dos
enfermeiros, cada vez que a trava da porta fazia barulho, ela gelava
e as cartas perdiam o foco. Ela ansiou e esperou e observou os
outros visitantes indo e vindo. A tarde se esvaiu. Ela não conseguiu
mais jogar baralho. Andava de um lado para o outro o mais devagar
que podia, pelo dormitório e até a sala comum, na sacada. Cada vez
que o telefone tocava ou a porta dava um estalo, ela corria para o
balcão e ficava ali de pé, meio deslocada, esperando e aguardando.
Às cinco horas tudo acabou. O último visitante foi enxotado. Dolly
não apareceu.
CAPÍTULO 10

A segunda-feira chegou como um baque. Skip estava certo, e ela foi


levada para a nova ala, montada como uma sala hospitalar no
prédio dos médicos. Uma divisória de compensado separava os
homens das mulheres, e havia uma porta que no momento estava
aberta. As portas para o exterior estavam trancadas. Tinha menos
conforto do que no G-2: não havia varanda nem uma sala comum
separada com tv. Gordo ainda estava com eles, mas a moça
auxiliar parecia não saber onde ficava nada no hospital e reclamava
alto que ela tinha de acordar às cinco e meia para estar ali. A sra.
Valente era uma mulher robusta com algo de errado na língua ou no
palato, o que a fazia falar de forma abafada e estranha.
Sybil já estava ali, suas pernas longas cruzadas em cima da cama
enquanto ela esperava para ver o que iria acontecer. Sybil tinha
jogado um roupão sobre a maca do lado para ela, e Connie o
agarrou agradecida. Perto da enfermaria, uma cama estava com as
grades levantadas. Nela havia uma mulher negra com um capacete
branco feito com bandagens e, no topo, um aparelho empoleirado
como um gorro metálico.
— É a Alice Traseiro Azul — Sybil assobiou. — Olha o que fizeram
com ela!
— O que é aquilo? Ela se acidentou?
— Acho que não. Não parece bizarro?
Connie olhou para o outro lado da ala.
— Tem certeza de que é ela?
— Li o nome na prancheta no pé da cama, Consuelo.
— Ela está inconsciente? — Connie percebeu uma máquina
apoiada em umas pernas ao lado da cama.
— Não. Ela fez uma careta quando entrei, por isso fui olhar o
nome na prancheta. Fiquei envergonhada de não a reconhecer,
então eu falei “oi”, e ela disse “olha o que fizeram comigo!”. Ela não
falou exatamente assim, mas foi mais ou menos o que ela quis dizer
em linguagem vulgar.
— O que ela falou que eles fizeram?
— A Valente me enxotou antes que eu pudesse fazer mais
perguntas.
— Parece que eles estouraram a cabeça dela. Talvez ela tenha
tentado fugir. — Connie olhou para as janelas altas e gradeadas.
— Valente é tão cruel a ponto de deixar marcas tão visíveis? Uma
meia com um sabonete dentro foi o máximo que já usaram em mim.
— Psiu! Connie! — Skip veio até a porta.
— Skip, eu não posso te pagar ainda. Minha sobrinha não
apareceu no domingo. Mas ela vem no fim de semana que vem —
disse rápido.
— Me trouxeram pra cá na sexta. A Alice já estava na cama e toda
enfaixada. Ela disse que eles levaram ela de ambulância até a
cidade e fizeram uma operação nela e trouxeram de volta.
— Eita, mas bateram nela?
Skip balançou a cabeça.
— Fizeram algum tipo de operação. Espetaram agulhas no
cérebro dela.
— Está brincando? — Talvez Skip fosse louco. Ainda assim, ela se
sentiu fraca de medo. — Que tipo de agulhas? Ela estava falando
com a Sybil.
— Ela falou mesmo — Sybil disse de forma altiva. — Ela estava
melhor do que se tivesse levado choque.
— Vocês não acreditam em mim, mas vão ver! — Com a
dignidade ferida, Skip saiu pisando forte de volta para o lado
masculino.
— Agulhas no cérebro... — Soava como uma fantasia louca, como
os fornos de micro-ondas da Sybil, que queimavam a mágica.
Glenda insistia que o eletrochoque era um motorzinho de dentista.
Talvez eles tivessem dado uma injeção na cabeça da Alice, um
medicamento injetado direto no cérebro? Isso era louco demais.
Esses novos medicamentos que experimentavam faziam seu rim
virar pedra ou a língua ficar preta e inchada na boca ou a pele
esfarelar aos pedaços ou seu cabelo cair aos punhados, como
enchimento de um sofá velho. Talvez injetar direto no cérebro
fizesse você virar um zumbi muito mais rápido do que levar muito
choque.
Essa ala era peculiar, porque parecia mesmo um hospital. O
hospício sempre soou para ela como uma piada; nada se curava ali.
Na primeira vez, ela tinha desejado muito o que chamavam de
saúde, sua expectativa era de que alguém fosse ajudá-la. Ela tinha
certeza absoluta de que, em algum lugar do que eles chamavam de
hospital, havia alguém que se importava, alguém com respostas,
alguém que diria para ela o que havia de errado com ela e a
moldaria para uma nova vida. Mas a realidade era dizer “por favor” e
passar batom e se sentar na mesa de baralho, obedecer e trabalhar
por nada em troca, limpando a casa dos funcionários, ignorar
trapaças e abusos, ficar quieta quando os observasse batendo nos
outros pacientes, fingir que estupros no armário de roupa de cama
eram uma fantasia dos pacientes.
Mas aquele era um hospital de verdade, ainda que bem antigo.
Havia quinze mulheres com ela na ala. Sua cama era um leito de
hospital que subia e descia, mais confortável do que qualquer coisa
onde tinha dormido há anos, desde a época em que tinha sido
amante-secretária-faz-tudo-criada-empregada do professor
Silvester. Sentindo-se como uma mão calejada, ela sorriu para Sybil
e as duas começaram a tentar descobrir como iriam se virar ali, o
espaço que poderia existir, que tipo de benefícios poderiam obter.
Na terça, ela foi confinada em seu leito, como se estivesse doente.
Os médicos viriam de manhã. Na segunda à tarde, eles tinham
pedido uma bateria completa de testes — sangue, urina, reflexos,
tudo sendo observado pelo dr. Morgan. Redding não tinha
aparecido, estava dando aula em algum lugar. Ele era ligado a algo
chamado Identificador Nacional de Planos de Saúde de Nova
Iorque. Era um homem importante. Connie estava começando a
sentir que a presença dele trazia má sorte. Melhor era quando ele
estava ocupado em algum outro lugar, com outras pessoas. Havia
outros, pacientes no hospital da cidade, mas eram pouco
satisfatórios. Pacientes externos escorriam pelos dedos, as famílias
interferiam; não se podia depender deles. Já eles, em suas camas
enfileiradas, eram de alguma forma mais satisfatórios.
Ela cochilou na cama, grogue com os medicamentos.
Casualmente, naquela manhã, projetou um convite para Luciente.
Ela se sentia tímida, envergonhada. Experimentando, abriu sua
mente e sentiu a resposta de Luciente. Como tinha ficado fácil se
deslocar para Mattapoisett! Ela não voltava mais exausta. Era como
se sua mente tivesse desenvolvido músculos; ela podia facilmente
chamar a atenção de Luciente, saltar no tempo e voltar.
A família de Luciente — Abelha, com sua cabeça meio inclinada,
sorrindo muito para ela, a velha Sojourner à esquerda dele,
Barbarossa, Lontra com suas tranças longas parecendo chinesa, a
mulher quase loira, Estrela da Manhã, agachada com Alvorada,
Lebre encarando um dos painéis decorados com um olhar sonhador,
Gavião tirando caca do nariz, Luxemburgo prestes a dizer algo e
logo se lembrando de que não era mais mãe de Gavião, e ainda
havia o tabu do silêncio — estava toda sentada em redor da mesa
na comideira, tomando café da manhã com grãos integrais, nozes,
sementes de girassol, mirtilos e iogurte. O leite tinha um sabor muito
acentuado, como o que ela tomava na casa da avó. Na escola,
diziam que o leite cru fazia mal, mas a avó dizia que deixava mais
forte. Várias canecas fumegavam com chá herbal.
— Vocês não tomam café?
— Pra começar as reuniões e no meio delas, se forem muito
longas. Assim como o chá. — Luciente bocejou. — Também quando
acordamo muito cedo, pra colheita.
— Mas vocês não tomam todo dia?
Abelha se virou com intenção de responder, mas Barbarossa já
estava pronto com a resposta.
— Café, açúcar, chá e tabaco, eles todos tomavam terra
necessária para alimentar a população local, que estava com fome.
Agora algumas terras são usadas para luxos mundiais, mas a
maioria é usada para plantações necessárias. Imagine o sistema de
plantação, pessoas com fome enquanto grandes latifúndios
comprados por estrangeiros cultivavam para países ricos um líquido
sem valor nutritivo, ruim para os rins, o coração, se bebido em
excesso.
— Eu não aguentaria um dia sem café! Isso é a pior coisa que ouvi
sobre o sistema de vida de vocês.
Todo mundo ficou chateado, e até Lebre parou de olhar para o
painel que o ofendia. Cinco pessoas começaram a falar ao mesmo
tempo sobre proteína e subdesenvolvimento e a criação da fome,
quando Alvorada soltou:
— Pessoal, atenção! Tive um sonho hoje. — As outras conversas
pararam. Ela se envaideceu com a atenção, fazendo uma careta de
seriedade. A cabeça de Estrela da Manhã se movia como um sol
pálido. — Sonhei que voei pro passado. Voei praquele rio e impedi
aquela usina nuclear de matar todo mundo na Filadélfia.
— Isso foi um sonho dormindo ou desperta? — Lontra soltou um
sorriso cético, arqueando as sobrancelhas.
— Bom, eu estava meio dormindo.
— Não tem nada de errado com sonhos despertos — Sojourner
disse com uma voz fanha. — Querer salvar vidas é um bom desejo.
— Todo mundo tem feito tanto alarde pra se conectar com o
passado. — Luciente trocou um olhar malicioso com Lontra. — A
culpa é toda de euzinhe. — Ambas sorriram.
— Madalena diz que é importante — Alvorada insistiu. — Diz que
senão vamo desaparecer.
Abelha, cujo olhar Connie tinha cuidadosamente evitado, ressoou
com aquela voz profunda:
— Plantar feijão corretamente é importante. Defumar o peixe pra
não estragar. Guardar comida a vácuo. Lutar bem, como você fez no
sábado. Tomar boas decisões nas reuniões. Ser gentil com os
outros.
— Mas algumas coisas são mais importantes! — Alvorada esticou
o queixo para frente. — Quero fazer algo muito importante, como
voar pro passado e fazer ele dar certo.
— Ninguém pode fazer as coisas darem certo — Gavião disse, o
nariz reto enrugado pela contrariedade. — Passa o mel.
— Ninguém é indefese. Ninguém controla. — Sojourner tinha um
rosto amassado e macilento e olhos que cintilavam com vivacidade.
— Não podemo fazer as coisas darem certo no passado. Só
podemo falar com aquelus que ouvem. — Ela piscou para Connie.
— Tem muitos de nós? — ela perguntou. — Muitos que vêm pra
cá?
— Hummm... o quê? — Luciente estava bocejando de novo. —
Quem vem? Só cinco até agora. É estranho. — As mãos de
Luciente desenharam quadrados no ar. — A maioria dos que
atingimo é mulher e muites tão em hospícios e prisões. Achamo as
pessoas que tenham a mente aberta por um instante, mas no
primeiro contato real elus se afastam de medo.
— Por que está nos contatando? Você tinha dito que eu ia
entender, mas esqueci de pensar no assunto. Parece umas férias do
manicômio.
Uma onda de desconforto passou pela mesa.
— É difícil explicar — Abelha disse, franzindo a testa. — Ninguém
deve discutir avanços na ciência com você. Poderia ser perigoso pra
você, pra gente. As pessoas cientistas do seu tempo eram tão...
infantis? Cuidadosamente educadas em um curso de estudos no
qual entraram cedo, sem nunca perguntar as consequências, nunca
considerando um amplo espectro de efeitos, nunca perguntando em
nome de quem...
— Mas não sou nenhuma cientista. O que vocês querem de mim?
— Seus olhos tocaram os de Abelha e se viraram como se tivessem
sido queimados, deixando apenas uma sombra negra impressa na
retina. Vamos dizer que houvesse um preço. Vamos dizer que eles
quisessem alguma coisa dela, qualquer coisa. Vagamente ela se viu
contrabandeando alguma arma, uma bomba disfarçada de escova
de dentes. Por que eles seriam tão legais com ela se não queriam
nada? Em seu colo, debaixo da mesa, uma mão procurou a outra,
suando frio.
Barbarossa pigarreou.
— Poderíamo colocar assim: em certos momentos-chave da
história... forças estão em conflito. A tecnologia fica em
desequilíbrio. Poucas pessoas possuem poder demais. Futuros
alternativos são igualmente ou quase igualmente prováveis... e isso
afeta o... formato do tempo.
Ela não gostou de ouvir uma explicação dele, pois se lembrava de
outros homens, autoridades em sua época, apesar de perceber que
nesse contexto ele não tinha vantagem nenhuma sobre os outros.
— Mas vocês existem. — Ainda queria saber o preço, as letras
miúdas.
— Talvez. Talvez não. — Luciente sorriu, seus olhos tristes e
cheios de lágrimas. — Não está claro. Estamo batalhando pra
existir.
— Não entendo — ela disse, ressentida.
— Você mexe sua mão, acena. Consegue entender como? —
Barbarossa também sorriu, os olhos azuis suplicando para que ela o
ouvisse. — Como a decisão no seu cérebro atinge sua mão? Ainda
assim você a move.
O olhar dela recaiu sobre Alvorada, fazendo biquinho, sentada na
cadeira dela.
— Queria que você pudesse voar pro passado comigo. Pra uma
visita. Você ia acertar as coisas de qualquer forma. Me faria tão feliz.
Mas não pra onde estão me mantendo. Não! — Aquela criança
sendo carregada para o eletrochoque, o cabelo fino e castanho dela
grudando no escalpo com o suor, os olhos dela arregalados ao
encarar o teto, um anel branco se formando ao redor das pupilas.
— Alvorada, não é errado querer ajudar, querer trabalhar, querer
tomar a história — Luciente disse, ficando de pé para fazer um
cafuné nela. — Mas querer fazer isso sozinhe não é tão bom. Dar a
história na mão de alguém como um bolo que você cozinhou.
Connie olhou para Abelha do outro lado da mesa, trocando olhares
pela primeira vez.
— Vocês estão mesmo em perigo?
— Sim. — Sua cabeçona balançava, concordando. — Vocês
podem falhar conosco.
— Eu?! Como?
— Vocês do seu tempo. Você individualmente pode não conseguir
nos entender ou lutar na sua vida ou na sua época. Vocês do seu
tempo podem deixar de lutar completamente. — Sua voz era doce,
quase sensual; ainda assim, os olhos dele diziam que estava
falando sério. — Devemo lutar pra existir, pra continuar existindo,
pra ser o futuro que acontece. Por isso chegamo em você.
— Eu talvez deixe de existir se não voltar... Mas que diferença eu
posso fazer? Eu que não tenho poder nenhum. Uma prisioneira.
Uma paciente. Não consigo carregar uma caixa de fósforos nem
ficar com o meu dinheiro. Vocês escolheram a salvadora errada
dessa vez.
— As pessoas poderosas não fazem revoluções — Sojourner
disse, dando um enorme sorriso amarelo.
— Ah, revolução! — Ela fez uma careta. — Honchos13 marchando
em imitações de uniforme. Muitas falas e xingamentos e foras pra
todo mundo. Barulho nas ruas, mas nada muda.
— Não, Connie! Foi o povo que descobriu a relação entre trabalho
e terra pro cultivo intensivo que fazemo. Foi o povo que mudou
como as pessoas compravam comida, cuidavam das crianças e iam
pras escolas. — Lontra estava tão animada que ela foi se
debruçando sobre a mesa até que uma das suas tranças mergulhou
no iogurte. Enquanto ela falava, Gavião pegou a trança e limpou
com um guardanapo de pano sem que Lontra sequer notasse. —
Que fez novos sindicatos, impediu o aumento dos aluguéis, se
recusou a ir pra guerra, escreveu e se educou e fez discursos.
— Mas teve a guerra dos trinta anos, que culminou em uma
revolução que deu pra gente o que a gente tem. Senão, não teve e
a gente não existe. — Luciente colocou as mãos para o alto, virou
os olhos e riu.
— Você não está muito falante hoje — Connie disse, ponderando.
Luciente estava chateada com ela por causa de Abelha?
— Ah, compreende, Luciente está meio atazanade — Lontra disse,
provocando. — Lebre e eu tivemo que ir buscar sôa ontem de noite
de Treefrog, onde pessoa estava pra limpeza.
Lebre se levantou e fez um aceno; havia manchas de tinta e de
algo brilhante nos braços dele, como se não tivesse se limpado
ainda.
— Leve Connie ao museu — Luxemburgo falou. — Daí pessoa
pode entender nossa história e a gente melhor.
— Não! — Luciente despertou. — As indicações dadas por todos
no grã-selho pedem que nenhuma especificidade histórica apareça
no próje.
— Como uma pessoa pode entender sem entendimento?
— Esse argumento pertence à reunião — Luciente disse, firme. —
Aguardo pra colocar ele lá, Luxemburgo. Até, sem desfoques!
— Intão, você fez Luciente acordar — Lebre disse, sorrindo. —
Tomando batalhas justas contra o grã-selho, que está lhe dando
ordens até os dentes.
Luciente passou a mão na bochecha, envergonhada.
— Talvez a gente possa fazer um café hoje? Todo esse papo
sobre ele, poderia ser bem aproveitado.
— Devemo mandar um aviso de reclamação pra Diana de
Treefrog? — Lontra perguntou, e todos riram, se aproveitando de
poder tirar sarro de Luciente.

...

O dr. Redding chegou à ala assim que ela voltou do futuro. Ninguém
estava prestando atenção nela. Podia ter ficado mais tempo, pensou
arrependida, mas as coisas ali pareciam interessantes. O dr.
Redding, o psicólogo dr. Morgan Acker, a srta. Moynihan, o técnico
do eeg, até a secretária, Patty, e os auxiliares estavam reunidos ao
redor da cama de Alice.
— Quero que vocês prestem bastante atenção, e quero que se
lembrem bem nos próximos meses deste projeto que vai ser
demonstrado para vocês testemunharem. Espero ver efeitos
imediatos numa maior confiança entre os funcionários — Redding
disse friamente.
As orelhas do dr. Morgan estavam vermelhas e se destacavam do
cabelo pálido e ralo. Ele parecia mais baixo, porque não ficava
ereto. A tristeza exalava dele como um fedor. Tudo estava calmo na
ala feminina.
— Não fique muito confiante, dr. Redinha. — Alice sorriu por
debaixo das bandagens. — Aquele médico moleque e gordinho ali,
ele está com medo. Ele tem medo de mim. Acha que eu vou
arrancar um pedaço. — Alice bateu os dentes. Debaixo do lençol,
ela balançou o corpanzil.
— Olhe, Francis — o doutor Redding disse, com ar triunfante. —
Os pacientes reconhecem a hesitação. Você estava relutante em
incluir Alice no experimento exatamente por causa da violência que
faz dela uma participante perfeita. Seus medos não têm
fundamento. Mal controle dos impulsos levou esta participante a
diversas rusgas com a sociedade. Nós podemos dar a ela a própria
falta de controle que tolheu seu desenvolvimento.
— Você acabou de dizer que eu faço o que quiser. Você não
queria que só às vezes soubesse o que quer muito fazer? O senhor
Babadinho, ele não consegue controlar os impulsos também. Fica
pegando a senhorita Jaleco Branco Calcinha Quente. Vocês todos
aproveitem pra se divertir às minhas custas e tirem essa merda da
minha cabeça.
Um tremor de constrangimento os fez se curvarem, como capim
ao vento. Daí, tirando forças uns dos outros, se reuniram em volta
da cama de Alice e decidiram tacitamente fingir que não a ouviam.
Acker murmurou alguma coisa sobre “padrões aleatórios de
hostilidade”. Eles se reuniram em volta de uma máquina que estava
escrevendo com umas agulhas — oito ao mesmo tempo — no papel
que se acumulava no chão como pilhas de acordeões.
— Esse papel todo — disse Alice, levantando a voz —
desenrolando como se fosse um papel higiênico enlouquecido.
Quantas árvores já usamos hoje de manhã?
Redding olhou para o relógio de pulso.
— Argent e o superintendente Hodges logo vão estar aqui. Assim
espero. E o pessoal da filmagem. — Morgan e Moynihan estavam
admirados com alguns dados nos papéis. O tempo todo as agulhas
seguiam escrevendo e o papel continuava caindo no chão como
uma ordeira diarreia. Redding decidiu então: — Enfermeira, está na
hora de tirar essas bandagens. Sra. Valente, nos traga café e vamos
ficar na sala de conferência até que nossos convidados cheguem
para a festa, sim? — Ele saiu apressado, arrastando consigo o
grupo todo.
A enfermeira começou a retirar as ataduras da cabeça. Com
cuidado, Connie e Sybil foram se aproximando mais e mais até que
Connie disse:
— É verdade que eles colocaram agulhas na sua... cabeça?
— Não, eita. Eletrodos, chamam assim.
Connie ficou olhando com ansiedade enquanto a careca lisa
aparecia por debaixo do curativo. Como Abelha.
— Mas não vejo nada!
— Estão dentro, menina. Você esperava o quê, que parecesse
uma almofadinha de alfinete? Eles são idiotas, mas não tão idiotas
assim!
— Alice, se são eletrodos, onde estão os fios? — Sybil perguntou
com cuidado.
— Sua velha. Sem fios. Eles usam um pequeno rádio, que botam
dentro também.
— Agora, podem ir parando — a enfermeira disse de repente. —
Já chega. Silêncio na ala. Vocês estão incomodando a paciente.
— Não vejo como a gente pode incomodar a Alice. Não foi a gente
que colocou um rádio e eletrodos na cabeça dela — Sybil
respondeu com destreza.
— Fica quieta se não eu vou te dar uma injeção que vai te apagar
— a enfermeira disse, com as mãos na cintura.
De volta aos leitos, Sybil sussurrou:
— A enfermeira não disse nada pra contradizer os eletrodos. Será
que é verdade?
— Mas pra quê?
— Controle. Pra gente virar máquinas que obedecem eles — Sybil
murmurou.
Que besteira isso parecia! Elas eram loucas, imaginando aquilo.
Connie desejou ter ficado em Mattapoisett.
Às onze, o pessoal estava de volta com dois outros médicos e
uma equipe de gravação. Um dos recém-chegados ela reconheceu
da festa de Natal da última vez em que tinha estado internada, era o
superintendente do hospital. Doutor Samuel Hodges tinha mais de
um metro e oitenta e já tinha quase sessenta anos, e apenas uma
coroa de cabelos crespos e grisalhos na sua cabeça lisa. O outro
homem era mais velho, com uma cabeleira branca e sedosa, um
bronzeado radiante, um terno fino, garboso, mas tradicional. O dr.
Redding e o dr. Hodges o chamaram de Chip, mas o dr. Morgan o
chamou de dr. Argent. O dr. Redding perguntou como estava a ilha
de St. Peter’s, casualmente sugerindo que o dr. Argent tinha uma
ilha na costa do estado da Geórgia. Isso contava pontos para ele.
— Uma ilha bem pequena — o dr. Argent disse. — Foi usada
como abrigo para escravos fugitivos. Agora para médicos
escravizados fugitivos. — Ele falava diferente dos outros. A
princípio, ela achou que ele era inglês, e às vezes a voz dele
parecia com a dos Kennedy falando na televisão. Ele mantinha o
cabelo branco um pouco longo e, onde quer que estivesse, era o
centro das atenções. O Redding falava com ele com um leve
acanhamento que modificava sua voz. Uma provocação trouxe
risadas para a goela de Redding e as manteve ali, como uma luz de
advertência.
— Vamos gravar pelos próximos dois meses — Redding disse ao
dr. Hodges. — Vantagens: gravação in-situ de procedimentos e
respostas dos pacientes. Capacidade de editar pro formato de filme,
que podemos usar tanto pra educação quanto pra angariar fundos.
Não precisa de luz especial.
— A luz aqui é bem ruim — alguém da equipe disse. — Quando
chegarmos nas instalações do Identificador Nacional de Planos de
Saúde, vamos conseguir gravar melhor.
— Não aponta essa câmera pra mim! — Alice se debateu contra o
apoio da enfermeira e caiu com tudo no leito.
— Posso, claro, acalmá-la a qualquer momento, mas preferiria
seguir conforme programamos — Redding falou.
O dr. Hodges fez uma leve reverência, indicando para continuar.
— Doutor, é a cabeça dela — a sra. Valente falou humildemente.
— Raspamos. Ela está careca, sabe, isso deixa ela envergonhada.
Ser fotografada careca? — Eles olharam para Valente sem
entender. Connie mesma sentia-se envergonhada. Ela tinha
antipatizado com Valente à primeira vista, por causa da corpulência
e do problema com a fala. Mas Valente realmente os via como
pessoas; via Alice como uma mulher que não deveria ser
publicamente aviltada. Valente seguiu falando, quase um sussurro:
— Podiam talvez conseguir umas perucas.
— Patty. — Dr. Redding balançou a cabeça para sua sempre
presente secretária. — Arranje uma porção de perucas para as
mulheres usarem enquanto cresce o cabelo.
— Para quando você as quer, doutor? — Patty parecia confusa.
Era uma mulher magra, sempre vestindo calças sociais verde-menta
ou vermelho-cereja, com cabelos loiros e óculos redondos de
armação azul metálica, que escorregavam no nariz.
— Alice é só uma demonstração. Não vamos começar com os
outros até que estejamos no instituto, vejamos, em duas semanas.
Então eles iam fazer aquilo com todos eles. Iam fazer aquilo com
ela — o que quer que fosse. Ela também.
— Charlie, se não for muito ousado da minha parte — o dr. Argent
disse —, por que não fazer ela dar uma demonstração? Afinal,
violência irracional é o que estamos trabalhando.
— Você tem razão. — Redding riu, parecendo que queria ter tido
ele mesmo aquela ideia. — Certamente. Vamos. Libera eles.
— Um minuto, doutor, estamos arrumando o microfone. Mantenha
ela ocupada e estaremos com vocês em uns minutos.
Alice continuou mesmo. Ela conseguiu se debater até sair da
cama e precisou de dois auxiliares e uma enfermeira para forçá-la
de volta. A luta continuava, e a equipe começou a filmar, um
microfone pendurado sobre a cama, enquanto o impassível
operador de câmera mascando chiclete tirava Patty da frente para
ter um bom ângulo.
— Bem-vindos à casa dos macacos no zoológico! — Sybil gritou.
Os pacientes todos estavam agitados agora, alguns falando alto uns
com os outros ou com as paredes. A srta. Green estava deitada de
bruços com um travesseiro cobrindo-lhe a cabeça, enquanto Tina
Ortiz observava com um quê de raiva. Os homens estavam se
aglomerando na porta para olhar para dentro. Alvin deu uma carreira
pela ala para bater na porta externa com os dois punhos cerrados.
Gordo o agarrou pelas axilas e o fez voltar para a cama. Alvin não
apareceu mais, provavelmente eles o aquietaram com uma alta
dose de tranquilizantes.
Redding, usando um pequeno microfone ao redor do pescoço
como um pingente, dava uma aula sobre amperagem e voltagem.
— Vamos estimular pontos de um até dez na amígdala esquerda
com 0,9 miliamperes, cem, 0,2 microssegundos de duração de
pulso, ondas quadradas bidirecionais por cinco segundos. — Ele
parecia um funcionário da companhia telefônica ligando para
informar sobre um serviço feito. Alice respirava entre bufadas,
deixando escapar uma porção de xingamentos. Alguém da equipe
desligou o microfone dela. Os dois auxiliares se apoiaram,
segurando-a na cama. Argent ficou parado com as mãos nas costas
e os lábios franzidos, como se fosse começar a assobiar,
observando a cena toda, contemplando com vivo interesse. Hodges
ficou um pouco mais distante, lançando olhadelas ao relógio.
Finalmente pediu que Patty buscasse uma cadeira.
— A disfunção focal cerebral que vemos nesta paciente resulta em
descontrole episódico. Acreditamos que esse tipo de agressão
intrínseca sem sentido pode ser controlado, até mesmo curado. Em
linguagem simples, algo está errado com o circuito elétrico; alguns
fios estão cruzados na placa-mãe da amígdala. Quando esses
circuitos dão curto, como deram, a violência irracional é
desencadeada na paciente.
Dr. Argent piscou; parecia que ia dizer algo, mas só murmurou
para si mesmo. Finalmente, disse suavemente:
— Talvez devamos deixar as analogias para os poetas, Charlie.
— Acker, está pronto? Morgan? Moynihan? Vamos? — Redding se
virou para a equipe de filmagem. — Vocês podem filmar as coisas
de computador no instituto. Aqui está tudo meio improvisado.
— Na cidade, cavalheiros — a srta. Moynihan disse a eles —,
poderemos mostrar os procedimentos completos. Temos os
melhores equipamentos.
— Escuta, não há muitos hospitais estaduais no interior aonde
você possa ir tão longe — Hodges disse com irritação.
— Chip, venha para a foto — Redding pediu, e juntos eles foram
para o lado da cama. — Liga o microfone dela. Alice, como você
está se sentindo hoje?
— Filho da puta, me deixa levantar! Não sou nenhum rato de
laboratório!
— Vocês podem editar isso depois, ok? — Ele fez um sinal, como
um maestro para sua orquestra. — Alice, agora, como se sente?
Alice relaxou de repente. Um olhar de surpresa se imprimiu em
seu rosto. Ela não respondeu. Sua boca ficou aberta, depois se
fechou.
— Soltem ela — Redding disse aos auxiliares.
Eles ficaram meio sem jeito e não a largaram. Gordo reclamou:
— Doutor, ela é rápida como uma cascavel. Pode te pegar de
surpresa.
— Ó, homens de pouca fé — Redding disse com um sorriso leve.
— Soltem ela e se afastem.
Cuidadosamente, os dois auxiliares se afastaram de Alice. Ela
continuou parada.
— Agora, como está se sentindo, Alice?
Alice virou a cabeça de um lado para outro. Começou a sorrir.
— Me sinto bem. Me sinto tão bem.
— Diga pra nós o que está experenciando, Alice.
— Gosto de você, gato. Vem aqui, vem mais perto da Alice. Isso é
tão bom. Você é bom comigo agora.
Redding riu.
— Viu? Como tirar doce de criança. Pronto. Auxiliares, segurem
ela.
Trocando olhares de confusão, os auxiliares seguraram Alice, que
dava risadinhas e se contorcia.
— Quis dizer para imobilizá-la, mas com cuidado! — Redding
vociferou.
No momento seguinte, o rosto de Alice se desfigurou e ela
começou a se debater e atacou Gordo. O enfermeiro teve de jogar o
corpo por cima do dela para conseguir contê-la.
— Agora, de novo, soltem ela.
— Doutor! Não podemos.
Mas Alice tinha amolecido e começado a dar risadinhas.
— Estão vendo? Podemos eletricamente suscitar quase todo tipo
de humor ou emoção, a reação de lutar ou de fugir, euforia, calma,
prazer, dor, terror! Podemos monitorar e induzir reações por meio de
rádios microminiaturizados sob o crânio. Acreditamos que por esse
procedimento poderemos controlar os ataques violentos de Alice e
mantê-la em estado mental equilibrado. O rádio nos fornecerá
informações e telemetria diretamente ao computador quando
estivermos no instituto, e Alice vai poder andar pela ala livremente.
Isso conclui nossa pequena demonstração prévia.
— Isso é impressionante, doutor. Você pode ligar e desligar ela
daquele jeito a qualquer momento? — o operador de câmera falou
quando começaram a guardar as coisas.
— A luz não acende quando você aperta o interruptor?
Quando o pessoal da filmagem saiu, Redding se virou para sua
plateia.
— Bom, Sam, Chip, o que me dizem? Acharam interessante?
Dr. Argent esboçou um sorriso seco e colocou a mão no ombro do
outro.
— O show foi seu. Você tem que controlar esse seu impulso de
grandiloquência. Me lembra um pouco do Delgado com o touro dele.
Sabe, ele faz um touro atacá-lo na frente de um grupo de pessoas e
então ele o mata.
— Às vezes você precisa mostrar algo de forma explícita antes
que as pessoas a aceitem como possível. Não tem truques
envolvidos. Podemos controlar os violentos.
— Também acho que você deveria considerar usar esses
eletrodos para produzir calma, sonolência. Não estamos fazendo um
filme pornô, Charlie.
Dr. Hodges pigarreou e se levantou rígido.
— Foi interessante, claro. Mas não custo-benefício. O tempo de
uso do computador, o equipamento... Uma dose moderada de
drogas psicoativas interromperia a violência dela na mesma
velocidade.
— Sam, escuta, com um computador do tamanho deste DEC
PDP-10, você consegue monitorar os resultados de todos os
pacientes deste zoológico todo. Você tem que administrar
tranquilizantes várias vezes por dia. Mas, dessa maneira, mais cedo
ou mais tarde os pacientes vão ser liberados, de volta às famílias, a
cuidar da casa, ao trabalho, ou para asilos. O estado está sem
dinheiro e eles colocam muita pressão em você pra liberá-los logo.
Mas daí dá aquela confusão nos jornais sobre os pacientes fazendo
besteiras. Aqui está a solução. Depois das despesas iniciais, Sam, o
custo é bastante competitivo. Agora, você sabe, mesmo com toda
boa intenção do mundo e todo trabalho duro da sua equipe, você
não pode curar muitos. Mas, com essas novas técnicas, conseguirá
apresentar curas reais. Em vez de um armazém para os
disfuncionais sociais, você vai estar dirigindo um hospital. É por isso
que os políticos compraram o projeto, Sam. Por isso que você vai
comprá-lo quando chegar a hora.
Argent caminhou para a porta, deixando que os outros o
seguissem.
— Ele não é persuasivo, Sam? Foi assim que eu me encontrei
afundado até os joelhos nessas engenhocas.
— Besteira — Redding falou, mas suavemente. — Agora que você
está se aposentando, quer participar do projeto mais excitante que
apareceu em anos. Você sempre quis fazer história, Chip.
— Hum — dr. Argent disse, e todos saíram.
Por cima do alvoroço da sala, Connie falou com Sybil:
— Vão colocar uma máquina na nossa cabeça?
— Coitada da Alice! — Sybil balançou a cabeça. — Deve estar
humilhada! Imagina, obedecer àquele fascista porque ele aperta um
botão.
— Não quero que façam isso comigo! — a voz de Connie afinou
com medo. Ela pigarreou. — Deve ter um jeito de parar isso. Queria
que minha sobrinha viesse!
Na quinta de noite, ela chamou Luciente. Não conseguia dormir, e
eles não podiam conversar depois de apagarem as luzes. Nada
aconteceu. Tentou de novo. Ela se forçou cegamente na direção de
Luciente, querendo desesperadamente falar com ela, contar o que
estava acontecendo. Talvez eles soubessem o que era essa coisa
toda de rádios no cérebro, agulhas e controle, e como lutar contra
aquilo. Por um instante, ela sentiu algo, uma sensação de uma
pessoa surpresa, grogue e alegre ao mesmo tempo, como se
estivesse drogada. De relance, viu um palco de plástico iluminado
por debaixo, sob um domo transparente sem nada por fora exceto
uma neblina amarelada. Mulheres com as pernas todas pintadas
pelo que pareciam camadas e camadas de esmalte que brilhavam
enquanto elas se moviam com cuidado, se equilibrando em
posições desconfortáveis em uma perna só como cegonhas,
manuseando pequenos narguilés e potes brilhantes. Homens
vestindo uniformes prateados. Todos com rostos brancos. Pânico.
Deles? Dela? Então, de volta em seu leito, ela sentiu Luciente
tentando alcançá-la. Sentiu a resposta vagarosa de Luciente e
também de outra pessoa.
— Seja convidade — disse uma voz grave. Não era a mesma
presença de um momento atrás. E ela ainda sentia Luciente.
— Connie, minha rosa — Luciente falou fracamente. — Não posso
lidar com você nesta noite. Mas estou segurando até que Parra
assuma. Abra sua mente prassôa. Parra vai captar hoje se você
quiser vir.
— Está doente, Luciente?
— Não, não se preocupe. Deixe Parra captar.
Demorou uns dez minutos e uns momentos de náusea, enquanto
ela via flashes das mulheres cegonha, até se ver de pé na casa de
reuniões. Parecia um prédio diferente. Dez pessoas estavam
sentadas numa sala pequena ao redor de uma mesa em formato de
rosquinha, cerca de metade da família de Luciente. Ela viu Gavião,
Barbarossa, Lebre e Sojourner. A pessoa com voz profunda que a
tinha trazido daquela forma turbulenta era uma jovem baixa e
corpulenta. Apesar de Parra parecer forte a ponto de carregá-la
escada acima, elas tinham o mesmo tamanho e tipo físico. Parra
tinha o cabelo curto e escuro e o rosto largo. No braço esquerdo, ela
tinha uma faixa com um arco-íris de miçangas.
Bolívar parecia tenso, sentado com sua cabeça entre as mãos,
olhando com aqueles olhos cinzas que estavam injetados de
sangue. Luciente estava sentada do outro lado do círculo, mal-
ajambrada, as mãos estendidas na mesa diante dela, com as
articulações formando pequenas montanhas nevadas em miniatura.
Luciente sorriu de relance para ela e secou a testa.
— Sou juize do povo pra Foz-de-Mattapoisett este ano, e nesta
noite estou arbitrando — Parra disse.
— Isso é um jogo?
— Não, estamo tendo um desconflito. — Parra se virou para a
mesa. — Façam relaxacícios enquanto eu explico. Vocês estão com
cara de que precisam relaxar.
Em volta da mesa de rosquinha, todos começaram a murmurar um
tipo de cântico — sem qualquer esforço de cantarem em uníssono
—, olhos fechados, cabeças movendo-se para frente e para trás.
— Luciente e Bolívar não têm comunido. Entrosamento ruim.
Fagulhas e solavancos. Hoje tentamo compreender essa hostilidade
e ver se conseguimo desarmar ela.
— As pessoas não podem não gostar das outras?
— Não é bom quando estão no mesmo núcleo. Lebre é íntime de
ambes. Os solavancos magoam sôa. Elus competem pela atenção
de Lebre. São exigentes com as ações do outro. Já critamo elus
antes, mas durou breve. Quando une crita outre, não se sustenta
como honestidade, é egoísmo. — Parra sorriu de esguelha.
— Mas e se depois do desconflito eles ainda não se suportarem?
— Lebre pode escolher não ver nenhume delus por um tempo.
Ambes podem ser enviades em jornadas temporárias. Podemo
impor invisibilidade. Só no caso de muita briga. Ou às vezes,
quando pessoas deixam de ser amigues doces, sentem amargura.
— Parra a encarou com um olhar que a lembrou do de Luciente.
Antigamente, ela pensaria nelas como parentes. Ela sentiu um
vislumbre de esperança de que a semelhança entre elas deixaria
Parra mais tendenciosa à Luciente. — Colocamo em ação um tabu-
de-sogra, derivado das práticas antigas. Pessoas ficam proibidas de
falar une com outre ou sobre outre por doismês. Esse tempo
normalmente acaba com os solavancos. Além do mais, é uma
chatice, frequentemente cada um quer acabar logo com isso e falar
com outre. Fica ridículo. Isso também ajuda.
Connie fez uma careta.
— Gente, vocês não têm nada pra pensar que não seja coisa
pessoal? E daí se Bolívar e Luciente gostam um do outro? Que
perda de todos os recursos de que vocês falam tanto!
— Primeiro, elus não precisam gostar une de outre pra se
comportar civilmente. Segundo, acreditamo que muitas ações
falham por causa de tensões internas. Pra se vingar de alguém que
uma pessoa acha que fez mal para ela, indivíduos ofereceram
nações pra conquistar. Indivíduos devotaram vidas inteiras
buscando vingança. O tecido social significa muito pra nós. Na
infância, todes aprendemo uma história sobre como une
antropólogue pediu a uma pessoa pawnee para definir coragem.
Pessoa disse que Nuvem Branca era o indivíduo mais corajoso que
já tinha conhecido, porque, quando Urso Risonho caluniou sôa,
Nuvem Branca deu a Urso Risonho um cavalo. “Como isso
demonstra coragem?”, perguntou antropólogue. Pawnee disse que
era o único cavalo de Nuvem Branca.
Ao redor da mesa, todo mundo se alongava, acertando a postura.
— A comunidade é preciosa. Isso é o que vocês estão dizendo.
— Isso mesmo. — Parra anuiu, sorrindo.
— Você é uma juíza? Pode impor uma sentença a eles?
— Nesta noite estou arbitrando. Estou aqui pra certificar que o
grupo crita de forma justa. Posso apontar injustiça. Observar outras
tensões que podem emergir, nublando os sentidos, pesando as
reações. Alguém que não seja dessa vila deve fazer às vezes de
arbitragem.
Ela fez um muxoxo para essa mulher baixinha e encorpada que se
chamava de juíza. Mais nova que ela, e nem um pouco mais
imponente, com certeza.
— É isso que você quer dizer com juíza? Uma árbitra?
— Não. Agimo em casos de ofensa.
— E se eu roubasse alguma coisa?
— Não tem muita propriedade privada. Provavelmente, eu lhe
daria o que você pedisse. Mas se você me tomasse alguma coisa,
todes lhe daríamo presentes. Acharíamo que você estava nos
demonstrando abandono e sentimentos de privação. Faríamo você
se sentir bem e queride.
— E se eu machucasse uma pessoa? Como seria estuprar, matar
ou bater em alguém?
— A gente tem treinamento em autodefesa. Treinamo pra respeitar
outres. Nunca soube de um caso de estupro, mas já li a respeito.
Parece... bastante horrível pra gente. Nojento. Como canibalismo.
Sei que ocorria no passado, mas parece inacreditável.
Connie se imaginou andando à noite sob as estrelas, caminhando
por uma estrada do interior e sentindo apenas uma leve curiosidade
quando visse três homens caminhando em sua direção. Ela se
imaginou pegando carona com quem quisesse dar carona a ela.
Imaginou o que seria atender a porta sem medo, só para ver se
precisavam de ajuda.
— Ninguém aponta a faca pra ninguém? Não tem briga de casal?
Ciúmes? Não vem com essa. — Sua voz estava marcada pelo
ceticismo.
— Agressão, assassinatos ainda tem. Não tão comuns quanto
dizem ter sido no seu tempo, mas acontecem. Pessoas ainda ficam
zangadas e atacam.
— Daí o que vocês fazem? Colocam eles na cadeia?
— Primeiro, perguntamo se pessoa agiu intencionalmente ou não,
se pessoa quer assumir a responsabilidade pelo ato.
— Mas e se eu digo: “Não, juíza, não sabia o que estava
fazendo”?
— Então trabalhamo na cura. Tentamo ajudar pra que nunca mais
a pessoa faça algo que não tenha a intenção.
— Mas e se eu digo que não estou doente. Eu quebrei a cara dele
porque ele pediu, e estou feliz.
— Então você recebe uma sentença. Talvez exílio, trabalho
remoto, pastoreio. Passa o tempo a bordo de um navio. No espaço.
Às vezes ofensories inventam boas ideias pra reparação. Você se
voluntaria pra um experimento ou pra algo perigoso.
Ela ficou olhando.
— Você está querendo dizer que, quando eu amassei a fuça do
Geraldo, eu é que diria o que eu deveria fazer para... me reparar?
— Como não? — Parra a encarou de volta. — Você, sua vítima e
juize resolvem juntes. Se você matou, então a família escolhe une
membre pra negociar.
— Se eu matei várias pessoas, então era só virar marinheira ou
pastora de ovelha?
— Você quer dizer uma segunda vez? Não. Da segunda vez que a
pessoa usa violência, desistimo. Não queremo nos vigiar nem nos
prender. Não estamo dispostes a viver com pessoas que escolhem
a violência. Nós executamo elus.
— Mas e se eu disser que não fui eu?
— Isso acontece. — Parra fez um sinal com a mão. — Por sorteio,
alguém é escolhide pra investigar. Quando quem investiga acredita
que a pessoa foi encontrada, fazemo um julgamento. Nossas leis
são simples e não precisamo de advogades. O corpo de júri decide.
A sentença é negociada entre ambas as partes.
— Você é latina, não é?
— Latina? A língua antiga?
— Hispanoablante?
— Sí, do sul, Río Grande, Tejas del Sur. Pero hace cinco años que
he vivido en el pueblo boricua Lola Rodríguez de Tío.14
— De veras? De Tejas? Yo tambíen. Nasci em El Paso. So, pues,
en Tejas ahora... Quem está no poder?
— Somo uma região autônoma. — Parra parecia meio confusa. —
Todes, por supuesto, como aquí, como siempre, no?15
— Mas vocês falam espanhol?
— Como primeira língua, claro que sí, como no?
— Por que está aqui? Por que veio aqui pro norte?
— Pra estudar com María de Lola Rodríguez. Es experta sobre
ríos. En mi regíon, tenemo todavia problemas terribles con los ríos,
que estaban envenedados por completo en tu época.16 Tenho
estudado por cinco anos. María disse que posso voltar ao meu
pueblo em um ano, para ayudarles. Tengo muchas ganas de volver.
Sinto saudade do meu povo, ai! Me hacen tanta falta! Os invernos
queimam meus dentes.
— Ojalá pudiera ver Tejas ahora! Como gostaria de ver o Texas
agora!
— Por supuesto! Vai fazer seus olhos saltarem! — Parra a agarrou
pelo ombro. — O que a gente fez com tijolo cru nos últimos quarenta
anos... como ficou brilhante. Comemo bastante carne também; não
é como aqui, onde acham que uma vaca magra faz uma fiesta! A
gente tem um ótimo sistema de pequenas clínicas por todo lado. En
mi departamento, criamo muitas raças de vegetais resistentes à... la
sequía, a seca. Verdad, pode perguntar a Abelha ou Luciente...
Parra se virou para a mesa, seu rosto ficou impassível. Para todos
na sala, ela disse:
— Devemo começar de novo? — Ela deu o braço para Connie e a
levou a uma cadeira, apertando-lhe os ombros quando ela se
sentou.
— Sinto que o trabalho de Bolívar enfatiza o que é individual,
coloca estilo acima de todo o yin-yang. Quando Lebre trabalha com
Bolívar, sinto um enfraquecimento político no trabalho de Lebre, que
nunca aparece quando pessoa trabalha individualmente. — Luciente
se sentava com os braços cruzados.
— Tal crita é geral demais pra ser útil — uma pessoa gorda com
voz grave disse. — Como Bolívar pode responder a um atiramento
tão vago?
— No hologra recente delus, a imagem da luta era um homem e
uma mulher se abraçando e lutando ao mesmo tempo, o que se
resolveu na transformação da imagem de dois andróginos. Ainda
assim, a força que destruiu tantas raças de seres, humanos e
animais, era apenas em sua origem sexista. Sua manifestação era
ganância direcionada aos lucros.
— Luciente crita justamente — Barbarossa disse. — No fato, não
pensei nisso. Mas parece a mim que o hologra deveria relacionar a
ganância e o desperdício aos sistemas político e econômico.
A pessoa velha com os olhos castanho-escuros brilhantes,
Sojourner, balançou a cabeça negativamente.
— Cada obra de arte não consegue conter tudo que todo mundo
gostaria de dizer! Tenho visto esse erro por sessenta anos. Nossa
cultura como um todo deve falar a verdade completa. Mas cada
objeto não pode! Esse é o slogan da mentalidade atual, como se
houvesse certas palavras sagradas que devem ser sempre
nomeadas.
— Mas a gente deve ficar satisfeite com meias verdades? —
Barbarossa perguntou.
— Às vezes uma imagem irradia muitas possíveis verdades —
Bolívar falou. — Luciente parece se fixar de forma estreita em
conteúdo e aplicar nossa política comum muito rigidamente.
— Nossa política comum dá espaço de sobra pra discordância —
Luciente disse. — Gosto de clareza sobre distinções políticas.
— Uma imagem poderosa diz mais do que pode ser listado. Ela
não pode ser explicada completamente de forma racional — afirmou
Lebre. — O que significa uma melodia?
— Ainda assim, uma obra tem um sentido bruto com o qual
concordamo ou discordamo — disse Luciente.
— Nossa história não é um conjunto de axiomas — Bolívar falou
devagar, mas firme. — Acho que vejo a divisão original do trabalho,
aquela primeira dicotomia, como o que sibilitou divisões tardias
entre riques e pobres, poderoses e despoderades, fruidories e
trabalhadories, estupradores e vítimas. A cisão mente e corpo
patriarcal transformou a mente em máquina e o resto do universo
em pilhagem na qual se poderia perder as estribeiras, usando,
descartando e destruindo.
Luciente concordou com a cabeça.
— Sim! Não podemo ver homens e mulheres compartilhando a
mesma culpa, porque um tinha poder e a outra era propriedade.
Nada que você fez fala sobre isso.
— Você tem a gente! — Lebre franziu as sobrancelhas. — Já
serve.
— O que fizemo foi lindo — Bolívar disse. — Você não ficou
emocionade? Um hologra é composto de uma hora de imagens.
Você não age com o suficiente respeito pra com a beleza, Luciente.
— Luciente se apoia demais na direção de um valor e Bolívar, em
outro. —Sojourner disse. — Apesar disso, em vez de se olharem
com prazer e pensar quão mais rico é o mundo onde cada une não
seja como eu, une julga outre. Que tolice. Vocês poderiam
enriquecer a percepção do outro por meio de Lebre, que se atrai
pelos dois caminhos, assim como por tudo que se move!
— Não acho que os hologras que faço com Bolívar são melhores
ou piores do que os que faço sozinhe. Acho que Luciente olha pra
ele com mais crita — Lebre falou.
— Todes devemo te fazer comentários, e é uma pena que a crita
de Luciente esperou tanto tempo pra sair. Falhamo com você
enquanto nosse artista — Barbarossa falou. — Se não critamo você,
como vai crescer?
— O que você teme, Luciente, que te faz observar com mais
cuidado quando trabalham juntes? — a pessoa gorda falou. — O
que te aumenta a ansiedade?
Luciente cobriu o rosto com as mãos, franzindo o cenho em
pensamentos. Cinco minutos se passaram. Connie deu uma olhada
em Parra, presidindo a mesa, mas sem interromper. Ela sentiu uma
sensação triste de que nunca fosse ver o Tejas del Sur,
departamento de Río Grande, que havia produzido essa mulher que
tinha uma confiança singela e tanta dignidade tão cedo na vida.
— Não tenho certeza — Luciente disse devagar, descobrindo o
rosto. — Acredito que às vezes Bolívar tenta recriar um tempo
anterior quando Lebre e Bolívar estavam sempre juntes, se
centrando. Pra mim isso é deslizar pra um tempo que agora é
passado, quando crescer significa ir pra frente. Elus parecem que
estão se atando.
— Como você e Diana fizeram? — Lebre arqueou as
sobrancelhas.
— Talvez eu tenha medo disso.
— Mas Diana e Bolívar têm dons diferentes. A intensidade em que
mergulhamo juntes nos deixa manter nossa intimidade mesmo se
passarem várias semanas. Nossa intimidade sempre se centra no
trabalho. Mesmo na maior intensidade e duplicidade, nos voltamo
pra fora e devolvemo pra comunidade.
— Verdade, Luciente — Sojourner disse. — Atar-se com Diana
impediu você de trabalhar bem. Vocês nunca trabalharam juntes,
mas sempre se alimentaram une de outre.
— Bolívar fica com ansiedade também — Gavião disse,
titubeando. — Bolívar provoca muito Luciente, e isso faz sôa se
sentir besta. É desse jeito que Bolívar dá o troco ou pune sôa ou
algo assim.
Uma pessoa grisalha ao lado de Bolívar, com a pele do rosto
bastante castigada, abriu um largo sorriso.
— É verdade, como não? Bolívar manipula Luciente. Bolívar é
esperte, pensa rápido. Luciente é falante, mas não astute. Luciente
não consegue revidar rápido o suficiente pra vencer batalhas
verbais. Agora, Luciente reflete sobre as coisas políticas mais
atentamente que Bolívar. Todo mundo em Foz-de-Mattapoisett sabe
que Luciente foi recrutade pro próje ao-passado não apenas pela
remetência dissôa, mas pela solidez política. Pessoa pode nos
represen de forma clara e justa. Mas Luciente usa esse peso político
como arma contra Bolívar. Une desbarata outre com dons
diferentes. Isso não é perverso, mesmo? — A pessoa grisalha
olhava de um para outro.
— Então Bolívar também tem medo — Parra falou. — Estamo indo
rápido demais. Vamo perguntar a Bolívar o que pessoa teme.
— Se eu sou o passado de Lebre, que frágil. Luciente é o
presente. O passado desaparece. Saúde é Luciente, crescimento é
Luciente, de acordo com Luciente! Mas Lebre e eu trabalhamo bem
juntes. O que tem de ultrapassado nisso? Nós nos amamo
diferentemente aos vinte e cinco anos e dezenove do que quando
tínhamo dezenove e treze, mas...
— Você nunca deixou de amar alguém que você amava, você
sabe disso. — Lebre disse a Luciente. — Por que não consegue
intrasaber como é pra mim? Você não acha que rançou em Abelha
porque já faz anos.
Sojourner apertou os olhos em direção a Bolívar.
— E se você ganha essa guerrinha? Você fica com Lebre tode pra
você. Luciente cai fora. Lebre não pode viajar com você sem desistir
da oficina dissôa. Lebre acabou de se voluntariar pra maternidade e
defesa. Como pessoa pode combinar maternidade com uma vida
nômade como a sua? Você fica com a gente talvez uma semana em
cada mês.
— Nunca tentei conven Lebre a viajar comigo o tempo todo. Só às
vezes quando estamo engajades no trabalho juntes.
— Mas é o trabalho de Lebre, mais do que Luciente, que está
mantendo pessoa aqui em Mattapoisett, não? — a pessoa gorda
disse.
— Clarquessim. — Bolívar suspirou. — Lebre é mais ligade ao
lugar. Sempre quando viajamo pessoa ficava com irritação. Dormia
mal, ficava de mau humor e me atirava.
— Luciente — Sojourner continuou. — E se você ganhar sua
guerra contra Bolívar e diminuir sôa aos olhos de Lebre. Você vai
desistir de Abelha e passar todo seu tempo livre com Lebre? Vai
desistir do próje ao-passado ou do seu trabalho na base de genética
para trabalhar com Lebre, do jeito que Bolívar faz?
— Isso não é o que eu quero! — Luciente falou exaltada. —
Bolívar não me respeita!
— Você respeita Bolívar? — Parra perguntou com interesse.
— Bom... sim.
— Por quê?
— Pessoa é ótima artisticamente.
— Luciente e Bolívar, sentem-se cara a cara no interior do anel.
Olhem une pra outre. Então vamo ficar em silêncio por alguns
minutos. Não tenho certeza se devemo continuar ou deixar que
vocês conversem. A origem da fricção parece jazer na falta de
comunicação; sem amizade, mas contato constante. Vocês devem
dedicar um tempo pra falar, expressar critas e elogios
individualmente.
Luciente e Bolívar separaram os lados da mesa e sentaram-se no
meio se encarando, de uma maneira meio envergonhada. Connie se
virou para Parra e disse suavemente:
— Tem algo que eu não entendo. Parece que todos estão evitando
dizer o que me parece óbvio, que Lebre e Bolívar são... bem, os
dois são homens. É homossexual. Então isso incomoda mais uma
mulher.
— Mas por quê? — Parra olhou para ela como se ela fosse
realmente louca. — Toda casalação, toda amiguice se dá entre
masculinos biológicos, femininos biológicos ou ambos. Essas não
são categorias úteis. A tendência é dividir as pessoas pelo que elus
fazem bem ou mal, pontos fortes e fracos, dons e fracassos.
Connie sentiu como se tivesse batido em uma parede invisível.
Mas Parra a fascinava. Ela não deveria ter mais que vinte um, vinte
e dois anos, porém, já servia como juíza do povo. Doutora de rios.
Ela mesma podia ser essa pessoa ali. Sim, ela iria estudar como
consertar a paisagem saqueada, curar rios asfixiados com sujeira.
Medicaria o solo degradado pela cultura de lucro em busca de
dinheiro rápido. Então ela seria útil. Ela iria gostar mais de si, como
tinha gostado durante o breve período em que estivera envolvida no
logro da guerra-contra-pobreza. As pessoas a respeitariam. “Olha a
Consuelo”, eles diriam, “doutora do solo, protetora dos rios”. Seus
filhos ficariam orgulhosos dela. Seus amantes não se afastariam
dela, não morreriam na prisão, não seriam esfaqueados na rua,
como Martín.
Como ela tinha ficado quando o vira no necrotério, tremendo de
raiva — sim, raiva —, porque ele estava morto sem motivo. Porque
todo mundo era pobre e o verão estava quente e os ânimos em
chamas e os homens sem trabalho provando que ainda eram
homens, ferindo o corpo de outros homens, possuindo o corpo das
mulheres. Ambos estavam com vinte anos quando se casaram.
Martín a tinha curado da crueldade do menino branco que a tinha
engravidado e depois corrido de medo, dizendo que ela não podia
provar nada. Ela tinha lhe dito a verdade, e mesmo assim ele tinha
se casado com ela. Ambos tinham vinte e um anos quando ele
morreu. Uma faca no coração. Ele tinha sido tão bonito.
Lágrimas se assomaram nos olhos como uma torrente quente e
então cessaram. Ela estava deitada no leito do hospital. Risadas
ressoavam do posto da enfermagem.
— Peguei você de calça curta, nenê. Canastra!
— Merda! Você me pegou com um monte de carta alta.
Martín tinha estado morto quase metade do tempo que ela tinha
vivido. Do que adiantava chorar agora? Mesmo assim, ela sentia o
luto como novo, pensando como no futuro eles poderiam ter vivido
lado a lado por pouco, apenas meio século. Então ele poderia ter
tido o respeito com o qual sempre sonhara, o respeito cuja ausência
o atormentava como uma sede violenta. Ele a amava o suficiente
para se casar com ela mesmo maculada por outro homem, mas não
o suficiente para não encarar um desafio, um insulto, uma ameaça.
Lá, Martín poderia ter respeito, dignidade, poderia ter tido trabalho e
lazer. Sua vida. Ele a tinha admirado naqueles meses de faculdade
comunitária, dado o sangue por aquilo. Em Mattapoisett, ela teria
tido respeito também. E aprendizado.
— Olha — uma voz feminina dizia no posto de enfermagem —, só
vamos ficar aqui mais uma semana ou duas. Depois voltamos pro
prédio K e vamos poder jogar buraco de novo em quatro. Me cansa
jogar canastra toda noite.
— Não sei por que, docinho. Você acaba comigo toda vez. Se não
estivesse jogando por um centavo por ponto, você já teria me
limpado!
CAPÍTULO 11

— Nós já temos a assinatura do seu irmão no formulário de


permissão — Acker falou para ela, coçando a barba aparada. —
Mas queremos que você dê sua permissão também. Queremos que
entenda como vamos te ajudar. Queremos sua completa
cooperação. — Seus olhos, parecendo chocolate ao leite, pousaram
nela.
— Pra que vocês se sintam menos culpados pelo que estão
fazendo com a gente? — Ela se jogou abatida na beirada do leito.
Ele continuou a importuná-la.
— O que estamos fazendo? Dando uma chance para você sair do
hospital. Ter uma vida melhor. Acabar com esses episódios de
violência destrutiva. Isso a longo prazo. A curto prazo, vamos
transferir todos os nossos pacientes deste hospital público para uma
ala do Instituto Nacional de Psiquiatria de Nova Iorque, uma ala de
pesquisa legal. Você não faz ideia como é estar em um hospital
psiquiátrico bem equipado. Sem dormitórios. Você pode ficar no
quarto com sua amiga Sybil. Comida boa. Sua família vai te visitar
em Manhattan quando estiver bem.
— E ter a chance de bagunçarem a minha cabeça que nem a
Alice?
— Em dois meses a Alice vai estar em casa, Connie. Se você não
aceitar, vai estar em casa em dois meses?
— Claro, não estou indo tão mal.
— Você não volta pro G-2. Se for transferida, vai voltar pra onde te
encontramos, a ala violenta, L-6. Com comentários na sua ficha
sobre o quão pouco cooperativa você foi.
Ela se virou para a parede e não falou mais com ele; em alguns
minutos, ele saiu. Mas voltaria.
Naquele domingo, finalmente, Dolly apareceu. Saracoteou pela ala
para abraçar Connie, então a afastou um pouco de si.
— Você perdeu tanto peso, Connie! Que maravilha! É como
aquelas fazendas pra perder peso que as putas ricas vão.
— Não muito como elas. — Connie sorriu. — A Nita veio?
— Eles não deixaram eu entrar com ela. Ela está lá fora com o Vic.
Vem pra janela dar um tchauzinho.
Lá embaixo, ela viu um homem alto e forte vestido de branco cor
de sorvete, segurando Nita pela mão. Eles estavam observando
uma mulher procurando algo na grama e Vic estava rindo e
cutucando Nita.
— Nita! Nita! — ela gritou para fora da janela, mas Nita não a
escutou. Em vez disso, a assistente de fim de semana fez um sinal
para ela calar a boca. De forma relutante, ela obedeceu, se
esticando para ver Nita.
— Dolly, você está linda — ela disse quando saiu da janela. —
Perdeu peso também?
Dolly tinha tingido o cabelo em um ruivo-alaranjado forte. Ela
estava vestindo um terninho verde brilhante sem mangas e não
tinha tirado os óculos escuros.
— Ah, carita, pagam melhor se eu pareço branca, sabe? E gostam
mais se for magra, os que têm grana. Geraldo, aquele sacana, me
deixou com dívidas e sem grana. Tenho que dar muito duro pra
conseguir pagar todas as contas.
— Dolly, tira esses óculos, não consigo ver sua expressão. É como
conversar por meio de uma parede.
Fazendo biquinho, Dolly tirou os óculos escuros, piscando com a
claridade. Um arrepio passou pela nuca de Connie.
— Além do mais, querida, tudo vai ficar bem pra mim e pros meus,
deixa eu te falar. Estou bem sem aquele honcho. Dou um duro
danado, mas os caras vêm direto e ganho mais dinheiro que antes,
melhor que com o Geraldo. Olha, Connie, semana passada
consegui quatrocentos! Em uma semana! Que tal? — Dolly
vomitava as palavras.
— Dolly, por acaso você me trouxe alguma coisinha?
— Como podia esquecer? Quer dizer, esquecer de te falar. Não
esqueci de te trazer algo. Escuta, eu dei praquela puta velha do
balcão trinta dólares pra você na sua conta. Agora, se você der a
mão aqui disfarçando, vou te dar uns cinco extra. Este lugar num
parece um hotel de luxo, mas você pode comprar alguma coisinha
pra relaxar.
Ela estendeu a mão e Dolly lhe passou uma nota, toda
enroladinha.
— E minhas roupas? Você por acaso me trouxe alguma roupa?
— Papai, ele falou que você estava no hospital e que não
precisava de roupa. Então trouxe duas camisolas, uma velha que
você tinha e uma das minhas especiais, com renda preta feita à mão
pra você não sentir nenhuma vergonha. Usei quando estava
fazendo a operação e me desanima só olhar pra ela. — Dolly
tagarelava como se nada fosse desanimá-la. — Além disso, eu
decidi trazer alguns vestidos mesmo assim. O que os homens
entendem sobre o que as mulheres precisam? Vejo que você está
usando um vestido, se é que dá pra chamar isso de vestido. Então
te trouxe o turquesa e aquele com detalhes em verde e o vermelho.
Ia te fazer bem uns vestidos novos, Connie. Você perdeu tanto
peso, nem sei se esses vão servir.
— O turquesa é de muito tempo atrás. Quando eu estava com o...
Claud. Vai servir.
— Se você me falar o seu tamanho, posso conseguir um vestido
novo, da altura que estão usando agora... Escuta, eu dei pra puta
velha do balcão trinta dólares pra você, e se você me der a mão,
vou te passar mais cinco.
— Dolly, você já fez isso!
Dolly estava enrolando a nota.
— Vamos, não entendeu? Estica a mão de forma natural.
Tonta, ela esticou a mão, e Dolly de novo deu-lhe uma nota de
cinco. Ah, bom, podia ser útil. Ela encarou os olhos intensos de
Dolly, as pupilas enormes, brilhantes demais.
— O que você tomou?
— Eu? O de sempre, um pouco disso, um pouco daquilo.
— Parece que você tomou mais do que um pouco de alguma
coisa.
— Tenho que ficar magra, carita. O dinheiro vem dos brancos e
eles gostam da gente magra e com cara de americana. Ganha mais
quem parece branca, saca? Às vezes, falo que minha mãe era
espanhola e meu pai irlandês, por isso tenho este lindo cabelo ruivo.
Até os cabelos da perseguida pintei de vermelho; Connie, você não
ia acreditar. — Ela deu uma risadinha.
— Você tomou tina?
— Um pouquinho, faz um tempo, pra não ganhar peso. Quem
aguenta aqueles idiotas? Eles me deixam louca. São uns nojentos.
Mas estou muito melhor sem aquele imbecil do Geraldo, sabe? Esse
daí, Vic, ele foi jogador de verdade, não estou brincando. — Ela riu
de novo. — Ele jogou uma temporada com os Cleveland Indians,
mas nasceu no Bronx que nem eu. Ele é de boa, Connie, são só
negócios. Ele é um bom homem de negócios. Não estou caída por
ele, mas é tão melhor, sabe? Estava apaixonada pelo Geraldo e no
que deu além de um monte de problema?
— É ideia do Vic tomar esse veneno? Vai acabar com você.
— Olha, Connie, estou em ótima forma! Olha pra mim. Estou
pesando 53 quilos, acredita? E na semana passada, sabe quanto eu
ganhei?
— Quatrocentos dólares — ela disse em tom irônico.
— Como adivinhou? Nada mal, hein? Roupas boas, coisas bonitas
pra minha bebê. Mamá fica com a Nita de terça até sábado e então
no domingo eu pego ela e fico com ela até terça de manhã.
— Carmela fica com ela a semana toda?
— Que outra mãe tenho? Claro, Carmela fica com ela. Dá mais
certo.
— Dolly, isso não é bom. Você não fica com sua filha, ela só te vê
nos fins de semana como uma tia, e você está tomando esses
venenos que acabam até com a sua alma.
— Não seja besta, tía. Você esquece como é o mundo, fechada
aqui. Estou por cima agora. Sei o que estou fazendo. E na semana
passada consegui quatrocentos dólares!
— Dolly, por favor. Me tira daqui. Te imploro. Peça a minha
liberação. Fale com eles!
— Hermana, como posso fazer isso? Luis assinou os papéis. Não
tive nada a ver com isso. Você tem que falar com o papai sobre isso.
— Por favor, Dolly, faz alguma coisa. Te imploro. Olha ao redor
aqui. Estão fazendo operações na gente. Colocando agulhas na
nossa cabeça.
— Ah é? — Dolly olhou em volta sem interesse. — Papai falou que
são médicos famosos de uma universidade. Que estão falando sério
sobre ajudar vocês pra não precisar voltar de novo. Disse que você
vai pra um hospital em Washington Heights. Posso ver você toda
hora. É bem difícil chegar aqui, sabe?
— Dolly, você acha que preciso de operação? Olha pra mim.
— Connie, eu sou médica, por acaso? Pelo menos é limpo aqui,
não depressivo como da outra vez.
— Não quero a ajuda deles, Dolly. Quero ir pra casa! Olha, vou
trabalhar. Diz pro Luis que eu faço qualquer coisa. Trabalho no
viveiro. Posso conseguir algum trabalho temporário em escritório.
Diz isso pro Luis.
— Você devia parar de se lamentar, Connie, esse é o seu
problema. Podemos ser mais do que somos se tivermos vontade.
Olha pra mim! Depois do Geraldo, ter me deixado com uma mão na
frente outra atrás, sem grana e cheia de dívida, aquele imbecil, não
fiquei chorando muito. Chorei, claro, mas fui à luta e arranjei um
cafetão branco. Perdi dez quilos, sabe? Tomei as rédeas e não
ganhei um quilinho em semanas! Pintei o cabelo e até — baixando a
voz de modo sensual — pintei os cabelinhos da perseguida. Falo
que sou filha de mãe hispânica e pai irlandês. Às vezes falo que
minha mãe foi uma contessa.
— Acho que isso é italiano.
— Não, é espanhol. Enfim, eles são clientes, do que eles sabem?
Consigo ganhar em dois tempos. Na semana passada mesmo...
— Dolly, por favor, me escuta! — Connie a interrompeu, quase
desesperada. — Vão fazer uma operação em mim. Vai olhar ali
aquela mulher naquele canto, a negra, Alice. É o que querem fazer
comigo. Pelo menos me deixa ir pra casa no fim de semana. Pra
comer comida de verdade, pra ver a Nita. Por favor, Dolly, fala com
eles.
— Claro, doçura. Quando você estiver em Nova Iorque, por que
não vem me visitar? Um fim de semana não daria, mas talvez um
domingo juntas? Foi legal que o Vic me trouxe aqui, mas quantas
vezes eu convenço ele a fazer isso? Ele sabe o valor do dinheiro.
Ele costumava jogar bola no Cleveland Indians. Um cafetão branco
é melhor que um irmão, Connie. É puramente negócios, mas ele
traz bons clientes. Homens de negócios, compradores, vendedores.
Quando você sair, vou pegar um bom dinheiro e ajudar você a
arrumar um bom apartamento. Papai levou suas coisas pro
depósito, jogou muita coisa fora, mas guardei umas coisas que sei
que você quer, umas fotos.
Ela ficou na janela olhando Dolly sair do prédio e Nita se soltar de
Vic e correr até ela, abraçando-a pelas coxas. Dolly apontou para a
janela e Nita, um pouco confusa, acenou de forma obediente para o
prédio. Eles se foram, Vic e Dolly falando ao mesmo tempo. Ela
ficou ali na janela mesmo depois de eles terem desaparecido.
Connie se lembrou de algo que o dr. Redding tinha dito ao diretor
Hodges: que eles tinham usado quinhentos macacos antes de
começar a fazer operações nos pacientes. Usado. Ela tinha ouvido
que eles queriam trabalhar com presidiários — ele achava que os
resultados seriam mais impressionantes —, mas tinha havido tanto
barulho por causa de três pequenos procedimentos psicocirúrgicos
em Vacaville, Califórnia, que sua equipe decidiu trabalhar com
pacientes internados em manicômios.
— Afinal — ele tinha dito, sorrindo de forma irônica —, eles
fizeram uma algazarra de sangria desatada de publicidade e
levaram aos tribunais três procedimentos, enquanto o Hospital
Infantil de São Francisco faz centenas com sondas térmicas e
sonoras, a maioria em mulheres neuróticas e crianças intratáveis, e
ninguém dá um pio.
Afinal, depois dos quinhentos macacos, eles seriam usados, um
de cada vez. Ela caminhou firme até Sybil.
— Sybil, vão acabar com a gente. É morte, não importa como
chamem.
Sybil sentou-se de pernas cruzadas, encarando-a. Seu olhar era
questionador.
— É verdade que essa ala é protegida. — disse Connie. — Mas o
hospital aqui tem uma segurança horrível comparada com outras
alas. Sei que poderia fugir daqui se conseguisse sair dessa ala.
— Como? A gente come aqui, dorme aqui. Nem tem uma sacada.
— Se eu fizesse eles acharem que tem algo errado comigo.
— Você morreria de varíola antes de eles fazerem alguma coisa.
— As mãos de Sybil se ergueram e flutuaram no ar, graciosas e
indefesas como pombas.
— Você tentaria se eu morresse?
Sybil olhou para baixo. Ela estralou os dedos, suspirando.
— Sem dinheiro?
— Tenho dez dólares. Com isso a gente podia pegar um ônibus
pra longe. Então podemos pedir carona. Skip fala que mulheres
sempre conseguem caronas. Só até ficar longe do hospital. As
pessoas suspeitam demais por aqui.
— A gente seria apanhada antes de chegar numa rodoviária.
— É verão. E se a gente dormir no mato e andar o quanto puder?
Eles não vão conseguir vigiar todas as rodoviárias em todas as
cidades. Por favor, Sybil, se eu pensar em algum plano bom?
— Desde a última sessão de choque não tenho tanta energia.
Realmente, ao olhar para o rosto de Sybil, ela percebeu o quão
magra e retraída Sybil estava, com aquela palidez de que todos os
internados compartilhavam.
— Mas podemos ajudar uma à outra. Podemos nos manter
corajosas... Minha sobrinha não vai ajudar. Ela está muito na lua.
Mas se chegar em Nova Iorque, ela nos daria dinheiro, sei que
daria. Ela ficaria impressionada com você, Sybil. Ela gosta de
astrologia e ia gostar de saber sobre bruxaria.
— Se a gente tivesse tentado antes, quando estávamos na L-6...
Connie, estou fraca. Eles drenaram meu poder. Já vai muito do meu
poder só pra manter distantes as más vibrações dessa ala.
— Se a gente fugir, fica mais seguro.
— Dez dólares?! A gente não ia chegar muito longe. Temos que
comer. Se eles pegarem a gente, seremos severamente punidas.
— Sybil, o que vão fazer com a gente de qualquer maneira? — Ela
fez um gesto apontando para o leito de Alice.
— Pelo menos eles fazem isso com você só uma vez. — Sybil
olhou para o chão. — É realmente pior que eletrochoque? Ainda não
consigo me lembrar das coisas que eu sei que sabia antes!
— Sybil, você está virando uma... velha paciente. — Diante dela,
Connie via as alas de pacientes crônicos, fileiras e fileiras de camas
de metal cheias de mulheres indefesas e medicadas. Um silêncio
terrível. — Não deixe que eles te diminuam.
— Não consigo. Não estou curada. Meu orgulho está vazio... Mas
vou te ajudar. — Sybil sorriu, fria como a luz da lua.
— Eles vão te punir se você me ajudar e eu fugir.
Sybil deu de ombros.
— Não do jeito que vão te punir quando te trouxerem de volta.
— Vou pedir pra outra pessoa.
— Não ouse! Não somos amigas? Você não acha que a minha
lealdade tem algum valor? — Sybil ficou de pé. — Talvez, se você
escapar mesmo, eu pense melhor nisso. É de longe o melhor plano,
esse de você fugir com a minha ajuda. Daí, quando estiver a salvo,
poderá me ajudar.
Naquela noite, depois de apagarem as luzes, ela se deitou
chorando.
Talvez Luciente pudesse ajudar. Quando ela a alcançou, Luciente
estava nadando no rio com Lebre, os dois mergulhando e
emergindo e jogando água um no outro. Luciente se arrastou até a
margem, o cabelo ensopado, parecia estar com gel e o corpo nu e
pingando. Connie se virou rapidamente ao ver Lebre também
subindo para chegar à grama.
— Vamo nos vestir, Connie. Não se esconda! — Luciente
obviamente achou a situação engraçada. Lebre e ela se secaram
com grandes toalhas e caminharam até o espaço de Luciente, com
ela seguindo de forma lenta atrás deles. Eles davam risadas, e ela
se sentiu excluída e sem graça. Como eles poderiam ajudar?
Ela caminhou, indolentemente subindo a trilha. Quando abriu a
porta de Luciente, eles mal haviam se vestido e arrumavam a cama.
— Nossa família se conheceu ontem à noite — Lebre disse a ela.
— Me apresentei como pronte pra maternar e pro serviço militar.
Mas todo mundo decidiu que era melhor eu me aviar pra defesa
antes de começar a maternar. Sei que é o lógico, mas me sinto um
pouco indecise. Quero maternar muito mais do que marchar por seis
meses pra onde quer que o inimigo esteja nos incomodando agora.
Luciente contemplava Connie com uma dobrinha de pele entre os
olhos.
— Que há de errado, Connie?
Quando ela descreveu a ala e o projeto, Luciente ficou imóvel. Ela
se sentou na cama, que ainda não estava arrumada, com as mãos
espalmadas sobre os joelhos abertos.
— Tão cedo. Isso promete ser ruim.
— É ruim, muito ruim? Foi o que pensei. Estou com medo.
Lebre, confuso, mas interessado, se aninhou em um travesseiro
que estava nas suas costas. Luciente fez uma careta.
— É aquela corrida entre a tecnologia, a serviço daquelus que
controlam, e a insurgência daquelus que querem mudar a sociedade
na nossa direção. No seu tempo, as ciências físicas tinham trazido a
tecnologia das armas. Mas o ponto crucial, achamo, está nas
ciências biológicas. Controle genético. Tecnologia de controle
cerebral. Vigilância do nascimento até a morte. Controle químico por
meio de drogas psicoativas e neurotransmissores.
— Luciente, me ajude a escapar! — As mãos dela estavam
tremendo, ela tocou o braço forte de Luciente. — Antes que façam
isso comigo.
Luciente se arrepiou.
— Colocar um pedaço de lenha no olho de alguém pra tirar um
cílio! Eles não tinham nem uma teoria da memória! A arrogância
delus... me assombra — ela bufou.
— Vocês podem me ajudar, por favor?
— Clarque podemo! — Lebre falou, massageando o ombro dela,
mas Luciente andava de um lado para o outro com o rosto fechado.
— Não posso interferir no passado, Connie — ela disse
morosamente. — Mas posso te dar conselhos. Isso é de graça como
o vento. Como dizemo, ninguém pede, mas todo mundo ganha.
— Achei que poderia fingir alguma doença séria o bastante pra
eles me tirarem da ala e assim eu poderia escapar.
— Você teria que ser capaz de criar e sustentar uma temperatura
alta. Posso te ensinar, mas levaria tempo. Devo discutir esses
problemas com o projeto de viagem no tempo. — Luciente
caminhou até o aparelho de televisão, mexeu em uns botões e falou
no cognescedor. Em pouco tempo, ela estava encontrando uma
série de pessoas. A maioria aparecia na tela quando falavam, mas
alguns estavam aparentemente muito longe da tela e falavam
apenas pelos cognescedores. Connie tentou se espichar para ouvir,
mas grande parte da discussão era em um jargão, sobre
deslizamento, macrônio rápido e lento, flebação e atingir o nevelo.
— Desculpe por ter atrapalhado vocês dois. Acho que estavam
planejando ficar sozinhos — Connie disse para Lebre, com seu
alongado corpo todo enrolado.
— É como na minha nomeação. Toda vez que dou um passo,
começo a chanfrar. Quero voltar pra onde estava. Não bem onde
estava. Mas preciso da Luci hoje, preciso interver claramente quem
sou eu e o que estou querendo. Me sinto em perdição, um pouco
fundapoçade.
— Você não quer ir pra defesa?
— Clarquessim eu quero. Me apresentei. Só que, depois que eu
tomo uma decisão, me sinto estreitade. Como se eu tivesse perdido
oito versões de mim. — Ele suspirou, contorcendo-se sem parar na
cama e dando um olhar sinistro para Luciente, distraída numa
discussão tensa no aparelho de tv.
Quando Luciente se virou para eles, estava séria novamente.
— Todes concordam que seu movimento é urgente! Mas ninguém
está muito confiante de que você vai aprender a controlar a
temperatura corporal em uma semana. Marat recomendou
apendicite aguda, um problema de saúde comum no seu tempo.
Nem sempre era acompanhado de febre e pode ser fingida
facilmente.
— Que nada! — Connie falou. — Eles não achariam que é uma
emergência tão grave. Por que me tirar da ala? Iam esperar até o
médico chegar. É melhor sair no final de semana, porque eles têm
poucos funcionários. E, Luciente, apendicite não é contagioso. Eles
nunca acreditam na gente quando dizemos que está doendo algo.
— Intão, e se fosse uma fratura na cabeça? Fingir inconsciência é
fácil. Posso te ensinar a entrar em delta em poucas aulas.
— Deixa eu pensar. — Connie se virou e quase tropeçou em um
objeto encostado na parede. — O que é isso?
— Cuidado! É uma arma. Não pude devolver hoje. Praticamo
meio-dia.
Connie se desviou com cuidado.
— Estou tentando pensar. Talvez.
— Coridora aqui — o cognescedor de Luciente falou com uma voz
alta e imperativa. — Pensei que você tinha planejado testar aqueles
resultados do Tennessee.
— Hoje à noite. Vai ser hoje depois da ceia.
— Pensei que ia ter uma reunião da cidade sobre a controvérsia
dos reformadores.
— Clarquessim. Vou fazer entre a ceia e a reunião. Já organizei
tudo — Luciente falou com calma. Connie podia sentir que ela
estava muito pressionada. Enquanto falava no cognescedor, ficou ali
desconfortável, como se as pernas estivessem amarradas, e olhou
para Lebre e para ela com um olhar perscrutador. Imediatamente ela
balançou seu cognescedor e falou: — Estrela da Manhã, pode levar
Alvorada pro exame dentário? Estou até o pescoço. — Então falou
com Alvorada: — Minha maçãzinha, Estrela da Manhã vai levar
você pra Goat Hill. Vou te ver na ceia e amanhã vamo juntes
trabalhar nos campos superiores.
De repente, Connie se viu diante da mãe da sua mãe, uma
camponesa vestida de preto com o cabelo puxado para trás,
amarrado como se fosse arrancá-lo. Com oito filhos, com quase
quarenta netos, com vacas e porcos e galinhas, ela permanecia
calma com aquela expressão pesarosa enquanto uma crise depois
da outra acontecia com ela. Todos seriam alimentados, todos seriam
confortados, todos seriam curados; para cada um ela daria um
pedaço de si. Luciente tinha um pouco daquilo nela, Connie pensou,
mas com mais controle, sem aquele desespero derradeiro.
— Acho que quero aprender a me fingir de morta... ou desmaiada,
pelo menos. Te falo com certeza amanhã.
— Vou perguntar pra Madalena o melhor jeito de te ensinar —
Luciente disse e sorriu para Lebre. — Daqui a uma hora vou
perguntar pra ela. Amanhã cedo, Connie doçura, me toque de leve e
vamo começar.
Envergonhada, Connie imediatamente rompeu o contato.
— Tina, por favor, vigia pra gente. Quero falar com a Sybil um
minuto apenas. Momentito?
Tina balançou a cabeça, olhando para elas com curiosidade; talvez
pensasse que elas eram amantes. De qualquer maneira, ela ficou
parada à porta, vigiando se vinha nenhum assistente, enquanto
Connie sussurrava para Sybil:
— Você fingiria uma luta comigo?
Sybil tocou de leve a bochecha de Connie.
— Por que não?
— Eles vão cair matando em você depois. Vão pegar pesado.
— Talvez eles me mandem pra fora dessa ala. Lá fora eu sei as
regras. Sou macaca velha.
— Ou talvez eles só te operem mais cedo.
— Talvez a pessoa mais triste seja a última a ser operada. Como
no corredor da morte.
Ela começou a passar todo tempo que podia com Luciente,
estudando como controlar seu sistema nervoso. De manhã, Luciente
estava andando com Abelha e Carvalho Branco, parando no quadro
de avisos da praça em frente à casa de encontros para ler os
avisos, poemas, propostas e reclamações mais novas.
Com você
Bem casalado: podia nadar
Na água morna
E derreter como cubo de açúcar.
“Quem não limpa o equipamento de mergulho deveria se afogar”.
“Você se considera menos do que uma abobrinha? Vote pelus
modeladories!”.
“Curso começando sobre fertilizantes bacterianos, terça, às 20h,
estufa de Amílcar Cabral”.
“Precisa-se de violoncelista, quarteto de música antiga. Veja com
Puccini, Goat Hill”.
“Teatro de passagem: artistas de Goose Creek visitam nesta
semana. Quinta: os barões ladrões (sátira histórica). Sexta: quem
sabe como cresce (peça sobre modeladories). Sábado: quando o
tempo enfraquece (peça sobre a batalha na Estação Espacial
Beta)”.
— O que é essa coisa toda sobre Modeladories? — Connie
perguntou enquanto lia os avisos.
— Os Modeladories querem intervir geneticamente — Abelha
ressoou. — Agora a gente apenas identifica problemas, observa
defeitos de nascença e genes ligados à suscetibilidade de doenças.
— Os Modeladories querem gerar pessoas com traços específicos
— Luciente disse. — É uma luta em nível de grã-selho.
— O que vocês acham? — ela perguntou com curiosidade.
— Ah, nós três somo Misturadories — Carvalho Branco disse. — É
o outro lado. Não achamo que as pessoas devam saber
objetivamente como as pessoas vão ser. Achamo que é uma onda
de poder.
— Olha aqui o meu aviso. — Luciente apontou. — Duas pessoas
se inscreveram ontem. Mas precisamo de pelo menos cinco.
Connie leu o aviso.
— Por que você quer aprender chinês?
— Eles realizam um trabalho interessante no meu campo. No meu
próximo sabático, vou viajar pra lá.
— Abelha, você vai também?
— Não vou. Viajei muito quando estava envolvide com as
reparações das antigas colônias. Não quero mover meu corpo tanto
assim de novo! Fiquei tão esgotade. Não, no sabático quero seguir
uma linha da pesquisa que nossa base decidiu se opor... idiotes.
Ela se virou para Luciente.
— Você vai pra longe sem ele?
— Como não? Por meio ano. Pessoa não vai fugir.
— Ah, mas sem você pra discutir dia e noite, meu cérebro vai virar
água-viva. Você vai voltar e encontrar uma pessoa Modeladora.
Quem vai me manter politicamente correto, quem vai me ponderar?
Carvalho Branco tinha começado a gorjear uma canção que
Connie ouvia as pessoas da vila toda cantarem ultimamente:
Um dia o passado morrerá,
A última cicatriz vai curar
O último lixo virará pó,
O último resíduo radioativo decairá
Ao silêncio
E nas grotas da terra não mais
Nenhum veneno vai ficar.
Doce terra, deito no seu colo,
Tomo emprestada sua força
Te ganho todo dia.
Abelha cantou com sua voz profunda e Luciente cantou uma
harmonia mais alta, até que eles chegaram na porta da base onde
trabalhavam.
Um dia a água correrá limpa,
O salmão singrará contra as correntes,
Baleias saltarão perto da praia,
E no fundo do mar não mais
Nenhuma bomba vai ficar.
Doce terra, deito no seu colo...
Abelha e Carvalho Branco entraram, ainda cantando, enquanto
Luciente se agachava no gramado do lado de fora para lhe dar uma
aula.
Mais tarde, Carvalho Branco saiu para se juntar a elas e foram
todos trabalhar nos campos superiores onde os jardins
experimentais de abobrinha e os feijões-de-lima de ciclo curto eram
cultivados. Pararam pela casa das crianças para convidar Alvorada
para ir com eles, e Carvalho Branco levou um bebê para passear e
tomar sol. Enquanto checavam as plantas e faziam medidas e
anotações, Luciente continuou a aula com Connie. Alvorada estava
curiosa sobre o passado e ficava interrompendo com perguntas, até
que Luciente disse com firmeza:
— Fique quiete ou vá embora agora, Alvorada. Connie tem que se
concentrar em escapar do lugar ruim onde é mantida contra a
vontade dissôa. Semana que vem, se Connie escapar, pessoa vai
responder todas as perguntas que você fizer.
Alvorada se calou. Connie disse:
— Essa é a primeira vez que eu ouço alguém dizer não, sabe,
disciplinando uma criança aqui.
— Tenho que explicar. Alvorada deve compreender a situ. E as
perguntas dissôa podem esperar.
Ela sentia que era ela, não Alvorada, que estava atrapalhando
Luciente, empurrando-a para lá e para cá e a incomodando como se
fosse um cachorrinho carente. Ela entendia que o que queria
dominar era realmente simples, algo que qualquer criança de seis
anos fazia quando queria. De fato, naquele verão, uma criança na
nomeação tinha se ferido seriamente numa pilha de pedras e tinha
ficado em uma forma de hibernação até a ajuda chegar, reduzindo
os processos físicos até quase zerá-los. O fato de que qualquer
criança de seis anos podia zipar e dezipar do delta ou reduzir o delta
não ajudava muito o humor de Connie. Austeramente, ela morejava
pelas aulas.
Luciente conferiu as horas.
— Meio-dia eu encontro Bolívar. Vamo comer sanduíche perto do
rio e comunir, ou ao menos tentar! — Luciente deu um sorriso
amarelo.
— Você gosta mais dissôa, mamãe?
— Estou tentando. Turbulento, Clarquessim, mas estou tentando.
Bolívar também. Mas é como cão e gato.
— Sobre o que vocês conversam? — Carvalho Branco perguntou.
— Infância — Luciente disse com outro sorriso tímido. — É a única
coisa que encontramo em comum, além de Lebre, até agora.
— Metade das pessoas que vejo estão bocejando hoje — Connie
falou.
— Ah! — Luciente se lamentou. — Ficamo acordades até depois
da meia-noite ontem discutindo sobre a questão dos Modeladories.
Tomamo café duas vezes. Vamo descansar por uma noite pra
recuperar o sono e daí nos encontramo amanhã de novo pra discutir
a posi da nossa vila. Barbarossa e Luxemburgo estão do lado
oposto, saca? — ela disse para Carvalho Branco. — Tem que focar
neles.

...

Connie escondeu os dez dólares de Dolly entre a palmilha e a sola


do sapato e convenceu Valente a lhe emprestar agulha e linha para
arrumar os vestidos. Em outra ala, costurar seria considerado um
bom sinal — um interesse feminino em fazer suas roupas servirem
teria lhe concedido alguns pontos —, mas ali ninguém se importava.
Somente a bondade de Valente determinava que ela poderia
conseguir o que precisava para remendar suas roupas para que
ninguém na rua ficasse olhando.
Como ela tinha temido sair do seu pequenino apartamento em El
Barrio e ir para as ruas sombrias e fervilhantes! Tinha sido loucura
naquela época. Agora, para ser livre, ela se arrastaria, até
engatinharia de quatro descendo a Lexington.
No sábado à noite ela tinha feito uma pequena trouxinha com seus
dois vestidos extras e uns poucos itens de necessidade básica, e às
oito horas ela começou a empurrar tudo pela janela através das
grades, para que caísse nos arbustos lá embaixo. Passou dez
minutos tentando forçar tudo pelas barras. Odiava pensar em como
estariam os vestidos quando os recuperasse. Só não poderia
chover! Não chovia há duas semanas. Enquanto ela espremia o
pacote por entre as barras, Sybil foi para a enfermaria, onde fez
uma ceninha, nada grande o suficiente para ser punida, mas o
suficiente para atrair a atenção da assistente de plantão.
— Por que não podemos socializar com outras alas? Na minha ala
antiga, de tempos em tempos, tínhamos uma boa visita social a
outras alas. Davam Ki-Suco e bolacha. Aqui a gente não tem nada.
Não podemos nem ver filmes, não temos terapia ocupacional, não
fazemos terapia de dança, nem mesmo fazemos terapia industrial.
Da última vez em que estive aqui, trabalhei na lavanderia. Por que
não dessa vez? É como se a gente estivesse numa ala
ultrapassada, é isso que parece. Nem temos terapia em grupo!
Devemos ser os únicos pacientes funcionais que não fazem terapia
em grupo pelo menos uma vez por semana no prédio todo! — Sybil
posava com uma altivez de grande dama da sociedade, arqueando
as sobrancelhas, modulando a voz e os ombros, estendendo o
braço em gestos enfáticos, enquanto furtava alguns olhares para ver
o progresso de Connie.
Connie já tinha jogado o pacote e corrido para o banheiro, onde
tirou do sutiã um pedacinho de metal que ela e Sybil tinham
conseguido arrancar do leito de Sybil. Vagarosamente, ela cortou
sua coxa até que começasse a sangrar e então guardou o sangue
num copo plástico de medicamento que elas tinham conseguido
guardar. Ela diluiu um pouco de água no sangue para impedir que
coagulasse muito rápido e então correu de volta, derrubando a arma
de metal no leito de Sybil. Daí, colocou o copo com sangue perto do
pé do leito. Sybil parou sua ceninha na hora, realizando uma saída à
la Bette Davis pelo corredor.
— Boa noite, dama Sybil — a assistente da noite gritou. — Vamos
te dar uma dose bem forte hoje à noite.
Connie entrou no caminho de Sybil e esbarrou nela com tudo.
— Presta atenção por onde anda, gorda cretina — Sybil falou.
— Presta atenção em quem você está empurrando, bruxa
magrela! Se vangloriando o tempo todo. Pensa que é melhor que o
resto de nós. Mas você é só uma puta louca!
— Quem diria — a assistente da noite disse, rindo.
— Seu linguajar é igual ao resto de vocês, retirado da sarjeta! —
Sybil vociferou.
— Pelo menos não finjo que consigo voar. Eles te colocaram no
choque tantas vezes que você tem torrada queimada em vez de
cérebro!
— Aaaaaaaah! — Então Sybil voou para cima de Connie. Ela
pegou o pedaço de metal da cama e balançou no alto, onde todos
podiam ver, e começou a acertar Connie com ele. Alguns dos golpes
acertaram de verdade e doeram muito. Connie lutou contra ela com
os punhos e as unhas, dando golpes em Sybil. Tina Ortiz se virou e
veio correndo pela ala, para se juntar à ação. Finalmente, Sybil a
acertou do lado da cabeça, evitando acertar o máximo que podia.
Connie caiu do lado da cama e, agarrando o copo com sangue,
derramou na orelha e colocou o dedo no nariz, raspando forte a
mucosa para que o nariz também começasse a sangrar. Então
entrou no estado de inconsciência que vinha praticando. Ela
conseguia ouvir, mas não reagia a nada. Sybil chutou o copo para
debaixo do leito enquanto chegavam enfermeiros e assistentes e
Tina, que gritava:
— Jesús y María, você matou ela, sua bruxa branquela!
Sedaram Sybil e depois Tina. Skip tinha aberto a porta da ala
masculina e estava gritando horrorizado.
As enfermeiras a viraram e examinaram e então restringiram os
movimentos de Sybil, que já perdia os sentidos pela sedação.
Colocaram Connie na cama dela. O enfermeiro da noite levantou
suas pálpebras e olhou, então bateu nas bochechas.
— Bom, acho melhor pedir pra um auxiliar levá-la ao raio x. Acho
que deve ser uma fratura. Quem está no turno da noite?
Provavelmente o dr. Clausen. Aquele sabichão de Nova Iorque,
Redding, vai tirar nossa pele se alguma coisa acontecer com os
preciosos cérebros dele, te garanto. Coloca um monte de casos dos
mais violentos todos juntos aqui sem segurança suficiente e no que
dá? Melhor eu dar uma ligada e ver se o dr. Clausen está dormindo.
Enquanto isso, vai e acorda o auxiliar. Diz pra ele levar ela pro raio x
até a gente conseguir alguém pra operá-la. Ah, merda! Por que eles
não fazem isso numa segunda à noite? Malditos animais! Dê pra
todos uma dose extra de tranquilizante.
O auxiliar que a colocou na maca e a levou pelo corredor e a
colocou no elevador velho e barulhento estava entediado, sonolento
e irritado. Ele ficava murmurando “credo”. Ninguém se afobou.
Parada na maca, do lado de fora da sala de raio x, ela sentia os
minutos escorrendo lentamente enquanto o auxiliar e o enfermeiro
ficavam ali reclamando. Mas logo o enfermeiro saiu para fazer
ligações e o auxiliar foi até a máquina de café no andar de cima,
depois de ter pedido um dólar emprestado.
Assim que o auxiliar saiu, ela desceu da maca. Limpou o sangue
da maneira que conseguiu no lençol, mas ainda gotejava sangue do
nariz. Ela caminhou até o corredor mais próximo, tentando abrir
todas as portas que via. Num armário, encontrou um jaleco de
funcionário. Todos os laboratórios e consultórios estavam trancados.
Um armário de vassouras estava aberto, mas era inútil. Finalmente,
ela dobrou uma esquina e viu uma porta para o exterior. Estava com
um aviso que prometia que, se fosse usada como saída, um alarme
dispararia.
— O que mais posso fazer? Santa Maria! Me ajude agora, pelo
menos dessa vez! — Ela saiu com tudo e o alarme começou a tocar,
alto o suficiente para ser ouvido por todo lado, por toda parte.
Não fazia ideia de em qual lado do prédio tinha saído.
Rapidamente deu voltas, procurando pela sua roupa, mas as luzes
externas se ligaram e ela desistiu e começou a correr. Talvez
pudesse se esconder até de manhã, até as buscas terminarem, daí
voltaria para pegar as roupas. Se ao menos tivesse planejado um
jeito melhor de sair com as roupas... Ela correu, gastando toda a
energia de suas pernas curtas, passando por gramados, pulando
arbustos e afastando galhos. Logo eles estariam fazendo uma
busca reforçada por ela. Ela estava do lado de fora, estava do lado
de fora pela primeira vez desde abril! Ela corria, ofegando muito,
tossindo, debaixo da lua crescente prateada, afiada o suficiente para
cortá-la. Branca como o pedaço de metal com o qual Sybil tinha
fingido atacá-la. Brilhante como a liberdade. Pequena como suas
chances.
— Linda lua, mãe, senhora dos chifres, me ajude. Luciente,
brilhante como minha amiga, me ajude!
Mas a foice afiada da lua zombava dela. Comentava, com uma voz
ensaiada como a de Sybil, que ela tinha planejado, mas planejado
como uma louca, não tendo pensado além do primeiro momento da
sua fuga. Tinha entrado em pânico quando encontrara as primeiras
portas trancadas e desabalado na primeira porta mesmo com o
alarme. Ela deveria ter continuado tentando todas as portas de
todos os corredores até encontrar uma saída segura.
Talvez eles não achassem as roupas dela nos arbustos. Se ela se
escondesse, poderia se misturar aos outros pacientes nos jardins
durante o dia, dar umas voltas no hospital e agarrar o pacotinho.
Outra voz nela gritou: “corra, crie uma distância segura. Fuja e
pense nas roupas depois. Você tem dez dólares. Compre, esmole,
roube roupas. Logo será segunda-feira, alguém deve ter lavado
roupa. Vai ter roupas nos varais. Corra!”. A voz cantava que, se ela
não aproveitasse aquela chance, que se não saltasse no escuro, se,
como Sybil, fosse esperar o momento perfeito, ele nunca chegaria.
Alice não tinha tentado escapar, e que castigo eles poderiam dar a
ela que fosse pior do que virar um brinquedo, um fantoche, um
macaco de laboratório?
Ela decidiu continuar e esquecer sua trouxinha. Uma sirene soou
por perto. Grupos de buscas e a polícia estariam atrás dela. Ela se
esquivou por entre os prédios, por dentro dos arbustos. Sabia onde
podia passar por cima do muro. Ficou contente de já ter estado ali
antes, feliz de já ter tido privilégios perto do final da sua última
internação, porque conhecia o terreno. Escalou o muro e atravessou
a estrada com seus sapatos baratos e barulhentos até o outro lado.
Atrás de um arbusto, ela se agachou, ofegante. Esperou o fôlego
voltar e sua anca parar de doer. Tossiu e tossiu e cuspiu. Usou o
jaleco branco para limpar o sangue do rosto. Tirou o amontoado de
notas do sapato e as colocou no bolso da blusa.
Assim que a dor nas costelas diminuiu, ela se levantou e andou
pela estrada. Podia ver os faróis se aproximando. Quando vinha um
carro, se escondia nos arbustos. Andava rápido. Antes que
chegasse ao cruzamento no final do terreno do hospital, quatro
carros passaram por ela; um deles era de polícia. Os carros
passavam devagar demais para serem motoristas comuns. Ela
imaginou a descrição: lunática perigosa escapou. No cruzamento,
parou, olhando para a região pavimentada e desprotegida, então
correu ouvindo o barulho dos sapatos pelo asfalto nu. Essa era a
rodovia estadual. Ela deveria segui-la, mas estava com medo de
andar pela calçada. Levaria muito tempo para encontrar
esconderijos. Desceu até o duto de escoamento, que se estendia
paralelo à estrada. Quando um carro se aproximava, ela se deitava
de barriga para baixo. Assim que o carro sumia, ela se levantava e
seguia seu caminho. Os ferimentos doíam, a coxa cortada ardia e os
pés já estavam assados. Mal tinha caminhado nos meses anteriores
e seus pés haviam ficado macios; seu corpo estava mole e fraco por
causa da comida ruim e da falta de exercícios. Ela se sentiu
extenuada. Queria ficar deitada no duto de escoamento. O sono a
tomaria lentamente, o sono tomaria cada centímetro do seu corpo
dolorido como água quente enchendo uma banheira, sim, água
limpa, clara e agradável subindo lentamente, subindo para cobri-la
de calor e alegria. Estava de joelhos, sua cabeça abaixada tocando
os cascalhos. Ela se forçou a se levantar e seguir caminhando.
Tudo bem, não conseguia mais correr ou trotar, mas conseguia
andar. Um pé, outro pé. Pé direito, pé esquerdo. Uma marcha
começou a se formar na sua mente, uma que as pessoas cantavam
no treinamento militar, uma canção que disseram ser de uma época
que chamavam de Batalhas da Guerra dos Trinta Anos:
Me deixe viver ao sol
Nos anos que tenho,
Me deixe andar na chuva
Nos anos que tenho.
Viver o bastante pra dizer
que amo todos que amo.
O bastante pra assar um tijolo
Pra casa que vamos dividir.
Me deixe lutar como tigre
E deixar algo lindo
Como os caramujos
Nas praias do litoral.
As palavras se formavam na sua mente e ela as murmurava
enquanto andava. Pé direito, pé esquerdo. Com a cabeça inclinada,
observou o céu límpido. Bem acima dela, uma estrela vermelha
brilhava. Um pouco ao norte, ainda no cume do céu, ela encontrou o
Grande Carro. A oeste e um pouco mais abaixo havia o que parecia
uma foice de estrelas. Ela queria poder se lembrar de como
encontrar a estrela do Norte; seu pai a tinha ensinado quando era
criança.
Deixar a rodovia estadual seria mais seguro, mas, se fizesse isso,
não saberia como chegar à próxima cidade. De novo um carro de
polícia passou, com suas luzes brilhantes iluminando os dois lados
da estrada. No mato alto do duto de escoamento ela jazia deitada,
contente porque não chovia há muitos dias. Um pernilongo pousou
na perna dela e pacientemente sorveu seu sangue enquanto ela
esperava a polícia passar. Quando chegou ao próximo cruzamento
e correu sobre altos arcos de luz, percebeu que seu vestido de
estampa verde estava sujo de barro. Ela estava mais molambenta
do que nunca. Havia um posto de gasolina na esquina mais distante
do cruzamento, escuro e fechado devido à hora. Tentou abrir as
portas dos banheiros e descobriu que o masculino tinha ficado
destrancado.
Sangue no rosto, parecendo a vítima de um acidente. Não ousou
acender a luz, mas se sentou para descansar com uma pilha de
toalhas molhadas e se limpou, tentando tirar a lama do vestido.
Servindo-se de uma boa porção de papel higiênico e papel toalha,
ela os enfiou no bolso do jaleco, que vestiu para proteger o vestido.
Era branco e podia se destacar, mas, se estivesse muito suja, seria
rapidamente notada se tentasse embarcar em um ônibus. No bolso
do jaleco achou um pacote de lencinhos, um maço de cigarro ainda
com cinco e uma caixa de fósforos. Ela pegou a caixa na palma da
mão com reverência. Por quatro meses tinha sido proibida de
possuir essa arma perigosa e caco de dignidade: uma caixa de
fósforos. A foto na embalagem mostrava um homem carregando
uma maleta e com um sorriso aberto. A caixa a convidava a voltar a
estudar por correspondência para ter uma ótima carreira. Mesmo
sem um diploma de ensino médio, ela podia ganhar muito dinheiro
preparando impostos de renda depois de um curso por
correspondência de apenas oito semanas.
Connie desejou voltar a estudar. Na época de Luciente, todo
mundo estudava o quanto queria. Eles faziam cursos o tempo todo,
fossem quatro, cinco ou seis alunos. O que ela estudaria? Mal sabia
por onde começar. Ela era uma mulher ignorante; tivera pena de
Luciente por pegar leve com ela, mas o que ela mesma sabia? Com
relutância, levantou-se do chão gelado. O lugar fedia menos que os
banheiros no hospital, e era maravilhoso usar o banheiro sozinha,
sem ninguém olhando para ela, fechar a porta da cabine do
banheiro, lavar o rosto, as mãos, o corpo e os pés com carinho na
pia. Os pés estavam inchados, mas pareceram melhores depois de
serem lavados. Ela pegou o minúsculo pedaço de sabonete que
sobrou e o embrulhou no papel toalha.
Apesar de estar ansiosa para voltar para a escuridão e se afastar
do cruzamento, ela conferiu todos os carros parados atrás do posto,
contando com a sorte de que talvez alguém tivesse esquecido a
chave no contato. Tinham levado as chaves. Em um dos carros,
porém, encontrou um mapa do estado, em outro, um par de óculos
escuros (para se disfarçar, talvez?), e no porta-malas de um velho
Thunderbird branco alguém tinha deixado uma jaqueta jeans. Ela a
experimentou. Ficou melhor do que o jaleco. Dobrou as mangas e
passou os dez dólares, os cinco cigarros, os preciosos fósforos e o
mapa para os bolsos da jaqueta. Depois dobrou o jaleco e o colocou
debaixo do braço.
Então um surto de pânico se instalou quando percebeu que havia
perdido meia hora no posto, e ela retomou seu caminho pelo duto
de escoamento ao lado da estrada. O cansaço a enfraquecia.
Enquanto caminhava e depois andava mais devagar, deu umas
cochiladas e até teve uns fragmentos de sonhos. Ela e Dolly
estavam tomando café com leite bem doce na cozinha fumegante
de Dolly. Nita se sentou no colo dela, fazendo carinho. Ela deixava
Nita dar uma mordida na sua rosquinha, embebida naquele café
com leite docinho.
Um carro. Ela se deixou cair sem pensar e esbarrou o braço em
algo pontiagudo. Ficou parada, seu braço doendo, enquanto o carro
passava lentamente. Algo enferrujado. Ela se arrastou para frente e
se levantou cambaleando. Andou e andou. A lua sumiu por entre as
árvores. Caminhões passaram. Ela passava tanto tempo deitada no
duto quanto de pé andando. Tropeçou e caiu de novo.
No cruzamento seguinte, Connie esperou, olhando para todos os
lados antes de atravessar aquela faixa de asfalto. Havia um posto
de gasolina ali também, mas ele tinha sido fechado e as bombas
haviam sido retiradas. Na esquina mais próxima, uma barraca de
comida estava fechada com cadeado por causa da hora. Ela não
conseguiu encontrar um jeito de entrar. Atrás da barraca, frutas e
vegetais estavam no lixo, nada que estivesse bom o suficiente para
ser vendido. Uma ratazana não se assustou com sua presença e se
bandeou para o mato alto quando ela se aproximou. Tinha medo de
ficar fuçando. Que cheiro! Frutas e verduras podres. O estômago
dela roncou. Ela balançou a cabeça com força. Tinha de comer.
Revirou o lixo até encontrar umas cenouras, um repolho branco,
umas bananas escurecidas, mas ainda comestíveis, e algumas
batatas já brotando. Tudo foi para os bolsos da jaqueta, exceto as
bananas, que ela foi comendo enquanto andava.
Suas mãos fediam. Paciência. Espera. No duto do outro lado do
cruzamento, um pequeno córrego. Água em meio à secura. Ela tirou
os sapatos e tentou andar pela água, mas o cheiro era horrível e o
fundo estava escorregadio com o lodo. Preferiu andar no lado do
duto mais afastado da estrada, nervosa, porque era mais difícil de
se esconder e o caminho era mais íngreme. O mato alto se partia
entre suas pernas e a atrasava. Ela se sentia exposta ao ver faróis,
e quando ouvia um motor, se agachava no mato alto ao lado do
córrego.
Os pés estavam em carne viva. Quando se sentou numa pedra,
descobriu que a sola tinha feito um buraco. Ela tentou remendar o
buraco com papel toalha, mas isso criou um caroço que machucava
seu pé. Não conseguia continuar, e o céu começava a clarear. Ela
precisava sair da estrada.
Mancando, agora entre o córrego e uma cerca de arame farpado
com alguma plantação do outro lado, ela não via escapatória, mas
se forçava a seguir. O ar estava acinzentado e ralo, aguado como
uma sopa do hospital. Ela mal tinha energia para se deitar quando
os carros se aproximavam, e, no seu estupor, um carro veio por trás
e ela só percebeu quando ele passou. Por sorte, não estava
procurando por ela, pois não diminuiu a velocidade. Estava exausta
demais para seguir a marcha, mas não via nenhum lugar onde se
esconder. Tentou andar mais rápido com suas últimas forças e com
o pé sangrando, atravessando o ar que a traía e se tornava mais
rarefeito a cada passo. Forçava as pernas doloridas e suadas,
inchadas, machucadas, tropeçando ao lado da sarjeta poluída, com
suas águas correndo preguiçosas na mesma direção desconhecida.
Viu um pequeno bosque do outro lado da estrada. Teve de andar
na água fétida de novo e sair do duto e correr para o outro lado, mas
não conseguia mais correr. Ela cambaleou pela calçada, vasta e
cinza na meia luz. Em câmera lenta, ela levantava seus cascos de
chumbo e avançava. Seus pés estavam molhados com sangue e
pus das bolhas estouradas. Ela cruzou a área asfaltada com marcas
de derrapagem impressas. Por fim, se deixou cair do outro lado sem
parar para olhar, porque ouviu um som de motor. Não havia água
correndo ali. Ela caiu sobre uma pilha de garrafas quebradas, que
empurrou para longe. Agachada, começou a seguir adiante, sempre
se colocando de bruços quando os carros se aproximavam. Mais
iluminado. Agora ela já conseguia ver à distância de um quarteirão
— e ser vista. Então atingiu a primeira árvore desgrenhada daquele
bosque. Uma cerca de arame farpado também seguia do seu lado
da estrada, mas ela achou um lugar onde podia usar um chumaço
de mato e o jaleco branco para empurrar os fios enferrujados até
que pudesse se arrastar por baixo. Então se atirou cegamente para
dentro da mata até que não pudesse mais ver a estrada. Ela
desabou.
Algo se arrastou pela sua perna. Ela tirou um carrapato e o jogou
longe. Ficou de pé. Com a estrada à suas costas, esfornçou-se para
adentrar na mata até as árvores mais altas. Afinal, chegou a um
arvoredo de pinheiros altos com alguns carvalhos jovens embaixo
deles. O chão estava vermelho acastanhado coberto de folhas, lindo
e com um cheiro doce. Ela escolheu um lugar sob uma árvore alta e
estendeu o jaleco. Deitando-se com a cabeça nele, ela dormiu
quase imediatamente, se entregando a um sono pesado de
exaustão.
CAPÍTULO 12

Quando Connie acordou, ela permaneceu deitada por um momento,


confusa. Sua mente parecia inchada. A cabeça doía como se
tivesse levado uma pancada. Suas pernas estavam rijas, doloridas e
coçando por causa das picadas. O sol estava no céu a oeste.
Mesmo assim, estava livre, ainda estava livre. Ela ficou
desorientada por causa do espaço aberto e meio tonta.
Ao se sentar, massageou as pernas. Que horrível estavam seus
pés! Os sapatos tinham começado a se desmanchar, e as solas
estavam se desprendendo do resto. Levantando-se de mau jeito, ela
os pendurou em um galho para secar. Queria tanto estar mais
apresentável. Se tivesse um pente... Se o vestido estivesse mais
limpo... As roupas fazem muita diferença em como as pessoas te
veem. Geralmente elas só olham as roupas. Um vestido limpo e
asseado e ela poderia seguir e sumiria. Mas, naquele vestido verde
sujo e jaqueta jeans masculina, com um jaleco branco como
alternativa, ela balançou a cabeça lastimando.
Tirando as folhas mais externas, deu uma mordiscada no repolho
cru, enquanto seu estômago reclamava, não tendo que digerir nada
mais duro que caldos nos últimos meses. Ela mastigou e mastigou o
repolho, então roeu as cenouras. Apesar de aquela comida não
parecer comida, era alguma coisa. Ela sonhou com café com leite e
pão — todos os pães de Nova Iorque. Baguetes compridas de
padaria. Pão de centeio das lojas judaicas. Então tostadas, tortillas.
A torta cremosa de fubá que Claud gostava tanto que ela fizesse.
Pretzels quentes e grandes que os homens vendiam na rua em
carrinhos, cujo fogo mantinha suas mãos aquecidas no inverno.
Ela se encostou num tronco de pinheiro, tentando pensar no que
fazer. Os parcos vegetais tinham melhorado a secura na garganta
dela, mas precisava encontrar água e comida. Não podia sair do
esconderijo até anoitecer, e nesse ínterim descansaria os pés. Ela
ainda tinha os dez dólares, o mapa da estrada e estava livre. O
bosque tinha um cheiro maravilhoso. A luz dançava por entre os
troncos e corria em feixes pelas copas dos pinheiros acima dela: as
folhas-agulhas em que se sentava eram macias e cheirosas. Mas
não fazia a menor ideia de como procurar água ou comida. Não
podia comer uma árvore. Com a cabeça encostada no tronco,
observou os passarinhos voando para lá e para cá enquanto um
pássaro maior ciscava as agulhas em busca de insetos. “Luciente!”,
ela a invocou.
— Como voa? Finalmente captei um erro no nosso experimento.
Fiquei acordade quase a noite toda trabalhando, mas deu certo.
Você escapou?
— Sim.
— Bom. Venha comigo. Hoje vamo pegar uma rasanteira e vamo
visitar as fazendas marinhas.
— Venha você, em vez disso. Preciso de ajuda.
Luciente veio, olhando ao redor com nervosismo visível.
— Admito, prefiro o outro jeito. O seu tempo me assusta. E faz
mais sentido que você exista no futuro, em que pelo menos é uma
lembrança, do que pra mim ficar zanzando no passado, onde não
tenho direito de existir!
— Não importa! — Connie disse. — Vocês treinam pra sobreviver
na selva, como os escoteiros. Bom, aqui estou eu. Meus pés estão
sangrando, não tenho nada pra comer, só batata crua, e não sei
nem diferenciar as árvores.
— Ah, um exercício na mata. Não faço isso desde uns dois anos
atrás, quando acompanhei umas crianças. Quando Alvorada quase
confundiu cenoura-selvagem com cicuta.
— Foi um teste que ela não passou?
— Teste? Não entendo. Uma é venenosa, a outra é comestível.
Ela riu fraco.
— Espero que você tenha passado nesse teste.
— Euzinhe não apenas estudei, como ensinei essas coisas, estou
falando sério. Não sinta ansiedade. — Luciente olhou em redor com
um leve entusiasmo. — Primeiro de tudo, pinheiro branco é
comestível, mesmo não sendo gostoso. No caule, a camada
chamada de câmbio, entre o floema e o alburno. Você tem uma
faca?
— Só tenho fósforos porque encontrei alguns. No hospital a gente
comia com talher de plástico. Tenho um aqui comigo. — Ela o tirou
do bolso.
— Tudo bem. Primeiro procuramo ferramentas. Nessa era de
Ganância e Desperdício certamente a gente encontrará coisas à
mão que foram jogadas fora.
— Nada é jogado fora na sua época?
— Jogado fora onde? O mundo é redondo.
Cuidadosamente, elas caminharam até a vegetação perto da beira
da estrada e procuraram nos matos e arbustos. Numerosas latinhas
de refrigerante e cerveja se acumulavam por ali, assim como palitos
de sorvete. Também encontraram garrafas intactas e potes e alguns
cacos de vidro afiados e úteis.
— Luciente, estou com sede. Preciso de água logo.
— Vamo procurar com mais atenção. Ah, isso me lembra das
buscas por materiais — Luciente disse alegre, mexendo na grama
alta e de quando em quando pegando alguma coisa e fazendo uma
careta de satisfação. — Quando eu tinha quinze anos, fui trabalhar
com a equipe nas ruínas de Providence, onde estavam demolindo
as construções velhas.
— Com aquelas bolas de demolição? Vi isso no Harlem.
— A gente tirava tudo tábua a tábua, tijolo a tijolo pra reusar.
Clarquessim era um trabalho tedioso, mas era de alguma forma
gratificante. A gente costumava cantar e contar histórias o tempo
todo. A gente acampava nos velhos armazéns e prédios de
apartamento. A gente comia ao redor do fogo ou era convidade pra
comer pelas vilas vizinhas, e elus iam mostrar pra gente o quanto
cozinhavam bem. Mas a gente tinha que improvisar e ficar alerta.
Aqueles prédios velhos, alguns eram construídos bem, mas outros
eram construídos de forma irracional, até perigosa. Tínhamo que
trabalhar com muito cuidado, e mesmo assim a gente se
machucava. Vigas antigas estavam enferrujadas, paredes afetadas
por infiltrações, construções que pareciam sólidas se mostravam
ocas. Alicerces afundavam um meio metro, então as construções
não tinham suporte depois que os taludes erodiam. Às vezes a
gente se deparava com camada em cima de camada de
construções, ossos e bugigangas. Então a gente convocava
arqueologiste, que sempre trabalhava com as equipes de busca, e
trabalhávamo sob as ordens dissôa, peneirando e raspando
lentamente. Isso seria uma mudança. Seismês eu trabalhei no
projeto de busca até quebrar uma perna. Estava aguardando pra
estudar com Rose de Ithaca, que tinha estudantes demais. —
Luciente identificava várias plantas enquanto andava agachada. —
Morugem branca. Boa crua ou cozida. Sim, beldroega comum. Não,
aquela. É uma suculenta, você não pode se esquecer dela. Não se
preocupe, eu vou conferir tudo que você apanhar. Só as folhas mais
internas do dente-de-leão por agora, as outras estarão amargas e
duras. O mesmo com a chicória.
Ela rastejou descalça pela vegetação, seguindo Luciente. A uns
seiscentos metros, carros e caminhões passavam voando a oitenta
quilômetros por hora. De vez em quando, um carro passava mais
devagar e as duas mulheres nem se mexiam. A vegetação as
escondia, mas não precisavam mexer as folhagens à toa. O dia
estava quente e as folhas perto da estrada estavam empoeiradas e
cheirando à fumaça.
— Elas sem dúvida contêm altos teores de chumbo. — Luciente
franziu o cenho. — Olha, ali tem sumagre. Vamo pegar um pouco da
casca do caule pros seus pés.
Apesar da dor, cambalear seguindo Luciente a fez se animar,
enquanto remexer na vegetação a fez se lembrar da infância — com
seis anos de idade brincando nos campos perto de casa. Suas
pernas e costas doíam, seus braços e pernas estavam cortados em
vários lugares, seus pulsos e tornozelos estavam marcados de
picadas de insetos. Mesmo assim, ela se sentiu boba de alegria ao
juntar as ervas que Luciente apontava. Tanto exercício fez com que
ela tossisse muito e escarrasse.
— Não tomar Amplictil me faz tossir muito.
— Seria melhor se você tossisse mais, não menos, e trouxesse
pra fora o que tem de ruim nos pulmões — Luciente falou. — Agora
se sente debaixo da árvore e descanse. Elus deixaram você fraca
naquele hospital de malucos. Vou pesquisar onde tem água.
Mastigue um pouco de morugem enquanto me espera.
Ela mordeu meio hesitante e fez uma careta.
— Eca. Parece grama.
— É bom pra você e vai aliviar a sede. Minha cerejinha, não te
prometi que você ia achar um ganso assado nos arbustos. Coma,
fique forte e poderá ir pra casa cozinhar pra você.
Encostada no pinheiro branco que havia se tornado seu lar, ela
mastigou a morugem, que tinha o gosto que ela esperava que um
monte de mato teria; mastigou e mastigou e depois engoliu. Não era
pior que a comida do hospital, na verdade, só mais estranha. O sol
tinha baixado até a linha na qual ele costumava sumir atrás do
prédio da administração perto do hospital. Cerca de quatro da tarde.
Ela nem se preocupou. Estava tão contente de estar do lado de fora,
mesmo no meio do mato, com os pés em carne viva, esperando
para comer umas plantas do campo como uma vaca pastando. Ela
ficou feliz tal como uma vaca deveria ficar mastigando sua
ruminação. Sabia que um pouco da tontura e do sentimento de que
poderia dormir por muito tempo vinham da ausência do
medicamento. Ela desejava que Luciente achasse água. Aquela
coisa podre que tinha no duto de escoamento provavelmente a
mataria. Bom, mastigar mato ajudava. Luciente tinha achado umas
cebolas selvagens e elas tinham feito a saliva dela fluir e aliviar a
dor de garganta. Percebeu que suas mãos estavam tremendo. A
tremedeira parecia estar ficando pior com o passar do dia.
Abstinência de Amplictil e barbitúrico. Ajudaria se ela tivesse água,
mas uma tranquilidade estranha a preenchia. Ela sentia o espaço ao
redor do seu corpo, o espaço da privacidade e da escolha.
Comparando-se com a vaca, ela se sentia mais humana do que
tinha se sentido desde... ah, desde quando estava com Claud.
Quando ela tinha conversado com Luciente sobre o Claud,
Luciente tinha ficado chocada ao saner que Claud era um
trombadinha. Eles tinham agido nas multidões de bem-vestidos, os
homens de negócio, as mulheres que faziam compras na Quinta
Avenida. Já que era ela quem fazia as buscas, isso a fez descobrir
um orgulho ao aprender aquelas habilidades, orgulho por ser útil ao
Claud. Era o ganha-pão deles, podiam comer fora na vizinhança e
comprar roupas e deixar Angelina bonitinha como ela deveria estar.
Dinheiro para ir ao dentista. Dinheiro para um sofá novo comprado
na hora certa — era courino, parecia couro de verdade, e Claud
gostava de se esparramar nele.
Sentir orgulho. Ah, era o que tinha sentido no breve período em
que frequentara a faculdade em Chicago para se tornar professora.
Como ela tinha estudado, espalhando os livros pela mesa da
biblioteca (era muito barulhento em casa). Não tinha uma máquina
de escrever, e não importava com quanto cuidado escrevesse seus
trabalhos, percebia que as notas dela eram menores por causa
disso. Ela tinha aprendido a datilografar no ensino médio, tinha
levado o ano todo, e conseguira um emprego como datilógrafa.
Tinha pedido ao chefe se podia ficar até mais tarde para digitar os
trabalhos da faculdade, mas ele desconfiou, como se ela quisesse
ficar mais para roubar algo. O Chuck, que fazia aula de história
estadunidense com ela, tinha dito que ela podia usar a máquina de
escrever dele se datilografasse os trabalhos dele também. Ele tinha
uma máquina de escrever elétrica chique, mas não sabia
datilografar. Ela achou meio engraçado, mas aceitou a proposta, e
que proposta. Um bebê na barriga por volta de março e o fim da
escolaridade dela, de seu orgulho, de sua esperança.
Casada com Martín um ano depois, ela também havia se sentido
orgulhosa — nesse momento ela matou um pernilongo que se
sentava com suas pernas finas e se preparava para inserir sua
agulha na coxa dela —, mas não orgulhosa de si mesma. Não. Ela
se sentia vazia e envergonhada depois que o namorado anglo dela,
Chuck, a tinha abandonado. Depois de ter largado a faculdade, de a
família a ter expulsado, depois de ter gastado todas as economias
em um aborto de seiscentos dólares sem anestesia. Sem filho, sem
marido, sem diploma e sem casa. Sem nome. Uma ninguém. Mulher
estragada. Chingada.
O amor de Martín a tinha valorizado. Ela temia perder o amor dele
todo dia. Passava seu tempo temendo isso, andando na corda
bamba do decoro, baixando os olhos para todos os outros homens,
falando apenas quando lhe dirigiam a palavra. Ela o tinha amado, e
como o tinha amado. Tinha sido tão fácil. Tão bonito, o corpo dele
como um Sol derretido, acobreado e dourado ao mesmo tempo, o
corpo dele em que força e graça estavam em equilíbrio, como em
um grande gato. Seu corpo era quase feminino de tão esbelto —
ainda que ela nunca ousasse dizer aquilo de maneira alguma,
porque aquele pensamento, se expressado, teria feito ela perdê-lo
— e masculino na sua rapidez, seu controle muscular preciso. Não
foi à toa que Parra a tinha feito se lembrar dele. Bonito, Martín tinha
sido, com seu rosto triste e elegante, seus olhos como rios barrentos
com algo se movendo nas profundezas. O sorriso que se abria
como uma caixa de luz. As mãos nervosas como passarinhos que
voavam entre os ramos de pinheiros. Ele costumava dividir os
fósforos ao meio quando se sentava para conversar na mesa da
cozinha. No manicômio, os internos faziam isso, nas raras
oportunidades em que conseguiam um fósforo. Mas ele fazia isso só
porque suas mãos tinham de ficar ocupadas. Ele tinha um carro,
sim, um Mustang da cor de ouro, e ficava na rua o lavando e polindo
com esmero aos sábados. Depois que ele foi morto, a empresa o
tomou de volta. O que ela faria com aquilo, a carruagem, o orgulho
dele?
Com o Martín, ela tinha sentido orgulho misturado a um certo
temor, como a abstinência dos medicamentos dava a ela agora,
orgulhosa pelo amor dele, mas temerosa de perder o que não
deveria merecer. Parecia que ele era emprestado; ela sempre
esperava perdê-lo para outra mulher que não tivesse tantas
máculas. Mas ela o perdeu para as ruas.
Nesse momento estranho, ela se lembrou dele de forma pacífica,
seu jovem marido. Como ele a veria agora, machucada e
desgrenhada? Se ele aparecesse diante dela, iria parecer tão jovem
quanto Lebre. De tudo que ela tinha perdido, ele foi o mais doce e
mais difícil de evocar de volta dos mortos, da lata de lixo onde os
pobres são jogados, pois ela não estava mais à altura dele. Mas um
dia, um dia ela o havia abraçado, flexível e vigoroso e quente nos
braços dela, havia tremido sob o corpo dele, tímida e agitada. Há
muito tempo. Ela o amou muito, assim como deveria ter amado sua
filha.
Quando Luciente voltou, andando de leve nas folhagens, Connie a
cumprimentou:
— Queria que Alvorada estivesse com a gente.
Luciente fez muxoxo e se sentou.
— Tenho medo de tentar. Tenho medo por sôa... Não gosto de
desapontar você.
— Só um pouquinho. Uma hora. Meia hora. Quem pode nos
incomodar aqui na mata?
— Hum. Isso me deixa nos nervos.
— Seremos cuidadosas! Quero tanto ver ela. Deixa ela vir aqui. Só
um pouquinho.
Ainda chateada, Luciente murmurou.
— Vou perguntar a sôa.
Alguns minutos mais tarde, Alvorada estava ali entre as árvores,
vestindo um macacão azul. Tinham cortado o cabelo dela mais
curto, a pele estava mais bronzeada, e ela estava com um curativo
que parecia estar colado na pele do braço dela.
— O que houve com seu braço? — Connie a perguntou.
— Ah, isso. — Alvorada levantou o braço de forma importante. —
Fiz isso mergulhando.
— Mergulhando no rio?
— Não, na baía. Meu grupo de estudos estava visitando os
cardumes de peixes. Então fizemo um mergulho livre e eu arranhei
o braço. — Alvorada olhou ao seu redor. — Parece com uma mata
comum. Achei que ia ter cidades e acidentes e chaminés e pedintes
e poluição!
— Tem bastante poluição — Luciente falou. — Tem uma estrada
asfaltada aqui perto com motores de combustão interna passando, e
isso significa resíduos perigosos.
— Por que você queria que eu viesse? — Alvorada perguntou para
Connie. — Por que você olha pra mim desse jeito?
— Sou boba. — Ela se desculpou. — Você me lembra a minha
filha. Ela foi tirada de mim.
— Filha? O que é isso?
— Minha criança... você parece a minha criança. Ela se chamava
Angelina.
— Madalena disse que eu posso ficar apenas alguns minutos. Não
posso ir embora sem ver alguma coisa! Mama, não tem algo pra
olhar?
— Tem sim. — Luciente suspirou. — Vamo de mansinho até a
estrada, quietas e furtivas como wampanoags, e vou mostrar pra
você um autocarro.
— Mesmo? — Alvorada se abraçou. — Isso vai bem! Mal posso
esperar! Clarquessim são perigosos, não são? Quer dizer, eles
mataram milhões de pessoas!
— Mas em silêncio — Luciente avisou.
— Estudei sobre eles. Vi nos hologras — Alvorada balbuciou com
alegria. — Como a sociedade toda era construída baseado neles,
asfaltavam a terra toda pra eles andarem e ficarem mesmo no meio
de onde as pessoas moravam. Todo mundo tinha que ter um. E
todes entravam nos seus autocarros particulares ao mesmo tempo e
ficavam presos em engarrafamentos e respiravam veneno e ficavam
doentes. Mas as pessoas amavam seus autocarros como se fossem
da família. Dirigiam rápido até desgastarem, baterem uns nos outros
ou até quebrarem e se incendiarem ou sofrerem acidentes e ainda
assim eles preferiam dirigir seus autocarros do que fazer qualquer
outra coisa! Agora, posso ver um?
— Mas era gostoso andar neles — ela disse para a criança, não
ousando tocá-la. Olhou para o bracinho com o curativo onde ela
devia ter machucado a sua pele macia. — Você podia entrar num
carro e passear pelo interior qualquer hora que quisesse.
— Mas tinha tantos de vocês. Como vocês conseguiam dirigir ao
mesmo tempo sem se bater?
O Mustang dourado de Martín.
— Às vezes, quando você é jovem, ah, passear de carro, um
conversível com a capota abaixada e o rádio ligado, uma música
animada... Você se sente a melhor pessoa do mundo. Você se
sente... viva, tão linda!
Mãe e criança a olharam sem expressão.
— Normalmente a gente se sente bem — Luciente protestou —,
mas normalmente tem a ver com trabalho, como quando achamo a
falha no experimento. Ou quando estamo juntes na comideira
conversando de manhã e contando nossos sonhos. Ou depois de
uma seção de crita com Bolívar, quando você sente que todes
outres amam e se importam e todes vivemo conectades e devemo
lutar pra fazer o melhor juntes. Quando Abelha teve com você, você
ficou satisfeite. O que isso tem a ver com objetos?
Elas se embrenharam pelos arbustos perto o suficiente da estrada
para que Alvorada desse uma olhada.
— Ah! — ela disse quando um caminhão passou rasgando. —
Que fedô!
— Psiu. — Luciente pousou a mão no ombro dela, como um aviso.
— Como elus podem ouvir a gente, fazendo tanto barulho? —
sussurrou Alvorada.
— Veja, aquilo é um carro — Connie disse. — O vermelho. É um
Chevrolet Vega.
— Como pessoa lá dentro tem os vidros fechados quando está tão
quente? Pessoa tem medo de alguma coisa? — Alvorada
perguntou.
— Ele provavelmente está com o ar-condicionado ligado; é uma
máquina que faz ficar frio — Connie disse, olhando atentamente
para o cabelo e as orelhas de Alvorada.
— Somente uma pessoa naquela máquina toda! Tanta energia
gasta! A tristeza daquilo, a solidão! — Luciente assoou o nariz.
— Não chore, Mama — Alvorada disse, beijando a bochecha dela.
— Por que entristecer? Parece estúpido.
— Todas aquelas pessoas em caixas de metal, sozinhes e
recluses! — Luciente balançou a cabeça. — Como você poderia
começar uma conversa? Fazer amizades? Uma vez, quando eu
estava voltando de visita à minha família de infância, fiquei doente
de repente. Minha febre aumentou e me senti mal. Uma pessoa me
ajudou a baixar a febre e o mergulhão mudou a rota pra um hospital
próximo... Viajando, sempre conheço pessoas com quem troco
prazeres, uma refeição, uma casalagem, intervisão, compomo uma
música, fazemo um arranjo pra acompanhar... trancade em uma
caixa de metal, como poderia fazer contato? Esses acidentes eram
uma mistura de metal e carne. Nossos acidentes são de carne
batendo em carne, o toque leve das nossas vidas...
— Psiu! — Connie se atirou ao chão. Um carro de polícia passou
em velocidade reduzida, sinistra na sua patrulha lânguida. Ela se
encolheu contra o chão, suando de medo. Depois que ele passou,
ela se arrastou para longe da estrada. — Vamos sair daqui.
Quando chegaram à árvore dela, Luciente já tinha mandado
Alvorada de volta. Luciente pegou em sua mão e a segurou.
— Alvorada é muito jovem para compreender por que você ama
sôa. Mas te amamo desse jeito.
Connie queria falar da noite com Abelha, mas não conseguiu.
Olhou para baixo, lamentando que não podia falar sobre seus
sentimentos.
— Eu... eu... — tudo o que ela conseguia era gaguejar. — Eu...
pués... queria que soubesse...
Luciente abriu um sorriso.
— Achei água e também algumas cerejas negras e amoras. A
água está suja. Tem resíduos de chumbo, cádmio, cobre e estrôncio
90. Mas a água que você bebia no seu espaço também não era
limpa. O número de bactérias nessa água é um pouco maior que
aquela. Você vai beber?
— Claro. — Ela juntou seus sapatos e o jaleco e seguiu Luciente.
A água brotava da terra talvez um quilômetro adiante, perto do fim
do pequeno bosque. Era marrom escura e ela teve medo, mas sua
boca estava machucada e seca, sua garganta ardia de novo. Elas
colocaram uma garrafa de cerveja e um pote no pequeno regato
para tentar pegá-la mais limpa e para que, depois que ela matasse a
sede, pudesse carregar um pouco consigo.
Amoras cresciam em espinheiras que se espalhavam na parte
mais distante do bosque. Apenas algumas estavam maduras e se
soltavam na sua mão com o peso daquela abundância suculenta
quando ela as tocava. Elas estavam doces e lembravam vinho na
sua boca. Depois de ter comido e bebido e ter colhido mais para
depois, Luciente apontou saponárias para ela, flores bonitas de rosa
claro que pareciam ter fugido de algum jardim.
— Use as folhas como sabão.
— Eu tenho sabão de verdade. — Ela resgatou o pedaço de um
bolso da jaqueta jeans e finalmente se lavou vagarosa, mas
completamente, na água da nascente.
Então Luciente mostrou para ela mais uma dúzia de outras ervas
que ela podia comer, e ela pegava todas de forma obediente,
porém, sem entusiasmo. Ao cair da escuridão, também vinha uma
nuvem de pernilongos sobre ela. Eles não atacavam Luciente.
— Eles sabem que não sou real — ela disse. — Espero que não
tenha sido uma má ideia trazer Alvorada aqui. Alvorada é um pouco
propense a heroísmos pessoais. Devia ter consultado as comães...
— É o crepúsculo. Você acha que podemo arriscar uma pequena
fogueira? Qualquer coisa. Olha pros meus braços e pernas! — O
corpo dela estava inchado com as picadas. Os insetos pousavam
nela como colônias, como fileiras de torres de petróleo jorrando. Ela
e Luciente se afastaram um pouco da nascente, de volta aos
pinheiros, mas os pernilongos as seguiram. Finalmente ela rasgou a
parte oeste de Nova Iorque do mapa e, junto com alguns galhos
secos caídos e ramos, elas fizeram uma fogueira que pegou no
quarto fósforo. — Você pode torrar suas batatas.
— Tinha esquecido elas. — Ela recostou numa árvore. — Talvez
eles tenham parado de me procurar. Se eu fosse eles, vigiaria Dolly.
Afinal, tenho de ir até ela pra pegar dinheiro.
— Esse dinheiro complica a vida de vocês.
— Mas vocês têm aqueles créditos.
Luciente se sentou com as pernas cruzadas do outro lado da
fogueira.
— Luxos são escassos. Só tem um pouco de vinho Bordeaux, um
pouco de caviar, um pouco de queijo cinzento andino. Necessidades
não são escassas. Plantamo comida o suficiente. Mas tem coisas
que ninguém precisa que as pessoas adoram. Tentamo espalhar
elas por aí. Na nossa região, cada une de nós consegue um número
fixo de créditos de luxo. Podemo gastar tudo em algum luxo
realmente raro, como uma garrafa de vinho do Porto envelhecido de
2098 para meu aniversário, ou podemo ter muitos pequenos
presentinhos. Podemo até economizar tudo por dois anos. Na terra
de Parra, Tejas del Sur, eles organizam por produtividade. Tem um
número fixo de crédito por região e as vilas ganham pontos por
quanto mais produzirem além da meta. Achamo que vão se cansar
desse sistema. Ele cria rivalidade.
— Acho que gastaria meus créditos em roupas.
— Isso não faz sentido, Connie. As roupas circulam. Você as pega
quando quiser. Os frívoli todo mundo pode esboçar. Os frívolis são
tão bons quanto você conseguir imaginar.
— Mas algumas roupas não são melhores que outras?
— Tem boas roupas quentes e roupas preparadas pra chuva.
Roupas de trabalho confortáveis. As fantasias são trabalho de amor
que as pessoas dão para a comunidade quando querem fazer algo
bonito. Às vezes quero me vestir bem. Outras vezes quero ser
engraçade. Por vezes quero corporificar uma fantasia, uma ideia,
um sonho. Às vezes quero me lembrar de ancestrais, ou expressar
uma verdade sobre mim, que, digamo, tenho a personalidade de
uma cabra teimosa. — Luciente riu.
— Para que você usa seus créditos então? Aqueles tambores
enfeitados que vi você carregando?
— Não, não! Aquilo foi feito pra mim por Lontra pelo meu
aniversário. Eu gosto de vinho do Porto. E gosto dos vinhos
alemães suaves, especialmente Mosel e Saar e Ruwer. E gosto de
dar presentes. Na maior parte das vezes, eu os faço, o que é
presente duas vezes, como dizem. Mas às vezes gosto de dar algo
bonito e exótico. Sempre consigo pensar em mais coisas pra dar do
que os créditos que tenho.
— Você não queria ter mais?
— Assim que nos tornamo mais produtives, em nível mundial, ao
colocar menos energia na reparação dos danos passados, então
colocaremo mais energia em produzir o desnecessário, o delicioso,
o agradável. Vai acontecer.
Connie sorriu, mexendo no fogo com um galho que ficou
chamuscado na ponta.
— Pergunto sobre o seu eu e você me responde com um nós.
— Connie, nascemo gritando ai e eu! O dom está em desenvolver
pra cuidar, se conectar, cooperar. Tudo que aprendemo tem por
objetivo nos fazer sentir fortes com nós mesmes, conectades a tudo
que vive. Em casa.
— Estou em casa aqui só porque você me ajudou.
— Mas isso também é uma paisagem humana. Olha, alguém
plantou esses pinheiros brancos. Tem um espaçamento regular.
Olhe bem perto do chão; abaixo das folhas-agulhas pode ver
marcas de arado. Campo lavrado. Muito tempo antes de você, tanto
quanto eu vivo após você, plantações cresciam aqui. A terra vive, se
não for assassinada.
— Esta noite precisamos partir. Não posso ficar aqui.
— Pra onde você vai?
— Descendo a rodovia, tem uma cidade de tamanho razoável em
uns dezesseis quilômetros. Não sei quanto já andei. Tem de haver
uma rodoviária lá. Vou andar durante a noite e de manhã vou até a
rodoviária. Daí vou o mais longe que conseguir com cinco dólares.
Uso o resto pra comprar comida e roupa em algum brechó. Um
vestido, uns sapatos usados e uma bolsa. Acho que, quando chegar
em Nova Iorque, vou estar a salvo.
Luciente precisou de definições de brechó, passagem, bolsa, e
ainda ficou hesitante.
— Embeber o sumagre em água vai nos dar um cataplasma pros
seus pés.
Quando Luciente preparou a mistura grudenta, pressionou-a nas
solas de Connie. Então a beijou, desejou sucesso e se foi. As
batatas assadas estavam farinhentas e quase não dava para comer
sem sal, mas ela as comeu mesmo assim, lentamente. Uma batata
sem sal tostada em liberdade tinha um gosto maravilhoso. Então ela
se deitou no jaleco, mas não dormiu. A mente não desligava. Em
vez disso, teve um sonho acordada. A fogueira tinha se tornado
apenas brasas que ainda soltavam alguma fumaça e calor.
Os embriões na criadeira nadavam e cantavam para ela, uma
canção de peixes que não soltava bolhas, mas vibrava diretamente
para seu corpo, dentro de seu diafragma; eles estavam embalando,
educando e fazendo uma serenata para ela. Todos prometiam ser
os bebezinho dela, seriam os bebezinho essa noite, amanhã, talvez
no domingo. Ela seria comãe, ela teria novamente um bebê seu
para sugar seu seio, ser carregado, ninado para dormir. O corpo
roubado dela se torceu para alcançar um deles.
Ela estava assistindo a um nascimento. As três mães tinham tido
um banho ritual em uma sauna, vestiam vermelho e andavam em
procissão com amigos e familiares até a criadeira. Uma das mães
era Sojourner, a velha da família de Luciente com olhos de lascas
de carvão, uma das mães era Lebre e a terceira era ela. Eles se
deram as mãos e ela estava no meio. As túnicas eram pesadas,
incrustradas de bordados. Na dela havia pombas e ovos. Todo
mundo carregava buquês das flores do verão, ásteres e floxes e
lírios brancos com rajadas vermelhas e largos como pratos que
exalavam um cheiro forte, buquês de malmequeres e capuchinhas.
Algumas pessoas batiam em tambores, e, no fim da procissão,
uma criança estava tocando uma daquelas flautas que para ela
soava triste e pungente, apesar de a melodia ser alegre. Seu
coração parecia estar grande demais embaixo da túnica. Ela
apertava as mãos das suas comães forte, forte, até que Sojourner
pediu que ela não apertasse tanto, enquanto Lebre apertava tão
forte quanto ela. Atrás deles, Luciente batia em um de seus
tambores enfeitados, numa marcha galopante e sincopada. Abelha
assentia para ela, carregando um maço de girassóis em tons de
vermelho e bronze.
Ao chegar perto da criadeira, todos ficaram para trás, exceto os
três, que entraram. Ficaram embaixo do esterilizador, ajudando uns
aos outros a retirar as túnicas e as pendurar em ganchos. Nus, se
encaminharam até a câmara central, onde Barbarossa, o
nascedeiro, estava esperando por eles. Vestindo seu uniforme de
criadeira amarelo e azul, ele abraçou cada um. Ao olhar para baixo,
ela sentiu seus seios, inchados pelas injeções, já vazando colostro.
Ela e Lebre deveriam amamentar. Sojourner explicou que ela tinha
preferido não tentar.
— Não tive minha primeira criança até fazer cinquenta e cinco
anos — ela disse. — Lutei na batalha da Plataforma Espacial Alfa. E
na batalha de Arlington e Forte Bragg. Muito, muito antes de ter
criadeiras, eu me deixei esterilizar pra não ficar tentada a abandonar
as batalhas. Achei que tinha deixado meu sexo pra trás. Agora
tenho setenta e quatro anos e minha família me dá a honra de
acreditar que ainda há vida em mim pra me fazer mãe uma segunda
vez.
Agora os três se ajoelharam, a velha se abaixando devagar, mas
de forma persistente sobre seus joelhos puídos. Barbarossa ficou ali
diante deles como um padre realizando a missa.
— Você, Sojourner, deseja que esse bebê nasça?
— Eu, Sojourner, desejo maternar essa criança.
— Você, Lebre, deseja que esse bebê nasça? — E então: — Você,
Connie, deseja que esse bebê nasça?
Ela disse suavemente:
— Sim. Eu, Connie, desejo maternar essa criança.
Barbarossa se virou. O jovem assistente desajeitado que ela tinha
conhecido na criadeira estava tirando o bebê de um estranho canal
que se contraía enquanto Barbarossa esperava para cortar o cordão
e segurar o bebê que chiava, gritava e se contorcia. Uma pequena
garota negra cuja pele brilhava oleosa e viçosa.
— Você, Sojourner, aceita essa criança, Selma, para maternar,
amar e então deixar ir?
Sojourner estendeu seus velhos braços negros para o bebê,
aninhando-o em seu colo.
— Vou te maternar, amar e deixar ir, Selma.
— Você, Lebre, aceita essa criança pra maternar, amar e deixar ir?
Lebre recebeu o bebê de Sojourner.
— Vou te maternar, amar e deixar ir, Selma.
Finalmente Connie segurou o bebê com sua boquinha vermelha-
rubi que se fechou ao redor de seu mamilo, sugando fartamente.
Negra, como Abelha: ela tinha certeza de que deram a ela essa
bebê por causa da sua experiência com Abelha, uma criança negra
e aveludada com olhos enormes que iriam beber o mundo.
Ela acordou no escuro. A fogueira estava morta e fria. Nuvens
cobriam o céu. Ela massageou as pernas até se sentir menos
letárgica. Então vestiu os sapatos secos e se arrumou o quanto
pôde e rumou para a estrada. No escuro, ela cambaleava
desajeitada pelo matagal e por muito tempo não conseguiu
encontrar a via, até que tropeçou e quase caiu no percurso de um
carro.
Então se orientou e começou a andar pela sarjeta. Ali era raso e
ela não se sentia bem escondida.
— Nascimento! Nascimento! Nascimento! — Luciente parecia
cantar ao seu ouvido. — Você só consegue sonhar com isso! Nossa
dignidade vem do trabalho. Todo mundo cria as crianças, não
notou? Romance, sexo, nascimento, crianças, é nisso que você se
apega. Porém, isso não é mais coisa de mulher. É coisa de todo
mundo.
Com um chiado gasoso, um caminhão, descarregado e além da
velocidade permitida, desabalava descendo a rodovia, invadindo a
outra pista. Fedia a combustível queimado. Ela ficou de pé
novamente.
— Pegamo, por exemplo, Raposa Cinzenta. Mês passado essa
pessoa estava dirigindo o conselho de planejamento econômico de
Massachusetts-Connecticut-Rhode Island. O que Raposa Cinzenta
normalmente faz é cuidar da fazenda de peixes no litoral. Esse é o
trabalho dissôa, o centro dissôa. Mas depois de um ano no conselho
econômico e novemês dirigindo ele, Raposa Cinzenta pode vir a se
identificar com aquele trabalho. Um trabalho que afeta a vida de
muitas pessoas. Pode vir a sentir que é parte da essência de
Raposa Cinzenta tomar decisões importantes enquanto outres
olham com admiração pra sôa. Pode vir a perceber que ser Raposa
Cinzenta envolve ser tal pessoa decididora, grande fazente visível.
Então agora Raposa Cinzenta trabalha seismês como pastoria de
ovelhas. Depois que servimo de um jeito que parece importante,
servimo em trabalhos geralmente feitos por jovens que esperam pra
começar aprendizados ou criminoses reparando seus crimes.
Quando você assume um trabalho de coordenação, você faz esse
juramento: “A necessidade existe. Sirvo a necessidade. Depois de
mim, a necessidade vai existir e a necessidade vai ser servida.
Deixe-me fazer tudo certo o que tem sido e será feito por outres.
Deixe-me assumir um papel e depois deixar ele de lado”.
Uma voz em seu ouvido, suave, ralhava com ela: Luciente, como
uma fração da mente dela, como uma voz de seu eu alternativo,
falando com ela de noite. Talvez ela estivesse louca. Talvez
estivesse muito perto da exaustão e mexida pela abstinência de
Amplictil e dos barbitúricos. Marchou adiante, desejando um relógio
no céu, um relógio de pulso. Desejando uma lua visível para marcar
o tempo. Ela nem sabia se a lua estaria crescente ou minguante;
Luciente sempre sabia essas coisas. A lua parecia estar pendurada
no céu de Mattapoisett da mesma forma como as luzes da rua
pendiam em El Barrio até que os moleques atirassem nelas. A noite
estava abafada. Ela ouviu um trovão a oeste e temeu pela chuva,
mas nada aconteceu.
A noite toda ela andou. As bolhas nos pés se abriram e
sangraram, e ela seguiu caminhando. Na maior parte do tempo
andou descalça, carregando aqueles arremedos de sapatos. Cada
vez que o pé encontrava o chão, a poeira se esfregava contra a
carne viva. Ela continuou. Andou muito. Ela continuou. Não
conseguia mais pensar, nem se preocupar. Uma falsa alvorada se
diluía no céu e então o sol nasceu atrás das nuvens baixas. O céu
ficou rosa e então amarelo. Ela não sabia dizer exatamente onde
estava o sol atrás daquele muro de nuvens. Continuou marchando.
Então chegou a uma área construída em que não podia se
esconder quando passavam os carros. Ela colocou os sapatos e
continuou. Passou por lojas e postos de gasolina e pequenas
fábricas e um depósito de madeira, atravessou trilhos de trem,
passou por uma concessionária da Volkswagen e uma loja de
conveniência de estrada. Nada estava aberto ainda. Em todo posto
fechado ela tentava abrir as portas do banheiro, mas todas estavam
trancadas.
Finalmente viu um posto de gasolina aberto e andou lentamente
até que um carro parasse. Então foi até o escritório, como se tivesse
saído do carro, e pediu a chave do banheiro feminino. Lá dentro, ela
tomou muita água, aliviou a diarreia, se lavou inteira com as toalhas
de papel. Ah, se tivesse um pente! Com os dedos e água tentou
deixar o cabelo aceitável. No espelho, ela parecia desleixada e
pálida. Depois de um verão encarcerada, a pele dela não estava
escura, mas ela não parecia branca. Isso importava naquelas
cidadezinhas. Deu de ombros. O que poderia fazer? Deixou a chave
na fechadura do banheiro e escapuliu pela lateral do prédio.
Ela mourejou adiante, esperando chegar ao centro da cidadezinha,
passando finalmente pela placa com os limites da cidade. O tráfego
estava mais intenso. Era segunda de manhã, as pessoas estavam
dirigindo para o trabalho. O estômago dela gritou de fome. O
primeiro lugar que servia café da manhã só tinha homens,
caminhões parados do lado de fora, e ela sentiu que eles iriam notá-
la muito rapidamente.
Ela prometeu que iria tomar café, então iria se sentar. Seus pés
sangrando iriam parar de ser torturados. Mas teria de escolher um
lugar com cuidado. Esse era o suborno para seu corpo fatigado,
dolorido, tonto de fome, rebelde por ter sido alimentado apenas com
ervas e vegetais podres e amoras. A parada seguinte parecia muito
classe média, chique demais. O restaurante seguinte tinha um carro
de polícia estacionado do lado de fora. O tráfego ficou mais pesado.
As nuvens se separaram em grandes coágulos, um azul pálido
aparecendo entre elas. Ela mancava por uma calçada, passou por
um shopping center, o estacionamento enorme quase vazio.
Agora andava por um bairro industrial e os restaurantes que
apareciam só tinham homens. Ninguém mais andava por ali. Ela se
sentiu exposta, presa e sangrando nos seus cacos de sapato, a sola
raspando na parte de cima a cada passo. Tonta. Ela não se
lembrava da última vez em que não tinha se sentido tonta, quando
sua mente estava clara, quando algum medicamento ou a ausência
de medicamentos realizava seu feitiço em seu sangue e sistema
nervoso. Agora ela andava por um bairro de casas pequenas, com
pequenos quintais, casas não mais distantes entre si do que uma
pessoa alcançaria, telha de amianto, tapumes de madeira,
coberturas de alumínio. O tipo de bairro onde sua irmã Teresa
morava em Chicago. Bairro operário, mas cada uma das famílias ali
diria, como sua própria irmã fazia, que estava até o pescoço com
dívidas e impostos e companhias financeiras, que eram classe
média porque estavam comprando a casa própria.
A primeira vez que ela tinha dependido do seguro-desemprego
tinha sido difícil de engolir, amargo como vômito. Mesmo depois que
seu segundo marido, Eddie, tinha abandonado ela e Angelina e
realizado seu ato de desaparecimento, ela tinha se virado. Ela
pagava vinte dólares para a vizinha ficar com Angelina quietinha no
apartamento dela todo dia com outras cinco crianças barulhentas,
na frente da televisão. Não gostava daquilo, mas não havia creche
pública e as privadas custavam muito caro.
Ela tinha trabalhado numa fábrica de caixas no Bronx por um
tempo. Apesar de odiar pedir ajuda para Luis, tinha tentado e
recebido uma lição de moral de como ela era um fracasso enquanto
mulher, que não conseguia segurar o marido e só tinha uma filha.
Mas ele tinha dado um emprego para ela no viveiro de plantas. Os
venenos que eles usavam a deixavam doente, mas o pior era a
viagem, três horas de ida e volta até Nova Jersey. Ela chegava em
casa cansada demais para brincar com Angelina.
Mas sempre tinha se virado, até ser pega. Então veio o seguro-
desemprego, as esperas nas filas, as perguntas humilhantes, a
vigilância, o parco subsídio. Um ensaio para a vida internada, uma
ala do governo, uma prisioneira.
Tonta, tonta. Aos poucos a rua girava ao seu redor. Sua visão se
enchia de manchas e lentamente clareava. O tráfego diminuía
novamente. O céu estava quase vazio de nuvens agora, um azul
indistinto e desbotado com tons de amarelo. A calçada estava
poeirenta. O dia já estava quente e ela se sentia ridícula de jaqueta
jeans, mas essa estava mais limpa que o vestido. Nenhuma árvore.
Uma rua que não tinha nenhuma pessoa.
Casinhas. Em cada uma, uma tv, um telefone ou dois, um ou dois
carros do lado de fora, uma torradeira, máquina de lavar, secadora
de roupa, secador de cabelo, barbeador elétrico, cobertor elétrico,
talvez um fonógrafo, uma câmera de vídeo, um projetor de slides,
talvez uma serra elétrica circular da Skil, uma moto de neve na
garagem, um ferro de passar com spray, uma cafeteira elétrica.
Certamente em cada uma havia um par de pernas que se moviam
para lá e para cá, com dois ou três ou quatro filhos, passando
aspirador de pó enquanto a tv explodia com shows de variedade.
Ela tinha invejado aquelas mulheres, e tinha lutado para se tornar
uma delas. Ao se casar com Eddie, tinha sonhado em se tornar uma
dona de casa num desses lares. Ela tinha sonhado que estava
sendo prática, afinal, com um marido fixo e um salário fixo. Tinha
mentido a idade para ele, se passando por alguns anos mais nova:
tinha vinte e oito e fingia ter vinte e cinco. Todo seu envelhecimento
tinha vindo depois de ser internada. Ela havia ficado envergonhada
por mentir, mas tinha feito todas aquelas coisas porque era o que
tinham dito para ela que funcionava — os pequenos fingimentos, as
risadas. A modéstia natural dela, manipulada por dedos nervosos,
tornou-se algo assumido e explícito. Qualquer coisa para se safar.
Qualquer coisa para poder pertencer a algum lugar, afinal!
Connie estava passando por uma loja de eletrodomésticos que
estava aberta. Dentro, um vendedor abria e fechava a porta de uma
geladeira com freezer, sua boca se mexendo sem parar. Uma
pequena cafeteria ao lado. O fluxo da manhã já tinha passado,
alguns atrasados estavam tomando café ou indolentemente lendo
jornal e tomando um café. Ela entrou, se sentindo extremamente
visível. O ar-condicionado era uma máquina tremulante em cima da
porta. Ela se sentou em um banco ao fundo e pegou um cardápio.
Ah, sentar-se afinal! Quase desmaiou de alívio.
Ela piscou ao ver os preços e o medo fez um nó no seu estômago.
Teve de se segurar no balcão. Aquela não parecia uma lanchonete
chique, as pessoas sentadas ao balcão pareciam comuns, o moço
com calça puída e a camisa esfiapada nos punhos, a mulher com
sapatos plásticos rachados nos dedos, uma bolsa plástica
arranhada, um vestido desfiado na barra. Os preços tinham subido
tanto nos poucos meses em que ficara hospitalizada? Ela não
tomava café da manhã em um restaurante desde... desde o Claud.
Não era algo que pudesse fazer com o auxílio-desemprego. Tentou
se levantar e sair, mas a visão das pessoas comendo fez seus
joelhos amolecerem. Tantas coisas! Como poderia escolher? Ela
não tinha nenhuma escolha há meses. Se comesse dois ovos e café
puro (vinha com torrada), seria $1,59 e era o especial do dia. Ela
amassou com força seus dez dólares na mão fechada, até virar uma
bolinha suada.
Mesmo assim, ainda se escorando no balcão, pediu o café da
manhã. A garçonete de trás do balcão lhe lançou um olhar de
desaprovação, olhando ao mesmo tempo seu cabelo, rosto e a
jaqueta jeans.
— Onde é a rodoviária mais próxima? — ela perguntou, e a
garçonete balbuciou uma resposta tão rápida que ela não entendeu
e teve de perguntar de novo.
— Qual o problema, você não fala inglês?
Mas a mulher com a bolsa plástica respondeu. Eram apenas dez
ou onze quarteirões dali. A mulher parecia chocada que ela
pretendia caminhar até lá, mas pacientemente indicou como chegar.
O relógio indicava dez e onze. Os ovos chegaram cozidos demais
e o café amargo de ter ficado na chaleira, mas ela comeu tudo,
comeu devagar e apreciando. Deu uma mordida de cada vez, até a
última migalha de torrada, limpando qualquer traço do ovo do prato,
e mesmo o pequeno sachê que dizia ser geleia de uva. Então ela
pagou e saiu rapidamente, porque não podia dar gorjeta.
Ela tentou não mancar, não queria chamar atenção. Observou as
placas e contou os quarteirões. Foi fácil discernir a rodoviária assim
que a viu.
No guichê de passagens, tentou pensar no que fazer. Tinha dois
horários diferentes para duas linhas diferentes, mas não havia
indicação de preço nelas. Então ela teria de fazer perguntas. Aquilo
foi embaraçoso; o jovem atrás do balcão parecia entediado. Ela
tinha de descobrir quão longe conseguiria chegar em direção a
Nova Iorque o quanto antes com cinco dólares.
Ele estava lendo um livro. Ela não conseguia ver o título. Ele
queria voltar a ler, e mantinha os dedos segurando as páginas
enquanto falava com ela. Quando ele teve de largar para ver os
horários, ficou irritado. Ele marcou a página com uma caneta. Na
capa, duas mulheres nuas se abraçavam enquanto um homem de
dois metros de altura vestido todo de preto balançava um chicote na
direção delas. Por que alguém leria um livro de sacanagem numa
rodoviária, sentado atrás do balcão? Ele conseguia se masturbar
ali? Ele ia até o banheiro? Ela se sentiu envergonhada de pensar
essas coisas e olhou para o rosto sem expressão dele, amarelado
pela luz artificial.
— Você não sabe para onde quer ir, senhora?
Finalmente ela conseguiu uma passagem que a levaria até a
estação de Port Authority, num ônibus que partiria ao meio-dia e
meia, então se sentou para esperar. Eram onze e dezoito. Alguém
tinha deixado um jornal no banco e ela começou a ler tudo, da capa
em diante. Logo estaria em Nova Iorque, correndo pelas ruas. Otis,
primeiro ela tentaria falar com o Otis, velho amigo do Claud. Depois
a Dolly. Ela seguiu a leitura. Na seção feminina, viu um artigo que
descrevia o regime de beleza da Condessa Rataouille, uma beldade
de uma família de banqueiros de Park Avenue, Seal Harbor, Palm
Beach e Monterey, que envolvia fazer exercícios isométricos, nunca
tomar banho quente acima da linha da cintura e passar morangos
frescos na pele diariamente. Sua boca salivou só de pensar nos
morangos frescos. Uma sombra caiu sobre a página que lia e uma
mão apertou seu braço.
— Ei, você, posso ver sua identificação?
O rapaz cuja leitura pornô ela tinha interrompido a havia
denunciado. Ao meio-dia e meia, ela já estava de volta ao hospital,
na ala dela.
CAPÍTULO 13

— Mas você disse que eu podia ficar no mesmo quarto que a Sybil!
— Connie protestou.
— Isso foi antes de você aprontar — Valente disse, firme. — Olha,
se vocês tentassem aquela gracinha comigo, eu botava as duas na
solitária antes de alguma gritar tio. Você não me enganaria por cinco
minutos, não se esqueça disso.
— Como você assinou a permissão? — Skip perguntou a ela
assim que Valente saiu. — Eles não conseguiram me fazer assinar.
— Você não tem 21 anos ainda. Eles não precisam que você
assine.
— Também não precisavam que você assinasse. Seu irmão
assinou. Por que se entregou?
Connie balançou os ombros.
— Estava com medo do que fossem fazer comigo em Rockover se
eu não assinasse. Imaginei que eles já tinham a permissão de
qualquer forma. Queria que achassem que eu cedi.
— E não cedeu? — Skip foi embora rebolando pelo largo corredor.
Eles todos tinham sido transferidos para o Instituto
Neuropsiquiátrico de Nova Iorque na Washington Heights, para uma
ala no oitavo andar convertida em ala de detenção segura,
preparada especialmente para eles. Era a ala mais espaçosa e mais
amplamente mobiliada e enfeitada em que ela já havia estado. Eles
dividiam quartos duplos — como o que ela e Tina Ortiz tinham
agora, com uma cama para cada uma, até com colcha e uma janela
própria, apesar de não abrir. Sybil estava no quarto ao lado, com a
srta. Green. Os homens ficavam de um lado do posto de
enfermagem e as mulheres do outro. Entre eles havia uma sala
coletiva com tv a cores, mesa para baralho, até umas poltronas e
alguns sofás e um carpete verde no chão. No final da ala onde
ficavam, os médicos tinham uma sala de conferências e de
computadores, laboratórios e consultórios. Os pacientes andavam
para lá e para cá nos primeiros dias, admirados com seus novos
alojamentos.
— Isso não é uma bostinha de hospício não. Isso é um Hilton! —
falou o Capitão Creme. Ele era um bicheiro de pele clara, nascido
em Trinidad, que acreditava ser um herói de história em quadrinhos.
Até os médicos o chamavam de Capitão. Era magro e enfadonho e
falava com uma cadência suave e graciosa, tanto que, na maior
parte do tempo, ela nem percebia que ele era vesgo.
Sybil fungou.
— Pode ter certeza de que é pra conveniência deles, não pra
nossa! São cavalheiros importantes! Até os ratos de laboratório
devem ter gaiolas limpinhas. — Sybil tinha recuperado um pouco da
energia.
Capitão Creme, Sybil e Tina Ortiz ficaram juntos no batente da
porta para ver o que o novo assistente dos homens, Tony, estava
fazendo com Skip, se curvando acima dele com uma tesoura. Os
cachos bonitos e castanhos de Skip caíam sobre uma toalha
branca.
— Eis, Dalila, que você me trai! — Skip cantou para Tony. Cric-cric.
O cabelo caía. Parecia que ele tinha sido convocado pelo exército.
Seu couro cabeludo aparecia cinzento, grande e vulnerável.
Também fariam isso com ela no tempo certo.
— E eu vou ganhar uma peruca, Tony?
— Só as mulheres, moleque — Tony grunhiu. — Fica quieto ou
vou cortar sua orelha fora.
— Como o Van Gogh. Ele era louco também. Mas ele fez isso
consigo mesmo. Por que você não me dá a tesoura pra eu mesmo
fazer? — Skip fez que ia pegar a tesoura dele, meio de brincadeira,
meio sério.
Tony o esmurrou no peito e Skip recuou, tossindo.
— Para de tentar enrolar os médicos.
Cric-cric, passou pela orelha esquerda, deu a volta. Só um
chumaço de cachos pendia de sua bochecha. Tony passou por ele e
depois passou uma escovinha para pelos. Quando voltou com um
barbeador, Skip parou de brincar. Não tinham dado café da manhã
para ele. Logo ele seria levado para um hospital perto de Columbia,
onde Redding e Morgan fariam um buraco em seu crânio onde iriam
inserir os eletrodos. Skip voltaria violado para lá.
Ela ficou ali com a Tina e o Alvin enquanto o levavam em uma
maca. Os olhos dele estavam abertos, mas sem expressão. Depois
que a porta externa se fechou com a saída dele, os pacientes
ficaram por ali, como se, ao encararem a porta, pudessem
vislumbrar alguma coisa do que estava acontecendo.
— Você gosta desse garoto, né? — Tina perguntou. A nova
companheira de quarto dela tinha mais ou menos sua idade, com
um longo histórico de ter sido presa por posse de drogas e
pequenos crimes e perturbação do sossego.
— Ele me emprestou dinheiro pra ligar pra mi sobrina e sabia que
eu nem ia conseguir devolver.
— Ele tinha pra emprestar. É fácil ser legal quando você tem a
grana, hã? Mas acho que ele está bem encrencado agora, como o
resto da gente. — Tina era de Porto Rico, nascida no Bronx, magra
com um pouco mais de sustância nos quadris. Ela falava rápido,
mas suas frases normalmente se dissolviam como se não
esperasse ser ouvida. Ela era desleixada e não conseguia ser uma
boa paciente. Nunca deixava de odiar o hospital. — Só mais um
jeito de ser pega — ela disse, olhando para o quarto delas. Ela era a
primeira a pegar qualquer jornal que parasse ali na ala, depois de os
funcionários lerem, mas ela lia apenas a primeira seção, as notícias,
murmurando consigo mesma, zombando como se não pudesse ser
enganada. — Trapaceiros, trapaceiros duma figa.
Elas saíram juntas para visitar Alice, que estava deitada no leito
dela, encarando o teto, como fazia na maior parte do tempo agora.
Ela parecia dez anos mais velha, aparentava a idade que tinha e
mais um pouco; toda a vivacidade tinha escorrido de seu corpo
grande.
— Ô, Alice, você sabe o que esses pulhas estão tentando aprontar
agora? — Tina perguntou, tentando chamar a atenção.
Mas Alice só balançou a cabeça. A peruca de cabelo tigelinha
estava torta na cabeça, e ela não a endireitou. Quando caiu, não a
colocou de volta. Quando a assistente a encontrou no chão, deu
uma bronca na Alice, dizendo quão ingrata ela era. Alice só piscou
ali deitada.
A única vez que Connie a viu parecida com seu velho eu foi
quando os médicos vieram usá-la como demonstração para algum
visitante interessado. Então seus olhos brilharam vermelho-sangue
e ela entoou longas torrentes de xingamentos até que o médico
apertou o botão que a calava. Agora que aquele dr. Morgan tinha
perdido o medo dela, havia algo de horrível naquelas
demonstrações. Ele particularmente gostava de estimular o ponto
que produzia em Alice um ímpeto sensual, até que uma vez ela
beijou a mão dele e disse que ele era bom para ela.
— Eu é que engano aqueles espertalhões — ela disse para eles
—, ou eles vão enfiar mais agulhas em mim. Eu só faço o que eles
querem. — Mas ela não soava como alguém que acreditasse
naquilo. Quando tentava reagir, o monitor desligava a raiva dela e a
deixava confusa. Alice parecia mais próxima da loucura do que
jamais estivera. Ela criava histórias para lidar com o que fazia,
porque literalmente não sabia o que faria a seguir. Ainda assim,
gostava de achar que estava decidindo tudo. — Esperem e vão ver
— ela dizia, piscando com os olhos turvos — quem vai se sair por
cima no final.
— Você fugiu porque queria retornar à sociedade — Acker estava
dizendo para Connie, sua barba quadrada balançando no queixo. —
Mas o que você não entende é que isso é exatamente o que a gente
quer te ajudar a fazer!
Desde que tinha fugido, ela tinha passado a ser do interesse
particular de Acker. Ela tinha a sensação de que ele estava
sobrando no projeto, o psicólogo incluído para algum tipo de
espetáculo. Ele inventava razões para o que os outros faziam em
termos que não eram exclusivamente médicos. Ela não entendia
muito mais, mas via o desconforto dele, sua forma meio
escorregadia de lidar com os médicos. Até mesmo o sócio menor,
Morgan, o tratava de forma condescendente. Agora Acker
desenvolvia um interesse por ela. Ele estava orgulhoso de ter
conseguido que ela assinasse os formulários, mas não aliviou a
pressão.
— O que você não enxerga, Connie, é que, se não fosse por nós,
você passaria o resto da sua vida onde te encontramos. Então, você
não quer isso, ou quer? — Ele esperou uma resposta e se sentou
com as mãos apoiadas nos joelhos abertos.
Como ele parecia preparado para aguardar o dia todo, ela
murmurou por fim:
— Não, não quero passar o resto da minha vida aqui. Você quer?
— Eu certamente não gostaria. Então, Connie, talvez você
perceba que estamos trabalhando em seu benefício. Afinal, por que
a sociedade deveria se importar? Você já provou que não consegue
viver com os outros. Você foi trancafiada num lugar onde não pode
machucar a si mesma e aos outros. Não é mesmo?
— Mas eu posso ser machucada aqui. Não é mesmo? — Ela
balançou a cabeça.
— Vocês estão juntos a tempo suficiente para perceber o que
acontece com os pacientes antigos, como eles se tornam
aclimatados à vida no hospital. Depois de um tempo eles não
conseguem funcionar lá fora. É uma vida segura.
— Talvez pra vocês.
— Você sabe quando será a próxima refeição. Você tem uma
cama, um teto sob a cabeça. Tudo bem, você diz que não quer essa
segurança. Você quer voltar à sociedade.
— Quero voltar pra minha vida!
— Essa não é sua vida? Você não está em sua primeira
internação. Acho que essa será sua vida provavelmente por alguns
anos se não te ajudarmos. Em vez de apenas te guardar, estamos
preparados pra te ajudar. Essa é a primeira vez na sua vida que
você tem atendimento médico de qualidade. Os ricos contratam
psiquiatras, mas você nunca teve um tratamento verdadeiro.
Queremos que você esteja funcional de novo, mas sem o risco de
cometer aqueles atos descontrolados. Sem o risco de você atacar
alguma criança de novo, ou alguma pessoa próxima ou querida por
você.
Connie rangeu os dentes.
— Qualquer pessoa que não esteja numa cadeira de rodas pode
machucar alguém. Você nunca bateu em ninguém? Nunca?
— Connie, você está resistindo. Você é a paciente, sabe por que
está aqui. Quanto mais resistir, mais você se pune. Porque, quando
você luta contra nós, não podemos te ajudar.
Os enfermeiros trouxeram Skip de volta depois de dois dias fora
da ala. Acker saiu correndo para ver o resultado, deixando-a em paz
por alguns instantes.
— Pense nas histórias de prisioneiros heroicos que tentaram
escapar muitas vezes — Luciente falou, dando fortes tapinhas em
suas costas. — Uma derrota não é nada. Você deve manter a
vigilância por outros buracos na segurança.
— Se ao menos eu pudesse sair por uma liberação de final de
semana! Sei que podia escapar da Dolly facilmente. Até mesmo o
Luis teria de dormir em algum momento.
— Por que não? Mas tente! Você é importante para nós, queremo
que sobreviva e fuja. Uma tentativa, um fracasso, você tem que
acreditar nisso. O que dá certo da primeira vez? Afe! Se eu ainda
estou enrijecide numa tarefa, posso falhar vinte, trinta vezes até
acertar o equilíbrio de genes apropriado. Toda vez eu não percebo
um fator crucial. Mas finalmente ele desabrocha! Assim então você
deve trabalhar na fuga. Agora você está mais forte do exercício e
seus pés vão sarar mais fortes.
— Mas eles tiraram meu dinheiro. Me vigiam o tempo todo.
Sempre que vou pra perto da porta eles estão de olho.
— Elus têm muito o que fazer além de te vigiar. Você tem apenas
que observar elus. Manter a coragem.
— Luciente, misericórdia! Me sinto derrotada. Você não entende.
Nunca na sua vida você se sentiu indefesa, debaixo do calcanhar de
alguém. Você nunca viveu onde seus inimigos detinham o poder
sobre você, poder de dirigir sua vida e te destruir. Você não entende.
É por isso que fica aí me enchendo de frases feitas vazias!
Luciente curvou a cabeça.
— Você me crita com justeza, Connie. Me perdoe. Vou tentar olhar
a situação mais claramente e fazer menos barulho alto nos seus
ouvidos.
Quando vieram brincar com o Skip, os médicos não ficaram
satisfeitos. Os eletrodos que provocavam violência não faziam com
que ele os atacasse, como Alice fazia. Em vez disso, ele se voltava
para a parede e a socava. Ele batia a cabeça contra a parede e,
antes que os assistentes conseguissem contê-lo, o sangue já
escorria do seu curativo.
— Isso não vai servir! — Dr. Argent fazia uma careta, passando a
mão levemente nos seus cachos prateados. — Não traga nenhum
bombeiro visitante pra inspecionar esse daí. Hum! — Até o diretor
do hospital, quando algo dava errado, se afastava dos outros dois,
de costas, parecendo desdenhá-los.
— Começamos com tentativas de suicídio. Podemos estar sendo
manipulados por um masoquista, hein? — Dr. Redding olhou de
soslaio para o dr. Argent, tentando incluí-lo nessa piadinha. — Ah,
vamos discutir o caso na reunião de equipe hoje. Outros
procedimentos podem ser indicados.
Argent juntou as mãos atrás das costas e se balançava com os
pés.
— Não é má ideia. Não vai adiantar deixar ele assim, nessa
condição. Os agentes federais vão visitar semana que vem. Se
queremos a renovação do financiamento, é melhor deixar tudo
arrumado e em ordem.
O dr. Morgan se empertigou.
— Procedimentos cirúrgicos?
Skip perguntou em voz alta:
— Vão tirar essas coisas?
— Se nossos testes provarem que é a melhor condição, filhinho,
talvez sim — Redding falou. — Faremos o que for melhor.
— Cara, vocês devem achar que sou louco mesmo, pra acreditar
nisso.
Quando se viraram para sair, Connie correu do seu posto ao lado
da porta para se sentar na sala comunitária. Quando os médicos e
Acker passaram, estavam discutindo amigavelmente entre si.
— Muitos talentos na sua área estão trabalhando para reter a
inversão sexual com eletrochoques ligados à projeção de slides e
filmes — Redding dizia para Acker. — Mas a taxa de reincidência
não é muito promissora. Se pudéssemos curar a inversão
cirurgicamente, abriríamos um nicho totalmente novo.
— Não vamos sair muito dos trilhos, cavalheiros — Argent disse.
— Podemos fazer alguns testes, mas nossa preocupação maior é a
violência. Dentro desse perímetro, temos alguma margem pra
experimentar.
— De seis a oito mil pra uma operação contra centenas de
milhares de dólares pra manter um homossexual em tratamento ou
internado por décadas. Você não pode dizer que isso não é uma
ótima relação custo-benefício. — Redding se permitiu tocar o ombro
do Argent como um colega. — Bom pro coração do contribuinte e
das autoridades. Se o dinheiro do crime das ruas secar, é algo pra
se manter em mente.
Argent olhou para a mão dele.
— Quero resultados nesse daí, doutor. — Aquela formalidade
cortou como uma lâmina. — Sou um velho. É agora ou nunca. Para
o seu bem, melhor ser agora.
Skip foi levado ao outro hospital novamente. Quando o trouxeram
de volta, tinham removido os eletrodos, mas tinham feito algo mais.
Eles tinham coagulado parte do seu cérebro límbico, o que quer que
fosse aquilo. Amigdalectomia foi a palavra que usaram. No dia
seguinte, ela foi vê-lo. Seus olhos estavam embaçados e injetados
de sangue.
— Por que você quer saber como eu estou? O que te interessa?
— Você não se lembra de mim, Skip? Sou a Connie, sua amiga.
Você me deu dinheiro pra ligar pra minha sobrinha.
— Uns dão, outros tiram. Alguns tiram tudo.
— Dói? Sua cabeça?
— Eles dizem que quando você perde uma perna e eles cortam, a
perna continua doendo. Eles chamam isso de ressecção, eles têm
nomes pra tudo.
— Pelo menos eles não ficam brincando com você, como fazem
com a Alice.
— São brincadeiras diferentes.
— Você está com medo do que vão fazer agora?
— Por que eu teria medo? Quem disse que estou com medo?
Você vai ver.
— Não falei por mal, Skip. — Ela tocou a mão dele. Ele a tirou
como se ela a tivesse queimado.
— Não tenta ficar perto de mim. Agora eu aprendi. Dar e tirar, e
então tudo é tirado.
Lebre estava mostrando a ela um punhado de... quê? Imagens de
sonhos? Esculturas de luz? Formas que se transformavam em
outras formas? Ela ficou ansiosa olhando para aquilo com a pessoa
que as tinha feito, o artista, fazendo elas surgirem ali. Tinha medo
de parecer não estar apreciando ou não dizer as coisas certas ou
observar corretamente e ele achasse que ela era burra. Mas ali à
tiracolo estava Luciente, comendo uvas verdes de uma cesta
artesanal e murmurando alguns elogios como se fosse um programa
de tv. Se ela tentasse adivinhar o que as imagens deveriam
significar, se sentiria chateada. Mas se olhasse com os olhos bem
abertos e deixasse que elas acontecessem, não conseguia evitar
uma atração.
O hologra que ele estava mostrando não tinha nenhuma palavra,
nenhuma história, diferente daquele que tinha feito com Bolívar. Era
todo feito de imagens que tinham a ver com o oceano e com sexo e
com poder — não o poder sobre as pessoas, mas o poder natural,
energia. Limites se dissolvendo. O mar subindo, quebrando sobre a
terra. Sob um céu frio azul e claro, um mar açoitava, virava espuma
e se espalhava pela praia. Ondas com dentes que tremeluziam e
cabelos que se enredavam e esvoaçavam em si mesmos. Onda
quebrando sobre onda, mostrando barrigas escuras antes de se
quebrarem em espuma e escorrerem pela areia, se espalhando e
chiando.
A oficina de Lebre ficava perto do moinho, perto o suficiente para
ouvir as pás girando. Ali, o rio esmagava grãos e milho e operava
uma série de bombas. Quatro vezes por dia um relógio de maré
girava o mecanismo da roda para que ela estivesse sempre fixada
corretamente de acordo com o fluxo das águas. Quando Lebre não
tornava a janela opaca e usava apenas a claraboia de correr,
ondulações dançavam na parte mais alta do telhado. Sempre, ele
disse a ela, era possível ouvir a roda do moinho, as ondas batendo
na praia logo abaixo. A oficina tinha sido construída alguns metros
acima do rio, e o lado que dava para a água tinha uma pequena
varanda.
— Lebre já tem duas pessoas aprendizes — Luciente falou,
apoiando-se no balaústre do lado de fora da porta aberta enquanto
Connie observava os desenhos e gravuras que Lebre tinha
começado a mostrar a ela.
— Débora e Orion não estão muito satisfeites sobre eu ir pra
defesa. Elus tiveram atiramentos comigo sobre isso a semana toda
— Lebre reclamou, passando as mãos pelo cabelo cacheado.
— Dureza! — Luciente disse sem rodeios. — Elus sabiam quando
te escolheram que você não tinha servido a defesa. Nem tiveram
que esperar por você como professore. Deixa elus fazerem serviços
por seismês.
— O atiramento dessôas me entristece — Lebre falou,
distraidamente tentando fazer cócegas nas costelas de Connie
enquanto ela se virava para olhar as cartolinas. — O ritmo da minha
vida entrecruzou com o ritmo das delus. Sentem que estão
crescendo e querem voar mais rápido.
— Você não consegue trabalhar sozinhe? Nem sempre você
estudou com professories. — Luciente chutou para longe seus
sapatos e se sentou com os pés descalços pendendo para fora da
varanda, mas sem alcançar a água.
— Por que você tem que ir pra defesa? — Connie deixou os
papéis de lado. — Não consigo mais olhar. Desculpa, não consigo
mais assimilar nada.
— Mas eu tenho que deixar a defesa pra trás antes de começar a
maternar. Seria burrice fazer o contrário, eu capto isso.
— Sua sociedade não dá muito crédito à arte, aos artistas e essas
coisas, não é?
Connie desviou o olhar de um quadro de um homem nu pendurado
na parede mais distante, junto com outras vinte pinturas, desenhos,
gravuras e coisas do tipo. Um corpo masculino pendurado daquele
jeito — com um pinto enorme — a deixou envergonhada. Não
parecia algo que ela deveria ficar encarando, ainda que as cores
brilhassem e a carne brilhasse por dentro. Ela continuou olhando,
nervosa, de canto de olho. Era lindo quando não deveria ser —
como o Martín, seu primeiro marido. Ela não conseguia imaginar
que ele permitisse que qualquer pessoa o pintasse daquela forma,
mas, se alguém de talento tivesse pintado, a pele dele iria brilhar
daquele jeito. Não era Lebre, nem Bolívar, a menos que fosse
Bolívar sete anos mais novo com uma barba espessa.
Luciente se virou, recostando-se contra um dos postes do
corrimão.
— Por que diz isso, Connie, amor? A grande maioria de nós segue
algum tipo de arte, e às vezes até mais de uma.
— Mas isso é coisa amadora. Quis dizer artistas de verdade.
Como Lebre. Não sei muita coisa, mas posso ver que é de verdade.
Mas ainda assim ele tem que trabalhar nos campos e ir pro exército
e cozinhar e essas coisas todas.
Luciente sorriu.
— Mas euzinhe sou geneticista de verdade e tenho que ir pra
defesa e colher batatas e cozinhar e tudo isso. E também como e
faço escolhas políticas e confio naqueles com armas pra me
defender, assim como Lebre. Intão?
— Eu compreendo — Lebre disse, dando um tapa no ar. — No
tempo da Connie, elus achavam que, quando uma pessoa era boa
em algo, como artes ou ciência, não deveria fazer mais nada.
— Isso deve ter deixado todes um pouco burres — Luciente falou.
— Um pouco simplificades, você capta? E com o ego inflado!
— Essas pessoas tendiam a sentir que outros trabalhos diminuíam
seus conhecimentos de física ou escultura ou o que fosse. Não era
assim, Connie? — Ele passou os dedos pelo braço dela, fazendo
uma carícia.
Ela recuou o braço, envergonhada de novo.
— Bom, se uma pessoa pode fazer alguma coisa... importante, por
que deveria cortar cebolas ou caçar taturanas das plantações de
tomate?
— Comer não é importante? — Luciente fez uma careta de
surpresa.
— Connie, pensamo na arte como produção. Achamo que uma
pintura é tão real quanto cultivar pêssegos ou fazer equipamento de
mergulho. Nem mais verdadeiro, nem menos. É útil e bom em níveis
diferentes, mas é produção. Se esse é o trabalho que eu quero
fazer, não preciso passar por uma prova ou encontrar uma
patronagem. Mas ainda tenho os deveres familiares, deveres
políticos, deveres sociais, como qualquer outro palerma. Como não?
— Todo mundo? Mas e Bolívar? Ele está sempre viajando.
— Bolívar faz tudo, mas em fases diferentes. Na primavera pessoa
planta, faz a cota do ano e um pouco mais! Faz duas semanas de
preservação em agosto ou setembro.
— Mas ir pra defesa, não é perigoso?
Ambos riram muito, aquele riso franco que vem do diafragma.
— Como não? — Luciente perguntou. — As pessoas inimigas não
são muites, mas são determinades. No passado, elus mandavam no
mundo todo, tinham poder como nenhume outre, mesmo os
imperadores romanos, e riquezas que eram drenadas de todos os
lugares. Agora têm o poder de nos exterminar e nós de exterminar
elus. Pessoas têm bases limitadas, a Lua, a Antártica, as
plataformas espaciais, para uma população na sua maioria de
androides, robôs, cibernautas, humanes parcialmente
automatizades, que a guerra é de atrito e pequenas ações em áreas
disputadas, ataques-surpresa quase em qualquer lugar. Vivemo com
isso. É o fim da linha. A gente teme elus, mas triunfamo até agora, e
acreditamo que vamo ganhar... se a história não for invertida. Quer
dizer, o passado é uma área disputada.
— Não entendo! E isso me deixa tonta! Mas se Lebre vai pro
exército, ele pode ser morto. Algumas pessoas não valem a pena
serem poupadas?
— Me mostre alguém que não vale — disse Luciente. — Quem
não é preciose para si? Como poderíamo decidir quem usar e quem
poupar?
— Risco, perigo... a gente não acha que são do mal — Lebre disse
lentamente. — Eu não gorjeio em ir. Clarquessim não quero
devolver ainda. Mas não quero ser ignorante. A criatura dentro de
uma concha é uma lesma mole, como uma minhoca. Quem deve
me proteger? Bolívar? Luciente? Abelha? Gavião? Quem vai ficar
entre eu e a morte, eu e as doenças, eu e o afogamento? Devo
servir os talentos que me usam, a energia que flui por mim, mas não
posso fazer outres me servirem. Vê a diferença?
— Você não vai sentir saudade dele? Você deve se importar por
ele ir — pergunta a Luciente.
— Me importar? Como não? Me importo também que ainda
estamo em guerra. Me importo que não podemo aproveitar a paz e
usar toda a energia no que as pessoas precisam e querem. Vou
sentir saudade de Lebre, clarquessim. E acho muito injusto que eu
vá sentir saudade primeiro de Abelha e depois de Lebre em um
ano... — Luciente olhou para Lebre, seus olhos marejados e
melancólicos. Então o rosto dela clareou. — Mas estou contente
com o fato de Lebre maternar. Sou criançavinculadere. Vou
maternar um pouco também... — Luciente se virou para observar o
curso das águas. — Débora e Orion devem decidir se vão continuar
trabalhando aqui sozinhes esses seismês sem você, ou se devemo
fechar a oficina até você voltar.
— Eles têm uma semana pra decidir. — Lebre pegou na mão de
Connie. — Por que você fica tímide comigo? O que eu faço que te
deixa com tensão?
— Nada! — Ela encarou Luciente como um apelo.
— Então por que você tira a mão?
— Por que você quer... segurar ela?
Lebre sorriu.
— Quando eu voltar da defesa, vou lidar com a maturidade. Então
você não vai ficar de timidez comigo. Abelha faz gostoso, mas eu
faço tão gostoso quanto. — Ele fez uma careta exagerada tentando
flertar com ela, piscando bastante. — Você não sente tristeza por
mim, em exílio por seismês? Não quer me confortar?
— Não provoca a Connie assim. — Luciente levantou o punho
contra ele. — Você prometeu não provocar a Connie!
— Você não gosta de provocação? Nem um pouquinho?
— Quando você for mãe — Connie disse, rindo pela primeira vez
em dias —, daí você pode me provocar.
— Se você experenciar dor na região abdominal, se fosse
diagnosticada com apendicite, ficaria com medo da operação, mas
não ia criar resistência. Não tentaria sair do hospital, porque saberia
que está doente e que precisa de ajuda. — Acker a tinha
encurralado na sala comum, onde ela estava assistindo a um
seriado sobre um advogado. Atrás de Acker, Tina fazia caretas para
Connie, para ajudá-la. — Então, você não consegue ver seu
cérebro, mas consegue ver o resultado de uma máquina de
eletroencefalograma. Você não consegue lê-lo, porque não tem
treinamento, mas os médicos podem. Você também não consegue
ver o apêndice, mas aceitará as opiniões dos especialistas nos dois
casos, ou estará se condenando a ficar mais e mais doente.
— Exceto pelo fato de não fazer exercícios, da comida horrível e
daqueles remédios que me apagam, estou bem. Andei 32
quilômetros, não foi?
— E voltou com abcessos nos pés. Esses você consegue ver. Mas
não consegue ver abcessos no seu cérebro, por assim dizer.
Connie, você vai nos agradecer, porque, graças à moderna ciência
médica, não está mais condenada a passar sua vida numa unidade
psiquiátrica.
— Olha, acho que é mais barato me manter no seguro-
desemprego do que aqui. Mas vou pra casa amanhã. Vou me matar
pra conseguir arrumar trabalho. Prometo! Vou esfregar chão. Não
me importo mais. Prefiro fazer serviço doméstico pras senhoras
brancas do que ficar aqui!
— Claro. E queremos que você esteja apta a retornar ao trabalho
útil, retornar à sociedade de forma segura, tanto pra você como pros
outros. Mas tem esse porém, Connie. Ninguém consegue confiar em
você. Se você tivesse febre tifoide, não iria esperar que te
deixássemos sair sem tratamento e fosse passear pelas ruas de
Manhattan livremente infectando os outros, iria? — Acker esperou,
radiante, suas mãos pousadas nos joelhos abertos. Atrás dele, Tina
estava fazendo mímica, simulando uma morte horrenda.
— Não acho que eu tenha tuberculose ou febre tifoide.
— Estava fazendo uma comparação.
— Eu sei disso! — “Quão estúpida ele acha que sou?”. — Mas não
acredito que estou doente. Como você, fiz coisas de que me
arrependo e coisas de que não me arrependo. Já que sou pobre,
não posso contratar advogados pra acertar as coisas pra mim
quando me dou mal com a lei.
— Sempre má sorte. Sempre uma história de muito azar. Você não
aprendeu nada, só de ouvir isso. Mas acho que você sabe muito
bem, Connie, está simplesmente resistindo. Quando vir sua situação
claramente, em vez de observar pelos olhos irracionais do medo, vai
perceber que somos seus únicos verdadeiros amigos... Olha pro
Skip. Acho que ele está no caminho da recuperação. A atitude dele
mudou desde a operação. Ele está tentando, Connie. E essa
tentativa vai valer a pena, espere e veja. Ele vai voltar pra sociedade
logo, um indivíduo produtivo, curado das suas doenças, pronto pra
se dar bem na vida.
Tina estava tocando um violino e deixou os braços caírem rápido
quando ele se virou para sair.
Connie estava chocada com o que ele tinha dito sobre o Skip.
Verdade, Skip tinha mudado. Ele papagueava tudo o que diziam
para ele, e tinha dito a eles que estava agradecido. Quando o
levaram e o testaram com algumas fotos homossexuais, ele não
tinha tido nenhuma reação negativa, como chamavam, o que
significava que ele não tinha ficado de pau duro. Ele disse a ela que
se sentia morto por dentro. Eles estavam satisfeitos com ele; iam
escrever sobre ele em um periódico médico.
Skip queria ir embora. Eles prometeram que ele ia sair. Ela
ponderou. Eles iam deixar mesmo ele sair de suas garras? Já
tinham tirado os curativos e o cabelo dele estava começando a
crescer de novo. Ele andava pela ala ajudando os auxiliares. Estava
jogando o jogo. Ainda era um jogo, ela sentia isso. Havia resquícios
de um forte desejo que esfriara no seu interior que ainda o movia.
Ela tinha tentado escapar à sua maneira, e ele tentava da maneira
dele, com algo extirpado dele. Algo lindo e efêmero tinha se
apagado. Doía nela vê-lo daquela forma, porque ele era lindo
demais, e eles o tinham consertado. Ele se movia diferente,
desajeitadamente. Era como se tivesse finalmente concordado em
imitar a masculinidade grosseira e desajeitada dos médicos por um
tempo, mas o que para eles era proficiência, para ele era humildade.
Skip se movia como um robô cujas partes não tinham sido bem
soldadas. Ainda assim, ele não era um robô, não importa o que
achassem que tinham feito. Ela podia sentir o desejo queimando
nele, uma vontade de se libertar.
— Você está jogando com eles, não é? — Ela veio por trás quando
ele estava limpando a sala comum.
— Por que não? — ele perguntou a ela. Eles tinham ficado amigos
de novo, mas ele não a paquerava mais, nem contava histórias
malucas. Estava letárgico, reduzido a um fio de desejo que ela podia
sentir. Ela torcia para que eles não tivessem queimado ou cortado
tanto quanto pensavam. Algo do Skip tinha sobrevivido.
CAPÍTULO 14

Lebre foi para a defesa. Por uma semana, Luciente se afundou num
estado de baixa energia que fez com que ficasse difícil se conectar.
Então ela fez um dia de retiro em Treefrog e, para Connie, voltou a
estar mais parecida com a Luciente de sempre.
O almoço em Mattapoisett era uma sopa amarela engrossada com
pedacinhos de camarão, caranguejo, marisco e peixe. Gavião
estava comendo com eles, depois de ter ficado várias semanas com
a família de Relâmpago.
— Foi chato me sentar à mesa com membres com quem eu não
podia conversar. Agora que o tabu acabou, estou de volta. Achei
que fosse me aquecer ficar com nossa família hoje. Veja, eu trouxe
convidade pro almoço.
Connie já tinha visto visitantes antes além de si, na maioria gente
das vilas próximas ou outras pessoas que estavam de passagem,
viajando com algum tipo de propósito. Às vezes, uma trupe inteira
de músicos ou artistas parava por uma semana. Velhos amigos ou
antigos membros vinham visitar. E havia as pessoas sem vilas,
chamadas educadamente de andarilhas e pouco educadamente de
vagabundas. Uma vez ela tinha visto um homem com uma pequena
tatuagem na palma da mão, que Luciente disse ser a marca de um
crime violento. Diferente de outros convidados, andarilhos
geralmente se sentavam sozinhos. As pessoas pareciam
desconfortáveis perto deles. Às vezes, parecia que se conheciam, e
quando Connie passava perto deles, ela ouvia gírias que não
conseguia reconhecer.
Por que Gavião trouxe esse convidado para a mesa? Connie viu
na palma dele a mesma tatuagem, a marca de advertência. Ele era
um homem grande e de ossatura avantajada, mas lhe faltava
carnes, talvez na casa dos quarenta.
— Waclaw acabou de estudar com Cree! — Gavião murmurou.
— Em Attawapiskat. Que flui para a baía de James pelo oeste —
ele falou com uma voz hesitante e profunda vinda do seu peito
largo.
— Quanto tempo você teve que esperar pra estudar lá? — Gavião
perguntou. — Teve que esperar muito?
— Seis anos — Waclaw disse. — Tive sorte que me escolheram.
— Seis anos?! — O rosto de Gavião se abateu. — Isso enfundece!
— Se deixarem todo mundo que chega estudar com elus, ficariam
lotades — Waclaw ponderou. — A maioria das pessoas não espera,
então, elus não têm que dizer não.
— Valeu a pena ter esperado tanto tempo? — Gavião perguntou,
ainda lamentando.
Waclaw anuiu.
— Me firmou. Quase fiquei. Vou ver minha antiga vila e decidir.
Elus dizem que posso voltar se escolher, para Attawapiskat.
Assim que o almoço acabou, Connie perguntou a Luciente:
— Ele é um criminoso, não é? Vi a tatuagem.
— Não mais. Pessoa fez reparações. Tem estudado lá no norte.
— Os Cree, ele disse? Como os índios? Vocês ainda têm índios
de verdade?
Luciente anuiu.
— Aquelas terras são fortemente protegidas, sob controle delus.
Só caçam, coletam coisas e realizam algumas atividades
científicas... As pessoas Cree têm uma forma mista de vida. Pescam
e caçam, criaram uma espécie de agricultura do extremo norte,
fazem artesanato, a fabricação é limitada. Precisam ter cuidado,
porque a terra é frágil.
— O que tem pra estudar lá?
— Uma disciplina, um senso de completude. Algo antigo.
Geralmente são meio caçadores e coletores, meio xamãs, meio
cientistas.
— Mas qual foi a reparação dele? Ir pro norte e viver desse jeito?
— Nunca! — Luciente riu sonoramente. — Isso é um grande
privilégio. Foi por isso que Waclaw teve que esperar seis anos. Não
sei o que pessoa fez pra reparar. Pergunte, se precisar, mas a gente
normalmente não pergunta. Sentimo que está fechado, curado.
Esquece!
Connie seguiu Luciente de perto até os campos experimentais
onde Luciente estava gravando comentários sobre a performance.
— Isso está se resolvendo! Acho que encontramo boas cepas pra
trabalhar no próximo ano.
— Por que vocês deixam tantas matas? — Connie perguntou. —
Como naquela discussão no conselho. Por todo lado na foz do
Mattapoisett vejo trechos de bosques, prados, pântanos e
marismas. Vocês podiam cultivar muito mais terras.
— Temo muito mais terra cultivando alimentos dos que vocês
tinham. Mas, Connie, pra além da faixa do lençol freático, pense em
cada trecho de mata como um banco de genes natural. No seu
tempo, milhares de espécies estavam desaparecendo. Precisamo
desse banco de material genético pra reprodução... Essa é apenas
a resposta do ponto de vista mais restrito da minha própria ciência.
Abelha acenou para elas, levando um grupo de crianças pelos
campos numa combinação de busca por insetos e aula sobre a vida
deles.
— Boa sorte em Oldtown! — ele gritou. — Nos leve adiante.
Connie observou as costas largas e reluzentes dele, a camisa
enrolada na cintura.
— Do que ele estava falando?
— Tenho que dar uma passada em Oldtown mais tarde e
apresentar nossos didos.
— Didos?
— Meia palavra, meia costela. Capta, é pedidos, mas queria que
fosse uma requisição pro que queremo fazer cientificamente nesse
inverno.
Connie fez uma careta. Ela deixou Luciente tagarelar um pouco
sobre a controvérsia dos Modeladores, mas finalmente explodiu:
— É tão difícil pra mim pensar em você como uma cientista!
— Como não? Não compreendo.
— Ah, é que o único cientista que eu conheço é o dr. Redding... E
acho que somos as experiências dele. Mas eu quase nunca conheci
um cientista, quer dizer, no Harlem Leste. Não que eu quisesse...
— Qual a diferença entre conhecer um cientista e conhecer um
mergulhador?
— É como minha irmã Inez, ela mora em Novo México. O marido
dela bebe, ela tem sete filhos. Depois do sexto, ela foi pra uma
clínica pra começar a usar pílula. Você sabe, não, você não pode
saber! É difícil pra mulheres como ela, uma católica praticante, não
uma perdida como eu, e obedecendo o marido e ele enchendo ela
de bebês um depois do outro. É tão difícil pra ela dizer “basta ya!” e
começar com a pílula. Olha, ela achou que foi pro médico. Mas ele
estava com a plaquinha de cientista e estava fazendo experiências.
Ela achou legal conseguir as pílulas de graça, mas eles deram pra
ela uma pílula de açúcar. Esse médico, ele não disse o que estava
fazendo. Então ela embuchou de novo com o sétimo filho. Nasceu
com alguma coisa errada. Ela estava cansada e farta de fazer tanto
filho. Você sabe que já teve demais e os bebês não saem mais tão
fortes. Daí esse, Richard, nasceu ruim da cabeça. Agora eles têm
toda aquela preocupação e falta dinheiro. Eles deveriam dar uns
remédios pra ele e mandar ele pra uma escola especial, mas isso
custa caro. Tudo isso porque a Inez achou que tinha achado um
médico, mas ela achou um cientista.
— Tudo isso aconteceu assim? — Luciente olhou fixamente com
seus olhos negros surpresos.
Ela olhou para o outro lado, para o rio, apenas um regato com
suas águas marrom-café. Elas estavam voltando para Mattapoisett,
passando por alguns velhos, crianças, jovens trabalhando aqui e ali,
capinando e alimentando animais, caçando besouros, arrumando
plantas novas, discutindo com franqueza aos gestos e caretas,
correndo ao carregar um punhado de algo brilhante em alguma
cesta colocada na cabeça ou em uma trouxa ou cesta nas costas,
com bebês nos braços, nos quadris ou nas costas.
— Eles gostam de experimentar novos medicamentos em pessoas
pobres, especialmente nos mulatos e negros. Quem está na prisão
também. Então... vocês têm que testar medicamentos nas pessoas
também? Devem precisar.
— Usamo computadores pra modelagem biológica. A maioria dos
medicamentos são descartados muito antes da fase de testes. No
seu tempo, acho que as pessoas falavam sobre efeitos e efeitos
colaterais, mas isso é besteira.
— Como? Por exemplo, quando eu tomo Amplictil, os efeitos me
controlam, me deixando meio morta, mas tenho um monte de efeito
colateral, pode crer, como dor de garganta e... diarreia, tontura, fala
embargada.
— Mas, Connie flor, tudo são efeitos! As suas empresas de
medicamentos colocavam o nome efeitos colaterais no que não era
vendável. É uma maneira engraçada de ver as coisas, como um
cavalo com antolhos.
Ela jogou o queixo para frente.
— Mas tem uma diferença. É pelo efeito principal que você faz
alguma coisa.
— Mas, Connie! O mundo não sabe disso. Será que você não vê?
Vamo fazer a volta por aqui, as abelhas estão trabalhando hoje. —
Elas andaram por uma parte do complexo de Goat Hill, onde os
peixes estavam sendo criados em tanques aquecidos com placas
solares e a água fertilizada pelos peixes era usada para cultivar os
vegetais. Dentro dos domos dos peixes, homens e mulheres,
reluzindo de suor, estavam trabalhando vestindo apenas cuecas. Do
lado de fora havia uma piscina especial de resfriamento com as
pessoas brincando e nadando. — Exemplo, uma fábrica faz um
produto. Mas isso não é tudo. Ela faz ter menos de qualquer coisa
que ela usa praquele produto. Cada quilo de aço usado e que
devemo contabilizar, mesmo se o que foi feito é necessário ou
realmente desejável, é um quilo a menos pra outra coisa... Vamo
pegar uma bicicleta.
— Você vai ter que pedalar pra mim. — Connie recusou-se a
andar.
— Clarquessim, vou te carregar como uma bebê. Vamo pra
Oldtown. — Numa bicicleta de dois lugares, Luciente discutia por
trás dela, um pouco sem fôlego. — Uma fábrica pode produzir
poluição, que é levada pela água potável rio abaixo. Peixes mortos
que não podemo comer. Doenças e defeitos genéticos. Esses
também são produtos daquela fábrica. Uma fábrica usa água,
energia, espaço. Usa o tempo, as vidas daquelas pessoas que
trabalham nela. Se o trabalho for enfadonho ou alienante, ele produz
pessoas entediadas e raivosas...
— Você não me respondeu em quem os medicamentos são
testados. Quero saber. É nos criminosos?
— Me desculpe. Estou discurseando. A gente se voluntaria.
— Ah, claro. Isso é o que eles dizem sobre as prisões. Dizem que
o Claud se voluntariou pra hepatite. Mas, por uma grana por dia, a
pessoa mataria um amigo na prisão, porque não tem outro jeito de
tocar no dinheiro. Tudo nos refeitórios custa. Sua família em
dificuldade. Você quer sair logo. Dizem que você consegue uma
condicional se aceitar. Daí você se voluntaria.
— Mas não falta nada a ninguém aqui. Tudo que se consegue ao
se voluntariar é algum prestígio. Os conselhos locais podem te dar
créditos de luxo ou sabático extra. Na maior parte das vezes é mais
descanso. Se não tem voluntáries o suficiente pra algo, deixamo de
lado. Às vezes pessoa escolhe certo projeto como reparação, mas
isso é entre elus e quem quer que tenha machucado.
— Você já foi voluntária?
— Não pra medicamento. Não gosto de tomar remédio, mesmo
quando preciso. Não usamo tanto. Fazemo cura cooperativa,
quando curandeire ajuda sôa a firmar hábitos melhores de
mentalidade, melhor dieta e postura da coluna. — Ela pedalava num
ritmo estável. Estavam saindo de Mattapoisett agora, passando pelo
açude, e Estrela da Manhã, que estava carregando caixas de
travesseiros e almofadas até um barco, parou para acenar.
Passaram pela ponte para Cranberry e pedalaram seguindo para as
docas de Oldtown. — Me dispus a testar novos aparelhos. Quebrei
minha escápula testando um aerobarco a energia solar. Admiramo
unes a outres por se arriscarem pelo bem comum. Todo mundo fica
às asas com tanta admiração, como não? Mais amor, mais atenção.
Além disso, todo mundo sempre deseja mais tempo extra. A vida é
curta e há tanto pra se fazer.
Deixaram a bicicleta no bicicletário e andaram por um caminho em
Oldtown, onde ficava o porto principal. Era uma vila portuguesa
cujas atividades principais eram a construção de barcos, reparos,
pesca de marisco e pesca em alto mar.
— Acordam às três ou quatro da manhã quando os barcos saem,
então reuniões à noite não funcionam aqui. Fazem as refeições à
tarde, por isso tenho que apresentar o dido às três. Não é lindo
aqui? Alguns prédios têm uns quatrocentos anos de idade!
Eles haviam adaptado os prédios antigos, apesar de entre eles
haver os mesmos campos e jardins, como em qualquer lugar. Um
velho com uma barba embranquecida estava colhendo frutinhas,
comendo algumas, colocando a maior parte numa cesta que estava
em seu braço murcho, num lugar que algum dia havia sido o
gramado de um hotel resort. Com ele havia uma criança que estava
mais comendo do que colhendo, enquanto cantavam às vezes em
uníssono e às vezes como um estranho contraponto. A criança
interrompia com perguntas a cada dois minutos, as quais o velho
respondia lentamente.
— Por que a vida é curta? — Connie perguntou. — Os velhos aqui
são saudáveis, claro, vivem com todo mundo. Mas eles ficam velhos
e morrem não muito mais tarde do que nós. Por que não vivem mais
tempo?
— Decidimo não tentar.
— Quem decidiu?
— Os conselhos. As reuniões das vilas. É dessa maneira que
questões gerais de direcionamento da ciência são decididas.
— Você quer dizer por pessoas como eu? Como eu poderia decidir
se eles vão construir uma bomba atômica ou não?
— Clarque você poderia decidir. Afeta você, como não? Une
deputade da base fala em nível local pra um pequeno projeto. Mas,
se é algum projeto maior, como seriam os de prolongar a vida, então
todo mundo decide. O que custaria pra começar, o que se usaria na
forma de recursos e trabalho, tudo isso seria colocado. Quais seriam
as consequências em todo yin-yang da coisa, que a gente pudesse
prever ou adivinhar.
— Mas como eu poderia saber se você é uma boa cientista ou
não? Não sei nada sobre genética. Na hora que eu conseguir
entender tudo, já serei uma velha.
— Você não poderia. Mas poderia decidir se minha base deve
intensificar o cultivo de abobrinha resistente à broca ou batata sem
pulgão ou lírios-de-um-dia lindos e comestíveis. Então, pra
resultados, se os experimentos forem válidos, nós, pesquisadories,
dedicamo um tempo para verificar o trabalho une de outre. É feito
por sorteio.
— Mas isso soa um pouco como uma ditadura. Na nossa época, a
ciência foi mantida... pura, por assim dizer. Só cientistas podiam
julgar outros cientistas. Todas aquelas histórias de como os
cientistas eram perseguidos pela Igreja ou pelos governos por causa
do que estavam realizando em suas ciências.
— Mas, Connie, na sua época, só as grandes corporações e o
Pentágono tinham dinheiro suficiente pra pagar pela grande ciência.
Você não acha que isso teve efeito sobre o que as pessoas
estudavam? Doces petúnias! E o que a gente faz afeta todo mundo.
A gente usa uma boa porção de recursos. Materiais escassos,
energia. Temo que prestar contas. Só tem um bolsão de ar pra
respirar. Você sabia que os neurologistas quase extinguiram a
lesma-do-mar por usar em experimentos? Quase fizeram o mesmo
com os chimpanzés! Que arrogância!
— Mas por que vocês não prolongam a vida? As pessoas mais
velhas votaram nisso também?
— Clarquessim. Fizemo uma separação por idades depois pra
certificar que jovens não estivessem votando na extensão da idade
longe de velhes... Acho que tudo remete ao fato de que estamo
ainda reduzindo a população. Quanto mais as pessoas vivem,
menos frequentes são as trocas. Mas quase tode palerma quer uma
chance de maternar. Logo, devemo devolver. Tem que morrer.
Afinal, as pessoas se cansam. Depois de um tempo, pessoas de
quem você era amigue coloride, amigue de trabalho, morrem de
acidente ou doença, tanto faz. A velhice do coração chega.
— Daí vocês desistem.
— Somo parte de uma rede da natureza. Você não acha isso
lindo?
— Como animais irracionais? Não! Do pó ao pó e tudo aquilo?
— Tem uma centena de cerimônias pra nos curar, pro mundo onde
vivemo com tantes outres. Ouça. — Luciente apontou para a criança
e o velho, que tinham terminado de colher framboesas. Cantavam
juntos enquanto se preparavam para ir embora:
Obrigado pela fruta.
Pegamo o que precisamo.
Outros animais comerão.
Obrigado pela fruta,
Que carrega a semente.
O que nos dá é doce.
Vida longa e crescimento!
— Aprendemo, quando somo crianças a dizer isso pra todas as
árvores e arbustos que nos alimentam.
Mesmo com o secobarbital, ela não dormiu naquela noite. Na
manhã seguinte, eles viriam pra levá-la ao hospital onde estavam
realizando as operações. A noite que antecede a cadeira elétrica.
Ela encarava a escuridão fina, a luz ligada no fim do corredor na
área da enfermagem, onde o pessoal do turno da noite jogava
cartas. Eles jogavam sempre o mesmo jogo, no qual a enfermeira
da noite era parceira do Stan, o cara, e a assistente da ala feminina
Jean era parceira do auxiliar Chris. A enfermeira e Stan eram dez
anos mais velhos que Jean e Chris, e chamavam o jogo de Lacuna
Geracional. Eles faziam muitas piadas e bebiam cerveja a noite
toda.
Apesar de o jogo ser barulhento, não eram eles que a mantinham
acordada, nem o ronco meio murmurado de Tina na cama ao lado.
Era a manhã seguinte. Amanhã eles colocariam uma máquina no
cérebro dela. Ela era o experimento. Eles iriam violar seu corpo, seu
cérebro, seu eu. Depois disso, ela não poderia mais confiar nos
próprios sentimentos, não seria ela mesma, e sim o monstro
experimental deles, o brinquedinho, como a Alice. Instrumento
deles. Não queria atravessar para Mattapoisett naquela noite, queria
sentir o gosto dos últimos sedimentos da sua identidade antes que a
tirassem dela.
Deitada na penumbra, sentiu a raiva se acumulando nela como um
vento azedo. Não havia o suficiente! Ah, havia coisas o suficiente,
com certeza — comida, roupas para vestir, tudo aquilo. Mas não
havia o suficiente... para fazer. Para curtir. A feiura a tinha cercado,
aprisionado sua vida toda. A feiura dos cortiços, das favelas, do El
Barrio — tanto de El Paso, de Chicago ou Nova Iorque —, os muros
encardidos, as ruas fedidas, o ar poluído, os corredores escuros
cheirando a mijo e fritura velha; a vida, como uma ferida aberta,
tinha macerado suas forças.
Quem quer que fosse dono daquele lugar, daquelas cidades, quem
quer que fosse dono de prédios de escritórios espelhados e
brilhantes no centro, cheios do ronronar do dinheiro surgindo,
daquelas refinarias subindo o rio em Nova Jersey, com as chamas
lambendo o ar; eles não devolviam nada, apenas tiravam e tiravam
e deixavam o lixo deles asfixiando o ar, o rio, o mar. Asfixiando-a.
Uma vida de lixo. Lixo humano. Ela tinha tido pouco mais do que
seu corpo precisava e pouco demais daquilo que sua alma podia
imaginar. Tinha feito pouco nos anos da sua vida, e aquele pouco
tinha sido mal pago ou punido. O resto era lixo.
Quem poderia algum dia pagar o preço pela dor de criar uma
criança na sujeira e na dor? Nunca seria o suficiente. Nada do que
você quisesse dar a ela seria suficiente, nem si própria, o que você
queria ser com ela e por ela. Nada que você quisesse para ela se
concretizaria. Quem poderia pagar o preço por crescer dia após dia,
ano após ano, num cômodo mal iluminado, dançando com as
baratas e olhando para uma rua como um esgoto de morte lenta?
Em toda a sua vida, parecia que ela vinha morrendo, uma célula de
cada vez, uma célula de esperança, de alegria, de amor, pequenas
luzinhas apagando-se uma a uma. Quando o corpo dela se tornar
todo dor, ela morrerá? Morrer e envenenar a terra como uma vítima
de praga, como quilos e quilos de chumbo envenenando o solo.
Do lado de fora, as árvores estavam mudando cedo, por causa da
seca. Os galhos dos pinheiros terminavam em ramos de flores de
agulhas secas e marrons. Elas estavam guardando energia. Os
bordos e os carvalhos mostravam ramos já bronzeados, uma versão
desbotada da cor do outono. O céu era de um azul-amarelado,
como se estivesse cheio de poeira por quilômetros. Perto das nove,
quando a levaram para o hospital, já estava quente para um dia de
setembro.
Eles cortaram o cabelo e rasparam a cabeça dela logo depois de
entrar na outra ala. Valente tinha dito ao dr. Redding que isso irritava
os pacientes. O toque frio da tesoura atingiu sua nuca e sua orelha
como um tremor pesado, um tubarão farejando algo. A cada clique
das lâminas, seus cabelos caíam, acumulando-se como lixo no
chão, prestes a ser varrido e jogado fora. Nenhum arbusto de
amoras ia crescer da poda dos seus cabelos. Eram ricos em
nitrogênio e pobres de outros elementos; Luciente sempre dizia
coisas como aquelas. Mas Luciente não estava com ela naquela
manhã.
Sybil ficou parada à porta vendo ela ir embora, seu rosto se
mexendo enquanto ela tentava não chorar. Na sua mente, podia ver
os cabelos ruivos de Sybil caindo, os longos e belos cabelos de um
vermelho natural, que variava a cada mecha. Muitas vezes ela tinha
penteado os cabelos de Sybil e sempre se surpreendia com o
quanto de amarelo e castanho e bronze e cenoura e amadeirado
havia naqueles cabelos ruivos, um espectro de cores quentes.
Enquanto raspavam sua cabeça, ela tentou pensar em Abelha,
cuja cabeça enorme e bem modelada parecia bonita daquele jeito.
Mas ela não achava que fosse parecer tão forte e elegante após ter
seu cabelo roubado. Ela não tinha tomado café da manhã. Deram
um sedativo forte, mas não a deixaram inconsciente. Tinham dito
que ela não estaria de fato consciente, mas estava. Ela conseguia
ouvir os auxiliares fazendo piadas enquanto a levavam na cadeira
de rodas para a sala de operação.
Ela tinha se preparado para todo tipo de horror. Tudo, exceto o
enfado.
Primeiro, o dr. Redding fez um furo no seu crânio. Não doeu; era
apenas horripilante. Ela conseguia sentir a pressão, sentia o osso
cedendo, ouvia a broca entrando. Então viu pegarem uma agulha
para inserir algo. Ela não entendia o que era, porque não sentia
nada. Pareciam estar esperando aquilo fazer efeito, o que quer que
fosse. Ela esperou também, numa ansiedade de prender o fôlego,
até que captou a referência a uma “solução radiopaca”. Eles a
enchiam de corante enquanto a esvaziavam de vida. A ironia ficou
ali boiando na sua mente penetrada.
Depois eles encaixaram uma máquina em cima dela, que
chamaram de máquina esterotática, e socaram dentro da cabeça
dela três pequenos alfinetes de metal como se ela fosse uma
parede sendo aberta com um abridor de lata. Plec, plec, plec.
Parecia que eles estavam tentando descobrir em que ponto iriam
fixar, como diziam. Ela se sentia tonta e estranha. Estava flutuando
a quilômetros acima do seu corpo indefeso enrolado em lençóis
verdes e toalhas em uma espécie de cadeira de operação, como
uma cadeira chique de dentista. Eles usavam uma máquina de raio
x. Falavam de estruturas-alvo e o dr. Redding se gabou:
— Não mais que meio milímetro de margem de erro.
O terror correu pelas suas veias cheias de medicamento como
uma agulha penetrando o osso que deveria proteger o seu cérebro
frágil e esponjoso. Quanto dela estava acumulado naquele espaço?
Talvez eles pudessem apagar a lembrança de Claud com o balançar
da agulha. O cérebro era tão idiota, não era como o coração
batendo dentro do esterno, alto e sonoro, como uma ave capturada.
Ele se escondia na sua jaula de osso, imaginando estar a salvo.
Ela queria chorar, gritar, mas estava presa em um balão bem
longe, acima do seu crânio, talvez flutuando para fora do buraco que
tinham feito nela, flutuando ali fora acima deles, mais leve que o ar.
Quão pacientes eles eram para gastar tanto do seu valioso tempo
de médico para decidir onde inserir qualquer coisa. Que bom que
não tinham simplesmente usado um grande abridor de latas e tirado
o topo do crânio dela e raspado o cérebro com uma colher. Algumas
pessoas comiam cérebros.
— Você podia comer ele. Frito — ela disse, de repente.
Os olhos de Morgan sobre a máscara se expandiram.
— O que ela disse?
— Alguma coisa sobre comer — o enfermeiro de operação disse.
— Sem dúvida estimulamos um centro de apetite — dr. Redding
disse. — Estamos chegando lá. Quanto mais você cauteriza, mais
envolve as faculdades intelectuais. Não acho que esses pacientes
tenham muito a contribuir nesse quesito. Estamos buscando os
centros de agressão, as emoções primitivas que estão
descontroladas.
Agora eles olhavam para fotografias, como aquelas da Lua tiradas
pelos astronautas. Aquela terra desconhecida e preciosa que era o
cérebro dela. Eles mexiam em uma segunda máquina, igual àquela
que estava acoplada no seu cérebro como um pernilongo prestes a
sugar o sangue, mas de mentira. Ela teria adorado usá-la neles. De
repente, pensou que aqueles homens acreditavam que o sentimento
era uma doença, algo para ser cortado fora como um apêndice
apodrecido. Frios, calculistas, ambiciosos e se achando racionais e
superiores, com um bisturi eles caçavam o animal fêmea agachado,
começando por seu cérebro. Desde tenra idade tinham dito para ela
que o que ela sentia era irreal e não importava. Agora eles estavam
prestes a colocar dentro dela algo que controlaria seus sentimentos
como um termostato.
Tempo... tempo. Sim, a surpresa era o enfado. Ela quase poderia
ter dormido, agachada ali. As máscaras verdes cobriam os rostos
deles, mas ela podia facilmente diferenciar o dr. Redding do dr.
Morgan. Redding era vivaz, controlado e tagarela. Morgan estava
carrancudo de preocupação, e cada um dos seus movimentos era
um procedimento burocrático medido por regras internas ou
externas.
Então um novo objeto foi apresentado, mostrado como um prêmio.
Os enfermeiros se amontoaram para ver o novo brinquedo. Era um
disco de metal gravado em relevo como uma moeda, não maior que
uma moeda de vinte e cinco centavos, com tubos e uma bolsa de
diálise em miniatura. Ela seria um monstro andante com um
pequeno computador dentro dela e um ano de drogas para deixá-la
idiota. A coisa toda cabia na palma da mão e se encaixaria sob o
teto do crânio dela, confortavelmente empoleirado no seu cérebro.
Sua cabeça ficou estranha quando eles colocaram aquilo. Tudo
parecia errado. Talvez fosse ficar tudo bem de novo. Eles estavam
fechando o buraco com cimento; uma medida temporária. Disseram
que queriam monitorar as leituras por um mês ou dois, talvez
quisessem mudar a química do que estava sendo passado para ela
pela bolsa de diálise. Deixaram suas opções em aberto com um
plugue de cimento.
Depois ela teve uma dor de cabeça enorme. Mesmo seus dentes
pareciam doer. Ela não queria se mexer, não se importava com
nada. Deitada no leito com os olhos semicerrados, ela ignorava
pacientes e enfermeiros que passavam pela ala da neurologia.
Depois que a levaram de volta para sua ala, por uma semana ela
permaneceu letárgica e indiferente. Acker veio e conversou com ela.
Ele tentou fazer ela realizar testes e responder perguntas, trouxe as
tabelas dele que ela sempre achara que eram jogos infantis. Por
que deveria responder? Sentiu que estavam esperando que sarasse
para brincar com ela.
Skip, que estava sendo um bom paciente, trazia comida para ela
numa bandeja. De forma educada, ele não olhava para ela, mais
nua do que se tivessem tirado todas as suas roupas.
Tina lia o jornal para ela, tentava iniciar conversas. Sybil vinha e se
sentava paciente, a deixava sozinha e retornava, ansiosa. A voz de
Tina, aguda como uma vespa indignada, parecia-lhe um zumbido.
Ela não podia querer conversar. Ela era uma laranja estragada,
apodrecendo. A única pessoa que ela se importava em observar era
Skip no seu ir e vir, varrendo a ala e realizando pequenos serviços
para os auxiliares e outros pacientes. Estava vestindo roupas da rua
e os cabelos já tinha crescido, curtos e desordenados. Ele
aparentava estar mais novo e mais velho do que era: mais novo na
sua angularidade, na sua nova estranheza; mais velho na
desconfiada falta de expressão em seu rosto. Ela sentia o desejo
dele a todo momento como uma faca que ele carregava escondida,
e ela o invejava por tê-lo mantido. Ponderou, quando conseguia
pensar, sobre como ele tinha preservado o poder da sua força de
vontade escondido dentro de si.
Tinham decidido operar Alice na semana seguinte. Sentiam que
sabiam quais tecidos do cérebro dela iriam coagular agora, onde
fazer um buraco naquilo que era chamado de Alice. Então
removeriam os eletrodos, prometeram, assim como Skip. Estavam
cansados de brincar com Alice, que tinha se tornado taciturna e
passiva. Às vezes, ela dava muitas risadinhas, parecia bêbada,
aparvalhada sentada na beirada do leito. Depois se afundava numa
depressão inexpressiva.
Skip tinha privilégios agora. Ela ia até a cantina e trazia
rosquinhas, pão doce, doces, cigarros para qualquer paciente que
tivesse dinheiro. Os médicos tinham sua própria cafeteira perto da
sala de reunião, e até mesmo alguns pacientes podiam tomar café
de tarde na pequena copa que os funcionários menos importantes
usavam. Dolly tinha vindo visitá-la logo após a operação, mas não a
tinham deixado entrar, então Dolly apenas deixou algum dinheiro
para Connie. Lembrando-se do pedido de Luciente, ela pedia
dinheiro para comprar doces da cantina como os outros, mas
disfarçadamente pedia para Skip não lhe trazer nada. Setenta e
cinco centavos por vez; ela estava acumulando capital para fugir.
Pelo menos esse desejo continuava com ela.
Na quarta-feira, o dr. Redding anunciou com alarde, para que
todos os outros pacientes pudessem ouvir, que Skip tinha ganhado
uma saída no final de semana. Ele podia ir para a casa dos pais da
sexta à noite até domingo à tarde. Ele fez o anúncio com uma
dramaticidade consciente, dizendo que, se Skip provasse que podia
se virar, essa seria a primeira de muitas saídas, o primeiro passo de
volta à sociedade. Eles deveriam todos invejar Skip, e todos
invejaram. Os médicos estavam quase terminando com Skip, a
menos que mais cirurgias se fizessem necessárias, uma pequena
frase que adicionaram.
Skip disse que estava grato e que mostraria para eles que podia
lidar com uma visita para casa. Ele ficou parado ali, não mais
delicado sob seu cabelo tosquiado de soldado, e, olhando Redding
nos olhos, disse como ele seria bom e como era o garotinho curado
e agradecido deles.
Ela sentiu uma pequena fisgada de dor, como se algo tivesse sido
arrancado dela.
Na sexta, enquanto Skip estava se organizando para ir para casa
e esperava seus pais virem buscá-lo, ela se levantou pela primeira
vez desde a cirurgia, exceto pelas idas ao banheiro, e colocou sua
camisola. Tremendo, amarrou um lado da camisola ao outro e
cambaleou até o lado dos homens. Sentou-se na cama do Skip e
esperou a tontura passar. Ela não podia fazer aquilo, mas os
assistentes não tinham aparecido ainda.
Skip olhou para ela com desconfiança, olhos injetados e cansados.
— Olá, monstro — ele disse suavemente.
— Olá, monstro — ela devolveu e sorriu pela primeira vez desde a
operação. — Tem pouco de você e muito de mim.
— Você consegue sentir ela lá dentro?
— Me sinto estragada. Chapada.
— Te admiro por ter tentado fugir, sabe? Queria que tivesse
conseguido.
— Se tiver uma chance, vou tentar de novo — ela disse
suavemente.
— Mas... com essa coisa na sua cabeça, você pode morrer.
— Talvez eu só vá gastar as baterias ou o que quer que a faça
funcionar e ela pare, use todo o produto químico. Conheço um cara,
Otis, que tem um pino de metal no joelho desde o Vietnã.
— Acho que algo no cérebro é mais perigoso... Mas por que não
cair tentando?
— Você vai sair hoje.
Skip fez uma careta.
— Em casa com meus pais amorosos, de volta da fábrica pra onde
me mandaram pra consertar, com garantia. Como quando se tem
defeito e manda consertar. Se está torto, manda endireitar. Se está
bizarro, ferro nele.
— Mas você ainda tem uma força de vontade de lutar contra eles,
eu sinto.
— Eles ganharam uma coisa. Não quero transar com ninguém,
nem amar ninguém. Não sinto amor nenhum. Me sinto um grande
bloco de gelo.
Tony passou assobiando, a viu sentada na cama e entrou. Para
evitar o toque dele, ela se levantou.
— Se cuida, Skip.
— Eu quero me cuidar. — Sorriu sem alegria. Então ele deu um
selinho nela. — Você continua tentando. — Os lábios dele estavam
duros e frios. Envergonhada, ela retribuiu o beijo.
Tony fez barulhos obscenos de beijo.
— Vamos, chega. Sem contato pessoal. Eles te curaram de ser
bicha, mas você é louco de qualquer jeito!
Tão rápido quanto conseguia se mover com suas pernas
atrofiadas, seu corpo amortecido vivendo dias de tempestade, ela se
arrastou pela ala de volta para sua cama.
Domingo à noite Skip ainda não tinha voltado. Na segunda, o
boato corria tão rápido quanto um paciente conseguia sussurrar a
outro. No domingo de manhã cedo, Skip tinha cortado a garganta
com uma faca elétrica na cozinha da casa dos pais. Tinham
escondido as lâminas de barbear, calmantes, a aspirina, mas não
tinham pensado na faca elétrica de carne.
Sybil murmurou para Connie que tinha ouvido que o pai dele tinha
ficado irado com o dr. Redding e o chamado de charlatão. Eles
acharam inaceitável que o hospital mandasse Skip para casa para
se matar na cozinha deles.
Ela se levantou da cama e se moveu cuidadosamente pela ala,
com Sybil a seu lado. Os doutores Redding e Morgan tinham razão,
tinham curado Skip, ela pensou, lutando contra o corredor que se
movia. Antes ele só tinha sido capaz de tentar o suicídio, os gritos
de ajuda gravados no seu corpo. Eles o tinham curado da hesitação,
da indecisão. Eles o tinham ensinado a agir, o valor de uma morte
rápida e limpa.
CAPÍTULO 15

— Oxi! Cê é a alucina mais perfeita que eu já zoiei!


A mulher estava apoiada em uma cama cercada de espelhos —
espelhos no teto, na cabeceira da cama e de um dos lados.
Connie ficou parada no meio de um cômodo sem janelas, olhando
fixamente. Tinha tentado contactar Luciente muitas vezes, mas não
havia sentido sua presença o dia todo. Finalmente, numa fúria
persistente, havia se lançado para o futuro, exigindo que Luciente a
recebesse.
O cabelo da mulher, pontilhado de lilás e platinado, estava
arrumado em uma intrincada torre de cachos e pequenas presilhas,
pingando pérolas como um arranjo de casamento. Ela usava um
longo vestido de uma substância viscosa que mudava de cor
quando ela se movia e emitia um tilintar; era cortado na lateral e
tinha uns buracos aqui e ali, de forma que seus peitos e umbigo
apareciam vez ou outra. Quando Connie se materializou, a mulher
estava deitada numa pilha de travesseiros em forma de bola,
fumando um cachimbo e chupando o que pareciam ser
marshmallows laranjas de uma pequena vasilha sobre o cobertor
felpudo. O cômodo estava fresco pelo ar-condicionado.
— Alguém tá brincando comigo, mandando uma transmi particular.
Não acho nem um pouco engraçado. Quando eu descobri, cê vai
ver só! O Cash não vai deixar barato não! E ele tem meios pra
descobrir, sua trastelouca, seja lá quem for! — Ela pulou da cama e
ficou encarando Connie, tremendo de raiva. Elas tinham mais ou
menos o mesmo peso e altura, apesar de a mulher ser mais jovem e
seu corpo parecer uma mulher de desenho animado, com uma
cintura minúscula, peitos enormes e pontudos que se sobressaiam,
como os sutiãs que Connie tinha usado nos anos 1950, mas a
mulher não estava usando sutiã. Seu abdômen era liso, mas os
quadris e o bumbum eram enormes e audaciosamente curvilíneos.
Parecia que ela mal conseguiria andar pela exuberância de seus
peitos e bumbum. Suas coxas colidiram uma com a outra quando
deu alguns passos.
— Como que cê entrou aqui, de qualquer forma? Só as garota
contratada e os agente mediano se empilha nesse complexo. É
estritamente ésse e pê.
— Ésse e pê?
— Segregado e policiado; cê é desmentada? Como cê entrou
aqui, hein? — Ela caminhou de lá para cá com pezinhos
ridiculamente pequenos. Parecia que iria cair a qualquer minuto, os
pezinhos, tornozelos e pulsos minúsculos, a cintura minúscula, uma
Torre de Pisa sob uma cabecinha.
De alguma forma, Connie tinha ido parar no lugar errado. Ela tinha
errado Mattapoisett e tinha acertado em outro lugar no futuro.
— Talvez eu esteja no lugar errado, mas me deixaram entrar. Veja
por si mesma. Então onde estou?
— Eles nunca deixariam cê entrar, ahá! Ninguém acreditaria que
cê é uma contratada. Cê num fez seus primeiro enxerto. Se já fez
alguma opera-de-beleza, cê é revertida. Eles nunca deixariam cê
com essa pele e esse cabelo! Cê é tão escura... quer dizer, eu podia
ser confundida contigo no passado. Mas claro que eu fiz uma série
completa! Quando tinha quinze ano, fui selecionada, e ainda estou
tomandinjeções completas e nas reoperas.
— Pera, mas onde estou? Não é Mattapoisett, obviamente.
— Sua traste, cê tá em Noviorque, onde mais?
— Onde em Nova Iorque? — Ela procurou uma janela, mas não
tinha nenhuma. — Meu nome é Connie e eu lamento que tenha
entrado aqui por engano.
— Pode crê que cê lamenta. Sou contratada de um segurança
pessoal de quarto nível. — Ela bateu os cílios, que tinham uns dois
centímetros de comprimento, e esperou pelo resultado do seu
comentário. Seus olhos tinham a tendência de se fechar; as
pálpebras mal pareciam aguentar o peso. — Esse é o andar 168 e
Arquivo Geral, e esse plexo inteiro é reservado pras contratada e
pros agente mediano. Não tem ninguém além de agentes médico,
divogado, gente de segurança e transporte de nível médio. De
qualquer forma... — ela mexeu a cabeça com cuidado, enquanto a
torre de cabelo tremia —, sou Gildina 547-921-45-822-KBJ. É
melhor cê me dar uma explica de como entrou aqui ou vou bipar.
— Viagem no tempo. — Connie sorriu com sofisticação. Era quase
divertido. Ela imaginou como Luciente deve ter se sentido contando
a verdade inacreditável para ouvidos inocentes. Agora, ela era a
visitante de outro lugar. De alguma forma, conversar com Gildina era
um pouco como conversar com Dolly depois de ter tomado tina, e
um pouco como conversar com um poodle. — Tem um projeto,
sabe.
— Ah, é? — Gildina estava tentando decidir se deveria fingir
conhecer ou não. — Cash sabe dessas coisa, afinal, ele é quarto
nível. O que isso tem a ver com invadir o meu partamento?
— Algum problema de direção. Estou em 1976. Era pra eu chegar
aqui, mas não no seu apartamento, pode crer.
— Ah, cê é uma traste e parece ser velha também; deve de ter 25
ou 26 anos! É mulé também, mesmo se não foi operada. Nunca iam
te escolher pra viajar no tempo. Iam escolher um borgue ou um
assassino!
— Nasci em 1938. Quer ver meu RG? — Na verdade, é claro, ela
não estava com ele, estava lá no hospital.
— Que errê gê?
— O que você mostra, um cartão pra saberem quem você é.
— Mas todo mundo é implantado. Pra que eles ia querer saber
quem cê é se não sabem onde cê tá e como? — Gildina se atirou na
cama. — Talvez foi muita Êxtase. Eu viajo muito com Êxtase. Cash
diz que eu espremo até o bagaço. Mas me faz flutuar.
— Não sou uma alucinação — Connie sentia vontade de rir. Era
tão estranho assegurar outra pessoa disso. — Toca em mim!
— Não seja lesbinha. Você não tem contrato comigo.
— O que é um contrato?
— Talvez cê é de um passado remoto. Cê tá falando sério?
Ela fez que sim, sentando-se com cuidado num objeto redondo
que parecia cheio de ar.
— Todos agente faz contrato. Contrato de sexo. Quer dizer que cê
concorda em aturar por algum tempo e por algum valor. Sabe? Tipo,
eu tenho um contrato de dois anos. Algumas garota consegue o de
uma noite ou um mês, é o padrão. Cê pode ir pro olho da rua no fim
do mês com apenas um dia de aviso. Isso não é vida. Claro que de
vez em nunca alguma gostosona aparece e acaba com um contrato
de dez anos. Nunca conheci nenhuma, mas já ouvi falar.
— Mas e se você se cansar dele antes disso?
— Então ele pode me processar. Além do mais, num se pode sair
dum contrato a menos que te comprem a saída, ou que cê tenha
muito guardado, mas quem consegue tanto? Claro que se ele
quebra o contrato, a menos que ele prove negligência ou adultério,
então cê ferra ele e ele tem que pagar pelo menos o acordo. Meu
contrato não é só de sustento. Ganho o suficiente pra manter
minhas injeção e reopera e roupa e um pouquinho pra toda Êxtase e
outros estimulante que eu gosto de bagaçar.
— O que acontece quando o contrato acaba?
Gildina balançou os ombros nervosa.
— Às vezes, renovam. A primeira vez que eu tava num de um ano
fui renovada pelo agente. Ele era um transportador de entulho em
solo de nível baixo. Se te abandona, às vezes cê tem um
prospectante. Às vezes se vira nos de uma noite ou de fim de
semana até que aparece um prospectante. Mas isso te suga,
sempre se preocupando se vai acabar talvez num puteiro. Às vezes
cê não consegue manter os tratamento, então as chance de
conseguir sequer um agente de nível baixo é quase nenhuma.
— Você pode se casar?
— Ora essa. Você sabe que os ricaço casa do jeito antigo. Ouvi
dizer que isso é assim faz um monte de geração. Mas é desse jeito
aí que é pra gente.
— E se você tiver um bebê?
— Se tá no contrato. Nunca tive um contrato que pedia uma
criança. Geralmente as mamães que pare elas. Sabe, são
desmentada pra fazer bebês o tempo todo. Eca, são tão gordas!
— Mas e se você quiser um filho?
— O que eu ia fazer com um? Não daria pra morar aqui no Cash.
Ele não aguenta o barulho. Não consigo requisição de moradia.
Quem supunharia que uma contratada pode viver sozinha?
— E sua mãe?
— Ela foi pro Geri. Sabe, ela já tinha mais de quarenta anos! Eu
recebia umas transmis durante um ano mais ou menos, depois
parou faz tempo, então imagino que ela virou pó.
— Virou pó? Ela tá morta?
Gildina empalideceu.
— Olha o respeito! Do que cê tá falando? Não te ouvi. Lembra que
é da minha mãe que a gente tá suponhando.
— Mas quarenta anos... ela não era jovem?
— Ela devia ter uns quarenta e três. Quanto tempo cê acha que a
gente vive? Só os ricaço vive mais, tá nos gene deles. Como dizem,
tá tudo nos gene.
— Quanto tempo os ricaços vivem?
— Ah, uns duzentos anos. Depende de quanto eles pode gastar,
sabe, com os médico, os órgão. Nunca conheci nenhum de verdade,
claro, nunca saí da superfície...
— O que você quer dizer com sair da superfície?
— No andar de cima! As plataformas espaciais. Os ricaço num
vive aqui embaixo. Muito... espesso. O ar é espesso demais, dizem.
Não aqui, claro. Os agente médio e alto tão tudo em condicionados.
Mas cê tinha que ver onde eu nasci! Cê nasce tossindo e vai pro
Geri tossindo, dizem. Eu achava que o céu era amarelo até vir pra
cá. Agora sei que é azul-acinzentado, a cor mais linda. Pintei meu
cabelo dessa cor por alguns meses quando vim pra cá, eu era tão
bobinha... Mesmo cê parecendo uma traste, num é ruim de
conversar. É engraçado conversar com alguém durante o dia.
— Você não sai, nem amigos vêm visitar?
— Saí pra onde? Cash me tranca a maior parte do tempo, ele é
uma figura ciumenta. Faz parte de ser um segurança pessoal,
suponho. Ele num confia em ninguém. Além do mais, tenho tudo
que preciso aqui. Não se pode deixar o plexo, por causa de
segurança. Não seria seguro lá fora!
— Nem mesmo pra passear?
— Passear? — Gildina parecia envergonhada, como se ela tivesse
falado sobre fazer o número dois. — Sou nível médio, sabe?
Suponho que os trastes passeia. Não me lembraria, por mim
mesma.
— Trastes estão abaixo dos agentes de nível baixo? São os
pobres?
— É como se eles nem fosse pessoa. São uns adoentes, eles
tudo, banco de órgãos ambulantes, como Cash diz, e na metade
das vezes o fígado tá podre. É como se eles num servisse pra nada.
Quer dizer, alguns são nevrálgicos pra funções simples, mas eles
vive como animais lá fora, onde num tem condicionamento. Que
visão do inferno; se cê pudesse ver mais longe, não acaba nunca. É
sorte que cê não consegue enxergar mais do que alguns metro.
— Mas você não tem visita de nenhuma amiga? De um
apartamento pra outro?
— Pra quê? Tenho tudo que preciso. Você quer uma Êxtase? Ou o
que usa pra flutuar? Dá uma zoiada... Tenho uma seleção boa. —
Ela apontou para um distribuidor automático de pílulas ao lado da
cama.
— Drogas?
— Animadores, acalmadores, soníferos, acordadores,
euforiadores, pílulas de paixão, a coisa toda. Qual é seu veneno?
— Agora nada, obrigada. Estou tomando muitos ultimamente.
— Pra cê não se gastar, sabe? Umas reação mix? Cê tem que
conferir os combo no Digitablet. Tantas mulé se gasta porque não
confere. Quanto a mim, eu quase coraparei quando era criança. Só
leva uns minuto pra ver o Digitablet, né?
— Vocês não têm mais que ir ao médico pra conseguir remédio,
hein?
— Ir no médico? — De novo, Gildina parecia envergonhada. —
Sou só nível médio. Já fui pra uma clínica medimática, sabe, como
qualquer nível médio. Cê espera na fila e então fala com o
computador. Mas ver um médico? Bom, tem uns médicos de serviço
aqui que conserta as clínica medimática e os medirobô.
Supervisionam a extração de órgãos. Fazem as retirada e selam a
vácuo pra transportar lá pra cima. Mas eu nunca na verdade vi um
médico. São agente de nível alto e alguns até mora lá em cima.
Vemos muitos deles no HG, claro. Alguns dos meus programa
favorito são com médico. A luta contra senilidade. Avançando com
os limite da vida. Tudo isso. Mas eles tão ocupado demais
prolongando a vida pra ficar zanzando aqui embaixo, sabe?
— HG? Seria um... hológrafo? — Provavelmente tinham a mesma
coisa que chamavam de hologras em Mattapoisett. — De vez em
quando vocês têm rituais e histórias tridimensionais?
— Funciona vinte e quatro horas se cê assinar. Mas tem o Sente-
tudo. Tá vendo? — Gildina apontou para o que Connie achava que
era um secador de cabelo sofisticado preso sobre a cama. — Esse
é muito melhor. Se num custasse os rim, eu ficava nele o dia todo.
Mas o Cash já pegou no meu pé por causa da conta que fiz uns dois
mês atrás. É muito mais real. Porque cê fica dentro dele. Cê nunca
exprimentou?
— Nunca.
— Te convidaria, mas o Cash já tá no meu pé, como te falei. É
como sonhar, mas cê fica acordada e é muito divertido. Tipo, veja o
catálogo. — Gildina passou para ela um catálogo bem folheado do
Sente-tudo de setembro. Estava cheio de propagandas de
medicamentos e cosméticos e engenhocas, serviços e prostíbulos,
projetistas corporais, mecanismos de proteção. Aquilo não podia
existir simultaneamente a Mattapoisett. Não podia. Talvez essa
fosse a guerra que eles estavam lutando, e ela de alguma forma
estava no campo do inimigo. Ela se forçou a se acalmar, usando os
relaxacícios que Luciente tinha ensinado a ela, então deu uma
olhada no catálogo.
“Cachorro-quente: Enquanto o marido viaja, uma contratada
gostosa se diverte com um cachorro boxer. HD 5”.
“Tremores na plataforma Texaroyal: Um segurança pessoal nível
máximo vai atrás de um Assassino que matou o chefe dele. Outra
extravaga dirigida por Karanhão Mastur com harém de contratadas,
sanguetripas, muitas explôs e sexo lesbinho. FD 20”.
— O que é essa coisa de FD 20?
— Hora e preço, o que você suponhava?
Ela leu:
“Sorrinda 777: História de um amor que nunca aconteceria, entre
uma empregada de nível baixo do medimático e um médico a
serviço de uma família dona de armas nucleares. A lealdade, o
sofrimento, o amor brilhante: ela fará o sacrifício final dando o
coração pra substituir a distrofia coronária da contratada oficial
dele? FD 15”.
“Boa o suficiente pra comer: Gostosona nível máximo ignora os
aviso da família e foge pras terra do caos. Ela é capturada por
mutunas. Estupro em massa, tortura (close milimétrico com o Sente-
tudo completo). Melhor cena de canibalismo com closes inclusos.
DD 25”.
“Quando mulés se lançaram pra homens: Na época das revolta,
duas mulés liberta se encontram na batalha — kung fu, tai chi, judô,
luta greco. A mais forte estupra a mais fraca com um consolo.
Segurança pessoal macho chega zapando, luta com ambas (closes,
sanguetripas completo), estupro duplo, assassinato duplo. Sente-
tudo completo. HD 15”.
“Contrato nulo e inválido: Uma traste chantageia um técnico de
reopera pra fazer uma série de operas de beleza, começa uma
carreira de embaralhadora social de nível a nível (figurino por
Liguedjá, Sente-tudo completo), até que ela se apaixona por Dirk,
Assassino do espaçoporto do Golfo da Mobil. FD 15”.
— Homens e mulheres não mudaram muito — ela disse,
pensando na Times Square. Estava surpresa com o quanto aquela
possibilidade lhe parecia desanimadora.
— Então pra que sair? — Gildina continuou, quicando um pouco
na cama dela. — A menos que uma contratada desleixada com os
crédito dela queira emprestar o Sente-tudo dela. Tipo, o HG não é
ruim. Vejo muitas portage.
— Me mostra o resto do apartamento, sim?
— O resto? — Gildina parecia confusa. — Cê tá falando do
lavaco?
O banheiro era maior do que seria no tempo dela, com mais
aparelhos: aparelho para limpar os sapatos e o que provavelmente
era uma máquina de lavagem a seco. Não havia banheira, mas um
chuveiro com vários sprays de água que deviam atingir partes
diferentes do corpo, e um marcador para cronometrar a quantidade
de água usada. O chuveiro tinha uma luz desinfetante também,
além de bocais para saída de ar quente. O vaso sanitário era grande
e estiloso, mas ainda era só um vaso. Acima da cuba da pia, um
aparelho pendurado que secava o cabelo instantaneamente. Mas
não havia uma janela no banheiro.
Do outro lado do espelho que ficava perto da cama, as paredes
eram de um material rústico e o carpete era grosso e verde,
imitando grama. Ali ela finalmente viu uma janela. Estavam no nível
térreo, de onde se podia ver um lago com lanchas passando para lá
e para cá e muitas pessoas vestindo roupas de banho metálicas e
brilhantes, tomando sol e entrando e saindo da água.
— Tem um lago em Manhattan agora? Quer dizer, além do que
tem no Central Park?
— O que há cocê? Cê fala como uma traste das terra caótica.
Olha, é um quadro. Tem cinco imagem. — Ela apertou um
interruptor e a cena mudou para uma montanha com esquiadores e
buggies de neve super-rápidos passando pela neve e hovercrafts
brilhantes flutuando no ar. Gildina apertou o botão de novo e
homens vestidos em túnicas romanas começavam a perseguir
várias mulheres e puxar as roupas delas. Piscou de novo: combate
de espadas e fantasias medievais, com mãos sangrentas voando. A
última cena era uma manada de zebras pastando, enquanto alguns
leões espreitavam, mas havia algo errado, porque a velocidade
estava acelerada e as imagens pulavam. — Esse tá quebrado. —
Ela colocou de volta no lago.
— Você consegue mudar pra olhar pra fora? Adoraria ver como
Nova Iorque está agora.
— O que cê tem de errado? Pra fora onde?
— Isso não é uma janela?
— Janela? O que é isso?
— Vidro que permite você olhar pra fora.
— Como uma porta de visão? Tem uma no lounge. E na Praça do
Sol cê pode olhar ao redor. Tem vidro por todo lado. Na primeira
vez, fiquei muito tonta, queria segurar em algo. Todo aquele espaço.
Mas depois passou. Não queria que ficassem tititizando de mim
depois que sou uma traste que nunca viu o sol antes. Claro que
nunca saí no sol, me dava medo, mas fingi que ficava no sol todo
dia. Fiz um brozeá na minha última reopera, então, quem ia
perceber a diferença?
— A gente costumava ter janelas, todo mundo tinha. Era apenas
vidro pra deixar a luz entrar.
— Luz? Como? Do lado de fora? Ah, acho que quando cê sobe
bastante. Aqui é apenas o andar cento e vinte e seis. Mas mesmo
na Praça do Sol não tem nada pra ver além do sol, só se olhar direto
por muito tempo, aí começa a ver manchas engraçadas, só cinco ou
dez minutos. O céu é agradável quando cê se acostuma com ele,
com aquela maravilhosa cor cinza clara. Bem de vez em quando
uma nuvem verdadeira. Dá pra entrar nelas, verdade, e elas me
anima bastante. Mas se cê zoiar bastante, agentes vão pensar que
cê é nível baixo. Tem que fingir que elas são comiqueira.
— Não dá pra ver a cidade?
— Dá pra ver algumas torres do plexo. Mas não dá pra ver lá
embaixo nem muito longe. Como poderia? É espesso. O ar. Como
daria pra ver se tem ar na frente?
— Onde é sua cozinha?
— Hein?
— Onde você prepara a comida?
— Prepara? — Gildina a levou até um canto perto da porta de
saída, que parecia um caixa eletrônico. Não tinha nada naquele
canto que ela pudesse identificar como fogão ou geladeira. Uma
gaveta se abriu automaticamente quando ela pressionou um botão e
foram liberados uns pacotes transparentes que Gildina mostrou para
ela. Connie abriu um, que fez um barulho de ar entrando e foi se
misturando com a massa que tinha dentro do pacote. Ela ficou
surpresa de ver que estava quente.
Ao sinal de Gildina, ela experimentou a comida em um prato fino e
brilhante. A comida era bem temperada, mas não tinha gosto de
nada e era grudenta.
— O que é isso?
— Guloseima Vito jantar de presunto.
— Era pra isso ser presunto?
— O que é presunto? É só o nome do sabor.
— Mas não tem gosto de presunto.
— Presunto? — Gildina fez uma cara de quem não estava
entendendo. — Tudo vem em pacote. É feito de carvão, alga e uns
subproduto da madeira.
— Vocês são vegetarianos?
— O que é isso?
— Vocês só comem vegetais?
— Quem come genitais? — Gildina sibilou e saiu do canto irritada.
— Cê é uma trastezinha, então não vem me rebaixando.
— Coisas que nascem das plantas. Sabe, como cenouras e
ervilhas. Feijão. Milho.
Gildina deu de ombros, sacudindo a mão cheia de unhas longas
lilases e amarelas.
— Sei que os ricaços comem umas coisa estranha, meio que...
crua. Uns troço que vem, sabe, de coisa viva. Praticamente comem
isso cru. Não consigo suponhar que seja bom pra pessoa, nosso
estômago não é feito de Cibernall. Nunca comi nada dessas... coisa
estranha. Tá tentando me dizer que comeu comida de ricaço? Essas
coisa viva?
— Claro. Gente pobre não conseguia comprar muito, mas todo
mundo comia de vez em quando.
— Já tem problemas demais. Peguei malacose de cólon crônica e
Cash tem tumores ulcéricos. Não posso imaginar como os ricaço
sobrevive. Ouvi dizer que eles come tecido animal até. A ideia já me
faz passar mal. Quer dizer, só se for uma ideia sexual. Quer dizer, já
vi no Sente-tudo, mas não me fez flutuar.
— Bom, então de onde vem a comida?
Gildina deu de ombros.
— Tem nas terra caótica e nas fábrica-fazenda das grande
corporação. Elas fazem a mineração, você assina e é entregue toda
semana. — Gildina pegou o prato e os descartáveis dela e colocou
em uma caixa na parede, onde desapareceram na hora.
— Pra onde foram?
— Como vou suponhar isso? — Gildina pareceu chocada. — É um
serviço. Todos plexo de agente médio têm platões. Cê pega as coisa
limpa e coloca as coisa suja. Olha, vou te mostrar. — Ela deslizou
uma porta para abrir outro compartimento, mas nada aconteceu.
Então apertou um botão na parede novamente. — Duplo entrave. Tá
quebrado de novo. Espero que arrumem até a hora que o Cash
chegar em casa, só digo isso. Ah, bom, vou pedir pra ele me levar
pro mútuo no andar. Ou até no andar de cima, quem sabe, se ele
estiver numa vibe de gastar.
— Um restaurante? Um lugar onde as pessoas comem?
Gildina fez que sim.
— Mas se eu decidir fazer isso, preciso começar a prepa.
— Que hora ele chega em casa?
— Daqui umas duas hora, mas leva um tempo pra mostrar. A
pintura é o que conta.
— Você quer dizer maquiar seu rosto?
— Não, pintura das perna. Custa os rim, mas se você tenta fazer
sozinha, fica uma piada. Você tem que ir num artista de verdade.
Tem uma mulé nesse andar que faz pra mim mesmo de última hora.
Vou piscar uma transmi pra ela.
— Por que ela faz isso pra você?
— Ela me deve... Sei de umas coisinha sobre ela. Ela
desrespeitou um contrato. Ela tá na vibe da loucura, até pintou as
paredes, mas faz um bom trabalho baratin e sem marcar. Então eu
devo entregar ela pros banco de órgão? É de cair o silicone da
bunda! Dizem que os ricaço levam os artista que são muito bom
pras plataforma.
— Gildina, os ricaços, quem são eles de verdade?
— Os mesmo que na sua época, os Rockmellon, os Morganford,
os Duke-Pont. São antigo. Quer dizer, alguns estava vivo na sua
época, acredito, se cê for real. Espera até o Cash te zoiar. Ele vai
saber. — Gildina desfilou, sorrindo com afetação. — Ele tem CA,
você suponhava isso?
— O que é CA?
— Controle Apurado, coisa fina. Ele passou pelo controle mental.
Ele desliga medo e dor e cansaço e sono, como se tivesse um
botão. Ele é como um borgue, quase! Pode controlar as fibras na
medula espinhal, controla a temperatura corporal. É uma máquina
de lutar, como dizem. Eu num quis dizer um borgue de verdade,
mas tão bom quanto, se consegue sem engenharia genética nem
substituição de órgão. Ele ainda é um molenga; é assim que os
ricaço e os borgue chamam a gente que ainda tem tecido animal.
Mas é bem melhorado. Ele tem aqueles superneurotransmis prontos
pra liberar no cérebro dele que transformam ele num Assassino.
Quer dizer, nem tanto, ele é do quarto nível, mas é algo nessa linha,
se cê zoiar.
— Lembra, eu sou apenas uma traste do passado. Eles ainda não
me contaram um monte de coisas.
— Sim, a Era das Revolta e tudo aquilo. Antes de automatizarem
os campos, os velho país subdesceram, quando tinham todos
aqueles animal e planta inútil e as pessoa idiota e coisa assim.
— Mas quem são os Assassinos?
— Oxi! Não se fala sobre eles. — Gildina olhou em volta. — Claro
que somos monitorada como todo mundo, então o CS sabe que
estou conversando com você. Então se eu estiver fazendo algo tipo
errado, eles vão parar a gente.
— Monitoradas?
— Pelo CentroSegur daqui, quem mais? Por atos biversivo e
conversa. Eles te prendem e colocam um escani pra saber o que cê
tá pensando quando responde, mesmo se cê não falar, só pelos
impulso elétrico no cérebro. Cê não pode mentir pra eles, a menos
que seja um SD treinado ou um Assassino. Esses trabalham pros
ricaço. É assim que eles lidam um com outro quando têm
desavença. Todo clã de ricaço e toda multi têm exército de lutador
geneticamente projetado. Em vez de impulso sexual, eles têm uma
pulsão básica de matar e um centro de obediência. Cê não
consegue entender exatamente o que são: alguns são molenga
geneticamente especializado. Outros são borgue de verdade, sem
tecido animal, completamente melhorado.
A porta se abriu de repente com um barulho de ar e um homem
entrou correndo. Ele tinha quase dois metros de altura, era
completamente imberbe no que ela podia observar. Usava um
uniforme cinza-azulado e a voz dele enquanto gritava era
extremamente profunda, para além do alcance humano comum,
com algumas vibrações que faziam seu estômago se contrair. O
medo a agarrou pela barriga. Ela teve de fazer os relaxacícios que
Luciente havia lhe ensinado, tomando consciência da sua
respiração para relaxar.
— Quem é você? Permaneça parada. Responda corretamente.
— Meu nome é Connie e estou viajando no tempo. Acho que
vocês estavam nos ouvindo.
— Não existe viagem no tempo. Cê será escaneada e será selada
aqui novamente — o homem disse a Gildina. — Vamos lidar cocê
mais tarde. Ela é uma traste, mas cê conversou com ela por uma
hora.
Gildina começou a gaguejar.
— Bom, como que ela entrou aqui se cês não deixaram? Pensei
que fosse um projeto especial. Todo mundo antes da grande cisão
era traste ou molenga. Todo mundo sabe disso! Como ela conseguiu
entrar se cês não deixaram?
— Isso não é problema seu. Cê vai pros banco de órgão agora —
ele disse com um brilho estranho nos olhos e com a voz profunda
artificial. — Você, venha. — A mão dele machucou o braço de
Connie em um aperto doloroso.
— Só posso ficar aqui através dela. Gildina tem um poder mental
especial, mesmo que ela não saiba disso.
— Incorreto. Ela nasceu uma traste. Ela é apenas uma contratada
construída. Todos os traste têm deficiência mental por falta de
proteína no feto e na primeira infância. As proteína de metabolismo
de ferro são de menos quarenta até menos quinze. Suas leitura
psico mostram menos vinte e cinco. Ela não tem capacidade mental
maior que um macaco geneticamente melhorado.
— Ainda assim, ela é receptiva. Acho que não mediram isso! Eu
me liguei a ela. Quebre o meu contato com ela e eu desapareço. —
Era maravilhoso se sentir tão confiante diante de um tipo de policial.
Era isso que ele era, um superpolicial, com um cinto de armas na
cintura e uma mão modificada em forma de arma.
— Quando terminarmos de brincar cocê, cê vai desejar ter
desaparecido mesmo. E então cê vai sumir. — Um sorriso de dentes
brancos brilhantes, mais brilhantes que azulejos de banheiro
polidos. — Ela é só uma chica, como cê parece ser.
Cosmeticamente arrumada pra uso sexual. Igual a gente encontra
em qualquer puteiro.
— Como cê sabe? — Gildina se exaltou numa fúria impotente e
agitada. — O que cê faria em um puteiro? Nem tem o equipamento.
— Sem apêndice também. — O guarda deu seu sorriso sem
alegria, branco e brilhante. — Por isso não precisamos de muitas de
cês, puta inútil de agora em diante. Nada desessencial. Puros,
funcionais, confiáveis. Damos corpo ao ideal. Podemos ser
destruídos, não por trastes, mas nunca bivertidos, nunca desviados,
nunca distraídos. Nenhum de nós nunca foi desleal à multi que nos
possui.
— O que é uma multi? — Connie perguntou.
Ele pareceu chocado, sério.
— A multi é tudo.
— Mas o que significa a palavra “multi”?
— O que ela representa — ele disse laconicamente.
— Como se fossem estados, nações?
— Isso era antes — Gildina disse. — Multis são dona de todo
mundo...
— Era irracional — o guarda falou. — Jurisdições sobrepostas.
Agora todos pertencemos ao corpo corporativo. Multis. Como essa
contratada, que logo vai ser desmontada pelo banco de órgãos,
pertenço à Chase-World-TT. — Ele fez uma breve reverência. Então
a cabeça dele se mexeu para o alto, apertou os olhos. — Por que cê
não tem medo?
Connie tentava libertar seu braço sem sucesso. O aperto metálico
dele penetrava sua pele.
— Como sabe que não estou com medo?
— Meus mecanismo sensor monitora suas reação. Eu regis
adrenalina, mas nenhum envolvimento do sistema nervoso
simpático. Sente raiva e não medo?! — A mão intensificou a
pressão. — Uma traste não reage assim, ainda mais depois da
desmentação e da modifi comportamental. Cê não tem implante de
monitoramento. Tá tomando alguma droga que não consigo sondar?
Não é aceticolina. Algo tá errado. Cê mantém contato visual,
diferente de uma mulé. Todos os traste são cerebralmente lesionado
e modifido. Portanto, cê tá apenas disfarçada de traste! — Sua outra
mão se movimentou em direção ao cinto.
Ela achou melhor desaparecer. Fechando os olhos, se soltou de
Gildina e tentou partir. Mas o aperto dele ainda se mantinha no seu
braço. Vamos, vamos! Ela forçou a mente a ir além do aperto
metálico. Ela fixou o pensamento na cama dela — quem diria que
chamaria o leito do hospital de cama dela! Então se atirou ao
passado e a pressão começou a desaparecer.
Tonta, suando por todos os poros, ela ficou deitada na cama. Sybil,
Tina e Valente estavam debruçadas sobre ela. Seu braço doía. A
cabeça doía terrivelmente. Ela estava sendo punida pela raiva que
tinha sentido; aquela coisa na cabeça dela a estava punindo com
uma dor insuportável e com jatos daquela droga estupidificante.
Sentia que sua cabeça iria se abrir no meio como um coco quebrado
por um martelo. Podia até sentir a linha onde o crânio estava
prestes a rachar.
Ela não conseguia falar com eles, mas, vendo que estava
consciente, Valente saiu. Connie piscou para Tina e Sybil então, que
a encaravam, confusas, mas aliviadas. Connie teve de ficar deitada,
respirar profundamente e relaxar. Então aquele era o outro mundo
que podia vir a ser. Aquela era a guerra de Luciente, e Connie
estava se alistando nela.
CAPÍTULO 16

Connie era um objeto. Ela ia aonde a colocavam e ficava lá. Ouviu


Acker dizer “passivo-agressiva” para a namorada, a srta. Moynihan.
“Exatamente”, pensou. “Você sacou, barbudinho, agora foge com
essa”. Ela não se levantava até a levantarem. Só comia se a
alimentavam. Ela se sentava numa cadeira quando colocada lá e só
se levantava quando a puxavam.
Apesar de ter ficado orgulhosa por ter viajado no tempo sozinha,
estava com medo de tentar de novo. Ela não queria terminar
naquele outro futuro. A todo momento, a droga vazando em seu
cérebro a obstruía, deixando-a mais lenta, e quando ela ficava com
raiva, sua mente a desligava. Alguma coisa dentro dela doía; uma
ansiedade medonha que vinha do nada a fazia ter uma pequena
convulsão e ela precisava ficar um tempo parada. Enquanto isso,
observava disfarçadamente a ala e aprendia o que podia sobre o
hospital.
Ela se sentia distante da própria vida, como se tivesse terminado
com o implante da sonda de microdiálise. Não conseguia retomar
sua vida, portanto, não havia mais Connie. Mesmo assim, seguia
vivendo. Ela se mantinha parada, desconectada, alerta, meditando
dentro da letargia das drogas. Tinha parado de fumar. Pela primeira
vez na vida tinha parado de fumar. A vontade de um cigarro era a
comichão que tinha sobrado de ser Connie. Pelo menos ela
balançava a poeira no deserto das horas, aquela velha comichão.
Ela não fazia ideia de quando Dolly iria aparecer. Várias vezes sua
sobrinha tinha prometido que viria, mas nunca aparecia, e então,
sem aviso, ela surgia, brilhante como um periquito, muito bem-
vestida e com o cabelo naquele ruivo espalhafatoso, de óculos
escuros e as mãos molhadas pela transpiração de ter tomado tina. A
equipe encorajava Dolly a vir porque, com ela, Connie conversava.
Dolly dava algum dinheiro, mas não trazia a Nita. Quando
perguntava sobre Nita, as respostas de Dolly eram vagas.
— Ela está bem, está ótima. Tudo bem.
O aniversário de Nita estava chegando, quinze de outubro. Connie
implorou que Dolly comprasse um presente para ela. Alguma coisa
preciosa. Chinelinhos lindos com coelhinhos, um animal macio com
bastante pelúcia. Dolly prometia, mas Connie não tinha como
obrigá-la. Na próxima vez em que Dolly apareceu, disse que Nita
tinha tido um aniversário adorável. Mamá tinha feito uma festa para
ela com bolo e velas e sorvete. Então Carmel ainda estava com
Nita.
A língua de Connie falou, antes que ela pudesse pará-la:
— Dolly, é você que precisa da Nita. Claro, sua mamá toma conta
dela direitinho, mas você precisa dela com você. Sem ela, você não
se ama. Você se usa como pano de chão pra limpar a rua. Você
transforma seu corpo em dinheiro, e o dinheiro vira um anúncio de
morte na sua cabeça.
— Eu estou bem, Connie, bem de verdade. Olha, papai e Adele
disseram que vão vir ver você. Que tal isso?
— Sem dúvida. No dia que chover dinheiro no Harlem.
— Fíjate, te trouxe um perfume. E aqui, pra você tomar um café,
alguma coisa da lanchonete. — Dolly beijou a bochecha dela e
apertou uma nota toda dobradinha na sua palma. — Cheira o
perfume, é produto original. Colônia da Arpège. Bom, hein? Veio
num kit com o perfume. Espirra um pouco agora. Bom? Você fica
com cheiro de rosas. Eu fico com o perfume, você não iria poder
ficar, o pessoal ia fazer sumir. Um cliente me deu. Ele tem uma
farmácia em Teaneck, disse que é o gerente.
— Dolly, você está tão magra. Está comendo?
— Você perdeu peso também. Nós duas. Dando um jeito no seu
cabelo onde eu arrumo o meu você vai parecer dez anos mais nova,
Connie. Vou te levar lá quando sair. Cabelo bem curto está na
moda. Eu estou me enchendo de dinheiro, você vai ver. Você gosta
do Arpège? É bom ser magra, tão chique. — Falou de modo
afetado. — Quando você sair, vai estar melhor e vai conseguir um
homem rapidinho. Mas essa peruca é péssima! Como eles te dão
uma peruca dessas? Vou comprar uma boa pra você, com cabelo
humano.
— Dolly, não esquenta com a peruca. Por favor, me tira daqui!
Deixa eu ir visitar você.
— Ok, Connie, não se preocupa. Você vai ficar ótima depois de ir
no meu cabeleireiro. É bom que você perdeu peso sem nem
precisar tomar remédio! Mas a peruca faz você parecer uma jíbara!
Vou te conseguir uma peruca melhor e você não vai sentir vergonha.
— Dolly a beijou. — Tinha algo pra te dar. O que era? Um perfume...
Os braços dela, onde Dolly tinha espirrado a colônia, cheiravam
igual à assistente social dela, a sra. Polcari. Talvez ela tivesse tido
uma leve atração pela sra. Polcari, ao mesmo tempo em que se
ressentia da juventude dela, apesar de terem a mesma idade, pelo
trabalho, pelo dinheiro, pelo lar, pelas crianças, por seu modo de
agir sempre gentil, mas firme e correta. Ela se sentiu sofisticada
pensando na sua assistente social; influência de Luciente. Talvez ela
tivesse desejado comer a sra. Polcari com uma colher longa, como
um sundae, um sundae de abacaxi com chantily e uma cereja. Isso
lá atrás na vida dela, antes que a tivessem transformado em um
monstro.
Vamos supor que dissessem que ela poderia trocar de vida com
alguém. Quem iria querer a dela? Somente alguém como o dr.
Redding a compraria em um leilão, dúzia vendida barata junto com
quinhentos chimpanzés. Agora ela era um chimpanzé com cheiro de
Arpège. Provavelmente a colônia era roubada. Apesar de ser uma
ala fechada, pessoas entravam e saíam o dia todo — os médicos e
pesquisadores, além da equipe, enfermeiros, auxiliares e voluntários
que andavam pelo hospital inteiro, estudantes, pós-graduandos,
residentes, estagiários, o chefe de residência, o diretor assistente de
pesquisa de Argent, os visitantes dos pacientes, os técnicos, até
mesmo uma paciente de outra ala que entrava rapidamente e falava
de forma atropelada para Tina que estava morrendo de câncer e
que ninguém acreditava nela.
Um molusco numa cadeira verde. Ela se sentava na sala comum,
imóvel, e todas as fofocas da ala atravessavam sua mente dolorida.
Em algum lugar desse conjunto de porções triviais de bobagens que
fediam a camarão podre e repolho escurecido deveria haver alguma
pista de como ela poderia se encontrar de novo, como lutar. Ela se
sentou, encarando a placa de bronze na parede que dizia que a ala
era dedicada à sra. John Sturgiss Baylor. Baylor era o nome do meio
do dr. Argent. Na verdade, era a mãe dele, Valente dissera. A
primeira esposa dele já tinha morrido também, e a segunda, Elinor,
estava com quase quarenta anos — uma mulher cordial e bonita
que parecia estranhamente transparente. Connie nunca conseguia
se lembrar, entre uma aparição dela e outra, como ela era. Parecia
completamente bege e cor de mel, e vinha caminhando pela ala
para alguma consulta rápida com o dr. Argent, dando passos largos
como se cruzasse uma quadra de tênis, sem olhar para ninguém,
alegre na medida e indiferente a todos eles. Ela era a única esposa
que vinha ao hospital. Estava em algum comitê que tinha a ver com
a captação de recursos e organização dos voluntários. Finalmente,
depois de um certo tempo, ela começou a falar com o dr. Redding
quando se encontrava com ele, abrindo um sorriso medido, mas
nunca cumprimentava o dr. Morgan.
O dr. Morgan tinha se casado com uma enfermeira que ficava em
casa com os filhos em Rye. A enfermeira Roditis gostava dela e
tinha longas conversas por telefone sobre o dr. Morgan e o humor
dele e suas vaidades, e se ele estava ou não tendo um caso com a
secretária da ala, Pauline. Connie achava difícil imaginar o dr.
Morgan tendo um caso com qualquer um, mas parecia que ele era,
frequente, apesar de inexpressivamente, infiel, como se fosse um
tique nervoso.
Mas os pacientes e a equipe não tinham fofocas sobre o dr.
Redding, que tinha quatro filhos e sempre foi casado com a mesma
mulher, que ninguém nunca tinha visto. Sabia-se mais dos filhos,
porque ele falava deles. Chaz Jr. estava fazendo residência em
urologia. Betsey, casada e grávida. John estudava física. Por Karen,
a mais nova, ele tinha um pouco de ranço. Disse que ela era
mimada e que ele a fez ir a um psiquiatra. Ela tinha fugido de casa,
da escola e dele.
Pacientes e equipe falavam sobre os médicos constantemente.
Para que servia aquela fofocaiada toda no café? Sabiam que a
família de Redding tinha uma casa para esquiar e outra em
Vermont, para o verão, e todo mundo ia para lá e voltava, menos
ele. Sabiam que o dr. Argent era da igreja episcopal e estava
sempre correndo para algum banquete ou jantar beneficente para
um senador ou um casamento que iria aparecer em revistas. Elinor
não gostava dos verões em Nova Iorque, nem dos invernos, e
Redding achava que Argent tirava férias demais.
Redding queria que o Argent o convidasse para a reunião anual,
uma porção de homens que iam para a cabana de caça da família
dele em Adirondacks, para atirar em pássaros ou veados ou o que
quer que fosse. Redding queria ir não porque gostava de atirar em
coisas — ele não parecia gostar de nada além do trabalho —, mas
por causa dos homens que estariam lá, atirando e bebendo. Morgan
admirava e invejava Redding, assim como Redding invejava, mas
não admirava Argent. Morgan era um homem nervoso e vil, que se
apegava às regras no trabalho, amava os procedimentos e
metodologias e todas essas palavras. Redding amava o poder e o
sentimento de sucesso. Ele dizia que o Argent gostava demais de
ser um figurão. Connie não fazia ideia do que o dr. Argent poderia
gostar, mas ele estava nervoso agora, prestes a se aposentar e a
levar algum prêmio final. Redding tinha uma úlcera, Argent tinha um
problema cardíaco e Morgan mentia para a esposa sobre onde
passava suas noites.
Terça, quando ela estava sendo levada ao banheiro, de repente
sentiu Luciente em si como um grito. Luciente chegou a ela como
uma ferida se abrindo que a derrubou no chão da ala. Então se foi.
Ainda assim ela sentia uma pós-aura da presença dela. Sabia que a
amiga tinha estado ali, como um relâmpago, e então desaparecido.
O auxiliar a pegou do chão.
Depois do jantar, ela se deitou enquanto os outros pacientes ainda
se moviam e conversavam, enquanto as luzes ainda estavam
acesas na ala toda, enquanto as risadas no aparelho de tv soavam
como pinos de boliche caindo. Ela e Eddie tinham morado primeiro
ao lado de um boliche no Bronx, uns vinte quarteirões do
apartamento e do salão de beleza da Carmel. Ela tinha morado ali
quando estava grávida: ela se lembrava de se deitar na cama e
ouvir os ruídos surdos como trovões que vinham do boliche pela
parede... Sentiu Luciente se aproximando de novo. De novo era
uma aproximação descuidada e irracional, cheia de dor, e ela quase
resistiu com medo, mas o que ela poderia temer de Luciente?
Alguma coisa devia estar errada. Ela tinha de descobrir. Connie se
deixou levar pela onda de dor, indo além, e se viu abraçando
Luciente. Seu rosto estava marcado de lágrimas, retorcido pela
agonia.
— O que há de errado? O que foi?
— Morreu!
— Quem? Quem morreu?
— Lebre — Abelha disse atrás dela, colocando sua mãozona em
seu ombro.
— Você soube hoje? — Connie perguntou. — Foi quando senti
sua presença na minha mente por um momento?
— Não sabia que tinha tocado sua mente — Luciente gemeu com
uma voz baixa e cansada. — Eu fiz isso agora porque Abelha
sugeriu que você talvez quisesse vir pro funeral. — Gentilmente
Luciente se desvencilhou e ficou de lado, os ombros caídos.
Ela tocou a bochecha de Luciente.
— Estou feliz que você me buscou. Sim, quero estar com vocês.
— Sentimo que você é família — Abelha disse. — Pensamo que
você poderia compartilhar, se quisesse.
— Soube hoje — Luciente falou, e começou a chorar novamente.
— Aconteceu ontem. — Ela se virou, tremendo. As mãos dela
arranharam o ar. Suas costas se arquearam e pareceram
desmoronar. Abelha a segurou. Ela bateu nele, se contorceu, se
virou e o agarrou, apertando o rosto contra o peito dele.
Abelha abraçou Luciente até ela parar de tremer e então
começaram a andar, o braço dele dando suporte a ela.
— Venha. Pra casa de reuniões. O funeral vai começar.
— Ele está... vocês têm o corpo?
— Sim, Lebre foi trazide por mergulhão hoje de tarde e preparamo
o corpo. Membres, nós choramo Lebre agora de tarde. Agora é hora
de todo mundo.
O cômodo estava redondo e tinha metade do tamanho de quando
ela foi ver o hologra. A maioria dos jovens estava sentada em
tapetes, cobertores, almofadas no chão, enquanto os mais velhos se
sentavam em cadeiras. Estava cheio na hora que entraram e foram
ao centro do círculo onde Bolívar estava sentado no chão, ao lado
do corpo, com as costas parecendo um mastro. Lebre jazia numa
prancha em cima de cavaletes com um cobertor de azul claro e
escuro jogado sobre ele, com estampas de lebres e samambaias.
Só aparecia sua cabeça. Seus olhos tinham sido fechados e em seu
rosto havia uma careta estranha, mas era ele, obviamente;
obviamente Lebre, obviamente morto. Ele parecia mais morto que
os corpos embalsamados do seu próprio tempo, sua mãe maquiada
de forma berrante como uma puta na funerária, uma maquiagem
chocante.
Havia globos de luz fixos perto de sua cabeça e dos pés. À sua
volta estavam vários objetos como arranjos de uma oferenda infantil:
botas gastas, roupas, um boné de couro, um chapéu de palha largo
cujo padrão de entrelaçamento formava um emblema de gaivota,
desenhos, um canivete, pilhas de papel e de cartuchos
cuidadosamente organizados, cubos brilhantes, um travesseiro, um
poncho de lã, uma fivela entalhada num cinto de couro usado,
alguns livros, cartas, um anel com uma pedra amarela. Pelo que ela
sabia de Mattapoisett, adivinhou que olhava para todos os bens
materiais de Lebre, arrumados ao redor dele naquele ambiente mal
iluminado.
A família toda dela tinha se reunido no círculo mais interior:
Luciente, Abelha, Barbarossa, Estrela da Manhã, Sojourner, Gavião,
Alvorada, Lontra, Luxemburgo, todo mundo exceto o bebê de
Barbarossa. Ela sentia uma tontura estranha, como se o seu mundo
interno tivesse sofrido um terremoto. O que queria dizer ela chamar
aquelas pessoas de família? Bom, algo agradável. Eles a tinham
chamado para compartilhar sua dor. Eles eram a família mais
próxima que ela tinha agora.
Todos à sua volta estavam usando aquelas túnicas cerimoniais,
vestidos longos. Bolívar, dois outros jovens, três de meia idade e
uma pessoa bem velha sentavam-se no círculo interior dos
enlutados. Algumas pessoas começaram a servir café em canecas
de cerâmica. Estrela Vermelha, a mecânica de cabelo amarelo,
colocou café quente e saboroso para eles antes de servi-lo aos
outros e voltou depois que todos tinham sido servidos para quem
quisesse mais.
— Não estou vestida apropriadamente. Minha camisola... —
Connie murmurou.
Bolívar sacou da pilha ao lado do corpo um vestido largo e a
ajudou a passá-lo por sua cabeça. Era longo demais para andar,
mas para ficar sentada estava bom. — Pessoa retirou pra usar
numa cerimônia que apresentamo na vila de Red Hanrahan mês
passado e se esqueceu de devolver o traje depois. Pessoa era tão
descuidada geralmente. — Ele falou de forma monótona, com o
rosto manchado e tenso.
— Ah, Bolívar. Essa é sua segunda perda. Sua mãe Safo e agora
Lebre — Luciente disse. Ela andou até ele, tocou sua testa com a
dela. — Bolívar, você está se acostumando com o pesar, e sua dor
deve ser enorme, relembrando a dor antiga que ainda não se
gastou.
— Ninguém se acostuma com o pesar. Ainda me sinto
entorpecide.
— Antes de a noite acabar, sua dor vai afrouxar e diminuir. —
Erzulia falou, vestindo uma túnica azul celeste. — Estou pronte pra
dirigir o ritual. Bolívar, você e Lebre fizeram hologras tão boas aqui.
Muitas vezes vocês nos deram prazer e a cura de conflitos, limando
as arestas duras, a visão que nos arrebatava e nos carregava.
Espero que a gente seja capaz de te ajudar a atravessar essa noite.
Todes amigues doces e amigues de trabalho, colegas de base e
família e membres. Vamo tentar fazer a transição de Lebre linda
como pessoa fez outras devoluções. Começamo agora. Vai ser feito
com verdade e beleza e gentileza. — Nessa última frase, a voz dela
ressoou e, por um momento, coloriu o ar e se susteve ali. — Vamo
falar agora e relembrar nosse amigue. Vamo falar do bem e do mal
que Lebre fez. Vamo lembrar juntes de Lebre.
Uma garota ficou de pé e começou a cantar:
Uma mão no meu ombro.
Me viro ao vento.
Nos caminhos te vejo andar.
Quando te alcanço
Pessoa usa outro rosto.
Nos sonhos, toco sua boca.
Quando amigues recentes perguntam da minha vida
Falo de você
E palavras viram cascalhos
Na minha língua.
Me distancio deles
Vou ao vento...
Connie mal pôde ouvir o final, porque a garota estava chorando
quando terminou.
— Lebre era meu ensinante. Me sentia tão próxime dissôa! Tive
raiva quando foi defender enquanto eu estava aprendendo em
torrentes.
Luciente começou a chorar de novo, mas Bolívar estava sentado
como um espantalho, suas sardas mantendo toda a cor do rosto
para si, enquanto o resto estava pálido.
— Sou Artur de Ribble, uma vila de Lancashire em Fall River. —
Uma pessoa corpulenta e quarentona com o cabelo claro e curto se
levantou. — Lebre foi criança minha. Me deu alegria e muito
trabalho. Pessoa corria nas sete direções dos cinco anos em diante.
Quanta beleza. Que pilha de começos! Lebre queria fazer tudo.
Pessoa não conseguia, não queria escolher. Em vez, Lebre
começava a tecer um tapete, iniciava um experimento genético
complicado, começava a estudar aranhas, começava a esmaltar um
postérico, queria aprender como hologras funcionavam, iniciava
aulas de cartografia, tudo em uma semana. Um mês depois, o
tapete seria um belo fragmento, o postérico estaria só metade
pintado e abandonado, pessoa sabia um pouquinho sobre aranhas,
algo mais sobre o funcionamento de hologras, teria tido três aulas
de cartografia e teria abandonado o experimento de genética na
terceira geração de moscas de frutas. Pessoa me deixava maluque!
Eu gritava e vociferava e minha criança amuava e silenciava. Mas
pessoa me perdoava; sim, essa é a forma de corporificar isso. Numa
alegria ensolarada, minha criança me perdoava e vinha me contar
como pessoa, que então se chamava Peônia, queria aprender a
teoria do poder eólico, construir um moinho, aprender litografia,
estudar japonês e anatomia de vertebrados. Eu convencia Peônia a
escolher alguma coisa. Muita pressão. Eu cansava só de ouvir. Não
conseguia compreender que essa tentativa de assuntos e papéis
era aprendizado também. Quando Peônia começou a considerar
seriamente fazer mergulho, obriguei pessoa a fazer um comprô.
Obsequei Peônia a ter vergonha do avoamento, que era curiosidade
excessiva. Não fiz isso sozinhe. Outres reagiram da mesma forma,
inclusive pessoa que dirigia a casa das crianças. — Arthur se
sentou.
A idosa se levantou, ainda com boa constituição, com um corpo
desproporcional e triangular, que destacava a cabeça cujos cabelos
cor de ferro cinzento estavam amarrados em um nó.
— Me tornei mãe de Peônia quando criança tinha oito anos.
Peônia conflitava com mãe original dissôa, Elima. Elima se sentia
sobrecarregade pela energia de Peônia e começou de verdade a
desgostar da criança dissôa. Então Peônia e Elima levaram o
cofuzum pro conselho. Sou criançavinculadeire de idade e me
expressei e disse que me daria asas ter Peônia como minha
criança. Já era de idade naquela época. Agora tenho setenta e
nove. Na nossa vila não é comum pessoas com mais de sessenta
maternarem, mas Peônia gostou da ideia.
Arthur falou de novo, sorrindo:
— Peônia pulou pra cima e pra baixo, gritando “Sim, Cavalo Louco
está do meu lado!”.
— Sou camarade de idade, dure e cínique. Passei dez anos na
guerra. Andei por todo lado na América Latina trabalhando com as
reparações. Estava em uma das equipes que trabalhou nos
detalhes, nos primeiros dias quando ainda havia doenças
endêmicas descontroladas. Por um ano depois daquilo eu não podia
digerir gordura. Não me instalei em Fall River até os meus cinquenta
e cinco anos. Tinha tido uma criança aos quinze anos, nascida do
meu próprio corpo, e vi minha criança morrer de tularemia17 quando
eles soltaram as pragas na gente... Peônia... Lebre era como vinho
pra mim. Não se importava com certo e errado. Eu entendi que se
cresce pelas coisas. Ainda me lembro de ser voraz quando era
criança, sempre voraz... Que criança linda pessoa era, estabanade,
pernas longas, desajeitade, mas vivaz e desejante em trazer alegria.
Tive apenas três anos de maternação, mas três anos que amei. Não
me importava caspas nenhuma se Peônia era irresponsável. Cada
um de nós controlava Peônia de jeitos opostos. Não é à toa que
pessoa enlouqueceu na nomeação. Eu devorava cada brincadeira
como doce e Arthur aqui estava levando o lado mais certinho e
estreito...
— E a terceira mãe? — Abelha perguntou.
— Agora no Oregon. Gentil, silente. Não podia consertar Peônia,
com todo nosso empurra e puxa — Cavalo Doido falou. — Ainda
assim, Lebre cresceu forte; tempos difíceis balançam bem o corpo.
Nunca conheci uma criança de que eu gostasse tanto.
Arthur balançou a cabeça.
— Lebre costumava passar pra ver Cavalo Doido quando pessoa
trabalhava perto de nós, e conversávamo. Até no ano passado a
gente estava discutindo. De alguma forma, a gente nunca deixava
de discutir. Amei Lebre, mas acho que devo ter passado noventa por
cento do tempo insistindo que pessoa estava sempre errada.
Cortando, limitando. — Arthur sentou-se de supetão e assoou o
nariz num lenço grande e laranja.
No fundo, alguém se levantou para tocar uma melodia triste na
flauta. A pessoa com a flauta tocou por cerca de dez minutos e foi
acompanhada por um violão, um instrumento estridente e um
tambor. Quando os outros tinham parado, o violão tocou uma
canção a qual se juntaram várias vozes abafadas que as pessoas
faziam quando não estavam tentando cantar em uníssono:
Me sinto como grama seca
Afagada pelo vento, pelo vento.
Me sinto como grama velha
Jardinada pelo vento salgado
As marés invadem o charco,
A água sobe,
A água desce
Mas a velha grama quebra
Finalmente ao vento.
Depois que o canto feneceu em silêncio e eles ficaram sentados
por um instante, Carvalho Branco se levantou.
— Vim pra cá catorze anos atrás pra trabalhar na base de genética
de plantas que estava se firmando. Lebre e eu ficamo amigues
depois de seismês que pessoa chegou aqui pra ficar com Bolívar.
Lebre comeu com a gente por um tempo, pra decidir com que
família ia ficar. O que compartilhamo em particular foi um amor pelo
mar. O que quero contar é algo que aconteceu dois... não, três anos
atrás. Então, vocês sabem que meu amor por Susan-B não foi bom.
Nunca equilibrado. Todes critamo sôa e tentamo, mas nunca
decolou e sempre me senti em desvalor no fim. Susan-B se foi e
confesso que é mais fácil agora com sôa vivendo em Portsmouth.
Por um tempo, não quis ser amante de ninguém, esperando que
Susan-B quisesse ficar tão próxime de mim quanto eu queria estar
dissôa. Uma longa tristeza. Quando Susan-B se foi, tive que lidar
com o fracasso de toda a longa luta. Me silenciei mais, trabalhei
bastante...
— Clarquessim, dia e noite — Abelha falou. — Você coordenou e
fez o trabalho por três.
— Temia intimidades. Minha família sugeriu curandeire, mas eu
era muito orgulhose. Intão, um dia Lebre e eu pegamo o barco verde
e passamo a tarde toda e a noite na baía. Foi gostoso, o vento, o
sal, a água. Me senti em distensão. Não tinha tirado um dia de folga
em meses. Sei que Lebre sentiu meu humor, porque pessoa podia
captar mudanças facilmente. Portas abrindo, portas fechando. Todo
mundo tinha comido. Caçamo algumas sobras e Lebre veio comigo
pro meu espaço... Quão fácil e sedutore pessoa conseguia ser. Sem
decidir bem, ainda me dirigindo a Lebre na minha mente como se
pessoa fosse meio criança, acabamo casalando naquela noite.
Depois, tentei achar o velho nó, mas ele tinha derretido. Sobrou a
sensação de que eu tinha sido grandemente idiote. Tinha
desprezado o que era fácil, o afeto da minha própria família, pelo
que não podia ter. Desde então tenho tentado ser mais simples e
melhor... Não foi que Lebre realizou o começo de uma cura, mas
pessoa amoleceu o nó que o orgulho mantinha apertado. Uma vez
em distensão, mal podia esperar pra me vincular de novo. Até eu
tive tudo isso de senso. — Carvalho Branco sorriu e se sentou. O
olhar dela se dirigiu à parede.
— O jeito que pessoa tinha de se insinuar na cama de outres não
era sempre produtivo — uma jovem disse, se equilibrando em um
pé só. — Lebre veio até mim depois de um baile e depois nunca
mais. Senti que era uma maçã que pessoa tinha dado uma mordida
e depois cuspido.
— Pessoa era tão curiosa, começava mais amizades do que podia
dar conta — Bolívar disse secamente, sem levantar a cabeça.
— Como vocês podem se lembrar de algo tão pequeno? —
Connie explodiu. — Não podem perdoar ele por algo tão pequeno
que não tinha intenção de magoar? — Ligada a Luciente, sentia a
dor crua dela contra o peito.
Abelha falou na sua voz profunda, gentil, despreocupada:
— Nós lembramo o que podemo. Bom ou mau, feitos e malfeitos.
Queremo manter pessoa por inteiro na nossa mente antes de
começar lentamente a esquecer.
Um homem baixinho e moreno se levantou.
— Ano passado, estudei história do jazz em Oxford. Até mesmo lá
no Mississippi tinham um quadro de Lebre viajando de vila em vila.
Isso é da minha casa, disse a elus, e senti orgulho.
Luciente se levantou, cambaleante. Palavras vinham como
respingos.
— Foi bom estar com Lebre. Fui egoísta, egoísta por ser bom.
Agora já era. Pessoa se foi.
— Como tudo se moveu, Luciente? Fale de Lebre — Erzulia
comandou em uma voz alta, carregada.
— Pessoa me fazia ser capaz de ficar... despreocupade. Abobade.
— Isso era bom ou ruim, Luciente?
— Primeiro eu temi que fosse algo ruim. Me limitei a esquecer de
reuniões, experimentos, questões. Gradualmente senti que aquela
despreocupação me dava energia. Lebre era água, eu podia flutuar.
Lebre era vinho, me deixando inebriade e alegre com o momento.
Estávamo sempre rindo. Nunca parávamo de paquerar. Pessoa era
cheia de graciosidade. Pessoa me fez querer saber coisas que por
mim sozinhe eu nunca teria ruminado. Agora, nada... — Luciente
parou, numa explosão de choro. Ela continuou de pé, suas mãos
fazendo formas no ar, mas ela não conseguia formular palavras.
Lontra a fez se sentar gentilmente.
Depois de alguns minutos de choro baixo e alguns movimentos,
uma criança se levantou.
— Lebre trabalhou comigo uma porção, me ensinando como
manejar um barco e nadar. Pessoa nem sempre exalava paciência,
mas ria bastante... não de mim. Pessoa deixava até mesmo tirar
lagartas das cenouras, era divertido. Pessoa fazia elas mexerem os
chifrinhos... Vou sentir muita falta de Lebre!
Outra criança se levantou.
— Pessoa estava me ensinando a trabalhar em hologras. Agora
ninguém vai ter... vai algum dia... compreende, acreditar em mim
quando não posso fazer a minha intenção. Pessoa me fez sentir...
as imagens que eu via na minha mente eram tão boas mesmo
quando elas saíam tão... estúpidas! — Bruscamente a criança se
sentou, com o rosto crispado.
Madalena, da casa das crianças, avançou descalça, pequena
como uma criança e tão negra quando o gato mais negro.
— A gente acha que as pessoas velhas têm uma sabedoria com
crianças. Mas às vezes as pessoas jovens possuem um forte senso
de como foi tudo, para que fiquem em contato com a criança interior
e, por consequência, com as crianças reais. Lebre podia fazer isso.
Podia gostar das crianças como pessoas e queria trabalhar com
sôas. Achava as ideias delas interessantes, as visões reais, os
problemas delas motivos para ponderação... Me preocupei com a
sexualidade não direcionada de Lebre. Pessoa sabia da minha
desconfiança e me provocava. Corria em círculos em volta de mim.
Agora que Lebre se foi, muito mais crianças vão sentir falta dissôa
do que as que falam hoje. Eu também vou sentir saudade! Um
hologra bom e forte é um instrumento poderoso de aprendizado.
Muites artistas que fazem hologras cerimoniais e artísticos, quando
se dedicam a hologras instrucionais, se fazem isso, fazem com
menos intensidade. São condescendentes. Elus simplificam... nas
dimensões erradas. As crianças percebem a falsidade e se afastam,
entediadas. Os hologras que Lebre fez pra nós vão ser usados por
muito tempo depois do período que deveria ter sido a vida dissôa.
Um homem grande, barba grisalha e careca, ficou de pé.
— Baleia Orca de Provincetown, ensinei Lebre. Não tem um
prazer mais forte, ou mais duvidoso, do que ter estudante que você
sabe que vai superar você. Não posso ficar, tenho que voltar de
mergulhão hoje, estamo no meio da colheita. Mas que desperdício!
Pessoa não fez nada do que podia ter feito. Nada. Estamo todes
mais pobres.
Uma pessoa vestindo um macacão marrom com pintas verdes se
levantou e falou em voz alta:
— Quero lhes dizer como Lebre morreu. Então devo ir também.
Queria poder ficar até amanhã... a luta tem sido feroz. Elus têm
novos ciborgues voadores, conseguem atingir velocidade de míssil e
atingir até vinte quilômetros... sofremo muitas baixas... — A pessoa
vestida de verde e marrom fez uma pausa para olhar ao redor como
se tentasse se lembrar de algo. — Por agora, todes vocês captam
pelo grã-selho que mais de nós terão que lutar por um tempo. Lebre
não era grande guerreire. Pessoa podia ter sido mais feliz se tivesse
ficado em casa. Mas lutou bem. Lebre se feriu correndo pra mover
um escudo sônico pra proteger nosso invólucro. Estava morrendo
quando cheguei até sôa. Os danos ao peito e aos órgãos era
extenso demais pra salvar sua vida. Bloqueamo a dor. Lebre morreu
em quinze minutos. Gravamo uma mensagem final. Devo tocar ela?
— Toca agora — Erzulia vociferou.
Sons abafados de equipamento. Então a voz de Lebre,
inconfundível, falou em frases cortadas e breves, meio afogadas
pela estática e barulhos de fundo.
— Luciente, chore e trabalhe. Foi bom. Você tem que ajudar as
pessoas a se preparar... Bolívar, se abra. Vá até Diana e peça
ajuda. Termine nosso hologra com verdes, marrons e vermelhos.
Um brilho que explode pra cima. A terra se movendo. Exército de
árvores. Viu? Exército de árvores. Abelha, ajude Luciente a
aguentar. Nunca consegui maternar. Materna pra mim... Corola, se
arrependa pelo que nunca vai fundir agora... Órion, tenha fé nas
visões e paciência com a matéria... — Sua voz se engasgou no
meio da frase. Só havia estática.
A pessoa de uniforme continuou se desculpando:
— Lebre queria mandar mais mensagens, mas não conseguiu.
Dava pra ver que pessoa queria falar com mais de vocês... Primeiro,
estávamo tentando salvar sôa. Devíamo ter percebido de cara que
os ferimentos eram sérios demais, senão a gente tinha começado a
gravação antes. Perdemo tempo enquanto não admitimo que Lebre
estava morrendo. Nossa tardança roubou mensagens de muites de
vocês.
— Você fez bem — Abelha disse. — Preferíamo ter Lebre do que
qualquer mensagem.
A pessoa de uniforme fez uma leve reverência e saiu. Uma voz
começou a cantar:
Uma árvore treme
Molhada
Sem vento.
Eu te coneio.
Como a luz incide
Como flechas
Pelas minhas pálpebras.
Connie parou, ficou ouvindo, percebendo o olhar de Erzulia sobre
Bolívar, seus olhos secos e apertados e sua testa meditativa.
Rígido, ele se sentava com as pernas cruzadas e a cabeça
levemente inclinada, encimando o mastro que era sua espinha. Os
olhos dele queimavam. As mãos jaziam abandonadas nas suas
coxas como um par de luvas velhas.
Outros falavam das suas memórias, recontando episódios,
envergonhados ou nostálgicos. Lontra disse:
— Me lembro de ter tensionado a noite toda quando um furacão
estava vindo pra acabar com a colheita e destruir coisas. Como
Lebre manteve todes cantando e fez tudo ficar engraçado, mesmo
quando as ondas passaram por cima das contenções e estávamo
assustades de verdade.
Diana e Erzulia se consultavam. Diana se levantou e voltou com
três mulheres do seu núcleo. Amantes, irmãs, filhas da lua, elas
usavam túnicas de curandeiras na altura dos joelhos. Os cabelos
delas estavam presos para trás e usavam uma lua crescente como
decoração. Agora carregavam um violoncelo, uma flauta e um
tambor. Depois de afinarem, começaram a tocar, sentando-se ao
lado de Diana, que ficou de pé para cantar... ou lamentar. A voz dela
começou suave, soluçante, sem palavras, mas musical, como se
fosse um quarto instrumento, mais agudo que o violoncelo, mais
grave que a flauta. Seu cabelo ruivo caiu sobre um dos ombros.
Alta, espadaúda, dominante, ela se agitava. A voz dela lamentava,
subia, ululava, gemia e chorava no ritmo do tambor. Finalmente
Erzulia se levantou. Ela arrancou a túnica azul e ficou apenas com
uma espécie de colã de dança preto contra a sua pele negra, de
modo que Connie à princípio pensou que estava nua. Ela ficou
parada e então pareceu ficar mais alta.
Ela começou a dançar, mas não como Connie a tinha visto dançar
na noite do banquete. Ela não dançava em transe, mas
conscientemente, e não dançava como si mesma. Ela dançava
como Lebre. Sim, ela tinha se tornado ele. Ela era alta, encorpada,
mas graciosa, cambaleante e flexível, jovem e inábil e linda,
talentosa e trapalhona, se espalhando ao mesmo tempo aos quatro
cantos, saltitante, buliçosa, pulando para frente e para trás.
A cabeça de Bolívar lentamente se levantou para encarar aquilo.
De repente, Erzulia-Lebre dançou em sua direção e o puxou. De
forma lenta e mecânica, como se estivesse hipnotizado, Bolívar
começou a dançar também. Erzulia, possuída de boa vontade pela
memória de Lebre, levou Bolívar para lá e para cá. Ele dançou com
mais fervor, reagindo, seu corpo se tornando fluido e elegante, como
havia dançado na noite do banquete com Lebre — aquela noite que
ela tinha passado com Abelha. Aos poucos, lágrimas correram pelo
rosto dela, talvez mais por Skip do que por Lebre, talvez pelos dois,
talvez por velhas perdas e por ele também, mas, sobretudo, por
Luciente e a dor que a partia ao meio.
A música terminou e Bolívar abraçou Erzulia. Eles ficaram assim
por um momento e então o corpo de Erzulia relaxou. Bolívar se
sobressaltou.
— Mas eu senti sôa! — ele gritou.
— Você estava lembrando — Erzulia se inclinou gentilmente,
secando sua testa.
Bolívar caiu no chão num espasmo de choro tão repentino que,
por um momento, ninguém se mexeu para ajudá-lo. Então Abelha e
Cavalo Louco gentilmente o seguraram, murmurando algo para ele.
— Bom. Afinal o pesar apareceu. — Erzulia fez sinais para as
pessoas que tinham servido café e eles começaram a entregar
umas jarras e taças de vinho e recolheram as canecas de café.
Dessa vez, serviram todos os outros primeiro, para deixar o ímpeto
de emoção arrefecer entre os mais íntimos.
O vinho era forte, ardente, com um inebriante perfume de uva. Os
jarros eram galões com a inscrição “Egenblick de Cayuga fortificado”
— vinho para depois do jantar —, e eles passavam entre si muitas
jarras, o suficiente para que todos ficassem bêbados, ela pensou,
percebendo que havia muitos outros jarros aguardando. Na
verdade, a tensão parecia estar se dissipando. As pessoas estavam
conversando baixinho, assoando os narizes, secando lágrimas,
guardando lenços, se abraçando e conversando mais. Bolívar
sentou-se e chorou em espasmos curtos e cada vez menores. Suas
costas tinham relaxado. Seu rosto estava enrugado. Sua cabeça
jazia na coxa de Cavalo Louco.
Erzulia disse algo para as três musicistas com Diana e elas
começaram a tocar em um tom diferente, agridoce, doce e azedo,
meio apressado. Erzulia e Diana cantaram juntas, suas vozes
cortando e cruzando o ar como andorinhas. A voz de Diana era mais
profunda, e a de Erzulia, mais penetrante. Elas se afinaram e se
separaram num contraponto fácil cantando a canção que Connie
ouvira no berçário:
Ninguém sabe
Como flui
Enquanto segue.
Ninguém segue
Onde surge
Enquanto flui.
Aquela canção de ninar. Todo mundo começou a cantar, todos
pareciam conhecê-la. Criou-se uma onda lenta de um cantar suave
no qual as vozes de Erzulia e Diana ora alteavam ora mergulhavam.
Ninguém sabe
Como escolheram
Como crescer...
As crianças se juntaram, balançando para frente e para trás
enquanto cantavam palavras que pareciam familiares a todos,
desde tenra idade, da maternidade e do cuidado com os menores. A
flautista improvisou uma dança própria acima das vozes, e Erzulia e
Diana pararam para ouvir. Os outros instrumentos se juntaram de
vários lugares do salão. A improvisação cresceu em intensidade,
abrandava, parecia parar e então começava de novo com um violão
ou um gravador.
Finalmente o som arrefeceu. Barbarossa falou reflexivamente:
— O hologra que Lebre fez e me aqueceu mais foi aquele com o
equinócio verde, com as plantas crescendo em velocidade
aumentada. Por dias fiquei me lembrando dos brotinhos surgindo
das sementes, as tulipas se desenrolando, fechando, abrindo,
fechando. Foi engraçado e lindo ao mesmo tempo. Aquelas imagens
ficavam voltando enquanto eu trabalhava e eu sorria. Me deu um
sentimento bom de estar conectade.
— O sorriso no rosto das kóres, as jovens e donzelas, o sorriso
arcaico. Lebre se emocionava com esse sorriso — Bolívar
devaneou. Ele tinha parado de chorar. Seu rosto estava suave. Ele
se apoiava em Abelha, sua cabeça balançando como a de uma
criança sonolenta. — Era meu sabático e Lebre ainda não tinha
aquietado. Fomo pra Grécia por tresmês. Pessoa tinha quinze anos,
mais parecia um grilo que um coelho. Magro. Pessoa podia comer e
comer e não aparecia. Era primavera... fim de março. Flores do
campo por todo lado. Creta foi veludo pra gente. Trabalhamo no
reflorestamento, ficamo com as pastorias, e Lebre ficava
desenhando todo mundo e dando os desenhos de presente. Me
lembro das papoulas vermelhas debaixo das oliveiras verde-
acinzentadas, cabritos jovens e negros que queriam que a gente
massageasse suas testas onde os chifres iam despontar. Arbustos
de dictamo crescendo sem limite. A fábrica de pigmentos onde
ficamo por uma semana, fazendo uns trabalhos diferentes. A gente
estava apaixonade pelo muralismo minoico. Um muro externo em
Minos tinha umas aves imaginárias ridículas nos murais.
Maravilhoso. Veludo puro. Decidimo que a gente também ia inventar
criaturas improváveis nos hologras que estávamo começando a
planejar então... Decidimo construir uma casa, uma que fosse igual
àquela de Minos. Um pouco distante das outras e com uma vista
para as montanhas e os vinhedos, pintada inteirinha e com muita luz
do sol.
Bolívar sorriu fracamente.
— Alguns dias depois estávamo viajando de jumento ao norte,
perto de Dicty, quando vimo aqueles pássaros. São chamados de
poupas-eurásicas, em português. Estavam ali, iguaizinhos aos
pássaros da estalagem minoica, de cor marrom rosado com asas e
caudas listradas de preto e branco, como zebras voadoras, se
mostrando rapidamente no bater de asas veloz, esvoaçando pela
clareira. Em suas cabeças, um cocar de penas saltadas marrons e
pretas que ficava de pé quando queriam. Rimo tanto que caímo dos
jumentos. E voaram pra longe devagar e provocadores, nos
censurando por não termo acreditado nelus. “Piu! Piu!”, gritavam pra
nós. Ah, a imaginação daquelus antigos cretenses, Lebre falou, e
por anos aquilo era uma piada interna entre a gente... — Ele
suspirou, deu de ombros. — Vimo um trabalho de une hologriste em
Agios Nicolaus que nos agitou. Algo... fluido sobre o trabalho dissôa.
Une espetaculadore excelente com oito estudantes lá. Vi que Lebre
ficou tentade. Isso me obcecava a enciumar, porque eu me via como
professor de Lebre além de amante. Fiquei mais enciumade quando
Lebre casalou com sôa. Tinha acreditado, tinha desejado que Lebre
fosse se atrair apenas pelo corpo masculino, daí a gente seria
igual... Me lembro daqueles meses tão vivamente, dia a dia. Nunca
fomo tão próximes. Mas as diferenças se destacaram. Sempre quis
que Lebre fosse mais parecide comigo do que pessoa era... Isso
deve ter sido uma qualidade da sua amigagem, Luciente, que você
não quis que pessoa fosse como você. Isso foi quase único pra
Lebre.
— Ah, Bolívar! — Luciente se mexeu como se precisasse fazer um
grande esforço. — Cada une de nós amou Lebre e teve uma grande
riqueza e um grande prazer, e agora como a gente sofre de dor. O
que mais poderíamo pedir? Além de que durasse! Mas o que
tivemo...
O vinho passou, começaram a bolar uns baseados, maconha e
outras ervas que eles fumavam, as bandejas com papéis finos e
cachimbos de madeira. Uma das curandeiras começou novamente a
tocar flauta e Diana cantou. Luciente se escorava meio de lado em
Diana, cantarolando com elas. A pressão de seu luto arrefecia aos
poucos. Connie conseguia sentir a dor de Luciente fluindo como um
regato em vez de uma cachoeira desaguando nela.
Algumas das crianças tinham adormecido. Ocasionalmente, um
adulto ou criança mais velha carregava alguém dormindo ou a
levava cambaleando para casa. Vários dos adultos tinham cochilado
onde estavam sentados ou mesmo deitados no chão, sem vergonha
nenhuma. De tempos em tempos, uma canção começava, alguém
recitava um poema, alguém se levantava com uma lembrança.
— Eu lembro um dia de festa, talvez fosse Revolta de Haymarket
ou Halloween? Lebre me ajudou a desenvolver um frívoli que era
quase um sonho. Eu era uma mariposa-luna verde clara com veias
amarelas e margens cor de lavanda, com antenas de plumas... —
Luxemburgo falou.
Lá entre as parreiras
Alguém toca flauta
E a música
Chama meu nome.
Entre constelações de uvas
Meio escondidas pela folhagem
Como mãos que acenam,
Alguém espera e sua boca
É doce como uva madura,
Seu toque me faz sangrar
Como uvas-rubi maduras
Ao serem pisadas.
Estou na cama com outra pessoa.
Estava assustade demais.
Apanhade com a pessoa errada,
A noite inteira pra rastejar
Longa como um túnel pra França
Por toda encosta amantes casalam.
Aqui estou prese
Com alguém errade
Enquanto no meio das parreiras
Você chama meu nome.
As canções e os poemas estavam mais alegres: canções de amor,
canções para beber, canções para o trabalho, poemas sobre velejar
e se abanar, ofensivas políticas, canções locais que ela não
conseguiu entender. Bolinhos foram servidos. Mais pessoas
dormiam e algumas foram para casa. Erzulia e Abelha estavam
cantando em outra língua, acompanhados de tambores e das
risadas daqueles que entendiam a letra.
Quando ficou silêncio de novo, Luciente falou com gentileza:
— Conheci Lebre pela Diana. Lebre tinha se internado no
manicômio em Treefrog. Eu fui visitar Diana, que ficava me
provocando e não queria dormir comigo. Apesar de Lebre estar
ficando na nossa vila, não tinha conseguido conhecer sôa bem.
Tudo o que tinha notado era que pessoa ficava mudando de nome,
e isso me chocava um pouco. Lebre tinha afundado, mas quando
visitei, já estava reintegrade... Diana fez uma dança da lua, no
gramado lá. Era a lua verde, a lua que segue o equinócio verde, e
primeiro eu estava me mordendo de ciúmes. Diana se fundia com
membres dissôa e só me observava. E então não tive mais ciúmes.
— Não foi como da primeira vez que pessoa enlouqueceu —
Diana disse com sua linda voz rouca, tirando o cabelo de Luciente
da testa dela. — Não tinha caído completamente. Basicamente,
Lebre tinha se sentido tomade por Bolívar. Queria trabalhar com
você — Diana disse a Bolívar —, mas também queria trabalhar
sozinhe, pra ser mais livre pra crescer como pessoa. Você sabia
tanto, tinha viajado tanto, tinha trabalhado seu próprio estilo, criado
uma reputação. Lebre sentiu como se o trabalho dissôa e as visões
desaparecessem dentro das suas; talvez o que estivesse
acontecendo em Agius Nicolaus também. Lebre não tinha um
centro. Em vez disso, era um enorme surto de visão e uma fome
enorme por experiências. Equilíbrio vinha de outres. Precisava de
alguém pra equilibrar você. Também senti que Luciente tinha sido
sensate por tempo demais. — Ela ajeitou o cabelo de Luciente.
— Mesmo assim nós percebemo o seu plano — Luciente disse
com uma dignidade triste.
— Mas que bem teve isso? Meu plano era a cura, velhe amigue.
Luciente apoiou a bochecha no ombro de Diana.
— Teria acontecido de qualquer forma, quando Lebre voltasse pra
vila, mas então teria sido mais curto... Pessoa morreu bem. Foi uma
boa morte, uma morte útil. Apenas... cedo demais!
Uma voz grave estava cantando suavemente:
Sonho com uma criança
Flutuando entre outras
Como uma truta no riacho
Sonho com uma criança
Cujos olhos enormes
Se fecham pra promessas secretas.
Sonho com uma criança
À deriva no coração
Pulsante da criadeira
Crescendo todo dia
Mais linde,
Mais perto de mim.
— Nasceu o sol — Erzulia falou, e fez sinal para que se abrissem
as portas. — Tem que dar noss’amade amigue pra terra. O dia está
aqui agora. O funeral acabou.
Lentamente, as pessoas no salão se mexeram como cães
despertando, se balançando. Pessoas se acordavam. As xícaras, as
taças, as canecas vazias ou meio vazias ou ainda cheias foram
levadas embora.
— Quem quiser uma brança de Lebre vem e pega uma. Família e
amigues doces primeiro — Erzulia chamou. Em silêncio, eles se
juntaram próximos à pequena pilha de objetos. Luciente pegou um
livro gasto.
— Lebre costumava dizer isso. Cada poema me lembra de
eventos e eventos que passaram.
Bolívar pegou o anel com a pedra amarela.
— Pedi pra une artesane fazer isso quando Lebre fez quinze anos.
Tudo foi levado embora, exceto as cartas e documentos pessoais,
que foram colocados por Erzulia sob o cobertor. Então Abelha,
Bolívar, Barbarossa e Luciente se aprontaram para carregar o corpo.
As pessoas que conseguiam se manter acordadas estavam indo
trabalhar ou dormir. Cerca de trinta pessoas ficaram na procissão
até o túmulo.
O sino tocava de novo em toda Mattapoisett. Eles andavam
devagar pelos caminhos da vila, com as amigas de Diana tocando
uma marcha fúnebre. As folhas começavam a perder a cor, os
bordos se avermelhavam, e uma jovem árvore quase rubra, como
se tivessem derramado sangue brilhante nela. Seria um dia límpido.
O ar estava frio. O orvalho molhava as pedras, fazendo Connie
escorregar. Crisântemos e ásteres brilhavam ao longo do caminho.
A geada ainda não tinha chegado. Tomates verdes e vermelhos
pendiam de altas videiras. Abóboras plantadas nas beiradas dos
jardins cresciam pela grama ou escalavam nos pés de milho.
Sojourner ficou ao lado dela, perguntando se podia se apoiar em
seu braço, já que estava cansada da longa noite. Lentamente,
ambas caminharam bem atrás na procissão.
Uma cova profunda se abria no limiar do bosque. Eles se reuniram
ao redor dela e usaram cordas para baixar Lebre, com seus papéis
e o cobertor, dentro do buraco. Quando iam baixá-lo, Erzulia ajustou
o cobertor para cobrir o rosto. O corpo chegou ao fundo com um
ruído surdo que deu um calafrio em Connie. Alguns, Luciente,
Bolívar, Cavalo Doido, começaram a chorar baixinho, mas Connie
podia sentir que estavam prestes a se debulhar em lágrimas.
— Amigues, choramo camarade Lebre, que morreu nos
defendendo. “Apenas em nós vive quem morreu. A água corre
ladeira abaixo através de nós. O sol esfria em nossos ossos. Nós
nos juntamo a todes que vivem em uma teia musical de energia. Em
nós vive quem morreu e nos fez. Em nós vivem as crianças que
ainda não nasceram. Respiramo o ar unes de outres, comemo a
carne une de outres, crescemo como uma árvore do chão”. Joguem
terra e vão. Devemo seguir trabalhando até devolvermo nossos
corpos. Adeus, Lebre. — Erzulia pegou a pá e jogou um punhado de
terra, então passou a pá para Abelha.
Cada um por sua vez disse adeus e jogou terra no buraco. Depois,
caminharam de volta para a vila. Apoiada na serapilheira com suas
raízes emboladas, um jovem sassafrás aguardava para entrar no
buraco feito para a cova. Depois que todos tinham terminado o ritual
de jogar terra, Erzulia ficou ali com dois voluntários para terminar de
fechar a cova. Luciente, que havia esperado por Connie, passou o
braço em torno do dela, se apoiando enquanto andavam.
— Agora nós vamo pra criadeira — ela disse. Connie podia sentir
a falta de energia motivada pela dor. Continuava ali, uma dor que
iria reduzir aos poucos. Mas a negação inicial tinha passado. Ela
viveria com a dor e seguiria adiante. Connie se sentiu mais
relaxada, cansada, porém, sem a pressão, mais leve que o ar, mas
com os membros pesados pela fadiga. Ela sentiu como se tivesse
chorado por anos de luto.
Abelha, Barbarossa, Lontra, Sojourner, Gavião e Bolívar também
esperavam fora da criadeira. Então todos entraram em grupos de
quatro pelas portas duplas. Sacco-Vanzetti estava esperando por
eles.
— Viemo pedir que um novo bebê seja começado, pra substituir
Lebre, pessoa que está morta e enterrada — Abelha disse.
— Tenho novidades pra vocês. — Sacco-Vanzetti explodia em
alegria, tentando falar com dignidade. — Tenho uma novidade
ótima. Quer dizer, entende, o conselho se reuniu. Decidiram honrar
Lebre. Aquela seleção genética vai nascer de novo.
Houve um momento de silêncio. Então, Luciente falou:
— Agradecemo ao conselho. Apesar de nunca sabermo onde ou
quem, sabemo que alguma parte de Lebre viverá.
Depois que tinham retornado ao sol que já resplandecia nos
campos e cabanas, no contorno amarelo da criadeira, Connie
perguntou a Luciente:
— O que foi aquilo? Não entendi.
— O quê? Ah, a decisão. — Luciente se balançava um pouco. —
Muito raramente isso é feito. Quando alguém morre jovem e
talentose, fora do comum, a mistura genética exata dissôa é dada a
um novo bebê, como uma espécie de memorial vivo. A gente nunca
sabe onde. Ninguém sabe. Não fazem registros. Sabemo que a
criação conta mais do que a genética depois que limpamo os genes
negativos, mas ainda assim é um memorial. É estranho que deixa a
mente mais sossegada, saber que um bebê Lebre vai nascer de
novo em algum lugar, daqui nove meses.
— Acredito...
— Estou cansade demais pra remeter, Connie, minha doçura.
Devo dormir, e você também. — Luciente a abraçou. — Se solte.
Ela se sentiu afundar lentamente em sua cama. Uma enfermeira
estava sentada ao lado dela e, assim que suas pálpebras se
mexeram, a enfermeira anunciou:
— Ela está voltando a si. Rápido, avise o dr. Morgan. Ele está
dormindo no outro corredor.
A habilidade dela de ficar no futuro a surpreendeu. Eles estavam
tentando despertá-la desde a noite anterior. Dessa vez, travada em
Luciente, ela não tinha sentido nada. Connie viu a confusão pelos
olhos semicerrados. Estavam assustados. Ela podia sentir o medo
do dr. Morgan chiando como uma serra cortando madeira. O que
eles tinham botado na cabeça dela era experimental e eles não
queriam uma morte.
Morgan e Redding cochicharam por um longo tempo, e Argent,
quando a visitou no finalzinho da manhã, parecia triste e irritável. Ele
a encarou, fez perguntas secas para os enfermeiros, ficou franzindo
as sobrancelhas. Redding andou de um lado para o outro, falando
sozinho, e então aplicou uma injeção e um anestésico local e mudou
a medicação do saquinho de diálise que estava vazando dentro
dela.
— Isso deve resolver tudo — Redding disse animado, mas ficava
franzindo as sobrancelhas ao olhar o crânio dela, como se quisesse
desmontar tudo ali mesmo.
Uma nova vigilância a cercou. Ela lamentou ver Tina e Sybil
genuinamente assustadas. Tina ralhava com ela para que comesse
e alternava entre a janela e a porta como um pássaro nervoso.
Quando Tina ficava na sala comum, Connie tentava confortar Sybil.
— Tudo bem? Você ficou inconsciente por doze horas! Como pode
estar tudo bem?
— Sybil, não se preocupe! Por favor. A única coisa errada comigo
é o que eles colocaram na minha cabeça. E estou tentando o que
posso pra tirar. Pode crer.
— Eles ficaram assustados. — Os olhos de Sybil estavam
enevoados. — Adiaram os implantes marcados pra segunda até
entenderem o que está acontecendo.
— Bom! Essa é minha primeira vitória. Tina estava agendada pra
segunda. — Com a ajuda de Luciente, ela seria capaz de assustá-
los de novo. O que mais poderia fazer? Era a única maneira que
tinha de lutar.
CAPÍTULO 17

Todo dia, durante uma semana, ela tentou invocar Luciente, sem
sucesso. Uma vez, sentiu que estava escorregando para o outro
futuro, mas recuou com horror. Por que não conseguia chamar
Luciente? Desde que tinham implantado nela a sonda de
microdiálise, ela tinha sido incapaz de alcançar o futuro por si
mesma, o futuro certo, o que ela queria.
Connie estava menos dopada e o tempo passava mais rápido e
vago. Tina foi pega tentando escapulir da ala no carrinho de roupa
suja e colocada na solitária por dois dias. Quando a deixaram sair,
tonta e tremendo por causa da medicação, Connie levantou-se
titubeante e tocou o ombro dela.
— Que pena que você não conseguiu — ela murmurou. — Tente
de novo.
— Só tenho quatro dias. Me marcaram pra segunda.
No saguão bege e laranja dos pacientes, Alice estava sentada em
frente à tv, sorrindo de um modo indolente. Ela assistia a qualquer
coisa que se mexesse na frente dela. Connie achou que, se fosse
devagarinho e desligasse o aparelho, Alice seguiria assistindo a tela
vazia com o mesmo sorriso vazio. Os funcionários diziam a ela que
seria liberada logo, mas estavam com medo por causa do que
acontecera com Skip. Alice comia bastante. Não começava a comer
até que o auxiliar a fizesse começar, mas então comia tudo de forma
metódica. Estava ganhando peso.
Na segunda-feira seguinte, depois que levaram o Capitão Creme e
Tina para serem implantados, ela se jogou na cama e se lançou na
direção de Luciente, sem se importar como. A viagem foi turbulenta.
Por alguns instantes, a ala se apagou e ainda assim ela não chegou
ao futuro. Desmaiou. Foi mais como um desmaio do que ter
adormecido. Mas por fim estava ali com as mãos de Luciente em
seus ombros em uma pequena clareira. Afloramentos de rochas
cinza-esverdeadas. Agulhas de pinheiros por todo lado, voando
contra as pedras. Luciente usava um uniforme que era um macacão
verde e marrom.
— Onde a gente está?
— Perto do front — Luciente falou. — Viemo pro norte.
— Era por isso que eu não conseguia te alcançar?
— Comunir tem sido mais difícil. Alguma coisa está interferindo.
Provavelmente estática? Vetores temporais só foram
compreendidos de forma primitiva... Tentei te alcançar antes de
embarcarmo, mas desde então tenho sofrido interferência.
— Cadê seu cognescedor? — Ela encarou a faixa descolorida na
pele bronzeada do antebraço de Luciente.
— Lá no ponto de encontro. Tiramo eles por medo de usar sem
pensar. Podem nos localizar pela nossa frequência. Usamo isso pra
localicomunicar. — Luciente tocou um pequeno ovo numa redinha
ao redor do pescoço. — Euzinhe devo confessar, me sinto pelade
sem meu cognescedor. É parte do meu corpo. Só tiro pra casalar ou
dormir.
— Mas e se você perdesse ele?
— Perderia dois terços da minha memória... Malmequer em
Treefrog teve um acidente no qual o braço esquerdo e o
cognescedor foram destruídos. O braço a gente conseguiu
restaurar, mas não o cognescedor. Malmequer se matou... Para
algumas pessoas, é só uma conveniência. Para outras, é parte da
psique delas.
Abelha veio marchando por uma trilha na direção deles,
carregando uns equipamentos nas costas. Ele parecia maior que
nunca ali, e estranhamente alerta. O sorriso ainda era sinal de uma
calma luxuosa e uma energia ensolarada.
— Bualuz, Pimenta e Sal. Esqueci de dizer da última vez que acho
que você deveria trocar aquela peruca por um porco-espinho.
— Está começando a crescer o cabelo. Meio que coça. — Num
impulso, Connie tirou a peruca castanho-avermelhada e mostrou
seu cabelo ralo. Ela podia sentir um pedaço sem cabelo onde ficava
a tampa de cimento, mas o resto do couro cabeludo tinha cabelo
espetado crescendo.
Tanto Abelha quanto Luciente riram sem malícia e a acariciaram,
exclamando quão duros e ouriçados estavam aqueles cabelos de
dois centímetros. Ela não se importava com a brincadeira deles,
porque era cheia de afeição e, além disso, ela sabia o quão
engraçado estava. Nessa ala havia um espelho de verdade no
banheiro.
Abelha passou o dedo pela tampa de cimento.
— Isso não parece bom. O que eles colocaram aí?
— Uma coisa pra me controlar. Uma máquina.
Abelha ficou abalado e triste, com a mesma expressão do começo
do velório de Lebre.
— Estamo todes em guerra. Você é une prisioneire de guerra. Que
você consiga se libertar. — Gentilmente, ele a abraçou.
Ela deu uma breve risada, se desvencilhando.
— Como eu conseguiria isso?
— Posso te dar táticas? — Abelha virou-a para si, segurando-a
pelo queixo. — Sempre há alguma coisa que você pode negar a
quem te oprime, mesmo que seja sua obediência. Sua crença. Sua
cooperação. Geralmente, mesmo com poderes altamente desiguais,
você pode encontrar ou forçar uma abertura para revidar. No seu
tempo, muitas pessoas sem poder encontraram formas de lutar, até
que isso se tornou um poder.
— Mas vocês ainda estão lutando. Não acabou ainda!
— Como pode acabar? — Luciente fez um aceno. — Talvez na
época que o sol virar supernova. No Big Bang. O que mais? A gente
renova, regenera. Ou morre.
— Mas vocês não parecem realmente acreditar em mais; não tem
mais pessoas, mais coisas, nem mesmo mais dinheiro.
Luciente se apoiou num pinheiro, seus dedos brincando com a
casca sulcada.
— Um dia a recuperação vai acontecer. Os oceanos vão estar
equilibrados, os rios fluirão limpos, os pantanais e as florestas vão
esplendorar. Não vai mais haver inimigues. Sem Nós e Elus. Vamo
discutir alegremente une com outres sobre assuntos importantes
das ideias e das artes. Os vestígios do jeito antigo vão se apagar.
Posso não conhecer esse tempo, da mesma forma que você não
consegue conhecer a gente de fato. Só podemo saber o que
podemo de fato imaginar. Afinal, o que a gente vê vem da gente
mesmo.
— Você acha que eu não conheço vocês, Luciente?
— Veja, como povo. Quis dizer que você não consegue
compreender completamente nossa sociedade, da mesma forma
que eu não consigo compreender uma de cem anos além de nós.
Que tipo de novas artes nossas tatara-tataracrianças vão inventar?
Que velhas artes vão descobrir? Que instrumentos musicais vão
construir? Que jogos? Que intraconhecimentos? Quais novas
comidas e estilos de cozinhar? Que ciências que nem podemo
imaginar? Que novas formas de cura? Vão velejar ao longe na
nossa galáxia? Viajar em substratos microscópicos? Quando todas
as regiões se autoalimentarem, quando as reparações estiverem
completas, então o quê? Às vezes... às vezes quero viver pra
sempre! — Luciente atirou a cabeça para trás. — Mas sei que vou
encontrar minha morte ao amadurecer. Quero deitar meu corpo,
sem ajuda, e terminar tudo. Mas agora, gostaria de viajar adiante
pra esse futuro, como você viajou até nós. Sei que não tem muito
um porquê disso; o agora já nos basta. Ainda assim, estou muito
contente de ter te conhecido, Connie.
Um zumbido alto e estranho veio pelo ar, cada vez mais perto.
Abelha e Luciente congelaram, então fizeram gestos para ela e
começaram a correr rapidamente na direção na qual Abelha tinha
acabado de vir.
— Rápido! Corre! — Luciente vociferou por cima do ombro. Abelha
ficou para trás, tentando ajudá-la a se apressar enquanto corriam.
O guincho penetrante começou a ficar mais alto a cada instante.
Parecia passar pelos ouvidos dela e ficar rodando em seu crânio.
Uma dor como uma broca ressoava em sua espinha. A dor não mais
parecia entrar pelos seus ouvidos; os ossos dela pareciam vibrar
numa frequência alta demais para ela aguentar. Ela era um
diapasão tremendo de dor.
— Corre, Connie! Corre! — Abelha insistia. — Varreduras sônicas
matam. Os refletores estão sobre a ponte. Corre!
Ela tentou acompanhá-los, mas não conseguia correr tão rápido.
Arfante, com as ancas doendo, foi ficando mais e mais para trás.
Eles pararam para esperar Luciente voltar e arrastá-la. A
intensidade da broca que gritava a fez tremer. Ela sucumbiu ao
chão, agarrando a cabeça.
— Continua! Se salva!
— Ali. As pálpebras dela mexeram. Ela está acordando!
Ela abriu os olhos. A enfermeira estava em cima dela. Um auxiliar
saiu correndo para dar o recado.
— O que você estava tentando dizer quando acordou? — A
enfermeira Roditis chegou mais perto. — Alguma coisa sobre
continuar.
— Eu não sei. — Fechou os olhos.
— Você estava alucinando?
— Ela não tem um histórico de alucinações. — Acker estava por
perto, aos pés da cama dela.
— Aquela injeção funcionou. O dr. Morgan vai ficar contente. Mas
não sei o que eles vão fazer se isso continuar acontecendo. — A
enfermeira Roditis tinha um tom desconfiado e sentencioso. Ela
fazia muitos tsc-tsc com a boca enquanto arrumava as cobertas
sobre Connie.
Luciente agarrou o braço dela, puxando-a para baixo em uma
trincheira. Estava atrás de umas telas que pareciam decorativas e
pequenos equipamentos, alguns parecidos com os que Abelha
carregava nas costas, e o chão havia sido escavado até a rocha. Os
amigos dela estavam ocupando uma colina baixa perto de um
riacho.
— Defletores e refletores — Luciente explicou, séria. — Fique
abaixada! Eles vão atacar nossa linha.
— Onde está todo mundo?
— Estamo no flanco direito. A linha se curva à esquerda, daqui até
o rio.
Lontra estava em posição de agachamento num abrigo perto de
Connie, examinando uma folha brilhante caída de um dos bordos
que cresciam ao longo do curso d’água. Havia pinheiros atrás deles
e uma fileira de bordos na frente. Suas folhas vermelhas e douradas
estavam começando a cair aos montes pelas margens, e eram
carregadas pela corrente pedregosa, se juntando em poças e
redemoinhos de retalhos de cores.
— Como isso te emociona? — Lontra perguntou e leu:
— Uma folha
Espalmada e dourada em fulvo
Caiu aos meus pés
E, frágil como as asas de uma mariposa morta,
Se partiu.
Ela olhou confusa para Lontra, que vestia o mesmo macacão
sarapintado e tinha o cabelo separado em duas tranças. Do nariz
largo aos olhos apertados e brilhantes, parecia estar orgulhosa de
si. Connie perguntou:
— Isso é uma mensagem em código?
— Código? É um poema, uma quintilha. Você não gostou?
— Mas... como você consegue escrever poemas sobre folhas
agora?!
As sobrancelhas de Lontra se levantaram.
— Como não? Estamo perto da morte. Então é natural escrever
poemas, não? E caímo como folhas...
— Lá vêm eles — Luciente disse calmamente, e todos ficaram em
posição de alerta com suas armas.
O chão tremeu violentamente aos seus pés, ainda que ela não
ouvisse explosão nenhuma. De fato, nada parecia causar o que
estava acontecendo, mas o chão tremeu de novo e ela ficou
nauseada. Novamente o chão tremeu e uma árvore rachou e caiu
na frente deles. Outras árvores caíram, e uma rocha rolou uns 15
metros e se alojou numa pequena piscina natural. Pinhas caíam
sobre eles enquanto os pássaros revoavam aterrorizados, os gaios
berrando “patife, patife” ao fugirem. Do lado direito, alguém gritou.
Então ela viu o inimigo chegando: figuras altas e completamente
envolvidas em uniformes metálicos, retinindo com o metal pesado e
usando capacetes que escondiam seus rostos. Eles espreitavam
entre as árvores, pedras e arbustos do outro lado do riacho.
— Não atirem — Luciente sussurrou.
Ela percebeu que estava segurando algo parecido com uma arma,
apesar de mexê-la apenas com o olhar fixo em uma mira. Ela
praticou os movimentos de forma nervosa. A arma respondia rápido,
mas ela não conseguia entender direito como parar aquilo. Era para
Connie travar a mira em posição antes de desviar os olhos do alvo,
mas ela ficava parando de olhar quando era tarde demais.
Mais e mais figuras de metal revoavam atabalhoadas pelas
árvores, se preparando para atacar com força ao atravessarem a
água.
— Não atirem — Luciente sussurrou novamente, de forma
empática. — Peguem quem passar do curso d’água. — Então ela
acrescentou em um tom de oração: — Me perdoem se estão com
vida e eu mato.
Abelha e Lontra murmuraram uma oração similar, antes que Lontra
sussurrasse:
— Você acha que alguma dessas coisas são pessoas?
As tropas estavam se reunindo nas árvores mais distantes,
preparando-se para saírem dos esconderijos. Muitos mais se
posicionaram. Finalmente caminharam tinindo, correndo
confusamente em ondas pelos taludes rasos para saltar o pequeno
riacho. Vinham silenciosamente, exceto pelo barulho metálico de
seus trajes. Não faziam gritaria nem algazarra.
De repente, ela estava de pé na sala do apartamento onde tinha
vivido com Martín. Calor. O suor corria pelas costas e se acumulava
sob seus seios. O ar estava tão espesso e sulfuroso que ela
começou a tossir. Estava com muito medo, o estômago doía. Por
quê? Martín estava ali embaixo, em algum lugar. Sim, na rua, ele
estava usando carros revirados como barricada, atirando pedras e
garrafas na polícia. O batalhão de choque da polícia, armado com
rifles, pistolas e revólveres e granadas de gás e bombas de efeito
moral. Vinham retinindo rua abaixo, em movimentos duros e
repetitivos. As vozes deles rebatiam nas casas e estavam cheias de
alegria furiosa:
— Pretos e latinos filhos da puta e cuzões!
Ela ficou de pé à janela, observando, abraçada ao próprio corpo e
ao vestido florido de verão. Martín estava lá fora em algum lugar,
gritando desamparado, com raiva e prestes a ser morto, enquanto a
polícia atirava num garoto de catorze anos que eles acusavam de
ter roubado um carro, o que havia começado essa confusão toda.
Então um dos policiais se virou e, vendo-a na janela, levantou a
arma e atirou na sua direção. A vidraça quebrou, espalhando cacos
do lado de dentro. Ela gritou aterrorizada e se jogou no chão, indo
se juntar a eles. Por dois dias ficou retirando pedaços de vidro que
haviam se alojado em seu braço. Mas ele tinha errado. Também
tinham errado o Martín daquela vez.
— Acho que ela está acordando, doutor.
— Patty, você conseguiu falar com o Redding?
— Doutor, a secretária dele falou que ele está a caminho.
— Se perdermos essa implantada, a coisa vai ficar feia — o doutor
Morgan resmungou. — Quando ela disse que ele tinha saído?
— Dez minutos atrás, doutor.
— Ela disse se ele estava vindo direto para cá?
— Ela não disse, doutor.
— E você não perguntou — ele disse com uma satisfação azeda,
contente por achar alguém para culpar por algo. — E o dr. Argent?
— Não consegui contato com ele, doutor. Ele foi palestrante
convidado na aula de patologia do dr. Sanderman agora de manhã.
A secretária dele acredita que vai estar no consultório por volta das
onze e meia.
— Ela acredita?! Por que ela não se mexe até lá e dá a ele a
mensagem? Ligue para ela de novo e mande que se avie. Ela
conseguirá falar com ele assim que terminar a palestra. Essas
mulheres são preguiçosas demais para saírem de suas cadeiras e
pararem de passar pó no nariz. Mande ela entregar em mãos essa
mensagem pro Argent.
A enfermeira Roditis pigarreou.
— Doutor, devo providenciar uma sala de operações na unidade
do centro?
— Isso é uma decisão do Redding... Cadê ele? Aposto que deve
estar tomando cafezinho com alguma estudante. Ele toma café o dia
todo, é um milagre médico que ainda tenha rins. Tomo litros quando
estou perto dele. Se eu tentar acompanhar, vou ficar com úlceras
como as dele. Onde diabos ele está?
— Se quiser mesmo operar, ela tomou café da manhã, mas não
comeu nada desde então. — A enfermeira Roditis colocou o
termômetro debaixo da língua de Connie. — Olha, melhor você não
morder, seja uma boa menina.
Gavião agarrou os controles do flutuador. Uma Luciente agachada
se equilibrava sob a arma dianteira e Connie estava na parte de trás
com outra arma, montada para que pudesse girar cento e oitenta
graus em qualquer plano.
Gavião fazia o flutuador subir de forma abrupta. Estavam acima do
mar, com nuvens cinzas bem abaixo, como as escamas de um
enorme peixe. O céu estava encoberto; o dorso fofo das nuvens
pendia acima delas. Elas flutuavam logo abaixo, desviando dos
amontoados de brumas. O flutuador sacudia como cortiça nas
marés do ar, e Connie se sentiu um pouco indisposta. Gavião estava
contente nos controles, cantando algo que Connie se lembrava de
ter ouvido antes, sim, na noite do banquete. Ela estava caminhando
com Abelha, os braços dele a envolvendo. De repente, sua pele se
lembrou da mão grande e quente dele, o dedão tocando levemente
o seio dela por cima do frívoli. “Como alguém pode cantar sobre luta
numa noite como esta?”. Ele tinha respondido que, numa noite
como aquela, as pessoas morriam lutando, como em qualquer outra.
Como é bom lutar ao seu lado
Amigue de nossa mesa longa,
Mãe da minha criança.
Gavião trinava com sua voz fina e aguda, e o flutuador balançava,
mergulhava e subia enquanto o estômago de Connie tremia e
embrulhava. Gaivotas passavam por baixo delas. A neblina se
adensava no horizonte. Nada era visível além das nuvens e algum
flutuador que vez ou outra entrava ou saía das nuvens, como se
fosse um mar invertido de ar espesso e cinza.
Um exército de amantes não pode perder,
Um exército de amantes não pode perder!
Gavião trinava com sua voz esganiçada de soprano, alegre na
cabine fechada, e manobrava o flutuador para dentro de uma nuvem
que se derretia ao redor deles, apagando o mundo até que tudo
fosse apenas um algodão cinza fofo e ela não conseguisse mais
discernir onde era em cima ou embaixo. Connie ficou tonta e
agarrou mais as alavancas que controlavam sua arma lustrosa.
Luciente sorriu, olhando para trás.
— Não comece a atirar nas nuvens, docinho. Relaxa! Aproveite o
passeio. Eba!
— Aproveitar? Meu estômago já está na boca! Temos mesmo que
voar assim de ponta-cabeça?
— Somo como gaivotas, batendo as asas — Gavião gritou. —
Como você consegue não gostar de voar?
— Você se mudou essa semana, Gavião? — Luciente interrompeu
na hora certa.
— Dei meu lugar antigo pra Papoula. É entamanhado pra crianças,
a cama e as cadeiras são pequenas. Papoula estava esperando por
espaço por doismês. Estava planejado ir pro conselho pra virar
prédio de suprimentos se nada tivesse quebrado. Mas estou
pegando o espaço de Lebre, e Papoula pode pegar o meu.
Ela moveu o flutuador, virando num ângulo de noventa graus e
planando pelo espaço vazio — um desfiladeiro que dava no mar —
em direção a uma massa macia de nada.
— Meu espaço antigo é ótimo pra uma criança. Papoula está com
dez anos. Perto da casa das crianças então dá pra correr pra lá
quando quiser, se não quer passar a noite sozinhe às vezes. Mas o
pouso de flutuador é mais à mão para onde estou mudando. Amo o
som da água. Me desculpa! Sei como é. Sinto muito mesmo — ela
falou atrapalhadamente para Luciente.
— Hoje continuamo a luta de Lebre. — Luciente se ocupou com as
armas; estava operando a tralhadora e Connie, na traseira, o
scanner.
— Se sobrevivermo — Luciente disse, quebrando o silêncio depois
de uns cinco minutos —, você já lucidou o que vai fazer agora que
adultizou? Abelha disse que você está sonhando em viajar. Vai virar
aprendiz de alguém?
— Prefiro trabalhar com flutuadores do que qualquer outra coisa.
Mas quero viajar um pouco. Nunca pulei mais longe que o alto da
baía. Relâmpago e eu, a gente tem matutado sair por aí, depois que
a atual fase da guerra acabar, é claro.
— Como vocês vão saber que acabou? — Connie perguntou. —
Acham que vão ganhar logo?
— Ganhar? Isso acontece em surtos. — Luciente fez uma careta
olhando para trás. — Como manchas solares.
— Pensamo em ir pro sul. Acho que teremo algumas habilidades
úteis pra trocar e podemo sempre bracejar em qualquer trabalho
temporário. Relâmpago é polinizadore hábil. Sou mecânique
iniciante razoável. Não quero sair por aí pra sempre, como
caminhante qualquer, sem família, sem base. Nunca conseguiria
voar. Mas quero ver o que rola antes.
— Quarenta graus a nordeste — soou a voz de Luciente, precisa.
— Sessenta metros abaixo da nossa elevação atual. Combate
aéreo. Estou contando oito objetos.
Gavião cabrou a aeronave, então deu uns solavancos em meio à
maciez cinzenta das nuvens na direção que Connie acreditava ser o
nordeste. A velocidade aumentou a ponto de ela se sentir enjoada e
assustada novamente. Durante a conversa, tinha esquecido sua
ansiedade. Nenhuma delas falava agora. Gavião fazia muitas
manobras e Luciente conferia sua arma. Então ela tirou o cinto, foi
até um mostrador no teto para fazer alguns ajustes no lança-raios.
Daí voltou a colocar o cinto e rapidamente leu a posição delas nos
instrumentos.
— Quase lá — ela disse suavemente, apesar de que ninguém lá
fora pudesse ouvi-las pelas paredes da cabine. — Sistemas de
segurança desativados. Vamo acabar com tudo!
O flutuador sacolejou para fora das nuvens direto para o combate.
Quatro dos flutuadores eram decorados como todas as máquinas
em Mattapoisett. Os outros cinco (nove, não, oito, ela contou) eram
de cor cáqui e menores. Os motores deles eram barulhentos e
deixavam um rastro de poluição escura ao passarem.
Gavião as levou bem para o meio da confusão. O barulho era
ensurdecedor, e Connie se agarrou ao lança-raios. Quando viu um
dos flutuadores cáqui chegando perto, atirou com sua arma e torceu
para ter acertado. Uma explosão de luz serpenteou. Gavião as fazia
girar, subindo, mergulhando, virando de ponta cabeça e dando giros,
e parava quando Connie já não fazia ideia do que era para cima ou
para baixo. Um flutuador caiu no mar, em chamas, mas ela não
conseguiu ver qual deles era. Eram rápidos, altamente manobráveis.
Parecia uma competição de beija-flores, uma panapaná de libélulas
cintilando e zumbindo, virando para cima e para os lados com suas
terríveis garras e dentes. Os flutuadores eram lindos, mesmo em
combate mortal. As barrigas veludosas e macias das nuvens
invadiam a luta. As escamas cinzas da superfície do mar
inclinavam-se e refletiam a luz. Às vezes, Gavião voava tão baixo
que Connie conseguia ver a espuma da crista das ondas, com a
mancha se espalhando por onde o flutuador havia descido.
“Levada à morte por uma criança de doze anos de idade”, ela
pensou. Entre as nuvens e o mar vasto, passando rente a uma
nuvem de neblina, ela se sentiu minúscula. Eles haviam se
encolhido ao tamanho de insetos, pareciam mosquitos e pernilongos
girando no ar. Então olhou para Luciente e o senso de tamanho e
proporção voltou ao normal.
Com uma bandana vermelha amarrada na cabeça para impedir
que seus cabelos bagunçados caíssem nos olhos, Luciente estava
calma e alegre na tralhadora. Ela dominava as voltas e reviravoltas,
o sobe e desce do flutuador com um prazer aparente, como se
estivesse cavalgando em um cavalo espirituoso. O corpo dela se
movia com facilidade, não estava congelado pelo pânico como o de
Connie, num esforço fútil de manter algum ponto de referência de
alto e baixo. Luciente gingava e rolava, constantemente ajustando
sua mira.
Gavião as levou para baixo, para o centro da batalha novamente.
Outro flutuador passou por elas, quebrado, em chamas. Dessa vez,
ela conseguiu ver que era uma das máquinas cáqui. Tentou contar
as aeronaves quando chegaram perto. Talvez houvesse uma a
menos de cada lado.
Então estavam carenando para dentro e para fora entre os
flutuadores, soltando raios múltiplos. Ela mirava e atirava e tentava
não se perder nas voltas e reviravoltas. De repente, um dos
flutuadores cáqui veio seco em direção a elas, por trás, como se
quisesse se chocar. Assim que chegou perto, a uma distância de
uma ala, o inimigo se virou abruptamente e ficou ali parado como
um enorme mosquito, a tralhadora preparada para atirar enquanto
ela mirava e atirava. Connie conseguiu ver de relance claramente o
inimigo por um vidro redondo: os óculos grossos, o nariz aquilino, o
olhar azulado, satisfeito e cintilante do dr. Redding, tão vivaz e
eficiente atirando com sua tralhadora.
Quando os tiros se encontraram no ar, o vento pareceu se curvar e
o tempo parou, amontoando-se em uma onda prestes a se quebrar.
Ela viu que o piloto do flutuador inimigo era o pastoso dr. Morgan,
agarrado aos controles com seus punhos brancos enquanto
secretamente molhava os lábios. Mexendo-se no banco traseiro,
tentando de modo inútil fazer o lança-raios funcionar, o meticuloso
dr. Argent brilhava, balançando seu cabelo grisalho, vestindo um
fraque, elegante até o cravo vermelho na lapela.
Ela olhou em volta e viu todos os flutuadores inimigos convergindo
deliberadamente na direção deles como se tivessem sido
convocados para esse ataque. No momento em que olhou
atentamente para a direita e para a esquerda, notou que eram
pilotados e manejados pelo juiz Kerrigan, que havia lhe tirado a filha,
pelas assistentes sociais srta. Kronenberg, pela sra. Polcari, pelo
Acker e a srta. Moynihan, por todos os agentes da assistência social
e os médicos e os senhorios e policiais, os psiquiatras e juízes e os
orientadores do conselho tutelar, os informantes e os atendentes e
os enfermeiros, os defensores públicos sugerindo transações, as
enfermeiras-chefes e os técnicos de eeg, e todos os outros
espertalhões do poder que a empurraram de um lado para o outro e
a desestimularam e a trancafiaram e a medicaram e a sedaram e a
puniram e a condenaram. Eles se aproximavam, armas atirando.
Então o ar explodiu em chamas douradas e vermelhas e ela ouviu o
dr. Redding gritar:
— Bem no botão. Isso serve. Certo, leve-a para a ambulância.
Ela foi levada às pressas ao hospital universitário no sul e a
sedaram para a operação. Rasparam a cabeça mais uma vez,
retirando o pouco cabelo que havia nascido, e de novo ela estava
careca como uma cebola.
A operação levou menos de metade do tempo da anterior. Eles
removeram a sonda de microdiálise completamente e fecharam a
ferida com o cimento de dentista. Por um momento, pareceu que
iam deixá-la em paz, mas ela podia sentir que seus planos para ela
ainda não tinham acabado.
Dois dias depois, Connie estava de volta à ala, sua cabeça
raspada envolta em ataduras, mas a máquina maligna estava fora
do seu corpo e da sua alma. Ela mentalizou agradecimentos a
Luciente, se ela ainda estivesse viva. Será que tinha morrido
naquele flutuador em chamas? Mas a cena não fazia muito sentido.
Sua cabeça doía e era difícil se lembrar com exatidão.
Mas ela sabia algo novo. A guerra acontecia fora do seu corpo
agora, fora do seu crânio, mas o inimigo iria pressioná-la e violar
suas fronteiras novamente assim que eles decidissem seus
próximos movimentos. Ela ainda estava em guerra.
Connie lutou para mostrar um bom comportamento como paciente.
Ela cooperou, sorriu e brincou com os funcionários. Fingiu ser a
paciente educada, disposta e humilde do jeito que conseguisse,
porque queria que aquela maldita máquina ficasse fora da sua
cabeça.
— Acho mesmo que me ajudou — ela mentia descaradamente
para Acker. — Me sinto muito mais calma. Aqueles apagões me
assustaram.
— Bem, aquilo não vai acontecer de novo. Tentamos essa forma
de tratamento, mas estamos prontos a mudar para uma melhor, no
caso de o primeiro apresentar alguns efeitos colaterais — Acker
disse com afetação, fingindo ser médico para a srta. Moynihan, ao
lado dele. — Às vezes um paciente apresenta alergia à penicilina e
temos que usar outro antibiótico. Da mesma forma, você provou ser,
vamos dizer, alérgica à sonda de microdiálise... — Ele se
interrompeu quando viu o dr. Redding parado à porta com as
sobrancelhas arqueadas.
— Alérgica, é? — ele disse. — Qual é nosso problema nesta
manhã?
— Me sinto bem — Connie disse desesperada. — Nunca me senti
melhor!
Redding colocou a caneca de café fumegante na mesa, olhou para
os olhos de Connie e a cutucou.
— Há evidências de que a estimulação de pontos nas amídalas
pode produzir resultados — ele murmurou. — Ainda assim...
provavelmente temporários.
Connie se levantou assim que eles saíram e se sentou na sala
comum, pronta para começar a conversar com qualquer um que
parasse ali. Ela penteou a peruca e arrumou as roupas. Comia sua
comida, se interessava, conversava com os funcionários com
educação e deferência. Sentava-se com Tina, cuja cabeça não
parava de doer. Ela segurava a pequena mão flácida e morena da
Tina, cheia de cicatrizes e calos, a ponta de um dedo faltando. Tina
se levantou e disse meio grogue que tinha perdido aquele pedaço
numa fábrica de caixas. Ela era funcionária temporária, então não
tinha ganhado nenhuma compensação por aquilo; em vez disso,
tinha sido demitida.
— Ah, como minha cabeça dói. Fala pra eles me darem alguma
coisa! Vai lá e pede pra eles.
A equipe estava aliviada de ver Connie de pé novamente; ela dava
mais trabalho quando estava retraída. Agora ela se cuidava e se
voluntariava quando podia. Eles finalmente deram morfina ou algo
assim para Tina, deixando que ela voasse para o céu dos dopados,
aquele lugar alto e silencioso no qual ela já tinha ido por vezes
demais quando estava ferida e derrotada. Então a Tina foi retirada
dali como se estivesse morta.
— Você está bem melhor — a enfermeira Roditis disse em sinal de
aprovação para Connie, e soltou um sorriso. — Agora você quer
ficar melhor.
— Ah, sim. — Ela forçou um sorriso amarelo. — Quero melhorar
agora. — “Guerra”, ela pensou. “Estou em guerra. Sem mais
fantasias, sem mais esperanças. Guerra”.
CAPÍTULO 18

— Ora se não é a senhorita Paciente Modelo, dando duro pra


ganhar um elogio da enfermeira — Sybil chiou quando se aproximou
de Connie, que estava varrendo a sala comum.
Ela estremeceu e ficou calada, mas a injustiça a afligiu. Como a
Sybil podia não ter fé? Ela queria se virar e gritar que quando tinha
tentado fugir, Sybil ficara com medo de ir com ela. Mas Sybil tinha
sido colocada em isolamento por tê-la ajudado. E Sybil ainda estava
intocada. A equipe observava o Capitão Creme e Tina com atenção
para ver se os implantes deles funcionavam antes de colocar outros,
mesmo que isso atrasasse o plano deles. Ainda assim, todos os
estágios estavam presentes na ala, antes, durante e depois: as
vítimas, os experimentos e o material fresco. Quinhentos
chimpanzés nas gaiolas.
— Eu não sonho mais — reclamava o Capitão Creme. — Como
assim eu não sonho mais? Tem algo faltando.
Tina estava chapada de analgésicos e reclamava apenas quando
as pílulas mágicas atrasavam.
Tomada por um interesse sagaz e cauteloso, Connie se
voluntariava para toda tarefa definida como trabalho de mulher,
limpando, varrendo, ajudando com os outros pacientes, recolhendo
a roupa, buscando coisas e as carregando para os enfermeiros;
assim, tentava aumentar sua chance de escapar. Esse era um
hospital-escola chique, menos austero, menos sujo e lotado que
Bellevue e Rockover. A maioria dos pacientes era temporária e
todas as outras alas eram de livre acesso. Se o hospital não
conseguisse processar os pacientes em alguns meses, eles eram
enviados para hospitais privados ou estaduais, dependendo dos
meios da pessoa. Grande parte parecia ser gente branca de classe
média com problemas conjugais ou profissionais. Todos vestiam
roupas próprias e tinham um médico designado.
Esse era o único hospital psiquiátrico em que ela havia estado
onde os médicos realmente atendiam os pacientes. Ela não fazia
ideia do que estava acontecendo. Da primeira vez que tinha sido
internada, quando acreditava que estava realmente doente, ela
havia esperado por um tratamento. Um médico gentil e grisalho, tipo
um Marcus Welby da mente, ficava atrás da escrivaninha fazendo
perguntas para ela com uma voz erudita, mas tranquilizadora,
explicando exatamente como ela tinha dado errado. Ela chorava e
entendia. Confessional. Padres que curavam. Mas todos os médicos
perguntavam nos cinco minutos que lhe eram concedidos o nome
do presidente, a data, por que ela achava que estava ali, então
pediam para ela contar de cem até um de sete em sete.
Contar de trás para frente sempre a confundia. De algum jeito, ao
mudar de escola do Texas para Chicago, ela tinha perdido alguma
coisa de aritmética. Nunca conseguia acertar uma gorjeta ou
perceber que a caixa do mercadinho a estava enganando, mesmo
quando ela conferia o troco, olhando torto para a própria mão a fim
de enganar a caixa, fazendo ela pensar que sabia o que estava
acontecendo.
— Vamos ver, cem, noventa e três, oitenta e seis, setenta e nove,
setenta e dois... — um frio na barriga a fez estremecer. Não deveria
ter sido setenta? Ela tinha errado. Sete dezenas era setenta, ela
sabia disso. Ela tinha feito errado de novo.
Se conseguisse sair da porta trancada da ala, estava convencida
de que poderia fugir do hospital. Havia um guarda no lobby principal,
mas ele quase nunca parava as pessoas. Muitos pacientes externos
entravam e saíam, e liberações para pacientes internados eram
comuns. Ela sabia que conseguiria depois que passasse da porta da
ala. Mas, já que tinha tentado fugir uma vez, eles a observavam com
mais atenção ainda. Toda vez que ela ficava muito perto da porta, os
auxiliares ou enfermeiros perguntavam o que ela achava que estava
fazendo. Por fim, todas as suas desculpas acabaram. Às vezes, ela
ficava no posto de enfermagem de papo com os funcionários para
ficar de olho na porta, tentando formular um plano de como passar,
mas, se ela olhasse demais para a porta, eles já ficavam
desconfiados. Então ela tentava se redimir se oferecendo para fazer
café para eles. Os médicos tinham sua própria bela cafeteira
elétrica, que ficava do lado de fora da sala de conferências. Redding
tomava de dez a catorze copinhos por dia, e a secretária, Patty, ou
um dos auxiliares ou ajudantes fazia café fresco de tempos em
tempos. O pessoal menos graduado às vezes bebia o café dos
médicos, mas a maioria usava uma cafeteira italiana elétrica na
cozinha pequena. Às vezes até os pacientes tinham permissão para
usar essa última, ou podiam beber uma xícara de café
ocasionalmente à tarde. Para Connie, isso fazia uma diferença
grande, deixando-a desperta para planejar e pensar.
— Sinto muito que você não tenha conseguido escapar — ela
disse a Tina enquanto se arrumavam para se deitar.
Tina não respondeu por um tempo. Então ela falou numa voz
suave, remota:
— Meu marido foi o único cara que eu amei de verdade, com
todas as minhas forças. Prenderam ele pra cumprir trinta anos.
Talvez seja perpétua. Duas vezes por ano eu vou lá visitar. São
quinze minutos falando com uma grade no meio. Ele está
envelhecendo rápido lá. Está caindo cabelo, dente... talvez seja
perpétua!
Na hora de dormir, enquanto Connie chapinhava no escuro de um
sono induzido pelos remédios, Skip andava de leve pelos quartos da
ala e parava aos pés de sua cama. Depois de morto, seu cabelo
tinha crescido e ele tinha readquirido aquela graça de movimentos
que ele tinha.
— Vem comigo — ele dizia por sobre uma Tina adormecida. —
Você não vem? Vem embora comigo, queridinha! Não deixa eles
roubarem o melhor que você tem.
Qual era o problema? Era sua criação católica que a impedia de
pensar em suicídio? Tanto que os métodos contraceptivos pareciam
muito mais um pecado do que ir para cama com alguém. De algum
jeito, a ideia não se fixava nela.
— Eu tenho meu próprio jeito — ela falou para Skip, murmurando
no limiar do sono com o vento que passava pelas telas de sépia e
que vinha do frio do fim do mundo onde eles empilhavam os corpos.
À triste luz da lua, ela sussurrava para Skip: — Estou lutando
também. Até agora, quando me curvo, lambo as botas deles, me
arrasto e imploro, estou ganhando tempo. Espere e veja o que vou
fazer.
No almoço de macarrão com um pouco de queijo, ela disse para
Sybil:
— Não confia em mim? Depois desse tempo todo você ainda não
me conhece?
— Como posso conhecer minha amiga quando vejo ela prostrada
diante da Inquisição? — Sybil bebericou o leite como se fosse vinho,
olhando para baixo, para o nariz arqueado e ossudo dela.
— Estamos em guerra, Sybil, você não percebe isso?
— E que guerra! Parece mais um massacre. — Sybil bufou. —
Logo serei queimada na fogueira, na fogueira pequena. Mais
economicamente viável, como diz o grande mestre.
— É uma guerra Sybil. Se eu conseguir uma liberação... Sei que
consigo dar um jeito de fugir. A cidade é tão perto daqui. Assim que
sair dessa ala, a gente consegue. As pessoas entram e saem desse
prédio o dia todo, pacientes externos, voluntários. Se eu conseguir
chegar aos elevadores...!
— Tem muito mais gente indo e vindo, sim — Sybil falou pensativa
—, mas tem mais funcionários também. Ainda não vi o posto de
enfermagem vazio.
— Você está observando também.
Sybil sorriu.
— Os voluntários, alguns são universitários. Aquela hippie que
vem nas quintas, Mary Ellen? A enfermeira Roditis falou pra ela que,
abre aspas, eu acho que sou uma bruxa e vou por aí enfeitiçando
pessoas, fecha aspas. Mary Ellen veio e me perguntou se eu estava
envolvida com ervas.
— E o que você disse? — Ela se sentiu próxima à amiga.
— Disse que estou envolvida por essa ala, mesmo que contra a
vontade. Mas tenho interesse em ervas e já realizei algumas curas
com elas.
— Ela estava te zoando?
Sybil balançou a cabeça.
— Ela me disse que muitos universitários estão interessados em
ervas. Falamos sobre valeriana, tomilho, alecrim, raiz de confrei. No
fim, ela me perguntou se eu era mesmo uma bruxa, e quando disse
que sim, ela ficou bem satisfeita. Disse que várias das amigas dela
estão “envolvidas” com bruxaria. Ela disse que está tentando obter
uma permissão pra uma das amigas vir falar comigo.
— Você não acha que ela estava... rindo por dentro, como eles
fazem?
— Não, Consuelo. Ela já leu um herbário e curou uma infecção na
perna com compressas de levístico. A gente teve a conversa mais
civilizada que eu tive nos últimos tempos. Tirando as nossas, claro.
Fiquei preocupada com você quando colocaram aquela máquina na
sua cabeça.
— Ah, não sei a diferença de ervas pra mato. — Ela pensou em
Luciente dando aquele monte de mato para ela comer e quase abriu
a boca para contar a Sybil. Então a fechou, e depois de um
momento disse: — Minha avó conhecia ervas que curavam. Mas até
meus pais faziam piada disso. Não era moderno nem científico,
como ir ao hospital e morrer de infecção.
— Imagina, universitárias que estudam bruxaria. Ela disse que tem
uma aula disso na parte de estudos femininos. Nunca ouvi falar de
algo assim. Se eu pudesse ter feito faculdade, Consuelo... Sou
autodidata. Quis ir pra faculdade, quis muito.
— Eu também. Fui por dois anos.
— Comecei também, no turno da noite, mas era caro. Eu chegava
em casa tarde da noite, então tinha que acordar cedo pra trabalhar...
Eu deveria ter continuado, Consuelo. Deveria ter tido mais
disciplina!
— Você precisava de mais do que disciplina. Precisava de
dinheiro. Precisava de um bom transporte público.
— Fico pensando quem ensina bruxaria pra elas. Imagina. — A
voz de Sybil acariciava seus ouvidos, tocando de leve como uma
língua quente. — Uma rede secreta de conciliábulos por toda Nova
Iorque! Imagine as barras esfarelando nas janelas. Imagine os
médicos caindo duros nos corredores! Os cadeados derretendo e
escorrendo feito caldo grosso no chão!
— Não fiquem fofocando na hora do almoço, garotas. Vamos,
terminem logo. — O enfermeiro Tony as apressou, enquanto mexia
nos botões do walkman. Ele estava sempre ouvindo música para se
isolar do hospital, dos pacientes, do tédio. — Trá-lá-lá, vocês sigam
andando.
— Podemos pensar o que quisermos. Mas temos que fazer algo
real — Connie disse, meio lamentosa. — Estou tentando criar algum
espaço ao puxar o saco deles.
Sybil balançou a cabeça ao ouvir a expressão.
— Se a gente encontrar um jeito, estou dentro.
Dolly entrou espalhafatosa naquele momento, toda de amarelo.
— Oi, Connie, boneca. Olha, falei com papai. Ele disse que talvez
deixe você visitar. Que tal? — Ela beijou Connie, exalando uma
nuvem de perfume. — Ele disse que com certeza vai vir aqui visitar
você com a Adele.
— O que, precisam que ele assine outra permissão?
— Ele disse que quer ver você. O hospital avisou que você
melhorou. Olha, eu trouxe pra você uma peruca bem chique. Preta,
como você queria. Pués, tía? Me dá aquele sorriso.
Valente e Sybil e a srta. Green e até a Tina, balançando um pouco
sentada na beirada da cama, se reuniram ao redor de Dolly e dela.
A maior parte da preciosa visita de Dolly se gastou na peruca. Ela
vestiu a peruca e a mandaram se olhar, entre vários ohs e ahs. Seus
olhos turvos e injetados, os lábios mordidos e rachados, a palidez
hospitalar transparecia por debaixo dos cachos penteados, negros e
elegantes. A peruca parecia pesada e ela ficou ali sentada
ostentando aquilo como uma coroa.
— Dolly, por favor! — Ela agarrou o braço da sobrinha. — Me tira
daqui. Deixa eu ir te visitar. Não quero passar o Dia de Ação de
Graças aqui. Por favor, fala com eles pra deixar eu ir com você no
feriado. Vou cozinhar pra você, hermana mía. Lembra como eu
costumava fazer? Vou dar pra Nita um dia de dar graças de
verdade!
— Talvez, Connie. Tem uma convenção chegando. Preciso de
grana.
— No feriado mesmo? Não vou te atrapalhar. Posso ficar
esperando na biblioteca. Posso levar a Nita pro cinema. Ou pro
zoológico. Posso levar a Nita pro zoológico no Central Park e vamos
dar amendoim pros macacos.
— Não se preocupa, Connie. Papai falou que talvez você possa
visitar ele. Você fala com papai. Preferia não ter que trabalhar nos
feriados, mas são os negócios. Mas agora você parece dez anos
mais nova!
Quando Tina foi levada para fazer exames, Sybil se sentou na
cama e suspirou.
— Boa tentativa com sua sobrinha. Mas é verdade, a peruca é
uma boa. Ela cobre o buraco estranho. Você não iria muito longe
sem alguém perceber isso.
— Mas qual a vantagem se eu não consigo sair daqui?

...

Na noite seguinte, ela estava na fila da enfermagem.


— Enfermeira, por favor, posso ligar pro meu irmão? Tenho os
trocados aqui comigo.
— Pra onde você quer ligar?
— Bound Brook, Nova Jersey.
— Não é possível fazer interurbano.
— Mas eu tenho o dinheiro. É pro meu irmão. Olha, veja, por favor,
ele está na lista de visitantes.
— Ele tem vindo?
— Não, mas prometeu que vai vir.
— Por que você quer ligar pra ele?
A sua vida era algo para o escrutínio de todos.
— Só quero perguntar como vai a família. Dizer pra ele que estou
melhor. Talvez perguntar se ele não quer vir me ver no Dia de Ação
de Graças.
— Ok, mas sem grilo. Não quero você enchendo o saco da sua
família daqui.
Havia uma fila enorme perto do telefone, nove pessoas na frente
dela. Falar com o Luis não era um prazer nunca, mas ela tinha de
convencê-lo quanto ao feriado. Eles teriam de deixá-la sair então.
Ela não dava a mínima para um peru recheado; eles podiam recheá-
lo com notas de dólar e comê-lo com molho de Arpège. Mas ela
precisava aproveitar a chance para escapar, antes que a operassem
de novo. Aquela chance era menor que um fio do cabelo que tinha
perdido.
Por uma hora e vinte minutos ela ficou de pé, alternando os pés de
apoio, esperando pela sua vez de usar o telefone. Ela suava com
medo de que fosse dar a hora de fazer fila para os remédios da
noite e ela ainda não teria conseguido colocar as mãos no telefone.
Finalmente, ela discou. “Que não esteja ocupado”, rogou. “Santa
María, por favor, faça eles estarem em casa e que não esteja
ocupado e que Luis me atenda com bom humor, eu lhe imploro, por
favor!”.
— Alô.
Com cuidado ela pronunciou o nome da maneira inglesa, da
maneira que ele gostava.
— Luuu-is? Oi, é o Lewis?
— Sim, quem fala? Quem está falando?
— É a Connie, sua irmã.
— Sim? — Um silêncio bem pesado como uma avalanche de lama
escorreu pelo telefone. De forma desesperada, ela continuou.
— Estou ligando do hospital. Disseram que estou bem melhor.
Lewis, disseram que estou bem melhor e eu me sinto muito bem.
— Que bom. Você está num bom hospital agora, sabe? É um
hospital de primeira. Se eles estivessem fazendo você pagar, não
passaria da porta, sabe?
— Claro, Lewis. Como vai a família? Como está a Adele? E o Mike
e a Susan? — Por um breve e terrível minuto, ela achou que tinha
errado o nome da nova bebê. Só tinha ido à casa do Luis uma vez
desde que ela havia nascido. Talvez nem fosse Susan.
— Mike está bem, fala o tempo todo agora, me dá isso, me dá
aquilo! Ele é filho da mãe dele, é sim. Está nascendo dentinho na
Susan, então ela grita o tempo todo, mas ela é tão linda quanto um
quadro. É uma loirinha de verdade, cabelo loiro super liso, escorrido.
Ela vai ser uma vencedora, essa daqui.
— Que notícia boa, Lewis, isso é maravilhoso. Queria poder ver a
Susan. Queria poder ver você. Como vai a Adele?
— Ela está bem. Comprou um casaco de pele de raposa novo.
Lindo. Ela queria de vison, mas vai ficar querendo por um bom
tempo, se os negócios não melhorarem. É uma época ruim pros
viveiros em geral. As pessoas não estão gastando dinheiro igual
faziam dois, três anos atrás, estão construindo pouco. Com exceção
das árvores frutíferas. Muitas pessoas estão colocando árvores
frutíferas nos quintais nos subúrbios. Triplicamos as vendas de
árvores frutíferas. Mas isso é uma coisa meio sazonal. As pessoas
não compram uma macieira nova todo ano.
— Dolly veio me ver, ela disse que você talvez venha me visitar.
— Claro, Connie. Só é difícil arranjar tempo. Só tenho tempo livre
nos fins de semana, mas o trânsito fica horrível.
— Talvez você possa vir então... Lewis. — Ela quase errou e falou
Luis pela alegria. — Talvez na Ação de Graças eu possa ir visitar
vocês? Eu não daria trabalho. Posso ajudar Adele. Adoraria ver os
bebês.
— Sim? — Ele não acrescentou nada, até que a telefonista
interrompeu. Ela colocou mais moedas; tinha juntado muitas.
— Pelo menos por um dia, Lewis, pra Ação de Graças, de um dia
pro outro? É tão solitário aqui no hospital em época de feriado. Um
feriado bem família. Todo mundo vai pra casa. O médico disse que
estou bem melhor. Você podia falar com ele, o dr. Redding. Por
favor, Lewis.
— Vamos ver. Você teria que voltar no sábado de manhã, porque
no sábado à noite vamos dar uma festa. Mas você podia ajudar um
pouco. Vamos ter comida pra alimentar um exército, sempre
temos...
— Podia ajudar a Adele a cozinhar e limpar. Você sabe que eu
cozinho super bem, lembra, Lewis? Posso ajudar a aprontar a festa.
É muito trabalho pra Adele.
— Ah, ela tem uma moça que ajuda uma vez por semana.
— Mas, no feriado, é bastante trabalho. Posso ajudar e não me
importo de voltar no sábado. Não me importo mesmo. Seria tão bom
ver vocês na Ação de Graças.
— Bom, a gente pode fazer isso. Vou falar com o médico.

...

— Doutor Redding, doutor Redding, por favor. — Ela estava


acompanhando o caminhar dele para chamar sua atenção. — Falei
com meu irmão, e ele e a esposa, eles querem me levar no Dia de
Ação de Graças. Posso ceiar com eles? Seria tão bom. Você disse
que estou melhor.
— Seu irmão quer você lá?
— Ele disse que sim. Ele disse que queria. Disse que eu podia
ajudar a mulher dele. — Acompanhava o caminhar dele. — Ele
disse que iria ligar pro senhor pra falar sobre isso.
— Não ligou. Vamos ver. — Ele a dispensou com um movimento
sério da cabeça. — Morgan, a Moynihan fez algum exame nela
nessa semana? Quero mantê-la sob monitoramento.
Enquanto o dr. Morgan a levava para a máquina de
eletroencefalograma, ele comentou sobre o perfume dela.
— Isso é pra mim? — disse, rindo como se ela fosse uma idiota.
— Que legal! — Ele fazia brincadeiras com ela o tempo todo, porque
não tinha medo dela; ela era pequena demais para assustá-lo,
diferente de Sybil ou Alice.
Para fazer o eletro, ela foi levada para fora do pavilhão e subiu
dois andares. Sempre que entrava no elevador, o coração dela batia
acelerado e ela imaginava a possibilidade de descer em vez de
subir, saindo às ruas cujas sarjetas estavam cheias das torrentes
das chuvas frias de novembro. A srta. Moynihan a tinha feito tirar a
peruca e a bolsa, mas ela conseguiria fugir se tivesse um momento,
ou uma saída.
A srta. Moynihan usou a segunda sala, com a máquina mais
moderna da época. Connie estava tão acostumada com a rotina
naquele momento que ela se sentou docilmente, como se estivesse
no salão de beleza, enquanto a Moynihan penteava para os lados
os pequenos cabelos que ela tinha e marcava seus alvos usando o
gel e as ventosas para fixar os eletrodos, então colocava uma
compressa de gaze por cima. Os fios levavam até o marcador na
máquina perto da cabeça dela e, enquanto se deitava, a Moynihan
colocava uma toalha enrolada em sua nuca. Então diminuía a
iluminação e começava a cantar uma cantilena, que devia ser para
relaxar os pacientes.
— Então, vamos lá hoje. Você já é macaca velha nisso agora. Só
relaxe. Mas não vá dormir aqui. Só relaxe e ganhe um descanso de
beleza... — A srta. Moynihan sentou-se fora do cubículo, na
máquina, cujas agulhas coloriam a sanfona das pilhas de papel que
eram cuspidas da parte cheia de botões. Falou em um tom
monótono para Connie: — Feche os olhos... Abra um pouco a
boca... Abra os olhos... — As agulhas se moviam rápidas, enquanto
ela fazia algumas anotações obscuras que sempre deixavam
Connie terrivelmente desconfiada.
Ela tinha uma das suas fantasias preferidas enquanto estava lá
deitada. A srta. Moynihan seria chamada para alguma coisa. Seria
chamada ao telefone. Uma emergência familiar. Ela tinha família?
Sim, pelas fofocas dos pacientes, a mãe dela tinha morrido, o pai
trabalhava no metrô, o irmão mais velho era um inspetor de
construção civil e o irmão mais novo ainda estava na escola...
— Tente não mexer tanto os olhos, senão vamos ter que colocar
fita crepe neles. Relaxe. Abra um pouco a boca e fique assim.
A srta. Moynihan seria chamada ao telefone e Connie se sentaria
na hora, arrancaria os eletrodos e, disfarçadamente, passaria pelos
dois balcões do lado de fora, onde às vezes havia uma mulher e às
vezes não havia ninguém; iria virar à direita e sair pela escadaria no
final do corredor. Ela conseguia se enxergar fazendo isso várias
vezes... — Tente relaxar, sra. Ramos. Não resista. Relaxe.
Ela andaria em direção ao sul, até o Harlem, no meio da chuva
linda e límpida. Os pacientes tinham dito que o pai da Moynihan não
aguentava o Acker. Romeu e Julieta. Um romance condenado. A
srta. Moynihan tinha belos olhos cinzentos, nos quais tudo parecia
se dissolver. Ela caminhava de forma ocupada, eficiente, firme,
saltitante, mas, em seus olhos, o caos revolvia. Connie decidiu que
ela estava desejando ficar grávida. Com tantas camas em um
hospital, deve ser fácil para eles transarem... A srta. Moynihan bateu
na máquina, batidas fortes, como se pudesse ler a mente de
Connie. Eles batiam daquele jeito às vezes, ela nunca entendeu o
porquê. Será que Moynihan achava que ela estava cochilando? E se
ela de repente fosse para Mattapoisett, o que será que a máquina
iria mostrar? Luciente tinha morrido? Por que ela nunca mais a tinha
sentido?
Foi na semana antes do Dia de Ação de Graças. Capitão Creme
tinha feito a operação final e estava com um curativo na cabeça. Ele
precisava ser vestido e comia tão devagar que o Tony ficava doido.
Ele comia tanto quanto Alice. Olhando para ele, Connie teve o
pressentimento de que ele ficaria comendo o dia todo na mesma
velocidade irritantemente lenta enquanto fossem colocando comida
na sua frente. Ele simplesmente continuava fazendo o que quer que
começasse a fazer. Se era levado ao banheiro, ficava sentado lá até
alguém se lembrar de ir buscá-lo. Alice afundava-se no salão, quieta
e assustadora. Orville, com um implante, fazia piadas que ninguém
achava engraçadas e ria o dia todo. Alvin os chamava de os três
patetas, mas ele mesmo não parecia achar aquilo tão engraçado. A
cirurgia do Alvin estava marcada para ser na próxima segunda, junto
com a da srta. Green. Já era para ele ter sido operado, mas o dr.
Redding tinha ganhado seu convite para a cabana de caça do dr.
Argent e tinha emendado uma folga no final de semana.
Connie se esmerou em ser uma paciente modelo. Ela montava
quebra-cabeças, assistia à televisão, participava de todas as
conversas, pedia conselhos e concordava, mantinha sua peruca
para esconder o couro cabeludo que coçava e cuidava dela como
um cão vencedor de concursos. Ela se voluntariava para tudo, era a
esposa da ala. Da próxima vez que pediu, facilmente obteve
permissão para ligar para o irmão.
A fila estava maior, todos com o mesmo problema, chorando,
implorando, tentando conquistar. Somente um pensamento
efervescia na mente de todos eles. Quando ela chegou ao telefone,
o número deu ocupado. Quando estava quase na sua vez de novo,
já era hora de apagar as luzes.
Na noite seguinte, depois de esperar uma hora e dez minutos,
conseguiu ligar.
— Lewis, é a Connie, de novo. Eu estava pensando aqui sobre o
Dia de Ação de Graças.
— Sim, talvez no Natal. Como você está?
— O médico disse que estou melhor; você falou com ele? Qual o
problema com a Ação de Graças? O Natal está tão longe... — Pelo
Natal ela já teria sido operada de novo. — Lembra, ia ajudar a Adele
a cozinhar e limpar e preparar a sua festa? Por favor, Lewis, por
favor!
— Você nunca foi boa pra trabalhar, Connie. Tem bastante coisa
pra fazer. Seria melhor pra gente pedir pra mulher da limpeza vir um
dia extra.
— Vou trabalhar, Lu-Lewis, vou trabalhar! Pergunta pra eles aqui
se eu não limpo a ala toda, se eu não varro e passo o pano e
espano. Aprendi a lição, por favor, deixa eu mostrar pra vocês. Eu
quero tanto sair pra Ação de Graças!
— Acho que é solitário no hospital, hein, Connie? — Ele estava
brincando de gato e rato com ela.
A mão dela suava no aparelho engordurado; a manteiga cinzenta
da ansiedade humana.
— Por favor, irmão, deixa eu visitar vocês. Deixa eu ajudar a
Adele. Deixa eu ver meus sobrinhos. Vou limpar e cozinhar. Vou
lavar a louça. Vou deixar a casa brilhando.
— Você nunca foi uma boa doméstica, a menos que te ensinaram
alguma coisa. Além disso, vamos arrumar a casa com um tema
tropical, vamos colocar plantas por todo lado. Você não gosta de
trabalhar no viveiro, lembra? Você disse que os produtos te dão dor
de cabeça.
— Isso foi anos atrás! Vou trabalhar tanto que você teria que
contratar quatro homens pra fazer o trabalho que vou fazer. Só
deixa eu sair daqui alguns dias. Deixa eu ficar com vocês por uns
dias!
— Vou conversar com umas pessoas. Não ligue de novo. Eu aviso
o hospital se decidir te dar uma chance. — Ele desligou.
Tremendo de raiva, ela saiu do orelhão. Ela se odiava por ter
implorado para ter o privilégio de esfregar o chão da casa do Luis
em Bound Brook. Claud teria parado de falar com ela se tivesse
ouvido aquela conversa; ele teria ido embora como uma bala. Mas
era guerra, ela pensou. “Estou conduzindo operações secretas.
Estou dentro das linhas inimigas e devo usar uma máscara com um
sorriso. Tudo bem implorar e rastejar e adular, porque isso é uma
guerra. Eles vão ver como eu perdoo!”. Isso a fez se sentir mais
forte.
— O que ele disse? — Sybil estava esperando por ela no salão.
— Disse talvez. Ele não me deixaria tranquila me dando uma
resposta, fosse sim ou não.
Sybil tocou no ombro dela de leve.
— Bem, Ação de Graça juntas... já tivemos pior.

...

Só Alice, Capitão Creme e Connie conseguiram permissão para


passar o Dia de Ação de Graças com a família. Connie colocou seu
velho vestido turquesa, que ficou um pouco largo, e ajeitou a nova
peruca na cabeça. Todo mundo estava cacarejando e arrulhando
para ela, menos Sybil, que ficou meio distante, e Alice, que estava
sentada no salão, embrulhada como se fosse um presente,
esperando. Sybil conseguiu chegar perto de Connie por um
momento e sussurrou:
— Espero que você... voe.
— Vou tentar.
Brevemente, antes que o auxiliar pudesse alcançá-las — “sem
contato físico”, o slogan da ala —, elas se beijaram.
— Espero nunca mais te ver de novo — Sybil murmurou. — Minha
amiga querida, fuja!
A casa do Luis tinha um andar superior, um inferior e um
intermediário; este último não tinha portas e paredes, era um grande
espaço aberto, como uma ala de hospital. Cômodos e mais
cômodos. Ela foi levada para um quarto no ponto mais alto da casa,
subindo uma escada coberta por um carpete dourado que devia
sujar facilmente. Ela tinha um banheiro só para ela, com um
chuveiro e vaso sanitário e uma pia com espelho, além de um
espelho de corpo inteiro atrás da porta. Connie não se via por inteiro
há meses. A pia parecia uma penteadeira, toda branca com as
bordas em dourado.
O quarto tinha duas camas de solteiro, e ela ficou tonta de pensar
que podia escolher uma ou outra. Por um momento, seus olhos
marejaram. Ela piscou. Por que uma cama a fazia chorar? Por
meses ela não tinha escolhido nada. Luis deixou a pequena bolsa
dela em uma cama, então ela decidiu dormir na outra. Ela se sentia
aliviada. Tanto espaço ao seu redor, era quase assustador, a
deixava tonta, distraída, pensando que aquilo era liberdade, não
uma prisão mais sofisticada.
Havia uma janela no quarto, coberta de cortinas azuis e brancas
meio translúcidas e persianas douradas. Rapidamente ela afastou
duas das abas para espiar o lado de fora. Puxa, que pena! Dois
andares abaixo havia uma área de concreto refletindo a luz de uma
luminária no alto da casa. Uma churrasqueira ficava em um dos
cantos dessa área, antes que o jardim se abrisse para os arbustos.
Sem chance de sair por essa janela.
O jardim era elegante, com pinheiros e juníperos plantados de
forma desigual nas beiradas, mas de noite e no frio parecia meio
lúgubre. O solo estava congelado e árido. O facho de luz que
envolvia a casa e a protegia contra os bandidos não a deixava
perceber se a noite estava nublada ou límpida. Ela torceu para que
não nevasse. Isso tornaria a fuga mais difícil. Ela desejou que Luis a
tivesse convidado mais vezes no passado, porque assim conheceria
melhor a região. Para que lado deveria ir para pegar o transporte
público? Precisava descobrir isso.
Sem bater à porta, Adele a abriu.
— Se quiser arrumar a mesa, vamos comer torta e tomar um café
antes de nos recolher.
Eles eram loucos, mas fizeram isso mesmo: tomaram café feito em
uma cafeteira elétrica branca e azul antes de irem para cama, e
comeram uma torta industrializada. Estava uma delícia. Connie a
comeria inteirinha. Uma compulsão terrível de comer e comer e
comer ficou presa na garganta dela. Comida com sabor. Ao se virar
um pouco para a direita na cadeira, ela conseguiu ver a geladeira,
enorme e marrom e dourada, que ficava atraindo o olhar sonolento
dela, todo aquele espaço dourado recheado de comida. Ela a tinha
visto quando foi retirar o creme sem lactose para o café. Tinha visto
o peru descongelando. O freezer estava cheio de bifes, carnes
assadas e costela, e vegetais em caixas coloridas. Tinha visto litros
de leite, uma barra de manteiga, vegetais na gaveta, um molho de
salada pela metade, ovos de verdade, caixas de suco de laranja. Ela
se imaginou levantando-se da cadeira de forma lenta e, com sua
dose de Amplictil — ela havia sido fortemente dopada como
preparação para sua saída —, tropeçando pela cozinha até a
geladeira, sentando-se no chão e tirando um item de cada vez até
que tivesse comido tudo que tinha dentro daquela caixa dourada.
Tudo a chamava, cantando com voz de soprano e de sereia: os
potes de azeitona, o creme de amendoim com pedaços, o salame, o
pacote aberto com linguiça de fígado, o pote de cerejas marasquino,
o queijo cheddar, o patê industrial, o bacon, os ovos, o pudim de
chocolate da prateleira de laticínios, os refrigerantes, as frutas
cortadas em pedações redondos.
Eles comeram bem rápido. Luis não parou de falar sobre o seu
dia. Ele falava rápido e conversava bastante e não gostava de
interrupções; isso não havia mudado nada. Mas esse homem de
negócios de meia idade, obeso, vestido com um terno cinza escuro
e a gravata larga com uma estreita faixa escura, o rosto redondo e
bolachudo, criando umas papadas, a calvície que subia da testa até
o meio do escalpo, os dedos gordos com um anel da maçonaria que
ficavam segurando a beirada da mesa enquanto falava, como se ele
temesse que, se soltasse, fossem sair voando —, ela o conhecia de
algum lugar?
— “Todas elas estão com manchinhas marrons nas folhas”, ele
dizia pra mim. “Não estão boas. Eu te paguei seiscentos pau pra
você decorar o hall de entrada e elas estão tudo com mancha
marrom”. “Foi um preço especial que eu fiz pra você”, eu falei. “Elas
estão o dobro agora”. “Tudo coberta com mancha marrom”, ele
falou. “Olha”, eu disse, “eu podia ter feito o serviço com plástico.
Temos ótimas opções em plástico. Você quis as naturais. Agora
veja, o mundo está cheio de insetos e de pragas. Você podia ter
adquirido meu serviço. Os meus rapazes te visitam todo mês sem
falta e limpam as folhas, matam as doenças e colocam fertilizante. A
gente faz a manutenção. Se algo estraga, a gente troca. É um
seguro. Mas você não se interessou. Agora você vem reclamar que
alguma praga atacou suas plantas. Claro que pegou alguma praga.
O que você achava, que era só colocar uma placa de proibido pra
insetos? Se você não faz o investimento, é dinheiro que vai pelo
ralo”. — Luis contava a história com satisfação. — Que aquele idiota
pinte as folhas de verde. Tentando se aproveitar de mim. Quando
faço um trabalho daqueles por um preço camarada, faço o que
precisa e pronto.
Adele se sentou dando pequenas mordidas na torta e balançando
a cabeça, fazendo pequenos sons para acompanhar o falatório alto
da voz dele, que não se interrompia: “hum, uhum, ah amor, hum”.
Ela olhava com atenção as próprias unhas. Na maior parte do
tempo, mantinha os olhos próximos do rosto dele, enquanto a mente
voava alto como uma pipa em outros ventos. Uma hora ela sorriu
rapidamente, parecia ter se lembrado de algo prazeroso, depois
voltou a suavizar a face.
Adele se confundia um pouco com a Shirley, a italiana, segunda
esposa do Luis, que fora a responsável por colocar a família nos
negócios de viveiros de planta. De alguma forma, Luis tinha
terminado o casamento com uma porção do negócio. Ele era assim.
Shirley tinha cabelo castanho escuro e uma boca farta e um
temperamento explosivo. Ela só tinha durado o quanto durou por
causa do negócio. Ainda assim, tinha ficado ali vários anos sentada
e dizendo “hum, uhum, ah amor, hum”. E a Carmel antes dela.
Todas as mulheres do Luis meio que soavam iguais, balançando a
cabeça para ele, mas cada uma era mais chique e sofisticada que a
anterior. E mais branca. Cada uma gastava mais dinheiro. A Carmel
tinha sido para as vacas magras. Shirley foi durante o
estabelecimento nos negócios. Adele era da época de ganhar
bastante dinheiro e gastar também.
Quando Adele notou que Luis tinha acabado, ela disse:
— Sem gardênias dessa vez. Elas têm um cheiro muito forte. Me
dão dor de cabeça.
— Certo, sem gardênias. Sim, elas cheiram como sabonete
barato. — Luis balançou a cabeça, satisfeito. Ele colecionava frases
feitas, julgamentos, sempre tinha sido assim. Com onze anos de
idade, ele dizia sério: “Sabe, um Cadillac é melhor do que um
Chrysler”. O Ford cinza antigo da família tinha sido trocado por um
Hudson cor de ferrugem um pouco menos velho. O pai deles tinha
dirigido talvez o último Hudson do mundo. Era da cor de chocolate e
a carcaça já estava enferrujada quando ele o tinha comprado.
Parecia que tinha um montinho de cocô de cachorro nas rodas.
Depois de uma hora que eles tinham ido para cama, ela se
levantou. Então descobriu que o Luis a tinha trancado no quarto. Ela
puxou e puxou a porta e então tentou colocar um pente entre a porta
e o batente para puxar o trinco, mas este não se mexia. Ela desistiu
e foi se despindo lentamente. Era quarta à noite, então ela ainda
tinha quinta e sexta. Ele talvez se esquecesse de trancar a porta.
Talvez ela achasse uma chave que servisse. Ele podia ficar
distraído. Uma faca talvez desse certo. Cansada, chapada com o
remédio, ela se deixou desabar numa cama estranha e macia e caiu
no sono.

...
— Você é muito lerda — Adele reclamou. — A minha diarista
termina isso em quarenta e cinco minutos.
— É o remédio. Me deixa lerda. Eles me deram uma dose grande
então fica difícil me mexer.
— Parece que você se move bem rápido quando é hora de comer.
— Adele estava consultando uma lista. Ela tinha listas para todo
lado, listas de compras, da lavanderia, de coisas para fazer, de
pessoas para ligar. A manhã toda, enquanto Connie estava
limpando a casa e fazendo sobremesas usando os livros de receitas
que Adele dava para ela, não confiando que ela saberia fazer por si
mesma, Adele estava escrevendo umas listas na escrivaninha que
tinha em um lado da cozinha. Cada lista dava mais trabalho. Connie
segurava a alça do aspirador de pó até a mão doer e respirava
fundo e não se permitia um ai de reclamação. Ela varreu o carpete
amarelo enquanto os peixinhos tropicais que Luis sempre tivera
nadavam para lá e para cá na sua prisão de vidro na sala de estar,
ouvindo apenas o barulho do motor do filtro.
O café da manhã tinha sido bacon com ovos e torrada com geleia
de morango e muito café da cafeteira azul e branca. Durante a
manhã, toda chance que ela tinha de dar uma escapada e tomar
café ela ia. Como se sentia maravilhosa! O almoço era o outro ponto
alto. Adele estava falando ao telefone e disse a ela que podia se
servir dos restos. Primeiro, Connie fez um sanduíche de salame
com queijo e uma caneca de café, doce e fraco, como ela gostava.
Ela esquentava o leite primeiro. Depois, comeu mais salame e
queijo sem pão, para não ficar satisfeita rápido demais.
Cada vez que ela abria a porta para aquele paraíso de
possibilidades douradas, era atacada pela escolha. Decidir-se era
tão difícil que ela mal conseguia mover a mão. Queria chorar de
alegria. Ela ia e voltava da geladeira até a mesa, carregando cada
hora um tesouro, um pedaço que sobrara de torta de maçã, mais
queijo branco e azul, como a cafeteira, com um cheiro bem forte,
uma deliciosa maçã dourada, um pote de salpicão. Finalmente,
Adele veio andando, depois de cinco telefonemas, e disse:
— Não é possível que você ainda está almoçando! Fala sério! O
Lew disse que você vinha me ajudar, e eu tenho que ficar te
vigiando como se você fosse uma diarista contratada.
Connie colocou o peru para assar de acordo com um recorte de
receita que Adele tinha tirado daquelas revistas baratas para
mulheres, depois de o ter recheado com um mix de nozes, fubá,
cogumelos, pimentões verdes e passas. Adele a tinha feito cobrir a
pobre ave com papel alumínio, mesmo que Connie soubesse que
iria estragar o cozimento e cozinhar a pele da ave no vapor. Ela
obedeceu. Ela se sentia inchada de comida. Sua percepção do
tempo estava alterada por aquele café todo. O mundo parecia ter
reduzido a velocidade enquanto ela acelerava. Na ala, as horas
passavam e ela nunca sabia para onde tinham ido. Agora era como
se ela estivesse correndo e, quando olhava para o relógio, uma hora
depois, apenas quinze minutos haviam se passado. O remédio e a
cafeína batalhavam dentro dela, e ela se sentia chapada e
acelerada.
Batatas-doces em calda numa lata! Como se ela não soubesse a
forma certa de cozinhar batata-doce. Eddie adorava o inhame dela.
Ela se lembrou de quando tinha falado para Luciente que, com um
pouco de dinheiro e uma cozinha decente, era uma boa cozinheira.
De quantas formas ela tinha aprendido a cozinhar na vida:
mexicana, porto-riquenha, afro-americana do sul, e o que o
professor Silvester chamava de cozinha continental. Tudo comida
boa. Ela desejou que estivesse cozinhando um banquete para
Luciente e Abelha, então fingiu que estava fazendo um jantar de
Ação de Graças para a família toda de Luciente, e para Sybil e Tina
também. Eles iriam se reunir todos e se sentar para comer juntos, e
beberiam vinho e fariam piadas e talvez ela iria, de forma educada
por causa do feriado, mas com vontade, beijar Abelha uma última
vez. Então seria ela a advertir Luciente de que a comida não era
nutritiva, não era real fora do tempo dela!
Ela e Adele colocaram todos os extensores na mesa de jantar,
deixando-a bem longa, e então a cobriram com toalhas de mesa
com tema de neve e colocaram os pratos de porcelana e as baixelas
de prata e salvas prateadas para os pães e baguetes e taças de
cristal, exceto para as crianças pequenas, que ganharam copos
tingidos de um vermelho forte para o leite deles. Luis veio abrir o
vinho ele mesmo, com grande esforço, um espumante rosé.
Depois, Luis se sentou na cabeceira da mesa, numa cadeira com
braços, cortando o peru enorme com uma faca elétrica que ele
agitava ferozmente. O estranho recheio ele já tinha empilhado em
uma tigela grande. À sua esquerda e direita estavam Mark e Bob,
filhos do seu segundo casamento. Do lado do Bob, Dolly estava
vestida com uma calça verde jade que combinava com uma linda
blusa de babados de chiffon, que estava tão justa nela que parecia
que sua cabeça iria cair. O nervosismo tiquetaqueava na garganta
de Connie como uma bomba. De forma delicada, ela comeu
azeitonas que estavam em um prato de vidro. Nem a Shirley nem a
Carmel estavam lá, claro, pois cada uma tinha seus próprios planos.
Luis gostava exigir a presença de todas as crianças na Ação de
Graças, Natal e Páscoa, e tinha o dinheiro para fazer valer essa
exigência. Mas Nita não estava ali. Carmel tinha insistido que ela
estava doente demais para ir. Então vinha Celeste, filha de oito anos
de Adele do primeiro casamento, Connie e a neném Susan no
cadeirão dela, ladeada por Adele e o pequeno Mike do outro lado.
Luis, cheio de prazer, comandava tudo por sobre seu prato cheio e
verificava o jantar de todo mundo.
— Mark, pegue mais batata. É por isso que você anda tão magro.
Fica fraco assim. Por isso não entrou no time de futebol americano.
Olha, tenta luta, está me ouvindo? Você pode ser magrelo na luta.
Você luta com as pessoas do seu peso, entendeu?
Mark ficou vermelho e o garfo caiu da sua mão.
— Olha, pega a Dolly. Ela nem precisa comer pra ficar gorda. Ela
só olha pras batatas e já engorda, não é?
— Não estou gorda, papai. Perdi o peso que precisava.
— Não vai durar. É hereditário. Veja sua mãe. Se eu não
trabalhasse o tanto que trabalho, estaria tão gordo quanto ela.
Luis estava gordo. Tinha sido assim por vinte anos, mas ele se
recusava a admitir. Ele falava sobre o peso o tempo todo. Ele queria
que as mulheres fossem magras para ele, Connie pensou, refletindo
se ela já poderia pedir mais peru ou se deveria esperar oferecerem
a ela. Dolly se sentou de forma ansiosa, pronta para mais um
ataque de Luis. Ela tinha crescido pensando que os pais eram
casados, então veio a época em que ele provou legalmente que não
tinha se casado e que ela era uma bastarda. Os pais de Shirley
nunca a deixariam se casar com um divorciado. Mas então Dolly se
tornou a filha do primeiro casamento dele, e desde que tinha feito
dezoito anos ela podia chamá-lo de papai. Adele era de origem
anglo e eles não se importavam muito com quantas vezes você
tinha se casado, desde que fosse legalmente. Então Dolly tinha
voltado a ser sua primogênita legal novamente. Já pensou se ele
pudesse se divorciar de Connie, a própria irmã? Que feliz ele ficaria!
— Olha a tia de vocês mandando ver. Come como se não
houvesse amanhã. Se comesse igual a ela, Mark, você entraria no
time de futebol com certeza. Bob, por que não comeu as batatas-
doces? São a melhor parte da refeição.
— Não são. Não gosto delas, pai. Têm um gosto estranho.
— Não tem nada estranho no gosto delas. Na sua idade, você não
sabe o que é bom... Celeste, o que você está fazendo?
Celeste deu um pulo. Ela estava feliz esmagando as batatas-
doces, a calda de cranberry e os brócolis numa papa multicolorida,
amassando tudo e esculpindo castelos com o garfo.
— Nada.
— Adele, ela está brincando com a comida de novo. Isso é um
hábito nojento. Você deveria prestar mais atenção nisso.
Adele piscou, saindo do seu casulo de serenidade e meio sorriso.
Connie a olhou de soslaio, certa de que ela estava tomando algo.
Não era para menos que Adele se desse tão bem com Luis. Ela mal
ficava no mesmo cômodo que ele, talvez apenas pelo mesmo tempo
que os barrigudinhos chiques nadando por trás do vidro. Ela cuidava
dos dois pequenos com o mesmo ar casual e distraído, sempre
meio distante em algum lugar, fixando anjos de bronze de dois
metros de altura em nuvens do pôr do sol. Connie não conseguia
deixar de especular o que ela estava tomando. Ela podia só estar
muito chapada, mas Connie achava que não; ela estava distante
demais. Algum depressor, muito provavelmente.
— Susan? — Adele se concentrou na bebê no cadeirão. — Ora,
que lindinha. Comeu todo o pudim!
— É a Celeste de novo, fazendo pilhas de lama com a comida
dela.
— Ah, Celeste — Adele disse com um sorriso doce. — Você pode
brincar depois. Sabe que isso chateia seu pai. — Sua mão fina e
cheia de anéis flutuou como uma echarpe no ar e parou ao lado do
prato quase intocado dela.
Dolly se recusou a repetir, apesar de Luis tentar forçá-la de forma
sedutora, fingindo que ele estava apenas brincando. Mark ainda
estava enrolando com seu primeiro prato. Bob comia mais coxas e
sobrecoxas, consistentemente ignorando todo mundo. Ele era
gordinho e mais escuro que os outros, exceto por ela, com um
queixo pequeno e olhos escuros, um nariz indiano. Quando ele
observou todos na mesa por um momento, ela sorriu rapidamente
para ele; os olhos dele se arregalaram de surpresa, e ele sorriu de
volta. No resto do tempo, ele parecia estar fingindo que nada era
real além de si mesmo e do peru. Bob havia levantado uma tela de
proteção forte entre seu pai, à direita, e ele. “Você não vai me
magoar! Você não vai atravessar essa barreira”, dizia. De fato, Luis
pareceu sentir essa proteção e deixou Bob na dele. Ele tentou uma
vez:
— Aquele tal de Cesar Chavez, vi que prenderam ele de novo.
Hein? Você ainda tem a foto dele na parede do seu quarto?
Mas, depois de muita insistência, Bob disse apenas:
— Gosto dele. Ele tem uma cara legal.
Connie sorriu de novo para o seu corajoso sobrinho, que ia para
uma escola católica italiana e tinha uma foto do Chavez na parede.
Na mesa havia aqueles que lutavam com o Luis e aqueles como
Bob, Adele e ela mesma, que eram pacíficos. Bob e ela rivalizam
com Luis no quanto comiam e no prazer que tinham em comer.
Adele só beliscava. Ela acariciava o rosto da bebê com um
guardanapo, falando baixinho, enquanto flutuava em uma rede em
alguma praia dentro da sua cabeça.
Depois da torta de abóbora, do sorvete de nozes e do café, Luis os
guiou até a sala que Connie tinha decorado, sob supervisão, com
vasos de crisântemos rosas e amarelos, grandes buquês que
lembravam aranhas, tão grandes quanto a cabeça da pequena
Susan. Mark, Bob, Celeste e Mike correram para a sala da família
no andar de baixo para ver tv, mas Luis estava servindo drinks para
os adultos na sala de estar. Deram licença a Connie para que ela
começasse a limpar. Dolly se ofereceu para ajudar. Connie sabia
que tipo de ajudante ela seria, mas estava ansiosa pela companhia.
— Não — Luis disse. — Connie consegue limpar numa boa. Você
fica com a gente. Eu não vejo minha garotona tanto assim, não é?
Dolly olhou para o pequeno relógio de pulso com as joias, então
para o maldito relógio sem números na parede, que Connie nunca
conseguira entender com certeza. Vic viria pegar Dolly para levá-la
de volta à cidade assim que terminasse a ceia de Ação de Graças
com a mãe dele em um restaurante perto do asilo Leisure World.
Connie tinha colocado os pratos e copos na lava-louças e ia
começar uma nova leva com os potes quando Dolly entrou
apressada na cozinha, chorando. Luis a estava provocando sobre
como ela havia falado que se casaria com Geraldo e nada tinha
acontecido.
Depois de Dolly chorar um pouco no ombro de Connie, da mesma
forma que tantas vezes antes, assoou o nariz e arrumou
delicadamente a maquiagem de novo, camada por camada, no
pequeno banheiro que tinha acesso da cozinha, então sentou-se em
uma cadeira.
— Por que você quis tanto passar a Ação de Graças aqui? —
Dolly perguntou a ela. — Eu não iria querer se não fosse obrigada.
— Como assim obrigada? Se você for pra Carmel, ela não vai te
fazer chorar.
— Sim, mas Carmel fica atrás de mim, ela me deixa doida.
— Como assim você não trouxe a Nita? Ela está doente mesmo?
— É mentira da Carmel. Ela não quis ficar sozinha na Ação de
Graças. Nita está meio gripadinha, nariz escorrendo, mas é só.
Carmel falou que ficaria com ela o resto do tempo, então que ficaria
com ela nos feriados. Ela só fez isso pra fazer birra com ele, e eu
fico no fogo cruzado. Tenho que voltar pro trabalho. Ele sempre quer
juntar todo mundo, como se fosse uma exposição maluca! — Um
momento depois ela estava choramingando de novo. — Como ele
pôde dizer que estou gorda? Pra quê...? Você sabia que a Adele é
só nove anos mais velha do que eu? É a diferença entre eu e o
Mark!
Depois de Adele colocar os pequenos na cama, ela veio para a
cozinha, onde Connie e Dolly guardavam a louça, meio que na
sorte, aqui e ali.
— Você colocou os cristais na lava-louças?! — Ela estava
rabugenta agora, tensa. — Podia ter quebrado tudo! Não se faz isso
com cristal. É pra lavar na mão, claro. Você é preguiçosa nesse
nível? Ou acho que nunca viu um bom cristal assim na vida. — Ela
falava consigo mesma, resmungava pela cozinha, numa raiva
velada e baixa. Dolly deu uma risadinha, que Adele pareceu nem
ouvir. “Não somos três mulheres”, Connie pensou. “Somos os altos
e baixos, os tranquilizantes pesados se encontrando em uma
cozinha toda cheia de eletrodomésticos e nos batendo umas contra
as outras nas arestas opacas, como pílulas brilhantes ao colidir”.
Connie escondeu uma faca de pão na bainha do vestido e subiu
as escadas com cuidado, consciente dos seus movimentos e das
batidas que dava. De novo, naquela noite, Luis a trancou. Deitada
na cama, dessa vez ela o ouviu passando a chave. Olhou nas
gavetas vazias do guarda-roupa, olhou as prateleiras do armário do
banheiro e encontrou aspirina, pasta de dente, antitranspirante,
xampu e um odorizador de ambiente. A janela do quarto estava
fechada com um ar-condicionado. A janela do banheiro abriu uns
50cm depois de ela ter tentado com a faca por uma meia hora.
Então ela se apoiou e olhou para aquele vazio, dois andares até o
concreto. Sem trepadeiras, sem saída de incêndio, sem varanda ou
laje de garagem no qual pudesse saltar. Ela ainda estava confinada.
Tentou a fechadura até ficar ensopada de suor, mas não conseguiu
abrir a porta que dava para o corredor.
A sexta era um dia de bastante trabalho e também o último dia
dela fora do hospital. No sábado, ela deveria limpar tudo de manhã
e seria levada para Manhattan antes da festa. Na sexta de manhã,
ela ficou preparando os pratos para o buffet da festa do sábado —
três bolos grandes e dois mousses de sobremesa. Às duas horas,
Luis veio para casa para buscá-la e levá-la para o viveiro e as
estufas. Os outros lugares eram apenas distribuidoras. Ali ela tinha
trabalhado por três meses para o Luis, transplantando e borrifando
as plantas.
Luis dirigia seu Eldorado branco, que parecia tão grande quanto a
sala comum dos pacientes. O rádio estava ligado, mas depois de
um tempo ele o desligou, para poder atacá-la. Ela suspirou e tentou
se reduzir para aguentar o tranco.
— Você parece bem quieta dessa vez. Nada como a velha Connie.
Eles finalmente te ensinaram a lição de como manter a boca
fechada?
— Eu ajudei bastante a Adele. Não estou dando um duro danado?
— Muito mais duro do que você costuma dar. Se é que dá pra
chamar isso de trabalho. Você gostou da comida ontem, não foi? —
Ele riu por entre os dentes.
— Eu cozinhei. Não fiz um bom trabalho?
— Com a Adele supervisionando, claro. E lembrando de esconder
a pimenta. Sim, você deu uma abaixada de bola, tirando uma
coisinha ou outra. Aposto que ficaria feliz com um emprego na
estufa agora.
— Claro que ficaria, Lewis. Se você assinar minha liberação, eu já
começo amanhã. — Ela movia o pescoço para todos os lados,
tentando entender onde estavam e quão perto estava o transporte
público mais próximo. Talvez no viveiro ela conseguisse fugir. Ela
sabia direitinho como voltar para Manhattan de lá, tinha feito esse
percurso todo dia durante três meses. Disfarçadamente, havia tirado
o dinheiro da bolsa, no caso de ele tirar a bolsa dela, e o escondido
no sutiã, sentindo-se uma espiã, uma agente secreta. Não era nada
confortável; o papel grosseiro arranhava seu peito. O viveiro
continuava o mesmo de quando ela havia trabalhado lá, exceto que
agora era inverno e muito menos plantas estavam enfileiradas do
lado de fora, só o que eles mesmos criavam. A maior parte do
estoque era enviado para eles na primavera, do sul, de Ohio e até
do Texas, de caminhão.
As estufas estavam cheias. O gerente do Luis, Richie, e a
secretária dele vieram correndo assim que ele entrou pela porta.
Luis se virou para o Gino, italiano grisalho de sessenta anos que
cuidava das estufas, e disse:
— Fica de olho nela. Ela é doida de pedra e capaz de tentar fugir.
Não quero que o hospital me responsabilize pela fuga dela. Então
fica de olho na porta. Vou levar o casaco dela e trancar, porque
assim ela não vai longe... Agora quero que vocês dois escolham as
melhores plantas pra minha casa, pra festa. Temos uma temática
tropical. Sem gardênias. E quero espécimes perfeitos, nada de folha
dobrada, sem marca de inseto, nada. Vão lá e procurem, procurem
bem. Quero as trinta melhores. Nada de planta artificial. Quero um
pinheiro Norfolk grande. Nada de begônias ou cóleus. Peguem
alguns lírios holandeses. Está tudo etiquetado no fundo, Connie, se
você não lembra. Pegue um abacaxi grande e algumas das
bromélias mais chiques. Deem uma boa olhada nos bordos em flor
pra ver se algum já está bom. Nada de cactos! Algum idiota sempre
esbarra neles. Gino, você mesmo escolhe as orquídeas. Juntem
tudo perto das docas de carga e vou pedir pro caminhão entregar.
Uma das figueiras grandes seria bom também. Dá uma olhada e
escolha a que tiver a melhor florada ou já tiver frutos. Tem uns
limoeiros em miniatura. Deem uma olhada, vejam se os lírios do
brejo já floresceram. Talvez um cafeeiro. Nada de dioneias, nada
daquelas mais nojentas. Sempre tem algum imbecil que coloca o
cigarro dentro. Agora se mexam. E fiquem de olho. Você pode estar
dopada, Connie, então se mexe como se tivesse chumbo nos
bolsos, mas quero que use os olhos. Nada além do melhor, está me
ouvindo?
Gino pegou uma pastilha para a garganta e não disse nada.
Depois que o Luis foi embora, ele olhou meio furtivo para ela e
perguntou com sua voz rouca:
— Você trabalhou aqui uma vez?
— Sim, cinco anos atrás, por um tempo.
— Você se lembra de onde estão as coisas, né? Então leva o que
ele pediu pra doca de carga. Vou ficar de olho pra ver se está tudo
lindo. Escuta, não tem mosca branca aqui. Temos a estufa mais
limpa de Nova Jersey. — Ele escarrou em um lenço brilhante que a
lembrou de Luciente. — Eu tenho milhares de coisas pra pensar
além de me preocupar com essa festa do chefe. Então você pega as
plantas e eu confiro depois que você terminar. Certo? Se quiser fugir
sem casaco, está menos oito lá fora e você é doida mesmo. Então é
melhor ir trabalhar. E você só passaria pelo portão se soubesse
voar.
Ela pegou as plantas que pareciam chiques, as que estavam com
as folhas mais brilhantes, as folhagens mais esparramadas, as
flores mais vistosas, os frutos mais exóticos. Do melhor jeito que
conseguiu, ela as arrastou até as portas trancadas da doca de
cargas. Algumas vezes teve de gritar por ajuda, até que Gino,
relutante, designava uns cinco minutos de algum dos empregados
mal pagos e exaustos da estufa. Os pesticidas costumavam deixá-la
enjoada. Ela trabalhava por longas horas, até que as costas
doessem e não parassem mais de doer, noite e dia, e ela levava
tanto tempo no transporte público indo e voltando que não tinha
tempo de ficar com a filha. Tudo por dois dólares a hora e horríveis
dores de cabeça. Os venenos podiam matar se ela os aspirasse ou
se encostassem na pele. Mesmo quando usava máscara eles a
afetavam.
A neve começou a cair, pequenos flocos espiralando no ar calmo e
se grudando aos vincos das árvores enfileiradas do lado de fora. A
única coisa que ela encontrou foi uma blusa fina de algodão, mas
ela a vestiu. Até parece que ia pegar um resfriado! O casaco estava
trancado no escritório do Luis, mas iria como estava. Tentou
algumas vezes. Ela se movia lentamente, passando pela porta de
forma casual. Mas, quando tentava sair, Richie a chamava:
— Onde você pensa que vai? — Várias vezes ela esperou e
tentou algum movimento, mas sempre Gino, Luis ou Richie estavam
vigiando.
Por impulso, voltou ao depósito dos venenos. O armário estava
trancado, mas ela olhou atrás da porta e a chave ainda ficava
pendurada ali, como uma piada, ela pensou, como se existisse um
cofre e colocassem a combinação na parede. Ela destrancou o
armário. Alguns dos venenos eram novos para ela. Havia os
fungicidas que eles usavam: Zineb, Captan, enxofre. Os pesticidas:
Sevin, malatião, dicofol. Alguns vinham prontos para o uso, outros,
em pó ou essência. Paratião: esse era o mais mortal no viveiro
naquela época. Gino a tinha avisado para usar luva ao manipular
qualquer um deles, mas as meninas tinham contado histórias de
pessoas que morreram só de tocar no paratião. Ela nunca o tinha
usado, não lhe davam permissão, mas tinha visto Gino usar aquele
óleo.
Connie agarrou uma garrafinha e a encheu daquele óleo marrom,
com as mãos tremendo. Foi enchendo lentamente, segurando a
respiração. Talvez só de chegar perto assim ela já morreria, mas
eles iriam matá-la de qualquer jeito. Isso era uma arma, uma arma
poderosa que vinha do mesmo lugar que os eletrodos e o Amplictil e
as sondas de microdiálise. Uma das armas dos poderosos, dos que
controlavam; ninguém podia obter veneno sem uma licença. Ela
estava roubando um pouco do poder deles naquela garrafinha.
Depois, colocou o pote maior de volta onde estava e trancou o
armário. Então pensou melhor e abriu de novo e secou tudo com a
barra da sua saia. Digitais. Por fim, se afastou, colocando a
garrafinha no bolso da blusa, até que tivesse uma chance de colocá-
la dentro de sua bolsa velha.
Voltou logo ao trabalho, escolhendo as plantas. As mãos tremiam.
Ela pensou se estava morrendo por causa do veneno. Talvez a
tremedeira fosse o primeiro estágio de envenenamento. Talvez só
manusear a garrafinha já fosse mortal. Ela sentia o óleo marrom
irradiando uma energia sinistra a tudo ao seu redor.
Nunca tinha feito uma coisa dessas, segurado o poder na mão,
segurado uma arma. Ela não desejava partir do mesmo jeito que
Skip. Sim, tinha roubado uma arma. Guerra, pensou de novo. Ela
iria reagir. Mas suas mãos tremiam demais e os joelhos balançavam
a ponto de ela não mais conseguir focar na planta à sua frente,
grande e enrugada, tão grande quanto ela, cujo nome havia
esquecido.
O jantar era de sobras. Adele brincava com a comida, sorrindo de
novo.
— Você teve um bom dia? Ah, que pena. Sim. Hum. Claro que
sim, sim, ele está envelhecendo. Hummm.
Connie olhou séria para Luis. Quando fosse na cozinha pegar o
café e a sobremesa, poderia derramar um pouco de veneno no café.
Era marrom e pastoso, daria certo no café. Pela maldade que ele
tinha feito com ela durante aqueles anos todos, com a Dolly, com a
Carmel. A bolsa dela estava próxima. Ela poderia fazer isso.
Luis ria da própria piada, com a cabeça pendendo para trás.
Enquanto ele ria, por um momento descontrolado, quase pueril, ela
viu nele aquele irmão mais velho que odiava lembrar que adorava.
Até os dez anos de idade, ela tinha adorado Luis de todo coração.
Ele parecia um príncipe, um pavão maravilhoso, como havia sido
para a mãe deles. Ele podia brigar, tinha lábia, podia falar inglês
melhor do que qualquer um deles, podia defendê-la se quisesse.
Sim, Luis, o garoto das ruas, ela o adorava. Luis, o jovem
delinquente tinha tocado o coração dela e definido um molde ali.
Algo do que ela tinha amado em Martín, algo do que ela tinha
amado em Claud: a graciosidade, a raiva, o orgulho ferido, a recusa
em engolir desaforos. O exército havia mudado Luis. Quando ele
voltou, desdenhava de todos eles. Sua raiva e seu orgulho
indisciplinado tinham sido canalizados para o desejo de se dar
melhor, de conseguir dinheiro, de ser bem-sucedido como um
branco.
Quem poderia saber o que teria acontecido com Martín, pobre e
pardo, se ele tivesse vivido? Talvez tivesse endurecido, como o Luis.
Ela não conseguia acreditar que a ternura dele poderia secar,
mesmo assim, se lembrava de quando Luis tinha catorze anos e
roubou uma echarpe brilhante da loja de 1,99 para ela usar no
domingo de Páscoa, rindo enquanto tirava aquilo de dentro da
jaqueta de couro que ninguém sabia como ele tinha conseguido.
Que lindo ele tinha sido, o brilho dos dentes naquela cara morena,
seus olhos queimando de raiva e alegria, o jogar de ombros
arrogante e exagerado. Jesús temia que ele fosse se tornar um
criminoso, que eles o perderiam para as ruas. Ninguém imaginava
que eles o perderiam para os brancos, completamente.
Depois do jantar, ela retirou com vapor o rótulo de um xampu
herbal chique no banheiro e o colou na garrafinha dela. Quando a
garrafa secou, o rótulo ficou. Ela ia levar aquilo de volta para o
hospital junto com uma caixa de cosméticos velhos que Adele tinha
dado a ela — batons em cores foscas que não estavam mais na
moda, sombra de olho na cor errada, um vidrinho pela metade de
creme de óleo de palma. Adele também deu a ela um cardigan bege
com flores bordadas que tinha encolhido nas lavagens, uma meia
calça e uma pilha de Vogues e New Yorkers antigas. Ela não
chegou a experimentar os pratos que tinha preparado para a festa,
mas percebeu pela balança do banheiro do quarto principal que
tinha ganhado dois quilos de quarta até sábado. Isso não importava.
“Como passei minhas férias: comendo”.
Sentada no grande Eldorado branco de Luis e distraída
observando o trânsito lento e pesado, ela percebeu que várias
semanas tinham se passado desde a última vez que tinha ido para o
futuro. Luciente estaria morta? Não conseguia nem pensar nisso.
Era Connie que estava morta. Ela não conseguia captar mais.
Estava endurecendo, assim como Luis, mas não por dinheiro. Para
ganhar sua guerra. Para reagir. Ela fechou os olhos e viu sua arma,
disfarçada de xampu.
CAPÍTULO 19

Naquela segunda-feira, Acker anunciou que Alice e o Capitão


Creme seriam liberados para albergues na sexta. Alvin foi levado
para ser operado, junto com Orville. Sybil, a srta. Green e Connie
tiveram de fazer outra bateria de exames físicos e psicológicos e
tiveram consultas marcadas com os médicos para a quarta.
— Significa que seremos as próximas — Sybil disse de canto de
boca enquanto estavam na fila para os medicamentos.
— Significa que é o que eles querem — Connie falou.
Ela e Sybil esperaram por uma oportunidade para usar a
lavanderia ao mesmo tempo. Então ela perguntou para Sybil:
— Se você tivesse uma chance, estaria pronta para tentar?
Sybil balançou a cabeça afirmativamente.
— Tina tentou no carrinho de roupa suja. Estava pensando... tem
algum jeito de começar um incêndio?
— Você acha que a gente conseguiria sair?
— Estou preparada pra tentar, Consuelo. Não posso permitir que
eles me operem. É uma espécie de morte.
— Não volte pra casa. Eu sei que você nunca morou em nenhum
outro lugar, mas você está numa espécie de... círculo em que as
pessoas ficam tentando se livrar de você.
— Lembra a voluntária Mary Ellen que eu te falei? A amiga dela
me deu um jornal, um jornal só pra mulheres, que tinha um artigo
sobre bruxas. Conciliábulos de verdade que adoram Wicca! Imagina
isso, Consuelo. Tem o endereço. Se eu... sair, pensei em procurar
ajuda deles.
— Isso soa melhor do que voltar pra Albany, com certeza.
Na manhã seguinte, quando a srta. Green estava no banheiro e
Sybil arrumava a cama, Connie entrou correndo.
— Aqui. Toma isso! — E empurrou para a palma de Sybil o
dinheiro amassado que tinha ganhado de Dolly, tirando o que ela já
havia gastado em telefonemas. Dava trinta e um dólares e sessenta
e dois centavos.
Sybil se sentou na beirada da cama e ficou olhando.
— O que você vai fazer? Por que me deu isso?
— Psiu. Esconde isso.
— Consuelo, não desiste só porque você não conseguiu fugir da
casa do seu irmão!
— Não pergunta o que vou fazer. Só que, amanhã, quarta, fica
preparada pra fugir. Vai ter uma confusão grande de tarde, quando
for minha consulta. Foge nessa hora. Foge e não deixa eles te
pegarem nunca mais!
Valente parou, ficou no corredor olhando para dentro do quarto.
Connie saiu na hora e foi arrumar a cama. No café da manhã, Sybil
murmurou para ela:
— Consuelo, você me assustou. Não desiste. Por favor, não
desiste!
— Não vou desistir. Pra mim isso é guerra. Tenho que lutar da
única forma que entendo pra parar eles. Não me pergunta mais
nada. — A voz ficou presa na garganta. — Desejo a você uma boa
vida, Sybil. Odeie eles mais do que se odeia, e daí vai ficar livre!
Na terça à noite, apesar dos remédios para dormir, ela ficou
deitada acordada, tentando enxergar as formas que apareciam na
escuridão. Ela se virou, pressionou a cabeça contra o travesseiro,
contou carneirinhos e tentou esvaziar a mente. Os pensamentos
corriam para todos os lados como cachorros presos por uma cerca,
para cá e para lá, até fazerem uma marca no chão da sua mente.
Ela tentou abrir a mente para Luciente. No tédio cansativo, com
medo pelo dia seguinte, querendo alguma coisa legal, ela tentou.
Sua mente se fechou, enferrujada. Não abria. Ela se esforçou,
tentou muitas vezes. Suor começou a brotar em sua testa, nas
axilas e debaixo dos peitos. Em dado momento, quase sentiu
alguma coisa, uma presença. Isso a fez continuar, forçando a
mente. Ficou ali ofegante como se tivesse subido correndo uma
escadaria. “Por favor”, ela implorava, “por favor!”. O que tinha sido
tão fácil estava difícil e doloroso, como a morte. Morrer à distância.
Onde havia apenas ar, algo sólido apareceu, sólido como osso,
como paredes de uma prisão. Mas ela continuou. O que mais
poderia fazer naquela noite? O que mais além de tocar seus medos
como contas de um rosário frio e oleoso, sem parar? Ela continuou
tentando.
Finalmente, sentiu uma presença tênue, dura e pesada. Dessa
vez, ela quase podia afirmar que a dor vinha de Luciente. Não, a dor
era do esforço enorme. Luciente também se forçava em direção a
ela. Juntas, afinal, elas forçaram um contato fraco.
— Temi que você estivesse morta — ela pensou para Luciente.
— Temi que tivessem feito algo... definitivo com você. Tentei...
muitas vezes!
— Me leve até você.
Luciente tentou por um longo tempo.
— Muito difícil... Preciso de ajuda. Um momento. Vou chamar
Diana ou Parra ou Zuli... Espera!
Finalmente, de forma grosseira, ela apareceu tremendo na casa
de encontros. Como nas noites de festa e no funeral de Lebre,
muitas pessoas circulavam, mas vestindo roupas comuns, falando
em voz baixa.
Luciente a abraçou apertado.
— Quanto tempo! Sentimo sua falta mais que tudo. Alcançar você
tem sido... como tentar andar atravessando paredes!
— E você? Como você saiu do flutuador em chamas?
— O quê?
— No front. Com Gavião.
Luciente a encarou confusa.
— Não compreendo. Gavião está ali. — Ela apontou — Que caldo
é esse de flutuadores e frontes?
— Não estávamos juntas no front? Lutando?
— Não na minha vida, Connie. Não nesse continuum... Com esse
mecanismo no seu cérebro, talvez você tenha islumbrado. Se
lucidou uma certa islumbração nos últimos meses, capta, de todos
esses acontecimentos.
— Pués... não importa. Parecia tão real... Como você está,
Luciente?
— Sinto em você uma grande decisão. Você planeja alguma ação?
— Não quero falar sobre isso, por favor. Só me fale sobre você.
Abelha. Alvorada. Como vocês estão?
— A controvérsia Modeladora aumentou. Acho que vamo convocar
um grã-selho em março pra decidir isso. Tenho discutido até
esvaziar. Uma coisa é escolher cultivar cenouras pros nossos usos,
especialmente deixando fundos genéticos variantes e selvagens
intactos. Outra é nos cultivar pra alguns usos ou usos imaginados!
Pelo que se sabe, uma nova era glacial se aproxima, então é melhor
cultivar uma pelagem do que habilidades matemáticas! Eu
discursifico. Deixa pra lá! — Luciente a abraçou de novo. — Temi
que nunca mais fosse te ver. Difícil trazer você aqui. O contato está
falhando.
— Como está Abelha?
— Olha! — Luciente apontou. — Abelha está explicando sobre
agronegócio, cultura de lucros e fome.
— Ele está dando uma aula?
— Um memorial. Hoje à noite. — Luciente acenou na direção das
cabines, das mesas, dos hologras e das exposições. — São os
jogos de inverno... Espetaculadores itinerantes estão nos visitando
essa semana. Todes assumem papéis. Dividimo entre pessoas ricas
e pobres, proprietáries e colônias. Por dois dias todos nós que
ficamo no sorteio com a pobreza jejuamo e ganhamo só metade das
rações. Quem está na riqueza come até se estufar e joga o resto na
compostagem. Sei que na história elus não faziam isso, Connie
docinho, mas não é certo destruir, não conseguimo fazer isso.
Estamo nos sentindo em uma sociedade de classe na qual a maioria
trabalha, outras pessoas controlam e só uma minoria frui. Criamo
prisões, polícia, agentes de espionagem, exércitos, tortura, chefias,
fome... ah, tem sido fascinante. Agora estamo discutindo pra
aprender melhor antes de continuarmo.
— Isso é uma celebração? — Ela observou as pessoas
caminhando pela sala e pela praça, parando para examinar objetos
em exibição, assistindo hologras, discutindo sobre gráficos e
painéis.
— Não, não. Um memorial. Nada pra se celebrar, clarquessim. No
inverno, a gente acha tempo pra estudar, comunir. Geralmente as
vilas mandam grupos itinerantes que vão por aí até que se cansam
de ficar na estrada... A gente, Abelha, Lontra, Carvalho Branco e eu,
a gente tem digerido a possibilidade de sair por aí com uma peça
sobre Modelagem. Essa trupe é de Garibaldi on Mystic, onde fazem
macarrão, acessórios de computador e cultivam parreiras. Um lugar
bonito, Lontra disse. Quando pessoa tinha dezoito, ficou lá um mês
durante a colheita, trabalhando e casalando com Vittorio, que está
na trupe. Lontra está louque de prazer de ver sôa de novo... — Elas
caminhavam por entre as cabines, de mãos dadas. Abelha estava
usando um pequeno projetor de hologras que reproduziu, por um
momento, uma caixa de cereal infantil da sua época, chamado
Sweetee Pyes, e a imagem seguinte era de boias-frias colhendo
repolhos. Ele parecia tão sério, franzindo o cenho para o cereal e
com o peito ressoando profundamente, e ao mesmo tempo tão
gracioso, com a tatuagem delicada de uma abelha no braço, que ela
perdeu o fio da meada do que Luciente estava dizendo.
Gavião veio se desviando dos outros até elas, cumprimentou
Connie e então explodiu:
— Luciente! Fixei. É hora de viajar. Vou com essa trupe. Lâmpago
vai comigo.
Luciente colocou as mãos nos ombros magros de Gavião.
— Elus aceitaram?
— Dizem que a gente pode aprender os papéis de duas pessoas
que querem ir pra casa. — Gavião tremia de alegria. — Vou
aprender italiano e ver outras vilas, e quando encontrar uma pela
qual me apaixone, vou ficar e trabalhar.
— Quando você vai?
— Quinta de manhã. Amanhã vão fazer uma ópera. Dizem que eu
canto bem pro coro, se eu começar a estudar a música.
Connie se lembrou de Gavião saindo para sua semana na floresta.
— Como vocês vão viajar?
— De mergulhão. Então, quando chegar mais ao sul, de bicicleta.
— Você tem uma bicicleta?
— Ter? O que você quer dizer com isso?
— Uma bicicleta que seja sua.
Gavião coçou a orelha.
— Qualquer bicicleta que não esteja em uso eu posso usar.
Amanhã vou dizer adeus a todo mundo! — Gavião ficou num pé só.
— Acha que Abelha iria querer minha pintura dissôa? Não é das
melhores, mas tem muitas cores nela.
— Como não? — Luciente beijou a bochecha dela. — Se pessoa
for tão cega que não queira, eu vou querer.
— Estou como veludo que o tabu acabou e posso me despedir
direito das minhas mães... Não diga nada a Abelha, quero contar eu
mesme, aguarde?
— Aguardo — Luciente apertou a mão dela e Gavião foi embora
aos pulos.
— Amo o inverno — Luciente dizia enquanto caminhavam. —
Comer e engordar e ir escorregar de tobogã e tirar neve. Conversar
e conversar até cansar. Estou lucidando chinês, docinho, quinze
horas por semana, e até Abelha está pegando um pouco de ouvir
tanto. Também a nossa base, estamo monitorando os resultados do
ano passado de todo lugar. E toco num grupo novo de mojai toda
sexta à noite, tocamo até amanhecer. Mojai é uma música assim...
— Luciente começou a bater num ritmo complicado sobre outro
ritmo com cada uma das mãos na beirada da mesa.
— Psiu, Luciente! — Estrela d’Alva a censurou. — Estamo
prestando atenção aqui.
— Fico tagarelando. — Luciente afastou Connie um pouco. —
Tanta dureza na sua mente agora de noite me faz tagarelar mais do
que o costume. Temo por você.
— Mas foi você e seu povo que me ensinaram que estou lutando
uma guerra.
— Então lute bem, Connie! — Elas caminharam para fora no ar
frio, límpido e vivaz. Luciente parou para pegar uma jaqueta e jogar
sobre os ombros dela. Grandes flocos achatados de neve desciam,
girando e girando até o chão, que já tinha uma camada grossa de
neve, deixando todas as arestas arredondadas e suavizando as
linhas, um infinito de brancura pela praça marcada apenas pelos
traços deixados pelas crianças brincando.
Luciente tocou o ombro dela.
— Você quer saber se eu ainda choro por...
— Eu não perguntaria isso!
— Eu sei. Mas você quer saber como estou. Sim, ainda lamento.
Mas trabalho nisso também. Dói, mas não posso deixar a dor me
amarrar... Diana me ajudou. Lontra ajudou. Abelha me carregou...!
Não quero nenhume nov’amante e morro de medo da primavera.
Mas veja! — Luciente acenou para uma batalha de bolas de neve ao
redor de uma estátua de uma ave engraçada, dançando em um pé
só, e uma barricada de bancos. Por um instante, Alvorada correu
por um facho de luz, acenando.
Flocos preguiçosos se depositavam no braço da jaqueta
emprestada.
— Luciente, você acha que sempre é errado matar?
— Para viver, comemo seres vivos, seja vegetal ou animal. Sem
clorofila em nossas peles, não temo escolha. — Luciente pegou
flocos na sua palma estendida.
— Quis dizer matar uma pessoa.
— Como posso encarar algo tão abstrato?
— Matar alguém com poder sobre mim. Que quer acabar comigo.
— Poder é violência. Quando ele foi destruído pacificamente?
Todes lutamo quando estamo encurralades contra um muro, ou para
derrubar muros. Você sabe que matamo pessoas que escolhem ferir
outres mais de uma vez. Não achamo certo matar. Apenas
conveniente. Ninguém quer ficar de guarda de outra pessoa.
— No meu tempo, as pessoas queriam ficar de guarda. Era uma
profissão. Acho que é um poder também.
— Você está cogitando matar alguém, minha amiga?
Ela maneou a cabeça, soltando-se do abraço de Luciente para
cruzar os braços. Connie sentia ondas de orgulho e vergonha
tomando seu corpo. Mala, a mulher que agiu, mergulhando de
cabeça no mundo. Luciente estava falando, mas, sob o fluxo intenso
da sua corrente sanguínea, as palavras soavam abafadas como
pedras no leito de um rio. Lentamente, as pessoas saíam da casa
de encontros e começavam a pegar pás e vassouras de depósitos
que ficavam nos caminhos próximos da praça. As pás retiniam
contra a pedra, arranhavam a madeira. A noite começou a se
encher com os sons das pás e das risadas. As crianças pararam
sua brincadeira e começaram a limpar a neve. Vestindo uma calça
vermelha e uma jaqueta azul, Alvorada estava brandindo uma
vassoura, seguindo Lontra, cuja trança quicava nas costas dela de
forma ritmada. Abelha estava limpando a neve no caminho para a
comideira, enquanto Gavião vinha correndo e deslizando para
trabalhar ao lado dele. A respiração dela fazia pequenas nuvens
brancas enquanto falava com ele sem parar.
Connie podia ouvir Luciente falando, mas já não conseguia
distinguir as palavras por causa do fluxo de sangue. Conseguia
ouvir o tilintar do metal nas pedras bem fraco. Os lábios se moviam
como se estivessem cantando. Alvorada olhou por cima dos ombros
protegidos na direção delas, sorriu e acenou e começou a usar a
vassoura com bastante força, fazendo uma nuvem de poeira branca
e fina. Os flocos se aninhavam de leve no seu cabelo escuro e
armado, o capuz da jaqueta jogado para trás. Um floco se assentou
por um momento na ponta do nariz delicado e levemente encurvado,
neve no seu lindo nariz maia, onde Connie se imaginava dando um
rápido beijo.
Ela estava deitada na cama, sem fôlego, como se tivesse caído de
alguma altura.
— O que foi? — Tina se sentou, desperta. — Tudo bem?
— Sim...
— Você gritou. O que foi, teve um pesadelo?
— Foi um sonho bom, Tina. Sonhei com a minha filha, segura e
feliz, num outro lugar. — Ela ainda conseguia ver o rosto de
Angelina corado pela brincadeira, seus pequenos braços gordos
numa jaqueta brandindo uma vassoura concentrada, enquanto um
floco de neve derretia no seu nariz. — Ai, se eles tivessem me
deixado alguma coisa! — ela suspirou. Ainda tremendo, pensou: “se
eles tivessem me deixado o Martín, ou o Claud, ou a Angelina, se
tivessem me deixado a Dolly e a Nita, eu teria cuidado apenas da
minha vida. Eu teria me curvado e obedecido. Não nasci e fui
educada para lutar em batalhas, mas para ser modesta, gentil e
silenciosa. Só uma pessoa para amar. Só um cantinho de amor-
próprio. Por esse amor, eu teria aguentado tudo e nunca revidaria.
Teria obedecido. Teria concordado que estou cansada, cansada de
ser pobre e cansada de estar doente e cansada de ter fome e
cansada de ficar sozinha e cansada de ser roubada e usada. Mas
vocês foram tão gananciosos, tão cruéis! Vocês podiam ter me
deixado um deles, só um! Mas não tenho nada. Por que eu não
deveria revidar?”.
Ainda assim, as mãos dela tremiam de medo. Ela ficou ali deitada
com frio e tremendo a noite toda.
— Essa operação foi feita para ajudar você — dr. Morgan disse. —
Para nos permitir te devolver para a sociedade. Você vai ser capaz
de se manter em um emprego.
— Já me sinto bem melhor. Por que eu preciso de operação
agora? Fui pra casa do meu irmão na Ação de Graças. Trabalhei
bastante lá. Tenho sido boa e cooperativa na ala.
— Você já esteve melhor antes, Connie — Acker disse. Hoje, a
srta. Moynihan não estava sentada ao seu lado, mas do outro lado
da sala, ao lado do dr. Morgan, chefe dela. Ela e Acker evitavam se
olhar. Os olhos claros dela estavam sanguinolentos e com olheiras.
Ela tinha chorado e não tinha dormido. Patty passou um bilhete para
ela, que balançou a cabeça amargamente, buscando uma seriedade
artificial. Acker parecia mais nervoso que o de costume. Ele tinha
um hematoma na bochecha esquerda, como uma batida. Quem
tinha dado um soco nele? A Moynihan ou um dos irmãos dela? —
Sabemos que não consegue evitar o que faz. É como se você
experimentasse um curto-circuito que te leva a episódios de raiva
descontrolada.
— Não faço nada errado há meses. Estou muito melhor. Por que
preciso dessa operação agora, quando estou me sentindo bem?
— Você teve períodos de calmaria antes — Redding apontou. Os
dedos dele estavam em riste em cima da xícara vazia, como torres
de igreja. — Longos períodos. Mas eles sempre terminam da
mesma forma, não terminam, Connie?
— Não é a mesma coisa. De verdade, por favor, não é! Olha, fiz
uma coisa da qual me envergonho com minha filha. Mas paguei por
isso, muitas vezes! Pra sempre. Como posso ficar incontrolável?
Vocês ficam me controlando.
— Você não quer machucar alguém que seja próximo a você de
novo, quer, Connie? Você tem uma doença recorrente, como
alguém que tem uma malária recorrente — Acker disse, parecendo
satisfeito consigo mesmo. Ele olhou para o dr. Redding, esperando
aprovação, mas Redding estava cochichando com Argent. Os dois
tinham folheado algum tipo de proposta, e Argent estava conferindo
um orçamento, item por item, fazendo algumas anotações
marginais.
— Mas talvez a outra coisa tenha funcionado. Talvez eu não
precise de uma operação!
— Temos permissão do seu irmão, não temos? — Redding
perguntou para Patty.
Ela fez uma mesura para um arquivo sobre a mesa.
— Sim, doutor.
O dr. Argent soltou a proposta, tirou o cachimbo da boca e olhou
para Connie com um sorriso cintilante.
— Sra. Ramos, você está apavorada com a ideia de uma
operação, não é verdade?
— Claro que estou apavorada! Estou bem agora, doutor. Olha pros
registros da ala.
— Sua mãe morreu em uma operação, não foi, sra. Ramos?
Ay de mí, ele estava brincando de psiquiatra. Ela teria que dizer
sim.
— Doutor, posso pegar um copinho de café, por favor? Estou meio
tonta, um pouco sonolenta. Não dormi bem esta noite, preocupada
com isso. — Ela se levantou, mas se manteve ainda na área da
cadeira. — Por favor, doutor, posso pegar um copinho de café?
Argent levantou uma sobrancelha prateada, seu interesse
definhando.
— Você tem sentido tontura muitas vezes, não tem, sra. Ramos?
— Ele pegou a proposta de novo, pegando a caneta também.
— Você pode pegar o café quando sair. Já estamos quase
acabando — o dr. Redding disse, esticando a perna debaixo da
mesa. — Seria bom uma pausa geral pro café. Essa é a última, não
é?
— Sim, doutor — disse Patty, consultando a agenda.
— Connie, entendemos que esteja apavorada. A sociedade
também está com medo de você, e com mais motivo, não é
mesmo? Essa operação é menos complicada do que aquela em que
você passou em outubro. Agora, você concordou que está melhor
para essa operação. — Redding falou rápido, as palavras
parecendo agulhas. — Você estará melhor com esse procedimento
cirúrgico. Daí, como a Alice, você vai ser liberada. Certamente não
quer passar a vida neste hospital psiquiátrico.
— Mas da última vez eu melhorei e eles me liberaram sem
operação nenhuma!
— E aqui está você de novo. Não é? Seu irmão... Qual o nome
dele?
— Lewis Camacho — Patty leu. — De Bound Brook, Nova Jersey.
— Seu irmão... ahn... em Nova Jersey... o sr. Comanchee...? Ele
assinou a permissão. O procedimento vai acontecer na segunda.
Daqui a um mês você vai ser liberada. Pense nisso, Connie, e vai
perceber que seus medos são irracionais e estão assim em parte
devido ao padrão de comportamento da sua doença quanto aos
episódios de hostilidade. Certo, vamos fazer uma pausa.
A equipe se recostou nas cadeiras e eles se entreolharam
enquanto Connie se levantava, todos exceto a srta. Moynihan, que
passou por ela apressada. Seu rosto estava contorcido e ela correu
em direção ao banheiro feminino. Tony estava esperando ali fora, já
tinha ido fumar, envolvido nas músicas que vinham do seu radinho.
— Terminaram com você? — ele perguntou.
— Não sei! — Ela ergueu as mãos. — Não entendo o que estão
fazendo. Pergunta pra eles. Ficam falando do meu irmão Luis. Não
entendo o que querem que eu faça.
— Espera aqui. Aguarda um pouco. — Tony colocou a cabeça
para dentro da sala, onde viu os médicos começando a se levantar
das cadeiras, pequenos grupos de conversa se formando. Argent e
Redding estavam juntos olhando para a proposta, matutando.
Morgan andava, ignorado e ansioso. Redding anuía levemente para
as anotações. Mais quinhentos chimpanzés? Prisioneiros? Mulheres
no seguro-desemprego? Eles a tinham descartado.
— Disseram que eu podia pegar um pouco de café — Connie
disse alto e se dirigiu no mesmo instante à salinha onde a cafeteira
brilhante dos médicos ficava. Rapidamente jogou fora o conteúdo
velho da jarra, colocou o pacote de pó no filtro e apertou o botão de
ligar. Então puxou a garrafinha da bolsa e derramou o líquido oleoso
na jarra de vidro quando o café começou a enchê-la. Ela torceu para
que eles percebessem que era café fresco e não jogariam fora para
fazer mais.
Quando Tony voltou, a água ainda estava caindo.
— Vamos, Ramos, já terminaram contigo. Deixa o café dos
médicos em paz e não causa. Você pode pegar um pouco na ala
dos pacientes.
— Eles não me querem mais? — Ela piscou confusa.
— O que você acha, que eles precisam do dia todo pra decidir o
que fazer com você? São médicos importantes. Aquele Redding ali
tem uma foto dele na revista Time. Patty me mostrou, ela está
fazendo um álbum de recortes dele. O dr. Argent vai pra Washington
pra falar no Congresso e explicar isso tudo. Você não acha que eles
vão ficar o dia todo pensando no que vão fazer com você, acha?

...

Connie lavou as mãos no banheiro, lavou sem parar.


— Acabei de matar seis pessoas — ela disse ao espelho, mas
lavou as mãos porque estava morrendo de medo do veneno. — Eu
matei eles mesmo. Porque tenho tendência à violência. O dinheiro e
o poder é deles, deles é o veneno que entorpece a mente e embaça
o coração. São deles os direitos de vida e morte. Eu os matei.
Porque é guerra. — As mãos dela tremiam como ramos de salgueiro
usados por caçadores de poços no Texas; um ramo de salgueiro era
atraído pela água subterrânea. — Sou uma mulher morta agora. Sei
disso. Mas lutei contra eles. Não tenho vergonha. Eu tentei.
Ela quebrou a garrafinha sob a água corrente, sem tocar nela, e
lavou os pedaços no chuveiro. Eles provavelmente iriam achá-los,
mas era o melhor em que podia pensar. Daí, lavou as mãos uma
última vez e foi procurar Sybil. Quando a encontrou no salão, disse
apenas:
— Logo!
Sybil a encarou. Uma lágrima se formou e ficou presa no olho.
Então ela olhou para baixo e nada disse, alerta, decidida,
preparada. Connie foi para o quarto. Quando passou por Valente,
que tricotava, a assistente assentiu para ela.
Pensou em Luciente, mas não conseguia mais atravessar. Ela não
captava mais. Eles haviam recozido a mente dela, então não era
mais uma mulher receptiva. Ela havia endurecido. Mas pensou em
Mattapoisett.
“Por Skip, por Alice, pela Tina, pelo Capitão Creme e Orville, por
Claud, para aquele que vai nascer das minhas melhores
esperanças, para você eu dedico esse ato de guerra. Pelo menos
uma vez eu lutei e venci”.
Logo em seguida ela ouviu a comoção e entraram com as macas
— quatro. O dr. Morgan tentava reduzir o café e a srta. Moynihan
estava passando mal no banheiro dos funcionários. “Não lamento
nada”, ela pensou, sua cabeça latejando muito, e sentou-se na
cama, aguardando.
CAPÍTULO 20

Excertos do Prontuário Oficial de Consuelo Camacho Ramos

...

Estado de Nova Iorque — Departamento de Higiene Mental


Hospital Bellevue

RESUMO CLÍNICO

IDENTIFICAÇÃO: mulher de 35 anos, mexicana-americana,


católica, separada do marido Edward pelos últimos três anos, tem
uma filha, Angelina, quatro anos. A paciente está no programa de
ajuda à mãe solteira desde maio passado.
APRESENTAÇÃO DO PROBLEMA: a paciente trouxe a filha ao
pronto socorro do NYU, afirmando que havia acidentalmente
quebrado o pulso dela. A criança estava machucada. Quando
questionada pela assistente social, a paciente prontamente admitiu
ter batido na criança, sob efeito de drogas ou álcool. A paciente
estava incoerente, chorosa e exibia comportamento anormal.
HISTÓRICO PASSADO: esse indivíduo socialmente
desorganizado tem estado em uma condição de deteriorante desde
a dissolução de seu casamento. Paradeiro do marido desconhecido.
A paciente tem estado em conflito com a lei nos últimos dois anos.
Culpada de ajudar e ser cúmplice de um batedor de carteiras,
recebeu suspensão condicional por um ano em abril. A paciente se
referiu a um aborto ilegal, seguido de hemorragia e complicações,
para os quais uma histerectomia foi feita no Hospital Metropolitano.
A paciente tem problemas com álcool e barbitúricos. Parece hostil e
desconfiada com autoridades. Falta de controle e de tolerância a
frustrações. A paciente tem a tendência de resolver problemas com
expressão de violência e possui tendências hostis e extrapunitivas.
ESTADO MENTAL: a paciente é malcuidada e parece ser mais
velha que sua idade indicada. Ela prontamente admite necessitar de
ajuda. É cooperativa, mas confusa e desconfiada ocasionalmente.
Não demonstrou comportamento agressivo na ala.
FLUXO DE ATIVIDADE MENTAL: paciente incoerente. O
pensamento dessa paciente é extremamente concreto.
REAÇÕES EMOCIONAIS: o humor comum da paciente é de
ansiedade e exibe grande culpa. O afeto da paciente é inapropriado,
marcado por choro sem causa.
CONTEÚDO DOS PENSAMENTOS: nega ideação suicida. Nega
ilusões ou alucinações.
CAPACIDADE SENSORIAL E COMPREENSÃO MENTAL:
capacidade sensorial verificada. Orientação três vezes. Memórias
recentes e de longo prazo parecem fracas. Paciente tem inteligência
lenta e responde muito mal a questões.
DIAGNÓSTICO: esquizofrenia, tipo indiferenciado, cod. 295.90.

...
Estado de Nova Iorque — Departamento de Higiene Mental
Hospital Estadual Psiquiátrico Rockover
NOTA DE LIBERAÇÃO
Dr. Messinger

HISTÓRICO: mulher de 35 anos, mexicana-americana, católica,


mãe de uma filha, foi hospitalizada em Bellevue devido a maus-
tratos infantis, problemas com álcool, confusão e comportamento
anormal; internada em 08 de fevereiro.
PERÍODO DE HOSPITALIZAÇÃO: a paciente reagiu bem à
medicação, ainda que com efeitos colaterais pronunciados, língua
inchada etc. O comportamento lentamente se normalizou e a pac.
exibiu redução de sinais psiquiátricos e sintomas.
ESTADO MENTAL ATUAL: alerta, cooperativa, coerente,
relevante, sem fluxo anormal de pensamento ou conteúdo de
pensamento. Discernimento aceitável. Orientação três vezes.
CONDIÇÃO FÍSICA: ambulatório, sem anormalidades físicas.
Pode cuidar de si.
PLANO DE TRATAMENTO: paciente liberada para albergue até
que o governo encontre moradia. Deve retornar para a clínica de
pós-internação semanalmente.
MEDICAÇÃO: 1. Amplictil 200 mg. p/d às 17h.
2. Flufenan 1 ml intramusc. Duas em duas semanas.
3. Artane 2 mg 3x/dia
CONDIÇÃO: melhora
DIAGNÓSTICO: esquizofrenia paranoide, tipo 295.3.
Notas da internação em Bellevue: nesta noite, essa mulher porto-
riquenha obesa de 37 anos de idade supostamente atacou uma
parente e o noivo da parente com uma garrafa. Sob investigação, foi
encontrada deitada ao solo, gemendo de forma incoerente e
desorientada quanto a tempo e espaço. Estava hostil, nada
cooperativa e intimidadora. Foi violenta com parente e noivo.
Aplicação de Amplictil via intramuscular 1000 mg. Contenção
necessária.
Notas de internação em Rockover State: Esta paciente de 37
anos, mexicana-americana, católica, mãe, separada do marido
Edward, cuja filha foi dada à adoção pelo serviço social. Tem
histórico de episódios psicóticos violentos, incluindo roubo, agressão
e maus-tratos infantis. Onze dias atrás, esta paciente atacou a
sobrinha Dolores Campos e o noivo dela. Esta paciente é conhecida
e já esteve previamente hospitalizada aqui. Depois de dez dias em
Bellevue, transferida para cá. Continua altamente psicótica. Durante
hospitalização, tem ficado muda e reclusa, com algumas explosões
de violência. Tem sido pouco cooperativa, tenta recusar medicação
e não percebe a própria doença. Tem mania de perseguição pelo
noivo da sobrinha e afirma que o estado de Nova Iorque
“assassinou” o namorado negro dela. A paciente constantemente
reclama sobre a filha colocada para adoção. Ela não tem noções
consistentes sobre certo e errado. Ela disse que nos últimos dois
anos não bebeu nada. Fuma um maço de cigarro por dia. Nega
qualquer vício em drogas, mas admitiu ter usado barbitúricos no
passado. Afirma não ter tido relações com homens nos últimos três
anos. Não admite ter qualquer relacionamento com mulheres. Esta
paciente é um indivíduo desajustado socialmente sujeito a disforias
periódicas acompanhadas por medo, que a levam a episódios
violentos e agressões. Internar na ala L-6. Ala de acesso controlado.
Precauções contra violência.
Relatório de fuga: Depois de uma briga com outra paciente da ala,
a quem causou uma concussão leve, a paciente conseguiu sair do
hospital e vagou perdida na mata por duas noites e dois dias
completos. Foi recuperada na rodoviária de Fairview, bastante
confusa e sem saber aonde queria ir. Estava coberta de picadas de
inseto. Decidiu-se colocá-la sob forte supervisão...
Notas do Instituto Neuropsiquiátrico de Nova Iorque: Essa mulher
de 37 anos de idade não aparenta ter dificuldades motoras. A
paciente parece ter aprendido a andar e falar no período correto.
Pedido feito ao Texas dos registros de nascimento. Paciente nasceu
por meio de parteira. Sem documentação definida de nascimento
prematuro ou traumas no parto. Histórico de apagões e episódios
violentos nos quais a paciente sentiu que não conseguia se
controlar.
... o Sr. Camacho é um senhor bem-vestido (terno empresarial
cinza), que aparenta estar com quarenta e poucos anos. Ele
gerencia um viveiro de venda de plantas e tem um comportamento
expansivo e confiante. Eu o considero um informante confiável que
expressa preocupação genuína para com a irmã...

LISTA DE PROBLEMAS E PLANOS DE TRATAMENTO


Hospitalizações repetidas
Falta de motivação
Sintomas psicóticos
Dor de dente
Violência episódica
Costela quebrada
Falta de compreensão
Negativismo
ORIENTAÇÃO: Completamente orientada.
MEMÓRIA DE LONGO PRAZO: Intacta.
MEMÓRIA DE CURTO PRAZO: Levemente deficiente.
RETENÇÃO E LEMBRANÇA IMEDIATA: Intacta.
CONTAGEM E CÁLCULO: Deficiente (erro nas séries de 7).
LEITURA: Lê com facilidade.
ESCOLARIDADE E CONHECIMENTOS GERAIS: Proporcionado.
Afirma ter dois anos de superior? Registros indicam um ano e três
meses em faculdade comunitária.
CLASSIFICAÇÃO DE INTELIGÊNCIA: Mediano.
DECURSO DA DOENÇA MENTAL: Processo deteriorativo.
HABILIDADE DE ABSTRAÇÃO: Deficiente.
HABILIDADE DE MANTER ATENÇÃO OU ASSOCIAÇÕES:
Intacta.
Depois do implante, paciente esteve visivelmente melhor, sem
episódios por dois meses. Então os sintomas retornaram.
Amigdalectomia indicada, mas não realizada por causa de
incidente...

Havia mais cento e treze páginas. Todas seguiam a vida de


Connie de volta a Rockover.
Notas

1 Expressão usada em vários contextos; aqui, significa “idiota”.


2 Tradução: “Não posso viver neste buraco. Minha filha, me ajude!”.
3 Refere-se a vários pratos da culinária espanhola e porto-riquenha,
envolvendo principalmente carne de porco frita.
4 Salcocho é uma sopa ou cozido que leva diferentes ingredientes de acordo
com o país. Mondongo é uma sopa feita de tripas cortadas em cubos e
cozidas lentamente com legumes. Asopao é uma das receitas mais
importantes de Porto Rico, sendo uma sopa que pode ser preparada com
diversos ingredientes.

5 Tradução: “Não! Não, mamãe, não faça isso!”.


6 Traduções: “Agora você come como uma santa!”. “Faça aquela carinha pra
mim!”. “Que Linda!”.
7 No estado de Chihuahua, no México.

8 Tradução: “Passagens seguras”.


9 Tradução: “Cuchifritos, sucos tropicais, frituras”. Cuchifritos é um alimento
frito normalmente à base de carne de porco.
10 Alimento semelhante ao torresmo brasileiro, geralmente feito à base de
barriga ou pele de porco frita, mas também pode ser feito de frango, carne
de carneiro ou bovina.

11 Tradução: “Deus abençoe nossa casa”.


12 Tradução: “Você deve tratá-las mal”.

13 A tradução seria algo como “chefes”, alguém encarregado de uma


organização ou em uma posição hierarquica importante.

14 Tradução: “Sim, do sul, Río Grande, Tejas del Sur. Mas já faz cinco anos
desde que moro na cidade porto-riquenha de Lola Rodríguez de Tío”. (Lola
Rodríguez de Tío homenageia a poeta, jornalista e revolucionária de Porto
Rico).

15 Tradução: “Todo mundo, claro, como aqui, como sempre, certo?”.


16 Tradução: “Ela é especialista em rios. Na minha região, ainda temos
problemas terríveis com os rios, que foram completamente envenenados no
seu tempo”.

17 Tularemia é uma doença infecciosa causada pela bactéria Francisella


tularensis e transmitida por picadas de carrapatos, moscas ou contato direto
com animais infectados. É fatal quando não tratada e pode ser utilizada
como uma arma biológica.
Posfácio

por Rita von Hunty

O texto deste posfácio foi produzido com base em uma conversa virtual
realizada em 30 de janeiro de 2023 pela editora Minna com a educadora,
professora e drag queen Rita von Hunty. Ela realizou a leitura do
romance que você tem em mãos e se propôs a discutir sobre os
principais temas do livro, traçando um paralelo com o nosso mundo de
hoje, nossas capacidades de imaginação política e nossas questões
sociais.

Foi com muita alegria que recebi a possibilidade de somar forças


para que pudéssemos tornar possível esta publicação, torná-la mais
divulgada, difundida, e que este livro fosse traduzido para o
português por alguém que o estuda e o compreende em uma série
de dimensões que, na tradução, ficam latentes para nós.
Mas, antes de nos debruçarmos sobre a Marge Piercy e sobre
essa mulher no limiar do tempo, a Connie, vamos fazer um
movimento de pensar sobre um dos pontos centrais, nevrálgicos,
desta narrativa, que é pensar sobre a assistência à saúde psíquica,
mental, numa saúde integrada dos sujeitos, dos indivíduos, pensar
num exercício pleno de cidadania no qual as pessoas estivessem
aptas a arbitrarem sobre a sua internação e a dimensão da
internação compulsória.
Para falarmos sobre saúde mental, imaginação política, ficção e o
trabalho das mulheres na arte, talvez, por eu ser professora de
língua e literatura inglesa, me pareceu muito interessante falarmos
de duas autoras: Virginia Woolf e Sylvia Plath. Ambas viveram no
século XX, e ambas vão buscar no suicídio um fim para suas vidas.
É importante dizer que a dimensão do sofrimento psíquico é uma
dimensão latente no trabalho dessas duas autoras.
Em pontos especiais dos seus diários e das suas obras ficcionais,
a questão do tratamento da saúde mental, sobretudo da violência a
qual as pessoas sujeitas ao diagnóstico da loucura, da
desfuncionalidade, são submetidas, emerge como conteúdo de
algumas passagens. No diário da Virginia Woolf, no dia 18 de
janeiro de 1915, encontramos uma inscrição bastante interessante:
“O futuro é sombrio. Que é a melhor coisa que o futuro pode ser. Eu
acho”. Woolf está escrevendo isso no início da Primeira Guerra
Mundial. À medida que esse confronto transnacional começa a
escalar de forma sem precedente na história da Europa, e que vai
continuar por anos, à medida que a Bélgica é ocupada, que as
nações europeias começam a invadir outros lugares ao redor do
mundo, que o canal do Panamá é aberto, que a economia dos
Estados Unidos está em um estado terrível, que um terremoto na
Itália acabava de matar 29 mil pessoas, e que os Zeppelins alemães
se encaminham para o primeiro bombardeio de civis na Inglaterra,
Virginia escreve o que pode soar como uma previsão. Talvez ela
também estivesse falando do seu universo interno. Quando
escreveu isso, fazia mais ou menos seis meses desde um “episódio
de loucura”, no qual uma crise depressiva a levou a uma tentativa
de suicídio. Na ocasião, ela foi cuidada por enfermeiras, se
recuperou e, após a recuperação, encontramos essa inscrição seis
meses mais tarde em seu diário. A delicadeza ou a espirituosidade
com a qual a Virginia termina essa frase com “eu acho” reforça que
nossas afirmações sobre o futuro partem sempre de um diagnóstico
do presente.
Aqui, o que me interessa é salientar como a linguagem de Virginia
Woolf oferece a quem a lê o avesso da certeza. À medida que a
“Obra” da autora se constitui, ela vai produzindo esse não-todo-
fálico; o espaço da dúvida é primordial para quem deseja ter em
mente outra questão que me parece central desta nossa discussão,
neste texto, neste livro, que é o nosso horizonte de imaginação
política.
Quanto a Sylvia Plath, em seu romance mais conhecido, A redoma
de vidro (The Bell Jar) — um livro que ficou mundialmente famoso
talvez porque pela primeira vez na história da literatura a depressão
era narrada do ponto de vista do deprimido, e não de alguém
falando sobre ele —, em um determinado ponto da obra, após ser
submetida a um tratamento psiquiátrico, a personagem central, que
conhece de perto as práticas medicamentosas e de tratamento da
psiquiatria do início do século XX, narra para nós o episódio de um
famoso casal nos Estados Unidos que foi sentenciado à morte. A
partir disso, ela começa a pensar sobre esses métodos de
encerramento de vida promulgados pelo Estado, seja a injeção letal
ou a cadeira elétrica, e comenta que tinha certeza de que algo
assim só poderia ter sido inventado por um homem, ou seja, que
esses métodos de lidar com o corpo do paciente, de penetrar, de
rasgar, de introduzir, de lobotomizar, de abrir, de mexer, teriam sido
desenvolvidos por homens, que desempenham papel de gênero
masculino dentro de uma sociedade. Assim, pensemos de que
forma o tratamento psiquiátrico já se consolidou como um tema. E,
embora tenha se consolidado como um tema, cá estamos nós, por
volta de cem anos depois dessas reflexões de Woolf e Plath, ainda
tendo de fazer luta antimanicomial, em especial os setores da
esquerda, em especial, no Brasil.
A luta antimanicomial, como as demais lutas políticas, não é uma
garantia. Como disse Simone de Beauvoir, “basta uma crise política,
econômica e religiosa para que os direitos das mulheres sejam
questionados”, e podemos incluir “para que os direitos das minorias
sejam questionados”. Teremos de nos manter vigilantes e em luta
por toda a vida para que esses direitos se concretizem como tal,
como direitos.
Um dos temas que também acredito aparecer de forma latente,
pulsante, em Uma mulher no limiar do tempo, um livro de 1976, é a
história de multiverso, de viagem no tempo, mas que também está
ininterruptamente discutindo os temas de justiça social, feminismo,
gênero e condições menos abjetas de vida, existência, trabalho e
saúde, para os corpos abjetos. Não é por acaso que um dos gatilhos
que coloca essa história em movimento é o episódio em que Dolly,
sobrinha de Connie, luta contra seu cafetão e contra a violência a
qual ela vai ser submetida, no caso, um aborto forçado por ele, seu
explorador sexual. As palavras que a narradora escolhe, que a
autora escolhe, que aparecem na boca das personagens, mas que
também aparecem como discurso indireto livre, são as palavras
utilizadas para descrever as pessoas em algum estágio de
sofrimento psíquico.
Ao longo do nosso trabalho, seja na área da crítica de cultura ou
da luta social, vemos como falar é fazer. Aqui podemos nos lembrar
da Judith Butler e da filosofia da linguagem na Inglaterra com o John
Austin: existe um jeito de fazer as coisas com as palavras. Quando
nos referimos a esses corpos como “mentalmente doentes”,
estamos fazendo um enquadramento que parte de alguma
arbitrariedade. Por outro lado, referir-se a essas pessoas como em
estágio de sofrimento psíquico é talvez dar início a um
empreendimento de luta que olha para uma outra configuração de
sociedade, na qual essas pessoas não são consideradas doentes e
que não se adote a linguagem da certeza ao diagnosticá-las, ao
submetê-las a tratamentos e internação compulsória.
Quando Foucault elabora a ideia do “saber-poder” ou “poder-
saber”, explicando de uma forma breve, ele está nos provocando a
pensar que as possibilidades de saber de um povo são as nossas
possibilidades de pensar o que esse povo pode saber e o que esse
povo sabe poder. Essa é a construção basilar de uma reflexão que
vai nos levar à seguinte formulação: uma esfera de poder cria uma
linguagem de saber ou de poder. Saber e poder são indissociáveis
nas sociedades que edificamos. Quando pensamos na forma como
enquadramos os modos de vida, a forma como nos referimos aos
corpos e às modalidades de vida, vemos alguma coisa mais
profunda do que apenas isso. Quando pensamos o doente, a
doença, ela precisa emergir para nós como um dispositivo de poder,
como um enquadramento semântico que dá o retrato de uma
construção social. Referir-se à doença é se referir a um
enquadramento de poder de um determinado povo em um
determinado tempo. Por exemplo: em 21 de maio de 2019, a
Organização Mundial de Saúde retirou da sua lista de doenças a
transexualidade. Até 2019, para essa equipe de respeitáveis
médicos e doutores, o corpo da pessoa trans era um corpo passível
de internação, de tratamento ou de passar pela terapia de
conversão sexual: para eles, esses corpos eram doentes, eles
apresentavam uma disforia de gênero ou sexo. São doentes
mentais. Dizer que um corpo está doente é dizer que existe
tratamento, que existe cura, que existe internação, que existe
conversão de uma pessoa trans em cis, de uma pessoa
homossexual em heterossexual. Mas também há uma chave de
disputa nesta leitura: ela assume que a sexualidade é um dado de
construto, que é produzido, e que, portanto, não é natural, e isso
também pode produzir uma desidentificação dos sujeitos.
Olhar para esse enquadramento teórico e ter em mente qual é
essa sociedade que produz esse sistema de significados e valores
num tempo é começar a fazer um trabalho relevante para quem se
interessa pela ficção científica, pela literatura.
Quando pensamos sobre saber-poder ou poder-saber, não
estamos discutindo uma formalidade ou uma banalidade, e sim a
forma com a qual organizamos as nossas sociedades, como
decidimos quais corpos terão acesso a modos de vida mais ou
menos abjetos. Eu prefiro me referir a esse grupo de pessoas como
possuindo algum grau de sofrimento psíquico, porque, ao final do
dia, é muito provável que a gente descubra, nessa sociedade do
adoecimento psíquico, nesse momento do capitalismo tardio, que
nós mesmos somos candidatos, em potencial, a ocupar essa
categoria. Eu começo pela categoria da doença, mas um rápido
deslocamento para a categoria do pecado, do crime, da piada vai
nos remeter à mesma resposta: são produções discursivas de
poder. O que é pecado? O que um grupo de poder decidir que é. E
quais serão os desdobramentos de tal decisão sobre as vidas dos
corpos abjetos? O que é crime? Por exemplo, moramos no Brasil,
país no qual o filho de um magnata, dirigindo um carro acima do
limite de velocidade, sem documento, sob efeito de entorpecentes,
atropela, não presta socorro e mata um homem preto, pobre e
periférico, um total de seis crimes; ele foi preso? Portanto, crime é
uma categoria discursiva de poder. Uma esfera de poder cria um
discurso de poder para legitimar suas práticas num tempo.
Nesse ponto, a Marge Piercy também faz parte dessa discussão
quando utiliza as palavras “violento”, “incapaz”, “irracional” para se
referir a esse grupo de corpos abjetos. Há um artigo da autora no
qual ela diz que Uma mulher no limiar do tempo é uma ficção
científica especulativa, de utopia especulativa, do “se ao menos”. O
que será que concede a um texto a posição de ficção científica, de
utopia ou de distopia?
O despertar (The Awakening), de Kate Chopin, uma das principais
autoras feministas estadunidenses do final do XIX, vamos
acompanhar Edna Pontellier e sua luta incessante para comunicar
um desejo de viver uma impossibilidade naquele momento. Na
virada do século, cristalizava-se uma ideia de mãe criada há pouco
tempo. O que é mãe? É um discurso de saber-poder. Se formos
pensar que havia, na Europa, uma série de mulheres da classe
trabalhadora que desempenhavam o trabalho das mães
aristocratas, perceberemos que essa família burguesa-colonial é
uma invenção de uma cultura hegemônica de um povo em um
tempo. E a cultura hegemônica sempre se busca natural. O papel da
mãe é natural, instintivo, um laço de amor infinito criado
magicamente no momento do nascimento? Isso não passa de uma
ficção que nós fomentamos. E talvez uma das discussões que a
ficção científica nos permite estabelecer em sociedade é: a quais
ficções daremos consistência imaginária de verdade e a quais
ficções daremos consistência imaginária de mentira, de impossível,
de improvável. Mas, como o Félix Guattari sempre afirmou, as
nossas principais disputas sociais e políticas atuais são as disputas
do impossível, de mover a linha do impossível.
O despertar narra a história dessa mulher de classe média-alta que
aprende a nadar, mas que começa a abandonar gradativamente as
suas funções de mãe e esposa, que gradativamente decide que vai
morar em outra casa, decide que o cuidado das crianças vai ficar a
encargo das babás, que ela não vai mais se ocupar. Em 1899,
chegamos ao limite do horizonte da imaginação política de um povo
em um tempo. E para que essa história não se tornasse uma ficção
científica, para que ela ainda pudesse ser lida como um romance
realista, na cena final, quando a personagem já está morando em
outra casa, os filhos já estão sendo criados pelas babás e ela já pode
ir nadar com o jardineiro da casa nova, ela “nada mais longe do que
qualquer outra mulher já havia nadado”, perde as forças e se afoga.
Não conseguimos ir mais longe do que isso. Se Edna fosse mais
longe, a história não teria verossimilhança, iria romper com a
credibilidade do romance, viraria um absurdo, um pastelão.
É importante lembrar neste ponto que tanto a Ursula Le Guin
quanto Fredric Jameson afirmaram que o exercício da autoria da
ficção científica não é especular sobre o futuro, mas sim empilhar
mentiras até que quem lê perceba que o que está retratado ali é a
verdade de seu próprio tempo. É por meio dessa relação, com o
exercício da imaginação, do “e se”, “e como”, “e quando”, que
vamos dando tessitura à consistência imaginária que concedemos
ao que pode ser visionado como verdadeiro, verossimilhante, ou
desacreditado como impossível e ficcional.
Uma mulher no limiar do tempo foi escrito por uma autora
feminista, progressista, estadunidense, com uma vasta passagem
pelo marxismo, que viveu o caldo de cultura das lutas sociais dos
anos 1960 no ocidente e que produziu uma ficção científica de
imaginação utópica do futuro. A possível linha do futuro — atenção,
“possível”, pois existem outras, já que o futuro não é um dado, é
construído — apresentada à Connie por Luciente é o futuro que a
imaginação política da esquerda radical nos anos 1960 e 1970 foi
capaz de produzir, e no qual suas principais demandas foram
atendidas: a poluição ambiental, o patriarcado, a dificuldade de
acesso à moradia, a LGBTfobia, o racismo, a subordinação de
classe, a insegurança alimentar, o consumismo, o etnocentrismo —
ou o “falogocentrismo”, de Jacques Derrida (que demonstra essa
ideia de que a razão, o acesso ao discurso, à verdade, à produção
só pode recair sobre o homem, pois, se recair sobre a mulher, esta
não vai ser levada a sério, sequer vai ser ouvida, por ser a mulher
considerada incapaz de falar, de organizar, de produzir, de pensar
para essa sociedade que construímos, ou assim se pensa).
Em paralelo a esse mundo utópico, Marge também nos apresenta
a linhas de futuros distintas. Há uma linha em especial na qual a
sociedade de classes se aprofundou, na qual seres humanos são
cultivados para que órgãos sejam colhidos, as mulheres vão sendo
submetidas a cirurgias plásticas que vão deixando-as aberrantes;
seria esse possível futuro o inimigo do qual a sociedade utópica de
Luciente precisa se defender? Apesar do caráter utópico, de
paraíso, a guerra continua, para espanto da personagem Connie,
que vai se convencendo no decorrer do romance de que está em
guerra. E a questão da guerra é uma questão repetida no decorrer
do romance.
A ideia da guerra vem para derrubar a ingenuidade ou idealização
de que o processo de melhoria se dará com flores e bombons. “Eles
têm armas, mas nós temos poemas”; então já sabemos quem vai
levar tiro. Isso está presente e é conteúdo da forma deste romance.
É impossível pensar em um processo de revolução sem um
processo contrarrevolucionário. Eles estão em guerra porque há um
processo contínuo de gestação do futuro, da gravidez de um futuro
que é um devir, mas que está em disputa e não será realizado sem
resposta de mesma força em sentido contrário.
Os pontos que a sociedade do futuro utópico conseguiu resolver
refletem a agenda da esquerda radical dos anos 1960 e 1970. Mas,
se estamos lendo este livro hoje e esse futuro nos parece
suficientemente bom, encontramos um problema incontornável:
meio século depois não fomos capazes de pensar em nada novo,
portanto, falhamos como pensadores de utopias. Se o nosso
horizonte de imaginação política tem a mesma distância do que a
meio século atrás, então temos um grande problema em nossas
vidas e lutas políticas. E este romance nos fornece um diagnóstico
precioso da nossa capacidade de imaginação política cinco décadas
depois de quando foi escrito.
Para encerrar, decidi fazer uma provocação, que pode ser
importante para aqueles interessados em se debruçar sobre ficção
ou pensar a cultura: se Guattari está correto — e eu torço para que
ele esteja —, se a questão fundamental do nosso tempo for a linha
do impossível, e se o horizonte de imaginação política de um livro
dos anos 1970 nos parecer suficiente, então teremos muito trabalho
a ser feito, porque já estamos sendo defrontadas e defrontados com
a distopia dos medíocres.1
Assim, o que podemos fazer? Podemos ler e entrar em contato
com as pessoas que estão buscando entender o nosso mundo,
porque juntas e juntos podemos pensar, produzir alguma outra
coisa. Porém, somos defrontados com uma grande urgência. O
limiar onde está a mulher no título do romance tenta nos avisar de
que estamos já no limite e que é preciso fazer algo para que a
opressão não se configure como uma realidade indissociável do
futuro, para que as intervenções médicas violentas, a lobotomia, as
alas psiquiátricas e tortura não se normalizem.
Ter esperança, hoje em dia, é um ato de teimosia.

Rita está se referindo aos últimos quatro anos de caos produzidos pela gestão
Bolsonarista do Estado brasileiro, mais especificamente ao então recente
episódio de tentativa de golpe de estado e destruição das sedes dos três
poderes em Brasília, no dia 8 de janeiro de 2023.
Daquela que te amará sempre

por Marina Lima

Queridíssima Lúcia,

Quero dizer que agora eu, assim como tu, tenho a cabeça nas
nuvens e ando suspirando pelos cantos. Já não temo as noites em
claro e as passo sonhando acordada até o cansaço me levar! Tudo
isso desde que o encontrei pela primeira vez. A lua solitária no céu e
eu igualmente só, inquieta na cama com pensamentos altos e sono
baixo.

Lembrei-me do teu conselho na última visita e fui dar um passeio


no jardim. Realmente estava belíssimo: a luz do luar refletida sobre
as folhas, o cheiro da terra molhada pela garoa recente... e aqueles
dois olhos castanhos que cruzaram com os meus. Jamais
imaginaria encontrar alguém no jardim àquela hora, entretanto, estar
a sós com o estranho não me assustava. Ele sorriu o sorriso mais
belo que já vi, porém, o olhar mais triste o acompanhava.

Conversamos sobre aquela noite e a tranquilidade que nos


rodeava. Ele parecia mais feliz de ter companhia e estranhamente
eu também, até demorei a perceber que estava de camisola! Se
meus pais soubessem do ocorrido nunca que eu escutaria outra
coisa; não preciso lhe dizer que o que conto aqui não deve ser
compartilhado com nenhuma alma, viva ou morta, sim?

Ele me disse que era um mascate e que teria chegado ainda há


pouco a pedido de meu pai. Como era tarde, foi-lhe oferecido um
quarto, entretanto, ele não havia conseguido pregar o olho e, assim
como eu, decidira por uma leve caminhada. Era a primeira vez
desde tua visita que me senti verdadeiramente ouvida e minha
presença apreciada. Nós nos despedimos antes do alvorecer e eu
voltei radiante para a cama, mal podendo esperar para encontrá-lo
novamente.

Entretanto, não o encontrei logo cedo. Meu pai falou sobre o


viajante e eu o inquiri com desinteresse fingido. Percebi que não
havia lhe perguntado o nome: Eduardo Souza. Ele havia sofrido um
assalto e boa parte de sua mercadoria fora levada. Não me admira a
insônia! Ainda devia estar alvoroçado com o ocorrido, o coitado. Por
isso meu pai o deixaria descansar o quanto fosse, porém, eu
deveria estar pronta a qualquer momento para receber a visita.

Jantamos enquanto fingíamos nos encontrar pela primeira vez.


Mais tarde, nos encontramos no jardim. Tenho adorado esse nosso
jogo secreto! Ele parece jovem, mas sua voz carrega um peso,
entende? Quanto mais conversamos, melhor eu percebia que ele já
havia passado por muito...

Meu pai o convidou a ficar até que ele consiga se estabelecer por
si só, mas consigo sentir seu real objetivo de torná-lo seu aprendiz,
pelo tanto que conversam sobre negócios. Isso significa que o verei
com mais frequência, e eu não poderia estar mais contente!

Mas diga-me, como tens passado? Acho que não preciso dizer
que estas últimas semanas foram mágicas para mim! Tinhas razão
como sempre, Lúcia, tudo o que me faltava era sair um pouco de
meus aposentos, respirar do ar fresco e talvez... apenas talvez,
conhecer alguém novo.

Deseja-me sorte, querida prima. Acredito ter encontrado o meu


‘Artur’, mas ainda é muito cedo para dizer ao certo.

Com todo meu amor,

Lina.
Misteriosa Lúcia,

Os dias não poderiam se arrastar mais! Há meses não nos vemos


e a notícia que disseste ter em tua última carta me deixou de orelha
em pé. Sabes bem como cativar a audiência. Como pediste, não
mencionei nada pela casa, mas, por favor, apressa-te ou não
responderei por mim!

Quanto à tua pergunta, nas semanas que se passaram, eu e


Eduardo temos sim nos aproximado! É curioso como podemos
conversar por horas em nosso lugar especial quando até pouco
tempo eu mal conseguia falar com estranhos. Acho que ele
simplesmente não me parece estranho.

Ele costuma sair bem cedo para a cidade trabalhar, tão cedo que
até agora não consegui sequer espiá-lo pela janela. Assim como
suspeitava, meu pai se apossou do pobre rapaz e o faz de gato-
sapato! Eduardo diz não se importar e que está aprendendo
bastante, apenas por isso não fui falar poucas e boas ao pé do
ouvido de meu pai.

Falando nele... acredito que não tenha ideia dos nossos encontros
e parte de mim quer que continue assim. Por um lado, ter esses
encontros secretos faz meu coração disparar como louco; por outro,
nunca tive segredo com meus pais. Não que exista algo sério a se
esconder, afinal, são só conversas, mas quem sabe num futuro...

Bem, conta-me. Soube que Artur voltou há pouco mais de um


mês, imagino que a casa já não pareça tão vazia como quanto te
queixaste em sua última carta. Agora pode te gabar de ter um
marido recém feito médico! Fico feliz pelos dois e espero
ansiosamente pela tua visita para trocarmos mais segredos.

Da tua mais que curiosa confidente,

Lina.
Querida Lúcia,

Espero que esta carta te encontre já em boa saúde. Na última vez


em que estiveste aqui, não tivemos a melhor das despedidas.
Apesar dos meses de teu silêncio, não consigo viver sem escrever
para minha amada prima. Peço desculpas por ter gritado contigo,
mas não pelo que lhe disse. Foste injusta com Eduardo e espero
que percebas isso agora.

Não entendo tua apreensão quanto a ele. O que aconteceu com


os empregados foi excessivo e não é algo rotineiro, mas, venhamos
e convenhamos, essa gente às vezes precisa de um puxão de
orelha ou eles relaxam e de repente estão a viver à nossa custa em
vez de trabalhar. Eduardo é um homem direito e trabalhador que se
esforça diariamente, só retornando para casa bem após o
crepúsculo. Achei que tu, de todas as pessoas, serias quem mais te
encantarias por ele. Artur também quase não falou nada enquanto
tomávamos chá e ficou basicamente a encarar Eduardo... Mas não
lhe escrevo apenas para reclamar.

Receio que meus pais estejam ficando cada vez mais fracos, a
palidez tal qual a de um fantasma. Já chamamos mais de um
médico para os examinar, mas nenhum soube dizer a causa. Talvez
Artur saiba de algo, vindo daquela faculdade tão prestigiada.
Eduardo diz que os médicos daqui relaxaram e caminham para a
obsolescência. É por isso que decidimos adiantar nossos planos.

Vim convidar-te para meu casamento com Eduardo no dia treze de


julho deste mesmo ano, e gostaria bastante que comparecessem.
Espero que tenhamos a chance de fazermos as pazes, Lúcia, mas,
ainda que isso não aconteça, simplesmente preciso que estejas em
meu casamento. E tu não vais querer perder o meu vestido... sim, é
o mesmo com o qual sonhávamos anos atrás!

De tua prima preferida,

Lina.
Doce Lúcia,

Sinto em saber de teu bebê. Meus pais também faleceram há


pouco... acredito que sejas a única que poderia me entender neste
momento, e espero ser aquela que te entenderá também. Os dias
se tornaram mais frios por aqui, já não me lembro da última vez em
que vi o sol, e, mesmo assim, nem uma gota parece cair. Acho que
o mundo decidiu entrar de luto conosco.

Agora que Eduardo assumiu os negócios da família, nosso tempo


se tornou escasso e nossas conversas, vazias. Ele não gosta que
eu interfira, assim como meu pai antes dele, e suas respostas são
ríspidas. Gostaria de dizer que parece outra pessoa, mas eu já o
conhecia dessa maneira quando se irritava. Imagino que não haja
maior momento para agústia do que este, então eu o entendo e
devo respeitar seu espaço. Eduardo precisa de alguma segurança,
algo firme com que possa contar, e eu tenho sido essa rocha. Ao
menos quando ele permite, claro, o que não é sempre.

Ele passa horas enfurnado no escritório, deixando apenas alguns


empregados entrarem ao longo do dia. Todos saem com cara de
que receberam broncas por algo aqui ou ali. Por vezes me pego
com inveja deles por conseguirem ver meu marido mais do que eu.
Patético, eu sei.

Mas me diga, como está Artur? Ele já sabe? Soube que depois do
casamento ele viajou para encontrar um amigo para discutir a
situação dos meus pais. Sei que é tarde, mas ainda gostaria de
saber se descobriram algo.

Sei que já lhe disse isso e pode ser um pouco egoísta, mas eu
preciso de ti, Lúcia. Gostaria de passar um tempo contigo em sua
casa, se assim for possível.

Com muita saudade e carinho,

Lina.
Amada Lúcia,

Apesar dos anos terem nos separado, eu ainda te tenho no


coração como minha confidente e espero que continue a ser
recíproco. Não tenho conseguido dormir direito já por várias luas e
mal tenho me aguentado de pé ultimamente. A comida perdeu o
gosto, e mesmo o nosso vinho favorito já não me desce mais.
Eduardo continua trabalhando, mas tem passado mais tempo
comigo. Nós nos acertamos aos poucos, mas ainda nada. Temo que
se continuar desse jeito nossa família nunca irá crescer.

Lembro-me de quando sonhávamos em ter nossa família com


cinco ou seis filhos, um bom homem, uma casa confortável e bem
suprida. Era mais fácil naquela época, não? Espero que estejas
mais próxima desses sonhos do que eu, querida prima.

Não lhe escrevo para fazer com que te sintas velha, não te
preocupes. Estou me alongando enquanto busco coragem para
estas próximas palavras. Ontem aconteceu de novo. Pude ouvir o
grito abafado pelas paredes do meu quarto e fiquei paralisada.
Pouco tempo depois, Eduardo entrou, perguntou se eu queria algo
para comer e me deu um beijo leve quando respondi que não.
Pensei em lhe perguntar o que acontecera, mas a pergunta morreu
na minha boca assim que senti um gosto metálico.

Assim aconteceu pelas próximas semanas. Andei pelos corredores


à procura da origem dos sons que ouvia, mas o caminho sempre
levava ao escritório do meu Eduardo. Eu tive medo, Lúcia, muito
medo. Medo dele e por ele, porém, o pior é o medo de descobrir o
que ele tanto faz durante o tempo em que não estamos juntos,
então escolhi não saber e me acostumei com os gritos.

Estou em conflito, Lúcia. Eu o amo e não poderia estar mais certa


disso. Não sei que diabo tomou conta dele esses anos, mas tenho
certeza de que ele permanece sendo uma alma gentil. A maneira
como me sinto segura quando estou em seus braços... Sei que nada
neste mundo o faria me machucar, mas se ele tem machucado
outras pessoas... Queria que pudéssemos voltar para nossas
conversas no jardim e nossas cartas bobas, prima.

Neste momento, a casa parece morta, o silêncio opressor


quebrado apenas por passos apressados fora do quarto, mas
mesmo esses somem quando tento me aproximar. Sinto-me de volta
à minha adolescência, trancada em meus aposentos sozinha ao ver
o tempo passar pela janela. Na época, tu vinhas me visitar semana
sim, semana não, lembras? Sempre com um punhado de biscoitos a
tiracolo e às vezes uma garrafa de vinho escondida por entre as
roupas. Divirto-me pensando sobre nosso passado colorido
enquanto me vejo cercada de cinza.

Eduardo disse que precisávamos conversar e marcou um jantar


para amanhã à noite, para discutirmos certos assuntos. Não
mencionou do que se trata, mas sua voz era doce como naquela
época...

Minha querida prima, se algo acontecer, virás me salvar?

De tua doce,

Lina.

Lúcia,

Depois de todo este tempo, sou obrigada a dizer que tu sempre


estiveste certa. Por favor, perdoa-me.

Daquela que te amará sempre,

Lina.

...

Lina terminou aquela que seria sua última carta no momento em que
a porta finalmente cedeu. O calor e a fumaça embalavam a figura de
um homem, que ofegava pelo esforço. Por um momento, encarou a
figura da mulher prostrada no chão com papel e pena em mãos.
— É ela! A maldita esposa! — exclamou um senhor de idade um
pouco mais atrás.
— A esposa... Melina? — o homem perguntou incerto, limpando o
suor que lhe caía aos olhos.
Lina compreendeu finalmente quem era o invasor quando ouviu a
voz de Artur chamando seu nome. Tinha machucados por todo o
corpo, mas sua expressão era determinada. “Não podia ser
diferente”, pensou com desgosto. Ela lhe estendeu a carta com
dificuldade; já havia inalado muita fumaça.
— Entregue para Lúcia — ela disse entre tosses. — Por favor,
Artur.
Antes tão cheia de vida e energia, a mulher parecia uma casca do
que já fora. Não tinham muito tempo, pois a população que invadira
o casarão estava atrás de um culpado; seu amigo lhe dissera que
tais criaturas costumam transformar aqueles mais próximos de si.
Não era possível dizer se já havia acontecido ou não, mas, de
qualquer forma, ele achou que ela merecia saber. Pegou por fim a
carta.
— Teu marido, aquele monstro... ele fugiu, Melina. — Artur pôde
ver claramente que algo em seu olhar já não era mais o mesmo.
— Com assim? Ele estava...
— Ele a abandonou aqui. Procuramos em todos os lugares, mas
Eduardo não está em canto algum.
— Isso não é verdade... ele nunca... — A tosse estava ficando
severa. — Nunca... me abandonaria aqui com esses selvagens! E
tu... tu invades e destróis a minha casa, trazes esses vândalos e
agora decides mentir para mim? Baixo até para tu, Artur.
Ele barrava a porta, mas podia sentir a inquietude às suas costas.
O povo ficava impaciente. Lina estava em negação, balançava um
abridor de cartas à sua frente enquanto tentava suprimir a tosse.
Seria impossível tirá-la da casa com vida e, mesmo que tirasse,
seria mesmo seguro? Tinha prometido para Lúcia trazer sua prima
para casa, mas a esposa não entendia o perigo que isso
representava.
— Sinto muito, Melina — disse por fim, resoluto.
A mulher largou a arma no chão, sentindo o corpo ainda mais
fraco. Não podia ser real, certo? Eduardo nunca a abandonaria
assim... certo?
— Artur...? Tu não podes... não te atreverias a me deixar aqui. O
que dirás para Lúcia? — Percebeu que era a decisão final de Artur e
isso a assustou ainda mais — Eduardo irá atrás de ti! Vais ver! E
quando ele... encontrar... — Por fim, seu corpo não aguentou e ela
tombou no chão desacordada.
Artur se virou e abriu espaço para quem quisesse passar,
murmurando quase em uma prece “o que precisa ser feito”,
enquanto segurava com força a carta em suas mãos.
...

Lina sentiu uma dor estonteante que lhe trouxe de volta à


consciência. De início, mal conseguia distinguir os arredores. Estava
tudo escuro, salvo pela luz trêmula de algumas velas próximas.
Levantou-se com cuidado da superfície dura em que jazia. Parecia
estar em uma estrutura fechada, pouco menor que seus antigos
aposentos, mas sem metade do conforto, já que tudo era trabalhado
em pedra. Seus olhos se encontraram com os de uma mulher mais
velha, próxima aos cinquenta anos de idade, que a encarava com
lágrimas prestes a cair. Apesar de não reconhecê-la, a estranha lhe
era familiar.
— Melina Castelo? Conheces esse nome? — perguntou a mulher
com cautela.
A cabeça de Lina queria explodir, mas seus pensamentos
começaram a se organizar novamente.
— Sim... esse é o meu nome — respondeu com convicção. — Mas
creio não te conhecer, senhora.
— Ai! Senhora dói vindo de ti. Temos quase a mesma idade,
lembras? — A mulher pausou, suas lágrimas escorrendo no que era
um esboço de sorriso. — Ou teríamos, ao menos...
— Tu não estás fazendo sentido, Senhora...
Sua frase foi cortada por um abraço repentino da mulher. Sentiu-
se estranha, mal registrando o contato, mas havia familiaridade em
seu toque. As memórias inundaram seus pensamentos. Todas as
visitas, todos os presentes e segredos. Lina sempre soube que ela
seria a única pessoa que a acompanharia por toda vida, sua amada
prima Lúcia Castelo. Lina sentiu as próprias lágrimas escorrerem
quando retribuiu o abraço.

...
Marina Lima é ilustradora de Jaboatão dos Guararapes, Pernambuco. Desde
pequena tinha esse gosto por escutar e ler histórias, que naturalmente evoluiu
para contar as próprias histórias, e é o que tem feito desde então.

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