Escolar Documentos
Profissional Documentos
Cultura Documentos
Casou-se com seu atual marido, Ira Wood, em 1982, após escreverem
juntos a peça The Last White Class. Em 1997, fundaram a Leapfrog Press,
Storm Tide.
Marge queria escrever ficção com uma dimensão política, e queria escrever
que não fossem tão simples como esperava-se que elas fossem.
lutando em todas as frentes ao mesmo tempo. Hoje, seu lar é seu local de
apoio. Em sua poesia, ela dá graças ao que lhe foi dado e testemunha o que
recebeu o Arthur C. Clarke Award pela obra He, She and It.
CAPÍTULO 1
...
Querida Connie,
Recebi seu recado, gostou da minha secretária nova? Não é
uma chiquesza? Eu quase caí da cadeira quando ouvi sua voz.
Me poupa de perde ligações quando tou ocupada. Me poupa $$$
tb.
Nita está mais bonita a cada dia, espra pra vc ver ela. Eu tô
bem. Geraldo, aquele desgrassado, me largou c/ a conta da
minha operação no ospital. Ainda tô pagando. Tou c/ um cara
novo, mas é só profisssional. Esse é legal, vc vai gosta dele. Ele
chama Vic e era jogadorr de beisebol de verdade. Vo pedi pra ele
me leva no domingo, sábado tenho uns compromisso. Domingo
levo a Nita. Vo passa no meu pai e pega suas coisa. Vc não falo
o que queria, vo leva o que achar. Se quise alguma coisa, me
liga e diz pra secretária que eu te levo.
Bj bj bj
C/ amor, Dolly.
...
O dr. Redding chegou à ala assim que ela voltou do futuro. Ninguém
estava prestando atenção nela. Podia ter ficado mais tempo, pensou
arrependida, mas as coisas ali pareciam interessantes. O dr.
Redding, o psicólogo dr. Morgan Acker, a srta. Moynihan, o técnico
do eeg, até a secretária, Patty, e os auxiliares estavam reunidos ao
redor da cama de Alice.
— Quero que vocês prestem bastante atenção, e quero que se
lembrem bem nos próximos meses deste projeto que vai ser
demonstrado para vocês testemunharem. Espero ver efeitos
imediatos numa maior confiança entre os funcionários — Redding
disse friamente.
As orelhas do dr. Morgan estavam vermelhas e se destacavam do
cabelo pálido e ralo. Ele parecia mais baixo, porque não ficava
ereto. A tristeza exalava dele como um fedor. Tudo estava calmo na
ala feminina.
— Não fique muito confiante, dr. Redinha. — Alice sorriu por
debaixo das bandagens. — Aquele médico moleque e gordinho ali,
ele está com medo. Ele tem medo de mim. Acha que eu vou
arrancar um pedaço. — Alice bateu os dentes. Debaixo do lençol,
ela balançou o corpanzil.
— Olhe, Francis — o doutor Redding disse, com ar triunfante. —
Os pacientes reconhecem a hesitação. Você estava relutante em
incluir Alice no experimento exatamente por causa da violência que
faz dela uma participante perfeita. Seus medos não têm
fundamento. Mal controle dos impulsos levou esta participante a
diversas rusgas com a sociedade. Nós podemos dar a ela a própria
falta de controle que tolheu seu desenvolvimento.
— Você acabou de dizer que eu faço o que quiser. Você não
queria que só às vezes soubesse o que quer muito fazer? O senhor
Babadinho, ele não consegue controlar os impulsos também. Fica
pegando a senhorita Jaleco Branco Calcinha Quente. Vocês todos
aproveitem pra se divertir às minhas custas e tirem essa merda da
minha cabeça.
Um tremor de constrangimento os fez se curvarem, como capim
ao vento. Daí, tirando forças uns dos outros, se reuniram em volta
da cama de Alice e decidiram tacitamente fingir que não a ouviam.
Acker murmurou alguma coisa sobre “padrões aleatórios de
hostilidade”. Eles se reuniram em volta de uma máquina que estava
escrevendo com umas agulhas — oito ao mesmo tempo — no papel
que se acumulava no chão como pilhas de acordeões.
— Esse papel todo — disse Alice, levantando a voz —
desenrolando como se fosse um papel higiênico enlouquecido.
Quantas árvores já usamos hoje de manhã?
Redding olhou para o relógio de pulso.
— Argent e o superintendente Hodges logo vão estar aqui. Assim
espero. E o pessoal da filmagem. — Morgan e Moynihan estavam
admirados com alguns dados nos papéis. O tempo todo as agulhas
seguiam escrevendo e o papel continuava caindo no chão como
uma ordeira diarreia. Redding decidiu então: — Enfermeira, está na
hora de tirar essas bandagens. Sra. Valente, nos traga café e vamos
ficar na sala de conferência até que nossos convidados cheguem
para a festa, sim? — Ele saiu apressado, arrastando consigo o
grupo todo.
A enfermeira começou a retirar as ataduras da cabeça. Com
cuidado, Connie e Sybil foram se aproximando mais e mais até que
Connie disse:
— É verdade que eles colocaram agulhas na sua... cabeça?
— Não, eita. Eletrodos, chamam assim.
Connie ficou olhando com ansiedade enquanto a careca lisa
aparecia por debaixo do curativo. Como Abelha.
— Mas não vejo nada!
— Estão dentro, menina. Você esperava o quê, que parecesse
uma almofadinha de alfinete? Eles são idiotas, mas não tão idiotas
assim!
— Alice, se são eletrodos, onde estão os fios? — Sybil perguntou
com cuidado.
— Sua velha. Sem fios. Eles usam um pequeno rádio, que botam
dentro também.
— Agora, podem ir parando — a enfermeira disse de repente. —
Já chega. Silêncio na ala. Vocês estão incomodando a paciente.
— Não vejo como a gente pode incomodar a Alice. Não foi a gente
que colocou um rádio e eletrodos na cabeça dela — Sybil
respondeu com destreza.
— Fica quieta se não eu vou te dar uma injeção que vai te apagar
— a enfermeira disse, com as mãos na cintura.
De volta aos leitos, Sybil sussurrou:
— A enfermeira não disse nada pra contradizer os eletrodos. Será
que é verdade?
— Mas pra quê?
— Controle. Pra gente virar máquinas que obedecem eles — Sybil
murmurou.
Que besteira isso parecia! Elas eram loucas, imaginando aquilo.
Connie desejou ter ficado em Mattapoisett.
Às onze, o pessoal estava de volta com dois outros médicos e
uma equipe de gravação. Um dos recém-chegados ela reconheceu
da festa de Natal da última vez em que tinha estado internada, era o
superintendente do hospital. Doutor Samuel Hodges tinha mais de
um metro e oitenta e já tinha quase sessenta anos, e apenas uma
coroa de cabelos crespos e grisalhos na sua cabeça lisa. O outro
homem era mais velho, com uma cabeleira branca e sedosa, um
bronzeado radiante, um terno fino, garboso, mas tradicional. O dr.
Redding e o dr. Hodges o chamaram de Chip, mas o dr. Morgan o
chamou de dr. Argent. O dr. Redding perguntou como estava a ilha
de St. Peter’s, casualmente sugerindo que o dr. Argent tinha uma
ilha na costa do estado da Geórgia. Isso contava pontos para ele.
— Uma ilha bem pequena — o dr. Argent disse. — Foi usada
como abrigo para escravos fugitivos. Agora para médicos
escravizados fugitivos. — Ele falava diferente dos outros. A
princípio, ela achou que ele era inglês, e às vezes a voz dele
parecia com a dos Kennedy falando na televisão. Ele mantinha o
cabelo branco um pouco longo e, onde quer que estivesse, era o
centro das atenções. O Redding falava com ele com um leve
acanhamento que modificava sua voz. Uma provocação trouxe
risadas para a goela de Redding e as manteve ali, como uma luz de
advertência.
— Vamos gravar pelos próximos dois meses — Redding disse ao
dr. Hodges. — Vantagens: gravação in-situ de procedimentos e
respostas dos pacientes. Capacidade de editar pro formato de filme,
que podemos usar tanto pra educação quanto pra angariar fundos.
Não precisa de luz especial.
— A luz aqui é bem ruim — alguém da equipe disse. — Quando
chegarmos nas instalações do Identificador Nacional de Planos de
Saúde, vamos conseguir gravar melhor.
— Não aponta essa câmera pra mim! — Alice se debateu contra o
apoio da enfermeira e caiu com tudo no leito.
— Posso, claro, acalmá-la a qualquer momento, mas preferiria
seguir conforme programamos — Redding falou.
O dr. Hodges fez uma leve reverência, indicando para continuar.
— Doutor, é a cabeça dela — a sra. Valente falou humildemente.
— Raspamos. Ela está careca, sabe, isso deixa ela envergonhada.
Ser fotografada careca? — Eles olharam para Valente sem
entender. Connie mesma sentia-se envergonhada. Ela tinha
antipatizado com Valente à primeira vista, por causa da corpulência
e do problema com a fala. Mas Valente realmente os via como
pessoas; via Alice como uma mulher que não deveria ser
publicamente aviltada. Valente seguiu falando, quase um sussurro:
— Podiam talvez conseguir umas perucas.
— Patty. — Dr. Redding balançou a cabeça para sua sempre
presente secretária. — Arranje uma porção de perucas para as
mulheres usarem enquanto cresce o cabelo.
— Para quando você as quer, doutor? — Patty parecia confusa.
Era uma mulher magra, sempre vestindo calças sociais verde-menta
ou vermelho-cereja, com cabelos loiros e óculos redondos de
armação azul metálica, que escorregavam no nariz.
— Alice é só uma demonstração. Não vamos começar com os
outros até que estejamos no instituto, vejamos, em duas semanas.
Então eles iam fazer aquilo com todos eles. Iam fazer aquilo com
ela — o que quer que fosse. Ela também.
— Charlie, se não for muito ousado da minha parte — o dr. Argent
disse —, por que não fazer ela dar uma demonstração? Afinal,
violência irracional é o que estamos trabalhando.
— Você tem razão. — Redding riu, parecendo que queria ter tido
ele mesmo aquela ideia. — Certamente. Vamos. Libera eles.
— Um minuto, doutor, estamos arrumando o microfone. Mantenha
ela ocupada e estaremos com vocês em uns minutos.
Alice continuou mesmo. Ela conseguiu se debater até sair da
cama e precisou de dois auxiliares e uma enfermeira para forçá-la
de volta. A luta continuava, e a equipe começou a filmar, um
microfone pendurado sobre a cama, enquanto o impassível
operador de câmera mascando chiclete tirava Patty da frente para
ter um bom ângulo.
— Bem-vindos à casa dos macacos no zoológico! — Sybil gritou.
Os pacientes todos estavam agitados agora, alguns falando alto uns
com os outros ou com as paredes. A srta. Green estava deitada de
bruços com um travesseiro cobrindo-lhe a cabeça, enquanto Tina
Ortiz observava com um quê de raiva. Os homens estavam se
aglomerando na porta para olhar para dentro. Alvin deu uma carreira
pela ala para bater na porta externa com os dois punhos cerrados.
Gordo o agarrou pelas axilas e o fez voltar para a cama. Alvin não
apareceu mais, provavelmente eles o aquietaram com uma alta
dose de tranquilizantes.
Redding, usando um pequeno microfone ao redor do pescoço
como um pingente, dava uma aula sobre amperagem e voltagem.
— Vamos estimular pontos de um até dez na amígdala esquerda
com 0,9 miliamperes, cem, 0,2 microssegundos de duração de
pulso, ondas quadradas bidirecionais por cinco segundos. — Ele
parecia um funcionário da companhia telefônica ligando para
informar sobre um serviço feito. Alice respirava entre bufadas,
deixando escapar uma porção de xingamentos. Alguém da equipe
desligou o microfone dela. Os dois auxiliares se apoiaram,
segurando-a na cama. Argent ficou parado com as mãos nas costas
e os lábios franzidos, como se fosse começar a assobiar,
observando a cena toda, contemplando com vivo interesse. Hodges
ficou um pouco mais distante, lançando olhadelas ao relógio.
Finalmente pediu que Patty buscasse uma cadeira.
— A disfunção focal cerebral que vemos nesta paciente resulta em
descontrole episódico. Acreditamos que esse tipo de agressão
intrínseca sem sentido pode ser controlado, até mesmo curado. Em
linguagem simples, algo está errado com o circuito elétrico; alguns
fios estão cruzados na placa-mãe da amígdala. Quando esses
circuitos dão curto, como deram, a violência irracional é
desencadeada na paciente.
Dr. Argent piscou; parecia que ia dizer algo, mas só murmurou
para si mesmo. Finalmente, disse suavemente:
— Talvez devamos deixar as analogias para os poetas, Charlie.
— Acker, está pronto? Morgan? Moynihan? Vamos? — Redding se
virou para a equipe de filmagem. — Vocês podem filmar as coisas
de computador no instituto. Aqui está tudo meio improvisado.
— Na cidade, cavalheiros — a srta. Moynihan disse a eles —,
poderemos mostrar os procedimentos completos. Temos os
melhores equipamentos.
— Escuta, não há muitos hospitais estaduais no interior aonde
você possa ir tão longe — Hodges disse com irritação.
— Chip, venha para a foto — Redding pediu, e juntos eles foram
para o lado da cama. — Liga o microfone dela. Alice, como você
está se sentindo hoje?
— Filho da puta, me deixa levantar! Não sou nenhum rato de
laboratório!
— Vocês podem editar isso depois, ok? — Ele fez um sinal, como
um maestro para sua orquestra. — Alice, agora, como se sente?
Alice relaxou de repente. Um olhar de surpresa se imprimiu em
seu rosto. Ela não respondeu. Sua boca ficou aberta, depois se
fechou.
— Soltem ela — Redding disse aos auxiliares.
Eles ficaram meio sem jeito e não a largaram. Gordo reclamou:
— Doutor, ela é rápida como uma cascavel. Pode te pegar de
surpresa.
— Ó, homens de pouca fé — Redding disse com um sorriso leve.
— Soltem ela e se afastem.
Cuidadosamente, os dois auxiliares se afastaram de Alice. Ela
continuou parada.
— Agora, como está se sentindo, Alice?
Alice virou a cabeça de um lado para outro. Começou a sorrir.
— Me sinto bem. Me sinto tão bem.
— Diga pra nós o que está experenciando, Alice.
— Gosto de você, gato. Vem aqui, vem mais perto da Alice. Isso é
tão bom. Você é bom comigo agora.
Redding riu.
— Viu? Como tirar doce de criança. Pronto. Auxiliares, segurem
ela.
Trocando olhares de confusão, os auxiliares seguraram Alice, que
dava risadinhas e se contorcia.
— Quis dizer para imobilizá-la, mas com cuidado! — Redding
vociferou.
No momento seguinte, o rosto de Alice se desfigurou e ela
começou a se debater e atacou Gordo. O enfermeiro teve de jogar o
corpo por cima do dela para conseguir contê-la.
— Agora, de novo, soltem ela.
— Doutor! Não podemos.
Mas Alice tinha amolecido e começado a dar risadinhas.
— Estão vendo? Podemos eletricamente suscitar quase todo tipo
de humor ou emoção, a reação de lutar ou de fugir, euforia, calma,
prazer, dor, terror! Podemos monitorar e induzir reações por meio de
rádios microminiaturizados sob o crânio. Acreditamos que por esse
procedimento poderemos controlar os ataques violentos de Alice e
mantê-la em estado mental equilibrado. O rádio nos fornecerá
informações e telemetria diretamente ao computador quando
estivermos no instituto, e Alice vai poder andar pela ala livremente.
Isso conclui nossa pequena demonstração prévia.
— Isso é impressionante, doutor. Você pode ligar e desligar ela
daquele jeito a qualquer momento? — o operador de câmera falou
quando começaram a guardar as coisas.
— A luz não acende quando você aperta o interruptor?
Quando o pessoal da filmagem saiu, Redding se virou para sua
plateia.
— Bom, Sam, Chip, o que me dizem? Acharam interessante?
Dr. Argent esboçou um sorriso seco e colocou a mão no ombro do
outro.
— O show foi seu. Você tem que controlar esse seu impulso de
grandiloquência. Me lembra um pouco do Delgado com o touro dele.
Sabe, ele faz um touro atacá-lo na frente de um grupo de pessoas e
então ele o mata.
— Às vezes você precisa mostrar algo de forma explícita antes
que as pessoas a aceitem como possível. Não tem truques
envolvidos. Podemos controlar os violentos.
— Também acho que você deveria considerar usar esses
eletrodos para produzir calma, sonolência. Não estamos fazendo um
filme pornô, Charlie.
Dr. Hodges pigarreou e se levantou rígido.
— Foi interessante, claro. Mas não custo-benefício. O tempo de
uso do computador, o equipamento... Uma dose moderada de
drogas psicoativas interromperia a violência dela na mesma
velocidade.
— Sam, escuta, com um computador do tamanho deste DEC
PDP-10, você consegue monitorar os resultados de todos os
pacientes deste zoológico todo. Você tem que administrar
tranquilizantes várias vezes por dia. Mas, dessa maneira, mais cedo
ou mais tarde os pacientes vão ser liberados, de volta às famílias, a
cuidar da casa, ao trabalho, ou para asilos. O estado está sem
dinheiro e eles colocam muita pressão em você pra liberá-los logo.
Mas daí dá aquela confusão nos jornais sobre os pacientes fazendo
besteiras. Aqui está a solução. Depois das despesas iniciais, Sam, o
custo é bastante competitivo. Agora, você sabe, mesmo com toda
boa intenção do mundo e todo trabalho duro da sua equipe, você
não pode curar muitos. Mas, com essas novas técnicas, conseguirá
apresentar curas reais. Em vez de um armazém para os
disfuncionais sociais, você vai estar dirigindo um hospital. É por isso
que os políticos compraram o projeto, Sam. Por isso que você vai
comprá-lo quando chegar a hora.
Argent caminhou para a porta, deixando que os outros o
seguissem.
— Ele não é persuasivo, Sam? Foi assim que eu me encontrei
afundado até os joelhos nessas engenhocas.
— Besteira — Redding falou, mas suavemente. — Agora que você
está se aposentando, quer participar do projeto mais excitante que
apareceu em anos. Você sempre quis fazer história, Chip.
— Hum — dr. Argent disse, e todos saíram.
Por cima do alvoroço da sala, Connie falou com Sybil:
— Vão colocar uma máquina na nossa cabeça?
— Coitada da Alice! — Sybil balançou a cabeça. — Deve estar
humilhada! Imagina, obedecer àquele fascista porque ele aperta um
botão.
— Não quero que façam isso comigo! — a voz de Connie afinou
com medo. Ela pigarreou. — Deve ter um jeito de parar isso. Queria
que minha sobrinha viesse!
Na quinta de noite, ela chamou Luciente. Não conseguia dormir, e
eles não podiam conversar depois de apagarem as luzes. Nada
aconteceu. Tentou de novo. Ela se forçou cegamente na direção de
Luciente, querendo desesperadamente falar com ela, contar o que
estava acontecendo. Talvez eles soubessem o que era essa coisa
toda de rádios no cérebro, agulhas e controle, e como lutar contra
aquilo. Por um instante, ela sentiu algo, uma sensação de uma
pessoa surpresa, grogue e alegre ao mesmo tempo, como se
estivesse drogada. De relance, viu um palco de plástico iluminado
por debaixo, sob um domo transparente sem nada por fora exceto
uma neblina amarelada. Mulheres com as pernas todas pintadas
pelo que pareciam camadas e camadas de esmalte que brilhavam
enquanto elas se moviam com cuidado, se equilibrando em
posições desconfortáveis em uma perna só como cegonhas,
manuseando pequenos narguilés e potes brilhantes. Homens
vestindo uniformes prateados. Todos com rostos brancos. Pânico.
Deles? Dela? Então, de volta em seu leito, ela sentiu Luciente
tentando alcançá-la. Sentiu a resposta vagarosa de Luciente e
também de outra pessoa.
— Seja convidade — disse uma voz grave. Não era a mesma
presença de um momento atrás. E ela ainda sentia Luciente.
— Connie, minha rosa — Luciente falou fracamente. — Não posso
lidar com você nesta noite. Mas estou segurando até que Parra
assuma. Abra sua mente prassôa. Parra vai captar hoje se você
quiser vir.
— Está doente, Luciente?
— Não, não se preocupe. Deixe Parra captar.
Demorou uns dez minutos e uns momentos de náusea, enquanto
ela via flashes das mulheres cegonha, até se ver de pé na casa de
reuniões. Parecia um prédio diferente. Dez pessoas estavam
sentadas numa sala pequena ao redor de uma mesa em formato de
rosquinha, cerca de metade da família de Luciente. Ela viu Gavião,
Barbarossa, Lebre e Sojourner. A pessoa com voz profunda que a
tinha trazido daquela forma turbulenta era uma jovem baixa e
corpulenta. Apesar de Parra parecer forte a ponto de carregá-la
escada acima, elas tinham o mesmo tamanho e tipo físico. Parra
tinha o cabelo curto e escuro e o rosto largo. No braço esquerdo, ela
tinha uma faixa com um arco-íris de miçangas.
Bolívar parecia tenso, sentado com sua cabeça entre as mãos,
olhando com aqueles olhos cinzas que estavam injetados de
sangue. Luciente estava sentada do outro lado do círculo, mal-
ajambrada, as mãos estendidas na mesa diante dela, com as
articulações formando pequenas montanhas nevadas em miniatura.
Luciente sorriu de relance para ela e secou a testa.
— Sou juize do povo pra Foz-de-Mattapoisett este ano, e nesta
noite estou arbitrando — Parra disse.
— Isso é um jogo?
— Não, estamo tendo um desconflito. — Parra se virou para a
mesa. — Façam relaxacícios enquanto eu explico. Vocês estão com
cara de que precisam relaxar.
Em volta da mesa de rosquinha, todos começaram a murmurar um
tipo de cântico — sem qualquer esforço de cantarem em uníssono
—, olhos fechados, cabeças movendo-se para frente e para trás.
— Luciente e Bolívar não têm comunido. Entrosamento ruim.
Fagulhas e solavancos. Hoje tentamo compreender essa hostilidade
e ver se conseguimo desarmar ela.
— As pessoas não podem não gostar das outras?
— Não é bom quando estão no mesmo núcleo. Lebre é íntime de
ambes. Os solavancos magoam sôa. Elus competem pela atenção
de Lebre. São exigentes com as ações do outro. Já critamo elus
antes, mas durou breve. Quando une crita outre, não se sustenta
como honestidade, é egoísmo. — Parra sorriu de esguelha.
— Mas e se depois do desconflito eles ainda não se suportarem?
— Lebre pode escolher não ver nenhume delus por um tempo.
Ambes podem ser enviades em jornadas temporárias. Podemo
impor invisibilidade. Só no caso de muita briga. Ou às vezes,
quando pessoas deixam de ser amigues doces, sentem amargura.
— Parra a encarou com um olhar que a lembrou do de Luciente.
Antigamente, ela pensaria nelas como parentes. Ela sentiu um
vislumbre de esperança de que a semelhança entre elas deixaria
Parra mais tendenciosa à Luciente. — Colocamo em ação um tabu-
de-sogra, derivado das práticas antigas. Pessoas ficam proibidas de
falar une com outre ou sobre outre por doismês. Esse tempo
normalmente acaba com os solavancos. Além do mais, é uma
chatice, frequentemente cada um quer acabar logo com isso e falar
com outre. Fica ridículo. Isso também ajuda.
Connie fez uma careta.
— Gente, vocês não têm nada pra pensar que não seja coisa
pessoal? E daí se Bolívar e Luciente gostam um do outro? Que
perda de todos os recursos de que vocês falam tanto!
— Primeiro, elus não precisam gostar une de outre pra se
comportar civilmente. Segundo, acreditamo que muitas ações
falham por causa de tensões internas. Pra se vingar de alguém que
uma pessoa acha que fez mal para ela, indivíduos ofereceram
nações pra conquistar. Indivíduos devotaram vidas inteiras
buscando vingança. O tecido social significa muito pra nós. Na
infância, todes aprendemo uma história sobre como une
antropólogue pediu a uma pessoa pawnee para definir coragem.
Pessoa disse que Nuvem Branca era o indivíduo mais corajoso que
já tinha conhecido, porque, quando Urso Risonho caluniou sôa,
Nuvem Branca deu a Urso Risonho um cavalo. “Como isso
demonstra coragem?”, perguntou antropólogue. Pawnee disse que
era o único cavalo de Nuvem Branca.
Ao redor da mesa, todo mundo se alongava, acertando a postura.
— A comunidade é preciosa. Isso é o que vocês estão dizendo.
— Isso mesmo. — Parra anuiu, sorrindo.
— Você é uma juíza? Pode impor uma sentença a eles?
— Nesta noite estou arbitrando. Estou aqui pra certificar que o
grupo crita de forma justa. Posso apontar injustiça. Observar outras
tensões que podem emergir, nublando os sentidos, pesando as
reações. Alguém que não seja dessa vila deve fazer às vezes de
arbitragem.
Ela fez um muxoxo para essa mulher baixinha e encorpada que se
chamava de juíza. Mais nova que ela, e nem um pouco mais
imponente, com certeza.
— É isso que você quer dizer com juíza? Uma árbitra?
— Não. Agimo em casos de ofensa.
— E se eu roubasse alguma coisa?
— Não tem muita propriedade privada. Provavelmente, eu lhe
daria o que você pedisse. Mas se você me tomasse alguma coisa,
todes lhe daríamo presentes. Acharíamo que você estava nos
demonstrando abandono e sentimentos de privação. Faríamo você
se sentir bem e queride.
— E se eu machucasse uma pessoa? Como seria estuprar, matar
ou bater em alguém?
— A gente tem treinamento em autodefesa. Treinamo pra respeitar
outres. Nunca soube de um caso de estupro, mas já li a respeito.
Parece... bastante horrível pra gente. Nojento. Como canibalismo.
Sei que ocorria no passado, mas parece inacreditável.
Connie se imaginou andando à noite sob as estrelas, caminhando
por uma estrada do interior e sentindo apenas uma leve curiosidade
quando visse três homens caminhando em sua direção. Ela se
imaginou pegando carona com quem quisesse dar carona a ela.
Imaginou o que seria atender a porta sem medo, só para ver se
precisavam de ajuda.
— Ninguém aponta a faca pra ninguém? Não tem briga de casal?
Ciúmes? Não vem com essa. — Sua voz estava marcada pelo
ceticismo.
— Agressão, assassinatos ainda tem. Não tão comuns quanto
dizem ter sido no seu tempo, mas acontecem. Pessoas ainda ficam
zangadas e atacam.
— Daí o que vocês fazem? Colocam eles na cadeia?
— Primeiro, perguntamo se pessoa agiu intencionalmente ou não,
se pessoa quer assumir a responsabilidade pelo ato.
— Mas e se eu digo: “Não, juíza, não sabia o que estava
fazendo”?
— Então trabalhamo na cura. Tentamo ajudar pra que nunca mais
a pessoa faça algo que não tenha a intenção.
— Mas e se eu digo que não estou doente. Eu quebrei a cara dele
porque ele pediu, e estou feliz.
— Então você recebe uma sentença. Talvez exílio, trabalho
remoto, pastoreio. Passa o tempo a bordo de um navio. No espaço.
Às vezes ofensories inventam boas ideias pra reparação. Você se
voluntaria pra um experimento ou pra algo perigoso.
Ela ficou olhando.
— Você está querendo dizer que, quando eu amassei a fuça do
Geraldo, eu é que diria o que eu deveria fazer para... me reparar?
— Como não? — Parra a encarou de volta. — Você, sua vítima e
juize resolvem juntes. Se você matou, então a família escolhe une
membre pra negociar.
— Se eu matei várias pessoas, então era só virar marinheira ou
pastora de ovelha?
— Você quer dizer uma segunda vez? Não. Da segunda vez que a
pessoa usa violência, desistimo. Não queremo nos vigiar nem nos
prender. Não estamo dispostes a viver com pessoas que escolhem
a violência. Nós executamo elus.
— Mas e se eu disser que não fui eu?
— Isso acontece. — Parra fez um sinal com a mão. — Por sorteio,
alguém é escolhide pra investigar. Quando quem investiga acredita
que a pessoa foi encontrada, fazemo um julgamento. Nossas leis
são simples e não precisamo de advogades. O corpo de júri decide.
A sentença é negociada entre ambas as partes.
— Você é latina, não é?
— Latina? A língua antiga?
— Hispanoablante?
— Sí, do sul, Río Grande, Tejas del Sur. Pero hace cinco años que
he vivido en el pueblo boricua Lola Rodríguez de Tío.14
— De veras? De Tejas? Yo tambíen. Nasci em El Paso. So, pues,
en Tejas ahora... Quem está no poder?
— Somo uma região autônoma. — Parra parecia meio confusa. —
Todes, por supuesto, como aquí, como siempre, no?15
— Mas vocês falam espanhol?
— Como primeira língua, claro que sí, como no?
— Por que está aqui? Por que veio aqui pro norte?
— Pra estudar com María de Lola Rodríguez. Es experta sobre
ríos. En mi regíon, tenemo todavia problemas terribles con los ríos,
que estaban envenedados por completo en tu época.16 Tenho
estudado por cinco anos. María disse que posso voltar ao meu
pueblo em um ano, para ayudarles. Tengo muchas ganas de volver.
Sinto saudade do meu povo, ai! Me hacen tanta falta! Os invernos
queimam meus dentes.
— Ojalá pudiera ver Tejas ahora! Como gostaria de ver o Texas
agora!
— Por supuesto! Vai fazer seus olhos saltarem! — Parra a agarrou
pelo ombro. — O que a gente fez com tijolo cru nos últimos quarenta
anos... como ficou brilhante. Comemo bastante carne também; não
é como aqui, onde acham que uma vaca magra faz uma fiesta! A
gente tem um ótimo sistema de pequenas clínicas por todo lado. En
mi departamento, criamo muitas raças de vegetais resistentes à... la
sequía, a seca. Verdad, pode perguntar a Abelha ou Luciente...
Parra se virou para a mesa, seu rosto ficou impassível. Para todos
na sala, ela disse:
— Devemo começar de novo? — Ela deu o braço para Connie e a
levou a uma cadeira, apertando-lhe os ombros quando ela se
sentou.
— Sinto que o trabalho de Bolívar enfatiza o que é individual,
coloca estilo acima de todo o yin-yang. Quando Lebre trabalha com
Bolívar, sinto um enfraquecimento político no trabalho de Lebre, que
nunca aparece quando pessoa trabalha individualmente. — Luciente
se sentava com os braços cruzados.
— Tal crita é geral demais pra ser útil — uma pessoa gorda com
voz grave disse. — Como Bolívar pode responder a um atiramento
tão vago?
— No hologra recente delus, a imagem da luta era um homem e
uma mulher se abraçando e lutando ao mesmo tempo, o que se
resolveu na transformação da imagem de dois andróginos. Ainda
assim, a força que destruiu tantas raças de seres, humanos e
animais, era apenas em sua origem sexista. Sua manifestação era
ganância direcionada aos lucros.
— Luciente crita justamente — Barbarossa disse. — No fato, não
pensei nisso. Mas parece a mim que o hologra deveria relacionar a
ganância e o desperdício aos sistemas político e econômico.
A pessoa velha com os olhos castanho-escuros brilhantes,
Sojourner, balançou a cabeça negativamente.
— Cada obra de arte não consegue conter tudo que todo mundo
gostaria de dizer! Tenho visto esse erro por sessenta anos. Nossa
cultura como um todo deve falar a verdade completa. Mas cada
objeto não pode! Esse é o slogan da mentalidade atual, como se
houvesse certas palavras sagradas que devem ser sempre
nomeadas.
— Mas a gente deve ficar satisfeite com meias verdades? —
Barbarossa perguntou.
— Às vezes uma imagem irradia muitas possíveis verdades —
Bolívar falou. — Luciente parece se fixar de forma estreita em
conteúdo e aplicar nossa política comum muito rigidamente.
— Nossa política comum dá espaço de sobra pra discordância —
Luciente disse. — Gosto de clareza sobre distinções políticas.
— Uma imagem poderosa diz mais do que pode ser listado. Ela
não pode ser explicada completamente de forma racional — afirmou
Lebre. — O que significa uma melodia?
— Ainda assim, uma obra tem um sentido bruto com o qual
concordamo ou discordamo — disse Luciente.
— Nossa história não é um conjunto de axiomas — Bolívar falou
devagar, mas firme. — Acho que vejo a divisão original do trabalho,
aquela primeira dicotomia, como o que sibilitou divisões tardias
entre riques e pobres, poderoses e despoderades, fruidories e
trabalhadories, estupradores e vítimas. A cisão mente e corpo
patriarcal transformou a mente em máquina e o resto do universo
em pilhagem na qual se poderia perder as estribeiras, usando,
descartando e destruindo.
Luciente concordou com a cabeça.
— Sim! Não podemo ver homens e mulheres compartilhando a
mesma culpa, porque um tinha poder e a outra era propriedade.
Nada que você fez fala sobre isso.
— Você tem a gente! — Lebre franziu as sobrancelhas. — Já
serve.
— O que fizemo foi lindo — Bolívar disse. — Você não ficou
emocionade? Um hologra é composto de uma hora de imagens.
Você não age com o suficiente respeito pra com a beleza, Luciente.
— Luciente se apoia demais na direção de um valor e Bolívar, em
outro. —Sojourner disse. — Apesar disso, em vez de se olharem
com prazer e pensar quão mais rico é o mundo onde cada une não
seja como eu, une julga outre. Que tolice. Vocês poderiam
enriquecer a percepção do outro por meio de Lebre, que se atrai
pelos dois caminhos, assim como por tudo que se move!
— Não acho que os hologras que faço com Bolívar são melhores
ou piores do que os que faço sozinhe. Acho que Luciente olha pra
ele com mais crita — Lebre falou.
— Todes devemo te fazer comentários, e é uma pena que a crita
de Luciente esperou tanto tempo pra sair. Falhamo com você
enquanto nosse artista — Barbarossa falou. — Se não critamo você,
como vai crescer?
— O que você teme, Luciente, que te faz observar com mais
cuidado quando trabalham juntes? — a pessoa gorda falou. — O
que te aumenta a ansiedade?
Luciente cobriu o rosto com as mãos, franzindo o cenho em
pensamentos. Cinco minutos se passaram. Connie deu uma olhada
em Parra, presidindo a mesa, mas sem interromper. Ela sentiu uma
sensação triste de que nunca fosse ver o Tejas del Sur,
departamento de Río Grande, que havia produzido essa mulher que
tinha uma confiança singela e tanta dignidade tão cedo na vida.
— Não tenho certeza — Luciente disse devagar, descobrindo o
rosto. — Acredito que às vezes Bolívar tenta recriar um tempo
anterior quando Lebre e Bolívar estavam sempre juntes, se
centrando. Pra mim isso é deslizar pra um tempo que agora é
passado, quando crescer significa ir pra frente. Elus parecem que
estão se atando.
— Como você e Diana fizeram? — Lebre arqueou as
sobrancelhas.
— Talvez eu tenha medo disso.
— Mas Diana e Bolívar têm dons diferentes. A intensidade em que
mergulhamo juntes nos deixa manter nossa intimidade mesmo se
passarem várias semanas. Nossa intimidade sempre se centra no
trabalho. Mesmo na maior intensidade e duplicidade, nos voltamo
pra fora e devolvemo pra comunidade.
— Verdade, Luciente — Sojourner disse. — Atar-se com Diana
impediu você de trabalhar bem. Vocês nunca trabalharam juntes,
mas sempre se alimentaram une de outre.
— Bolívar fica com ansiedade também — Gavião disse,
titubeando. — Bolívar provoca muito Luciente, e isso faz sôa se
sentir besta. É desse jeito que Bolívar dá o troco ou pune sôa ou
algo assim.
Uma pessoa grisalha ao lado de Bolívar, com a pele do rosto
bastante castigada, abriu um largo sorriso.
— É verdade, como não? Bolívar manipula Luciente. Bolívar é
esperte, pensa rápido. Luciente é falante, mas não astute. Luciente
não consegue revidar rápido o suficiente pra vencer batalhas
verbais. Agora, Luciente reflete sobre as coisas políticas mais
atentamente que Bolívar. Todo mundo em Foz-de-Mattapoisett sabe
que Luciente foi recrutade pro próje ao-passado não apenas pela
remetência dissôa, mas pela solidez política. Pessoa pode nos
represen de forma clara e justa. Mas Luciente usa esse peso político
como arma contra Bolívar. Une desbarata outre com dons
diferentes. Isso não é perverso, mesmo? — A pessoa grisalha
olhava de um para outro.
— Então Bolívar também tem medo — Parra falou. — Estamo indo
rápido demais. Vamo perguntar a Bolívar o que pessoa teme.
— Se eu sou o passado de Lebre, que frágil. Luciente é o
presente. O passado desaparece. Saúde é Luciente, crescimento é
Luciente, de acordo com Luciente! Mas Lebre e eu trabalhamo bem
juntes. O que tem de ultrapassado nisso? Nós nos amamo
diferentemente aos vinte e cinco anos e dezenove do que quando
tínhamo dezenove e treze, mas...
— Você nunca deixou de amar alguém que você amava, você
sabe disso. — Lebre disse a Luciente. — Por que não consegue
intrasaber como é pra mim? Você não acha que rançou em Abelha
porque já faz anos.
Sojourner apertou os olhos em direção a Bolívar.
— E se você ganha essa guerrinha? Você fica com Lebre tode pra
você. Luciente cai fora. Lebre não pode viajar com você sem desistir
da oficina dissôa. Lebre acabou de se voluntariar pra maternidade e
defesa. Como pessoa pode combinar maternidade com uma vida
nômade como a sua? Você fica com a gente talvez uma semana em
cada mês.
— Nunca tentei conven Lebre a viajar comigo o tempo todo. Só às
vezes quando estamo engajades no trabalho juntes.
— Mas é o trabalho de Lebre, mais do que Luciente, que está
mantendo pessoa aqui em Mattapoisett, não? — a pessoa gorda
disse.
— Clarquessim. — Bolívar suspirou. — Lebre é mais ligade ao
lugar. Sempre quando viajamo pessoa ficava com irritação. Dormia
mal, ficava de mau humor e me atirava.
— Luciente — Sojourner continuou. — E se você ganhar sua
guerra contra Bolívar e diminuir sôa aos olhos de Lebre. Você vai
desistir de Abelha e passar todo seu tempo livre com Lebre? Vai
desistir do próje ao-passado ou do seu trabalho na base de genética
para trabalhar com Lebre, do jeito que Bolívar faz?
— Isso não é o que eu quero! — Luciente falou exaltada. —
Bolívar não me respeita!
— Você respeita Bolívar? — Parra perguntou com interesse.
— Bom... sim.
— Por quê?
— Pessoa é ótima artisticamente.
— Luciente e Bolívar, sentem-se cara a cara no interior do anel.
Olhem une pra outre. Então vamo ficar em silêncio por alguns
minutos. Não tenho certeza se devemo continuar ou deixar que
vocês conversem. A origem da fricção parece jazer na falta de
comunicação; sem amizade, mas contato constante. Vocês devem
dedicar um tempo pra falar, expressar critas e elogios
individualmente.
Luciente e Bolívar separaram os lados da mesa e sentaram-se no
meio se encarando, de uma maneira meio envergonhada. Connie se
virou para Parra e disse suavemente:
— Tem algo que eu não entendo. Parece que todos estão evitando
dizer o que me parece óbvio, que Lebre e Bolívar são... bem, os
dois são homens. É homossexual. Então isso incomoda mais uma
mulher.
— Mas por quê? — Parra olhou para ela como se ela fosse
realmente louca. — Toda casalação, toda amiguice se dá entre
masculinos biológicos, femininos biológicos ou ambos. Essas não
são categorias úteis. A tendência é dividir as pessoas pelo que elus
fazem bem ou mal, pontos fortes e fracos, dons e fracassos.
Connie sentiu como se tivesse batido em uma parede invisível.
Mas Parra a fascinava. Ela não deveria ter mais que vinte um, vinte
e dois anos, porém, já servia como juíza do povo. Doutora de rios.
Ela mesma podia ser essa pessoa ali. Sim, ela iria estudar como
consertar a paisagem saqueada, curar rios asfixiados com sujeira.
Medicaria o solo degradado pela cultura de lucro em busca de
dinheiro rápido. Então ela seria útil. Ela iria gostar mais de si, como
tinha gostado durante o breve período em que estivera envolvida no
logro da guerra-contra-pobreza. As pessoas a respeitariam. “Olha a
Consuelo”, eles diriam, “doutora do solo, protetora dos rios”. Seus
filhos ficariam orgulhosos dela. Seus amantes não se afastariam
dela, não morreriam na prisão, não seriam esfaqueados na rua,
como Martín.
Como ela tinha ficado quando o vira no necrotério, tremendo de
raiva — sim, raiva —, porque ele estava morto sem motivo. Porque
todo mundo era pobre e o verão estava quente e os ânimos em
chamas e os homens sem trabalho provando que ainda eram
homens, ferindo o corpo de outros homens, possuindo o corpo das
mulheres. Ambos estavam com vinte anos quando se casaram.
Martín a tinha curado da crueldade do menino branco que a tinha
engravidado e depois corrido de medo, dizendo que ela não podia
provar nada. Ela tinha lhe dito a verdade, e mesmo assim ele tinha
se casado com ela. Ambos tinham vinte e um anos quando ele
morreu. Uma faca no coração. Ele tinha sido tão bonito.
Lágrimas se assomaram nos olhos como uma torrente quente e
então cessaram. Ela estava deitada no leito do hospital. Risadas
ressoavam do posto da enfermagem.
— Peguei você de calça curta, nenê. Canastra!
— Merda! Você me pegou com um monte de carta alta.
Martín tinha estado morto quase metade do tempo que ela tinha
vivido. Do que adiantava chorar agora? Mesmo assim, ela sentia o
luto como novo, pensando como no futuro eles poderiam ter vivido
lado a lado por pouco, apenas meio século. Então ele poderia ter
tido o respeito com o qual sempre sonhara, o respeito cuja ausência
o atormentava como uma sede violenta. Ele a amava o suficiente
para se casar com ela mesmo maculada por outro homem, mas não
o suficiente para não encarar um desafio, um insulto, uma ameaça.
Lá, Martín poderia ter respeito, dignidade, poderia ter tido trabalho e
lazer. Sua vida. Ele a tinha admirado naqueles meses de faculdade
comunitária, dado o sangue por aquilo. Em Mattapoisett, ela teria
tido respeito também. E aprendizado.
— Olha — uma voz feminina dizia no posto de enfermagem —, só
vamos ficar aqui mais uma semana ou duas. Depois voltamos pro
prédio K e vamos poder jogar buraco de novo em quatro. Me cansa
jogar canastra toda noite.
— Não sei por que, docinho. Você acaba comigo toda vez. Se não
estivesse jogando por um centavo por ponto, você já teria me
limpado!
CAPÍTULO 11
...
— Mas você disse que eu podia ficar no mesmo quarto que a Sybil!
— Connie protestou.
— Isso foi antes de você aprontar — Valente disse, firme. — Olha,
se vocês tentassem aquela gracinha comigo, eu botava as duas na
solitária antes de alguma gritar tio. Você não me enganaria por cinco
minutos, não se esqueça disso.
— Como você assinou a permissão? — Skip perguntou a ela
assim que Valente saiu. — Eles não conseguiram me fazer assinar.
— Você não tem 21 anos ainda. Eles não precisam que você
assine.
— Também não precisavam que você assinasse. Seu irmão
assinou. Por que se entregou?
Connie balançou os ombros.
— Estava com medo do que fossem fazer comigo em Rockover se
eu não assinasse. Imaginei que eles já tinham a permissão de
qualquer forma. Queria que achassem que eu cedi.
— E não cedeu? — Skip foi embora rebolando pelo largo corredor.
Eles todos tinham sido transferidos para o Instituto
Neuropsiquiátrico de Nova Iorque na Washington Heights, para uma
ala no oitavo andar convertida em ala de detenção segura,
preparada especialmente para eles. Era a ala mais espaçosa e mais
amplamente mobiliada e enfeitada em que ela já havia estado. Eles
dividiam quartos duplos — como o que ela e Tina Ortiz tinham
agora, com uma cama para cada uma, até com colcha e uma janela
própria, apesar de não abrir. Sybil estava no quarto ao lado, com a
srta. Green. Os homens ficavam de um lado do posto de
enfermagem e as mulheres do outro. Entre eles havia uma sala
coletiva com tv a cores, mesa para baralho, até umas poltronas e
alguns sofás e um carpete verde no chão. No final da ala onde
ficavam, os médicos tinham uma sala de conferências e de
computadores, laboratórios e consultórios. Os pacientes andavam
para lá e para cá nos primeiros dias, admirados com seus novos
alojamentos.
— Isso não é uma bostinha de hospício não. Isso é um Hilton! —
falou o Capitão Creme. Ele era um bicheiro de pele clara, nascido
em Trinidad, que acreditava ser um herói de história em quadrinhos.
Até os médicos o chamavam de Capitão. Era magro e enfadonho e
falava com uma cadência suave e graciosa, tanto que, na maior
parte do tempo, ela nem percebia que ele era vesgo.
Sybil fungou.
— Pode ter certeza de que é pra conveniência deles, não pra
nossa! São cavalheiros importantes! Até os ratos de laboratório
devem ter gaiolas limpinhas. — Sybil tinha recuperado um pouco da
energia.
Capitão Creme, Sybil e Tina Ortiz ficaram juntos no batente da
porta para ver o que o novo assistente dos homens, Tony, estava
fazendo com Skip, se curvando acima dele com uma tesoura. Os
cachos bonitos e castanhos de Skip caíam sobre uma toalha
branca.
— Eis, Dalila, que você me trai! — Skip cantou para Tony. Cric-cric.
O cabelo caía. Parecia que ele tinha sido convocado pelo exército.
Seu couro cabeludo aparecia cinzento, grande e vulnerável.
Também fariam isso com ela no tempo certo.
— E eu vou ganhar uma peruca, Tony?
— Só as mulheres, moleque — Tony grunhiu. — Fica quieto ou
vou cortar sua orelha fora.
— Como o Van Gogh. Ele era louco também. Mas ele fez isso
consigo mesmo. Por que você não me dá a tesoura pra eu mesmo
fazer? — Skip fez que ia pegar a tesoura dele, meio de brincadeira,
meio sério.
Tony o esmurrou no peito e Skip recuou, tossindo.
— Para de tentar enrolar os médicos.
Cric-cric, passou pela orelha esquerda, deu a volta. Só um
chumaço de cachos pendia de sua bochecha. Tony passou por ele e
depois passou uma escovinha para pelos. Quando voltou com um
barbeador, Skip parou de brincar. Não tinham dado café da manhã
para ele. Logo ele seria levado para um hospital perto de Columbia,
onde Redding e Morgan fariam um buraco em seu crânio onde iriam
inserir os eletrodos. Skip voltaria violado para lá.
Ela ficou ali com a Tina e o Alvin enquanto o levavam em uma
maca. Os olhos dele estavam abertos, mas sem expressão. Depois
que a porta externa se fechou com a saída dele, os pacientes
ficaram por ali, como se, ao encararem a porta, pudessem
vislumbrar alguma coisa do que estava acontecendo.
— Você gosta desse garoto, né? — Tina perguntou. A nova
companheira de quarto dela tinha mais ou menos sua idade, com
um longo histórico de ter sido presa por posse de drogas e
pequenos crimes e perturbação do sossego.
— Ele me emprestou dinheiro pra ligar pra mi sobrina e sabia que
eu nem ia conseguir devolver.
— Ele tinha pra emprestar. É fácil ser legal quando você tem a
grana, hã? Mas acho que ele está bem encrencado agora, como o
resto da gente. — Tina era de Porto Rico, nascida no Bronx, magra
com um pouco mais de sustância nos quadris. Ela falava rápido,
mas suas frases normalmente se dissolviam como se não
esperasse ser ouvida. Ela era desleixada e não conseguia ser uma
boa paciente. Nunca deixava de odiar o hospital. — Só mais um
jeito de ser pega — ela disse, olhando para o quarto delas. Ela era a
primeira a pegar qualquer jornal que parasse ali na ala, depois de os
funcionários lerem, mas ela lia apenas a primeira seção, as notícias,
murmurando consigo mesma, zombando como se não pudesse ser
enganada. — Trapaceiros, trapaceiros duma figa.
Elas saíram juntas para visitar Alice, que estava deitada no leito
dela, encarando o teto, como fazia na maior parte do tempo agora.
Ela parecia dez anos mais velha, aparentava a idade que tinha e
mais um pouco; toda a vivacidade tinha escorrido de seu corpo
grande.
— Ô, Alice, você sabe o que esses pulhas estão tentando aprontar
agora? — Tina perguntou, tentando chamar a atenção.
Mas Alice só balançou a cabeça. A peruca de cabelo tigelinha
estava torta na cabeça, e ela não a endireitou. Quando caiu, não a
colocou de volta. Quando a assistente a encontrou no chão, deu
uma bronca na Alice, dizendo quão ingrata ela era. Alice só piscou
ali deitada.
A única vez que Connie a viu parecida com seu velho eu foi
quando os médicos vieram usá-la como demonstração para algum
visitante interessado. Então seus olhos brilharam vermelho-sangue
e ela entoou longas torrentes de xingamentos até que o médico
apertou o botão que a calava. Agora que aquele dr. Morgan tinha
perdido o medo dela, havia algo de horrível naquelas
demonstrações. Ele particularmente gostava de estimular o ponto
que produzia em Alice um ímpeto sensual, até que uma vez ela
beijou a mão dele e disse que ele era bom para ela.
— Eu é que engano aqueles espertalhões — ela disse para eles
—, ou eles vão enfiar mais agulhas em mim. Eu só faço o que eles
querem. — Mas ela não soava como alguém que acreditasse
naquilo. Quando tentava reagir, o monitor desligava a raiva dela e a
deixava confusa. Alice parecia mais próxima da loucura do que
jamais estivera. Ela criava histórias para lidar com o que fazia,
porque literalmente não sabia o que faria a seguir. Ainda assim,
gostava de achar que estava decidindo tudo. — Esperem e vão ver
— ela dizia, piscando com os olhos turvos — quem vai se sair por
cima no final.
— Você fugiu porque queria retornar à sociedade — Acker estava
dizendo para Connie, sua barba quadrada balançando no queixo. —
Mas o que você não entende é que isso é exatamente o que a gente
quer te ajudar a fazer!
Desde que tinha fugido, ela tinha passado a ser do interesse
particular de Acker. Ela tinha a sensação de que ele estava
sobrando no projeto, o psicólogo incluído para algum tipo de
espetáculo. Ele inventava razões para o que os outros faziam em
termos que não eram exclusivamente médicos. Ela não entendia
muito mais, mas via o desconforto dele, sua forma meio
escorregadia de lidar com os médicos. Até mesmo o sócio menor,
Morgan, o tratava de forma condescendente. Agora Acker
desenvolvia um interesse por ela. Ele estava orgulhoso de ter
conseguido que ela assinasse os formulários, mas não aliviou a
pressão.
— O que você não enxerga, Connie, é que, se não fosse por nós,
você passaria o resto da sua vida onde te encontramos. Então, você
não quer isso, ou quer? — Ele esperou uma resposta e se sentou
com as mãos apoiadas nos joelhos abertos.
Como ele parecia preparado para aguardar o dia todo, ela
murmurou por fim:
— Não, não quero passar o resto da minha vida aqui. Você quer?
— Eu certamente não gostaria. Então, Connie, talvez você
perceba que estamos trabalhando em seu benefício. Afinal, por que
a sociedade deveria se importar? Você já provou que não consegue
viver com os outros. Você foi trancafiada num lugar onde não pode
machucar a si mesma e aos outros. Não é mesmo?
— Mas eu posso ser machucada aqui. Não é mesmo? — Ela
balançou a cabeça.
— Vocês estão juntos a tempo suficiente para perceber o que
acontece com os pacientes antigos, como eles se tornam
aclimatados à vida no hospital. Depois de um tempo eles não
conseguem funcionar lá fora. É uma vida segura.
— Talvez pra vocês.
— Você sabe quando será a próxima refeição. Você tem uma
cama, um teto sob a cabeça. Tudo bem, você diz que não quer essa
segurança. Você quer voltar à sociedade.
— Quero voltar pra minha vida!
— Essa não é sua vida? Você não está em sua primeira
internação. Acho que essa será sua vida provavelmente por alguns
anos se não te ajudarmos. Em vez de apenas te guardar, estamos
preparados pra te ajudar. Essa é a primeira vez na sua vida que
você tem atendimento médico de qualidade. Os ricos contratam
psiquiatras, mas você nunca teve um tratamento verdadeiro.
Queremos que você esteja funcional de novo, mas sem o risco de
cometer aqueles atos descontrolados. Sem o risco de você atacar
alguma criança de novo, ou alguma pessoa próxima ou querida por
você.
Connie rangeu os dentes.
— Qualquer pessoa que não esteja numa cadeira de rodas pode
machucar alguém. Você nunca bateu em ninguém? Nunca?
— Connie, você está resistindo. Você é a paciente, sabe por que
está aqui. Quanto mais resistir, mais você se pune. Porque, quando
você luta contra nós, não podemos te ajudar.
Os enfermeiros trouxeram Skip de volta depois de dois dias fora
da ala. Acker saiu correndo para ver o resultado, deixando-a em paz
por alguns instantes.
— Pense nas histórias de prisioneiros heroicos que tentaram
escapar muitas vezes — Luciente falou, dando fortes tapinhas em
suas costas. — Uma derrota não é nada. Você deve manter a
vigilância por outros buracos na segurança.
— Se ao menos eu pudesse sair por uma liberação de final de
semana! Sei que podia escapar da Dolly facilmente. Até mesmo o
Luis teria de dormir em algum momento.
— Por que não? Mas tente! Você é importante para nós, queremo
que sobreviva e fuja. Uma tentativa, um fracasso, você tem que
acreditar nisso. O que dá certo da primeira vez? Afe! Se eu ainda
estou enrijecide numa tarefa, posso falhar vinte, trinta vezes até
acertar o equilíbrio de genes apropriado. Toda vez eu não percebo
um fator crucial. Mas finalmente ele desabrocha! Assim então você
deve trabalhar na fuga. Agora você está mais forte do exercício e
seus pés vão sarar mais fortes.
— Mas eles tiraram meu dinheiro. Me vigiam o tempo todo.
Sempre que vou pra perto da porta eles estão de olho.
— Elus têm muito o que fazer além de te vigiar. Você tem apenas
que observar elus. Manter a coragem.
— Luciente, misericórdia! Me sinto derrotada. Você não entende.
Nunca na sua vida você se sentiu indefesa, debaixo do calcanhar de
alguém. Você nunca viveu onde seus inimigos detinham o poder
sobre você, poder de dirigir sua vida e te destruir. Você não entende.
É por isso que fica aí me enchendo de frases feitas vazias!
Luciente curvou a cabeça.
— Você me crita com justeza, Connie. Me perdoe. Vou tentar olhar
a situação mais claramente e fazer menos barulho alto nos seus
ouvidos.
Quando vieram brincar com o Skip, os médicos não ficaram
satisfeitos. Os eletrodos que provocavam violência não faziam com
que ele os atacasse, como Alice fazia. Em vez disso, ele se voltava
para a parede e a socava. Ele batia a cabeça contra a parede e,
antes que os assistentes conseguissem contê-lo, o sangue já
escorria do seu curativo.
— Isso não vai servir! — Dr. Argent fazia uma careta, passando a
mão levemente nos seus cachos prateados. — Não traga nenhum
bombeiro visitante pra inspecionar esse daí. Hum! — Até o diretor
do hospital, quando algo dava errado, se afastava dos outros dois,
de costas, parecendo desdenhá-los.
— Começamos com tentativas de suicídio. Podemos estar sendo
manipulados por um masoquista, hein? — Dr. Redding olhou de
soslaio para o dr. Argent, tentando incluí-lo nessa piadinha. — Ah,
vamos discutir o caso na reunião de equipe hoje. Outros
procedimentos podem ser indicados.
Argent juntou as mãos atrás das costas e se balançava com os
pés.
— Não é má ideia. Não vai adiantar deixar ele assim, nessa
condição. Os agentes federais vão visitar semana que vem. Se
queremos a renovação do financiamento, é melhor deixar tudo
arrumado e em ordem.
O dr. Morgan se empertigou.
— Procedimentos cirúrgicos?
Skip perguntou em voz alta:
— Vão tirar essas coisas?
— Se nossos testes provarem que é a melhor condição, filhinho,
talvez sim — Redding falou. — Faremos o que for melhor.
— Cara, vocês devem achar que sou louco mesmo, pra acreditar
nisso.
Quando se viraram para sair, Connie correu do seu posto ao lado
da porta para se sentar na sala comunitária. Quando os médicos e
Acker passaram, estavam discutindo amigavelmente entre si.
— Muitos talentos na sua área estão trabalhando para reter a
inversão sexual com eletrochoques ligados à projeção de slides e
filmes — Redding dizia para Acker. — Mas a taxa de reincidência
não é muito promissora. Se pudéssemos curar a inversão
cirurgicamente, abriríamos um nicho totalmente novo.
— Não vamos sair muito dos trilhos, cavalheiros — Argent disse.
— Podemos fazer alguns testes, mas nossa preocupação maior é a
violência. Dentro desse perímetro, temos alguma margem pra
experimentar.
— De seis a oito mil pra uma operação contra centenas de
milhares de dólares pra manter um homossexual em tratamento ou
internado por décadas. Você não pode dizer que isso não é uma
ótima relação custo-benefício. — Redding se permitiu tocar o ombro
do Argent como um colega. — Bom pro coração do contribuinte e
das autoridades. Se o dinheiro do crime das ruas secar, é algo pra
se manter em mente.
Argent olhou para a mão dele.
— Quero resultados nesse daí, doutor. — Aquela formalidade
cortou como uma lâmina. — Sou um velho. É agora ou nunca. Para
o seu bem, melhor ser agora.
Skip foi levado ao outro hospital novamente. Quando o trouxeram
de volta, tinham removido os eletrodos, mas tinham feito algo mais.
Eles tinham coagulado parte do seu cérebro límbico, o que quer que
fosse aquilo. Amigdalectomia foi a palavra que usaram. No dia
seguinte, ela foi vê-lo. Seus olhos estavam embaçados e injetados
de sangue.
— Por que você quer saber como eu estou? O que te interessa?
— Você não se lembra de mim, Skip? Sou a Connie, sua amiga.
Você me deu dinheiro pra ligar pra minha sobrinha.
— Uns dão, outros tiram. Alguns tiram tudo.
— Dói? Sua cabeça?
— Eles dizem que quando você perde uma perna e eles cortam, a
perna continua doendo. Eles chamam isso de ressecção, eles têm
nomes pra tudo.
— Pelo menos eles não ficam brincando com você, como fazem
com a Alice.
— São brincadeiras diferentes.
— Você está com medo do que vão fazer agora?
— Por que eu teria medo? Quem disse que estou com medo?
Você vai ver.
— Não falei por mal, Skip. — Ela tocou a mão dele. Ele a tirou
como se ela a tivesse queimado.
— Não tenta ficar perto de mim. Agora eu aprendi. Dar e tirar, e
então tudo é tirado.
Lebre estava mostrando a ela um punhado de... quê? Imagens de
sonhos? Esculturas de luz? Formas que se transformavam em
outras formas? Ela ficou ansiosa olhando para aquilo com a pessoa
que as tinha feito, o artista, fazendo elas surgirem ali. Tinha medo
de parecer não estar apreciando ou não dizer as coisas certas ou
observar corretamente e ele achasse que ela era burra. Mas ali à
tiracolo estava Luciente, comendo uvas verdes de uma cesta
artesanal e murmurando alguns elogios como se fosse um programa
de tv. Se ela tentasse adivinhar o que as imagens deveriam
significar, se sentiria chateada. Mas se olhasse com os olhos bem
abertos e deixasse que elas acontecessem, não conseguia evitar
uma atração.
O hologra que ele estava mostrando não tinha nenhuma palavra,
nenhuma história, diferente daquele que tinha feito com Bolívar. Era
todo feito de imagens que tinham a ver com o oceano e com sexo e
com poder — não o poder sobre as pessoas, mas o poder natural,
energia. Limites se dissolvendo. O mar subindo, quebrando sobre a
terra. Sob um céu frio azul e claro, um mar açoitava, virava espuma
e se espalhava pela praia. Ondas com dentes que tremeluziam e
cabelos que se enredavam e esvoaçavam em si mesmos. Onda
quebrando sobre onda, mostrando barrigas escuras antes de se
quebrarem em espuma e escorrerem pela areia, se espalhando e
chiando.
A oficina de Lebre ficava perto do moinho, perto o suficiente para
ouvir as pás girando. Ali, o rio esmagava grãos e milho e operava
uma série de bombas. Quatro vezes por dia um relógio de maré
girava o mecanismo da roda para que ela estivesse sempre fixada
corretamente de acordo com o fluxo das águas. Quando Lebre não
tornava a janela opaca e usava apenas a claraboia de correr,
ondulações dançavam na parte mais alta do telhado. Sempre, ele
disse a ela, era possível ouvir a roda do moinho, as ondas batendo
na praia logo abaixo. A oficina tinha sido construída alguns metros
acima do rio, e o lado que dava para a água tinha uma pequena
varanda.
— Lebre já tem duas pessoas aprendizes — Luciente falou,
apoiando-se no balaústre do lado de fora da porta aberta enquanto
Connie observava os desenhos e gravuras que Lebre tinha
começado a mostrar a ela.
— Débora e Orion não estão muito satisfeites sobre eu ir pra
defesa. Elus tiveram atiramentos comigo sobre isso a semana toda
— Lebre reclamou, passando as mãos pelo cabelo cacheado.
— Dureza! — Luciente disse sem rodeios. — Elus sabiam quando
te escolheram que você não tinha servido a defesa. Nem tiveram
que esperar por você como professore. Deixa elus fazerem serviços
por seismês.
— O atiramento dessôas me entristece — Lebre falou,
distraidamente tentando fazer cócegas nas costelas de Connie
enquanto ela se virava para olhar as cartolinas. — O ritmo da minha
vida entrecruzou com o ritmo das delus. Sentem que estão
crescendo e querem voar mais rápido.
— Você não consegue trabalhar sozinhe? Nem sempre você
estudou com professories. — Luciente chutou para longe seus
sapatos e se sentou com os pés descalços pendendo para fora da
varanda, mas sem alcançar a água.
— Por que você tem que ir pra defesa? — Connie deixou os
papéis de lado. — Não consigo mais olhar. Desculpa, não consigo
mais assimilar nada.
— Mas eu tenho que deixar a defesa pra trás antes de começar a
maternar. Seria burrice fazer o contrário, eu capto isso.
— Sua sociedade não dá muito crédito à arte, aos artistas e essas
coisas, não é?
Connie desviou o olhar de um quadro de um homem nu pendurado
na parede mais distante, junto com outras vinte pinturas, desenhos,
gravuras e coisas do tipo. Um corpo masculino pendurado daquele
jeito — com um pinto enorme — a deixou envergonhada. Não
parecia algo que ela deveria ficar encarando, ainda que as cores
brilhassem e a carne brilhasse por dentro. Ela continuou olhando,
nervosa, de canto de olho. Era lindo quando não deveria ser —
como o Martín, seu primeiro marido. Ela não conseguia imaginar
que ele permitisse que qualquer pessoa o pintasse daquela forma,
mas, se alguém de talento tivesse pintado, a pele dele iria brilhar
daquele jeito. Não era Lebre, nem Bolívar, a menos que fosse
Bolívar sete anos mais novo com uma barba espessa.
Luciente se virou, recostando-se contra um dos postes do
corrimão.
— Por que diz isso, Connie, amor? A grande maioria de nós segue
algum tipo de arte, e às vezes até mais de uma.
— Mas isso é coisa amadora. Quis dizer artistas de verdade.
Como Lebre. Não sei muita coisa, mas posso ver que é de verdade.
Mas ainda assim ele tem que trabalhar nos campos e ir pro exército
e cozinhar e essas coisas todas.
Luciente sorriu.
— Mas euzinhe sou geneticista de verdade e tenho que ir pra
defesa e colher batatas e cozinhar e tudo isso. E também como e
faço escolhas políticas e confio naqueles com armas pra me
defender, assim como Lebre. Intão?
— Eu compreendo — Lebre disse, dando um tapa no ar. — No
tempo da Connie, elus achavam que, quando uma pessoa era boa
em algo, como artes ou ciência, não deveria fazer mais nada.
— Isso deve ter deixado todes um pouco burres — Luciente falou.
— Um pouco simplificades, você capta? E com o ego inflado!
— Essas pessoas tendiam a sentir que outros trabalhos diminuíam
seus conhecimentos de física ou escultura ou o que fosse. Não era
assim, Connie? — Ele passou os dedos pelo braço dela, fazendo
uma carícia.
Ela recuou o braço, envergonhada de novo.
— Bom, se uma pessoa pode fazer alguma coisa... importante, por
que deveria cortar cebolas ou caçar taturanas das plantações de
tomate?
— Comer não é importante? — Luciente fez uma careta de
surpresa.
— Connie, pensamo na arte como produção. Achamo que uma
pintura é tão real quanto cultivar pêssegos ou fazer equipamento de
mergulho. Nem mais verdadeiro, nem menos. É útil e bom em níveis
diferentes, mas é produção. Se esse é o trabalho que eu quero
fazer, não preciso passar por uma prova ou encontrar uma
patronagem. Mas ainda tenho os deveres familiares, deveres
políticos, deveres sociais, como qualquer outro palerma. Como não?
— Todo mundo? Mas e Bolívar? Ele está sempre viajando.
— Bolívar faz tudo, mas em fases diferentes. Na primavera pessoa
planta, faz a cota do ano e um pouco mais! Faz duas semanas de
preservação em agosto ou setembro.
— Mas ir pra defesa, não é perigoso?
Ambos riram muito, aquele riso franco que vem do diafragma.
— Como não? — Luciente perguntou. — As pessoas inimigas não
são muites, mas são determinades. No passado, elus mandavam no
mundo todo, tinham poder como nenhume outre, mesmo os
imperadores romanos, e riquezas que eram drenadas de todos os
lugares. Agora têm o poder de nos exterminar e nós de exterminar
elus. Pessoas têm bases limitadas, a Lua, a Antártica, as
plataformas espaciais, para uma população na sua maioria de
androides, robôs, cibernautas, humanes parcialmente
automatizades, que a guerra é de atrito e pequenas ações em áreas
disputadas, ataques-surpresa quase em qualquer lugar. Vivemo com
isso. É o fim da linha. A gente teme elus, mas triunfamo até agora, e
acreditamo que vamo ganhar... se a história não for invertida. Quer
dizer, o passado é uma área disputada.
— Não entendo! E isso me deixa tonta! Mas se Lebre vai pro
exército, ele pode ser morto. Algumas pessoas não valem a pena
serem poupadas?
— Me mostre alguém que não vale — disse Luciente. — Quem
não é preciose para si? Como poderíamo decidir quem usar e quem
poupar?
— Risco, perigo... a gente não acha que são do mal — Lebre disse
lentamente. — Eu não gorjeio em ir. Clarquessim não quero
devolver ainda. Mas não quero ser ignorante. A criatura dentro de
uma concha é uma lesma mole, como uma minhoca. Quem deve
me proteger? Bolívar? Luciente? Abelha? Gavião? Quem vai ficar
entre eu e a morte, eu e as doenças, eu e o afogamento? Devo
servir os talentos que me usam, a energia que flui por mim, mas não
posso fazer outres me servirem. Vê a diferença?
— Você não vai sentir saudade dele? Você deve se importar por
ele ir — pergunta a Luciente.
— Me importar? Como não? Me importo também que ainda
estamo em guerra. Me importo que não podemo aproveitar a paz e
usar toda a energia no que as pessoas precisam e querem. Vou
sentir saudade de Lebre, clarquessim. E acho muito injusto que eu
vá sentir saudade primeiro de Abelha e depois de Lebre em um
ano... — Luciente olhou para Lebre, seus olhos marejados e
melancólicos. Então o rosto dela clareou. — Mas estou contente
com o fato de Lebre maternar. Sou criançavinculadere. Vou
maternar um pouco também... — Luciente se virou para observar o
curso das águas. — Débora e Orion devem decidir se vão continuar
trabalhando aqui sozinhes esses seismês sem você, ou se devemo
fechar a oficina até você voltar.
— Eles têm uma semana pra decidir. — Lebre pegou na mão de
Connie. — Por que você fica tímide comigo? O que eu faço que te
deixa com tensão?
— Nada! — Ela encarou Luciente como um apelo.
— Então por que você tira a mão?
— Por que você quer... segurar ela?
Lebre sorriu.
— Quando eu voltar da defesa, vou lidar com a maturidade. Então
você não vai ficar de timidez comigo. Abelha faz gostoso, mas eu
faço tão gostoso quanto. — Ele fez uma careta exagerada tentando
flertar com ela, piscando bastante. — Você não sente tristeza por
mim, em exílio por seismês? Não quer me confortar?
— Não provoca a Connie assim. — Luciente levantou o punho
contra ele. — Você prometeu não provocar a Connie!
— Você não gosta de provocação? Nem um pouquinho?
— Quando você for mãe — Connie disse, rindo pela primeira vez
em dias —, daí você pode me provocar.
— Se você experenciar dor na região abdominal, se fosse
diagnosticada com apendicite, ficaria com medo da operação, mas
não ia criar resistência. Não tentaria sair do hospital, porque saberia
que está doente e que precisa de ajuda. — Acker a tinha
encurralado na sala comum, onde ela estava assistindo a um
seriado sobre um advogado. Atrás de Acker, Tina fazia caretas para
Connie, para ajudá-la. — Então, você não consegue ver seu
cérebro, mas consegue ver o resultado de uma máquina de
eletroencefalograma. Você não consegue lê-lo, porque não tem
treinamento, mas os médicos podem. Você também não consegue
ver o apêndice, mas aceitará as opiniões dos especialistas nos dois
casos, ou estará se condenando a ficar mais e mais doente.
— Exceto pelo fato de não fazer exercícios, da comida horrível e
daqueles remédios que me apagam, estou bem. Andei 32
quilômetros, não foi?
— E voltou com abcessos nos pés. Esses você consegue ver. Mas
não consegue ver abcessos no seu cérebro, por assim dizer.
Connie, você vai nos agradecer, porque, graças à moderna ciência
médica, não está mais condenada a passar sua vida numa unidade
psiquiátrica.
— Olha, acho que é mais barato me manter no seguro-
desemprego do que aqui. Mas vou pra casa amanhã. Vou me matar
pra conseguir arrumar trabalho. Prometo! Vou esfregar chão. Não
me importo mais. Prefiro fazer serviço doméstico pras senhoras
brancas do que ficar aqui!
— Claro. E queremos que você esteja apta a retornar ao trabalho
útil, retornar à sociedade de forma segura, tanto pra você como pros
outros. Mas tem esse porém, Connie. Ninguém consegue confiar em
você. Se você tivesse febre tifoide, não iria esperar que te
deixássemos sair sem tratamento e fosse passear pelas ruas de
Manhattan livremente infectando os outros, iria? — Acker esperou,
radiante, suas mãos pousadas nos joelhos abertos. Atrás dele, Tina
estava fazendo mímica, simulando uma morte horrenda.
— Não acho que eu tenha tuberculose ou febre tifoide.
— Estava fazendo uma comparação.
— Eu sei disso! — “Quão estúpida ele acha que sou?”. — Mas não
acredito que estou doente. Como você, fiz coisas de que me
arrependo e coisas de que não me arrependo. Já que sou pobre,
não posso contratar advogados pra acertar as coisas pra mim
quando me dou mal com a lei.
— Sempre má sorte. Sempre uma história de muito azar. Você não
aprendeu nada, só de ouvir isso. Mas acho que você sabe muito
bem, Connie, está simplesmente resistindo. Quando vir sua situação
claramente, em vez de observar pelos olhos irracionais do medo, vai
perceber que somos seus únicos verdadeiros amigos... Olha pro
Skip. Acho que ele está no caminho da recuperação. A atitude dele
mudou desde a operação. Ele está tentando, Connie. E essa
tentativa vai valer a pena, espere e veja. Ele vai voltar pra sociedade
logo, um indivíduo produtivo, curado das suas doenças, pronto pra
se dar bem na vida.
Tina estava tocando um violino e deixou os braços caírem rápido
quando ele se virou para sair.
Connie estava chocada com o que ele tinha dito sobre o Skip.
Verdade, Skip tinha mudado. Ele papagueava tudo o que diziam
para ele, e tinha dito a eles que estava agradecido. Quando o
levaram e o testaram com algumas fotos homossexuais, ele não
tinha tido nenhuma reação negativa, como chamavam, o que
significava que ele não tinha ficado de pau duro. Ele disse a ela que
se sentia morto por dentro. Eles estavam satisfeitos com ele; iam
escrever sobre ele em um periódico médico.
Skip queria ir embora. Eles prometeram que ele ia sair. Ela
ponderou. Eles iam deixar mesmo ele sair de suas garras? Já
tinham tirado os curativos e o cabelo dele estava começando a
crescer de novo. Ele andava pela ala ajudando os auxiliares. Estava
jogando o jogo. Ainda era um jogo, ela sentia isso. Havia resquícios
de um forte desejo que esfriara no seu interior que ainda o movia.
Ela tinha tentado escapar à sua maneira, e ele tentava da maneira
dele, com algo extirpado dele. Algo lindo e efêmero tinha se
apagado. Doía nela vê-lo daquela forma, porque ele era lindo
demais, e eles o tinham consertado. Ele se movia diferente,
desajeitadamente. Era como se tivesse finalmente concordado em
imitar a masculinidade grosseira e desajeitada dos médicos por um
tempo, mas o que para eles era proficiência, para ele era humildade.
Skip se movia como um robô cujas partes não tinham sido bem
soldadas. Ainda assim, ele não era um robô, não importa o que
achassem que tinham feito. Ela podia sentir o desejo queimando
nele, uma vontade de se libertar.
— Você está jogando com eles, não é? — Ela veio por trás quando
ele estava limpando a sala comum.
— Por que não? — ele perguntou a ela. Eles tinham ficado amigos
de novo, mas ele não a paquerava mais, nem contava histórias
malucas. Estava letárgico, reduzido a um fio de desejo que ela podia
sentir. Ela torcia para que eles não tivessem queimado ou cortado
tanto quanto pensavam. Algo do Skip tinha sobrevivido.
CAPÍTULO 14
Lebre foi para a defesa. Por uma semana, Luciente se afundou num
estado de baixa energia que fez com que ficasse difícil se conectar.
Então ela fez um dia de retiro em Treefrog e, para Connie, voltou a
estar mais parecida com a Luciente de sempre.
O almoço em Mattapoisett era uma sopa amarela engrossada com
pedacinhos de camarão, caranguejo, marisco e peixe. Gavião
estava comendo com eles, depois de ter ficado várias semanas com
a família de Relâmpago.
— Foi chato me sentar à mesa com membres com quem eu não
podia conversar. Agora que o tabu acabou, estou de volta. Achei
que fosse me aquecer ficar com nossa família hoje. Veja, eu trouxe
convidade pro almoço.
Connie já tinha visto visitantes antes além de si, na maioria gente
das vilas próximas ou outras pessoas que estavam de passagem,
viajando com algum tipo de propósito. Às vezes, uma trupe inteira
de músicos ou artistas parava por uma semana. Velhos amigos ou
antigos membros vinham visitar. E havia as pessoas sem vilas,
chamadas educadamente de andarilhas e pouco educadamente de
vagabundas. Uma vez ela tinha visto um homem com uma pequena
tatuagem na palma da mão, que Luciente disse ser a marca de um
crime violento. Diferente de outros convidados, andarilhos
geralmente se sentavam sozinhos. As pessoas pareciam
desconfortáveis perto deles. Às vezes, parecia que se conheciam, e
quando Connie passava perto deles, ela ouvia gírias que não
conseguia reconhecer.
Por que Gavião trouxe esse convidado para a mesa? Connie viu
na palma dele a mesma tatuagem, a marca de advertência. Ele era
um homem grande e de ossatura avantajada, mas lhe faltava
carnes, talvez na casa dos quarenta.
— Waclaw acabou de estudar com Cree! — Gavião murmurou.
— Em Attawapiskat. Que flui para a baía de James pelo oeste —
ele falou com uma voz hesitante e profunda vinda do seu peito
largo.
— Quanto tempo você teve que esperar pra estudar lá? — Gavião
perguntou. — Teve que esperar muito?
— Seis anos — Waclaw disse. — Tive sorte que me escolheram.
— Seis anos?! — O rosto de Gavião se abateu. — Isso enfundece!
— Se deixarem todo mundo que chega estudar com elus, ficariam
lotades — Waclaw ponderou. — A maioria das pessoas não espera,
então, elus não têm que dizer não.
— Valeu a pena ter esperado tanto tempo? — Gavião perguntou,
ainda lamentando.
Waclaw anuiu.
— Me firmou. Quase fiquei. Vou ver minha antiga vila e decidir.
Elus dizem que posso voltar se escolher, para Attawapiskat.
Assim que o almoço acabou, Connie perguntou a Luciente:
— Ele é um criminoso, não é? Vi a tatuagem.
— Não mais. Pessoa fez reparações. Tem estudado lá no norte.
— Os Cree, ele disse? Como os índios? Vocês ainda têm índios
de verdade?
Luciente anuiu.
— Aquelas terras são fortemente protegidas, sob controle delus.
Só caçam, coletam coisas e realizam algumas atividades
científicas... As pessoas Cree têm uma forma mista de vida. Pescam
e caçam, criaram uma espécie de agricultura do extremo norte,
fazem artesanato, a fabricação é limitada. Precisam ter cuidado,
porque a terra é frágil.
— O que tem pra estudar lá?
— Uma disciplina, um senso de completude. Algo antigo.
Geralmente são meio caçadores e coletores, meio xamãs, meio
cientistas.
— Mas qual foi a reparação dele? Ir pro norte e viver desse jeito?
— Nunca! — Luciente riu sonoramente. — Isso é um grande
privilégio. Foi por isso que Waclaw teve que esperar seis anos. Não
sei o que pessoa fez pra reparar. Pergunte, se precisar, mas a gente
normalmente não pergunta. Sentimo que está fechado, curado.
Esquece!
Connie seguiu Luciente de perto até os campos experimentais
onde Luciente estava gravando comentários sobre a performance.
— Isso está se resolvendo! Acho que encontramo boas cepas pra
trabalhar no próximo ano.
— Por que vocês deixam tantas matas? — Connie perguntou. —
Como naquela discussão no conselho. Por todo lado na foz do
Mattapoisett vejo trechos de bosques, prados, pântanos e
marismas. Vocês podiam cultivar muito mais terras.
— Temo muito mais terra cultivando alimentos dos que vocês
tinham. Mas, Connie, pra além da faixa do lençol freático, pense em
cada trecho de mata como um banco de genes natural. No seu
tempo, milhares de espécies estavam desaparecendo. Precisamo
desse banco de material genético pra reprodução... Essa é apenas
a resposta do ponto de vista mais restrito da minha própria ciência.
Abelha acenou para elas, levando um grupo de crianças pelos
campos numa combinação de busca por insetos e aula sobre a vida
deles.
— Boa sorte em Oldtown! — ele gritou. — Nos leve adiante.
Connie observou as costas largas e reluzentes dele, a camisa
enrolada na cintura.
— Do que ele estava falando?
— Tenho que dar uma passada em Oldtown mais tarde e
apresentar nossos didos.
— Didos?
— Meia palavra, meia costela. Capta, é pedidos, mas queria que
fosse uma requisição pro que queremo fazer cientificamente nesse
inverno.
Connie fez uma careta. Ela deixou Luciente tagarelar um pouco
sobre a controvérsia dos Modeladores, mas finalmente explodiu:
— É tão difícil pra mim pensar em você como uma cientista!
— Como não? Não compreendo.
— Ah, é que o único cientista que eu conheço é o dr. Redding... E
acho que somos as experiências dele. Mas eu quase nunca conheci
um cientista, quer dizer, no Harlem Leste. Não que eu quisesse...
— Qual a diferença entre conhecer um cientista e conhecer um
mergulhador?
— É como minha irmã Inez, ela mora em Novo México. O marido
dela bebe, ela tem sete filhos. Depois do sexto, ela foi pra uma
clínica pra começar a usar pílula. Você sabe, não, você não pode
saber! É difícil pra mulheres como ela, uma católica praticante, não
uma perdida como eu, e obedecendo o marido e ele enchendo ela
de bebês um depois do outro. É tão difícil pra ela dizer “basta ya!” e
começar com a pílula. Olha, ela achou que foi pro médico. Mas ele
estava com a plaquinha de cientista e estava fazendo experiências.
Ela achou legal conseguir as pílulas de graça, mas eles deram pra
ela uma pílula de açúcar. Esse médico, ele não disse o que estava
fazendo. Então ela embuchou de novo com o sétimo filho. Nasceu
com alguma coisa errada. Ela estava cansada e farta de fazer tanto
filho. Você sabe que já teve demais e os bebês não saem mais tão
fortes. Daí esse, Richard, nasceu ruim da cabeça. Agora eles têm
toda aquela preocupação e falta dinheiro. Eles deveriam dar uns
remédios pra ele e mandar ele pra uma escola especial, mas isso
custa caro. Tudo isso porque a Inez achou que tinha achado um
médico, mas ela achou um cientista.
— Tudo isso aconteceu assim? — Luciente olhou fixamente com
seus olhos negros surpresos.
Ela olhou para o outro lado, para o rio, apenas um regato com
suas águas marrom-café. Elas estavam voltando para Mattapoisett,
passando por alguns velhos, crianças, jovens trabalhando aqui e ali,
capinando e alimentando animais, caçando besouros, arrumando
plantas novas, discutindo com franqueza aos gestos e caretas,
correndo ao carregar um punhado de algo brilhante em alguma
cesta colocada na cabeça ou em uma trouxa ou cesta nas costas,
com bebês nos braços, nos quadris ou nas costas.
— Eles gostam de experimentar novos medicamentos em pessoas
pobres, especialmente nos mulatos e negros. Quem está na prisão
também. Então... vocês têm que testar medicamentos nas pessoas
também? Devem precisar.
— Usamo computadores pra modelagem biológica. A maioria dos
medicamentos são descartados muito antes da fase de testes. No
seu tempo, acho que as pessoas falavam sobre efeitos e efeitos
colaterais, mas isso é besteira.
— Como? Por exemplo, quando eu tomo Amplictil, os efeitos me
controlam, me deixando meio morta, mas tenho um monte de efeito
colateral, pode crer, como dor de garganta e... diarreia, tontura, fala
embargada.
— Mas, Connie flor, tudo são efeitos! As suas empresas de
medicamentos colocavam o nome efeitos colaterais no que não era
vendável. É uma maneira engraçada de ver as coisas, como um
cavalo com antolhos.
Ela jogou o queixo para frente.
— Mas tem uma diferença. É pelo efeito principal que você faz
alguma coisa.
— Mas, Connie! O mundo não sabe disso. Será que você não vê?
Vamo fazer a volta por aqui, as abelhas estão trabalhando hoje. —
Elas andaram por uma parte do complexo de Goat Hill, onde os
peixes estavam sendo criados em tanques aquecidos com placas
solares e a água fertilizada pelos peixes era usada para cultivar os
vegetais. Dentro dos domos dos peixes, homens e mulheres,
reluzindo de suor, estavam trabalhando vestindo apenas cuecas. Do
lado de fora havia uma piscina especial de resfriamento com as
pessoas brincando e nadando. — Exemplo, uma fábrica faz um
produto. Mas isso não é tudo. Ela faz ter menos de qualquer coisa
que ela usa praquele produto. Cada quilo de aço usado e que
devemo contabilizar, mesmo se o que foi feito é necessário ou
realmente desejável, é um quilo a menos pra outra coisa... Vamo
pegar uma bicicleta.
— Você vai ter que pedalar pra mim. — Connie recusou-se a
andar.
— Clarquessim, vou te carregar como uma bebê. Vamo pra
Oldtown. — Numa bicicleta de dois lugares, Luciente discutia por
trás dela, um pouco sem fôlego. — Uma fábrica pode produzir
poluição, que é levada pela água potável rio abaixo. Peixes mortos
que não podemo comer. Doenças e defeitos genéticos. Esses
também são produtos daquela fábrica. Uma fábrica usa água,
energia, espaço. Usa o tempo, as vidas daquelas pessoas que
trabalham nela. Se o trabalho for enfadonho ou alienante, ele produz
pessoas entediadas e raivosas...
— Você não me respondeu em quem os medicamentos são
testados. Quero saber. É nos criminosos?
— Me desculpe. Estou discurseando. A gente se voluntaria.
— Ah, claro. Isso é o que eles dizem sobre as prisões. Dizem que
o Claud se voluntariou pra hepatite. Mas, por uma grana por dia, a
pessoa mataria um amigo na prisão, porque não tem outro jeito de
tocar no dinheiro. Tudo nos refeitórios custa. Sua família em
dificuldade. Você quer sair logo. Dizem que você consegue uma
condicional se aceitar. Daí você se voluntaria.
— Mas não falta nada a ninguém aqui. Tudo que se consegue ao
se voluntariar é algum prestígio. Os conselhos locais podem te dar
créditos de luxo ou sabático extra. Na maior parte das vezes é mais
descanso. Se não tem voluntáries o suficiente pra algo, deixamo de
lado. Às vezes pessoa escolhe certo projeto como reparação, mas
isso é entre elus e quem quer que tenha machucado.
— Você já foi voluntária?
— Não pra medicamento. Não gosto de tomar remédio, mesmo
quando preciso. Não usamo tanto. Fazemo cura cooperativa,
quando curandeire ajuda sôa a firmar hábitos melhores de
mentalidade, melhor dieta e postura da coluna. — Ela pedalava num
ritmo estável. Estavam saindo de Mattapoisett agora, passando pelo
açude, e Estrela da Manhã, que estava carregando caixas de
travesseiros e almofadas até um barco, parou para acenar.
Passaram pela ponte para Cranberry e pedalaram seguindo para as
docas de Oldtown. — Me dispus a testar novos aparelhos. Quebrei
minha escápula testando um aerobarco a energia solar. Admiramo
unes a outres por se arriscarem pelo bem comum. Todo mundo fica
às asas com tanta admiração, como não? Mais amor, mais atenção.
Além disso, todo mundo sempre deseja mais tempo extra. A vida é
curta e há tanto pra se fazer.
Deixaram a bicicleta no bicicletário e andaram por um caminho em
Oldtown, onde ficava o porto principal. Era uma vila portuguesa
cujas atividades principais eram a construção de barcos, reparos,
pesca de marisco e pesca em alto mar.
— Acordam às três ou quatro da manhã quando os barcos saem,
então reuniões à noite não funcionam aqui. Fazem as refeições à
tarde, por isso tenho que apresentar o dido às três. Não é lindo
aqui? Alguns prédios têm uns quatrocentos anos de idade!
Eles haviam adaptado os prédios antigos, apesar de entre eles
haver os mesmos campos e jardins, como em qualquer lugar. Um
velho com uma barba embranquecida estava colhendo frutinhas,
comendo algumas, colocando a maior parte numa cesta que estava
em seu braço murcho, num lugar que algum dia havia sido o
gramado de um hotel resort. Com ele havia uma criança que estava
mais comendo do que colhendo, enquanto cantavam às vezes em
uníssono e às vezes como um estranho contraponto. A criança
interrompia com perguntas a cada dois minutos, as quais o velho
respondia lentamente.
— Por que a vida é curta? — Connie perguntou. — Os velhos aqui
são saudáveis, claro, vivem com todo mundo. Mas eles ficam velhos
e morrem não muito mais tarde do que nós. Por que não vivem mais
tempo?
— Decidimo não tentar.
— Quem decidiu?
— Os conselhos. As reuniões das vilas. É dessa maneira que
questões gerais de direcionamento da ciência são decididas.
— Você quer dizer por pessoas como eu? Como eu poderia decidir
se eles vão construir uma bomba atômica ou não?
— Clarque você poderia decidir. Afeta você, como não? Une
deputade da base fala em nível local pra um pequeno projeto. Mas,
se é algum projeto maior, como seriam os de prolongar a vida, então
todo mundo decide. O que custaria pra começar, o que se usaria na
forma de recursos e trabalho, tudo isso seria colocado. Quais seriam
as consequências em todo yin-yang da coisa, que a gente pudesse
prever ou adivinhar.
— Mas como eu poderia saber se você é uma boa cientista ou
não? Não sei nada sobre genética. Na hora que eu conseguir
entender tudo, já serei uma velha.
— Você não poderia. Mas poderia decidir se minha base deve
intensificar o cultivo de abobrinha resistente à broca ou batata sem
pulgão ou lírios-de-um-dia lindos e comestíveis. Então, pra
resultados, se os experimentos forem válidos, nós, pesquisadories,
dedicamo um tempo para verificar o trabalho une de outre. É feito
por sorteio.
— Mas isso soa um pouco como uma ditadura. Na nossa época, a
ciência foi mantida... pura, por assim dizer. Só cientistas podiam
julgar outros cientistas. Todas aquelas histórias de como os
cientistas eram perseguidos pela Igreja ou pelos governos por causa
do que estavam realizando em suas ciências.
— Mas, Connie, na sua época, só as grandes corporações e o
Pentágono tinham dinheiro suficiente pra pagar pela grande ciência.
Você não acha que isso teve efeito sobre o que as pessoas
estudavam? Doces petúnias! E o que a gente faz afeta todo mundo.
A gente usa uma boa porção de recursos. Materiais escassos,
energia. Temo que prestar contas. Só tem um bolsão de ar pra
respirar. Você sabia que os neurologistas quase extinguiram a
lesma-do-mar por usar em experimentos? Quase fizeram o mesmo
com os chimpanzés! Que arrogância!
— Mas por que vocês não prolongam a vida? As pessoas mais
velhas votaram nisso também?
— Clarquessim. Fizemo uma separação por idades depois pra
certificar que jovens não estivessem votando na extensão da idade
longe de velhes... Acho que tudo remete ao fato de que estamo
ainda reduzindo a população. Quanto mais as pessoas vivem,
menos frequentes são as trocas. Mas quase tode palerma quer uma
chance de maternar. Logo, devemo devolver. Tem que morrer.
Afinal, as pessoas se cansam. Depois de um tempo, pessoas de
quem você era amigue coloride, amigue de trabalho, morrem de
acidente ou doença, tanto faz. A velhice do coração chega.
— Daí vocês desistem.
— Somo parte de uma rede da natureza. Você não acha isso
lindo?
— Como animais irracionais? Não! Do pó ao pó e tudo aquilo?
— Tem uma centena de cerimônias pra nos curar, pro mundo onde
vivemo com tantes outres. Ouça. — Luciente apontou para a criança
e o velho, que tinham terminado de colher framboesas. Cantavam
juntos enquanto se preparavam para ir embora:
Obrigado pela fruta.
Pegamo o que precisamo.
Outros animais comerão.
Obrigado pela fruta,
Que carrega a semente.
O que nos dá é doce.
Vida longa e crescimento!
— Aprendemo, quando somo crianças a dizer isso pra todas as
árvores e arbustos que nos alimentam.
Mesmo com o secobarbital, ela não dormiu naquela noite. Na
manhã seguinte, eles viriam pra levá-la ao hospital onde estavam
realizando as operações. A noite que antecede a cadeira elétrica.
Ela encarava a escuridão fina, a luz ligada no fim do corredor na
área da enfermagem, onde o pessoal do turno da noite jogava
cartas. Eles jogavam sempre o mesmo jogo, no qual a enfermeira
da noite era parceira do Stan, o cara, e a assistente da ala feminina
Jean era parceira do auxiliar Chris. A enfermeira e Stan eram dez
anos mais velhos que Jean e Chris, e chamavam o jogo de Lacuna
Geracional. Eles faziam muitas piadas e bebiam cerveja a noite
toda.
Apesar de o jogo ser barulhento, não eram eles que a mantinham
acordada, nem o ronco meio murmurado de Tina na cama ao lado.
Era a manhã seguinte. Amanhã eles colocariam uma máquina no
cérebro dela. Ela era o experimento. Eles iriam violar seu corpo, seu
cérebro, seu eu. Depois disso, ela não poderia mais confiar nos
próprios sentimentos, não seria ela mesma, e sim o monstro
experimental deles, o brinquedinho, como a Alice. Instrumento
deles. Não queria atravessar para Mattapoisett naquela noite, queria
sentir o gosto dos últimos sedimentos da sua identidade antes que a
tirassem dela.
Deitada na penumbra, sentiu a raiva se acumulando nela como um
vento azedo. Não havia o suficiente! Ah, havia coisas o suficiente,
com certeza — comida, roupas para vestir, tudo aquilo. Mas não
havia o suficiente... para fazer. Para curtir. A feiura a tinha cercado,
aprisionado sua vida toda. A feiura dos cortiços, das favelas, do El
Barrio — tanto de El Paso, de Chicago ou Nova Iorque —, os muros
encardidos, as ruas fedidas, o ar poluído, os corredores escuros
cheirando a mijo e fritura velha; a vida, como uma ferida aberta,
tinha macerado suas forças.
Quem quer que fosse dono daquele lugar, daquelas cidades, quem
quer que fosse dono de prédios de escritórios espelhados e
brilhantes no centro, cheios do ronronar do dinheiro surgindo,
daquelas refinarias subindo o rio em Nova Jersey, com as chamas
lambendo o ar; eles não devolviam nada, apenas tiravam e tiravam
e deixavam o lixo deles asfixiando o ar, o rio, o mar. Asfixiando-a.
Uma vida de lixo. Lixo humano. Ela tinha tido pouco mais do que
seu corpo precisava e pouco demais daquilo que sua alma podia
imaginar. Tinha feito pouco nos anos da sua vida, e aquele pouco
tinha sido mal pago ou punido. O resto era lixo.
Quem poderia algum dia pagar o preço pela dor de criar uma
criança na sujeira e na dor? Nunca seria o suficiente. Nada do que
você quisesse dar a ela seria suficiente, nem si própria, o que você
queria ser com ela e por ela. Nada que você quisesse para ela se
concretizaria. Quem poderia pagar o preço por crescer dia após dia,
ano após ano, num cômodo mal iluminado, dançando com as
baratas e olhando para uma rua como um esgoto de morte lenta?
Em toda a sua vida, parecia que ela vinha morrendo, uma célula de
cada vez, uma célula de esperança, de alegria, de amor, pequenas
luzinhas apagando-se uma a uma. Quando o corpo dela se tornar
todo dor, ela morrerá? Morrer e envenenar a terra como uma vítima
de praga, como quilos e quilos de chumbo envenenando o solo.
Do lado de fora, as árvores estavam mudando cedo, por causa da
seca. Os galhos dos pinheiros terminavam em ramos de flores de
agulhas secas e marrons. Elas estavam guardando energia. Os
bordos e os carvalhos mostravam ramos já bronzeados, uma versão
desbotada da cor do outono. O céu era de um azul-amarelado,
como se estivesse cheio de poeira por quilômetros. Perto das nove,
quando a levaram para o hospital, já estava quente para um dia de
setembro.
Eles cortaram o cabelo e rasparam a cabeça dela logo depois de
entrar na outra ala. Valente tinha dito ao dr. Redding que isso irritava
os pacientes. O toque frio da tesoura atingiu sua nuca e sua orelha
como um tremor pesado, um tubarão farejando algo. A cada clique
das lâminas, seus cabelos caíam, acumulando-se como lixo no
chão, prestes a ser varrido e jogado fora. Nenhum arbusto de
amoras ia crescer da poda dos seus cabelos. Eram ricos em
nitrogênio e pobres de outros elementos; Luciente sempre dizia
coisas como aquelas. Mas Luciente não estava com ela naquela
manhã.
Sybil ficou parada à porta vendo ela ir embora, seu rosto se
mexendo enquanto ela tentava não chorar. Na sua mente, podia ver
os cabelos ruivos de Sybil caindo, os longos e belos cabelos de um
vermelho natural, que variava a cada mecha. Muitas vezes ela tinha
penteado os cabelos de Sybil e sempre se surpreendia com o
quanto de amarelo e castanho e bronze e cenoura e amadeirado
havia naqueles cabelos ruivos, um espectro de cores quentes.
Enquanto raspavam sua cabeça, ela tentou pensar em Abelha,
cuja cabeça enorme e bem modelada parecia bonita daquele jeito.
Mas ela não achava que fosse parecer tão forte e elegante após ter
seu cabelo roubado. Ela não tinha tomado café da manhã. Deram
um sedativo forte, mas não a deixaram inconsciente. Tinham dito
que ela não estaria de fato consciente, mas estava. Ela conseguia
ouvir os auxiliares fazendo piadas enquanto a levavam na cadeira
de rodas para a sala de operação.
Ela tinha se preparado para todo tipo de horror. Tudo, exceto o
enfado.
Primeiro, o dr. Redding fez um furo no seu crânio. Não doeu; era
apenas horripilante. Ela conseguia sentir a pressão, sentia o osso
cedendo, ouvia a broca entrando. Então viu pegarem uma agulha
para inserir algo. Ela não entendia o que era, porque não sentia
nada. Pareciam estar esperando aquilo fazer efeito, o que quer que
fosse. Ela esperou também, numa ansiedade de prender o fôlego,
até que captou a referência a uma “solução radiopaca”. Eles a
enchiam de corante enquanto a esvaziavam de vida. A ironia ficou
ali boiando na sua mente penetrada.
Depois eles encaixaram uma máquina em cima dela, que
chamaram de máquina esterotática, e socaram dentro da cabeça
dela três pequenos alfinetes de metal como se ela fosse uma
parede sendo aberta com um abridor de lata. Plec, plec, plec.
Parecia que eles estavam tentando descobrir em que ponto iriam
fixar, como diziam. Ela se sentia tonta e estranha. Estava flutuando
a quilômetros acima do seu corpo indefeso enrolado em lençóis
verdes e toalhas em uma espécie de cadeira de operação, como
uma cadeira chique de dentista. Eles usavam uma máquina de raio
x. Falavam de estruturas-alvo e o dr. Redding se gabou:
— Não mais que meio milímetro de margem de erro.
O terror correu pelas suas veias cheias de medicamento como
uma agulha penetrando o osso que deveria proteger o seu cérebro
frágil e esponjoso. Quanto dela estava acumulado naquele espaço?
Talvez eles pudessem apagar a lembrança de Claud com o balançar
da agulha. O cérebro era tão idiota, não era como o coração
batendo dentro do esterno, alto e sonoro, como uma ave capturada.
Ele se escondia na sua jaula de osso, imaginando estar a salvo.
Ela queria chorar, gritar, mas estava presa em um balão bem
longe, acima do seu crânio, talvez flutuando para fora do buraco que
tinham feito nela, flutuando ali fora acima deles, mais leve que o ar.
Quão pacientes eles eram para gastar tanto do seu valioso tempo
de médico para decidir onde inserir qualquer coisa. Que bom que
não tinham simplesmente usado um grande abridor de latas e tirado
o topo do crânio dela e raspado o cérebro com uma colher. Algumas
pessoas comiam cérebros.
— Você podia comer ele. Frito — ela disse, de repente.
Os olhos de Morgan sobre a máscara se expandiram.
— O que ela disse?
— Alguma coisa sobre comer — o enfermeiro de operação disse.
— Sem dúvida estimulamos um centro de apetite — dr. Redding
disse. — Estamos chegando lá. Quanto mais você cauteriza, mais
envolve as faculdades intelectuais. Não acho que esses pacientes
tenham muito a contribuir nesse quesito. Estamos buscando os
centros de agressão, as emoções primitivas que estão
descontroladas.
Agora eles olhavam para fotografias, como aquelas da Lua tiradas
pelos astronautas. Aquela terra desconhecida e preciosa que era o
cérebro dela. Eles mexiam em uma segunda máquina, igual àquela
que estava acoplada no seu cérebro como um pernilongo prestes a
sugar o sangue, mas de mentira. Ela teria adorado usá-la neles. De
repente, pensou que aqueles homens acreditavam que o sentimento
era uma doença, algo para ser cortado fora como um apêndice
apodrecido. Frios, calculistas, ambiciosos e se achando racionais e
superiores, com um bisturi eles caçavam o animal fêmea agachado,
começando por seu cérebro. Desde tenra idade tinham dito para ela
que o que ela sentia era irreal e não importava. Agora eles estavam
prestes a colocar dentro dela algo que controlaria seus sentimentos
como um termostato.
Tempo... tempo. Sim, a surpresa era o enfado. Ela quase poderia
ter dormido, agachada ali. As máscaras verdes cobriam os rostos
deles, mas ela podia facilmente diferenciar o dr. Redding do dr.
Morgan. Redding era vivaz, controlado e tagarela. Morgan estava
carrancudo de preocupação, e cada um dos seus movimentos era
um procedimento burocrático medido por regras internas ou
externas.
Então um novo objeto foi apresentado, mostrado como um prêmio.
Os enfermeiros se amontoaram para ver o novo brinquedo. Era um
disco de metal gravado em relevo como uma moeda, não maior que
uma moeda de vinte e cinco centavos, com tubos e uma bolsa de
diálise em miniatura. Ela seria um monstro andante com um
pequeno computador dentro dela e um ano de drogas para deixá-la
idiota. A coisa toda cabia na palma da mão e se encaixaria sob o
teto do crânio dela, confortavelmente empoleirado no seu cérebro.
Sua cabeça ficou estranha quando eles colocaram aquilo. Tudo
parecia errado. Talvez fosse ficar tudo bem de novo. Eles estavam
fechando o buraco com cimento; uma medida temporária. Disseram
que queriam monitorar as leituras por um mês ou dois, talvez
quisessem mudar a química do que estava sendo passado para ela
pela bolsa de diálise. Deixaram suas opções em aberto com um
plugue de cimento.
Depois ela teve uma dor de cabeça enorme. Mesmo seus dentes
pareciam doer. Ela não queria se mexer, não se importava com
nada. Deitada no leito com os olhos semicerrados, ela ignorava
pacientes e enfermeiros que passavam pela ala da neurologia.
Depois que a levaram de volta para sua ala, por uma semana ela
permaneceu letárgica e indiferente. Acker veio e conversou com ela.
Ele tentou fazer ela realizar testes e responder perguntas, trouxe as
tabelas dele que ela sempre achara que eram jogos infantis. Por
que deveria responder? Sentiu que estavam esperando que sarasse
para brincar com ela.
Skip, que estava sendo um bom paciente, trazia comida para ela
numa bandeja. De forma educada, ele não olhava para ela, mais
nua do que se tivessem tirado todas as suas roupas.
Tina lia o jornal para ela, tentava iniciar conversas. Sybil vinha e se
sentava paciente, a deixava sozinha e retornava, ansiosa. A voz de
Tina, aguda como uma vespa indignada, parecia-lhe um zumbido.
Ela não podia querer conversar. Ela era uma laranja estragada,
apodrecendo. A única pessoa que ela se importava em observar era
Skip no seu ir e vir, varrendo a ala e realizando pequenos serviços
para os auxiliares e outros pacientes. Estava vestindo roupas da rua
e os cabelos já tinha crescido, curtos e desordenados. Ele
aparentava estar mais novo e mais velho do que era: mais novo na
sua angularidade, na sua nova estranheza; mais velho na
desconfiada falta de expressão em seu rosto. Ela sentia o desejo
dele a todo momento como uma faca que ele carregava escondida,
e ela o invejava por tê-lo mantido. Ponderou, quando conseguia
pensar, sobre como ele tinha preservado o poder da sua força de
vontade escondido dentro de si.
Tinham decidido operar Alice na semana seguinte. Sentiam que
sabiam quais tecidos do cérebro dela iriam coagular agora, onde
fazer um buraco naquilo que era chamado de Alice. Então
removeriam os eletrodos, prometeram, assim como Skip. Estavam
cansados de brincar com Alice, que tinha se tornado taciturna e
passiva. Às vezes, ela dava muitas risadinhas, parecia bêbada,
aparvalhada sentada na beirada do leito. Depois se afundava numa
depressão inexpressiva.
Skip tinha privilégios agora. Ela ia até a cantina e trazia
rosquinhas, pão doce, doces, cigarros para qualquer paciente que
tivesse dinheiro. Os médicos tinham sua própria cafeteira perto da
sala de reunião, e até mesmo alguns pacientes podiam tomar café
de tarde na pequena copa que os funcionários menos importantes
usavam. Dolly tinha vindo visitá-la logo após a operação, mas não a
tinham deixado entrar, então Dolly apenas deixou algum dinheiro
para Connie. Lembrando-se do pedido de Luciente, ela pedia
dinheiro para comprar doces da cantina como os outros, mas
disfarçadamente pedia para Skip não lhe trazer nada. Setenta e
cinco centavos por vez; ela estava acumulando capital para fugir.
Pelo menos esse desejo continuava com ela.
Na quarta-feira, o dr. Redding anunciou com alarde, para que
todos os outros pacientes pudessem ouvir, que Skip tinha ganhado
uma saída no final de semana. Ele podia ir para a casa dos pais da
sexta à noite até domingo à tarde. Ele fez o anúncio com uma
dramaticidade consciente, dizendo que, se Skip provasse que podia
se virar, essa seria a primeira de muitas saídas, o primeiro passo de
volta à sociedade. Eles deveriam todos invejar Skip, e todos
invejaram. Os médicos estavam quase terminando com Skip, a
menos que mais cirurgias se fizessem necessárias, uma pequena
frase que adicionaram.
Skip disse que estava grato e que mostraria para eles que podia
lidar com uma visita para casa. Ele ficou parado ali, não mais
delicado sob seu cabelo tosquiado de soldado, e, olhando Redding
nos olhos, disse como ele seria bom e como era o garotinho curado
e agradecido deles.
Ela sentiu uma pequena fisgada de dor, como se algo tivesse sido
arrancado dela.
Na sexta, enquanto Skip estava se organizando para ir para casa
e esperava seus pais virem buscá-lo, ela se levantou pela primeira
vez desde a cirurgia, exceto pelas idas ao banheiro, e colocou sua
camisola. Tremendo, amarrou um lado da camisola ao outro e
cambaleou até o lado dos homens. Sentou-se na cama do Skip e
esperou a tontura passar. Ela não podia fazer aquilo, mas os
assistentes não tinham aparecido ainda.
Skip olhou para ela com desconfiança, olhos injetados e cansados.
— Olá, monstro — ele disse suavemente.
— Olá, monstro — ela devolveu e sorriu pela primeira vez desde a
operação. — Tem pouco de você e muito de mim.
— Você consegue sentir ela lá dentro?
— Me sinto estragada. Chapada.
— Te admiro por ter tentado fugir, sabe? Queria que tivesse
conseguido.
— Se tiver uma chance, vou tentar de novo — ela disse
suavemente.
— Mas... com essa coisa na sua cabeça, você pode morrer.
— Talvez eu só vá gastar as baterias ou o que quer que a faça
funcionar e ela pare, use todo o produto químico. Conheço um cara,
Otis, que tem um pino de metal no joelho desde o Vietnã.
— Acho que algo no cérebro é mais perigoso... Mas por que não
cair tentando?
— Você vai sair hoje.
Skip fez uma careta.
— Em casa com meus pais amorosos, de volta da fábrica pra onde
me mandaram pra consertar, com garantia. Como quando se tem
defeito e manda consertar. Se está torto, manda endireitar. Se está
bizarro, ferro nele.
— Mas você ainda tem uma força de vontade de lutar contra eles,
eu sinto.
— Eles ganharam uma coisa. Não quero transar com ninguém,
nem amar ninguém. Não sinto amor nenhum. Me sinto um grande
bloco de gelo.
Tony passou assobiando, a viu sentada na cama e entrou. Para
evitar o toque dele, ela se levantou.
— Se cuida, Skip.
— Eu quero me cuidar. — Sorriu sem alegria. Então ele deu um
selinho nela. — Você continua tentando. — Os lábios dele estavam
duros e frios. Envergonhada, ela retribuiu o beijo.
Tony fez barulhos obscenos de beijo.
— Vamos, chega. Sem contato pessoal. Eles te curaram de ser
bicha, mas você é louco de qualquer jeito!
Tão rápido quanto conseguia se mover com suas pernas
atrofiadas, seu corpo amortecido vivendo dias de tempestade, ela se
arrastou pela ala de volta para sua cama.
Domingo à noite Skip ainda não tinha voltado. Na segunda, o
boato corria tão rápido quanto um paciente conseguia sussurrar a
outro. No domingo de manhã cedo, Skip tinha cortado a garganta
com uma faca elétrica na cozinha da casa dos pais. Tinham
escondido as lâminas de barbear, calmantes, a aspirina, mas não
tinham pensado na faca elétrica de carne.
Sybil murmurou para Connie que tinha ouvido que o pai dele tinha
ficado irado com o dr. Redding e o chamado de charlatão. Eles
acharam inaceitável que o hospital mandasse Skip para casa para
se matar na cozinha deles.
Ela se levantou da cama e se moveu cuidadosamente pela ala,
com Sybil a seu lado. Os doutores Redding e Morgan tinham razão,
tinham curado Skip, ela pensou, lutando contra o corredor que se
movia. Antes ele só tinha sido capaz de tentar o suicídio, os gritos
de ajuda gravados no seu corpo. Eles o tinham curado da hesitação,
da indecisão. Eles o tinham ensinado a agir, o valor de uma morte
rápida e limpa.
CAPÍTULO 15
Todo dia, durante uma semana, ela tentou invocar Luciente, sem
sucesso. Uma vez, sentiu que estava escorregando para o outro
futuro, mas recuou com horror. Por que não conseguia chamar
Luciente? Desde que tinham implantado nela a sonda de
microdiálise, ela tinha sido incapaz de alcançar o futuro por si
mesma, o futuro certo, o que ela queria.
Connie estava menos dopada e o tempo passava mais rápido e
vago. Tina foi pega tentando escapulir da ala no carrinho de roupa
suja e colocada na solitária por dois dias. Quando a deixaram sair,
tonta e tremendo por causa da medicação, Connie levantou-se
titubeante e tocou o ombro dela.
— Que pena que você não conseguiu — ela murmurou. — Tente
de novo.
— Só tenho quatro dias. Me marcaram pra segunda.
No saguão bege e laranja dos pacientes, Alice estava sentada em
frente à tv, sorrindo de um modo indolente. Ela assistia a qualquer
coisa que se mexesse na frente dela. Connie achou que, se fosse
devagarinho e desligasse o aparelho, Alice seguiria assistindo a tela
vazia com o mesmo sorriso vazio. Os funcionários diziam a ela que
seria liberada logo, mas estavam com medo por causa do que
acontecera com Skip. Alice comia bastante. Não começava a comer
até que o auxiliar a fizesse começar, mas então comia tudo de forma
metódica. Estava ganhando peso.
Na segunda-feira seguinte, depois que levaram o Capitão Creme e
Tina para serem implantados, ela se jogou na cama e se lançou na
direção de Luciente, sem se importar como. A viagem foi turbulenta.
Por alguns instantes, a ala se apagou e ainda assim ela não chegou
ao futuro. Desmaiou. Foi mais como um desmaio do que ter
adormecido. Mas por fim estava ali com as mãos de Luciente em
seus ombros em uma pequena clareira. Afloramentos de rochas
cinza-esverdeadas. Agulhas de pinheiros por todo lado, voando
contra as pedras. Luciente usava um uniforme que era um macacão
verde e marrom.
— Onde a gente está?
— Perto do front — Luciente falou. — Viemo pro norte.
— Era por isso que eu não conseguia te alcançar?
— Comunir tem sido mais difícil. Alguma coisa está interferindo.
Provavelmente estática? Vetores temporais só foram
compreendidos de forma primitiva... Tentei te alcançar antes de
embarcarmo, mas desde então tenho sofrido interferência.
— Cadê seu cognescedor? — Ela encarou a faixa descolorida na
pele bronzeada do antebraço de Luciente.
— Lá no ponto de encontro. Tiramo eles por medo de usar sem
pensar. Podem nos localizar pela nossa frequência. Usamo isso pra
localicomunicar. — Luciente tocou um pequeno ovo numa redinha
ao redor do pescoço. — Euzinhe devo confessar, me sinto pelade
sem meu cognescedor. É parte do meu corpo. Só tiro pra casalar ou
dormir.
— Mas e se você perdesse ele?
— Perderia dois terços da minha memória... Malmequer em
Treefrog teve um acidente no qual o braço esquerdo e o
cognescedor foram destruídos. O braço a gente conseguiu
restaurar, mas não o cognescedor. Malmequer se matou... Para
algumas pessoas, é só uma conveniência. Para outras, é parte da
psique delas.
Abelha veio marchando por uma trilha na direção deles,
carregando uns equipamentos nas costas. Ele parecia maior que
nunca ali, e estranhamente alerta. O sorriso ainda era sinal de uma
calma luxuosa e uma energia ensolarada.
— Bualuz, Pimenta e Sal. Esqueci de dizer da última vez que acho
que você deveria trocar aquela peruca por um porco-espinho.
— Está começando a crescer o cabelo. Meio que coça. — Num
impulso, Connie tirou a peruca castanho-avermelhada e mostrou
seu cabelo ralo. Ela podia sentir um pedaço sem cabelo onde ficava
a tampa de cimento, mas o resto do couro cabeludo tinha cabelo
espetado crescendo.
Tanto Abelha quanto Luciente riram sem malícia e a acariciaram,
exclamando quão duros e ouriçados estavam aqueles cabelos de
dois centímetros. Ela não se importava com a brincadeira deles,
porque era cheia de afeição e, além disso, ela sabia o quão
engraçado estava. Nessa ala havia um espelho de verdade no
banheiro.
Abelha passou o dedo pela tampa de cimento.
— Isso não parece bom. O que eles colocaram aí?
— Uma coisa pra me controlar. Uma máquina.
Abelha ficou abalado e triste, com a mesma expressão do começo
do velório de Lebre.
— Estamo todes em guerra. Você é une prisioneire de guerra. Que
você consiga se libertar. — Gentilmente, ele a abraçou.
Ela deu uma breve risada, se desvencilhando.
— Como eu conseguiria isso?
— Posso te dar táticas? — Abelha virou-a para si, segurando-a
pelo queixo. — Sempre há alguma coisa que você pode negar a
quem te oprime, mesmo que seja sua obediência. Sua crença. Sua
cooperação. Geralmente, mesmo com poderes altamente desiguais,
você pode encontrar ou forçar uma abertura para revidar. No seu
tempo, muitas pessoas sem poder encontraram formas de lutar, até
que isso se tornou um poder.
— Mas vocês ainda estão lutando. Não acabou ainda!
— Como pode acabar? — Luciente fez um aceno. — Talvez na
época que o sol virar supernova. No Big Bang. O que mais? A gente
renova, regenera. Ou morre.
— Mas vocês não parecem realmente acreditar em mais; não tem
mais pessoas, mais coisas, nem mesmo mais dinheiro.
Luciente se apoiou num pinheiro, seus dedos brincando com a
casca sulcada.
— Um dia a recuperação vai acontecer. Os oceanos vão estar
equilibrados, os rios fluirão limpos, os pantanais e as florestas vão
esplendorar. Não vai mais haver inimigues. Sem Nós e Elus. Vamo
discutir alegremente une com outres sobre assuntos importantes
das ideias e das artes. Os vestígios do jeito antigo vão se apagar.
Posso não conhecer esse tempo, da mesma forma que você não
consegue conhecer a gente de fato. Só podemo saber o que
podemo de fato imaginar. Afinal, o que a gente vê vem da gente
mesmo.
— Você acha que eu não conheço vocês, Luciente?
— Veja, como povo. Quis dizer que você não consegue
compreender completamente nossa sociedade, da mesma forma
que eu não consigo compreender uma de cem anos além de nós.
Que tipo de novas artes nossas tatara-tataracrianças vão inventar?
Que velhas artes vão descobrir? Que instrumentos musicais vão
construir? Que jogos? Que intraconhecimentos? Quais novas
comidas e estilos de cozinhar? Que ciências que nem podemo
imaginar? Que novas formas de cura? Vão velejar ao longe na
nossa galáxia? Viajar em substratos microscópicos? Quando todas
as regiões se autoalimentarem, quando as reparações estiverem
completas, então o quê? Às vezes... às vezes quero viver pra
sempre! — Luciente atirou a cabeça para trás. — Mas sei que vou
encontrar minha morte ao amadurecer. Quero deitar meu corpo,
sem ajuda, e terminar tudo. Mas agora, gostaria de viajar adiante
pra esse futuro, como você viajou até nós. Sei que não tem muito
um porquê disso; o agora já nos basta. Ainda assim, estou muito
contente de ter te conhecido, Connie.
Um zumbido alto e estranho veio pelo ar, cada vez mais perto.
Abelha e Luciente congelaram, então fizeram gestos para ela e
começaram a correr rapidamente na direção na qual Abelha tinha
acabado de vir.
— Rápido! Corre! — Luciente vociferou por cima do ombro. Abelha
ficou para trás, tentando ajudá-la a se apressar enquanto corriam.
O guincho penetrante começou a ficar mais alto a cada instante.
Parecia passar pelos ouvidos dela e ficar rodando em seu crânio.
Uma dor como uma broca ressoava em sua espinha. A dor não mais
parecia entrar pelos seus ouvidos; os ossos dela pareciam vibrar
numa frequência alta demais para ela aguentar. Ela era um
diapasão tremendo de dor.
— Corre, Connie! Corre! — Abelha insistia. — Varreduras sônicas
matam. Os refletores estão sobre a ponte. Corre!
Ela tentou acompanhá-los, mas não conseguia correr tão rápido.
Arfante, com as ancas doendo, foi ficando mais e mais para trás.
Eles pararam para esperar Luciente voltar e arrastá-la. A
intensidade da broca que gritava a fez tremer. Ela sucumbiu ao
chão, agarrando a cabeça.
— Continua! Se salva!
— Ali. As pálpebras dela mexeram. Ela está acordando!
Ela abriu os olhos. A enfermeira estava em cima dela. Um auxiliar
saiu correndo para dar o recado.
— O que você estava tentando dizer quando acordou? — A
enfermeira Roditis chegou mais perto. — Alguma coisa sobre
continuar.
— Eu não sei. — Fechou os olhos.
— Você estava alucinando?
— Ela não tem um histórico de alucinações. — Acker estava por
perto, aos pés da cama dela.
— Aquela injeção funcionou. O dr. Morgan vai ficar contente. Mas
não sei o que eles vão fazer se isso continuar acontecendo. — A
enfermeira Roditis tinha um tom desconfiado e sentencioso. Ela
fazia muitos tsc-tsc com a boca enquanto arrumava as cobertas
sobre Connie.
Luciente agarrou o braço dela, puxando-a para baixo em uma
trincheira. Estava atrás de umas telas que pareciam decorativas e
pequenos equipamentos, alguns parecidos com os que Abelha
carregava nas costas, e o chão havia sido escavado até a rocha. Os
amigos dela estavam ocupando uma colina baixa perto de um
riacho.
— Defletores e refletores — Luciente explicou, séria. — Fique
abaixada! Eles vão atacar nossa linha.
— Onde está todo mundo?
— Estamo no flanco direito. A linha se curva à esquerda, daqui até
o rio.
Lontra estava em posição de agachamento num abrigo perto de
Connie, examinando uma folha brilhante caída de um dos bordos
que cresciam ao longo do curso d’água. Havia pinheiros atrás deles
e uma fileira de bordos na frente. Suas folhas vermelhas e douradas
estavam começando a cair aos montes pelas margens, e eram
carregadas pela corrente pedregosa, se juntando em poças e
redemoinhos de retalhos de cores.
— Como isso te emociona? — Lontra perguntou e leu:
— Uma folha
Espalmada e dourada em fulvo
Caiu aos meus pés
E, frágil como as asas de uma mariposa morta,
Se partiu.
Ela olhou confusa para Lontra, que vestia o mesmo macacão
sarapintado e tinha o cabelo separado em duas tranças. Do nariz
largo aos olhos apertados e brilhantes, parecia estar orgulhosa de
si. Connie perguntou:
— Isso é uma mensagem em código?
— Código? É um poema, uma quintilha. Você não gostou?
— Mas... como você consegue escrever poemas sobre folhas
agora?!
As sobrancelhas de Lontra se levantaram.
— Como não? Estamo perto da morte. Então é natural escrever
poemas, não? E caímo como folhas...
— Lá vêm eles — Luciente disse calmamente, e todos ficaram em
posição de alerta com suas armas.
O chão tremeu violentamente aos seus pés, ainda que ela não
ouvisse explosão nenhuma. De fato, nada parecia causar o que
estava acontecendo, mas o chão tremeu de novo e ela ficou
nauseada. Novamente o chão tremeu e uma árvore rachou e caiu
na frente deles. Outras árvores caíram, e uma rocha rolou uns 15
metros e se alojou numa pequena piscina natural. Pinhas caíam
sobre eles enquanto os pássaros revoavam aterrorizados, os gaios
berrando “patife, patife” ao fugirem. Do lado direito, alguém gritou.
Então ela viu o inimigo chegando: figuras altas e completamente
envolvidas em uniformes metálicos, retinindo com o metal pesado e
usando capacetes que escondiam seus rostos. Eles espreitavam
entre as árvores, pedras e arbustos do outro lado do riacho.
— Não atirem — Luciente sussurrou.
Ela percebeu que estava segurando algo parecido com uma arma,
apesar de mexê-la apenas com o olhar fixo em uma mira. Ela
praticou os movimentos de forma nervosa. A arma respondia rápido,
mas ela não conseguia entender direito como parar aquilo. Era para
Connie travar a mira em posição antes de desviar os olhos do alvo,
mas ela ficava parando de olhar quando era tarde demais.
Mais e mais figuras de metal revoavam atabalhoadas pelas
árvores, se preparando para atacar com força ao atravessarem a
água.
— Não atirem — Luciente sussurrou novamente, de forma
empática. — Peguem quem passar do curso d’água. — Então ela
acrescentou em um tom de oração: — Me perdoem se estão com
vida e eu mato.
Abelha e Lontra murmuraram uma oração similar, antes que Lontra
sussurrasse:
— Você acha que alguma dessas coisas são pessoas?
As tropas estavam se reunindo nas árvores mais distantes,
preparando-se para saírem dos esconderijos. Muitos mais se
posicionaram. Finalmente caminharam tinindo, correndo
confusamente em ondas pelos taludes rasos para saltar o pequeno
riacho. Vinham silenciosamente, exceto pelo barulho metálico de
seus trajes. Não faziam gritaria nem algazarra.
De repente, ela estava de pé na sala do apartamento onde tinha
vivido com Martín. Calor. O suor corria pelas costas e se acumulava
sob seus seios. O ar estava tão espesso e sulfuroso que ela
começou a tossir. Estava com muito medo, o estômago doía. Por
quê? Martín estava ali embaixo, em algum lugar. Sim, na rua, ele
estava usando carros revirados como barricada, atirando pedras e
garrafas na polícia. O batalhão de choque da polícia, armado com
rifles, pistolas e revólveres e granadas de gás e bombas de efeito
moral. Vinham retinindo rua abaixo, em movimentos duros e
repetitivos. As vozes deles rebatiam nas casas e estavam cheias de
alegria furiosa:
— Pretos e latinos filhos da puta e cuzões!
Ela ficou de pé à janela, observando, abraçada ao próprio corpo e
ao vestido florido de verão. Martín estava lá fora em algum lugar,
gritando desamparado, com raiva e prestes a ser morto, enquanto a
polícia atirava num garoto de catorze anos que eles acusavam de
ter roubado um carro, o que havia começado essa confusão toda.
Então um dos policiais se virou e, vendo-a na janela, levantou a
arma e atirou na sua direção. A vidraça quebrou, espalhando cacos
do lado de dentro. Ela gritou aterrorizada e se jogou no chão, indo
se juntar a eles. Por dois dias ficou retirando pedaços de vidro que
haviam se alojado em seu braço. Mas ele tinha errado. Também
tinham errado o Martín daquela vez.
— Acho que ela está acordando, doutor.
— Patty, você conseguiu falar com o Redding?
— Doutor, a secretária dele falou que ele está a caminho.
— Se perdermos essa implantada, a coisa vai ficar feia — o doutor
Morgan resmungou. — Quando ela disse que ele tinha saído?
— Dez minutos atrás, doutor.
— Ela disse se ele estava vindo direto para cá?
— Ela não disse, doutor.
— E você não perguntou — ele disse com uma satisfação azeda,
contente por achar alguém para culpar por algo. — E o dr. Argent?
— Não consegui contato com ele, doutor. Ele foi palestrante
convidado na aula de patologia do dr. Sanderman agora de manhã.
A secretária dele acredita que vai estar no consultório por volta das
onze e meia.
— Ela acredita?! Por que ela não se mexe até lá e dá a ele a
mensagem? Ligue para ela de novo e mande que se avie. Ela
conseguirá falar com ele assim que terminar a palestra. Essas
mulheres são preguiçosas demais para saírem de suas cadeiras e
pararem de passar pó no nariz. Mande ela entregar em mãos essa
mensagem pro Argent.
A enfermeira Roditis pigarreou.
— Doutor, devo providenciar uma sala de operações na unidade
do centro?
— Isso é uma decisão do Redding... Cadê ele? Aposto que deve
estar tomando cafezinho com alguma estudante. Ele toma café o dia
todo, é um milagre médico que ainda tenha rins. Tomo litros quando
estou perto dele. Se eu tentar acompanhar, vou ficar com úlceras
como as dele. Onde diabos ele está?
— Se quiser mesmo operar, ela tomou café da manhã, mas não
comeu nada desde então. — A enfermeira Roditis colocou o
termômetro debaixo da língua de Connie. — Olha, melhor você não
morder, seja uma boa menina.
Gavião agarrou os controles do flutuador. Uma Luciente agachada
se equilibrava sob a arma dianteira e Connie estava na parte de trás
com outra arma, montada para que pudesse girar cento e oitenta
graus em qualquer plano.
Gavião fazia o flutuador subir de forma abrupta. Estavam acima do
mar, com nuvens cinzas bem abaixo, como as escamas de um
enorme peixe. O céu estava encoberto; o dorso fofo das nuvens
pendia acima delas. Elas flutuavam logo abaixo, desviando dos
amontoados de brumas. O flutuador sacudia como cortiça nas
marés do ar, e Connie se sentiu um pouco indisposta. Gavião estava
contente nos controles, cantando algo que Connie se lembrava de
ter ouvido antes, sim, na noite do banquete. Ela estava caminhando
com Abelha, os braços dele a envolvendo. De repente, sua pele se
lembrou da mão grande e quente dele, o dedão tocando levemente
o seio dela por cima do frívoli. “Como alguém pode cantar sobre luta
numa noite como esta?”. Ele tinha respondido que, numa noite
como aquela, as pessoas morriam lutando, como em qualquer outra.
Como é bom lutar ao seu lado
Amigue de nossa mesa longa,
Mãe da minha criança.
Gavião trinava com sua voz fina e aguda, e o flutuador balançava,
mergulhava e subia enquanto o estômago de Connie tremia e
embrulhava. Gaivotas passavam por baixo delas. A neblina se
adensava no horizonte. Nada era visível além das nuvens e algum
flutuador que vez ou outra entrava ou saía das nuvens, como se
fosse um mar invertido de ar espesso e cinza.
Um exército de amantes não pode perder,
Um exército de amantes não pode perder!
Gavião trinava com sua voz esganiçada de soprano, alegre na
cabine fechada, e manobrava o flutuador para dentro de uma nuvem
que se derretia ao redor deles, apagando o mundo até que tudo
fosse apenas um algodão cinza fofo e ela não conseguisse mais
discernir onde era em cima ou embaixo. Connie ficou tonta e
agarrou mais as alavancas que controlavam sua arma lustrosa.
Luciente sorriu, olhando para trás.
— Não comece a atirar nas nuvens, docinho. Relaxa! Aproveite o
passeio. Eba!
— Aproveitar? Meu estômago já está na boca! Temos mesmo que
voar assim de ponta-cabeça?
— Somo como gaivotas, batendo as asas — Gavião gritou. —
Como você consegue não gostar de voar?
— Você se mudou essa semana, Gavião? — Luciente interrompeu
na hora certa.
— Dei meu lugar antigo pra Papoula. É entamanhado pra crianças,
a cama e as cadeiras são pequenas. Papoula estava esperando por
espaço por doismês. Estava planejado ir pro conselho pra virar
prédio de suprimentos se nada tivesse quebrado. Mas estou
pegando o espaço de Lebre, e Papoula pode pegar o meu.
Ela moveu o flutuador, virando num ângulo de noventa graus e
planando pelo espaço vazio — um desfiladeiro que dava no mar —
em direção a uma massa macia de nada.
— Meu espaço antigo é ótimo pra uma criança. Papoula está com
dez anos. Perto da casa das crianças então dá pra correr pra lá
quando quiser, se não quer passar a noite sozinhe às vezes. Mas o
pouso de flutuador é mais à mão para onde estou mudando. Amo o
som da água. Me desculpa! Sei como é. Sinto muito mesmo — ela
falou atrapalhadamente para Luciente.
— Hoje continuamo a luta de Lebre. — Luciente se ocupou com as
armas; estava operando a tralhadora e Connie, na traseira, o
scanner.
— Se sobrevivermo — Luciente disse, quebrando o silêncio depois
de uns cinco minutos —, você já lucidou o que vai fazer agora que
adultizou? Abelha disse que você está sonhando em viajar. Vai virar
aprendiz de alguém?
— Prefiro trabalhar com flutuadores do que qualquer outra coisa.
Mas quero viajar um pouco. Nunca pulei mais longe que o alto da
baía. Relâmpago e eu, a gente tem matutado sair por aí, depois que
a atual fase da guerra acabar, é claro.
— Como vocês vão saber que acabou? — Connie perguntou. —
Acham que vão ganhar logo?
— Ganhar? Isso acontece em surtos. — Luciente fez uma careta
olhando para trás. — Como manchas solares.
— Pensamo em ir pro sul. Acho que teremo algumas habilidades
úteis pra trocar e podemo sempre bracejar em qualquer trabalho
temporário. Relâmpago é polinizadore hábil. Sou mecânique
iniciante razoável. Não quero sair por aí pra sempre, como
caminhante qualquer, sem família, sem base. Nunca conseguiria
voar. Mas quero ver o que rola antes.
— Quarenta graus a nordeste — soou a voz de Luciente, precisa.
— Sessenta metros abaixo da nossa elevação atual. Combate
aéreo. Estou contando oito objetos.
Gavião cabrou a aeronave, então deu uns solavancos em meio à
maciez cinzenta das nuvens na direção que Connie acreditava ser o
nordeste. A velocidade aumentou a ponto de ela se sentir enjoada e
assustada novamente. Durante a conversa, tinha esquecido sua
ansiedade. Nenhuma delas falava agora. Gavião fazia muitas
manobras e Luciente conferia sua arma. Então ela tirou o cinto, foi
até um mostrador no teto para fazer alguns ajustes no lança-raios.
Daí voltou a colocar o cinto e rapidamente leu a posição delas nos
instrumentos.
— Quase lá — ela disse suavemente, apesar de que ninguém lá
fora pudesse ouvi-las pelas paredes da cabine. — Sistemas de
segurança desativados. Vamo acabar com tudo!
O flutuador sacolejou para fora das nuvens direto para o combate.
Quatro dos flutuadores eram decorados como todas as máquinas
em Mattapoisett. Os outros cinco (nove, não, oito, ela contou) eram
de cor cáqui e menores. Os motores deles eram barulhentos e
deixavam um rastro de poluição escura ao passarem.
Gavião as levou bem para o meio da confusão. O barulho era
ensurdecedor, e Connie se agarrou ao lança-raios. Quando viu um
dos flutuadores cáqui chegando perto, atirou com sua arma e torceu
para ter acertado. Uma explosão de luz serpenteou. Gavião as fazia
girar, subindo, mergulhando, virando de ponta cabeça e dando giros,
e parava quando Connie já não fazia ideia do que era para cima ou
para baixo. Um flutuador caiu no mar, em chamas, mas ela não
conseguiu ver qual deles era. Eram rápidos, altamente manobráveis.
Parecia uma competição de beija-flores, uma panapaná de libélulas
cintilando e zumbindo, virando para cima e para os lados com suas
terríveis garras e dentes. Os flutuadores eram lindos, mesmo em
combate mortal. As barrigas veludosas e macias das nuvens
invadiam a luta. As escamas cinzas da superfície do mar
inclinavam-se e refletiam a luz. Às vezes, Gavião voava tão baixo
que Connie conseguia ver a espuma da crista das ondas, com a
mancha se espalhando por onde o flutuador havia descido.
“Levada à morte por uma criança de doze anos de idade”, ela
pensou. Entre as nuvens e o mar vasto, passando rente a uma
nuvem de neblina, ela se sentiu minúscula. Eles haviam se
encolhido ao tamanho de insetos, pareciam mosquitos e pernilongos
girando no ar. Então olhou para Luciente e o senso de tamanho e
proporção voltou ao normal.
Com uma bandana vermelha amarrada na cabeça para impedir
que seus cabelos bagunçados caíssem nos olhos, Luciente estava
calma e alegre na tralhadora. Ela dominava as voltas e reviravoltas,
o sobe e desce do flutuador com um prazer aparente, como se
estivesse cavalgando em um cavalo espirituoso. O corpo dela se
movia com facilidade, não estava congelado pelo pânico como o de
Connie, num esforço fútil de manter algum ponto de referência de
alto e baixo. Luciente gingava e rolava, constantemente ajustando
sua mira.
Gavião as levou para baixo, para o centro da batalha novamente.
Outro flutuador passou por elas, quebrado, em chamas. Dessa vez,
ela conseguiu ver que era uma das máquinas cáqui. Tentou contar
as aeronaves quando chegaram perto. Talvez houvesse uma a
menos de cada lado.
Então estavam carenando para dentro e para fora entre os
flutuadores, soltando raios múltiplos. Ela mirava e atirava e tentava
não se perder nas voltas e reviravoltas. De repente, um dos
flutuadores cáqui veio seco em direção a elas, por trás, como se
quisesse se chocar. Assim que chegou perto, a uma distância de
uma ala, o inimigo se virou abruptamente e ficou ali parado como
um enorme mosquito, a tralhadora preparada para atirar enquanto
ela mirava e atirava. Connie conseguiu ver de relance claramente o
inimigo por um vidro redondo: os óculos grossos, o nariz aquilino, o
olhar azulado, satisfeito e cintilante do dr. Redding, tão vivaz e
eficiente atirando com sua tralhadora.
Quando os tiros se encontraram no ar, o vento pareceu se curvar e
o tempo parou, amontoando-se em uma onda prestes a se quebrar.
Ela viu que o piloto do flutuador inimigo era o pastoso dr. Morgan,
agarrado aos controles com seus punhos brancos enquanto
secretamente molhava os lábios. Mexendo-se no banco traseiro,
tentando de modo inútil fazer o lança-raios funcionar, o meticuloso
dr. Argent brilhava, balançando seu cabelo grisalho, vestindo um
fraque, elegante até o cravo vermelho na lapela.
Ela olhou em volta e viu todos os flutuadores inimigos convergindo
deliberadamente na direção deles como se tivessem sido
convocados para esse ataque. No momento em que olhou
atentamente para a direita e para a esquerda, notou que eram
pilotados e manejados pelo juiz Kerrigan, que havia lhe tirado a filha,
pelas assistentes sociais srta. Kronenberg, pela sra. Polcari, pelo
Acker e a srta. Moynihan, por todos os agentes da assistência social
e os médicos e os senhorios e policiais, os psiquiatras e juízes e os
orientadores do conselho tutelar, os informantes e os atendentes e
os enfermeiros, os defensores públicos sugerindo transações, as
enfermeiras-chefes e os técnicos de eeg, e todos os outros
espertalhões do poder que a empurraram de um lado para o outro e
a desestimularam e a trancafiaram e a medicaram e a sedaram e a
puniram e a condenaram. Eles se aproximavam, armas atirando.
Então o ar explodiu em chamas douradas e vermelhas e ela ouviu o
dr. Redding gritar:
— Bem no botão. Isso serve. Certo, leve-a para a ambulância.
Ela foi levada às pressas ao hospital universitário no sul e a
sedaram para a operação. Rasparam a cabeça mais uma vez,
retirando o pouco cabelo que havia nascido, e de novo ela estava
careca como uma cebola.
A operação levou menos de metade do tempo da anterior. Eles
removeram a sonda de microdiálise completamente e fecharam a
ferida com o cimento de dentista. Por um momento, pareceu que
iam deixá-la em paz, mas ela podia sentir que seus planos para ela
ainda não tinham acabado.
Dois dias depois, Connie estava de volta à ala, sua cabeça
raspada envolta em ataduras, mas a máquina maligna estava fora
do seu corpo e da sua alma. Ela mentalizou agradecimentos a
Luciente, se ela ainda estivesse viva. Será que tinha morrido
naquele flutuador em chamas? Mas a cena não fazia muito sentido.
Sua cabeça doía e era difícil se lembrar com exatidão.
Mas ela sabia algo novo. A guerra acontecia fora do seu corpo
agora, fora do seu crânio, mas o inimigo iria pressioná-la e violar
suas fronteiras novamente assim que eles decidissem seus
próximos movimentos. Ela ainda estava em guerra.
Connie lutou para mostrar um bom comportamento como paciente.
Ela cooperou, sorriu e brincou com os funcionários. Fingiu ser a
paciente educada, disposta e humilde do jeito que conseguisse,
porque queria que aquela maldita máquina ficasse fora da sua
cabeça.
— Acho mesmo que me ajudou — ela mentia descaradamente
para Acker. — Me sinto muito mais calma. Aqueles apagões me
assustaram.
— Bem, aquilo não vai acontecer de novo. Tentamos essa forma
de tratamento, mas estamos prontos a mudar para uma melhor, no
caso de o primeiro apresentar alguns efeitos colaterais — Acker
disse com afetação, fingindo ser médico para a srta. Moynihan, ao
lado dele. — Às vezes um paciente apresenta alergia à penicilina e
temos que usar outro antibiótico. Da mesma forma, você provou ser,
vamos dizer, alérgica à sonda de microdiálise... — Ele se
interrompeu quando viu o dr. Redding parado à porta com as
sobrancelhas arqueadas.
— Alérgica, é? — ele disse. — Qual é nosso problema nesta
manhã?
— Me sinto bem — Connie disse desesperada. — Nunca me senti
melhor!
Redding colocou a caneca de café fumegante na mesa, olhou para
os olhos de Connie e a cutucou.
— Há evidências de que a estimulação de pontos nas amídalas
pode produzir resultados — ele murmurou. — Ainda assim...
provavelmente temporários.
Connie se levantou assim que eles saíram e se sentou na sala
comum, pronta para começar a conversar com qualquer um que
parasse ali. Ela penteou a peruca e arrumou as roupas. Comia sua
comida, se interessava, conversava com os funcionários com
educação e deferência. Sentava-se com Tina, cuja cabeça não
parava de doer. Ela segurava a pequena mão flácida e morena da
Tina, cheia de cicatrizes e calos, a ponta de um dedo faltando. Tina
se levantou e disse meio grogue que tinha perdido aquele pedaço
numa fábrica de caixas. Ela era funcionária temporária, então não
tinha ganhado nenhuma compensação por aquilo; em vez disso,
tinha sido demitida.
— Ah, como minha cabeça dói. Fala pra eles me darem alguma
coisa! Vai lá e pede pra eles.
A equipe estava aliviada de ver Connie de pé novamente; ela dava
mais trabalho quando estava retraída. Agora ela se cuidava e se
voluntariava quando podia. Eles finalmente deram morfina ou algo
assim para Tina, deixando que ela voasse para o céu dos dopados,
aquele lugar alto e silencioso no qual ela já tinha ido por vezes
demais quando estava ferida e derrotada. Então a Tina foi retirada
dali como se estivesse morta.
— Você está bem melhor — a enfermeira Roditis disse em sinal de
aprovação para Connie, e soltou um sorriso. — Agora você quer
ficar melhor.
— Ah, sim. — Ela forçou um sorriso amarelo. — Quero melhorar
agora. — “Guerra”, ela pensou. “Estou em guerra. Sem mais
fantasias, sem mais esperanças. Guerra”.
CAPÍTULO 18
...
...
...
...
— Você é muito lerda — Adele reclamou. — A minha diarista
termina isso em quarenta e cinco minutos.
— É o remédio. Me deixa lerda. Eles me deram uma dose grande
então fica difícil me mexer.
— Parece que você se move bem rápido quando é hora de comer.
— Adele estava consultando uma lista. Ela tinha listas para todo
lado, listas de compras, da lavanderia, de coisas para fazer, de
pessoas para ligar. A manhã toda, enquanto Connie estava
limpando a casa e fazendo sobremesas usando os livros de receitas
que Adele dava para ela, não confiando que ela saberia fazer por si
mesma, Adele estava escrevendo umas listas na escrivaninha que
tinha em um lado da cozinha. Cada lista dava mais trabalho. Connie
segurava a alça do aspirador de pó até a mão doer e respirava
fundo e não se permitia um ai de reclamação. Ela varreu o carpete
amarelo enquanto os peixinhos tropicais que Luis sempre tivera
nadavam para lá e para cá na sua prisão de vidro na sala de estar,
ouvindo apenas o barulho do motor do filtro.
O café da manhã tinha sido bacon com ovos e torrada com geleia
de morango e muito café da cafeteira azul e branca. Durante a
manhã, toda chance que ela tinha de dar uma escapada e tomar
café ela ia. Como se sentia maravilhosa! O almoço era o outro ponto
alto. Adele estava falando ao telefone e disse a ela que podia se
servir dos restos. Primeiro, Connie fez um sanduíche de salame
com queijo e uma caneca de café, doce e fraco, como ela gostava.
Ela esquentava o leite primeiro. Depois, comeu mais salame e
queijo sem pão, para não ficar satisfeita rápido demais.
Cada vez que ela abria a porta para aquele paraíso de
possibilidades douradas, era atacada pela escolha. Decidir-se era
tão difícil que ela mal conseguia mover a mão. Queria chorar de
alegria. Ela ia e voltava da geladeira até a mesa, carregando cada
hora um tesouro, um pedaço que sobrara de torta de maçã, mais
queijo branco e azul, como a cafeteira, com um cheiro bem forte,
uma deliciosa maçã dourada, um pote de salpicão. Finalmente,
Adele veio andando, depois de cinco telefonemas, e disse:
— Não é possível que você ainda está almoçando! Fala sério! O
Lew disse que você vinha me ajudar, e eu tenho que ficar te
vigiando como se você fosse uma diarista contratada.
Connie colocou o peru para assar de acordo com um recorte de
receita que Adele tinha tirado daquelas revistas baratas para
mulheres, depois de o ter recheado com um mix de nozes, fubá,
cogumelos, pimentões verdes e passas. Adele a tinha feito cobrir a
pobre ave com papel alumínio, mesmo que Connie soubesse que
iria estragar o cozimento e cozinhar a pele da ave no vapor. Ela
obedeceu. Ela se sentia inchada de comida. Sua percepção do
tempo estava alterada por aquele café todo. O mundo parecia ter
reduzido a velocidade enquanto ela acelerava. Na ala, as horas
passavam e ela nunca sabia para onde tinham ido. Agora era como
se ela estivesse correndo e, quando olhava para o relógio, uma hora
depois, apenas quinze minutos haviam se passado. O remédio e a
cafeína batalhavam dentro dela, e ela se sentia chapada e
acelerada.
Batatas-doces em calda numa lata! Como se ela não soubesse a
forma certa de cozinhar batata-doce. Eddie adorava o inhame dela.
Ela se lembrou de quando tinha falado para Luciente que, com um
pouco de dinheiro e uma cozinha decente, era uma boa cozinheira.
De quantas formas ela tinha aprendido a cozinhar na vida:
mexicana, porto-riquenha, afro-americana do sul, e o que o
professor Silvester chamava de cozinha continental. Tudo comida
boa. Ela desejou que estivesse cozinhando um banquete para
Luciente e Abelha, então fingiu que estava fazendo um jantar de
Ação de Graças para a família toda de Luciente, e para Sybil e Tina
também. Eles iriam se reunir todos e se sentar para comer juntos, e
beberiam vinho e fariam piadas e talvez ela iria, de forma educada
por causa do feriado, mas com vontade, beijar Abelha uma última
vez. Então seria ela a advertir Luciente de que a comida não era
nutritiva, não era real fora do tempo dela!
Ela e Adele colocaram todos os extensores na mesa de jantar,
deixando-a bem longa, e então a cobriram com toalhas de mesa
com tema de neve e colocaram os pratos de porcelana e as baixelas
de prata e salvas prateadas para os pães e baguetes e taças de
cristal, exceto para as crianças pequenas, que ganharam copos
tingidos de um vermelho forte para o leite deles. Luis veio abrir o
vinho ele mesmo, com grande esforço, um espumante rosé.
Depois, Luis se sentou na cabeceira da mesa, numa cadeira com
braços, cortando o peru enorme com uma faca elétrica que ele
agitava ferozmente. O estranho recheio ele já tinha empilhado em
uma tigela grande. À sua esquerda e direita estavam Mark e Bob,
filhos do seu segundo casamento. Do lado do Bob, Dolly estava
vestida com uma calça verde jade que combinava com uma linda
blusa de babados de chiffon, que estava tão justa nela que parecia
que sua cabeça iria cair. O nervosismo tiquetaqueava na garganta
de Connie como uma bomba. De forma delicada, ela comeu
azeitonas que estavam em um prato de vidro. Nem a Shirley nem a
Carmel estavam lá, claro, pois cada uma tinha seus próprios planos.
Luis gostava exigir a presença de todas as crianças na Ação de
Graças, Natal e Páscoa, e tinha o dinheiro para fazer valer essa
exigência. Mas Nita não estava ali. Carmel tinha insistido que ela
estava doente demais para ir. Então vinha Celeste, filha de oito anos
de Adele do primeiro casamento, Connie e a neném Susan no
cadeirão dela, ladeada por Adele e o pequeno Mike do outro lado.
Luis, cheio de prazer, comandava tudo por sobre seu prato cheio e
verificava o jantar de todo mundo.
— Mark, pegue mais batata. É por isso que você anda tão magro.
Fica fraco assim. Por isso não entrou no time de futebol americano.
Olha, tenta luta, está me ouvindo? Você pode ser magrelo na luta.
Você luta com as pessoas do seu peso, entendeu?
Mark ficou vermelho e o garfo caiu da sua mão.
— Olha, pega a Dolly. Ela nem precisa comer pra ficar gorda. Ela
só olha pras batatas e já engorda, não é?
— Não estou gorda, papai. Perdi o peso que precisava.
— Não vai durar. É hereditário. Veja sua mãe. Se eu não
trabalhasse o tanto que trabalho, estaria tão gordo quanto ela.
Luis estava gordo. Tinha sido assim por vinte anos, mas ele se
recusava a admitir. Ele falava sobre o peso o tempo todo. Ele queria
que as mulheres fossem magras para ele, Connie pensou, refletindo
se ela já poderia pedir mais peru ou se deveria esperar oferecerem
a ela. Dolly se sentou de forma ansiosa, pronta para mais um
ataque de Luis. Ela tinha crescido pensando que os pais eram
casados, então veio a época em que ele provou legalmente que não
tinha se casado e que ela era uma bastarda. Os pais de Shirley
nunca a deixariam se casar com um divorciado. Mas então Dolly se
tornou a filha do primeiro casamento dele, e desde que tinha feito
dezoito anos ela podia chamá-lo de papai. Adele era de origem
anglo e eles não se importavam muito com quantas vezes você
tinha se casado, desde que fosse legalmente. Então Dolly tinha
voltado a ser sua primogênita legal novamente. Já pensou se ele
pudesse se divorciar de Connie, a própria irmã? Que feliz ele ficaria!
— Olha a tia de vocês mandando ver. Come como se não
houvesse amanhã. Se comesse igual a ela, Mark, você entraria no
time de futebol com certeza. Bob, por que não comeu as batatas-
doces? São a melhor parte da refeição.
— Não são. Não gosto delas, pai. Têm um gosto estranho.
— Não tem nada estranho no gosto delas. Na sua idade, você não
sabe o que é bom... Celeste, o que você está fazendo?
Celeste deu um pulo. Ela estava feliz esmagando as batatas-
doces, a calda de cranberry e os brócolis numa papa multicolorida,
amassando tudo e esculpindo castelos com o garfo.
— Nada.
— Adele, ela está brincando com a comida de novo. Isso é um
hábito nojento. Você deveria prestar mais atenção nisso.
Adele piscou, saindo do seu casulo de serenidade e meio sorriso.
Connie a olhou de soslaio, certa de que ela estava tomando algo.
Não era para menos que Adele se desse tão bem com Luis. Ela mal
ficava no mesmo cômodo que ele, talvez apenas pelo mesmo tempo
que os barrigudinhos chiques nadando por trás do vidro. Ela cuidava
dos dois pequenos com o mesmo ar casual e distraído, sempre
meio distante em algum lugar, fixando anjos de bronze de dois
metros de altura em nuvens do pôr do sol. Connie não conseguia
deixar de especular o que ela estava tomando. Ela podia só estar
muito chapada, mas Connie achava que não; ela estava distante
demais. Algum depressor, muito provavelmente.
— Susan? — Adele se concentrou na bebê no cadeirão. — Ora,
que lindinha. Comeu todo o pudim!
— É a Celeste de novo, fazendo pilhas de lama com a comida
dela.
— Ah, Celeste — Adele disse com um sorriso doce. — Você pode
brincar depois. Sabe que isso chateia seu pai. — Sua mão fina e
cheia de anéis flutuou como uma echarpe no ar e parou ao lado do
prato quase intocado dela.
Dolly se recusou a repetir, apesar de Luis tentar forçá-la de forma
sedutora, fingindo que ele estava apenas brincando. Mark ainda
estava enrolando com seu primeiro prato. Bob comia mais coxas e
sobrecoxas, consistentemente ignorando todo mundo. Ele era
gordinho e mais escuro que os outros, exceto por ela, com um
queixo pequeno e olhos escuros, um nariz indiano. Quando ele
observou todos na mesa por um momento, ela sorriu rapidamente
para ele; os olhos dele se arregalaram de surpresa, e ele sorriu de
volta. No resto do tempo, ele parecia estar fingindo que nada era
real além de si mesmo e do peru. Bob havia levantado uma tela de
proteção forte entre seu pai, à direita, e ele. “Você não vai me
magoar! Você não vai atravessar essa barreira”, dizia. De fato, Luis
pareceu sentir essa proteção e deixou Bob na dele. Ele tentou uma
vez:
— Aquele tal de Cesar Chavez, vi que prenderam ele de novo.
Hein? Você ainda tem a foto dele na parede do seu quarto?
Mas, depois de muita insistência, Bob disse apenas:
— Gosto dele. Ele tem uma cara legal.
Connie sorriu de novo para o seu corajoso sobrinho, que ia para
uma escola católica italiana e tinha uma foto do Chavez na parede.
Na mesa havia aqueles que lutavam com o Luis e aqueles como
Bob, Adele e ela mesma, que eram pacíficos. Bob e ela rivalizam
com Luis no quanto comiam e no prazer que tinham em comer.
Adele só beliscava. Ela acariciava o rosto da bebê com um
guardanapo, falando baixinho, enquanto flutuava em uma rede em
alguma praia dentro da sua cabeça.
Depois da torta de abóbora, do sorvete de nozes e do café, Luis os
guiou até a sala que Connie tinha decorado, sob supervisão, com
vasos de crisântemos rosas e amarelos, grandes buquês que
lembravam aranhas, tão grandes quanto a cabeça da pequena
Susan. Mark, Bob, Celeste e Mike correram para a sala da família
no andar de baixo para ver tv, mas Luis estava servindo drinks para
os adultos na sala de estar. Deram licença a Connie para que ela
começasse a limpar. Dolly se ofereceu para ajudar. Connie sabia
que tipo de ajudante ela seria, mas estava ansiosa pela companhia.
— Não — Luis disse. — Connie consegue limpar numa boa. Você
fica com a gente. Eu não vejo minha garotona tanto assim, não é?
Dolly olhou para o pequeno relógio de pulso com as joias, então
para o maldito relógio sem números na parede, que Connie nunca
conseguira entender com certeza. Vic viria pegar Dolly para levá-la
de volta à cidade assim que terminasse a ceia de Ação de Graças
com a mãe dele em um restaurante perto do asilo Leisure World.
Connie tinha colocado os pratos e copos na lava-louças e ia
começar uma nova leva com os potes quando Dolly entrou
apressada na cozinha, chorando. Luis a estava provocando sobre
como ela havia falado que se casaria com Geraldo e nada tinha
acontecido.
Depois de Dolly chorar um pouco no ombro de Connie, da mesma
forma que tantas vezes antes, assoou o nariz e arrumou
delicadamente a maquiagem de novo, camada por camada, no
pequeno banheiro que tinha acesso da cozinha, então sentou-se em
uma cadeira.
— Por que você quis tanto passar a Ação de Graças aqui? —
Dolly perguntou a ela. — Eu não iria querer se não fosse obrigada.
— Como assim obrigada? Se você for pra Carmel, ela não vai te
fazer chorar.
— Sim, mas Carmel fica atrás de mim, ela me deixa doida.
— Como assim você não trouxe a Nita? Ela está doente mesmo?
— É mentira da Carmel. Ela não quis ficar sozinha na Ação de
Graças. Nita está meio gripadinha, nariz escorrendo, mas é só.
Carmel falou que ficaria com ela o resto do tempo, então que ficaria
com ela nos feriados. Ela só fez isso pra fazer birra com ele, e eu
fico no fogo cruzado. Tenho que voltar pro trabalho. Ele sempre quer
juntar todo mundo, como se fosse uma exposição maluca! — Um
momento depois ela estava choramingando de novo. — Como ele
pôde dizer que estou gorda? Pra quê...? Você sabia que a Adele é
só nove anos mais velha do que eu? É a diferença entre eu e o
Mark!
Depois de Adele colocar os pequenos na cama, ela veio para a
cozinha, onde Connie e Dolly guardavam a louça, meio que na
sorte, aqui e ali.
— Você colocou os cristais na lava-louças?! — Ela estava
rabugenta agora, tensa. — Podia ter quebrado tudo! Não se faz isso
com cristal. É pra lavar na mão, claro. Você é preguiçosa nesse
nível? Ou acho que nunca viu um bom cristal assim na vida. — Ela
falava consigo mesma, resmungava pela cozinha, numa raiva
velada e baixa. Dolly deu uma risadinha, que Adele pareceu nem
ouvir. “Não somos três mulheres”, Connie pensou. “Somos os altos
e baixos, os tranquilizantes pesados se encontrando em uma
cozinha toda cheia de eletrodomésticos e nos batendo umas contra
as outras nas arestas opacas, como pílulas brilhantes ao colidir”.
Connie escondeu uma faca de pão na bainha do vestido e subiu
as escadas com cuidado, consciente dos seus movimentos e das
batidas que dava. De novo, naquela noite, Luis a trancou. Deitada
na cama, dessa vez ela o ouviu passando a chave. Olhou nas
gavetas vazias do guarda-roupa, olhou as prateleiras do armário do
banheiro e encontrou aspirina, pasta de dente, antitranspirante,
xampu e um odorizador de ambiente. A janela do quarto estava
fechada com um ar-condicionado. A janela do banheiro abriu uns
50cm depois de ela ter tentado com a faca por uma meia hora.
Então ela se apoiou e olhou para aquele vazio, dois andares até o
concreto. Sem trepadeiras, sem saída de incêndio, sem varanda ou
laje de garagem no qual pudesse saltar. Ela ainda estava confinada.
Tentou a fechadura até ficar ensopada de suor, mas não conseguiu
abrir a porta que dava para o corredor.
A sexta era um dia de bastante trabalho e também o último dia
dela fora do hospital. No sábado, ela deveria limpar tudo de manhã
e seria levada para Manhattan antes da festa. Na sexta de manhã,
ela ficou preparando os pratos para o buffet da festa do sábado —
três bolos grandes e dois mousses de sobremesa. Às duas horas,
Luis veio para casa para buscá-la e levá-la para o viveiro e as
estufas. Os outros lugares eram apenas distribuidoras. Ali ela tinha
trabalhado por três meses para o Luis, transplantando e borrifando
as plantas.
Luis dirigia seu Eldorado branco, que parecia tão grande quanto a
sala comum dos pacientes. O rádio estava ligado, mas depois de
um tempo ele o desligou, para poder atacá-la. Ela suspirou e tentou
se reduzir para aguentar o tranco.
— Você parece bem quieta dessa vez. Nada como a velha Connie.
Eles finalmente te ensinaram a lição de como manter a boca
fechada?
— Eu ajudei bastante a Adele. Não estou dando um duro danado?
— Muito mais duro do que você costuma dar. Se é que dá pra
chamar isso de trabalho. Você gostou da comida ontem, não foi? —
Ele riu por entre os dentes.
— Eu cozinhei. Não fiz um bom trabalho?
— Com a Adele supervisionando, claro. E lembrando de esconder
a pimenta. Sim, você deu uma abaixada de bola, tirando uma
coisinha ou outra. Aposto que ficaria feliz com um emprego na
estufa agora.
— Claro que ficaria, Lewis. Se você assinar minha liberação, eu já
começo amanhã. — Ela movia o pescoço para todos os lados,
tentando entender onde estavam e quão perto estava o transporte
público mais próximo. Talvez no viveiro ela conseguisse fugir. Ela
sabia direitinho como voltar para Manhattan de lá, tinha feito esse
percurso todo dia durante três meses. Disfarçadamente, havia tirado
o dinheiro da bolsa, no caso de ele tirar a bolsa dela, e o escondido
no sutiã, sentindo-se uma espiã, uma agente secreta. Não era nada
confortável; o papel grosseiro arranhava seu peito. O viveiro
continuava o mesmo de quando ela havia trabalhado lá, exceto que
agora era inverno e muito menos plantas estavam enfileiradas do
lado de fora, só o que eles mesmos criavam. A maior parte do
estoque era enviado para eles na primavera, do sul, de Ohio e até
do Texas, de caminhão.
As estufas estavam cheias. O gerente do Luis, Richie, e a
secretária dele vieram correndo assim que ele entrou pela porta.
Luis se virou para o Gino, italiano grisalho de sessenta anos que
cuidava das estufas, e disse:
— Fica de olho nela. Ela é doida de pedra e capaz de tentar fugir.
Não quero que o hospital me responsabilize pela fuga dela. Então
fica de olho na porta. Vou levar o casaco dela e trancar, porque
assim ela não vai longe... Agora quero que vocês dois escolham as
melhores plantas pra minha casa, pra festa. Temos uma temática
tropical. Sem gardênias. E quero espécimes perfeitos, nada de folha
dobrada, sem marca de inseto, nada. Vão lá e procurem, procurem
bem. Quero as trinta melhores. Nada de planta artificial. Quero um
pinheiro Norfolk grande. Nada de begônias ou cóleus. Peguem
alguns lírios holandeses. Está tudo etiquetado no fundo, Connie, se
você não lembra. Pegue um abacaxi grande e algumas das
bromélias mais chiques. Deem uma boa olhada nos bordos em flor
pra ver se algum já está bom. Nada de cactos! Algum idiota sempre
esbarra neles. Gino, você mesmo escolhe as orquídeas. Juntem
tudo perto das docas de carga e vou pedir pro caminhão entregar.
Uma das figueiras grandes seria bom também. Dá uma olhada e
escolha a que tiver a melhor florada ou já tiver frutos. Tem uns
limoeiros em miniatura. Deem uma olhada, vejam se os lírios do
brejo já floresceram. Talvez um cafeeiro. Nada de dioneias, nada
daquelas mais nojentas. Sempre tem algum imbecil que coloca o
cigarro dentro. Agora se mexam. E fiquem de olho. Você pode estar
dopada, Connie, então se mexe como se tivesse chumbo nos
bolsos, mas quero que use os olhos. Nada além do melhor, está me
ouvindo?
Gino pegou uma pastilha para a garganta e não disse nada.
Depois que o Luis foi embora, ele olhou meio furtivo para ela e
perguntou com sua voz rouca:
— Você trabalhou aqui uma vez?
— Sim, cinco anos atrás, por um tempo.
— Você se lembra de onde estão as coisas, né? Então leva o que
ele pediu pra doca de carga. Vou ficar de olho pra ver se está tudo
lindo. Escuta, não tem mosca branca aqui. Temos a estufa mais
limpa de Nova Jersey. — Ele escarrou em um lenço brilhante que a
lembrou de Luciente. — Eu tenho milhares de coisas pra pensar
além de me preocupar com essa festa do chefe. Então você pega as
plantas e eu confiro depois que você terminar. Certo? Se quiser fugir
sem casaco, está menos oito lá fora e você é doida mesmo. Então é
melhor ir trabalhar. E você só passaria pelo portão se soubesse
voar.
Ela pegou as plantas que pareciam chiques, as que estavam com
as folhas mais brilhantes, as folhagens mais esparramadas, as
flores mais vistosas, os frutos mais exóticos. Do melhor jeito que
conseguiu, ela as arrastou até as portas trancadas da doca de
cargas. Algumas vezes teve de gritar por ajuda, até que Gino,
relutante, designava uns cinco minutos de algum dos empregados
mal pagos e exaustos da estufa. Os pesticidas costumavam deixá-la
enjoada. Ela trabalhava por longas horas, até que as costas
doessem e não parassem mais de doer, noite e dia, e ela levava
tanto tempo no transporte público indo e voltando que não tinha
tempo de ficar com a filha. Tudo por dois dólares a hora e horríveis
dores de cabeça. Os venenos podiam matar se ela os aspirasse ou
se encostassem na pele. Mesmo quando usava máscara eles a
afetavam.
A neve começou a cair, pequenos flocos espiralando no ar calmo e
se grudando aos vincos das árvores enfileiradas do lado de fora. A
única coisa que ela encontrou foi uma blusa fina de algodão, mas
ela a vestiu. Até parece que ia pegar um resfriado! O casaco estava
trancado no escritório do Luis, mas iria como estava. Tentou
algumas vezes. Ela se movia lentamente, passando pela porta de
forma casual. Mas, quando tentava sair, Richie a chamava:
— Onde você pensa que vai? — Várias vezes ela esperou e
tentou algum movimento, mas sempre Gino, Luis ou Richie estavam
vigiando.
Por impulso, voltou ao depósito dos venenos. O armário estava
trancado, mas ela olhou atrás da porta e a chave ainda ficava
pendurada ali, como uma piada, ela pensou, como se existisse um
cofre e colocassem a combinação na parede. Ela destrancou o
armário. Alguns dos venenos eram novos para ela. Havia os
fungicidas que eles usavam: Zineb, Captan, enxofre. Os pesticidas:
Sevin, malatião, dicofol. Alguns vinham prontos para o uso, outros,
em pó ou essência. Paratião: esse era o mais mortal no viveiro
naquela época. Gino a tinha avisado para usar luva ao manipular
qualquer um deles, mas as meninas tinham contado histórias de
pessoas que morreram só de tocar no paratião. Ela nunca o tinha
usado, não lhe davam permissão, mas tinha visto Gino usar aquele
óleo.
Connie agarrou uma garrafinha e a encheu daquele óleo marrom,
com as mãos tremendo. Foi enchendo lentamente, segurando a
respiração. Talvez só de chegar perto assim ela já morreria, mas
eles iriam matá-la de qualquer jeito. Isso era uma arma, uma arma
poderosa que vinha do mesmo lugar que os eletrodos e o Amplictil e
as sondas de microdiálise. Uma das armas dos poderosos, dos que
controlavam; ninguém podia obter veneno sem uma licença. Ela
estava roubando um pouco do poder deles naquela garrafinha.
Depois, colocou o pote maior de volta onde estava e trancou o
armário. Então pensou melhor e abriu de novo e secou tudo com a
barra da sua saia. Digitais. Por fim, se afastou, colocando a
garrafinha no bolso da blusa, até que tivesse uma chance de colocá-
la dentro de sua bolsa velha.
Voltou logo ao trabalho, escolhendo as plantas. As mãos tremiam.
Ela pensou se estava morrendo por causa do veneno. Talvez a
tremedeira fosse o primeiro estágio de envenenamento. Talvez só
manusear a garrafinha já fosse mortal. Ela sentia o óleo marrom
irradiando uma energia sinistra a tudo ao seu redor.
Nunca tinha feito uma coisa dessas, segurado o poder na mão,
segurado uma arma. Ela não desejava partir do mesmo jeito que
Skip. Sim, tinha roubado uma arma. Guerra, pensou de novo. Ela
iria reagir. Mas suas mãos tremiam demais e os joelhos balançavam
a ponto de ela não mais conseguir focar na planta à sua frente,
grande e enrugada, tão grande quanto ela, cujo nome havia
esquecido.
O jantar era de sobras. Adele brincava com a comida, sorrindo de
novo.
— Você teve um bom dia? Ah, que pena. Sim. Hum. Claro que
sim, sim, ele está envelhecendo. Hummm.
Connie olhou séria para Luis. Quando fosse na cozinha pegar o
café e a sobremesa, poderia derramar um pouco de veneno no café.
Era marrom e pastoso, daria certo no café. Pela maldade que ele
tinha feito com ela durante aqueles anos todos, com a Dolly, com a
Carmel. A bolsa dela estava próxima. Ela poderia fazer isso.
Luis ria da própria piada, com a cabeça pendendo para trás.
Enquanto ele ria, por um momento descontrolado, quase pueril, ela
viu nele aquele irmão mais velho que odiava lembrar que adorava.
Até os dez anos de idade, ela tinha adorado Luis de todo coração.
Ele parecia um príncipe, um pavão maravilhoso, como havia sido
para a mãe deles. Ele podia brigar, tinha lábia, podia falar inglês
melhor do que qualquer um deles, podia defendê-la se quisesse.
Sim, Luis, o garoto das ruas, ela o adorava. Luis, o jovem
delinquente tinha tocado o coração dela e definido um molde ali.
Algo do que ela tinha amado em Martín, algo do que ela tinha
amado em Claud: a graciosidade, a raiva, o orgulho ferido, a recusa
em engolir desaforos. O exército havia mudado Luis. Quando ele
voltou, desdenhava de todos eles. Sua raiva e seu orgulho
indisciplinado tinham sido canalizados para o desejo de se dar
melhor, de conseguir dinheiro, de ser bem-sucedido como um
branco.
Quem poderia saber o que teria acontecido com Martín, pobre e
pardo, se ele tivesse vivido? Talvez tivesse endurecido, como o Luis.
Ela não conseguia acreditar que a ternura dele poderia secar,
mesmo assim, se lembrava de quando Luis tinha catorze anos e
roubou uma echarpe brilhante da loja de 1,99 para ela usar no
domingo de Páscoa, rindo enquanto tirava aquilo de dentro da
jaqueta de couro que ninguém sabia como ele tinha conseguido.
Que lindo ele tinha sido, o brilho dos dentes naquela cara morena,
seus olhos queimando de raiva e alegria, o jogar de ombros
arrogante e exagerado. Jesús temia que ele fosse se tornar um
criminoso, que eles o perderiam para as ruas. Ninguém imaginava
que eles o perderiam para os brancos, completamente.
Depois do jantar, ela retirou com vapor o rótulo de um xampu
herbal chique no banheiro e o colou na garrafinha dela. Quando a
garrafa secou, o rótulo ficou. Ela ia levar aquilo de volta para o
hospital junto com uma caixa de cosméticos velhos que Adele tinha
dado a ela — batons em cores foscas que não estavam mais na
moda, sombra de olho na cor errada, um vidrinho pela metade de
creme de óleo de palma. Adele também deu a ela um cardigan bege
com flores bordadas que tinha encolhido nas lavagens, uma meia
calça e uma pilha de Vogues e New Yorkers antigas. Ela não
chegou a experimentar os pratos que tinha preparado para a festa,
mas percebeu pela balança do banheiro do quarto principal que
tinha ganhado dois quilos de quarta até sábado. Isso não importava.
“Como passei minhas férias: comendo”.
Sentada no grande Eldorado branco de Luis e distraída
observando o trânsito lento e pesado, ela percebeu que várias
semanas tinham se passado desde a última vez que tinha ido para o
futuro. Luciente estaria morta? Não conseguia nem pensar nisso.
Era Connie que estava morta. Ela não conseguia captar mais.
Estava endurecendo, assim como Luis, mas não por dinheiro. Para
ganhar sua guerra. Para reagir. Ela fechou os olhos e viu sua arma,
disfarçada de xampu.
CAPÍTULO 19
...
...
RESUMO CLÍNICO
...
Estado de Nova Iorque — Departamento de Higiene Mental
Hospital Estadual Psiquiátrico Rockover
NOTA DE LIBERAÇÃO
Dr. Messinger
14 Tradução: “Sim, do sul, Río Grande, Tejas del Sur. Mas já faz cinco anos
desde que moro na cidade porto-riquenha de Lola Rodríguez de Tío”. (Lola
Rodríguez de Tío homenageia a poeta, jornalista e revolucionária de Porto
Rico).
O texto deste posfácio foi produzido com base em uma conversa virtual
realizada em 30 de janeiro de 2023 pela editora Minna com a educadora,
professora e drag queen Rita von Hunty. Ela realizou a leitura do
romance que você tem em mãos e se propôs a discutir sobre os
principais temas do livro, traçando um paralelo com o nosso mundo de
hoje, nossas capacidades de imaginação política e nossas questões
sociais.
Rita está se referindo aos últimos quatro anos de caos produzidos pela gestão
Bolsonarista do Estado brasileiro, mais especificamente ao então recente
episódio de tentativa de golpe de estado e destruição das sedes dos três
poderes em Brasília, no dia 8 de janeiro de 2023.
Daquela que te amará sempre
Queridíssima Lúcia,
Quero dizer que agora eu, assim como tu, tenho a cabeça nas
nuvens e ando suspirando pelos cantos. Já não temo as noites em
claro e as passo sonhando acordada até o cansaço me levar! Tudo
isso desde que o encontrei pela primeira vez. A lua solitária no céu e
eu igualmente só, inquieta na cama com pensamentos altos e sono
baixo.
Meu pai o convidou a ficar até que ele consiga se estabelecer por
si só, mas consigo sentir seu real objetivo de torná-lo seu aprendiz,
pelo tanto que conversam sobre negócios. Isso significa que o verei
com mais frequência, e eu não poderia estar mais contente!
Mas diga-me, como tens passado? Acho que não preciso dizer
que estas últimas semanas foram mágicas para mim! Tinhas razão
como sempre, Lúcia, tudo o que me faltava era sair um pouco de
meus aposentos, respirar do ar fresco e talvez... apenas talvez,
conhecer alguém novo.
Lina.
Misteriosa Lúcia,
Ele costuma sair bem cedo para a cidade trabalhar, tão cedo que
até agora não consegui sequer espiá-lo pela janela. Assim como
suspeitava, meu pai se apossou do pobre rapaz e o faz de gato-
sapato! Eduardo diz não se importar e que está aprendendo
bastante, apenas por isso não fui falar poucas e boas ao pé do
ouvido de meu pai.
Falando nele... acredito que não tenha ideia dos nossos encontros
e parte de mim quer que continue assim. Por um lado, ter esses
encontros secretos faz meu coração disparar como louco; por outro,
nunca tive segredo com meus pais. Não que exista algo sério a se
esconder, afinal, são só conversas, mas quem sabe num futuro...
Lina.
Querida Lúcia,
Receio que meus pais estejam ficando cada vez mais fracos, a
palidez tal qual a de um fantasma. Já chamamos mais de um
médico para os examinar, mas nenhum soube dizer a causa. Talvez
Artur saiba de algo, vindo daquela faculdade tão prestigiada.
Eduardo diz que os médicos daqui relaxaram e caminham para a
obsolescência. É por isso que decidimos adiantar nossos planos.
Lina.
Doce Lúcia,
Mas me diga, como está Artur? Ele já sabe? Soube que depois do
casamento ele viajou para encontrar um amigo para discutir a
situação dos meus pais. Sei que é tarde, mas ainda gostaria de
saber se descobriram algo.
Sei que já lhe disse isso e pode ser um pouco egoísta, mas eu
preciso de ti, Lúcia. Gostaria de passar um tempo contigo em sua
casa, se assim for possível.
Lina.
Amada Lúcia,
Não lhe escrevo para fazer com que te sintas velha, não te
preocupes. Estou me alongando enquanto busco coragem para
estas próximas palavras. Ontem aconteceu de novo. Pude ouvir o
grito abafado pelas paredes do meu quarto e fiquei paralisada.
Pouco tempo depois, Eduardo entrou, perguntou se eu queria algo
para comer e me deu um beijo leve quando respondi que não.
Pensei em lhe perguntar o que acontecera, mas a pergunta morreu
na minha boca assim que senti um gosto metálico.
De tua doce,
Lina.
Lúcia,
Lina.
...
Lina terminou aquela que seria sua última carta no momento em que
a porta finalmente cedeu. O calor e a fumaça embalavam a figura de
um homem, que ofegava pelo esforço. Por um momento, encarou a
figura da mulher prostrada no chão com papel e pena em mãos.
— É ela! A maldita esposa! — exclamou um senhor de idade um
pouco mais atrás.
— A esposa... Melina? — o homem perguntou incerto, limpando o
suor que lhe caía aos olhos.
Lina compreendeu finalmente quem era o invasor quando ouviu a
voz de Artur chamando seu nome. Tinha machucados por todo o
corpo, mas sua expressão era determinada. “Não podia ser
diferente”, pensou com desgosto. Ela lhe estendeu a carta com
dificuldade; já havia inalado muita fumaça.
— Entregue para Lúcia — ela disse entre tosses. — Por favor,
Artur.
Antes tão cheia de vida e energia, a mulher parecia uma casca do
que já fora. Não tinham muito tempo, pois a população que invadira
o casarão estava atrás de um culpado; seu amigo lhe dissera que
tais criaturas costumam transformar aqueles mais próximos de si.
Não era possível dizer se já havia acontecido ou não, mas, de
qualquer forma, ele achou que ela merecia saber. Pegou por fim a
carta.
— Teu marido, aquele monstro... ele fugiu, Melina. — Artur pôde
ver claramente que algo em seu olhar já não era mais o mesmo.
— Com assim? Ele estava...
— Ele a abandonou aqui. Procuramos em todos os lugares, mas
Eduardo não está em canto algum.
— Isso não é verdade... ele nunca... — A tosse estava ficando
severa. — Nunca... me abandonaria aqui com esses selvagens! E
tu... tu invades e destróis a minha casa, trazes esses vândalos e
agora decides mentir para mim? Baixo até para tu, Artur.
Ele barrava a porta, mas podia sentir a inquietude às suas costas.
O povo ficava impaciente. Lina estava em negação, balançava um
abridor de cartas à sua frente enquanto tentava suprimir a tosse.
Seria impossível tirá-la da casa com vida e, mesmo que tirasse,
seria mesmo seguro? Tinha prometido para Lúcia trazer sua prima
para casa, mas a esposa não entendia o perigo que isso
representava.
— Sinto muito, Melina — disse por fim, resoluto.
A mulher largou a arma no chão, sentindo o corpo ainda mais
fraco. Não podia ser real, certo? Eduardo nunca a abandonaria
assim... certo?
— Artur...? Tu não podes... não te atreverias a me deixar aqui. O
que dirás para Lúcia? — Percebeu que era a decisão final de Artur e
isso a assustou ainda mais — Eduardo irá atrás de ti! Vais ver! E
quando ele... encontrar... — Por fim, seu corpo não aguentou e ela
tombou no chão desacordada.
Artur se virou e abriu espaço para quem quisesse passar,
murmurando quase em uma prece “o que precisa ser feito”,
enquanto segurava com força a carta em suas mãos.
...
...
Marina Lima é ilustradora de Jaboatão dos Guararapes, Pernambuco. Desde
pequena tinha esse gosto por escutar e ler histórias, que naturalmente evoluiu
para contar as próprias histórias, e é o que tem feito desde então.