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FÁBIO KONDER COMPARATO

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2* edição — 1977
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4º edição — 2005 — 2º tiragem
O PopER DE CONTROLE
NA
SOCIEDADE ANÔNIMA
5º Edição
* |Z
FORENSE
Rio de Janeiro
2008
362 FÁBIO KONDER COMPARATO E CALIXTO SALOMÃO FILHO
companhia, ou da economia nacional” (grifo nosso).”
A regra é reafirm,
da, em relação às sociedades controladoras, no art. 246, impond
o-se o a».
ver de reparagdo dos danos causados, a requerimento
de acionistag h
sociedade prejudicada.”
A confusdo patrimanial, nos grupos societários de fato,
é, assim nit
damente profligada. .-
Capitulo U
Nota de Texto 66 O estudo da disciplina da responsabilidade
e da descon-
sideração da personalidade jurídica dentro dos wavom DEVERES E RESPONSABILIDADES DO TITULAR
(de fato e de direito) é particularmente importante,
DO CONTROLE INTERNA CORPORIS.
Como forma de controle externo (pelos credores sobre-
tudo) do comportamento das empresas do BTupo e seus DESVIO DE PODER E FRAUDE A LEI
nn:QE»ac—mw é dispositivo complementar às regras de
o—.m»b,_Nmomo interna. Pode-se dizer inclusive que, quan- 114. O titular do controle exerce a soberania societria. Não vai nisto
to mais deficientes ou meramente formais essas regras, nenhuma aberragdo. Ao contrario, a existéncia de um direito de controle te-
mais importantes e aplicadas serão as regras de presenta um elemento indispensdvel na economia social, embora ele não
descon-
sideragio. tenha sido sublinhado, como deveria, na estrutura do modelo legal, até o
Assim sendo, para uma correta definição da tipologia advento da Lei nº 6.404/76. Não há sociedade sem poder, e sem organiza-
juridica de cada estrutura grupal não basta se ater às dis- ção do poder — ou seja, sem direito — como salientamos desde as paginas in-
tinções da lei, que tem por base a organizagio intema. É trodutdrias.
preciso também analisar o grau efetivo de separagio Mas a todo poder correspondem deveres e responsabilidades proprias,
patrimonial entre as empresas do grupo a partir do estu- exatamente porque se trata de.um direito-fungao, atribuido ao titular para a
do da realidade da aplicação da teoria da desconsidera- consecugdo de finalidades precisas. Assim também no que diz respeito ao
ção da personalidade jurídica.” poder de controle, na estrutura da sociedade anénima. Ora, uma das mais
sentidas lacunas de nossa ordenação juridica, até a promuigação danova lei
113. Com base nas considerações que precedem, iremos focalizar, acionaria, consistia, justamente, na falta de previsio de limites rigorosos
nos capitulos seguintes, ndo todas as questdes ligadas ao afastamento da
para o exercicio do controle societario, na medida em que esse fendmeno
personalidade juridica em razão do poder de controle, mas apenas as que
social havia sido descurado, quase que totalmente, na visão do legislador,
nos parecem mais relevantes. A idéia central ¢ a que anima todo este nosso
ou concebido como realidade menos honesta, numa democracia acionaria
estudo, ou seja, a especificidade do starus juridico do titular do controle,
proxima da ilusdo comunitaria.
em relagdo aos demais acionistas ou interessados na companhia.
Superada a formiddvel lacuna legal, recai agora sobre a doutrina o en-
cargo de orientar o intérprete na compreensio e aplicagdo das novas nor-
mas. Eo que tentaremos fazer, analisando os conceitos de desvio de poder e
de fraude à lei, as suas manifestagdes e os remédios juridicos propostos.
97 Aleiomite, ai, o interesse dos credores da sociedade controlada, que pode ser, eviden- A) Os Conceitos
temente, prejudicado pelo desvio de poder do controlador.
98 Cf. nota precedente. 115. A aplicação ao dircito societario da doutrina do desvio de poder,
99 CF, para uma tentativa de elaboração da ipologia nesses moldes mais abrangentes, consagrada no direito administrativo moderno pela iniciativa pioneira do
Nota de Texto 77. Conselho de Estado francés, constitui uma das grandes conquistas atuais.
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Falando-se de desvio, subentende-se, evidentemente, uma via direta
interesses de todos os participantes na empresa: acionistas, titulares de ou-
que deixou de ser seguida, para se atingir um alvo ou se chegar a um resul.
1ros valores mobilidrios emitidos pela companhia, empregados, adminis-
tado. Supõe-se, pois, antes de tudo, a falha de um objetivo ou finalidade,
1radores. Quanto aos interesses extra-empresariais, eles dizem respeito à
impostos pelo direito, ou aberratio finis legis, como jé foi dito, em E._.&._.nw
comunidade local, regional ou nacional, em que se insere a empresa.
se a consagrada expressio do direito penal.' Mas desvio de finalidade, esse Falar em interesses extermos à cmpresa, a serem atendidos pelo em-
compativel com a observancia das regras de procedimento formal, que dis.
presário ou controlador, é usar de linguagem inteiramente estranha à tradi-
ciplina o exercicio do poder, o que torna o ato particulannente perigoso,
ção do capitalismo liberal, Para este, o empresario é proprietario dos meios
pela dificuldade em que se encontram os prejudicados de comprovara th
de produção &, como tal, tem direito ao exercicio da atividade empresarial,
tude; o desvio de poder consiste, assim, num afastamento não da forma mas
como poder inerente à propriedade (Codigo Civil de 2002, art. 1.196), e à
do espirito da lei, representando ato tipico de fraus legi, e não contra le-
apropriagdo dos Tucros, como fruto de bens próprios. A instituigdo do Esta-
gem, segundo a conhecida adverténcia de Paulo: Contra legem fucit, quiid-—
do social impds, no entanto, duas conseqiiéncias juridicas da maior impor-
Jacit quod lex prohibet; in fraudem vero, qui salvis verbis legis sententiam
tancia para a organizagdo das empresas. De um lado, o exercicio da
eius circumvenit (D, 1, 3, 29, libro singulari ad legem Cinciam).
O Código Civil italiano filiou a fraude 2 lei 20 elemento causal do ne- atividade empresarial já não se funda na propriedade dos meios de produ-
gocio, reputando “ilicita a causa, quando o contrato constitui o meio para. ção, mas na qualidade dos objetivos visados pelo agente (justificagao teleo-
eludira aplicação de uma norma imperativa” (art. 1.344). Ou seja, reconhe- 5gica e não pelo título casual); sendo que a ordem juridica assina aos
ce que há um desvirtuamento da fungZo econdmico-social do negécio; particulares e, especialmente, aos empresarios, a realizagdo obrigatéria de
acarretando a falha do objetivo visado pelo legislador. objetivos sociais, definidos na Constituigdo e instrumentados na lei do pla-
Do desvio de poder deve ser destacado o excesso, que ocorre quan- no. De outro fado, o lucro, longe de aparecer como o fruto da propriedade
do o agente, embora perseguindo fins consagrados ou impostos pela or- do capilal, passa a exercer a função de prémio ou incentivo ao regular de-
dem juridica, interfere, não obstante, de modo mais do que necessario na senvolvimento da atividade empresaria, obedecidas as finalidades sociais
esfera juridica alheia (Codigo de Processo Civil, art. 620: excesso na exe- fixadas em lei.
cugdo judicial; Cadigo Penal, art. 23, paragrafo Gnico, e Codigo Civil de Isto posto, a harmonizagéo dos interesses internos e externos à em-
2002, art. 188 , pardgrafo único: excesso culposo nos atos praticados em le- presa faz-se, naturalmente, no sentido da supremacia dos segundos sobre
gitima defesa ou estado de necessidade). os primeiros na hipdtese de conflito. O direito ao lucro ou 4 expansio da
Situagao diversa do abuso em sua dupla forma, de desvio e excesso de empresa ndo é garantido contra os interesses da comunidade local, regional
poder, é a da falta de poder juridico (manifestagio de poder de fato). Aqui; enacional em que ela se insere; interesses esses não só de ordem econômi-
aantijuridicidade é do titulo, não do modo de exercicio do poder. O contro- ca (independéncia tecnoldgica ou economia cambial, por exemplo), como

Rt
le externo, não sancionado pela ordem juridica, é um dos exemplos de po- também de ordem social em sentido amplo (proteção do meio ambiente,
der de fato. dos interesses dos consumidoies, ou do patrimdnio cultural).

S
De qualquer forma, tratando-se de abuso de poder de controle na so- No scio da empresa, a harmonia entre os diferentes interessados su-
ciedade andnima, importa definir, preliminarmente, essa finalidade ou ob- põe, primeiramente, o respeito às normas-objetivo inscritas na Constitui-
jetivo que legitima o exercicio do poder. Na verdade, seria mais correto

R
30, como a busca da justica social e a valorizagao do trabalho, condição da
falar no plural em finalidades ou objetivos, pois eles são de duas ordens: os dignidade humana.?
intra e o extra-empresariais. Os primeiros correspondem 2 satisfagao dos

S
R A
A noção de nonma-objetivo foi introduzida no Brasil peto Professor E. R. Grau. Cf.


t 3. Cretella Júnior, Anulação do Ato Administrativo por Desvio de Poder, Rio de Janei- Planejamento Econômico e Regra Jurídica, São Paulo, Revista dos Tribunais, 1978,
vo, Forense, 1978, Pp. 242 e ss. e verbete “norma-objetivo” na Enciclopédia Saraiva de Direito.
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R

A discussão sobre os interesses intra e extra-empresariais não é estra- Na mesma época da elaboragdo da anterior lei acionaria alemã, a Sui-
nha à doutrina do direito privado. ¢a introduziu, no seu Código Federal das Obrigações, alguns dispositivos
de protegdo do interesse da empresa no funcionamento de sociedades por
116. É muito conhecida a concepção dita da “empresa em si”, que ações. Assim, o atual art. 671, terceira alinea, tratando do fundo de reserva
NS e
Walter Rathenau divulgou na Alemanha, ao final da Primeira Guerra Mun- Jegal, dispde que “enquanto o fundo de reserva ndo ultrapassa a metade do
dial, sustentando que os empresários detêm o poder de controle não para ES SRA RSA fi_‘ura social, não pode ser utilizade senao para cobrir os prejuizos ou para
servir os capitalistas — sócios ou acionistas — e sim no interesse público re- se tomarem as medidas que permitam manter a subsisténcia da empresa em
presentado pela empresa, como organização que transcende a sociedade perfodo de exploração deficitdria, evitar o desemprego ou atenuar-lhe as
comercial.* A lei acionária germânica, de 1937, aceitou (pelo menos ver- conseqiidneias™. No art. 674, cuidando das reservas estatutdrias ou faculta-
balmente) essa concepção no seu $ 70, ao assinar aos membros do Voys- tivas, edita: “A assembléia geral pode, por ocasido da fixação do dividendo,
tand, sob sua responsabilidade, o dever de dirigir os negócios sociais se- constituir reservas não previstas, nem pela lei, nem pelos estatutos, ou que
gundo o “bem do estabelecimento” (Wohl des Betriebs) e dos seus empre- excedemas exigéncias da lei e dos estatutos, na medida necessaria para as-

e
gados, assim como no interesse comum da nação e do Reich. O dispositivo segurar, de forma durdvel, a prosperidade da empresa ou a distribuigdo de
foi, sem dúvida, a fonte do art. 116, $ 7°, do nosso Decreto-Lei nº 2.627. A um dividendo tão constante quanto possivel” (alinea 2); “ela pode, igual-

ÁK
doutrina alemã, no entanto, tal como a brasileira, procurou minimizar o al- mente, mesmo na falta de clausulas estatutdrias, operar, sobre os lucros lí-
cance da norma.* A lei acionária de 1965 não repetiu a fórmula, de certo quidos, deduções para criar e manter instituigdes de previdéncia em

A
modo maculada de espírito nazista, limitando-se a declarar, laconicamente, proveito dos empregados e operarios da empresa, ou outras instituigoes
que “a diretoria (der Vorstand) deve dirigir a sociedade sob sua responsabi- andlogas” (alinea 3),

DAA SA
lidade” ($ 76). Mas consagrou, em contrapartida, o princípio da co-gestão Nos Estados Unidos, em pleno periodo de depressdo conseqiiente a
dos trabalhadores no seio do Aufsichisrat, já instituída nos anos imediata- crise de 1929, E. Merrick Dodd, entdo professor na Harvard Law School,
mente posteriores à guerra ($ 96). sustenton, em polémica com Berle, que os diretores de uma sociedade ané-
nima ndo sao, propriamente, trustees dos acionistas, mas tém também de-
Nota de Texto 67 Na verdade, a evolução da lei alemã de 1937 para as leis

S
veres mais amplos, de natureza social.® A idéia continua a granjear adeptos,
de participação operária das décadas de 50 e 60 corres- té hoje, naquele pais.’
ponde exatamente à evolução doutrinária do institucio-
nalismo clássico ou publicista ao organizativo. Nota de Texto 68 É preciso reconhccer, no entanto, não sem pesar, que

e
em especial nos EUA hoje é absolutamente prevaleate a
chamada análise econômica do direito societário.
É interessante observar que seus defensores, de assumi-
da inspiração Coasiana, se afastam de seu inspirador
3 Cf. W. Rathenau, Vom Aktienwesen, Eine geschaefiliche Betrachtung, Berlim, 1917;
tradução italiana “La Realtá della Societa per Azioni”, na RS, 1960, pp. 912 e ss. quando se trata de definir interesse social.
4 —Emseusautorizados comentários 4 lei de 1937, R. Godin c H. Wilhelmi, co-autores do
projeto, afirmam que a fórmula legal significaria que os administradores sociais agem
no interesse não só dos acionistas atuais, mas também dos futuros, o que era uma evi-
dente interpretação a Jatere: “Der Vorstand leitet die Gesellschaft, d.h. fuelirt lhre Ges- 3 EM Dodd, “For Whom Corporate Managers are Teustees?” in Harvard Law Review,
chaefte, wie es das Interesse der Aktionaere, aber nícht nur der augenblicker ferst

sa
45 (1932), p. 1.145. Berle, como sabido, acabou depois concordando, substancialmen-
recht nicht nur des Augenblicks), sondern auch der kuenftigen, d.h. der Bestaud und te, com essa opinido.

ks
die Entwicklnng des Unternehmen (wofuer das Gesetz “Betricbe” sagt) verlang. und 6 Cf.E.V.Rostow, “To Whom and for What Ends is Corporate Management Respon-
mit gewisseem afier Ruccksicht auf dus Wohl der Gesellschafi, in die das Unternehmen

So
sible?” in E. S. Mason (coord.), The Corporation in Modern Society, Cambridge-
eingeordnet ist” (Aktiengeseiz, cit., p. 286). Massachusetts, 1966, p. 46.
Í FABIO KONDER COMPARATO E CALIXTO SALOMAO FILHO i O PODER DE CONTROLE NA SOCIEDADE ANÔNIMA 369
t =
I |
Isso porque a idéia central de Coase tem no fundo uma. sação e na proposta de sua eliminação” está presente a
mensagem organicista e até institucionalista, Ver na idéia de intermalização dos interesses mais relevantes e
”,.M
empresa um feixe de contratos e um feixe de interesses d influentes para a sociedade, exatamente por que isso
i
nada mais significa que identificar um ente voltado a 4 elimina custos de transação elevados.
captar e organizar todos esses interesses, sem distinção. Í Tanto isso é verdade que andlises iniciais de alguns
entre cles.” Mesmo na idéia Coasiana de custo de tran- pds-Coasianos no campo socictario eram em esséncia
profundamente ligadas ao institucionalismo organiza-
RSA
tivo.”
Ocorre que acabou por se formar um consenso em tormo
de certas idéias gerais de tedricos da andlise econdmica
Na formulagiio mais ligada & idéia de Coase a empresa é vista como um feixe de contra-
do direito, bem mais ideolégicos e politicos (como Pos-
tos — nexus of contracts (essa visão da empresa foi originariamente claborada por .
Alchian e H. Demsetz, “Production, Information Costs and Economic Organization”, ner e Bork) e bem menos profundos que a de seus paise
jn
American Economic Review, 62 (1972), p, 777, 783 e posteriormente desenvolvida por inspiradores como Coase.
M. Jensen ¢ W. Meckling, “Theory of the firm: Managerial Behaviour, Agency Costs A principal e mais politica delas, a idéia de eficiéncia,
and Ownership Structure”, in Journal of Financial Economics, 3 (1976), p. 305), Em aplicada tanto ao direito antitruste como ao direito socie-
uma linguagem mais juridica, a firma é vista como um único agente subscritor de um tario, acabou por reduzir o interesse societdrio apenas
grupo de contratos, que começa pelos contratos com os sócios e vai desde contratos com
20 interesse dos acionistas à maximização do valor das
fornecedores e clientes até contratos com trabalhadores e contratos de emprésiimo,
necessários para suprir as necessidade de fundos da empresa (cf. H. Hansmann, The - agdes e levar os proprios pos-Coasianos inicialmente
ownership of enterprise, Cambridge, Harvard University Press, 1996, p. 18). mais coerentes (como Hansmann) a rever suas posi-
A própria definigao ¢ os termos nela utilizados revelam sua origem econdmica. A preo-

EA E S
cupagio em desconsiderar as formas juridicas para centrar-se na realidade ccondmnica
é evidente.
Essa preocupagdo fica mais clara no passo seguinte da teoria. Trata-se de determinar A segunda e mais importante delas é a equivaléncia substancial eatre controle interno e
qual o fundamento do controle interno da empresa. Na perspectiva econdmica, o fun- externo do ponto de vista juridico. O que a teoria dos custos de transagdo procura de-
damento está na teoria dos custos das transações (cf. O. Williamson, “Transaction cost moustrar é que ambos podem ser Gteis para os interesses da empresa.
economics” in R. Romano, Foundations of Corporate Law, Oxford, Oxford Univer- O controle interno, naqueles casos em que o estabelecimento tinha de relagdo externa,

R N
sity Press, 1993, p. 12). O controle interno da empresa, obtido através da propricdade contratual, de mercado com determinado grupo, seria muito custoso. E o controle ex-
de suas ações, é naturalmente atribuido dquele grupo de pessoas com as quais transacio- tema, na medida em que os interesses de eventual grupo de controle intemo sejam tão
helerogéneos que levem a custos de transação (leia-se de tomada de decisdes) altissi-

e o STS
nar no inercado é excessivarmente oneroso para a propria empresa ou para esse grupode
pessoas, seja porque algumn deles mantém uma sinuação monopolista (imagine-se, por mos, acarretando virtualmente a paralisagio da empress ou sua operagio ineficiente.
A conseqiiéncia de tudo o que foi dito é bastante simples e pode ser assim resumida. O

A
exemplo, um sindicato de trabalhadores bastante forte), seja porque o custo social ou o -
descontentamento gerado por uma delerminada situação pode ser extremamente negati- iteresse da empresa não pode ser mais identificado, como no contratualismo, a0 inte-
resse dos sócios nem tampouco, como na fase institucionalisia mais extremada. 4 auto-

3 o RNdA
vo para a empresa. [sso é um ponto muito importante que distingue a análise cconômica —
aqui empreendida de uma pura e simples aplicação da teoria da eficiéncia. Entre os eus” preservagdo. Deve isso sim ser relacionado à criação de uma organizagdo capaz de
tos de transação incluem-se não apenas aqueles mensurdveis economicamente mss tam- estruturarda forma mais eficiente — e aqui a eficiéncia é a distributiva e não a alocativa
bém aqueles relacionados 2 satisfação dos que com a empresa se relacionam. ~ as relagdes juridicas que envolvem a sociedade. Essa conclusão é evidentemente bas-
Essa consideração tem duas conseqiiéncias bastante relevantes. Em primeiro lugar, 3 lante préxima do institucionalismo organizativo acima identificado.
relativa irrelevância da forma societéria escolhida. Com efeito, é tradicional a compa-
ração na doutrina econdmica entre a sociedade de capitais e a cooperativa, entenden-
do-se a contribuição dos sócios nas sociedades de capilais como economicamente
equivalente a uma hipotética junção de capitais proprios a custo zero realizada em uma R. H. Coase, “The nature of the firm” in Econometrica 4, cit., p. 386, ¢ in The firm, the
também hipotética cooperativa (v. a interessante comparagdo feita por H. Hansmann, market and the law, cit., p. 33.
The ownership of enterprise, cit., p. 14). Cf. H. Hansmann, The ownership of enterprise, cit.
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ções, adotando em pleno as premissas ideoldgicas da Nesse caso, porém, o interesse societário confundia-se, efetivamente,
analise econémica do direito.'’ como da empresa, ¢ a fundamentação do julgado poderia ter sido dada com
pase naquele. O que havia, de fato, era o sacrificio da sociedade francesa ao
Hé um trago comum em todas essas concepgdes ou disposicdes legais: interesse geral do grupo econômico, no qual se inseria, de não entrar em
é o fato de terem surgido em plena crise econdmica. Dal já se haver falado conflito com a política externa do governo norte-americano. *
(com evideate alusio ao famoso ensaio de Spengler) em produtos de uma No Brasil, a lei de sociedades por ações de 1976 veio consagrar, ao
Untergangsphilosophie." É, talvez, por isso que, a cada periodo de prospe: que parece definitivamente, o abandono da teoria do exclusivo atendimen-
ridade econdmica ulterior, a idéia do exercicio do poder de controle, no in- {0 dos interesses acionários e, até mesmo, dos interesses intra-empresariais
teresse da empresa e do bem publico, é posta em surdina. Mas ela em seu conjunto, como objetivo da atuação de controladores e adminis-
permanece latente e sempre pronta a surgir tona. tradores. Na norma do parágrafo único do art. 116, assim como na expressão
Em caso muito comentado, a Justiça francesa teve ocasido de reafir- de uma modalidade de abuso de poder, constante da alínea a do art, 117,$1º,
mar o principio do interesse empresarial como escopo da sociedade anôni- vem imposto o respeito aos interesses da “comunidade”, ou da “economia
ma.'? Tratava-se da subsididria francesa da companhia norte-americana nacional”. No art. 154, definindo-se a finalidade das atribuições adminis-
Fruehauf, que havia firmado com outra sociedade francesa um importante trativas, assinalam-se “as exigências do bem público e da função social da
contrato para a fabricação de reboques de caminhéo, destinados a exporta- empresa”.
ção para a Republica Popular da China. Um ano após a celebração do con- Tal não significa, escusa dizé-lo, que doravante toda companhia se
trato, a sociedade norte-americana controladora decide desfazer o negécio, transforme em órgão público e tenha por objetivo primordial, senão único,
alegando pressdes políticas, e dá ordem aos administradores da subsidiária o vasto interesse coletivo. Mas significa que não obstante a afirmação legal
para tomarem as medidas necessarias nesse sentido. Diante da recusa da de seu escopo lucrativo (art. 2º), deve este ceder o passo aos interesses co-
co-contratante em operaro distrato, só restava a solução do inadimplemen- munitários e nacionais, em qualquer hipótese de conflito. A liberdade indi-
to, acarretando a resolugdo com perdas e danos de elevado montante. vidual de iniciativa empresária não toma absoluto o direito ao lucro,
Inconformados, os administradores de Fruehauf-France, representando os colocando-o acima do cumprimento dos grandes deveres de ordem econô-
acionistas minoritarios franceses, requereram ao Tribunal de Coméreio que mica e social, igualmente expressos na Constituição.
nomeasse um administrador judicial para gerir, temporariamente, os negé- Ora, essa clara afirmação da supremacia dos interesses comunitários
cios da sociedade, a fim de executar o contrato em causa, o que foi deferi- ¢ nacionais, quando em conflito com o escopo lucrativo da companhia,
do. Confirmando a decisio em grau de recurso, o tribunal de segunda aparece em nosso direito despida do necessário aparelhamento de aplica-
instancia declarou que um administrador judicial podia e devia substituir ção e eficácia. Cedemos aí, mais uma vez, à tradição jusnaturalista, de pu-
os órgãos administrativos de uma sociedade andnima, em circunstancias ras afirmações de princípio, sem o necessário complemento dos remédios
excepeionais, em atenção ao interesse da empresa, cujo equilibrio financei- jurídicos sancionatórios. Pois, se o titular desses interesses comunitários e
1o e crédito no mercado seriam gravemente comprometidos com a resolu- nacionais transborda largamente o círculo empresarial, quem tomará a ini-
ção contratual, suscetivel de arruini-la definitivamente e de provocar a ciativa de defendê-los e com que tipo de ação? Certamente não os acionis-
dispensa de mais de seiscentos empregados.
13 D. Schmidt critica a decisão judicial que, à seu ver, desconsiderou as pretrogativas da
10 ¥ g, a pueril andlise contida em H. Hansmann e R. Kraakman, ““The end of history of maioria acionária de decidir, em todos os casos, qual o interesse de socicdade (Les
corporate law", in Georgetown Law Journal 89 (2001), pp. 439 e ss. Droits de la Minorité dans la Société Anonyme, cit., nº 298); quando, na verdade, era

P
1 Nussbaum, cit. por P. G Jaeger, L 'interesse sociale, cit., p. 15 patente o desvio de poder, não legalizado na França, pela falta de uma regulamentação
12 “Juris-Classeur Périodique”, La Semaine Juridique, 1965, vol. 11, 14.274-bis; RTDC. dos grupos societários, autorizando a subordinação do interesse individua! de cada so-
1955, p. 631; RS, 1969, p. 418 (com comentirios de Ragusa-Maggiore). ciedade ao do grupo.
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aaa

tas, mesmo minoritários ou ndo-controladores. Na formulação legal do Exercendo suas atividades em setores que geralmente
el

mecanismo da responsabilidade civil, houve a definição de novos interes. afetam o interesse de todos ou de relevantes parcelas da
ses protegidos e de novo responsável (o controlador), ao lado dos admipjs. população, nada mais coerente que garantir de alguma
tradores. Mas não houve a indispensável designação do agente legitimado forma a participação interna de seus representantes.
a agir em prol do bem público. Uma das maneiras, ainda que imperfeita, de fazê-lo, é
Imagina-se que essa omissão é suprida na companhia de economia exatamente atribuir ao acionista (controlador) o Estado,
mista pelo fato de o Poder Público sempre exercer o controle aciondrio, ao menos em teoria, instrumento de representação de
com a autorizagdo expressa de “orientar as atividades da companhia de interesses coletivos, o dever de representar (fiduciaria-
modo a atender ao interesse pablico que justificou a sua criação” (agt, mente), tais interesses, além de seus próprios interesses
238). Mas essa interpretacdo lógica é abstrata € não encontra apoio na. capitalísticos. É o que faz o art. 238 da lei societária.
realidade. A experiência prática nos últimos anos tem sido, nesse
Em primeiro lugar, “interesse público” ndo quer dizer inferesse esta- í aspecto, mais rica que a própria intuição teórica.
tal, pois ambos podem não coincidir, necessariamente, sobretudo em pais
Í Esses dispositivos têm se revelado poderosos e às vezes
como o nosso, em que o Estado muito raramente foi representativo do | únicos instrumentos regulatórios de certos setores da
povo, ou da sociedade civil. Ademais, a estrutura da sociedade de econo- 3
3 economia. Especialmente naqueles setores em que a
mia mista encerra, em si mesma, grave contradição. As companhias explo- i União detém monopólio de fato, o uso do poder de con-
ram, por definição legal, empresas lucrativas. Mas o regime econdmico ? trole no interesse público tem ajudado no planejamento
consagrado na Constituição ndo assina ao Estado, por função, produzir
lu- |
$ e direcionamento dos referidos setores.
cros. A legitimidade da ação estatal, ainda e sempre, é 0 servigo piblico, a
Nessa perspectiva a empresa pública e de economia mis-
produgdo de bens e servigos que ndo podem ser obtidos no regime da ex-
ta ressurgem como objeto de análise e estudo tanto para o
ploragdo privada, de modo eficiente e justo, sem discriminagdes entre os
direito societário quanto para a teoria da regulação.
consumidores, de acordo com o priacipio da demanda solvavel, como
ocorre com a empresa capitalista. A função da empresa estatal não é a ge-
ração de receita sob a forma de lucro empresarial, mas a preservação,da 117. Convém analisar agora, mais de espaço, o conteúdo e o alcance
seguranga nacional, ou a organizagdo de setor que não possa ser desen- da expressão “interesse social”, que o legislador de 1976 substituiu por “in-
volvido com eficdcia no regime de competi¢io e de liberdade de iniciati- teresse da companhia” (arts. 115 e 117, $ 1° €).
va (Constituição Federal, art. 173). O dilema que se apresenta ao Estado, Sobre isto, muito se discutiu e se continua a discutir em doutrina. A
revisão crítica do conceito de pessoa jurídica, tal como à expusemos, re-
enquanto acionista controlador, é pois o de perseguir o interesse piblico
sumidamente, no capitulo anterior, parece haver eliminado de vez a con-
anfes e acima da exploragdo lucrativa — o que torna sem sentido a partiei-
cepção gierkeana da Person an sich, que considerava o interesse social
pação societéria do capital privado no empreendimento; ou dar lugar a0
como algo distinto e superior ao dos préprios sécios. De resto, se assim
interesse publico apenas quando este se coloca em conflito com objetivo fosse, como bem salientou Ascarelli, ndo se poderia recusar a obrigatorie-
normal de produção de lucros — o que infringe o principio constitucional dade do voto do acionista em assembléia nem a possibilidade de se consi-
assinalado. n_o_,ma_w invalidas as deliberagdes sociais tomadas pela totalidade dos
sécios.
Nota de Texto 69 Na verdade, vista sob um certo prisma, essa aparente
contradigio é capaz de incluir na dinimica das delibe-
ragdes societdrias outros interesses que não o jnteresse
privado do acionista. 14 T Ascarelli, Studi in Tema di societd, cit., p. 163.
O PODER DE CONTROLE NA SOCIEDADE ANONIMA 375
374 FABIO KONDER COMPARATO E CALIXTO SALOMÃO FILHO
1 Hoje, o modelo de participação operaria, ainda que cri-
Not: a de Texto 70 Essa posição de Tullio Ascarelli, bastante compreeng;.
ticado nos circulos neoliberais mais tradicionais,'® tem
vel na época que foi exarada, está hoje superada,
! seus méritos mais do que comprovados.'” Do ponto de
O contratualismo desprendeu-se da crença de que ape-
í
ti
nas o interesse do grupo de sócios forma a vontade. vista societdrio, operou uma importante transformagao
da concepgdo institucional. Da visão classica, genérica
social. O institucionalismo de seu lado também se de. 1i
preendeu da concepgio original de Rathenau (sem dú- e pouco aplicativa, passou-s¢ a um institucionalismo
vida influenciado pela tradição realista Gierkeana de integracionista, cujos objetivos societarios supra indi-
um interesse préprio da sociedade identificado ao inte- t viduais se revelam na integração concreta (e não em
resse publico). í
principios mal definidos) dos interesses dos trabalha-
Ambas as concepgdes — contratualismo e instituciona- dores na estrutura de poder societario.
lismo — saíram em busca de novos consensos.” — Mas é exatamente essa integra¢do concreta que coloca

i
uma questdo séria e importante, a exigir reflexdo dou-
a) Institucionalismo
trinria mais profunda: por que só os interesses dos tra-
No institucionalismo, essa busca leva a resultados mui-

b
to satisfatérios do ponto de vista social e societério, ain-
da que deixe varias questdes a serem resolvidas. 16 No plano das conseqiiéncias econdmico-juridicas, a co-participacdo germânica tem

o ek
0 exemplo é ainda aqui a Alemanha, bergo e escola do sido criticada por literatura de forte viés neocldssico. Estudos de corporate gover-
modelo institucional. No imediato pos-guerra, a idéia, nance enumeram quatro caracteristicas negativas dos órgãos de representagdo: gran-
de lamanho (enquanto seriam desejáveis órgãos compostos de número reduzido de
influente também para o direito societario, é a de des- representantes, com subcomités especializados); encontros pouco freqiientes; pequeno

A AAA
construgdo dos centros de poder. Um deles — talvez o fluxo de informagdes c altos {ndices de conflitos de interesses. As principais conse-
mais forte — é exatamente o poder empresarial. qiiéncias desse conjunto de fatores seriam a vagarosidade e burocratização das deci-
Fazé-lo implicava repensar o modelo empresarial ale- sões e aumento de custos para a empresa. Aliada 3 tradigdo concentracionista das
mio, fortemente baseado em estruturas de poder concen- empresas alemãs, o sistema de co-gestdo administrativa seria também causa da fragili-
dade do mercado aciondrio alemão (para maior detalhamento, v. M. J. Roe, “German
trado, Jsso se fez através de modelo muito interessante
co-determination and german securities markets”, in Columbia Jornal of European
de ser observado, sobretudo da perspectiva brasileira, a -

S
Law,nº 5, 1999, pp. 199-202 e pp. 209-211). Esse tipo de critica, de forte viés neoclds-
participagdo operdria nos Conselhos de Supervisio

N
sico, claramente subestima o valor da cooperagdo capital — trabalho na eficiéncia em-

o S
(Aufsichtsraf) das empresas alemds. Esse modelo; presarial, e na criagdo de uma estrutura administrativa profissional em uma realidade
mais do que forma de alterar a estrutura empresarial, econdmica concentrada (onde o controlador tem poder incontrastivel), como é o caso
serviu como potente incentivador de um pacto capi- da realidade alemã e brasilcira.
É interessante observar a avaliagio fortemente positiva feita por Comissao de Profes-
tal-trabalho e do desenvolvimento industrial alemdona á sores que realizam a avaliagio dos efeitos da Mitbestimmung para 0 governo alemdo.
segunda metade do século XX. Iniciou-se com a Mon- Í Entreas principais vantagens mencionadas destacam-se: os efeitos positivos para a efi-
tanMitbestG, de 1951, atingindo seu ponto mais avan- i ciéncia das empresas decorrentes da cooperagio capital trabalho (Produktivitdt der Koo-
¢ado com a Mitbestimmungsgesetz, de 1976. i1 peration) e a introdução de formas de gestdo não hierdrquicas e baseadas em constante
¥ fluxos de informag3o. A conclusão ¢ que, “Die zukiinftige Entwicklung der Mitbestim-
JÉ mung muf dem Leirbild einer kooperativen, dezentralisierlen, beteiligungsorientierten
und informatiousintensiven Unternehmenskultur verpflichtet sein) - v. Bericht der
15 O termo é usado por F. Galgano, Storia del diritio commerciale, cit., p. 135. para des- Komission Mitbestimmung, Bonn, entregue em 19 de maio de 1998, realizada por
crever a evohição do institucionalismo alemão. Como se verá, entretanto, essa mesma um grupo de professorcs coordenado por W. Streeck, Max-Planck-Institut fir
Gesellschafisforschung.

P
descrição ¢ aplicvel, em certa medida e por outras razdes, a0 confratualismo.
376 FABIO KONDER COMPARATO E CALIXTO SALOMAO FiLHO O PODER DE CONTROLE NA SOCIEDADE ANÔNIMA 377
balhadores merecem essa atenção? Uma visio que se cimento dos mercados de capitais sobretudo após a ca-
pretenda ndo individualista da realidade societária tástrofe de 1929.
deve necessariamente ter em conta os vários interesses Para tanto, lança-se mão do conceito de maximizagio
envolvidos pelas estruturas empresariais de porte: ip. do valor das agdes. Tal idéia, cara aos neocldssicos
teresses de consumidores, comunidade afetada por americanos, * seduz também os contratualistas.'” Essa
conseqiiéncias ambientais da atividade empresarial etc. passa a ser a definição Gltima do conceito de interesse
Quais os critérios para identificar quais podem ser :_s“ social, além do qual ndo haveria desenvolvimento pos-
lados internamente e quais devem permanecer extemos sivel para o direito societério.
a sociedade, com disciplina propria? Dessa última afirmagio advém a primeira fraqueza, 6b-
A resposta a essas perguntas, dedicar-se-20 os esforgos via, dessa concepção. Como toda tentativa de pré-defi-
da teoria organizativa, verdadeiro complemento e am- nição, engessa e limita o desenvolvimento cientifico. O
pliagdo das idéias do institucionalismo integracionista, préprio titulo do artigo de H. Hansmann e R. Kraak-
man, 20 mesmo tempo pretensioso, e talvez por isso
b) Contratalismo mesmo pueril, é boa demonstração desse risco.
Como dito acima, o contratualismo também sofre Mas não é só. Tal definição do interesse social — exata-
profunda revisio critica. Só que aqui os resultados são mente por permanecer autocentrada — acaba por favore-
bem mais parcos e indesejiveis, talvez porque a revi- cer um único tipo de comportamento, a especulagio.
são tenha seguido orientagdo filoséfica oposta à do
Não é de se esquecer que a definição de interesse social
é pardmetro para a atuação de acionistas e administra-
institucionalismo.
Esse Gltimo busca escapar de qualquer pré-definigdo do dores. Afirmar que o interesse social reduz-se ao inte-
interesse social, procurando integrar interesses que resse à maximizagio do valor das agdes implica
possam levar a uma definição mais ampla e compreen- justificar atuagdo de administradores e acionistas que

i
visem exclusivamente esse objetivo, inclusive aquelas
siva do interesse social, concentrando-se na participa-
ção efetiva na sociedade de representantes dos
anobras puramente especulativas.®’
Em presenga de tal definigdo do interesse social, não
interesses por ela eavolvidos. Ja o primeiro tenta, como
são de espantar os recentes escandalos societérios no
se verá, uma definição absoluta e definitiva do interesse
mercado de capitais. Esses escândalos societdrios, de
social.
As correntes contratualistas modernas criticam a liber-
‘3
dade atribuida pelos contratualistas classicos aos acio-
i
nistas para definição do interesse social. Afirma-se que 18 y faw”, cit., pp. 439 & .
of corporate
1. Hansmann e R. Kraakman, *“The end of histor
essa liberdade ndo é compativel com a existéncia do 19 V., sobre a concepgdo de interesse social na teoria contratualista, P. G Jaeger, L' inte-
mercado de capitais, que pressupde a existéncia de acio- resse sociale, cit., bem como sua revisio pelo mesmo autor em “Linteresse sociale ri-
nista futuro e incerto. visitato (quarant'anni dopo)” in Giurisprudenza commerciale, parte [ (2000), pp. 795 ¢
E com esse investidor, acionista futuro e incerto, que se ss.
20 Não se deve esquecer que um resultado pacifico da modema teoria dos jogos é que os
busca novo consenso, procurando-se agora não apenas
comportamentos individuais são fortemente influenciados por estrutura de relaciona-
pré-definir as regras de organizagdo interna da socieda- Inento social que leva em conta o comportamento passado dos demais agentes do mer-
de, como tinha sido feito na segunda metade do século cado e as regras sugeridas de comportamento. Ou seja, a reputagao do outro com quem
XIX, mas sim pré-definir e se possivel positivar o se interage é elemento fundamental além das regras que determinam o objeto da intera-
proprio conceito de interesse social. Esse consenso se 430 (jogo). Se essas regras instigam o comportamento individualista dificilmente a co-
mostra necessario para possibilitar a organizagao e cres- operagdo podera ocarrer.
378 FÁBIO KONDER COMPARATO E CALIXTO SALOMÃO FILHO O PODER DE CONTROLE NA SOCIEDADE ANONIMA 379
resto, não são novos — repetem-se ciclicamente desdeo" Para tanto, duas nogdes, ambas bem conhecidas e já
South Sea Bubble, de 1720, na Inglaterra® e revelama mencionadas, são úteis para encaminhar a anélise. É ne-
absoluta incapacidade da legislação de mercado de ca. cessario aqui resumidamente repeti-las e organiza-las.
pitais de prevenir grandes prejuízos 20s investidores, A primeira, a famosa idéia coasiana” da empresa como
Essa incapacidade não deriva de insuficiências Proprias, feixe de relagdes juridicas ou um feixe de interesses.
mas da incoeréncia da concepção socielida contratua- A segunda, a também conhecida e resiliente construgdo
lista, que continua a estimular especulagdo e ndo a per- do contrato de sociedade como um contrato-organiza-
manéncia na m:%ãmm.z ção, * que visa não a dar guarida a diferentes interesses
Foi o que ocorreu nos recentes grandes escândalos es- ordenados a um fim, mas sim organizar tais relagdes em
peculativos norte-americanos. Ali se demonstrou outra - prol de um interesse societério destacdvel do individual.
fraqueza do modelo contratualista. À extremada con- Ora, não é dificil dai derivar uma noção procedimental
da sociedade e do interesse social. O objetivo maior de
cepção contratualista, além de influenciar a definição
qualquer estrutura societaria parece ser entdo reconhe-
do interesse social, ajuda a determinar a própria remu-
cer ¢ internalizar interesses envolvidos pela sociedade e
neração dos administradores, que nessas empresas con-
assegurar regras que permitam a composigao de confli-
sistia basicamente em opções de compra de ações. Isso
tos entre esses varios interesses. Em presenga de uma
significa que tanto maior será o ganho do administrador
tal definigdo procedimental não é dificil que a discus-
quão maior for o valor — real ou artificial — das ações.
são se desloque da definigdo do interesse social (entre
Toda a filosofia e organização societária gira portanto
publico e privado) para outras, mais aplicativas e pre-
em torno da idéia, especulativa, de maximização do va-
mentes, como a distinção dos interesses interiorizaveis
lor das ações. O estimulo à criação artificial de valor
dos nio-interiorizaveis e a identificagdo da disciplina a
pela administração, grande causa desses escândalos,
se aplicar a estes ¢ aqueles.
decorre diretamente dessas características societárias e A grande questdo a ser resolvida, então, estd exatamen-
não de falhas na legislação de mercado de capitais. te na determinagao dos interesses que podem ou néo scr
¢) Conclusão — as perspectivas teóricas para as socie- interiorizados.
dades anônimas A lei ndo contém critérios tedricos gerais definitivos
que possam respondera essa questao. A anélise empiri-
Todas as insuficiéncias até aqui detectadas sugerem a
ca de cada interesse especifico envolvido e de sua rela-
necessidade de uma visão mais abrangente, capaz de
ção momentinea com os interesses societarios é funda-
captar os vários interesses envolvidos na sociedade
mental. Bom exemplo disso é a propria lei de participa-
anônima sem pré-definições que impeçam a evolução
ção operaria alem, que surgiu em um momento histori-
do sistema. co de grande interdependéncia entre empresas e
trabalhadores. Foi essa interdependéncia, mais do que
qualquer preocupagdo tedrica, que determinou a intro-
2 t V., sobre o caso, A. A. Berle Jr. ¢ G Means, The modern corporation and prívate pro-
perty, Nova lorque, The Macmillan Company, 1940, p. 131.
Al está o segundo elemento citado na nota 20, a reputagio — do controlador ou adminis-

"N
tradores — maior estimulo para comportamento individualista (especulador) dos demais 23 R.H. Coase, “The nature of the firm” in The firm, the market and the law, cit.
acionistas e maior prejulzo a0 mercado de capitais. 24 P Ferro-Luzzi, / contratti organizativi, cit., 1976.
FÁBIO KONDER COMPARATO E CALIXTO SALOMÃO FILHO O PODER DE CONTROLE NA SOCIEDADE ANÔNIMA 381
380
dução do sistema de participação operária, apesar das Outro exemplo, da experiéncia brasileira, bem demons-
resistências ideológicas existentes. tra a relação entre os requisitos para a cooperagao e a
Apesar dessas dificuldades, é possível tentar identificar internalizagdo de interesses externos à sociedade. Tra-
critérios gerais, indicativos de maior ou menor probabili. ta-se de noticia publicada no jornal Valor Econômico
dade de obtenção de bons resultados com a internaliza. de 21.05.2002 dando conta da aquisi¢do por empre-
ção, critérios que podem servir para iluminar a análise gados de empresas em estado pré-falimentar, como for-
empirica de cada relação específica de interesses. ma de sua salvação (o caso mais conhecido citado é o da
Os critérios gerais a serem utilizados são aqueles suge- industria de lavadoras “Enxuta”). Em situações de cri-
ridos pela teoria da cooperação. A razão é simples. Exa- - se, só aqueles interesses mais dependentes e constan-
tamente por partir do pressuposto de que o objetivo das temente relacionados com a sociedade se dispdem a
estruturas societárias é organizar interesses, eliminan- - salvé-la, internalizando-se.
do os conflitos existentes, fundamental é a0 menos a Esses exemplos demonstram a possibilidade de coope-
possibilidade de cooperagio entre os interesses envol- ração dos respectivos grupos de interesses com os inte-
vidos. A moderna teoria da cooperagdo sugere trés cri- Tesses tipicos de grupos internos a sociedade, como 0s
térios bem simples e até intuitivos, ainda que bastante acionistas, exatamente pela existéncia de dependéncia
genéricos, para determinar essa possibilidade: continui- reciproca.
dade da relação, pequenos nimeros e boa quantidade de- ‘Dadas essas premissas, que sugerem fortemente o reco-
informação.” Essas três caracteristicas, tomadas em seu nhecimento interno de interesses tão interdependentes
com 0§ societarios, como o dos trabalhadores e consu-
conjunto, são capazes de garantir a interdependéncia e a
confianga reciproca necessarias para a cooperagao. midores, um dos novos grandes campos da investiga-
Não é de espantar, portanto, que a conjungao e coopera- ção societdria se torna (i) a determinagao das condigdes
ção de vários interesses internos à sociedade tenham. concretas para essa internalização e (ii) o estudo especi-
fico e detalhado de cada um dos interesses, verificando
ocorrido voluntariamente exatamente nas hipoteses em,
se, quando e como é mais conveniente sua internaliza-
que a cooperagdo era possivel.
Tome-se, por exemplo, o caso das cooperativas de pro- ção e, em caso negativo, qual a melhor forma de reguia-
mentar a relação desses interesses (externos) com a
dutores agricolas nos EUA que acabaram por dominar
parte substancial do mercado de insumos agricolas
sociedade.
(27%). Essa aquisição voluntaria deveu-se à grande de- j
pendéncia e necessidade da constante relagao econômi- Mas o interesse social não ¢ redutivel a qualquer interesse dos sécios
e sim, unicamente, ao seu interesse comum de realização do escopo social.
ca entre produtores de insumos e seus consumidores
A comunhio de interesses existc tanto na sociedade quanto na comunidade.
(produtores agricolas) fazendo com que os últimos fi-
Aespecificidade da sociedade resulta do fato de ser ela uma comunhdo vo-
nalmente optassem pela aquisigdo. Assim, interesses de
luntaria de interesses distinta, portanto, não só da meramente incidente (ou
consumidores acabaram por adentrar a sociedade via
acidental) que ocorre, por exemplo, na avaria comum, como também da co-
aquisição acionária.*
munhão necessaria.>’ Ora, quem diz comunhdo voluntéria, refere-se, im-
plicitamente, a um escopo ou objetivo. Os sócios reúnem-se para a
25 R Axelrod, The evolution of cooperation, Nova lorque, Basic Books, 1984, pp. 129 €
ss.
26 H. Hansmann, The ownership of enterprise, cit. 27 T Ascarclli, Studi in Tema di societd, cit., p. 148.
382 FÁBIO KONDER COMPARATO E CALIXTO SALOMAO FILHO O PODER DE CONTROLE NA SOCIEDADE ANONIMA 383
realização de um objetivo comum. O interesse social consiste, pois, no in- dade imobilidria causa mortis, por exemplo, essa companhia não é nula a
teresse dos sócios 4 realização desse escopo. Daí a possibilidade de exis. todos 0s outros respeitos, notadamente quanto as suas relagdes contratuais
tência de um conflito entre sócio e sociedade, na medida em que aquele com fomecedores, clientes ou empregados. O legislador não pode deixar
persegue, enquanto sócio, objetivos diversos desse escopo comum. de modular as sanções que comina, de acordo com a multiplicidade dos fa-
Em matéria societária, esse escopo comum decompõe-se em dois ele- 1os tipicos a sancionar. No caso, a ineficdcia, que é sempre relativaa certos
mentos: o objetivo final e o modo de sua realizagdo. O objetivo final é a atos ou relações, parece-nos a única sanção adequada, dada a extrema varie-
produção de lucros, com a sua repartição entre os sócios; e nisto vai a dife- dade dos atos eventuaimente praticados in fraudem legi.
rença específica entre sociedade e associação. Ora, ao controlador, mais do O desvio de poder de controle ¢ anomalia sempre ligada a opressão
que a qualquer dos outros participantes na sociedade, compete o dever de dos ndo-controladores, à situação que na pratica norte-americana denomi-
atuar em vista da realização dessa finalidade; não só pelo exercício do voto,
na-se intracorporate oppression ou freezing out ou squeezing out minority
mas também fora da assembléia, definindo a política empresarial e promo-
._ɪaãmã.% No direito inglés, fala-se, de modo análogo, em fraud on
vendo sua aplicação pelo órgão administrativo. i
the minority, mas a doutrina salienta que a expressão deve ser interpretada
118. Para garantir a realização do interesse social, no sentido que aca-
em sentido targo.** Por outro lado, pode haver, também, elusão de disposi-
ções legais imperativas, sem opressão aparente. Mas é óbvio que, sendo as
bamos de definir, a lei costuma impor limites à ação do controlador. No sis-
normas de direito societário editadas para proteção dos interesses dos sócios
tema da common law, essa limitação legal ao exercício do controle é
ede terceiros, os atos de fraude 2 lei trazem sempre consigo a potencialida-
organizada, preferencialmente, em torao da proibição da prática de atos ex-
travagantes do objeto sacial, entendido como definição da capacidade da de de dano.
Na Lei nº 6.404/76, a sangdo, prevista genericamente, ¢ apenas a de
pessoa jurídica (ultra vires). Nos demais sistemas jurídicos, como o nosso,
preferiu-se garantir o respeito, em qualquer hipótese, a um certo número de perdas e danos (art. 117), salvo quando o abuso de controle ocorre median-
direitos dos acionistas, concebidos analogamente aos direitos individuais te voto em assembléias gerais, hipdtese em que tém aplicagdo as normas do
do homem e do cidadão na sociedade politica (Lei nº 6.404/76, art. 109). art. 115, com a previsdo, em seu $ 4°, da anulabilidade da deliberação toma-
Em ambas as hipóteses, como reconhece a jurisprudéncia francesa, reto- da em decorréncia do voto de acionista com interesse conflitante com o da
mando expressão consagrada pelo Conselho de Estado, mas que nos parece companhia; ou, entdo, da norma geral de anulação de deliberagdes viciadas
imprecisa, a violagdo da norma configura um excesso de %e&w« por parte do por dolo, fraude, ou simulagdo (art. 286).
órgão social que praticou o ato, ou tomou a deliberação. * A sanção é a nuli- Essa preferéncia pela sanção compensatéria ¢, alids, um dos traços
dade, por ter sido o ato praticado contra legem. marcantes do individualismo patrimonialista que domina nossa organiza-
Ora, o desvio de poder, como assinalamos, caracteriza-se pela elusão ¢do juridica. Diante do dano a interesses sociais ou coletivos, a legitimida-
de disposições imperativas, pela sua observância meramente aparente ou i de do particular de agir somente aparece quando pode produzir a prova de
formal, frustrando-se a finalidade da norma. Sobreleva, neste campo, a um prejuizo individual. E como a defesa do interesse geral é monopoliza-
função inquisitória do juiz, que não se deve contentar com as aparências,
K
mas atentar sempre para os fins sociais da lei e as exigências do bem co-
mum, como prevê a Lei de Introdução ao Código Civil (art. 5º). i
29 Veja-se, sobre o assunto, o estudo claro e completo de F. H. O’Neal e R. B. Thompson,
A sanção própria dos atos de fraude à lei deveria ser a ineficácia e não
Oppression of Minority Shareholders, cit.
a nulidade. Se se constitui sociedade por ações para elidir a aplicação de 30 “Fraud’ here connotes an abuse of power analogous to its meaning in a court of
disposições sucessoriais ou a imposição fiscal da transferéncia de proprie- equily to describe a misuse of a fiduciary position. Nor is it necessary that those who
are injured should be a minority; indeed, the injured party will normally be the com-
pany itself, though sometimes those who have really suffered will be a class or section
of members, not necessarily a mumerical minority, who are outvoted by the conirol-
28 Cf.G Ripert ¢ R. Roblot, Traité, cit., ), 0 1.221 e 1.230. lers” (L. B. Gower, The Principles of Modem Company Law, cit., p. 564).
s

384 FABIO KONDER COMPARATO E CALIXTO SALOMÃO FILHO O PODER DE CONTROLE NA SOCIEDADE ANÔNIMA 385
A

da, comumente, pelo titular do poder, a conseqiiéncia indefectivel é a ina» ativa ordinária (art. 6º do Código de Processo Civil) ao
plicagdo de sanção adequada aos casos de abuso de poder. menos para os sujeitos identificados no art. 116, pará-
AL AN A

A lei de sociedades por agdes de 1976, ainda ai, não obstante consa- grafo único, da lei societária. Isso significa que deci-
grara instituição do acionista controlador, deixou de completar a discipling sões sociais que possam afetar a vida dos trabalhadores
do instituto com o aparelhamento de congruas sangdes, a comegar pelo me- ou da comunidade em que atua a empresa (além, é ob-
W 5 B A vio, dos demais acionistas queja contam com legitimi-
canismo da ação social uti singuli, tradicionalmente prevista para os casog
de responsabilidade administrativa. Diante da omissão legislativa, porém, dade expressamente prevista em lei) poderdo ser
parece irrecusavel a aplicação analégica do direito positivo, segundo o contestadas por trabalhadores ou membros da comuni-
mandamento da Lei de Introdução ao Codigo Civil (art. 4°). Qualquer acio- dade em que atua a empresa. Sendo a legitimagdo ordi-
nária a regra para quem tem direitos e interesses

SEESREE N
nista, em nosso entender, é parte legitima para propor ação de perdas e da-
nos, no interesse da companhia contra o controlador, observando, no que legitimos (art. 6° do Codigo de Processo Civil) e o art.
couber, os dispositivos do art. 246, $ 1°. Não vemos obstaculo insuperavel, 1 16, parégrafo único, os atribui a trabalhadores e comu-
para tanto, na norma do art. 6° do Codigo de Processo Civil, uma vez que. nidade em que atua) não há como negac-lhe a legitimi-
dade para buscar wtela especifica de seus interesses,
essa autorizago legal para a substitui¢do processual não pode ser interpre-
ainda que individualmente. A definição de interesses le-
tada de modo estrito, como previsão direta e taxativa da lei.
gitimos cria necessariamente a legitimidade ativa para
Nota de Texto 71 De todo modo, o principio genérico de substituição pro- sua tutela**
cessual em matéria societdriaj4 foi estabelecido no art. Evidentemente, devido às limitagdes subjetivas da coi-
246, $ 1º, da lei societaria. Não haveria sentido aplicar o
sa julgada é de se esperar, especialmente para deman-
i
; das reparatdrias, a elaboração de regras especiais para
dispositivo apenas quando o controlador fosse pessoa
juridica, deixando de se aplicar na hipdtese autorização proteção também dos interesses difusos, coletivos e in-

it aaal a
legal expressa para substituição processual no caso de
controlador pessoa fisica.
Alé porque, tendo em vista o principio constitucional Um dos problemas da lei acionária de 1976 esté na aparente diferença entre a definigio
3
do amplo acesso à justica, a interpretagdo das regras so- dos titulares do interesse social e dos legitimados ativos para as demandas societérias.
bre legitimidade ativa não pode e nem deve ser restriti- Oart. 116, parigrafo tinico, da lei define como titulares do interesse social (entendido,
va ou exclusivamente gramatical.

0
nesse caso, como interesse & manutenção da empresa) os acionistas, os empregados e
Não é esse o local e nem é o subscritor fonte autorizada os investidores do mercado. Em face da norma do art. 246 da Lei nº 6.404/76, no entan-
em matéria de direito processual. Mas, duas observa- to, a doutrina tende a negar a possibilidade de atribuição de legitimidade ativa a inves-
ções gerais sobre o direito processual aplicado 2 ques-
tidores e empregados para a referida demanda; v. F. K. Comparato, O poder de contrale
na sociedade andnima, Rio de Janciro, Forense, 1983, p. 301; v., contra, E. L. Teixeira,
tdes societdrias, de tdo triste historia em nosso pais, J. A, T. Guecreiro, Das sociedades anénimas no direito brasileiro, v. 1, São Paulo, Bus-
devem, no entanto, ser feitas. Ambas partem de consta- hatsky, 1979, p. 301. Essa interpretagdo deve ser, no entanto, contestada. Trabalhado-
tagdes pontuais de direito material. res ¢ membros da comunidade em que atua a companhia, como co-titulares do
Em primeiro lugar, da definição institucional-organiza- interesse social, são legitimados a defender seus legitimos interesses individuais (legi-
tiva do interesse social aqui defendida, decorrem certas timação ordindria), independentemente de regra especifica prevendo essa legitimida-
de. Ao contririo, só as hipóteses de legitimação exiraordiniria cxigem previsão legal
conseqiiéncias processuais. Ainda que ndo redutivel a0 cxpressa - v. Cédigo de Processo Civil, art. 6°, in fine. Assim, o art. 246 da Lei nº
interesse público, a concepgdo institucional moderna 6.404/76 deve ser interpretado como mera disciplina dos requisitos para que acionistas
do interesse social (v. Nota de Texto 70) ao identificar (¢ só eles) proponham demanda ressarcitdria. Ndo pode ser interpretado a contrario
interesses dignos de tutela societdria, cria legitimagaa sensu, excluindo outros interesscs legitimos, dotados de legitimacio ordinária
w%«u@

386 FABIO KONDER COMPARATO E CALIXTO SALOMAO FILHO O PODER DE CONTROLE NA SOCIEDADE ANONIMA 387
dividuais homogéneos envolvidos pela sociedade — & B) As Manifestações e os Remédios
que não impede, repita-se, a proteção, desde j4, dos in
i

teresses dos trabalhadores e membros da comunidade 119. Não há dúvida de que o poder de apreciação e decisão sobre a
em que atua a empresa. oportunidade e a conveniência do exercicio da atividade empresarial, em
Pk
A segunda caracteristica material importante com refle. cada situação conjuntural, cabe ao titular do poder de controle, e só a ele.
xos processuais é bem conhecida. Sua importincia para A Trata-se de prerrogativa inerente ao seu direito de comandar, que não pode
ti
o direito processual tem sido, no entanto, absolutamen- deixar de ser desconhecida, como salientamos, em homenagem a uma con-
te desconsiderada. 7 cepção anárquica, ou comunitária, da sociedade por ações.
Constituindo a vida societaria uma atividade e não uma - Frequentemente, no entanto, sob a invocação de interesses superiores

hdeai
sucessão desencadeada de atos, uma série de institutog da sociedade (análoga à invocação da razão de Estado na esfera política), o
processuais perdem sentido. Um julgamento de unrato:

h
j
que ocorre, na verdade, é o sacrifício dos não-controladores ao capricho ou

Gk
do passado, sendo um ato humano, além de (ou talvez
interesse pessoal dos controladores; ou a interesses que não são, propria-
antes que) juridico, acaba por ter em conta os efeitos da
mente, os da sociedade em questão, e sim do grupo econômico mais vasto
teversdo do ato sobre a situagdo presente. Daf a pou- ¢ no qual se insere,
quissima freqiiéncia de anulação de atos societirios ou; ii Esse conflito de interesse pode manifestar-se pelo exercício do direito
de jurisprudéncia consistente nessa matéria. A dificulda- — i
de voto em assembléia, ou por decisões tomadas em nível administrativo.
de em alterar um ato vérios anos depois, consumadas vé- s
suas conseqiiéncias, é evidente. Nio mais O Decreto-Lei n®2.627 tinha, no que concerne ao conflito de interes-
rias de
isolável, o ato já se conjugou 4 atividade, sendo impossi- ses no exercicio do voto, as disposições dos arts. 82 e 95.% A existência de
vel aplicar-lhe a disciplina dos atos. Urge aqui pois uma . uma contradição de interesses, como salienta a doutrina, é questão de fato,
reforma processual, especifica para o direito societério, a ser apreciada em concreto, conforme as circunstâncias.** Mas, de qual-

b
transformando a tutela antecipatoria ou cautelar da nu- quer forma, o que a lei previa era apenas um conflito entre o interesse pes-
lidade (absoluta ou relativa) dos atos societdrios em tu- soal do acionista, que toma parte na votação, e o da sociedade. Bem se vê

il
tela definitiva, Só assim serd possivel controlar o ato — que a realidade do grupo econômico estava totalmente ausente do espírito
antes que se integre à atividade societdria. 5 do legislador de 1940, pois, no seio do grupo, como frisamos, é normal o
De lege ferenda, no entanto, a experiéncia acumulada neste pais sobre sacrifício de uma sociedade ao interesse coletivo do grupo econômico, que
a frustrante aplicagdo dos mecanismos juridicos de proteção a não-contro- não se confunde, propriamente, com o interesse particular do acionista
ladores estd a aconselhar a adogdo de sanções punitivas ou dissuasrias controlador. A lei acionária alemã (§ 243, alínea 2), muito mais aderente à
contra o abuso de controle, a par da ineficácia do ato e das perdas e danos.” realidade econômica, inclui na proibição também o voto em assembléia por
interesse de outrem, em conflito com o da própria sociedade (a menos que
haja o reconhecimento expresso da existência de grupo, com a celebração
de um “contrato de empresa”, como veremos abaixo).
32 Na doutrina constitucional norte-americana, ji se susteatou com brilho a conveniéncia
de uma defesa dos direitos individuais por meio de sanções de dissuasão E&Q.ÃR&.
saindo do tradicional esquema da responsabilidade civl ((orfs). Cf., a esse respeito,a
excelente nota publicada na Harvard Law Review, vol. 93, nº 5, março de 1980,pp.
966 ¢ ss. Não se deve olvidar, de resto, que as funções tradicionais da responsabilidade 33 Art.82.“O acionista não pode votar nas deliberações da assembléia geral relativas ao
taudo de avaliação dos bens com que concorrer para a formação do capital social, nem

A R Bl
civil não se limilam A mera indenização, mas objetivam também, em o»:hwE_&_nmfl..u
punição do responsdvel. Ct. a tese de B. Starck, no direito francés, Essai d'une .QAS.. nas que venham a beneficid-lo de modo particular.”
Générale de la Responsabilité Civile considérée en sa double fonction de garantie et 34 M. Valverde, Sociedade por Agaes, cit., 11, nº 455; Pontes de Miranda, Tratado de Di-
de peine privée, Paris, L. Rodstein, 1947. B reito Privado, cit,, L., $ 5.322,4.
388 FABIO KONDER COMPARATO E CALIXTO SALOMÃO FILHO O PODER DE CONTROLE NA SOCIEDADE ANONIMA 389
A Lei nº 6.404/76, nesse particular, aperfeiçoou o direito anterior, ad. Aumenta ainda mais, portanto, a possibilidade de coope-
mitindo que possa haver abuso no exercício do direito de voto com o fito de ragdo. A regra do conflito de interesses formal tem, por-
obtenção de vantagem para o votante ou para outrem, em prejuízo não só tanto, dupla função. Além de evitar decisdo seguramen-
efetivo, mas também potencial “à companhia ou a outros acionistas” (ar, te prejudicial a sociedade, ajuda a formação de uma
ambiente cooperativo, fundamental para seu desenvol-
115). Prevê, ademais, a ocorrência de abuso da minoria, no exercício do
vimento.
voto (§ 3°).
A todos esses argumentos teoricos ¢ de fato tém sido
dada muito pouca atengdo, em função exatamente da
Nota de Texto 72 A questão do conflito de interesses é na verdade nuclear
para o controle do exercicio do poder pelo controlad, interpretagdo contratualista, retro criticada (Nota de
Texto 70), da lei societéria brasileira.
e para a propria criação de um ambiente societirio coo-
A posição contratualista fradicional privilegia a chama-
perativo. Aqui, a teoria dos jogos é de grande valia para
demonstrar o porqué. Como explanado na Introdução, a da regra de conflito de interesses material. Segundo ela
modema teoria dos jogos demonstra que o comporta- 0 voto do acionista em assembiéia é sempre permitido,
mento individual é fortemente influenciado pela estruty- devendo ser a posteriori comparado ao interesse social
ta de relacionamento interindividual. Se essa estrutura para eventual anulagdo. Essa idéia contratualista vem
estimula a cooperagdo, havera possibilidade de coopera- sendo utilizada na interpretagdo do art. 115, $ 1°, da lei
societaria, e vem gerando inúmeras controvérsias dou-
¢do, caso contririo ndo. Dois elementos importantes
para determinar essa estrutura são a reputagio dos trindrias a respeito da sua aplicação. Duvidas não há so-
agentes e o proprio tipo de integragao, ou seja, se é de bre as primeiras duas hipoteses do dispositivo.
soma zero (tudo o que um ganha o outro perde) ou não. Sobre a última hipótese, no entanto, paira forte discus-
O primeiro elemento é relevante, pois se a reputagdo do são doutrindria. A dúvida é sobre sua caracterizagao
segundo agente for individualista, o primeiro terá mais como conflito de interesse formal ou material.** E no-
estimulo a um comportamento individualista (como
acorre no dilema do prisioneiro). Quanto ao segundo
elemento, sua relevincia decorre de sua prépria efetiva- 35 Parte da doutrina classifica a hipotese do art. 115, $ 1°, como conflito formal, no senti-
ção. Interagdes que não são de soma zero podem trazer do de que ndo poderia o aciopista concorrer para a formagdo da vontade expressa em
beneficio a um jogador sem prejudicar o outro. O com- deliberagio assemblear relativa “ao laudo de avaliação de bens com que concorrer para
portamento cooperativo é mais provavel. a formagio do capital social ¢ 4 aprovagdo de suas contas como administrador”. A par-
Ora, a regra de conflito (sobretudo a formal) pode influ- ticipagio do acionista em duas posigdes juridicas contrapostas é razdo suficiente para a
suspensdo do exercicio de voto. Nesse sentido, v. M. Carvalhosa, Comentirios i Lei de
enciar decisivamente os dois fatores. De um lado, reti- Sociedades Anénimas, vol. 2, São Paulo, Saraiva, 1997, pp. 410 e 41 1. Por ourro [ado,
rando o acionista das decisdes em que tem interesse há a indagação se existiria, no dispositivo legal, uma efetiva violação a acarretar anuli-
individual, impede a formação de uma reputagéo indi- dade do voto per se ou se a sanção legal de anulag3o somente seria aplicada na presen-
vidualista. A cooperagdo entre os acionistas é mais pro- ça de conflito material de interesses, v. E. Valladio Franga, Conflito de Interesses nas
vével. De outro, a mesma proibição de voto em uma Assembléias de S.A., cit., p. 92. Este questionamento serve i partc da doutrina que con-
sidera necessária a avaliação de conflito de interesses in concrero, não bastando sua
rodada da interagdo que seria seguramente de soma
mera previsio formal: “cabe indagação relativamente ao mérito da incompatibilidade
zero (pois havendo interesse individual envolvido em entre o exercicio 20 voto com a matéria submetida à deliberação da assembléia geral,
uma determinada decisão, tudo o que a companhia per; de onde deva ser encarado casuisticamente, para efeito de sua anulagao”, v. L. G
der reverterá em beneficio para o acionista) acaba por Ledes, “Contlito de Interesses”, in Estudos e Pareceres sobre Sociedades Anénimas,
transform4-lo em interagdo de soma diferente de zero. ¢it,, p. 25. Por fim, hé terceira posição no sentido de que embora o conflito de interes-
i
I
Í 390 FABIO KONDER COMPARATO E CALIXTO SALOMÃO FiLHO O PODER DE CONTROLE NA SOCIEDADE ANÔNIMA 391
ta-se que essa é a hipótese mais importante, pois é nela pedido, com base na maioria das vezes em razdes pro-
exatamente que se formula o princípio geral de conflito cessuais.”
repetido, de resto, corretamente no art. 156 da lei (con- Na perspectiva institucional organizativa a regra de
flito de interesses dos administradores).** conflito de interesses assume uma fungdo nova e bem
O grande problema é, ainda aqui, o recurso à expres- mais importante. Trata-se do instrumento mais impor-
são “interesse conflitante com o da companhia”. Mal tante de depuragdo dos interesses individuais dos socios,
definido e mal estabelecido estruturalmente como ¢o permitindo a convivéncia ¢ a cooperagio socictaria.
interesse social, tal menção só reforga posigdes juris. — & Para tanto, a0 contrario do que vem sendo a interpreta-
prudenciais tendencialmente avessas a intervir nos ne- . ¢do do art. 115, $ 1°, da lei das sociedades anônimas, é

i
gocios sociais.”” preciso reforgar a idéia de conflito de interesses formal.
Na pritica, esse sistema tem levado 2 virtual desapli- =~ Em presenga de uma definição procedimental do con-

SUAA
cação das regras sobre conflito de interesses, pois a flito de interesses, como € a organizativa, toma-se inú-
anulação de atos é incompativel com a atividade socie- til qualquer definigdo que exija a pré-definigdo do
tária. Chegado o momento da decisdo final em processo interesse social. É claramente o que ocorre com a con-
de conhecimento visando a anulagdo da Assembléia, cepção material, que só pode ser aplicada comparando
tantas e tdo virias consequiéncias da assembléia impug: em cada caso o interesse do sócio com o interesse da
nada já decorreram para a companhia e para terceiros sociedade.
que é invidvel anul4-la. Em jurisprudéncia, esse tipo de Ora, a interpretago organizativa, além da conveniéncia
questdo tem se resolvido ou pelo simples atendimento de. tedrica, implica nada mais que dar valor à letra do art.
pedido subsididrio de perdas e danos (solução ineficaz 115, $ 1°, da lei societaria, expresso ao afirmar que ndo
para o controle do poder do controlador, como visto no pode participar da deliberação acionista com qualquer
texto) ou pela pura e simples rejeigdo do provimento interesse especial no negocio de deliberagdo. Trata-se,
portanto, de proibição de participação e não-participação
controlada pela regra de conflito de interesses material.
ses deva ser apurado caso a caso, permanece a proibição do vato “quando se tratade
wna das situagdes de conflito aberto de interesses, relacionadas no $ 1° do art, 115", Mas não só gramatical € a interpretagdo. Também teleo-
pois “trata-se, afinal, de mera aplicação do principio nemo iudex in causa propria®, ... — Jégica. Basta observar a já mencionada dicgdo clara-
F. K. Comparato, “Cantrole conjunto, abuso no exercicio do voto acionário calienagio mente organizativa do art. 116 da mesma lei.
direta de controle empresarial”, in Direito Empresarial: Estudos e Pareceres, São Pau-
lo, Saraiva, 1995, p. 91. é

d
LBt Laa i
38 Aandlise de decisdes recentes leva a concluir pela preferéncia de uma maior flexibili-
zação da aplicação dos dispositivos legais que ensejam a anulação e manutenção da va-
36 Como já visto anteriormente, o princípio gera! de conflito de interessesé aplicável ato- lidade da assembléia impugnada, ou anulação de apenas parte de suas deliberagdes. V.
dos os gestores de patrimônio alheio. os seguintes julgados do Superior Tribunal de Justi¢a e do Tribunal de Justiga de São
37 Tais posições baseiam-se exatamente na impossibilidade de definição judicial d Paulo: Recurso Especial n° 74.683-SP (1996), que rejcita a anulação de assembléia em
resse da companhia. As decisões proferidas por nossos Tribunais Superiores manifes- que os votos que teriam sido proferidos irregularmente não cram suficientes para mo-
tam alinhamento' à interpretação dada pela doutrina à matéria, que considera 0 dificar o sentido da deliberagio; Apelação Civel nº 40.514-4/3 (1998), que considera
interesse da companhia como o interesse comum dos acionistas abstratamente consi- insuficiente para anular a assembléia geral erro formal na redação de sua ata, bastando
derados (uti socii) e não como a somatória de interesses individu: sua corregao; Recurso provido JTJ (227/147), que determina a anulagdo da assembléia
u inguli) (v. RT615/162, e TISP, 18.11.1996, in N. Eizirik, Sociedades Anônimas — acral ordinaria apenas na parte em que deliberou quanto à forma de apurag3o dos divi-
Jurisprudência, Rio de Janeiro, Renovar, 1998, p. 175). dendos das agdes ¢ seus reflexos nas demonstragges financeiras.
|
m
392 FÁBIO KONDER COMPARATO E CALIXTO SALOMÃO FiLHO O PODER DE CONTROLE NA SOCIEDADE ANONIMA 393
Aqui, portanto, verifica-se um dos mais graves desajus-
Í controfador, e é este principio que deve prevalecer, não se podendo inter-
tes da aplicação da lei. Embora na teoria moderna, os obe pretar isoladamente esses dispositivos legais.
Jetivos e principios da lei e a prépria letra do art, 115;§ - Observa-se, ainda, que todas as modalidades abusivas descritas no §
1º, indiquem no sentido institucional organizativo, a in. 1º do art. 117 são dolosas, sendo que algumas delas (alineas b e ¢) exigem
terpretagdo contratualista da lei tem levado à impossibi- * do agente dolo especifico. Em certos casos, o intento fraudulento ou preda-
lidade de imposigdo de lunites ao poder do controlador; 16rio do controlador é facilmente dessumivel dos fatos. Em outras hipote-
A nossa tradicional e histórica tolerdncia com o poder ses, porém, a prova do elemento subjetivo revela-se diabélica, a não ser
econdmico (v. Introdução) se revela de forma particular recorrendo a presungdes hominis, fundadas em indicios e circunstincias; ou
e nefasta nessa interpretacdo da lei societaria. 7 então admitindo, para efeitos civis, que a culpa grave ao dolo se equipara.
Noart. 117, dá-se o elenco das manifestações de abuso de controle, A Nota de Texto 73 B importante aqui aprofundar um pouco a questio, in-
enumeração constante do $ 1º, de caráter obviamente exemplificativo, en-
dagando o sigaificado do dolo especifico.
Para tanto, o recurso a teoria de direito penal é muito
seja uma aplicação analógica da norma. Mas a analogia supõe a identidade:
útil, pois ai é que mais se desenvolveu — por razões 6b-

A
de um elemento nuclear, entre a hipótese de incidência definida em lei ¢ o
vias — a discussão acerca do significado dos elementos
caso real assemelhado. Daí por que, adiantando o que será exposto no capí- -
subjetivos. Como é sabido, desde a adoção plena da teo-

b dA
tulo seguinte, não nos parece legalmente possivel fazer atuar a regra do art,
ria finalista, a partir da reforma de 1984 do Código Pe-
117 a fim de responsabilizar o acionista controlador pelos débitos da nal, o elemento intencional é parte da ação típica.”?
companhia para com terceiros em caso de abuso. Tal hipótese não encontra O resultado imediato desse deslocamento no ambito do

U LA
nenhum elemento central de analogia com as modalidades abusivas previs- direito penal é que o dolo e a cuipa, influenciados pela
tas no $ 1º do artigo, nem tampouco se compreende na fórmula geral do art, finalidade da ação, deixam de ser elementos da culpabi-
116, parágrafo único. Ademais, a sanção prevista no art. 117 — perdas e danos lidade, e passam a ser elementos da conduta tipica.

R aaan
— não se confunde com a responsabilidade subsidiária pelas dívidas sociais. Assim, ndo é o delito que se caracteriza como doloso ou
Na enumeração legal das hipóteses de abuso, não se descobre ne- culposo, mas os delitos serdo de ação dolosa e agdo cul-
nhum caso típico de excesso de poder, tal como definido acima, ou seja, o posa.
emprego de meios desnecessariamente custosos para alguns dos partici- A conduta que pode se manifestar na forma de ação ou
omissdo, pode ser dolosa ou culposa. A diferenciagio
pantes da empresa na realização do que o empresário entende sero interes-

B
é estabelecida por Welzel da seguinte maneira: se há
se empresarial. O fato, previsto na alínea b, de liquidação de companhia -~ - uma lei que proibe ou prescreve uma determinada

A RS
próspera, não está obviamente ligado a interesses empresariais legítimos, agdo, com o objetivo de evitar um fim social indeseja-
mas ao interesse egoísta do controlador de obter vantagem indevida. do, preocupa-se a lei com a finalidade pela qual o au-
Torna-se dificil, nessas condições, aplicar a norma legal a casos fre- tor realiza a ação. No entanto, ha regras que apenas

e eRERWIRE beriniiad tdd idA


qiientes de excesso de poder, como a contenção salarial excessiva (sob a prescrevem a seleção e aplicação de determinados mei-
Jjustificação de mera obediência a indices de reajuste oficiais), ou a dispen- os, independentemente dos fins visados pelo agente. A
sa maciça de empregados. lei exige a selegdo e aplicagdo dos meios como medida
Nota-se, ainda, completa ausência de previsão do abuso por omissão
no exercício dos poderes de direção das atividades sociais e na orientação
do funcionamento dos órgãos da companhia. Todas as hipóteses contem-
39 Arespeito da teoria finalists, ver a obra de H. Welzel, El nuevo sistema del derecho pe-
pladas no $ 1º do art. 117 são comissivas. No entanto, a fórmula genérica nal. Una introduccién a la docirina de la accion finalista, Barceloua, Ediciones Ariel,
do art. 116, parágrafo único, comporta, evidentemente, um dever ativo do 1964, p. 26.
394 FÁBIO KONDER COMPARATO E CALIXTO SALOMÃO FILHO O PODER DE CONTROLE NA SOCIEDADE ANONIMA 395
3
minima para direção final com o fim de evitar efeitos Ihada da conduta ilicita é necessário verificar nos fatos
socialmente indesejados.* ó a auséncia de cuidados (culpa) ou a intengdo lesiva.
Zofi.mo que o agente, nesse segundo caso, não pode rea- Ora, as hipoteses do art. 117 da lei societéria fazem par-
lizar a ação se não puder empregar os meios necessários te do primeiro grupo. Ha definigdo expressa e taxativa
para sua realização. Nesse sentido, a prudência na dire- das hipéteses de abuso. Exatamente como no direito pe-
ção é exigida dos motoristas. Se não houver tal prudên- nal, a definigdo exaustiva das condutas se de um lado é
cia, e um fim social não desejado for atingido, ainda garantia da legalidade, de outro serve para objetivar o
que não fosse esse o fim do agente, ele será punido. dolo. A prova do dolo resume-se entio a conduta e ao
Esses delitos, que visam a proteger a sociedade de fins
dano causado a companhia, estando o dolo objetiva-
sociais indesejados, são os delitos culposos.
mente caracterizado em lei na pratica da conduta.
O detito culposo diferencia-se, dessa maneira, do delito -
doloso: no segundo há uma preocupação com a finali-
De se notar, por fim, que a lei nem sempre exige que o ato abusivo
dade da ação do agente, apenas configurando-se o deli-
seja praticado em beneficio do próprio controlador, exceto nas hipéteses
to quando o agente visa a atingir o fim proibido pela lei.
das alineas b e f.
No primeiro, não importa o fim visado pelo agente, mas
apenas o emprego dos meios prescritos por lei como ne- Esclarecidos, assim, os conceitos, bem como o sentido geral das nor-
cessários à realização daquela ação. mas em vigor entre nds, convém analisar agora as manifestagdes mais fre-
A idéia da vontade, no direito penal, como é bem sabi- qientes de desvio do poder de controle ou de fraude 2 lei, com os remédios
do, tem como elemento central a idéia de que a ação do- juridicos disponiveis, tanto no caso de sociedade anônima isolada, como
losa é aquela praticada consciente e voluntariamente, no de grupo societario.

SR SS EDA TNAA
Ha, portanto, um elemento cognitivo — consciência da
ação e de seu resultado — e um elemento volitivo — dis- a) Na sociedade anénima isolada
posição de realizá-lo.”' :
120. Já salientamos que o desvio de poder difere do ato contra legem
Assim, o dolo específico resume-se na realidade à de-
monstração da ligação da conduta descrita na norma ao pelo fato de, naquele, o agente procurar respeitar a legalidade formal, ou
resultado. Havendo, portanto, descrição e objetivação.
meramente aparente. Assim, o acionista que vota deliberagdo conflitante
com o interesse social procura sempre justificar seu voto com razões de apa-

dc ddtos,
em lei da conduta ilícita — o dolo se resume & demons--
tração do nexo causal dessa conduta com o resultado. rente beneficio para a sociedade, ou, pelo menos, de inelutabilidade de ou-
Essa conclusão é absolutamente coerente com a legali- tra decisdo por imposigdes inderrogdveis de ordem econdmica.
dade estrita do direito penal. É ela que permitee exigea É o caso, notadamente, do cldssico problema do autofinanciamento.
incorporação da finalidade (dolo específico) no próprio O controlador pode obter satisfagdo do seu interesse econômico pessoal, na
sociedade, sem a distribuigdo de dividendos, sobretudo, quando ocupa pos-

LA LA
tipo. A situação é absolutamente diversa de cláusulas
genéricas como a existente para a responsabilização ci- tos de direção na companbhia, e se atribui elevados honorérios, além de go-
vil. Ali em ausência de previsão legal expressa e deta- zar de outras vantagens inerentes ao cargo. Pode acontecer, mesmo, que a
º sistemdtica retengdo de lucros liquidos constitua uma politica deliberada
i de “congelamento” da minoria, como se diz no jargdo societario nor-
te-americano, compelindo-a a desfazer-se de suas ações a baixo prego.
40 Cf H. Welzel, El nuevo sistema del derecho penal, cit., p. 30. Antes da lei acionéria de 1976, a doutrina e a jurisprudéncia ainda não
41 Arespeito do dolo, ver a clássica lição de F. Carrara, Opuscoli di diritto criminale, Pra- haviam definido, claramente, o remédio juridico que competia ao acionista
to, Giachetti, 1874, vol. 1, p. 292.
4 prejudicado, nesse tipo de desvio de poder. Em sua excelente monografia
396 FABIO KONDER COMPARATO E CALIXTO SALOMÃO FILHO O PODER DE CONTROLENA SOCIEDADE ANONIMA 397
RbA

sobre o direito do acionista ao dividendo, Luiz Gastão Paes de Barros H Ora, quando há previsão dos dividendos fixos nos estatutos, parece
Leães apontou dois caminhos: a ação de nulidade ou de anulação da delibe. muito mais natural a admissibilidade da ação de cobrança, uma vez de-
Tribu-
ração da assembléia geral e a ação de responsabilidade civil e criminal do $ monstrado o desvio de poder. Foi, aliás, o que reconheceu o mesmo
diretores e fiscais.”* Trata-se, a nosso ver, de remédios indiretos e, por EM E nal de Justiça de São Paulo, em acórdão posterior, julgando incabível a
mesmo, nem sempre adequados à satisfação do interesse lesado. ; ação cominatéria.**
A jurisprudência, por sua vez. admitia que pudesse haver dissolução $ A Lei nº 6.404/76 estabeleceu uma garantia de dividendo mínimo a
compulsória da companhia, pela não-distribuição de lucros, durante vários. $ todos os acionistas, em função do lucro líquido do exercício (art. 202). Pre-
exercícios. Em acórdão de 1962, o Tribunal de Justiça do Paraná adotou 4 viu duas exceções ao pagamento desse mínimo: nas companhias fechadas,
essa solução, invocando para tanto o “preceito da lei que estabelece quea - desde que não haja oposição de nenhum acionista presente à assembléia
geral; e, de modo geral, no exercício em que os órgãos da administração in-
sociedade anônima, qualquer que seja seu objeto, é sempre mercantil, não |
formarem à assembléia ordinária ser esse dividendo incompatível com a si-
podendo, por isso mesmo, deixar de ter por finalidade precipua o lucro e
tuagio financeira da companhia. Nesta última hipótese, o conselho fiscal,
atendendo que, na espécie, não obstante ter dez anos de existéncia, a socie-
quando em funcionamento, dará parecer a respeito e, se se tratar de compa-
dade ainda ndo distribuiu dividendos, tornando-se passivel de liquidagfio,
nhia aberta, uma informação será transmitida à Comissão de Valores Mobi-
nos termos do art. 138, b, do Decreto-Lei nº 2.627, de 26.09.1940.”* O Tri-
Tiários. Os lucros assim retidos devem ser registrados como reserva especi-
bunal de Justiga de São Paulo também assim já decidiu, embora, na espé- al e, se não absorvidos por prejuízos em exercicios subseqiientes, serão pa-
cie, o ndo-pagamento de dividendos não tivesse sido o motivo único, nem gos como dividendos assim que o permitir a situação financeira da
mesmo o principal, da dissolugdo da companhia. A fundamentação do ares- companhia.
to, no entanto, faz explicita referéncia ao desvio de poder: “A sociedade
apelante suspendeu a distribuigdo de dividendos desde o exercicio de 1949 Nota de Texto 74 A Lei nº 10.303/01 introduziu uma terceira hipótese de
até o de 1954, quando foi proposta a ação. Podia fazé-lo, sem diivida, poisa — retenção do lucro líquido. Trata-se daquela retenção
lei não veta a retenção de dividendos desde que haja necessidade on conve- destinada a captar recursos por debêntures não-conver-
niéncia para o interesse coletivo. Mas esse principio ndo ¢, nem pode ser, síveis em ações, desde que evidentemente não haja
absoluto. E isso porque, desde que haja abuso ou malicia das assembléias oposição de nenhum acionista (art. 202, $ 3º, 1, da Lei
gerais da sociedade na deliberagdo de ndo distribuir dividendos, a retengio nº 6.404/76).
destes chocar-se-ia com o direito do acionista aos lucros sociais, consa-
grado no artigo 78, a, da Lei das Sociedades por Ações (Decreto-Lei nº É bem de ver que a lei não eslabeleceu a iguatdade de dircitos de to-
2,627, de 26.09.1940). (...) Pelo exposto, para que se justificasse a retengio dos os acionistas sobre esse dividendo obrigatório; ao contrário, ressalvou,
dos dividendos pela apelante, necessério seria que esta demonstrasse, cum- 5 expressamente, as preferências ou vantagens dos titulares de ações prefe-
pridamente, a necessidade ou conveniéncia dessa medida para a consecu- renciais (art. 203 da Lei nº 6.404/76). O indispensável é que o dividendo
ção de seus objetivos sociais, coisa que ndo se depara nestes autos e que global não seja inferior ao mínimo legal, ainda que os dividendos atribuí-
dos, por exemplo, às ordinárias não atinjam a porcentagem fixada em lei,
conflita com o disposto no art. 15 dos estatutos da apelante, onde se prevéo
ou nos estatutos, para aquele.
Emfi:m._uflo dos dividendos na base de 6% ao ano, sobre o valor do capital
Nesse sistema, ¢ indubitável que o acionista tem ação de cobrança
social”,
dos dividendos correspondentes à porcentagem mínima contra a compa-
nhia fora das situações excepcionais assinaladas.
42 L. G Lcães, Do Direito do Acionista ao Dividendo, São Paulo, 1969, cap. VIL.
43 Apelação Civel nº 255/61,3* Cam. Civ., Relator Segismundo Gradowski, RT320/527.
45 Apelagio Civel nº 142.811, 1* Câm. Civ,, Relator Pinto do Amaral, RT 368/129.
44 Apelagdo Civelnº 80.668, 5* Câm. Civ., Relator J. C. Ferreira de Oliveira, RT265/454.
398 FABIO KONDER COMPARATO E CALIXTO SALOMÃO FILHO O PODER DE CONTROLE NA SOCIEDADE ANÓNIMA 399
Convém, no entanto, assinalar que o sistema do dividendo obrigatg.. car a tese da desconsideragio da personalidade juridica em relação à
rio ndo eliminou a possibilidade juridica de abuso do controlador na fixa- sociedade constituida pelos diretores, que era acionista majoritario, tal
ção da política de remuneração dos acionistas. Tanto mais que em muitas como pedia o autor, o Tribunal anulou, não obstante a deliberação da as-
companhias, aproveitando-se da vacatio legis, o controlador fixou a por- sembléia geral por abuso de poder.
centagem do dividendo obrigatorio em nivel bem inferior 20 estabelecidg Nos Estados Unidos, em que essa pratica de abuso de poder é conheci-
no $ 2º do art. 202. Seja como for, o simples respeito à exigéncia minimgf;. da como siphoning off corporate wealth,'" os wibunais têm reconhecido aos
xada em lei ndo d4 a0 empresario um bill de indenidade nessa matéria, acionistas nde-controladores o direito de propor uma ação social uti singuli
É possivel uma redução do dividendo obrigatorio, fixado no estatuto, conlra os controladores-administradores (derivate action), fundada no fato
em menos de 25% do lucro liquido ajustado? A ambigua redagio do &%,o“ de que uma remuneração excessiva constitui malversagdo dos bens sociais.
sitivo legal (art. 202, $ 2°) parece ensejá-la; e essa interpretação ¢ corrobo- A nossa vigente lei aciondria procurou tornar menos frouxo, nesta
rada pela previsão do recesso, como remédio de proteção aoacionista questdo, o regime do Decreto-Lei nº 2.627. Estabelecen o principio de que
dissidente (art. 137). a remuneragdo dos administradores deve ser fixada “tendo em conta suas
responsabilidades, o tempo dedicado às suas funções, sua competéncia e
121. Uma maneira disfargada de se desviarem lucros da sociedade, os reputagio profissional e o valor dos seus servigos no mercado” (art. 152 da
quais, normalmente, deveriam aproveitar aos acionistas, consiste na exage- Lei n° 6.404/76). Vinculou a possibilidade de previsio estatutdria de uma
rada remuneração dos administradores. O caso ocorre com freqiiéncia, participação dos administradores no lucro liquido da companhia à fixação,
quando estes são também os controladores e pode combinar-se, ou nio, pelos estatutos, do dividendo obrigatorio em pelo menos vinte ¢ cinco por

i
com a inadequada distribuigdo de dividendos. cento desse [ucro; e o pagamento de tal participago, a efetiva atribuição do
O Tribunal de Justica de Alagoas teve ensejo de decidir, há vérios - dividendo obrigatdrio. Por outro lado, visando aos fringe benefits, que os
anos, uma dessas manifestagoes de desvio de poder, aplicando a doutrina administradores se outorgam fora de qualquer autorizagdo da assembléia,
que vimos desenvolvendo.* Na ação, o autor alegou que os três diretores conferiu a acionistas que representem cinco por cento ou mais do capital so-
da companhia eram os únicos sécios de uma sociedade limitada, que deti- cial o direito de exigir que o administrador de companhia aberta informe à
nha dois tergos do capital daquela. Em
ses diretores, pretendendo que fossem
1947, o autor j4 havia acionado es-
condenados a devolver aos cofres
i assembléia geral ordindria “os beneficios ou vantagens, indiretas ou comple-
mentares, que tenha recebido ou esteja recebeado da companhia e de socie-
saciais quantias referentes a comissdes sobre os lucros liquidos, percebidas dades coligadas, controladas ou do mesmo grupo”, bem como “as
de forma dupla e indevida, tendo sido a demanda julgada procedente. Em condigdes dos contratos de trabalho que tenham sido firmados pela compa-
represalia, a diretoria convocou a assembléia geral, algumas semanas nhia com os diretores e empregados de alto nivel” (art. 157, $ 1° c e d).
depois, promovendo uma substancial elevação de seus honorérios. Preca- Nessa matéria, alids, espera-se que a Comissdo de Valores Mobilirios
vendo-se, no entanto, contra uma possivel argitição de nulidade dessa delibe- saiba fiscalizar, adequadamente, o procedimento dos administradores nas
ração, a sociedade acionista, controlada pelos diretores, transferiu para seu companhias abertas.
procurador agdes da companhia, em quantidade pouco superior à do autor da - |
demanda, Dois anos ap6s, havendo a companhia adquirido maquinas sem 122. Em contrapartida, pode também ocorrer desvio do poder de con-
langar no ativo o seu valor, o autor moveu nova ação judicial, também jul- trole em detrimento de um ou alguns dos administradores. Mesmo não sen-
gada procedente. Onze dias depois, a diretoria convocou a assembléia para do acioniste, o diretor participa do interesse social de produgdo e
decidir novo e substancial aumento de seus honorérios, bem como uma ele- distribuigdo de lucros. Ele tem mesmo o dever funcional de atuar em vista
vação de sua participação nos lucros liquidos, de 20% para 30%. Sem apli-
47 CLF.H.O'NealeR. B. Thompson, Oprression of Minority Shareholders, cit., pp. 85
46 Apelagio Civel nº 3.330, Relator Meroveu Mendonga, RT 154/341. ess.
400 FÁBIO KONDER COMPARATO E CALIXTO SALOMÃO FILHO O PODER DE CONTROLE NA SOCIEDADE ANONIMA 401
da realização desse objetivo e, uma vez realizado, não pode ser excluido, peneficio ou interesse aparente da sociedade. O desvio de poder costuma
abusivamente, da partilha de lucros pelo titular do controle social. Sem se transparecer, claramente, quando a deliberagdo da assembléia, visando a
chegar ao exagero de considerar que os diretores têm direito a essa forma introdução nos estatutos de uma das clausulas que analisamos no Cap. II da
de remuneração pelo exercício de suas funções, como proclamou um julga. segunda Parte, acorre mu&m a manifestagdo de dissidéncia, qualificada ou
do,* não se pode deixar de reconhecer que a exclusdo de determinado dire- - não, no corpo aciondrio. E ébvio que onde haja desrespeito formal a nor-
tor dessa participagdo, ou a sua fixagdo em porcentagem irrisória em mas imperativas. como 4 que fixa a maioria qualificada no arl. 136 da Lei
relagdo à dos demais, constitui, em tesc, abuso de poder. Mas, .Eu,saº_a. 1°6.404/76, ou a que exige a aprovação da alteragdo pela assembléia espe~
=
porque não se trata de um direito do diretor, como o do acionista ao divi- cial de acionistas preferenciais (mesmo art., $ 1°), a deliberação é contra le-
dendo, é bem de ver que o juiz não pode substituir-se à assembléia geral na geme, portanto, nula. Mas a opressdo dos ndo-controladores manifesta-se
decisão de distribuir essa participação nos lucros, caso não tenha havido ai, mais fregiientemente, pelo desvio de poder, com o respeito formal das
discriminação entre diretores; mormente se a assembléia também decidiy = regras legais. A deliberação da assembléia geral, então, pode ser invalidada
não distribuir dividendos, pois a tanto se opõe a disposição imperativa do pela anulagdo do voto do controlador (art. [15).

S
art. 152 e parágrafos da Lei nº 6.404/76. Todavia, contra essa orientação,
Nota de Texto 75 Na verdade, havendo interesse direto do controlador,
que já resultava clara do Decreto-Lei nº 2.627 (art. 134), houve duas deci-
seu voto sequer deveria ser computado na assembléia,
sões do Tribunal de Justiça de São Paulo.”?
pois há conflito de interesses formal (artigo 115, $ 1°,
da Lei nº 6.404/76).
123. Outras hipóteses de opressão dos não-controladores, repertoria-
das na jurisprudência, são as de aumento de capital por subscrição e de alte- No elenco exemplificativo das modalidades do exercicio abusivo do
ração estatutária,”* ou de dissolução. poder de controle, constante do seu art. 117, $ 1° a nova lei de sociedades
Num caso decidido pela Corte de Cassação italiana, e que mereceu por agdes inclui o fato de o controlador “promover a liquidagdo de compa-
comentário favorável de Ascarelli,*' a maioria procedeu a depreciações ex- nhia prospera (. .) com o fim de obter, para si ou para outrem, vantagem in-
cessivas em verbas do ativo social, consignado no balanço, a fim dejustift- devida, em prejuizo dos demais acionistas, dos que trabalham na empresa
car um aumento de capital em montante elevado, aproveitando-se da ou dos investidores em valores mobilidrios emitidos pela companhia”. Foi
momentânea impossibilidade financeira dos não-controladores em subs- o que ocorren no caso de Lebold v. Inland Steel Co.. decidido nos Estados
crever a parte que lhes tocava nesse aumento. O Tribunal Supremo da Itália Unidos:*? o controlador langou mão desse recurso extremo, a fim de se ver
julgou que essa deliberação constituía, nitidamente, um desvio de poder.” livre de um contrato que passara com a companhia, considerado prejudicial
Igualmente, pode-se considerar abusiva a deliberação de alteração 208 seus interesses.
estatutária, decidida pela maioria em assembléia, quando tenha por único -
escopo consolidar o seu poder, em prejuízo dos não-controladores, e sem 124. A jurisprudéncia estrangeira registra, também, alguns casos de
desvio de poder por meio da constituigdo, pelo controlador, de uma socie-
dade especialmente destinada a servir de instrumento & opressdo dos não-
controladores. Nos Estados Unidos, por exemplo, cita-se o caso Matteson
48 Trib.Jus.S. Paulo, 1º Grupo Câm. Civ., embargos infringentes nº 112.838, Relator Di- v. Ziebarth.” O acionista A, possuindo dois tergos do capital votante da
mas de Almeida, RT 346/169. companhia X, negociou pessoalmente com a companhia Y, a licenga de uti-
49 3º Câm. Civ,, Apelação Civel nº 91499, Relator Raphael de Barros Monteiro, AT
286/322; e 2º Grupo de Câm. Civ., embargos na apelação retromencionada, relator Pedro lização de marcas de fabrica daquela por quantia irrisoria, desde que ele,
Chaves, RT 294/187.
50 CEA,A. Berle Jr. e G Means, The Modern Corporation and Private Property, Nova
O Abuso do ,
Torque, Ed. Revista, 1967, cit., pp. 221 ess.e 235 ess.; T. C. Duarte Direiz
to e us Deliberações Sociais, 2º ed., Coimbra, 1955. 52 Lebold v. Intand Steel Co., 125 F 2d 369 (7th Cir. 1941).
51 T. Ascarelli, Stdi in Temadi Socíetã, cit., pp. 147 ess. 33 Matteson v. Ziebonth, 40 Wash. 2d 286, 242 P. 2d 1.025 (1952).
402 O SALOMÃO FILHO
E CALIXTO
FÁBIO KONDER COMPARAT O PODER DE CONTROLE NA SOCIEDADE ANONIMA 403
acionista A, fosse contratado pela companhia Y com honorários elevados; mítica da personalidade juridica impedia o reconhecimento da existéncia,
ficando, igualmente, assentado que Y receberia uma opção para à aquisi- em tais hipoteses, de um contrato consigo mesmo que a mais antiga tradi-
ção de todas as ações de X. Como um acionista Bíonã—_o desta se recu- ção juridica sempre condenou.
Tais ajustes ou acordos ndo podiam deixar de ser considerados inefi-
sou a dar opção de transferência de suas ações, A constituiu a sociedade 7,
na qual detinha o controle absoluto. Logo em scguida, as assembléias ge- cazes, mesmo na auséncia de proibição legal expressa pela aplicação da teo-
rais de X e Z aprovaram a sua fusdo, coma observancia rigorosa de todasas ria do desvio de poder. A nova lei de sociedades por ações não se omitin 4
regras formais, estipulando-se que os acionistas de X receberiam agdes respeito. Considerou modalidade de abuso de poder pelo controlador,
oriunda da fusão. Concluida “contratar com a companhia, diretamente ou através de outrem, ou de socie-
preferenciais sem voto na nova companhia
dade na qual tenha interesse, em condições de favorecimento, ou ndo-eqiii-
esta, anova companhia celebrou o acordo de licenciamento de marca de fa:
tativas” (art. 117, $ 1°, /). Deveria, no entanto, ter exigido a prévia
brica com Y, que também contratou A como manager.
autorizagdo da assembléia geral, sem o voto do controlador.
A Corte de Cassagdo francesa também teve ocasido de aplicar o
de
principio do abuso de poder, ao anular a deliberagdo de assembléia geral
126. Mas quem deve responder pela composição das perdas e danos?
uma companhia que aprovara a celebragdo de um contrato de “loca-
Se a ação é intentada por acionista, não há de ser, evidentemente, a
ção-gerência” do seu fundo de comércio, com uma outra sociedade consti-
prépria sociedade, pois isto seria dar com uma mão o que se tira com a ou-
tuida pelos acionistas majoritirios especialmente para essa finalidade * tra. A responsabilidade pela indenização dos prejuizos só pade ser do con-
No Brasil, deliberagdes dessa ordem seriam, sem duvida, passiveis do
trolador, que incorreu no desvio de podec®® como estatui, corretamente, a
disposto no art. 115 da Lei nº 6.404/76. Lei nº 6.404/76 (art. 117). Mesmo que a decisão seja tomada em assem-
bléia, não se pode considerar o ato como praticado pela propria sociedade,
125. Nq regime do Decreto-Lei nº 2.627, nada se previa quanto as hi-
segundo a concepção orgânica. Em primeiro lugar, porque agir é atributo
poteses de contradição de interesses fora da assembléia, isto &, sem que do homem. O que há, em verdade, é um problema de atribuição dos efeitos
houvesse efetivo exercicio do direito de voto. Tudo se passava, na visao ir- de atos humanos, como bem salientou a moderna doutrina critica da perso-
realista do legislador, como se não existisse coutrole, ou melhor, como se o nalidade juridica. Ademais, porque a assembléia não se confunde nunca
acionista só manifestasse as suas prerrogativas de poder, inerentes à proprie- com 2 sociedade andnima, como frisamos.”’ Finalmente, porque o desvio
dude aciondria, no momento da reunido da assembléia geral. Fora desta, 0 de poder, no qual incorre o controlador, desnatura a legitimidade da decisão
conflito de interesses só podia manifestar-se entre um diretor e a compa- coletiva, malgrado a sua regularidade formal, paralisando, portanto, aquela
nhia (Decreto-Lei nº 2.627, art. 120). atribuigdo de efeitos dos atos praticados, que acabamos de mencionar. Sem
Sio freqgiientes, no entanto, os confratos entre a sociedade e o seu con- duvida, os diretores, que praticaram o ato abusivo e danoso para os interes-
trolador, ou uma outra sociedade igualmente controlada por este, causando ses dos ndo-controladores, incorrem na responsabilidade funcional, regu-
cvidente prejuizo aos ndo-controladores ¢ mesmo aos terceiros credores, lanuente estabelecida em lei (Lei nº 6.404/76, art. 158), pelo fato de
concepção
pela lesdo do patriménio social.*® Só mesmo o respeito a uma haverem procedido com culpa ou dolo, não obstante dentro de suas atribui-
ções ou poderes. Mas essa responsabilidade dos diretores não exclui, no
novo sistema legal, a do titular do poder de controle, que pode não ser ad-
" ministrador (art. 117, $ 3°).
54 RTDC 1973, 3, pp.86/587.
majo-
55 Como disse o juiz Brandeis, em julgado sempre citado nos Estados Unidos, “the
relation toward
ritv has the right to control; but when it does so, it occupies a fiduciary
the minority, as much so as the corporation itselfor its officers and directors. If. through
that control, a sale of the corporate property is made and the property s&:.ã&
by the 56 CL A. Wald, “Irresponsabilidade da Socicdade Anônima por Decisdes Nulas ou Abu-
majority, the minority may not be excluded from a fair participation in the fruits of
the sivas da Assembléia Geral”, RDM nova série, nº 12, 1973, p.
sale” (Southern Pacific Co. v. Bogert, decidido pela Suprema Corte em 1919). 57 Chsupran®3,
O PODER DE CONTROLE NA SOCIEDADE ANONIMA 405
404 FABIO KONDER COMPARATO E CALIXTO SALOMÃO FILHO
0 direito alemão tem, a esse respeito, uma disposição geral repressora A vigente lei acionaria parece tornar indubitdvel essa solução, ao dis-
do ato de “aproveitamento da própria influência sobre a sociedade” (lei acio- por, N0 art. 115, que se considera abusivo o voto exercido com o fim de ob-
nária de 1965, $ 117), consistente em induzir, pelo exercicio intenciona! da ter, para si ou para outrem, vantagem a que não faz jus e de que resulte, ou
própria influência sobre ela, um administrador, procurador ou preposto, a possa resultar, prejuizo para a companhia ou para outros acionistas. Ainda
aágir em detrimento da sociedade. O agente é obrigado a indenizar a socieda- que se considere que a sociedade controlada pelo administrador não é o seu
de e, eventualmente, os próprios acionistas lesados. Com o agente respon- alter ego. é bem de ver que, ao volar abusivamenle pela apravagdo das con-
it
dem também, solidariamente, os administradores sociais, a menos que o ata tas desse administrador, ela o fez com o fito de obter para este uma vanta-
por eles praticado seja fundado em uma deliberação da assembléia geral, to- gem a que ele ndo fazia jus, dai resuitando, obviamente, um prejuizo ou

S
mada de acordo com os preceitos legais. Já nos referimos a esse dispositivo, possibilidade de prejuizo para a companhia.
Caso anélogo é o do adminisirador que obtém a concessdo de emprés-
quando tratamos do controle extemo.”* Na lei germânica, ele se aplica, de

la
fato, a ambos os gêneros de controle. Na nossa Lei nº 6.404/76, deve-se refez- timo, pela sociedade por ele administrada, sem autorizag3o de assembléia
rir a norma do art. 117, $ 1º, ¢, que visa, tão-só, 20 acionista controlador. geral, a beneficio de outra sociedade da qual detenha o controle. A nossa lei
Na hipótese de controle conjunto, todos os acionistas controladores penal (Cddigo de 1940, art. 177, § 1°, TIT) não se refere à obtenção de em-
responderão solidariamente pelos prejuízos causados, por aplicação da re- préstimo por interposta pessoa, ao contrario, por exemplo, do disposto no
gra constante do ast. 942 do Código Civil de 2002. Código Civil italiano (art. 2.624). A doutrina penalista dá 20 texto uma in-
terpretagdo mais compreensiva, admitindo que, para a ocorréncia de crime,
127. Há, ainda, situações em que o controle de outra sociedade pode ndo há necessidade de o diretor figurar, abertamente, como parte contratan-
servir para fraudar a aplicação de disposições legais imperativas. Não sc te. “Toma empréstimo também aquele que agir por meio de um ‘tes-
trata de questão inserida na problemática do grupo societário, pois não há, ta-de-ferro’, ou por qualquer interposta pessoa. O essencial é que o diretor
necessariamente, conjugação de atividade empresarial entre ambas as socie- seja o real beneficidrio do empréstimo. º
dades, com a conseqiiente unidade de direção. Aredação do art. 154, $ 2°, b, da Lei nº 6.404/76, embora mais abran-
É o caso, por exemplo, do diretor que obtém a aprovação de suas con- gente que a do art. 119, pardgrafo único, do Decreto-Lei n°2.627, ainda não
tas em assembléia, graças ao voto decisivo de uma sociedade acionista, por é suficientemente incisiva para a hipotese. Se o administrador figura como
ele controlada, frustrando-se, destarte, a aplicação da norma proibitiva do: sócio totalitário da sociedade que recebe o empréstimo, ou se ela foi criada,
art. 134,8 1º, in fine, da Lei nº 6.404/76, sancionada até mesmo penalmente — exclusivamente, para essa finalidade, não nos parece admissivel dúvida al-
(Código Penal de 1940, art. 177, $ 1º, VII). Nota-se quealeipenalfalaem — - guma quanto à ilicitude. Mesmo deixando de ocorrer um desses casos ex-
aprovação de contas mediante interposição de pessoa. Mas a doutrina tremos, o contrato celebrado pode ser considerado ineficaz para a
considera que essa interposição deve ter sido criada especialmente para o —— companhia mutuante, se as circunstincias de fato evidenciarem a fraus
efeito de aprovação de contas.”* Assim, se a sociedade controlada pelo di- legi, como sustentou Ascarelli.®
retor não foi constituída com essa finalidade, o seu voto de aprovação de'
contas não constituirá crime. Não obstante, entendemos que, no caso, a de- b) No grupo econémico
liberação da assembléia pode ser considerada ineficaz pela ocorrência de
fraude à lei, desde que, bem entendido, sem o voto dessa sociedade contro- 128. No seio do grupo econdmico, o problema da disciplina do desvio
lada pelo diretor, não haja aprovação das suas contas.
de controle torna-se mais agudo, pois a propria mecénica de funcionamen-
58 CEsupranº 18, ' : i
i 60 C. Pedrazzi e P. José da Costa Jr, Direito Penal das Sociedades Andnimas, cit, pp
59 CEC.Pedrazzi e P. José da Costa Jr, Direito Penal das Sociedades Anônimas, i, pp- 1917192,
61 T. Ascarelli, Problemas das Sociedades Anônimas e Direito Comparado, cit., p. 491.
210ess.
406 FÁBIO KONDER COMPARATO E CALIXTO SALOMÃO FILHO O PODER DE CONTROLE NA SOCIEDADE ANÔNIMA 407
to do conjunto empresarial tende, como salientamos,” * não só poss
2 ibilida. entre grupos de direitos e grupos de fato (faktische Konzerne), comojá as-
de de restrição ou supressão da distribuição de lucros, em uma ou em todas Min—u_:ou.i Só os primeiros podem funcionar sem o respeito aos interes-
as sociedades que o compõem, como também a uma restrição na própria ses particulares das sociedades componentes, mas com a compensagao dos
produção desses lucros. O interesse particular de uma sociedade pode ser prejuizos causados. O livro terceiro da lei define os tipos de contratos de
sacrificado ao interesse geral do grupo. grupo, denominados “contratos de empresa” (Unternchmensvertraege),
Nota-se que esse desvio de poder, analisado na ótica do interesse que podem constituir Konzerne de dircito. São eles: o contrato de domi-
particular de cada sociedade, pode ocorrer não apenas em sociedades nagdo (Beherrschungsvertrag) e o contrato de transferéncia de [ucros
controladas, ou “filiais”, mas também na própria controladora ou holding, (Gewinnabfuehrungsverirag), ambos regulados no $ 291; o contrato de co-
Figure-se, por exemplo, a decisdo de alteracio radical do abjeto social das
munhdo de lucros (Geftwinngemeinschaft), de transferéncia parcial de
sociedades controladas, de cessdo do coatrole destas, da venda global dos
lucros (Teilge winnabfuehrungsvertrag) e o arrendamento ou cessão de es-
bens do seu acervo empresarial, ou da dissolugdo das sociedades operantes;
tabelecimento (Betriebspachtvertrag, Betriebfueberlassungsvertrag), no
tudo isso deliberado em vista do interesse geral do grupo, e não do interesse
pardgrafo seguinte. Só estes últimos eram regulados na Lei de 1937. De
particular da holding, de produção e distribuicdo de lucros. Imagine-se,
qualquer modo, esses tipos contratuais são 0s únicos aptos a constituir um
mesmo, que a cessão de controle ou a venda dos bens do acervo empresarial
grupo econdmico de direito, e os seus instrumentos devem ser levados ao
de sociedades controladas sejam feitas para outras sociedades pertencentes
registro do comércio para que produzam efeitos juridicos. A doutrina salien-
a0 grupo, simplesmente coligadas & companhia controladora, mas nio
dominadas por ela, por prego manifestamente irrisorio, inferior, por exerm- ta que eles operam uma alteração nos fins sociais, passando as partes a atuar
plo, 20 valor contébil das ações. Como não reconhecer o prejuizo sofrido pe- em função do interesse geral do grupo.®
los acionistas ndo-controladores da holding, ou a probabilidade de prejuizo? Acontece que os grupos de fato continuam a ser, ainda hoje, incompa-
Por outro lado, como também salientamos, o direito ndo pode descu- ravelmente mais numerosos que os grupos de direito. O arquivamento de
rar os relevantes interesses econdmicos globais do grupo societario, que um “contrato de empresa” no registro do comércio é fato relativamente
devem, mesmo, sobrepor-se a0 interesse particular das sociedades que,o raro na Alemanha. Ou seja, malgrado a reafirmagéo pelo legislador do
compdem. O ponto de equilibrio deve ser encontrado na legalização desse - principio do respeito ao interesse particular de cada sociedade, no grupo de
fato, acompanhada da imposição de limites, e de toda uma sistematica de fato, e a imposição de um relatério pormenorizado sobre as relagdes entre
adequada protegdo aos interesses individuais lesados. as sociedades componentes do grupo, a ser apresentado, anualmente, pelos

AT
Foi o que fez o legislador alemão, na lei acionaria de 1937, e mais administradores à assembléia geral (§ 312), a maior parte dos empresérios

s FR
completamente nade 1965. Naquela, o $ 101, correspondente ao $ 117 des- entendeu mais conveniente não legalizar os grupos econdmicos criados,”
ta, a0 reprimir o aproveitamento da propria influéncia sobre a socicdade, 0 que significa excluir da regulamentação legal um número considerdvel
excluia da obrigagdo de indenizar o agente que houvesse atuado “para ser- de sociedades anénimas, pois, segundo estimativas correntes, 70% a 80%
vir interesses merecedores de tutela” (schurzwerdigen Belange). Fundados das companhias alemas integram-se num Konzern.”
numa observagio da exposição de motivos, 0s comentaristas e os tribunais: .
admitiram, sem discussdo, que tais interesses eram ._.cm_»Bo:a os do grupo
econdmico no qual a sociedade em questdo se inseria.”
A atual lei acionéria alemd adotou uma sistematica um tanto diferente Cf. supra nº 112.
Cf. R. Godin e H. Wilhelmi, dktiengesetz, cit., T, pp 1.579 e ss.; H. Wiirdinger, Akdien-und
e, de qualquer modo, bem mais complexa. Ela partiu da distinção radical” Konzernrecht, 3* ed., Karlsruhe, 1973, p. 288.
Alguns juristas estrangeiros supereslimam, assim, sem nenhum apoio na realidade, a
importincia desse relatério sobre as relagdes com as sociedades pertencentes ao grupo
{cf., por ex., L. di Brina, “I Contratti tra Società Collegate nella Legge Tedesca sulla
62 Cf supran* 111, Societd per Azioni”, in RDC, 1972, 1, pp. 226/227).
63 H, Rasch, Deutsches Konzernrech, cit. p. 163. Cf. H. Wirdinger, Aksien-und Konzernrecht, cit., p. 254.
"

O PODER DE CONTROLE NA SOCIEDADE ANONTMA 409


408 FABIO KONDER COMPARATO E CALIXTO SALOMAO FILHO
I

Constituido o grupo econdmico de direito, os “acionistas estranhos” acervo, ou cujo faturamento ou receita ultrapassa 1 5% das vendas ou recei-
(aussenstehende Aktionaere), como são chamados os ndo-controladores na tas do méno.a No primeiro caso, os atos da subsididria de venda do seu
sociedade dominada ou submetida 4 transferéncia de lucros, passam a 20- acervo total, de incorporagio em outra sociedade, de eleição de administra-
zar de duas garantias: uma “indenização apropriada” (angemessener Aus- dores, reforma dos estatutos ou dissolugdo devem ser exercidos, direta-
gleich), equivalente ao dividendo, para 0s que desejam permanecer na mente, pot voto da assembiéia de acionistas da holding, e ndo pelos
companhia, na qualidade de “hóspedes tolerados”, como disse pitoresca- representantes legais desta na subsidiria. É a doutrina do pass-through.
mente um autor;* ou então o direito de recesso, com o recebimento dos Na segunda hipótese, já se admite que a decisão compita aos representantes
da sociedade controladora na assembléia da subsidiária, mas sempre com a

Al
controladores de um contravalor (4bfindung) pelas agdes cedidas.
A garantia do dividendo é dada em função da distribuição de lucrog prévia aprovação da assembléia da holding.
aos acionistas, feita no passado, e da distribuigdo previsivel de &5%2_8.
no futuro, caso ndo tivesse havido o “contrato de empresa’; acrescentando, Nota de Texto 76 Na Alemanha, essa necessidade prática teve elaboração
cautelarmente, a lei que se devem levar em conta as amortizagdes wa_a»__s“ teórica no famoso caso Holzmiiller.” Em uma faitispe-
das e as retificagdes de valores necessarias, mas não as reservas facultati- cie semelhante, de criação de uma sociedade unipessoal
vas, anteriormente constituidas (§ 304, alinea 2), sem o que estaria através da transferência de parte do patrimônio da socie-
legitimado até mesmo o autofinanciamento à outrance. Pode-se também - dade (transformada em) holding (pura), em primeiro lu-
o que parece pouco justificado— estipular no contrato que os nao-controla- gar impôs-se à diretoria (Vorstand) a convocação de
dores receberdo dividendos correspondentes aos distribuidos pela socieda- uma Assembléia Geral para decidir a respeito de uma
de dominante (ibidem). transferência patrimonial para a sociedade controlada
Quanto 4 indenizagdo pelo recesso, ela pode ser estipulada em agdes (0 que não seria obrigatório de acordo com a lei societá-
de outra sociedade, ou da que exerce sobre ela o controle, ou ainda em di- ria). Afirmou-se também que, dali em diante, qualquer
nheiro (§ 305). decisão sobre o aumento de capital na sociedade uni-
Em contrapartida dessas garantias, estabelecidas em favor dos acio- pessoal deveria ser tratada como uma decisão da socie-
nistas ndo-controladores, o legislador alemdo, inspirando-se, sem divida, dade holding, exigindo consequentemente uma decisão
no art. 209 da lei acionaria inglesa de 1948, em matéria de take-over bids,” da Assembléia Geral dessa última com quórum qualifi-
admitiu que, na hipdtese da constituição de um poder de controle corres- cado (75%).
pondente & detengdo de 95% do capital aciondrio de uma companhia, e per- Trata-se, com efeito, de atribuir diretamente à Assem-
tencente a outra sociedade por ações, esta pode expropriar os ndo-controla- bléia Geral decisões que normalmente competiriam à
dores, mediante a entrega de ações do seu capital, ou do capital da socieda- diretoria da sociedade controladora como representante
de 4 qual por sua vez se subordina, com uma eventual complementagdo em do acionista único na sociedade unipessoal. A transfe-
dinheiro (§ 320, alineas 4 e 5). rência de parte importante do patrimônio é apenas um
Nos Estados Unidos, sustentou-se a necessidade de uma disciplina exemplo. À mesma ameaça aos interesses da minoria da
particular para as subsidiarias integrais, que detém a quase totalidade (me- sociedade holding pode ser identificada, por exemplo,
gasubsidiaries) ou uma parte significativa (significant subsidiaries) do em decisGes tendentes a conclusão de contrato de gru-
acervo empresarial do grupo, isto é, segundo a SEC, mais de 15% desse po, no caso de aumento de capital da sociedade contro-
68 L. Brina, “I Contratti tra Societa Coilegate nella Legge Tedesca sulla Societd per 70 Cf. M. A. Eisenberg, “Megasubsidiaries: The Effect of Corporate Structure on Corpo-
Azioni”, cit. rate Control”, in Harvard Law Review, vol. 84, nº 7, de maio de 1971, p. 1.577.
69 Cf supran®79. 71 Caso Holzmilller, decisdo de 25.02.1982, in BGHZ 83, 122.
410 FABIO KONDER COMPARATO E CALIXTO SALOMÃO FILHO O PODER DE CONTROLE NA SOCIEDADE ANONIMA 4u
lada ou ainda no caso da admissão de terceiros na realidade dos grupos econômicos, estabelecendo a proteção adequada aos
sociedade (nestes últimos dois casos, a sociedade tor: interesses passíveis de lesão. Nada indica que no meio brasileiro esses inte-
nar-se-ia pluripessoal com diminuição da participagio resses sejam despreziveis. Tudo demonstra que a prática e a jurisprudência
relativa dos sécios minoritarios).” O perigo evidente não souberam e não puderam, no direito anterior, excogitar mecanismos
nesses dois casos ¢ a utilização da sociedade unipessoa| apropriados de defesa dos não-controladores, sem coartar inconsiderada-
para permitir a diluição da participagao votante dos mi- mente a formação dos grupos societários. Foi, por conseguinte, louvável a
noritários no grapo. Nao há porque, ai também, não se orientação da Lei nº 6.404/76 de procurar disciplinar o fenômeno.
aplicar à controlada as regras existentes sobre utiliza- Num dos raros casos de constituição contratual de grupo, levados ao
ção abusiva do poder de controle para diluigZo da parti- conhecimento dos tribunais, a Justiga procurou interpretar ampliativamen-
cipagdo dos minoritarios. te os textos legais, para evitar a nulidade. Mas a discussdo estabelecida
O antidoto para esse tipo de comportamento é eviden(e, mostrou até que ponto o fato sub judice era estranho à sistematica do De-
Na concepção organizativa da sociedade, a procedi- creto-Lei nº 2.627. Duas companhias de mineragdo constituiram uma socie-
mentalizagdo da atividade social e o cumprimento das dade civil, denominada “consorcio de administragdo”, que passou a
formalidades societárias aparecem como requisito fun- dirigi-las, retirando de suas respectivas dicetorias, praticamente, todas as
damental para a separagdo das esferas. No caso dos wau suas prerrogativas legais. Um acionista de uma dessas sociedades anôni-
pos, no entanto, a essa necessidade se contrapde uma mas ajuizou ação para anular a constituição do “consércio”, alegando vio-
outra: impedir o conflito de interesses na holding. Area- lação flagrante da norma constante do art. 116, $ 5° do Decreto-Lei nº
lizagdo de Assembléias exclusivamente com um repre- 2.627, que vedava a transferéncia das atribuições ou poderes, conferidos
sentante da holding pode servir como meio de aos diretores, a outro órgão criado pela lei ou pelos estatutos. O texto, as

R S
fortalecer a posição de seu controlador em detrimento claras, só previa transferéncia de poderes no seio da prépria companhia, e
dos minoritarios (da holding). Uma forma de compati- assim mesmo para declara-la invélida. A diregdo unificada do grupo econd-
bilizar essa exigéncia com a primeira ¢ sem divida a mico era problema totalmente desconhecido, ou pelo menos ndo considera-

TG
encontrada na já citada decisdo Holzmiiller do BGH do, pelo legislador. Acresce notar, no caso levado a juizo, que o “consércio
alemdo, que imputa as atribui¢des da Assembléia Ge- de administragdo” percebia elevada porcentagem sobre o lucro produzido
ral da sociedade unipessoal diretamente à Assembléia pelas companhias administradas.
Geral da holding. Desse modo, as decisdes podem ser O juiz de primeira instincia julgou procedente a demanda, anulando o
consideradas verdadeiramente do socio único (hol- “consórcio”. Todavia, em grau de apelação e de recurso extraordinario, os
ding), permitindo registrar lodas as diferentes opinides tribunais entenderain em sentido contrario. No caso, afirmaram, ndo teria
que a compde e não apenas a posi¢ao do controlador da havido delegagdo de poderes, nem ter passado o “consércio” a operar como
holding. Opera-se na pratica uma transmissao da dia- procurador dos diretores de ambas as companhias, mas como mandatário
lética maioria-minoria, da sociedade controladoraà destas, por decisão de suas respectivas assembléias gerais. “E o $ 5° citado
controlada. admite que os diretores constituam, em nome da sociedade, mandatarios
para as operagdes que poderdo praticar.”” Tal decisdo, na verdade, ndo en-
129. Voltando os olhos para o nosso pais, pensamos que o legislador contrava o menor amparo na lei. Não se tratava, obviamente, de simples
de 1976 teria incorrido em omiss3o culposa se não houvesse enfrentado a constituição de procuradores para a pratica de atos certos e determinados,
i
72 Cf. V. Emmerich e J. Sonnenschein, Konzernrecht, 3* ed., Munique, Beck, 1989, p- 73 Veja-se o acórdão do Supremo Tribunal Federal, no recurso extraordindrio n° 24.034,
110. Relator Min. Barros Barreto, em RT 291/873.
412 FÁBIO KONDER COMPARATO
E CALIXTO SALOMÃO FlLHO O PODER DE CONTROLE NA SOCIEDADE ANÔNIMA 413
mas de autêntica substituição de administradores: tanto mais que os repre- se tornando, como era de prever-se, raras exceções ao sistema vigorante,
sentantes legais do “consórcio” eram os próprios diretores das companhias em razão da possibilidade do recesso acionário (arts. 136 e 265). Com isto
em questão, não tendo sentido que eles fossem, a um tempo, diretores « a proteção aos acionistas não-controladores repousa, integralmente, sobre a
mandatários, a menos que se admitisse que o “consórcio”, pelo efeito-da aplicação do princípio indenitário por abuso de poder (art. 246), cujo cará-
personalidade jurídica, nada tinha a ver com esses diretores. Ademais, a ter dissuasório não se tem revelado muito eficaz, nem mesmo com o incen-
constituição de procuradores não é ato da assembléia geral, mas sim da di- tivo do prêmio em dinheiro à ação social w/i singuli dos acionistas não-
reioria. À deliberagdo das assembléias acentuou ainda mais o fato de que controladores ($ 2º).
houve, efetivamente, delegação de atribuigdes vedada por lei. E a atribui-
ção a0 “consdrcio” de porcentagem elevada sobre os lucros apurados pelas 131. Até aqui, a questão do desvio de poder, no grupo societário, foi
companhias administradas demonstrava, à saciedade, que não se estava vista exclusivamente como opressão dos não-controladores. Acontece que
diante de simples relação de mandato. não é apenas este o perigo decorrente da falta de regulamentação do fenô-
meno grupal. Há, também, casos freqiicntes de fraude a disposições legais
130. Aregulagdo legal dos grupos econdmicos pressupde, necessaria. nperativas, por meio da utilização do mecanismo do grupo.
mente, a propria definição legal do que se deva considerar como grupo; Assim ocorre, por exemplo, com as participações reciprocas de capi-
para o efeito de aplicação das normas reguladoras de sua constituição e ati- tal. Já tivemos ocasião de assinalar que esse entrecruzamento de socieda-
vidade; bem como, antes de mais nada, o que se deva considerar como con- des, quando intenso, pode esvaziar os poderes decisórios da assembléia
trole. geral, além de violar os princípios da integridade do capital social e da sin-
O reconhecimento da existéncia de um grupo econdmico não pade ceridade do balanço.”*
depender da decisão dos proprios interessados. O sistema alemão de distin- A regulação da sociedade anônima, nos sistemas jurídicos como o
guir “grupos de direito” ¢ “grupos de fato”, segundo a opinido concordante nosso, funda-se em grande parte no princípio da intangibilidade do capital
de vérios observadores, não provou bem. social, do qual decorre toda uma série de regras imperativas: o procedimen-
Na primeira edigdo deste livro, antes da promulgação da Lei nº 6.404/76, to de avaliação dos bens não-pecuniários quando da subscrição de ações, a
esboçamos as linhas-mestras de disciplina dessa questão de jure condendo.” proibição da emissão de ações abaixo do par, a proibição de a companhia
A lei acionéria de 1976 adotou, em parte, as orientagdes que preconi- negociar com as ações que emitiu, a proteção dos credores quirografários
zdvamos, notadamente a consagragdo dos grupos de simples coordenagio, nas deliberações de redução da cifra do capital. A participação reciproca
0 lado dos de subordinagdo. Para aqueles — denominados consorcios — ad-. entre duas ou mais sociedades pode tornar inteiramente vão esse princípio.
mitiu grande liberdade de estrutura, rejeitando o sistema alemão da previ- Figure-se, por exemplo, que a companhia A, com o capital de um milhão,
são de contratos tipicos em numerus clausus. constitua, logo após a sua fundação, duas outras companhias, B e C, subs-
Mi a legislador pétrio seguiu o modelo alemão de outra forma e, a - crevendo e pagando, em cada uma, ações no valor de meio milhão, repre-
sentando 99% do capital social, num e noutro caso. Imagine-se, depois, que
nosso ver, criticavelmente, ao aceitar a distinção entre grupos de fato e gru-
Avendaa C a totalidade das ações que possui no capital de B, e venda a esta
pos de direito. Estes últimos, regulados no Capitulo XXI da lei, acabaram
última a totalidade das ações que subscreveu no capital de C. Com essa
operação, A logrou recuperar as quantias investidas em ações das duas ou-
tras companhias. Se vier a ser dissolvida, com a devolução do seu ativo li-
74 Analisamos a regulação dos grupos societários na Lei nº 6.404/76 em artigo publicado quido aos acionistas, terá deixado subsistir duas sociedades, cujo ativo real
em RDM 23/91; em versão francesa, com algumas alterações (F. K. Comparato “Les € pouco superior a zero.
Groupes de Sociétés dans la Nouvelle Loi Brésilienne des Sociétés par Actions”), in
Revue Internationale de Droit Comparé, 1978, nº 3, p. 791, e em Rivista delle società,
1978, face. 4, p. 845; em versão alemã, na Zeitschrift fiir Unternehmens — und Ge-
selischaftsrecht, 1979, nº 4, p. 583. 7S CEsupran63.
414 FABIO KONDER COMPARATO E CALIXTO SALOMÃO FILHO O PODER DE CONTROLE NA SOCIEDADE ANONIMA 415
BB

Por outro lado, quando a lei não impõe regras adequadas para a avalia. Antes de passar 4 analise das tendéncias atuais, são ne-
çãono balango das ações em carteira, decorrentes de uma participação reci- cessdrios alguns esclarecimentos a respeito da regula-
proca de capital, como fazia a lei sueca de 1944 ($ 141, alinea 1), os mentação dos grupos na Alemanha. Com relagdo a
proteção dos credores, pode-se qualificar o sistemaale-
Sil

terceiros credores e os próprios acionistas podem ser iludidos quanto à rea-


lidade do ativo das companhias em questão. mão como uma “solugdo de trés niveis™ (“three stage
A Lei nº 6.404/76, além de disciplinar as participações reciprocas de- solution”).*
capital, preenchendo grave lacuna do direito anterior, veio ainda editar re. No primeiro nível, encontra-se a chamada Eingliede-
gras precisas quanto à avaliação do investimento em sociedades coligadas: rung. A Eingliederung constitui uma forma qualificada
de contrato de dominagdo (Beherrschungsvertrag),
e controladas, segundo os melhores princípios contábeis (art. 248 da Lei nº
6.404/76). sendo considerada uma forma intermediéria entre con-
Deixou, no entanto, sem solugdo explicita a questão da negociação, trato de dominagdo e fusdo. Diferentemente da fusio, a
pela sociedade controlada, com ações da controladora, que Ascarelli sus-
sociedade mantém a personalidade juridica; diferente-
mente do contrato de dominagdo, o patriménio da refe-
tentou ser proibida, ainda no regime do Decreto-Lei nº 2.627.
rida sociedade encontra-se à disposigdo da sociedade
A elusão dessas disposições imperativas pode, com efeito, acarretar
de coraando.” Isso porque a administragdo da eingegli-
sério risco para os acionistas ndo-controladores e os terceiros credores,
ederte Gesellschaft é obrigada a seguir todas as instru-

ii b
Estes Gltimos, em particular, quando quirograférios, terdo, eventualmente,
ções da sociedade de comando (Haupigesellschaft), de
comprometida a garantia representada pelo ativo da companhia, em razio

ik G
acordo com o $ 323 AktG. Essa situagdo justifica-se
do mau funcionamento dos mecanismos societérios de integridade do capi-
com base nas caracterfsticas peculiares desse tipo de
tal e de fiscalizagdo da gestdo administrativa.
sociedade.
A integragdo total, com manutengdo da personalidade
Nota de Texto 77 Não é exagerado dizer que o direito grupal brasileiro
juridica, é apenas admitida com a imposição de regras
enfrenta momento de séria crise. Do modelo original

I
especiais protetivas dos acionistas minoritarios das so-
praticamente nada resta. Sepultadas pela pratica ou
ciedades agrupadas e dos credores. Com efito, sua for-

SR
pelo legislador, as principais regras conformadoras do
mação é possivel apenas quando todas as agdes sejamjá
direito grupal (grupo de direito) como originariamente
de propriedade da sociedade de comando (§ 319), ou
idealizado não tém aplicagdo. Os grupos de direito são

el
quando esta possna 95% das agdes. Nesse último caso,
letra absolutamente morta na realidade empresarial
os acionistas podem ser obrigados a vender suas agdes
brasileira, em função sobretudo da inexisténcia de defi-

sa
nição de regras de responsabilidade e da possibilidade
de retirada em massa dos minoritirios da sociedade
quando da celebragio da convengdo de grupo. Já o por 76 CE M. Lutier, “The law of groups of companies in Europe: a challenge to jurispruden-
assim dizer direito dos grupos de fato flutua entre re- ce” in Forum international on commercial law and arbitration, vol. 1, 1983, nº 1, p.
gras de responsabilidade mal definidas e disciplina de 24, v. também do mesmo autor “Des Konzemrecht der Bundesrepublik Deutschland:
conflito de interesses de dificil aplicação. Ziel, Wirklichkeit und Bewahrung” in SAG 1976, pp. 152 ss.
Assim sendo, é necessário refletir criticamente e de for- 71 Cf.H. G Koppensteiner, in Kélner Kommentar zum Aktiengesetz, vol. 3, Colônia, Ber-
lim, Bonn, Munique, Carl Heymanns. 1985. Vorb $ 319, Rdn. 3, p. 203, que depois de
ina prospectiva sobre as experiéncias estrangeiras e par- haver definido as caracteristicas acima, afirma: “Kaufmdnnisch betrachiet, ist die ein-
ticularmente sobre a longa experiéncia dos Tribunais gegliederte Gesellschaft eine Betriebsableilung der Hauptgesellschaff', v. ambém,
alemdes no perfeccionamento das — como j4 visto — im- no mesmo sentido, B.Griinewald-J.Semler, in Gessler-Hefermehl Akfiengesetzkom-

Rl
perfeitas regras legais deste pais sobre grupos. menfar, 13. Lieferung, Munique, Vahlen, 1991, $ 319 (Vorb.), Rdn. 2, pp. | ss.
416 FABIO KONDER COMPARATO E CALIXTO SALOMÃO FILHO O PODER DE CONTROLE NA SOCIEDADE ANONIMA 417
mediante indenização ($ 320, Abs. 5). Com relação à Um bom exemplo é o caso Fertighaus, decidido por
proteção dos credores, prevê-se a responsabilidade in- aquele tribunal em 4 de maio de 1977.” Tratava-se de
tegral da sociedade de comando pelos débitos da socje. demanda proposta por um fornecedor contra o sócio
dade subordinada, em caso de Eingliederung (§ 322), unico de seu devedor, uma sociedade unipessoal subca-
Em um segundo nível de integração, encontram-se ag pitalizada. Dos bens utilizados pela sociedade, a maior
sociedades ligadas por um contrato, que pode ser um parte pertencia ao sécio tnico. Na decisdo. afirma-se
expressamente o principio da separagdo patrimonial
Beherrschungsvertrag ou um Gewinnabfiihrungsver-
contido no $ 13 GmbHG e nega-se a possibilidade de
trag (§ 291). Fala-se em nível mais baixo de integração
responsabilizagdo do socio único com base apenas na
porque o direito da sociedade de comando de determinar
subcapitalizagdo.™ Afirma-se em seguida que o fato de
o destino da sociedade comandada está sujeito às limita-
que a sociedade seja controlada por uma pessoa juridica
ções previstas no contrato de grupo e nos dispositivos ndo importa qualquer diferenga qualitativa com relação
dos §§ 308-318 AktG. Mesmo não sendo responsável pe- 20 caso em que o sócio único seja uma pessoa fisica.*'
los débitos da sociedade subordinada (o $ 303 prevê
apenas a obrigação de prestar garantias em caso de de-
saparecimento da relação grupal aos credores que as re-
79 Cf. Caso Fertighaus, decisão de 04.05.1977, BGHZ 68, 312.
quisitarem em um prazo de seis meses do registro do
80 Essa afirmagdo baseia-se em duas premissas: primeiro, o tribunal considerou que a
término do contrato de grupo), a sociedade de comando sanção correta contra a subcapitalizagio encontra-se nas disposigdes socictirias de
é obrigada a repor todo ano as perdas contábeis sofridas proteção do capital social e não em uma eventual aplicagdo da teoria da desconsidera-
pela sociedade subordinada ($ 302). ção (p. 319) e em segundo lugar no fato de que o Tribunal, ainda que negando do ponto
Por fim, no terceiro nível encontram-se os assim cha- de vista tedrico os pressupostos da teoria de Serick, faz uma aválise subjetivista da des-
cousideragdo, considerando incficientes critérios objetivos para a atribuigdo de res-
mados grupos de fato. Neles, existe apenas a obrigação ponsabilidade “Enigegen der Auffassung von Serick (Rechisform und Realitãt 1.953)
de reparar os danos ocasionados por decisões tomadas hat der Bundesgerichtshof bei der Behandlung von — im einzelnen allerdings ganz un-
pela sociedade controtadora ($ 311). terschiedlich gelagerten — Durchgriffsproblem weirgehend auf einen objeltiven Miss-
brauch der Rechisform der Gesellschaft abgestelll und den Nachweis einer
@) Responsabilidade grupal subjetiva nicht verlangt (vgl. BGHZ 20, 4). Der erkennende Senat hat aller-
Missbrauchsabsicht
Exposto o substrato legislativo, pode-se passar 4 andli= dings in dem Uricil vom 26 November 1.957 (aaO S. 462) ausgesprochen, es miisse
se de como e com que fundamento os tribunais alemaes (dort: zum objektiv hervorgerufenen Rechisschein) grundsiitzlich ein subjekiiver Ge-
sichispunkt hinzukommen, der das Verhalten des sich auf die Selbstandigkeit der
aplicaram a disciplina do segundo nivel de integragao, GmbH berufenden Gesellschafiers als einen Verstoss gegen Treu und Glauben oder
como reiro definido, a hipdteses incluidas no terceiro.™ gegen die Guten Sitten kennzeichne” (p. 316).
Primeitamente é necessario ter conhecimento da posição 81 OTribunal até admite a maior probabilidade de conflito de interesses nos grupos, inas
do BGH antes do famoso caso Autokran, que represen- não tira qualquer conseqiiéncia dessa constatação: “Ob der enischeidende Einfluss auf
einer GmbH von einem Privaigesellschafter oder aus einem anderen Unternehmen
tou importante mudanga em relação à jurisprudéncia an- stammmt, ist jedoch unerheblich. Es mag zwar sein, dass, wie Wiedemann (Juristische
terior daquela corte. Person und Gesamthand als Sondervermdgen, WM 1.975, Sonderbeilage 4/1.975, p.
20) ausfiihrt, erfahrungsgemdss ein hervschendes Unternehmen die abhângige juristis-
che Person intensiver mit den eigenen Inleresse verkniipfen wird, als dies bei einem Pri-
vatgesellschafter der Fall ist. Dieser Umistand rechifertigt jedenfalls nicht ohne weiteres
78 Emtodosostrês casos que serdo analisados, trata-se de um GmbHKonzern. A doutrina der Glâubiger gegen die Muiterge-
einen allgemeinen unmittelbaren Haftungsdurchgriff
dominante tende, no entanto, a considerar o mesmo raciccinio aplicivel ao AG faktis- sellschafi, wie dies insbesondere auch ein Vergleich mit den konzernrechtliche Vorschrif-
che Konzern-v. V. Emmerich e J. Sonnenschein, Konzernrecht, cit., p. 347. ten fiir die Aktiengesellschaft (§§ 15 95., 302 95., 311 T AkeG) zeigs” (p. 320).
418 FABIO KONDER COMPARATO E CALIXTO SALOMAO FILHO O PODER DE CONTROLE NA SOCTEDADE ANONIMA 419
Essa última afirmagio foi objeto de muitas criticas na m mita Q._Efio o wBZ_c de aplicação da norma, sobretudo
doutrina por não levar em consideragdo as peculiarida. i ma sociedade unipessoal, na qual o dado formal do exer-
des dos grupos. : á cício da administração _:...o .m requisito essencial para o
Com efeito, é exatamente com base no reconhecimento nann._.&o do poder À an.o_,mmo afirma que o socio pode
da peculiaridade dos grupos que se baseia a decisãodo eximir-se de nnwvcnmwgiumn apenas demonstrando
caso Autolran, de 16 de setembro de 19853 Tratava-se - que qualquer outro wa_.s_.:_w:man_. oc_:ê.aº de seus
de dívida resultante de contratos de leasing de máqui- deveres _nwm_.m e estatutdrios (pflichigeméss handelnde
nas. O autor era credor de sete sociedades controladas . Geschafisfiihrer) de uma empresa .Ea,mv endente teria
por uma mesma /iolding, que era sua sócia única de gerido os _.awonõw;% mesma maneira. À
fato. A sociedade holding controlava não apenas finan- O segundo ponto não é tratado em profundidade na de-
ceiramente o caixa das sociedades ligadas, através-de — - cisão. Nega-se a possibilidade de aplicação do $ 302
uma outra sociedade que tinha a função de Hausbank, BGB afirmando-se que, no caso da sociedade unipessoal,
mas podia também determinar, como efetivamente fez, a inexistência de um interesse interno autônomo não
a transferência das máquinas de uma sociedade 2 outra, justifica a aplicação das regras de proteção do patrimô-
Através de diversos artifícios, a sociedade holdingha- — — nio social, mas apenas das regras de proteção dos cre-
via conseguido transferir grande parte do patriménio dores.** Como regra substitutiva, invoca-se o $ 303
das controladas para seu patriménio e para o patrimô- AltG, que obriga a sociedade de comando do grupo a
nio am seusocio Ew_oms_._o.. m.:. presença de uma sítua- prestar garantias aos credores da sociedade subordina-
ção fática tão clara, não .—.o_.n_mo__ para o QO,m.—.:Bu— da que tenham feito o requerimento até seis meses antes
que, nos grupos, 2 co-existência, no mesmo sujeito, de do registro do fim da relação grupal. Tal regra é utili-

P = RIS
m.o_m interesses sociais, cumulada com a efetiva possibi- zada, no entanto, mais para aproximar a hipdtese da res-
lidade mm pôr um interesse a servigo do outro, justificaa ponsabilidade de grupo — formando assim um corpo de
aplicação das regras previstas na lei acionária para os GmbH K d função d
grupos de direito. HON«N.W parao m, á D.RNNB— 7 _._fl 0 .m uma
OD:&O,—D
Dois são os pontos discutíveis e discutidos na decisão: perfeita COmesp ondência mu.a_mn_v_:.s & fatisp ecie.
em primeiro lugar, a determinação dos critérios que A conclusdo de Autokran é que, ainda que utilizando
: z - ;

ic
permitem afirmar a efetiva possibilidade de utilização elementos estruturais (a noção de qualifizierte faktische
de um interesse em função do outro; em segundo, a jus- - Konzern), o elemento subjetivo continua presente na
tificativa da aplicação da normativa dos grupos de direi- caracterização da “responsabilidade”.
to aos grupos de fato. E é exatamente essa possibilidade de exclusão de res-
Com relação ao primeiro ponto, requer-se a existência. ponsabilidade por demonstração da inexistência de
do assim chamado “qualifizierte faktischer Konzern”, culpa que caracteriza e justifica a denominação res-
ou seja, o sócio único deve ter exercido a administragio ponsabilidade de grupo subjetiva.
da sociedade de forma ampla e duradoura (dauerndund —
umfassend).”* Trata-se claramente de requisito que li-
84 BCHZ95,p. 330 (334).
82 Caso Autokran, decisão de 16.09.1985, BCHZ 95, p. 330. 85 O tribunal afirma que tal protegio seria incompativel com a sociedade unipessoal caso
83 BCHZ 95, p. 330 (333-334), fazendo referéncia às discussdes do Arbeilkreis se admitisse que o interesse social é o interesse comum dos sécios. Mesmo adotan-
CmbH-Reform (Thesen und Vorschlige zur GmbH-Reform 1972, vol. 2, pp. 59 € 67), do-se uma nogdo mais ampla de interesse social, que inclua credores e empregados, o
onde a expressio foi pela primeira vez utilizada. tribunal considera a proteção “externa” (do $ 303 AA/G) suficiente - p. 346.
420 FÁBIO KONDER COMPARATO E CALIXTO SALOMÃO FiLHO O PODER DE CONTROLE NA SOCIEDADE ANONIMA 421
Essa não deve ser confundida com a responsabilidade : do também a administrag3o financeira da sociedade.*®
subjetiva pura, baseada na demonstração da intenção, Ainda que, como j4 explicado, essa decisdo representas-
Nesse caso, não mereceria a denominação grupal, vow se uma decorréncia logica da decisão do caso Autokran,
nada teria de específico para o grupo. Tratar-se-ja de pode-se notar um menor fervor pragmatico e um maior
mera aplicação da regra de responsabilidade por ato i empenho dogmético por parte do BGH em relação
cito do Código Civil. aquela decisdo. Pode-se dizer que a decisdo no caso
Por responsabilidade de grupo subjetiva deve-se emen- Tiefbau aplica os principios que em Autokran tinham
dar aquele tipo de regra (legal ou jurisprudencial) que, sido declarados mas ndo aplicados. Enquanto em
com base em uma predeterminada configuração da es-
Autokran tinha-se declarado o objetivo de aplicar uma
trutura grupal, “presume” a existência de um comporta-
disciplina semelhante & konzernspezif sche Haftung mas,
mento fraudulento. Presunção simples, motivo pelo
10 final, acabou-se por aplicar uma disciplina semelhan-
qual a disciplina não se confunde fampouco com à res-
ponsabilidade objetiva. Permanece sempre possivel:
te à da responsabilidade delitual, no caso Tiefbau procu-
para a sociedade eximir-se de responsabilidade de- ra-se discutir os pressupostos da responsabilidade grupal
monstrando que respeitou a independência patrimonial prevista na lei e determinar os efeitos e limites de sua
da sociedade controlada.* aplicagdo aos grupos de fato.
Afirma-se a aplicabilidade do $ 302 4kG, ou seja, a
b) Responsabilidade estrutural obrigagdo de compensar as perdas. O desaparecimento
Com a expressão “responsabilidade estrutural” quer-se das davidas existentes no caso Autokran a respeito da
exprimir a responsabilidade privativa dos grupos apli- aplicagdo desse dispositivo justifica-se sobretudo em
cável em função da simples existência de uma determi- função da particularidade da fattispecie, que envolve
nada estrutura grupal. Nesse grupo incluem-se as responsabilidade societdria (interna) e ndo-responsabi-
decisões jurisprudenciais alemas ulteriores ao caso Au-. lidade perante os credores. O BGH, ao definir os crité-
tokran e a lei portuguesa dos grupos, que são analisadas rios para a aplicação de tais regras, utiliza a mesma no-
em seguida. ção de qualifzierte faktische Konzern, dessa vez, no
Sucessivamente ao caso Autokran, o BGH teve de en- entanto, depurada de semitons subjetivos. A responsa-
frentar o problema da responsabilidade nos qualifzier- bilidade da sociedade controladora não é influenciada,
tefaktischeKonzern no caso Tiefbau, decidido em 20 de portanto, pelos padrdes de comportamento do adminis-
fevereiro de 1989.%7 Tratava-se de demanda proposta trador médio. A sociedade controladora pode eximir-se
pelo síndico de uma massa falida em face de seu princi- de responsabilidade apenas se demonstrar que os danos
pal financiador, um banco, que tinha exercido na prá! nada têm a ver com o exercicio da administragio.* O
ca, durante longo tempo, a direção dos negócios da
sociedade através de fiduciários, transformados em só
cios majoritários da sociedade. Um deles havia exerci- 8B BCHZ 107, p. 19.
89 Muito incisiva é a declaração “antisubjetivists” do BGH nesse trecho: “Die Verlustii-

il
bernahmepflicht dient zumindest auch dazu, die Ausserkrafisetzung der Kapitalsiche-
rungsvorschrifien auszagleichen. Sie kann daher enigegen der bisherigen Annahme
86 Trata-se, portanto, de uma responsabilidade de natureza mista, que u elementos des Senats nicht davon abhéngen, ob das herrshende Unternehmen die Geschafie der
da estrutura (Konzernstraktur) e do comportamento grupal (Konzernverhalten) — Y. abhângigen GmbH pflichigemdss wie der Geschãftsfihrer einer selbstândigen Ge-
nesse sentido P. Hommelhof, “Konzempraxis nach Video", in DB 1992, p. 311 sellschaft gefúhrt hat, Kapitalerhaltunggrundsétze und ordnungsgemsse Geschifi-
87 Caso Tiefbau, decisio de 20.02.1989, BCHZ 107, p. 7. sfiihrung haben”, p. 18.
O PODER DE CONTROLE NA SOCIEDADE ANÓNIMA 423
422 FÁBIO KONDER COMPARATO E CALIXTO SALOMÃO FILHO
elemento subjetivo (culpa) desaparece, permanecendo resses empresariais na mesma pessoa - 0 sócio único. A
apenas a necessidade de demonstração do nexo de cau- possibilidade de pôr um interesse a serviço do outro é
salidade. A necessidade de demonstrar o nexo de causa- presumida, como nas decisões precedentes, a partir do
idade justifica-se exatamente por tratar-se de grupo de exercício da administração social. Determina-se, por-
fato. Se com Autokran não se havia inovado tanto, tra- tanto, a aplicação do $ 303 AX1G. A justificativa está na
tando-se nos resultados de mera responsabilidade por necessidade de proteger os credores sociais, que para o
comportamento (Verhaltenshaftung), em Tiefbau ad- tribunal, no caso da sociedade unipessoal, na qual o só-
mite-se a responsabilidade com base apenas na existên- cio único exercita 20 mesmo tempo a administração,
cia de uma estrutura de grupo e sua ligação causal ao. não é menor que nos grupos de direito.”
dano (Strukturhaftung).® &
Interessante na decisão é também uma afirmação feita
Os limites da aplicação das regras grupais são também< ——
em obiter dictum. Afirma-se que o sócio único respon-
fixados. Com efeito, o tribunal afirma que ainda que o 8.. :
de pessoalmente com todo o patrimônio,já que se trata
302 não exija a demonstração do nexo de causalidade
normalmente de um empresário individual. No caso,
entre o exercício do poder de direção e as perdas, a situa-
entretanto, em que seu segundo interesse empresarial
ção deve ser avaliada diversamente quando se trata de
fosse exercitado também com responsabilidade limita-
grupo de fato. A inexistência de um contrato que impli-
que (como pode acontecer em presença de um Gewin- da, poder-se-ia pensar em responsabilização dessa ou-
nablahrungsvertrag) a transferência dos lucros impede M ta moowo,aãm, Trata-se de responsabilidade mn_o.n»_. ou
a aplicação de uma normativa tão rígida.” seja, “eine Haftungsverband zwischen den Einzelge-
Outra decisão que deve ser mencionada é a do caso Vi- sellschaften unter Schônung des Privatvermigens des
deo (decisão de 23,09.1991).” Trata-se aqui novamen- i Gesellschafters””*
te do sócio único de uma sociedade de responsabilidade | Para ter uma idéia correta do esquema “evolutivo” —
tada, que exercia paralelamente o comé : sem que à expressão deva ser atribuída, pelo menos no
nome individual, além de ser sócio de outra sociedade: momento, qualquer função valorativa do tipo “darwi-
esse
é a própria
O primeiro ponto de inter caracterização — niano” -, é necessário não esquecer que, em todas as
do Konzern. O tribunal, fazendo referéncia a uma inter- 1 decisdes, a caracterizagdo como qualifzierte faktische
pretagdo ja consolidada dos $$ 15 ss. AMG identificao = —— Konzern é uma presungdo simples, mera inversio do
Konzern com base na existéncia de dois ou mais inte- ônus da prova. Analisando-se a regra de responsabili-
dade juntamente com o elemento presumido, pode-se
ter uma idéia melhor das implicagdes tedricas da regra
T estabelecida. Em Autokran, encontra-se uma fattispecie
determinada em termos subjetivos. A contra-prova
90 V. F Kiibler, “Haftungstrennung und Gliubigerschutz”, im “Recht der Kapitalge- requerida ¢ do comportamento como administrador di-
sellschaften: Zur Kritik der Autokran-Doktrin des BGH” in Festschrift fiir Theodar
Heinsius (1991), p. 412. —
91 Para o BGH deve-sc distingiiir entre os diversos poderes de direção: “Im iibrigen bes-
teht zwischen der rein tatsiichlichen Beherrschung und der Ausiibung der Leitungsmacht ;
aufgrimd eines besonderen Verirages ein Unlerschied, der es nicht gebolen erscheinen - . 93 Para 0 BGH, mesmo realizando uma análise do tipo econdmico e verificando os riscos
lsst, die enssprechende Anwendung der vertragskonzernrechdichen Bestimmungen assumidos pelas partes, não se pode presumic que o credor, em prescnga de um grupo
weiter auszudehnen, als es nach den zugrundeliegenden Wertungen erforderlich ist” = de fato de direção tão integrada, não tenha contado com o patrimônio da holding ao
p.19. conlratar com a sociedade controlada (p. 2.178).
92 DB 1991, p. 2.176.
Caso Video, decisio de 23.09.1991, = 94 DB 1991, p.2.176 (2.177).
FÁBIO KONDER COMPARATO E CALIXTO SALOMÃO FILHO O PODER DE CONTROLE NA SOCIEDADE ANONIMA 425
ligente de uma sociedade independente. Portanto, Para atingir aquela hipdtese que merece mais protegdo do
a caracterização da responsabilidade é necessária a ponto de vista juspolitico: a empresa média familiar.**
existéncia da estrutura grupal aliada ao comportamentg 4 Argumenta-se ainda que a definição dos qualifizierte
contrério aos interesses da sociedade controlada. A essa faktische Konzern, na forma como feita, com exigéncia
Jattispecie definida em termos, por assim dizer, “subje- de demonstragdo da existéncia formal de dois interes-
tivos”, corresponde uma disciplina também subjetiva, ses empresariais em torno do sacio único, torna o es-
Delermina-se a aplicação do $ 303 Ak/G, que pouco se quema passivel de fraude: baste introduzir entre o real
NS
distingue do caso de responsabilidade por dano. A típi- sécio controlador e a sociedade controlada uma socie-
a “responsabilidade” de grupo, fundada na obrigação dade holding e impede-se a configuração da fattispe-
de compensar as perdas (§ 302), é negada. cie." Nesse caso, 0 sócio “real” teria um único interesse
Na segunda decisão (Tiefbau), verifica-se uma clara ob- -& patrimonial (o da holding), enquanto a sociedade hol-
jetivização (da fattispecie e da disciplina). Para a carac- ding teria dois interesses patrimoniais mas escasso pa-
terização da fattispecie basta a existéncia do qualifizierte triménio.
Jaltische Konzern e o liame causal com o dano. A disci- A responsabilidade grupal ndo seria suficiente, exigin-
plina aplicada é precipuamente de grupo (§ 302 AktG) do-se sempre uma desconsideragdo ao final para impe-
Finalmente, em Video pode-se identificar uma ulterior dir a fraude. Não haveria por que recorrer ao esquema
objetivizagdo. Ainda que na definição da fartispecie se grupal e não diretamente ao da desconsideragao.
sigam os critérios de Tigfbau, na disciplina adota-se a Mas as criticas mais intensas relacionam-se à mudanca
de orientação a partir de Tiefbau, com claro favoreci-
chamada sektorale Durchgriff (desconsideragdo setorial),
objetivando a persecução do patriménio e ndo dos mento de uma responsabilidade objetiva ou baseada
“culpados”. meramente na estrutura da empresa. Do ponto de vista
estritamente positivo, argumenta-se que tal tipo de res-
Essa evolução jurisprudencial foi objeto de severa criti-
ponsabilidade é contréria ao proprio escopo das regras

dn
ca doutrindria. A tentativa de estabelecimento de um
sistema objetivo ou estrutural de responsabilidade foi,
de responsabilidade de grupo da lei acionária alema.”®
Atendendo a essa maré de criticas vindas da doutrina e
criticada em diversos aspectos. A primeira critica rela-
em função do amplo didlogo existente na Alemanha en-
ciona-se à propria indeterminagdo da expressio qualifi- - —
tre doutrina e jurisprudéncia (em ambos os sentidos), o
zierte faktische Konzern® excessivamente restrita e
BGH mudou de orientagao no mais recente julgamento
ampla 20 mesmo tempo. Restrita porque, a0 exigir aad-
sobre a matéria. No chamado TBB Urfeil (29.03.1993),”
ministração da sociedade pelo sécio único, exclui as hi--
poteses em que tal situagdo não exista formalmente,
mas em que o exercicio do poder por parte do sócio não
se distingue na prática (nem quantitativa nem qualitati- V. a esse respeito P. Hommelhoff, "Konzempraxis nach Video™, cit., p. 312.
vamente) da prépria administragdo. Excessivamente Cf. F. Kúbler, “Haftungstrennung und Gliubigerschutz”, cit., p. 422.
in DB 1992, p. 26, que afir-
ampla porque, tendo como fundamento o exercicio do
ma: “Seit der Rechtsprechung des Reichfinanzhofs war und ist auch nach dem gelten-
poder e aplicando-se também a pessoas fisicas, ameaga den Steurrecht (14 KSiG) Voraussetzung der steuerrechilich anzuerkennenden
Organschafi die wirtschaftliche, organisatorische und finanzielle Eingliederung der
Organgesellschaft in das Unteruehmen des Organtrigers. Diese Eingliederung ist das
Leitbild fiir die Regelung von $$ 302, 303 AkKIG".
95 Cf. F. Kitbler, “HaRungstrennung und Gliubigerschutz”, cit., p. 423. 99 Caso TBB Urteil, decisão de 29.03.1993, NJW 1993, p. 1.200.
TTAc

426 FÁBIO KONDER COMPARATO E CALIXTO SALOMÃO FILHO ‘O PODER DE CONTROLE NA SOCIEDADE ANONIMA 427
o tribunal atenua sua posição em relação à responsab;, O legislador portugués, partindo do mesmo objetivo de
lidade estrutural. Em uma fartispecie semelhante 3 a.. diferenciar claramente entre disciplina da sociedade uni-
Video, i. e., um sécio único de várias sociedades, o _1_.u 3 pessoal de grupo e disciplina do comerciante individual,
bunal afirma que ndo basta a existéncia do A:i%.fi«:m previu para esse último uma férmula não-societária de li-
fuktische Konzern para gerar a presunsio de utilização. mitação de responsabilidade (estabelecimento comercial
de uma sociedade no interesse da outra. É necessário com responsabilidade limitada). Quanto à sociedade uni-
pessoal de grupo, optou por uma formula ainda mais es-
T

que o autor demonstre tal fato. -


A impressdo inicial &, portanto, a de um retorno 3 teora trutural ou objetiva que a jurisprudéncia alemã. A
subjetiva. Na demonstragio da utilizagdo fraudulenta da É sociedade unipessoal de grupo (sócio único pessoa juri-
sociedade estariam implícitos o dolo ou ao menos a culpa. dica) vem expressamente prevista nos arts. 488 e
Entretanto, analisando-se bem a decisão, nota-se n_ã.w —— seguintes do Cédigo das Sociedades com nova redação
Tetomo aos critérios subjetivos de responsabilidade não dada pelo Decreto-Lei 76-A/2006, de 29 de margo, mas
é tão amplo quanto parece. Isso porque o tribuna! esta- que não alterou o sentido, abrindo exceção à regra do art.
belece um ônus de esclarecimento por parte do réu da 7° do mesmo diploma legal, que prevé que as sociedades
Situação interna do Konzern. Não prestados os esclare- terão sempre dois sócios, a ndo ser nos ¢asos previsto em
cimentos ou sendo eles insuficientes, os fatos alegados lei. No art. 491, prevé-se expressamente a aplicagdo à so-
são considerados provados.'® Pouco clara permanece a ciedade unipessoal de grupo (“grupo constituido por do-
situação do ônus da prova com relação aos esclareciz —— minio total”, na terminologia da lei portuguesa) das
mentos prestados. Seguindo a légica da decisão eda —— disposigdes sobre os grupos de direito (arts, 501-504). O
distribuição do ônus da prova, parece ser sustentável, J
no entanto, que o ônus incumba ao réu, de quemjá é o
resultado é a possibilidade de subordinagdo dos interes-
2
dever de prestar esclarecimentos. ses da controlada aos interesses da controladora (a socie-
S
Confirmando-se essa orientação também dade controladora tem o direito de dar “instrugdes
quanto ao =
ônus da prove, poder-se-4 falar em busca de uma solu- =
vinculantes”, ainda que essas sejam “desvantajosas paia
-
ção intermedidria entre a responsabilidade grupal sub- s a sociedade subordinada” — art. 503, nº 1-2), que, no en-
jetiva e a estrutural.”º tanto, é obrigada a compensar as perdas anuais da socie-
O tribunal preocupa-se também em responder s criticas dade controlada (subordinada) e responder integral-
relacionadas & possivel extensão dessa responsabilidade. mente por seus débitos (art. 501, nº 1).
a0 comerciante individual. Afirma que os limites estabe- e O Código portugués consagra portanto a verdadeira
lecidos na decisao estão perfeitamente em linha comos responsabilidade estrutural de grupo, decorrente exclu-
dispositivos da XI1 Diretiva, aplicando-sc portanto ape- — sivamente da existéncia da concentração e do direito de
nas aos grupos (no sentido amplo ali previsto).'” dar instrugdes vinculantes. Não se confunde com a so-
lução italiana, pois a responsabilidade pelas perdas é in-
terna (relagdo controlada-controladora) e ndo externa
(relagdo com credores), o que implica sensivel diferen-
100 NJW 1993, p. 1.203. ça quanto aos efeitos juridico-econdmicos, como se
- verd mais adiante.
101 Tudo indica que esse deve ser o entendimento. Apesar de não se ter pronunciado clara- — 1
mente sobre a matéria, a decisdo fez referéncia (p. 1.203) a outra decisdo do BGH (de- ¢) Responsabilidade setorial
cisão de 17.03.1987, in BCHZ 100, 195), na qual se impde não apenas a obrigagio de 2
prestar esclarecimentos mas também de provar o que foi dito. ; É na realidade dos grupos que se bascia a última alter-
102 NJW1993, p. 1.204, : nativa aqui tratada. Em comparagio com as outras,
O PODER DE CONTROLE NA SOCIEDADE ANONIMA 429
428 FÁBIO KONDER COMPARATO E CALIXTO SALOMÃO FILHO
constitui uma solução marginal, não tendo acolhimento de esferas. Diferentemente da responsabilidade subjeti-
em qualquer dos sistemas analisados. O máximo que se va, no entanto, ndo vai atrés do “culpado” (o controla-
encontra é a já mencionada referência em obiter dictum dor), mas sim do verdadeiro beneficidrio (eventualmente
no caso Video.'” uma outra sociedade controlada).
A teoria baseia-se no fato de que os grupos são freqúen-
d) Efeitos das diversas teorias na organizagdo interna
temente caracterizados pela existência de uma socieda-
de holding
dos grupos
que não exercita atividade comercial
própria. Isso sugere que das transferências patrimoniais Analisando os esquemas descritos acima, podem-se
e “medidas no interesse do grupo” tiram proveito so- distinguir trés tipos diversos de solugdes, diferencidveis
bretudo outros setores (outras sociedades) efetivamente segundo suas diversas conseqiiéncias econdmico-juri-
empresariais do grupo. Uma disciplina direcionada a. dicas.
procurar sempre o Hintermann poderia, portanto, pro- No primeiro grupo, em que se inclui a solução italiana e
vocar distorções, não o_fimmi_o aos verdadeiros benefi-
2 alemã da eingegliederte Gesellschaft, procura-se li-
ciarios das transferéncias'™ e prejudicando de maneira mitar a0 minimo estritamente necessario as restrigdes
indevida os minoritarios da holding.
de natureza societdria à constituição e atuação dos gru-
Pode-se cogitar, portanto, de uma responsabilidade se-
pos com concentragdo total. Isso se faz através da su-
torial que permita atingir cada sociedade beneficiada,
bordinação do interesse da sociedade controlada ao da
Evidentemente, tal ampliação da lista de possiveis de- de uma
sociedade controladora, ndo acompanhado
vedores não admite qualquer tipo de presunção, sobre-
obrigagdo sistematica de compensagdo das perdas."*
tudo se baseada na utilizagio do poder de controle com
Analisando-se as conseqiiéncias econômicas de tal dis-
o fim de confusdo de esferas Atingir um beneficiário
ciplina, chega-se a um efeito bastante favorável com re-
que ndo exercita qualquer poder de controle com base
lação à formação dos grupos de estrutura centralizada,
em uma presungdo ¢ evidentemente um absurdo, pois —
criaria situação de incerteza juridica, insuportivel para sem qualquer limite quantitativo. Sequer a concentra-
todas as sociedades do grupo e seus credores.'® ção total é desincentivada, na medida em que a regra de
A responsabilidade setorial diferencia-se ainda da res- conflito de interesses perde aplicação.
ponsabilidade estrutural, porque não se contenta com Apossibilidade de realizar as transferências parrimoniais
dados objetivos. Exatamente por pretender ir atrds do desejadas durante a vida da sociedade, realocando os
verdadeiro beneficirio, requer a existéncia de confusao itens na forma mais conveniente para o grupo, € a vin-
culação do patrimônio da sociedade controladora ao
insucesso econômico da controlada sugerem o trata-
mento da sociedade controlada não como um profit
103 DB 1991, p. 2.177, onde se afirma que a responsabilizagdo pessoal do sócio justifica-se center independente, mas como um mero departamento
também porque persegue seu outro interesse como comerciante individual, sem limita-
da sociedade controladora (Betriebsabteilung). Tra-
ção de responsabilidade. Apenas se não o fizesse seria possivel a responsabilizago da
outra coatrolada, deixando isento o patriménio do sócio. A discussdo dos demais requisi-
tos ¢ conseqiiéncias da aplicação dessa regra ndo é, no entanto, levada mais adiante.
104 CE. nesse sentido, G Teubner, “Die *Politik des Gesetzes’ im Recht der Konzembaf-
tung”, in Festschrift Steindorf, 1990, p. 278. 106 Para caracterizar 0 “sistema i iano” utilizam-se aquelas decisões da Cassação que per-
105 G. Teubner, “Die Pol des Gesetzes”, c p. 271, sugere, com efeito, a aplicação de- milem a subordinação de inferesses sem compensação. É evidente, no entanto, que
tal esquema para os einfache faktische Konzern e não para os qualifizierie faktische adotando a linha do projeto Ferri ou da doutrina que defende a necessidade de compen-
Konzern, j4 sujeitos à regra de responsabilidade baseada na presunção de controle. sação, a solução se desloca para o segundo grupo, que será analisado abaixo.
FA810 KONDER COMPARATO E CALIXTO SALOMÃO FILHO O PODER DE CONTROLE NA SOCIEDADE ANONIMA 431
ta-se de solugdo economicamente interessante para lanceada, nos quais a sociedade controlada represente
aqueles empresarios interessados na total fusio econg. parte relevante do capital total do grupo.
mica das empresas, mas que queiram evitar os inconye. O terceiro grupo, constituido pelas solugdes alemas
nientes da fusdo juridica. Com a manutengio da (tanto aquelas que impdem a responsabilidade estrutu-
personalidade juridica, pretendem obter a Perpetuação ral como as que impdem a responsabilidade subjeti-
do good will da sociedade controlada e não diminuír va), tem efeitos diversos. Não limitando o conceito de
sua liquidez, o que certamente ocorreria em caso de qualifzierte faktische Konzern à sociedade unipessoal,
uma fusão jurídica e administrativa das empresas. A incentiva a formação de grupos com estrutura descen-
distinção jurídica e administrativa, permitindo a manu- tralizada (einfache. \.&nan\_mkofinxav,_s que ndo se su-
tenção de estruturas administrativas separadas, facilita jeitam às rigorosas regras elaboradas para os qualif-
sem dúvida uma futura venda. A ligação da clientela 4— — zierte fuktische Konzern. É necessério notar que tanto 2
empresa controlada, como pessoa jurídica independen- férmula baseada na responsabilidade estrutural (Tief-
te que é, aumenta sensivelmente seu valor. bau e Video) quanto aquela baseada na responsabilida-
O segundo tipo de solução é a do legislador português: de subjetiva (Autokran) tém o mesmo efeito. Deve-se
Nesse caso, incentiva-se a formação do grupo de domí- recordar que, do ponto de vista juspolitico, a descentra-
nio totalitario, através do regulamento positivo expres- lização assume valor apenas enquanto meio de enfra-
so da sociedade unipessoal de grupo. Entretanto, os quecimento dos centros de poder societdrios (v. supra
outros objetivos econdmicos permanecem obscuros; cap. III, nº 1). Ora, isso se pode fazer também por meio
Com efeito, enquanto de um lado não se inceativa a for- de uma obrigago de respeito dos interesses da socieda-
mação de profit center totalmente independente, p de controlada, mas sem a existéncia de uma responsabi-
admite-se a subordinagdo dos interesses da coutrolada lidade decorrente exclusivamente da estrutura grupal.
aos da controladora, de outro ndo se incentiva a fusão Desse ponto de vista, as solugdes de Autokran e Tiefbau
econdmica total, na medida em que permanece a obri-- são equivalentes.
gação de compensar as perdas. Essa última obrigação, De outro lado, com relagdo aos qualifizierte faktische
que se traduz na realidade na exigéncia de manutengfo- Konzern existentes, incentiva-se a formagdo de verda-
da capacidade patrimonial inicial da sociedade contro- deiros profit centers, sem a presenga de qualquer repre-
lada, parece servir de limitagdo do risco do grupo como= sentante da sociedade controladora na administração da
um todo, em caso de insucesso da orientagdo econdmi- controlada e (no caso da solugdo proposta em Antokran
ca proveniente da sociedade controladora. Isso porque e TBB) com respeito dos interesses da sociedade con-
a controladora serd obrigada a repor as perdas do ramo. trolada.
do grupo (sociedade) considerado menos importante e Finalmente, o quarto grupo é constinido pela responsa-
conseqientemente manter aquela sociedade ao menos bilidade setorial. Nesse tipo de solugdo, o incentivo &
como forma de hedging dos riscos assumidos nas ou- descentralizagdo e à manutengao de esferas autdnomas
tras atividades. &menor. Do ponto de vista dos controladores da socie-
Entretanto, tal objetivo é coerente com 0s meios pro- dade holding, pode ser interessante fazer transferéncias
postos apenas nos grupos dotados de uma estrutura ba- no interior do grupo, realocando as atividades da forma
107 H. G Koppensteiner, Kollner Kommentar zum Aktiengeseiz, cit. 108 Cf. G Teubner, “Die Politik des Gesetzes”, cit., pp. 268-269.
432 FÁBIO KONDER COMPARATO E CALIXTO SALOMÃO FILHO
que lhes pareça ser mais conveniente, se sabem que à
responsabilidade em caso de insolvência de uma con-
trolada caberá às demais controladas e não à r&n_.._w.
Para eles, a fórmula de responsabilidade pode servir
para diminuir os próprios riscos, na medida em que os
dividem com os acionistas minoritários das sociedades -
controladas. Capitulo IIT
Analisada do ponto de vista econômico, essa solução
tem por efeito quase que uma fusão econômica entreas
sociedades controladas, que passam a constituir econo- CONFUSAO PATRIMONIAL ENTRE TITULAR
micamente departamentos de uma mesma “‘empresa”; -
DO CONTROLE E SOCIEDADE CONTROLADA.
constituida pelo conjunto das sociedades controladas,
O efeito final &, portanto, fortemente centralizador,
A RESPONSABILIDADE EXTERNA CORPORIS
e) Conclusdo
132. O direito societario tradicional fundava-se no principio da cor-
Os efeitos, normalmente exagerados e às vezes des- respondéncia entre poder de gestdo e responsabilidade, no seio da socieda-
proporcionais que cada uma dessas soluções traz de: keine Herrschaft ohne Haftung, segundo a formula cunhada pela
decorrem de um problema de fundo. Trata-se da tentati- doutrina germanica. Assim, na sociedade em nome coletivo, dado que, à
va de resolver problemas de organizagdo interna atra- falta de estipulagdo contratual em contrério, todos os sdcios são gerentes e
vés de regras de responsabilidade. podem usar da firma social, todos eles respondem, solidariamente, pelas
Como já visto anteriormente, esse sistema só se faz ne- dividas sociais (Cédigo Civil de 2002, arts. 1.039 e 1.042). Na comandita,
cessario em auséncia de uma aplicagdo coerente da regra “ndo pode o comanditario praticar qualquer ato de gestdo, nem ter o nome
de conflito de interesses formal. Feita essa aplicação, o
na firma social; sob pena de ficar sujeito às responsabilidades de socio
estimulo & separação efetiva de esferas e a descentrali-
comanditado™ (art. 1.047). Da mesma sorte, na sociedade de capital e in-
zação sdo evidentes, com vantagens administrativas
claras. Assim, do ponto de vista juridico, torna-se justi- dústria, se o sócio de indústria contribuir para o capital com alguma quota,
ficavel a limitagdo de responsabilidade e de riscos quea. - ou exercer poderes de geréncia, assinando a firma social, ficard constituido
boa aplicagdo da regra de conflito de interesses acarre- socio solidirio em toda a responsabilidade.
ta, com efeitos claramente benéficos sobre a avaliagdo O direito acionário veio alterar substancialmente o principio. Primei-
da empresa pelo mercado acionério. ro, a0 estabelecer a distingdo entre participação no capital e administragao
da companhia, correspondente à divisão de poderes entre dois órgãos dis-
tintos e inconfundiveis, cada qual com funções, proprias e indelegaveis; e
admitindo, até mesmo, que os administradores ndo participem do capital so-
cial. Em segundo lugar, ao fixar o principio da irresponsabilidade do acionis-
ta pelas dividas da companhia. O que nas sociedades mercantis tradicionais
constituia, destarte, uma responsabilidade do sdcio, correspondente ao seu
poder de gestdo, na sociedade anônima transformou-se em simples risco
sobre o montante do investimento aciondrio. Quem investe mais arrisca
mais, porém não responde, em hipótese alguma, pelas dividas sociais. O
grande acionista tem maior poder decisório em assembléia, de acordo com
434 FABIO KONDER COMPARATO E CALIXTO SALOMÃO FILHO O PODER DE CONTROLE NA SOCIEDADE ANONIMA 435
o principio capitalista da equivalência entre voto e quota de capital. Mas vidas da sociedade controlada, ou da negação, em casos excepcionais, do
esse poder decisório, que pode ser soberano, quando o acionista é titular do principio da rigida separação patrimonial entre a sociedade anônima e os
controle, não acarreta, nunca, a supressão da rígida separação entre o seu seus acionistas.
patrimônio pessoal e o da companhia. A mais recente evolução econômica A tradicional responsabilidade dos administradores sociais por atos
veio ainda trazer uma derradeira transformação, nessa matéria. Com o sur- culposos, devidamente provados, transformou-se em responsabilidade
gimento de macrocompanhias de capital aberto, contando com centenas de com culpa presumida, vindo, finaimente, dar lugar à responsabilidade tam-
milhares de acionistas, assistiu-se à emergéucia do controle minoritário e bém dos que exercem o controle. A antiga vinculagdo entre responsabilida-
do puramente administrativo ou gerencial, em que a própria correspondên- de e poder de gestão transmudou-se numa relagdo entre responsabilidade e
cia entre poder e risco deixa de existir. O titular do controle não é mais o poder de controle.
grande capitalista e pode nem mesmo possuir ações. Abre-se, com isso, mais um caso de dissociação subjetiva entre divi-
Ora, como salientou Ascarelli, o princípio tradicional da correspon- da e responsabilidade no direito moderno. A anélise dualista da obrigagdo
dência entre poder e responsabilidade, ou entre poder e risco, exercia uma ja havia demonstrado que, tanto do lado ativo da relação obrigacional, isto
Ffunção importante na vida econômica, qual seja a de sancionar, patrimonial-
¢, entre crédito e garantia, quanto do lado passivo, a vida juridica oferecia
mente, a incapacidade empresarial, que constitui um perigo tão grande ou
exemplos de uma dissociagdo subjetiva. Algumas vezes, como na estipula-
maior do que a desonestidade do empresário.' Pela possibilidade de envol-
ção em favor de terceiro ou na representagdo necessdria, o titular do crédito
vimento na falência da sociedade, ou de perda do seu investimento, o titular
não era a mesma pessoa titular da garantia. Outras vezes, como na fianca,
do poder empresarial era, naturalmente, compelido a procurar exercer a sua
atividade, ou participar da empresa, com um mínimo de cuidado e compe- no aval ou no seguro de responsabilidade civil, alguém respondia por divi-
tência. O abandono desse tradicional critério de separação entre empresários da alheia.® No caso em exame, admitida a separagio patrimonial conse-
competentes e incompetentes não deixa de acarretar graves distorções, na quente ao reconhecimento da personalidade juridica da sociedade
estrutura econômica, andnima, a divida da companhia passa a ser de responsabilidade pessoal do
A exacerbação da responsabilidade pessoal dos administradores na titular do controle, assim como nas sociedades, ditas de pessoas, o sócio
sociedade anônima não constítui uma solução adequada ao problema, pois responde pelos débitos saciais. A dissociação subjetiva entre esses dois ele-
nem sempre o titular do controle acionário ocupa cargos de direção na mentos passivos da relação obrigacional é absoluta, pois o responsével que
companhia; pode nomear, para tanto, seus prepostos de confiança, cujo pa- paga não tem direito regressivo contra a sociedade. Mas é bem de ver que
trimônio pessoal é, manifestamente, insuficiente para suportar o encargo esse resultado só é admitido quando a sociedade é declarada insolvável*
das indenizações devidas. Aliás, fenômeno semelhante já se havia observa- com a abertura do processo de execução coletiva.
do com as comanditas acionárias, no curso do século passado. A legislação
francesa, por exemplo, ao exigir a prévia autorização administrativa para a
constituição de companhias, incitou os capitalistas 4 criação de sociedades
em comandita por ações, nas quais eles reservavam para si a quase totalida- 2 Cf,sic, A. P. Sauvain, La Cession de Contróle, cit., pp. S8/59, 97/98.
3 Paraum aprofundamento do assunto, tomamos a liberdade de reenviaro leitor ao nos-
de do capital acionério e o controle de fato, nomeando comanditados seus so Essai d'Analyse Dualiste de I'Obligation en Droir Privé, cit.
dependentes ou prepostos, como auténticos “testas-de-ferro”. 4 Os graméticos condenam o uso dessa expressio, de sabor nitidamente gaulés. De fato, o
classico Pereira ¢ Souza empregava “insolivel” e “insolubilidade”: “Insolúvel se diz de
133. Da verificagio de tais fatos, resulta a idéia recorrente, no direito todo o devedor cujos bens não bastam para pagar as suas dividas; a insolubilidade é o es-
1 tado de um tal devedor” (Diciondrio Juridico, verbete “insolivel”). Mas essas formas
moderno, da atribuigdo de responsabilidade ao titular do controle, pelas di- 3
verbais, sem dúvida mais casligas, não chegaram a vingar em nosso meia. “Insolvabili-
dade”j4 era termo usado porT. Freitas (cf. Esboço de Codigo Civil, art. 536).
Sob o aspecto juridico, devem-se distinguir os conceitos de inadimplemento, insolvén-
cia cinsolvabilidade (cf., a esse respeito, o que escrevemos em O Seguro de Crédito,
1 T Ascarelli, Problemi Giuridici, 11, cit., pp. 883/884. São Paulo, Revista dos Tribunais, 1968, nº 50 e ss.). A insolvéncia é o inadimplemen-
436 FABIO KONDER COMPARATO E CALIXTO SALOMÃO FILHO O PODER DE CONTROLE NA SOCIEDADE ANONIMA 437
Por outro lado, a recíproca também é verdadeira, admitindo-se, em ocorre entre nós, como assinalamos, em face do disposto no art. 206, I, d,
determinadas situações, que a sociedade responda por atos praticados pelo da Lei nº 6.404.
seu controlador. Quid juris, no entanto, caso venha a ser decretada a faléncia da com-
Para essa desconsideração da personalidade jurídica e suas conse- nma__â.» reduzida a um só acionista?
qiiéncias em muito concorreu a multiplicação dos grupos econômicos, fe-
Nota de Texto 78 Não parece que nenhuma disciplina especial de respon-
nômeno característico da economia contemporânea.
sabilidade ou regra de desconsideração deve decorrer
Vejamos, assim, em duas seções, a respousabilidade do titular do cop-
desse fato objetivo.
trole pelas dívidas da sociedade controlada, e vice-versa, primeiro na socie-
Quaiquer argumentação contrária esbarraria em obstá-
dade anônima isolada, ¢, em seguida, no grupo econdmico.
culos no sistema brasileiro. O sistema falimentar brasi-
leiro não reconhece a possibilidade de declaração de
A) Na Sociedade Andnima Isolada
falência sem insolvência (ou impontualidade) própria
do devedor se o devedor for sócio de sociedade com
134. A hipdtese mais largamente admitida aw desconsideração da per- responsabilidade limitada (v. art. 81 da Lei nº 11.101/05,
sonalidade juridica é a da sociedade unipessoal. É óbvio que, nas socieda- a contrario sensu). Ademais, doutrina e jurisprudência
des desse tipo, o sócio único dificilmente deixa de prestar garantia pessoal eram, na vigência do antigo diploma falimentar (Decre-
perante os financiadores; mas pode haver concessão de crédito à sociedade to-Lei nº 7.661/45), unissonas ao afirmar a impossibili-
por fornecedores (que mais freqiientemente ignoram a unipessoalidade), dade de arrecadação dos bens do sócio (ou, na eufe-
sem a prestação dessa garantia pelo sócio único. O conflito que surge, na mística expressão do legislador de 1945, “extensão dos
falência, é justamente entre os fornecedores, titulares de um crédito quiro- efeitos da falência ao sócio”).º Essa interpretação deve-
grafário, e os financiadores que obtiveram a garantia pessoal do sócio. rá continuar a prevalecer ao menos em relação ao sócio
É preciso, no entanto, distinguir entre a sociedade originariamente de responsabilidade limitada, à luz do previsto no art.
unipessoal e a que ficou reduzida a um só sócio no curso de sua existéncia. 81 da Lei nº 11.101/05.
São raras, como vimos, as legislações que admitem a constituição de socie- A desconsideração não tem sido admitida durante a fa-
dades unipessoais, embora já se tenha rompido a tradicional repugnância Iéncia exatamente com base na vedação da extensão
tógica perante o instituto. Quanto às sociedades tomadas como unipessoais dos efeitos da falência ao sócio limitadamente respon-
no curso de sua existência, em quase todos os países vai sendo reconheci- sável. Exige-se que a massa falida faça valer os seus di-
da a subsistência da personalidade jurídica, pelo menos durante um certo reitos através de processo de conhecimento.”*
tempo, não havendo dissolução imediata e automática. Assim também
to qualificado pela falta de razão de direito; enquanto a insolvabilidade é a inaptidão 6 —A inconsistência da norma que aplica aos sócios os efeitos da falência foi criticada,
econdmica a adimplir, seja em virtude de deficiência patrimonial, seja pela falta de meios aliás, por W. Ferreira, que chegou a fazer proposta de modificação do dispositivo por
líquidos para cumprir a prestação. No direito falimentar brasileiro, a quebra pode ser um outro que previsse expressamente a declaração de falência do sócio, projeto que, no
declarada tanto pela insolvência caracterizada pelo protesto (a impontualidade — art. entanto, não foi aprovado (cf. R. Requião, Curso de direito falimentar, 16º ed., São
94, inciso I, da Lei nº 11.101/05) quanto pela insolvabilidade (art. 94, incisos TT e HD), Paulo, Saraiva, vol. 1, pp. 46-47).
7 Cf.TIGB, 22.2.1973, apud R. Requião, Curso de direito falimentar, cit., p. 50.
ensejando procedimentos diversos (§§ 3º a 5º do art. 94).
8 — Noestado atual do Direito positivo ¢ da jurisprudência brasileira, pode-se afirmar que
0 sócio único (de sociedade unipessoal por quotas de responsabilidade limitada ou de
sociedade por ações que não seja subsidiária integral) deveria, de lege lata, ser enqua-
drado entre os sócios ilimitadamente responsáveis, sendo-lhe portanto estendidos os
5 Cfsupran®11, efeitos da falência da sociedade (inclusive com arrecadação de seus bens).
438 FABIO KONDER COMPARATO E CALIXTO SALOMÃO FILHO O PODER DE CONTROLE NA SOCIEDADE ANÔNIMA 439
Pelos motivos acima expostos, essa interpretagio pare- necessariamente a continuação da sociedade e das rela-
ce bastante correta. Não se pode dizer o mesmo comrre- ções comerciais.'®
lação à justificativa encontrada. A desconsideração não Mais grave que isso é que em tal dilema se encontrariam
é admissível na falência não porque não seja possível a apenas aqueles credores mais interessados na continua-
extensão dos efeitos da falência ao sócio limitadamente ção das relações com a sociedade. Isso porque esses
credores — via de regra fornecedores — são em geral cre-
responsável. Em caso de desconsideração, o sócio de
dores quirografários, sem garantia. Os credores com
responsabilidade limitada é equiparado ao sócio de res-
garantia real, geralmente bancos, não precisam fazer
ponsabilidade ilimitada. Bastaria, portanto, aplicar-lhe uso da desconsideração, pelo simples fato de gozarem
diretamente o art. 81 da Lei de Faléncias. de garantias reais ou pessoais.
A desconsideração poderia relacionar-se com a falência- Ainda um aspecto deve ser recordado. A vinculação do
também em caso de insolvência própria do sócio. É insucesso econômico do empresário à sua ruína pessoal
bastante provável que a soma de agressões ao patrimô- é sem dúvida um “custo muito alto” que desincentiva a
nio do sócio decorrentes do reconhecimento a vários atividade empresarial. Se a posição politico-juridica do
credores da possibilidade de acesso direto a essa massa
ordenamento é de reforço da proteção dos credores,
isso deve ser feito através de formas que impeçam que
patrimonial exigisse a decretação de sua insolvência ci-
se atinja a situação falimentar e não de formas que asso-
vil. A ocorréncia de tal evento é aliás bastante provável
ciem à assunção do risco empresarial a possibilidade de
na medida em que, como se verá mais adiante, uma das Tuína pessoal. Também por isso parece criticável a solu-
particularidades da aplicação da doutrina da desconsi-
deração é que a fraude é caracterizada por uma ativida-»
de e não necessariamente por um ato específico. Assim
é em muitos casos bastante dificil admitir a desconside-
ração somente com relação a um credor, já que ao não 10 Foisancionada em 9 de fevereiro de 2005 a nova Lei de Faléncias (Leinº 11.101/45). A
Lei traz capifulo específico sobre a recuperação judicial de empresas (Capítulo (I,
pagamento de sua divida não %onm ser relacionado ne-
arts. 47 a 72) e sobre a recuperação extrajudicial (Capítulo VI, arts. 161 a 167). Basea-
nhum ato específico do sócio. do em uma idéia central — fundamental (a recuperação), a aplicação ¢ a cfetividade da
O real motivo que deve guiar a não vinculação da teoria recuperação poderá esbarrar no excesso de complacência com a posição do controla-
dor que, como regra geral, junto com seus administradores, permanecerá na “condução
da desconsideração à falência da sociedade é teleologi-
da atividade empresarial” (art, 64).
co. Desconsideração e faléncia são conceitos antindmi- De toda forma, caso o novo processo falimentar venha a se transformar em forma efeti-
cos. A desconsideração é um método para permitir va de recuperação da empresa, como é de se esperar, a tensão catre desconsideração e
exatamente a continuação da atividade social. falência tende a desaparecer, sendo de se imaginar a desconsideração da personalidade
juridica durante o processo de recuperação, já que a desconsideração faciliaria efeti-
A conseqiiéncia da subordinação da desconsideração à vamente a recuperação (pois desoneraria a sociedade de dividas).
insolvência seria a imposição aos credores de uma difi- Na verdade é como hipótese de desconsideração que deve ser interpretada a referência
cil escolha: a tentativa de receber o seu crédito excluiria do art. 82 da lei à responsabilidade ilimitada dos controladores de sociedades por ações
e limitadas “cstabelecidas nas respectivas leis”. A referência 4 responsabilidade ilimi-
tada por dividas para os sócios dessas sociedades vem prevista no art. 135 do Código
Tributário Nacional para dívidas tributárias e no art. 50 do Código Civil de 2002, am-
bas hipóteses legais de desconsideração. Portanto, é um verdadeiro processo de des-
9 Em termos civilisticos, pode-se dizer, portanto, que a aplicação da doutrina da descon-
consideração que é previsto pelo legislador. De se lamentar apenas que não se exija a
sideração dá personalidade jurídica independe da demonstração do nexo de causalida- necessidade de processo de conhecimento para tanto (art. 82) em vez de um procedi-
de entre a conduta e o não-recebimento do crédito pelo devedor — dai a impossibilidade mento executório dentro do processo falimentar (ou de recuperação), como vem enten-
de confusão entre desconsideração e responsabilidade cxtracontratual. dendo a maderna doutrina e jurisprudéncia (v. Nota de Texto 83).
40 FABIO KONDER COMPARATO E CALIXTO SALOMAO FiLHO O PODER DE CONTROLE NA SOCIEDADE ANONIMA 441
ção italiana, que fez com que necessariamente, ainda Trata-se de um vicio que produz efeitos para o exterior.
que em auséncia de fraude, a faléncia da sociedade uni- Por isso, alids, é classificada pela doutrina entre os vicios
pessoal implique agressdo aos bens do socio único, de vontade, ndo como um vicio do consentimento, mas
Uma disciplina da desconsiderag@o que sancione eficaz- como um vicio social.
mente o sócio que se utilize da sociedade para atingir ob-
Com efeito, nada há a macular o conseatimento das
Jetivos pessoais, prevenindo e até certo ponto ajudando a
partes. Ambos sabem o que declararam e o que na
impedir a chegada à situação de insolvéncia (freqien-
temente provocada por essa indissociagdo interesse verdade querem. Por isso é que a simulação não é invo-
social/interesse pessoal) é sem divida mais úl cdvel entre os contraentes (art. 167 do Código Civil de
também do ponto de vista do devedor. 2002)."2 Apenas terceiros podem invocá-la quando pre-
Jjudicados. A razão é que a simulagdo visa exatamente a
135. Outra d portante a fazer-se ¢ entre sociedade E%mw. esconder de terceiros o fim real e pratico por elas visado.
soal e sociedade ficticia. A respeito desta última, tem-se falado em simula- Note-se que o fim real tanto pode ser diverso do decla-
ção ou negócio indireto," discutindo-se quanto à responsabilidade rado quanto não ser fim nenhum (as partes nada preten-
ilimitada do sócio único pelas dividas socia derem com aquele ato), dai a diferenga entre simulagio
relativa e simulagdo absoluta.
Nota de Texto 79 A questdo ¢ interessante e merece aprofundamento, e
A caracteristica basica acima apontada da simulação
para isso se fará uma breve incursdo pela teoi ista
da simulagdo, procurando destacar as caracteristicas como vicio com efeitos externos, como vicio social é
básicas da simulagdo, e em seguida comparando-as que o toma tão relevante para o direito societario. É
com o negécio juridico :._&_.aa nele que as relagdes externas tém especial importincia
Sucessivamente passar-se-d a análise da simulação no e destaque, sendo sua forma de estruturação e disciplina
campo societario. De inicio, haverá a tentativa de iden- definidoras até mesmo de diferentes tipos societários.
tificagdo das principais hipéteses de simulação no direi- É essa particular importincia da simulagio no campo
to societario, ou a0 menos, aquelas que mais aguçam a societario que exige particular atengdo para a disciplina
curiosidade académica e pratica. A seguir serdo analisa- que decorre da simulagdo.
das essas hipdteses a partir da teoria da simulagdo, veri-
O Código Civilde 2002 previu expressamente a nulida-
ficando-se a compatibilidade entre essa disciplina e a
de do negécio simulado, subsistindo os defeitos do ne-
Jattispecie societhria.
gocio que se dissimulou (art. 167, caput).
a) A simulagdo na teoria dos negécios juridicos É a esse efeito que se devera estar particularmente aten-
a.l. Caracteristicas bdsicas to ao praceder-se a analise mais adiante da compatibili-
A simulagdo, como vicio do negécio juridico que é, dade cntre a disciplina civilistica da simulagdo e a
consiste basicamente na discrepancia entre a vontade estrutura societéria.
declarada e a vontade real das partes que realizam um
negdcio juridico. Dessa definição doutrindria cldssica,
pode-se deduzir a principal caracteristica da simulação.
A afirmação desse novo dispositivo de que subsistird o ato dissimulado, respeitados os
itos de terceiros (§ 2°), produz os mesmos efeitos préticos e corresponde a afirmar,
como fazia o Cédigo Civil de 1916, que a simulagdo não é invocével entre os contra-
1l Cf.oartigode T. Ascarelli, sempre atual, sobre o assunto, em Problemas das Socieda- tantes (art. 104). A adaptação enquadra a simulação 2 teoria das nulidades, que podem
des Anénimas e Direito Comparado, cit., pp. 91 ¢ ss. ser alegadas por qualquer pessoa.
442 FABIO KONDER COMPARATO E CALIXTO SALOMAO FILHO O PODER DE CONTROLE NA SOCIEDADE ANONIMA 443
a.2. Distingdo do negdcio juridico indireto No Brasil, essa alternativa foi de certa forma incentiva-
Classico no direito brasileiro é o trabalho de Tul 0 da pela redução do número minimo de acionistas de
Ascarelli sobre o negócio indireto.'® Nele o professor sete para dois, operada pela Lei nº 6.404/76.
romano distingue com excepcional clareza o negócio Pergunta então a doutrina: constituiria esse tipo de socie-
indireto do simulado. dade uma simulagio?
No primeiro, ao contrário do segundo, não há n:m_e_n_._
Dois tipos de resposta podem ser dadas & essa indaga-
discrepância entre vontade declarada e vontade real, O
ção. A primeira, tradicionalmente adotada (Ascarelli),
que as partes querem é exatamente o negócio declara- procura resolver a questdo em termos exclusivamente
do. A peculiaridade do negócio indireto está no fato que civilisticos.
as partes visam alcançar um fim que não é típico no ne- Adotando-se essa primeira linha, devem-se distinguir
duas hip6teses. A primeira é aquela em que o socio de pa-
gócio adotado. Exemplo é a transferência da proprieda-
Iha torna-se efetivamente sócio mas com participagao me-
de com escopo de garantia (alienação fiduciária).
ramente figurativa. Nesse caso ndo parece haver davida
Desse modo, enquanto na simulação as partes regulam
de que não ocorre simulação. Nao há qualquer discrepan-
clandestinamente as proprias relagdes juridicas de
cia entre vontade declarada e vontade real. Como bem
modo conforme à vontade real, mas diverso da vontade
destaca a doutrina alemã não é possivel presumir que um
declarada, no negécio indireto, ao contrário, o fim prá-
s6cio que assume obrigagdes e responsabilidades como
tico visado é alcangado justamente por meio do negócio
tal, não tenha intenção de ser efetivamente sécio."
adotado e declarado.
Diferente é a hipótese quando a constituição é
Isso ndo significa, no entanto, que o negocio indireto
pré-ordenada à unipessoalidade. Essa hipótese é parti-
seja sempre um negócio licito. Pode ser que o fim visa-
cularmente evidente no sistema italiano, onde o direi-
do seja contrério 2 lei. Nesse caso a nulidade decorrera
to positivo diferencia claramente entre a sanção à
desse fato e ndo da simulagdo.
constituição unipessoal (dissolução) e a redução pos-
b) A simulagdo no campo societdrio terior à unipessoalidade (responsabilidade ilimitada).
Analisada a teoria da simulagdo nos negócios juridicos, No Brasil essa distinção não existe no direito positivo,
é necessario estudar a sua aplicagdo ao campo societá- mas tem sido construída por via jurisprudencial. Em
rio. O exemplo mais citado e discutido é o da chamada ambos os casos, à diferença de disciplina incentiva a
constituigdo unipessoal indireta. entrada de um sócio que imediatamente após a consti-
b.1. Casuistica — constitui¢do unipessoal indireta tuição retirar-se-4.
No Brasil, a constituição de sociedades unipessoais só é A hipétese aventada é aquela em que o sécio de palhajá
admitida na limitada hipétese da subsidiaria integral. no momento da constituição assina documentos que ga-
A vida econdmica, como de costume, premida por ne- rantem a sua saida posterior, ou entio, que asseguram a
cessidades empresariais, ignora e procura circundar tal transferéncia efetiva de seus direitos de sécio para o outro.
tipo de limitagdo. Assim é que, nos casos em que é ne- Ascarelli imagina duas solugdes para esse tipo de situa-
cessaria a constituição pluripessoal, costuma-se utilizar ção. Numa primeira considerar-se-ia o estratagema
um “sócio de palha”, meramente figurativo, sem interes- : uma simulação por ndo ter sido o vinculo social efetiva-
se real na “vida social” e com participagéo simbélica. mente desejado. Numa segunda construgdo, com base
13 T. Ascarell O negócio indireto”, in Problemas das sociedades anônimas e direito 14 P, Ulmer, in Hachenburg Grosskommentar zum GmbH Gesetz, %º ed., Berlim, Nova
comparado, 2* ed., it., p. 91. Torque, De Gruyter, 1990 (1, Lieferung), $ 2, Rdn 55, 1975, p. 254,
a
e b it

444 FABIO KONDER COMPARATO E CALIXTO SALOMÃO FILHO O PODER DE CONTROLE NA SOCIEDADE ANONIMA 445
b

na teoria do negócio indireto, afirma o autor que o vin. A simulação é aplicável a atos e não a uma atividade,
culo foi querido mas havia intenção posterior de venda sobretudo porque as conseqiiéncias jurídicas da simula-
das ações ou quotas, ou transferência dos direitos de s¢. ção se coadunam apenas com a disciplina dos atos.
cio a ela relativos (esse seria o efeito indireto desejado), Como série de atos encadeados e ordenados a um fim,
A primeira hipótese parece ser preferivel, sobretudo se uma atividade não pode ser declarada nula ou anulada.
aretirada da sociedade ou transferéncia de direitos não Muitos efeitos foram produzidos em relação a terceiros,
foi registrada nos órgãos encarregados dos registrog efeitos esses que não podem ser eliminados ou anula-
societdrios (Junta Comercial ou Cartdrio de Titulos ¢ dos. Por isso fala-se na doutrina brasileira normalmente
Documentos, conforme a natureza da sociedade seja de atividade irregular e não de atividade nula.
comercial ou civil), sendo portanto descomhecida de Na doutrina italiana modema'® o que se diz é que a dis-
terceiros. Nota-se, no entanto, que a qualificagio civi ciplina dos atos sociais deve ser dirigida não a eliminar
listica é pouco relevante para a distinção dos efeitos. a sociedade, mas sim a eliminar a lesão que pode ser
Classificada como negocio indireto o elemento chave é provocada pelo ato. Esse tipo de raciocínio está em li-
determinar se através desse estratagema ha fraude à lei, nha inclusive com a moderna idéia institucionalista de
A tentativa de interpreté-lo como simulação leva ao preservação da empresa.
mesmo resultado. [sso porque não havendo discrepén- Permitir a declaração de nulidade ou anulação do ato de
&m entre a vontade real e a declarada (que não há), re- constituição da sociedade implicaria dissolvê-la, o que
o essencial para a caracterização da simulagio não é possível nem conveniente.
Awn 167 do Código Civil de 2002), a nulidade depende- Por essa razão, C. Angelici, ao analisar a constituição
rá da demonstração da fraude 4 lei. unipessoal, abre mão completamente da disciplina dos
Seria necessario verificar então se no ordenamento bra- atos afirmando que o que há é uma irregularidade (ine-
sileiro estaria havendo fraude à proibigo legal da cons- xistência efetiva de dois sócios) que impede que o pro-
tituição unipessoal. Apesar das recentes evolugdes cesso organizativo se complete e, portanto, ãuâa que
jurisprudenciais no sentido de admitir a sociedade uni- a sociedade adquira responsabilidade limitada.'*
pessoal superveniente, impondo apenas responsabili- Outra linha possivel de raciocínio ¢ admitir a explica-
dade ilimitada aos socios, parece ainda ousado, de lege
ção jurídica a partir da teoria dos atos, mas impedir que
Jata, referirmos que ndo existe proibigdo legal 4 socie-
seus efeitos se apliquem à atividade social. A conse-
dade unipessoal no Brasil (à exceção evidentemente da
qiiéncia da simulação seria então apenas impedir a pos-
hipótese da subsididria integral de que aqui não se está
tratando). sível lesão a terceiros. Nesse sentido parece ter se
Desse modo a hipétese poderia ser construida como si- orientado o Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul
mulagdo. que em acórdão de 8.05.1984 (in RT 592/172) fez de-
correr da simulação na constituição da sociedade a des-
b.2. Critica a aplicagdo do raciocinio civilistico ds so-
consideração da personalidade juridica. No caso em tela
ciedades
à iregularidade formal da constituição somaram-se indi-
O problema com o tipo de raciocinio exposto acima cios de fraude, ou seja, efetiva lesão a interesses de tercei-
está em suas premissas. O fato de aparentemente à
identificagdo como negécio indireto (no caso ilicito) ou
negdcio simulado ndo ter conseqiiéncias juridicas, re-,
vela a inadequagio desse tipo de estrutura de raciocinio
20 campo societario.
446 FABIO KONDER COMPARATO E CALIXTO SALOMÃO FILHO O PODER DE CONTROLE NA SOCIEDADE ANONIMA 447
tos provocada pela constituição simulada. É essa lesão Dentre os opositores, salientou-se Ascarelli que, já quando da repu-
que a desconsideração da personalidade jurídica é apta blicagdo no Brasil do seu estudo sobre o negécio indireto, consagrara uma
a eliminar, preservando a empresa. nota a0 assunto.?® Antes de mais nada, ele considera o critério do controle
A conclusão parece dever se encaminhar a uma critica 3 muito incerto, pois ao lado dos casos de controle totalitario ou quase, há
tradicional expressão usada por Ascarelli — sociedade : também situações em que um acionista, ou grupo de acionistas, com menos
simulada. da metade do capital votante, domina efetivamente a sociedade; sem falar,
Sociedade simulada não há. O que pode haver é a carac- então, do controle externo, exercido, por exemplo, pelo maior credor da so-
terização da simulação em um determinado ato especi- ciedade.
fico. A resposta a isso deve ser dada necessariamente Ademais, salienta Ascarelii, mesmo identificado o titular efetivo do
em termos societários, ou identificando uma irregulari- - controle social, nem por isso ele passa a ser considerado empresério, para o
dade na atividade social e aplicando as conseqiiéncias - direito. A noção econômica de empresirio ndo se confunde e não pode
respectivas ou aplicando seletivamente a teoria da des- mesmo confundir-se com o conceito juridico; pois aquela funda-se em uma
consideragdo da personalidade juridica. atividade efetivamente exercida, enquanto este só tem por mira fixar um
critério de atribuigdo dos efeitos da atividade. Dai por que se fala, em direi-
Uma parte da doutrina germénica, desde fins do século passado, ha- to, de “empresdrios sociais”, com referéncia as sociedades.
via sustentado a conveniéncia, de jure condendo, de se afastar a limitagio Por outro [ado, prossegue, a tese do acionista “soberano” parece des-
da responsabilidade, perante os credores sociais, do acionista que, embora conhecer o fato de que somente em casos marginais uma sociedade funcio-
ndo único, exerce de fato um poder incontrastdvel na companhia. Num arti- na sem uma organizagdo do poder de controle. Portanto, a seguir-se a
2o publicado em 1931, Lorenzo Mossa retomou a tese, falando em acionis- logica do raciocinio, na quase totalidade das sociedades anônimas haveria
ta “soberano”."” Apés a guerra, Walter Bigiavi defendeu-a com ardor, em uma transposição da responsabilidade social para o patriménio do acionis-
face do sistema do Código Civil e da Lei de Faléncias de 1942." ta. Ora, esse resultado seria altamente danoso sob o aspecto econdmico. O
A acolhida doutrinaria não foi das mais amplas, muito embora os tri- acionista majoritario, que mais arrisca na empresa, seria fatalmente penali-
bunais sufragassem a tese, de modo esporédico."” zado em confronto com o pequeno investidor, ou o simples especulador.
Não se pode esquecer de que a responsabilidade limitada ¢ fator de progresso
econdmico, pois, permitindo um maior afluxo de capitais para as atividades
produtivas, contribui para uma redução relativa de custos e pregos.
17 L. Mossa, “Responsabilita dell’unico socio di un’anonima”, cit., p. 322. Também não se pode dizer que a responsabilidade limitada seja uma
18 Cf. W. Bigiavi, L 'Imprenditore Occulto, Pidua, Cedam, 1954; Difesa dell'Jinprenditore contrapartida da falta de poder do acionista, transpondo-se assim para o
Occulto, Padua, Cedam, 1962; Fallimento, di soci sovrani, pluralita d'imprenditori
oceulti, confusione di patrimoni, Giucisprudenza italiana, 1954, 1. 2, 691; La giurls- *
prudenza della Cassazione sull ‘ammissibilita della societd occulta, Giur. it., 1957, 1V,
tirano' o ‘socio sovrano’, cioé dell ‘nzionista che, pur non essendo unico, ma avendo la
Le ss.; Ancora sulla giurisprudenza della Cassazione in fema di socield occulta, Giur.
quasi totalitd o la magioranza delle azioni, ne esercita il conseguente potere servendo-
it., 1957, 1, 557 e ss.; Societã controllata e societd adoperata come “cosa propria”
Giur. it., 1958, 1, 623 e ss.; L fmprenditore occulto nella societd di capitali e il suo fal-
si della societd come cosa propria. Conseguentemente, la dichiarazione di fallimento
limento in estensione, Gius. it., 1959, |, a, 149 e ss.; Responsabilita illimitata del socio”
di una societd per azioni non puô essere estesa ad altra societa per azioni che dispon-
tirano, Foro italiano, 1960, |, 1.180 ess.
ga del pacchelto azionario della società fallita.”
19 ACorte de Cassagao, após uma certa hesitação, veio a conden-la, claramente (Sez. 1,
25 de margo de 1971. nº 848): “L'art. 2.362 c.c. - a norma del quale, in caso di insol-
venza della societa per le obbligazioni sociali sorte nel periodo in cui le azioni risulti-
no essere apparienute ad una sola persona, questa risponde illimitalamente — non'é 20 T. Ascarelli, Problemas das Sociedades Anéninias e Direito Comparado, cit., p. 128,
applicabile sia nell ipotesi in cui le azioni della soeietd appartengano non gid ad una nota 109. Os ulieriores trabalhos de Ascarelli sobre o tema cstdo em Saggi di Diritto
sola persona fisica, ma ad un ‘alira societd per azioni, sia nel caso del cosidetto “socio Commerciale, cit., p. 403, e em Problemi Giuridici, cit., 1, pp. 446 ¢ ss. e 455, 475.
448 FABIO KONDER COMPARATO E CALIXTO SALOMÃO FILHO O PODER DE CONTROLE NA SOCIEDADE ANONIMA 449
campo das sociedades anônimas, uma tese que procura explicar, tradicio- cidos em doutrina para a aplicação da disciplina da des-
nalmente, a limitação da responsabilidade do armador, no direito marítimo. consideragio da personalidade juridica, permitam di-
A responsabilidade limitada do acionista, ao contrário, ¢ fundada no Princi- minuir o grau de arbitrariedade.
pio da integridade do capital social, como margem minima de solvabilida- Tais pardmetros devem basear-se, sem divida, na
de da companhia. É em torno desse princípio que se organiza todo_um existéncia ou não de centros de atividade internos ca-
sistema de publicidade, inexistente nos demais tipos societarios, e se refor: pazes de fazer frente ao poder do sócio majoritério. É
ça a responsabilidade de administradores e fiscais. necessário, no entanto, que o direito positivo ou a in-
Finalmente, aduziu Ascarelli, a tese da extensdo da responsabilidade terpretação jurisprudencial reconheçam efetivamente
dos débitos sociais ao acionista “soberano” nada mais preconiza do que a a existência de direito de determinados centros de ati-
transformação das atuais andnimas em sociedades comanditérias, o que re- vidade internos. Nos sistemas que reconhecem pleno
presenta auténtica involugdo nessa matéria. A sociedade em comandita não direito de informação e participação do sócio indivi-
oferece maior garantia aos credores sociais do que a andnima, pois a expe- dual, independentemente da quantidade de ações ou
riéncia do direito francés, no século passado, prova que os grandes capita- quotas possuídas, basta um acionista para descaracte-
listas (e verdadeiros empresérios no sentido econdmico) preferem confiar rizar a sociedade como unipessoal (mesmo em sentido
o cargo de gerentes ou socios comanditados a “homens-de-palha”. Alids, amplo).”'
não está demonstrada a maior incidéncia de casos de insolvabilidade da so- No Brasil, isso não ocorre. A lei brasileira atribui a
ciedade andnima relativamente aos demais tipos societarios; nem o Estado grande maioria dos direitos às chamadas minorias insti-
parece muito convencido disso, pois impde a forma andnima para o exerci- tucionais, ou seja, minoritários detentores de uma
cio de algumas empresas que devem oferecer absoluta garantia aos seus quantidade minima de ações. Ao acionista individual
credores, como os bancos e as seguradoras. são reconhecidos apenas os direitos individuais ligados
- A essa cerrada argumentação, porém, acrescentava um bemol, ao ad- 4 prépria qualificagdo como acionista, como o direito
mitir que, provada a efetiva confusão patrimonial entre a sociedade e o seu aos dividendos.
controlador, os tribunais poderiam, excepcionalmente, fazer incidir sobre O número minimo de ações para ter garantido o acesso
os bens deste a responsabilidade pelas dividas sociais. aos direitos fundamentais e de controle de informagdo
Ora, 0 que Ascarelli pensava ser tão-só uma concessão de meio-tom à da administragdo é 5% do capital social. Exige-se esse
tese adversa, representava de fato o reconhecimento de sua substancial va- minimo de ações para: requerer judicialmente a exibi-
lidade. Com efeito, excluindo-se a querela exegética sobre os textos do Có- ção dos livros sociais (art. 105); solicitar informagdes
digo Civil italiano ou da lei falimentar daquele pais, o que Bigiavi aos administradores da companhia (art. 157); solicitar
preconizava era realmente isso. Ele distinguia o sócio ou acionista “sobera- informagdes aos membros do conselho fiscal (art. 163,
no”, do “soberano qualificado” ou “tirano”, porque, embora ambos tenham $ 6°); requerer a convocagdo da assembléia geral em
o controle social, o último confunde o seu patrimdnio pessoal com o da so- companhia fechada (art. 124); propor ação de responsa-
ciedade, degradando-a, assim, 4 condigdo de simples instrumento de sua bilidade em face dos administradores, caso a assem-
atividade individual. bléia geral da companhia decida pela ndo propositura
(art. 159, $ 4°); propor ação à controladora por danos
Nota de Texto 80 Não é facil definir critérios precisos que permitam
identificar o sócio soberano ao sécio único para fins de
i
aplicação de regras mais rigidas de responsabilidade. É
possivel, no entanto, fixar pardmetros aproximativos 2l CE a respeito da distinção entre sociedade unipessoal em sentido amplo e estrito - C.
que, juntamente com utilizagdo dos critérios reconhe- Salomão Filho, A sociedade unipessoal, cit., pp. 84 € ss.
450 FABIO KONDER COMPARATO E CALIXTO SALOMÃO FiLHO O PODER DE CONTROLE NA SOCIEDADE ANONIMA 451
causados à sociedade independentemente de c. auçã O capital na sociedade andnima, como salientou Ascarelli, ¢ a margem mi
o
(art. 246, $ 1°,a).2 .a de sua solvabilidade. Como os acionistas não respondem, em princi-
São todas faculdades fundamentais para o exercício de pio, pelos débitos sociais, ¢ em torno do capital social que se organiza a
um minimo controle sobre o acionista majoritário ¢ a proteção legal dos direitos dos credores. Por isso, algumas legislagdes não
administração. Direitos adicionais são atribuidos a acio- se limitam a preservar a integridade desse capital, mas ainda fixam-lhe um
nistas detentores de 10% do capital social (direito de valor minimo.**
eleger um membro do conselho fiscal, art. 161, e reque- É importante notar que o dever de capitalizagio da empresa constitui
rer a adoção do voto múltiplo para eleição de membros um principio geral do direito mercantil, ndo submetido lei majoritéria nas
do conselho de administração, art. 141). São esses os sociedades de comércio. Já em matéria de parceria maritima, o velho Códi-
critérios que podem ser usados para caracterizar uma 20 Comercial dispõe que “se o menor número (de compartes) entender que
sociedade unipessoal em sentido lato, nas suas relações aembarcagdo necessita de conserto e a maioria se opuser, a maioria tem di-
com terceiros. Não basta, no entanto, que o sócio dete- reito para requerer que se proceda a vistoria judicial; decidindo-se (pela
nha mais de 95% do capital social para considerar a so- vistoria) que o conserto é necessario, todos os compartes sdo obrigados a
ciedade unipessoal. É necessária a concorrência, em contribuir para ele” (art. 488).
cada caso, dos requisitos de aplicação das regras de Nos Estados Unidos, os tribunais fixaram o principio de que, quando
desconsideração da personalidade juridica. o capital de uma companhia ¢ manifestamente insuficiente para o exercicio
Tudo indica, portanto, no sentido da teoria da desconsi- de sua atividade empresarial, o controlador (active shareholder) não pode
deração que deve ser, de agora em diante, objeto de aná- opor o principio da separagfio patrimonial, para evitar a execução dos cré-
lise mais detida. ditos sociais sobre 0s seus bens, no caso de insolvabilidade da companhia.
A manutenção da exploragdo empresarial, nessas condições, representa um
136. A confusão patrimonial entre controlador e sociedade controlada risco criado, deliberadamente, perante terceiros. Assim foi decidido no
é, portanto, o critério fundamental para a desconsideração da personalida- chamado Deep Rock case,” e no caso Amold v. Phillips.** Amold
dejurídica externa corporis. E compreende-se, facilmente, que assim seja, constituiu, no Texas, uma sociedade andnima com o capital autorizado de
pois, em matéria empresarial, a pessoa jurídica nada mais é do que uma téc- 50 mil délares, dividido em 50.000 agdes de um délar cada uma. Foram
nica de separação patrimonial. emitidas, inicialmente, apenas 500 ações, das quais Amold subscreveu
Se o controlador, que é o maior interessado na manutenção desse
498, e dois outros acionistas uma ação cada. Para a construgdo de uma fá-
princípio, descumpre-o na prática, não se vê bem porque os juízes have-
brica de cerveja, a ser explorada pela companhia, Arnold emprestou a socie-
riam de respeitá-lo, transformando-o, destarte, numa regra puramente
dade 70 mil délares. Finda a construgdo, fez mais um empréstimo de 7, 5
unilateral. |
mil dolares, para financiar o inicio da produgdo. Nessa ocasido, recebeu ga-
Nos precedentes judiciais norte-americanos, um outro critério tem
igualmente fundamentado as decisões que imputam ao controlador a res- -
ponsabilidade pelos débitos da companhia: é a inadequada capital zagio.”
24 O principio da proteção do capital, como garantia precipua dos credores sociais, tor-
na-se, no entanto, sem sentido na macrocompanhia. Como frisou J. K. Galbraith, o ca-
pital de uma General Motors, de uma Standard Oil of New Jerscy, ou de uma General
22 Parauma pormenorizada enumeragdo dos “direitos individuais” e dos “direilos das mi- Electric, pode scr amortizado pelos ganhos de alguns dias, ou até de algumas horas (O
norias™ cf. M. Carvalhosa, Comentérios d lei das sociedades anénimas, São Paulo, Sa- Novo Estado Industrial, cit., p. 83).
raiva, 2003, vol. 2, sub. art. 109, pp. 338 e ss. 25 Taylor v. Standard Gas & Elec. Co, 306 U. S. 307 (1939).
23 Cf.N.D. Lattin, The Law of Corporations,cit., pp. 73 ess. ¢ H. W. Ballantine, On Cor- 26 Armold v, Phillips, 117 F. 2d 497 (5th Circ. 1941), cert. dei d313U.S. 583,61 S.Ct
porations, cit., pp. 302/303. 1.102, 85 L. E. 1.539 (1941).
452 FÁBIO KONDER COMPARATO E CALIXTO SALOMÃO FILHO O PODER DE CONTROLE NA SOCIEDADE ANÔNIMA 453
rantia real sobre o imóvel e as instalações fabris. Durante dois anos, o negó- no regime da prova, pois a responsabilidade do direito comum supõe a
cio prosperou e Arnold recebeu honorários de diretor e juros sobre o demonstração de culpa do agente, enquanto aquela solução doutrinária dis-
montante do empréstimo. Sobrevindo uma crise econômica, a companhia pensa essa prova.
entrou em regime de exploragdo deficitria. Arnold, entdo, executou o seu
crédito e arrematou a fabrica em leildo. Pouco depois, era declarada a fa- Nota de Texto 81 A rica casuistica da desconsideração exige, para ser
lência da companhia, com um passivo quirografrio de 66 mil ddlares, A bem compreendida, um pouco de sistematizagdo.
requerimento do sindico, o tribunal julgou ineficaz perante a massa a exe- Para empreendê-la, é necessério apresentar de forma
cução da fébrica, promovida por Amold, determinando que ele concorres- estruturada as principais teorias sobre a desconside-
se na faléncia como credor simplesmente quirografario. Tagao.
O conceito de personalidade juridica, teoricamente ela-
Como se percebe, o caso era muito semelhante ao famoso Salomon y.
borado pela pandectistica, foi durante longo tempo con-
Salomon & Co. Ltd., tantas vezes citado, e no qual a House of Lords brita-
siderado intocavel. Essa rigidez demorou muito a ser
nica recusou-se, a0 final do século passado, a desconsiderar a personalida- superada. Apenas na segunda metade da década de 50,
de juridica da companhia. Salomon constituiu uma companhia com seus com a publicagdo do trabalho de R. Serick, ganharam
familiares, na qual possuia o controle quase totalitdrio. Em seguida, vendeu impulso teorias que admitiam desconhecer a personali-
2 essa companhia o seu fundo de comércio individual, recebendo o prego, dade juridica.
parte em dinheiro e parte em debéntures por ela emitidas. Mas na verdade, Não se pretende aqui analisar com profundidade todas
como salientou Gower, Salomon parece ter sido mais uma vitima do que o as teorias que trataram do assunto.
vildo da histéria, pois a sua boa-fé não foi posta em ditvida, tendo ele, efeti-
O objetivo é analisar apenas as teorias mais importantes
vamente, procurado sustentar, com o seu dinheiro, a companhia insolvé- telacionadas ao tema aqui fratado, enquadrando-as se-
vel.” Foi, sem duvida, por essa razdo que o “véu” da personalidade não se gundo critérios úteis para a reflexdo tedrica e para sua
considerou rompido. A boa ou má-fé do controlador exerce, de fato, uma aplicação pritica.
influéncia preponderante sobre os julgamentos nessa matéria, como se re-
conhece mesmo no direito norte-americano.”® a) A teoria unitarista
Igualmente, na Alemanha Federal, a insuficiente capitalização de
uma sociedade mercantil tem fundamentado a desconsideragao da persona=- Na metade dos anos 50 aparece a primeira sistematiza-
lidade juridica, apreendendo-se, através desta, os bens particulares dos só- ção da teoria da desconsideragao da personalidade juri-
cios ou acionistas (Durchgiff).”> A doutrina germânica justifica esse. dica, feita pelo alemdo R. Serick. É a seus estudos e,
resultado com base na teoria da “finalidade normativa”, ou seja, conside- sobretudo, à sua teorizagdo da jurisprudéncia america-
rando-se a deficiente capitalizagZo da companhia como desvio da função $ na que se deve atribuir o desenvolvimento moderno da
:
ou finalidade do instituto, na economia societaria. Mas a jurisprudéncia teoria da desconsideragdo da personalidade juridica.
prefere ficar com o tradicional principio da responsabilidade aquiliana, Em seu trabalho, Rechtsform und Realitdt juristischer
consagrado no $ 826 do BGB. Entre uma solução e outra, a diferenga reside Personen, o autor define a desconsideragdo como um
conceito técnico especifico, contraposto e excepcional
com relagdo ao principio da separação patrimonial.
27 Salomon v. Salomon & Co. Lid,, cit., p. 70. O autor adota um conceito unitario de desconsideragao,
28 C£LN.D. Latin, The Law of Corporations, cit., p. 89. ligado a uma visdo unitéria da pessoa juridica como
29 CE M. Lutter, “La responsabilité civile dans le groupe de sociétês”, in Revue des Socié- ente dotado de uma esséncia pré-juridica, que se contra-
tés — Journal des Sociétês, 1981, nº 4, pp. 697 e ss. pde e eventualmente se sobrepde ao valor especifico de
O PODER DE CONTROLE NA SOCIEDADE ANÔNIMA 455
FABIO KONDER COMPARATO E CALIXTO SALOMÃO FILHO
elemento intencional na utilizagdo fraudulenta da for-
cada norma.’® O unitarismo de Serick revela-se tam-
bém em outro plano: a não distinção entre tipos de pes-
ma societdria.*
Nessa última corrente jnclui-se ainda Galgano. Mesmo
soa jurídica com relação à organização interna,
partindo de uma declaragdo de principios eminente-
motivo pelo qual não vê nenhum motivo que _,Emmpã
mente antiunitaria, a proximidade de resultados entre a
um tratamento diferenciado para a sociedade unipes-
sua teoria e a de Serick é evidente. O autor rejeita qual-
soal.* quer tipo de assimilagio entre pessoa fisica e juridica.
Dentro desse grupo, podem-se identificar dois subgry- Nega também que a personalidade juridica seja funda-
pos, segundo o modo de justificação da desconsideragio, da em uma concessão de subjerividade juridica aos gru-
Existem aqueles que tentam justificar a desconsideração pos organizados por parte do legislador. Em uma
de um ponto de vista ov.—n%o._:mzên.õgrn utilizan- analise muito proxima à tradicional doutrina instru-
do critérios, nem sempre de fácil determinação, como mentalista,”® Galgano define a personalidade juridica
ordnungswidrige, funktionswidrige oder Zweckent- como “la speciale disciplina che, in deroga al diritto
fremdete Verwendung der juristischen Person” (ut comune, la legge ha previsto per determinati gruppi”,
zação contrária aos estatutos, a função ou ao objetivo disciplina consistente em uma “somma di privilegi che,
da pessoa juridica). ricorrendo specifici pressuposti, il legislatore ha con-
Uma outra corrente, na qual se inclui o proprio Serick, cesso ai membri” *
tenta justificar a desconsideragdo a partir do assim cha- O autor faz duras criticas a teoria de Serick, que vê na
personalidade juridica um fendmeno unitario, ou seja, a
mado subjektiver Rechtsmissbrauch, identificando o
regra, e na sua desconsideragdo, a exceção. Argumenta
que esse tipo de raciocinio regra/excecdo, sem uma
conveniente critica do conceito de pessoa juridica, le-
30 Trata-se daquilo que Schanze chama de “qualifizierten Wesenbestimmung der juristis- varia a admitir a desconsideragdo com base em princi-
chen Person” (definigiio qualificada da esséncia da pessoa jurldica) (cf. E. Schanze, pios vagos e de dificil determinagdo como os de
Einmanngesellschaft und Durchgriffhiafrung, cit., p. 60), que se traduziria em uma con- eqiiidade e justiça.””
cepção pré e supra normativa da personalidade juridica, caracterizada na seguinte afir-
mação: “der Eigenwert des Rechisinstituts der juristischen Person steht dem
Zweckwert einer einzelnen Norm gegeniiber” — “o valor proprio da pessoa juridica se
contrapde (e sobrepõe) 20 objetivo de uma norma especifica” (R. Serick, Rechtsform
und Reolitãt juristischerPersonen, 2* ed., Berlim, Mohr-de Gruyter, 1955, p. 24). Na
verdade, Schanze parece exagerar ao se referir a um caráter pré e supra normativo, Se- 34 A esse grupo pertence não apenas o próprio Serick mas também U. Drobnig, com seu
classico trabalho Haftungsdurchgriff bei Kapitalgesellschaften, Berl Frankfurt,
rick reconhece expressamente que a pessoa juridica não é uma entidade pré-moldada
Metzner, 1959,
(keine vorgegebene Erscheinung)— entenda-se, pré-juridica -, mas sim uma criação do
que a0 35 Cf., vg., T. Ascarclli ‘Considerazione in tema di socictd e personalitd giuridica”, in
ordenamento (eine Schopfung der Rechtsordnung). Não há dúvida, no entanto,
falac em valor próprio da personalidade juridica, aproxima-se das teorias realistas da
Studi in onore di Giuseppe Valeri, ¢ v.I,p. 21, G Arangio-Ruiz, La persona giuridi-
ca come soggetio strumentale,
pessoa juridica, criando por assim dizer um realismo normativo que acaba por desem-
bocar no unitarismo supra mencionado.
36 Cf. F. Galgano, “Strutrura logica”, cit., pp. 553-567.
n F. Galgano, “Struttura logica”, cit., pp. 579-580. É interessante aqui fazer um coafron-
31 CF. R. Serick, Rechtsform und Realitt, cit., pp. 20-22. to da teoria de Galgano com a de Miiller-Freienfels, o mais conhecido critico da teoria
32 Representante de tal teoria &, por exemplo, U. Immenga, Die personalistische. Kapital-
de Serick na Alemanha. Ambos partem de uma critica severa do pressuposto funda-
gesellschaft, Bad Hombucg, Atheneum, 1970.
33 Cf. a respeito V. Emmerich, Scholz Kommentar zum GmbH-Geseiz, 7º ed., Colonia, mental da teoria de Serick, o unitarismo do conceito de pessoa juridica, concebido
Schmidt, 1986, $ 13, Rdn. 80, afirmando que a indcterminagdo dos critérios é uma das coma sujeito de direito pleno (vollwerriges Rechtssubjecr), equiparével às pessoas fisi-
maiores razdes para as criticas doutrinérias que são feitas a essa teoria hoje em dia. cas. Enquanto, porém, Galgano nega que as pessoas juridicas sejam sujeitos de di
s
FABIO KONDER COMPARATO E CALIXTO SALOMÃO FILHO O PODER DE CONTROLE NA SOCIEDADE ANONIMA 457
Mas quando chega o momento não mais de criticar, b) A teoria dos centros de imputagdo
mas, sim, de definir o conteúdo normativo de seu 8.,,“
Bssa segunda corrente doutrinaria, hoje dominante
ceito de pessoa jurídica, ou seja, em suas próprias pa-
principalmente na Alemanha, talvez devesse ser deno-
lavras, a soma de privilégios que constituem a
minada antiunitdria. Isso porque o seu surgimento re-
personalidade juridica, o autor cria seu próprio unita-
monta a uma critica, mais precisamente a uma recensao
rismo: reduz o conteúdo normativo do conceito de
ao trabalho de R. Serick, publicada pelo Prof. Miil-
pessoa jurídica à responsabilidade limitada dos seus
ler-Freienfels no ano de 1957. Nesse trabalho, o autor
membros.”* Assim procedendo, desconhece um ele-
afirma que o esquema regra/excegdo de Serick erra ao
mento que, ainda que insuficiente, é necessário à con-
ver na personificação juridica, e conseqlientemente no
figuração da personalidade e da própria subjetividade,
seu contrdrio, a desconsidera¢do, um fendmeno unita-
A desconsideração por ele imaginada mostra-se possí-.
vel apenas em caso de abuso e para o fim de atribuição Tio. Para ele, respeitar ou ndo a separago patrimonial
de responsabilidade a sujeito diferente do devedor. depende da andlise da situagdo concreta e da verifica-
Conseqiientemente, mesmo partindo de pressupostos ção do objetivo do legislador ao impor uma determina-
diversos, chega a resultados muito semelhantes aos da da disciplina.”
teoria por ele criticada. Esse posicionamento permite uma visão menos rigida
da desconsideragdo, que passa a incluir ndo apenas si-
tuagdes de fraude, mas, também, quando necessario,
situagdes em que, à luz da importdncia e do objetivo da
norma aplicdvel, é conveniente não levar em conta a
€ procura um conceito unitário substitutivo, o de responsabilidade limitada, W. Mil-
personalidade juridica. A desconsideragdo não é, por-
ler-Freicnfels não se preocupa em negar a subjetividade juridica, mas sim em demons-.
trar o relativismo de tal subjetividade, A pessoa jurídica concebida como um centro” tanto, apenas uma reação a comportamentos fraudulen-
de imputação de normas é sustentável como tal apenas na medida em que o escopode. tos, mas também uma técnica legislativa ou uma
cada regra o penmita: “Die juristischer Person ist sonach nur ein bequemer, zusam- técnica de aplicação das normas (Regelungstechnik)
menfassender Ausdruck fiir bestimmte Einheiten ein *passendes Symbol’. Sie bilden. que permite dar valor diferenciado aos diversos conjun-
nur ein gedankliches Zusammenfassung von Tatbestanden, Beziehungen und Normen, tos normativos.”
ein leicht begreifbares Vorstellungsbild (...)", cf. “Zur Lehre”, cit., p. 529. A teoria de Miiller-Freienfels postula não apenas um
Essas diferenças de opinião em dois sistemas que têm realidades legislativas seme-.
maior pluralismo externo na aplicagdo diferenciada das
lhantes (tanto na Alemanha como na [tália a personalidade juridica é concedida apenas
às sociedades de capital) explicam a diferença de extensão entre as duas teorias, sobre- normas, mas também o pluralismo interno, com avalia-
tudo com relação 4 desconsideração da personalidade juridica. Enquanto Galgano re-
toma ao conceito de abuso para a admissão da desconsideração, limitendo sua
aplicação aos casos de atribuição de responsabilidade patrimonial ao sócio limitada-
mente responsavel, Milller-Freienfels, como visto acima, procura determinar o escopo
39 Cf. W. Miiller-Freienfels, “Zur Lehre”, cit., p. 536: “Denn es geht ja immer um die Fra-
de cada norma em particular para determinar a qual sujeito (sócio ou sociedade) ela
deve ser aplicada. Tal teoria encontra hoje reflexo na riquíssima série de hipóteses de ge, ob und inwieweit eine bestimmee Norm in dem konkreten Fall auf diese oder jene
desconsideração reconhecidas na doutrina e na jurisprudência alemãs.
Juristische Person ihren Sinn und Zweck nach im Zuge richtiger Gestaltung der sozialen
Ordnung anwendbar ist. Auch dann, wenn man die fiir den konkreten Fall charakteris-
tischen Einzelheiten herausgearbeitet hai, darf man sich nicht zu verallgemeinerden
Anvworten verleiten Jassen (...)".
40 CE. P. Behrens, “Der Durchgriff úber die Grenze™, in Rabels Zeitschrift, 1982, pp.
38 Cf. E. Galgano, “Struttura logica”, cit., pp. 609 e ss. 308314,
458 FÁBIO KONDER COMPARATO E CALIXTO SALOMÃO FILHO O PODER DE CONTROLE NA SOCIEDADE ANONIMA 459
ção diferenciada dos diversos tipos de sociedade. De. ou de outra o principio da separagio patrimonial fosse
fende assim um tratamento diferenciado das pessoas ju- atingido.”
ridicas segundo as diversas funções econômicas que Na doutrina mais recente nota-se uma crescente preo-
desempenha. ***?
m cupação em distinguir os casos segundo o método e as
Ateoriade Múller-Freienfels tem hoje grande aceitação conseqiiéncias juridicas dele provenientes. Ao mesmo
doutrinária e jurisprudencial na Alemanha, podendo ser tempo a personalidade juridica como conceito técnico
considerada dominante,** perde importancia, sendo hoje considerada como mero
Controvertida é ainda sua classificação como uma teo- Stichwort.®
ria sobre a desconsideração da personalidade jurídica,
É interessante observar as opinides desses tedricos a
Alguns autores propõem a distinção entre problemas de
mera aplicação das normas existentes no direito civil ¢ respeito da sociedade unipessoal. Antes da GmbH No-
problemas de desconsideração em sentido próprio, para velle, que como visto consagrou a possibilidade de
constituigio unipessoal, considerava-se a sociedade
cuja caracterização seria necessário que de uma forma
unipessoal como um problema tipico de atribuição de
normas. A sociedade unipessoal era, portanto, consi-
derada n3o como uma esfera totalmente separada do
41 . Múller-Freienfels, “Zur Lehre”, cit,, p. 532: “Die Einmanngesellschaft, die aus sócio, mas, sim, como sujeita a um variables Norman-
Griinden der Haftungsbeschrânkung betrieben wird, verdiente nicht mit einer Familien wendungkonzept, ou seja, como um ente dotado de in-
GmbH gleichbehandelt zu werden, die als Erbengemeinschaft ein erebtes Handelsun-
ternehmen forifúlra, Diese Familiengesellschaft wiederum muss wieder anders be- dividualidade propria, dependendo do escopo da
wertet werden, wenn sie einen oder mehrere Geldgeber als Mitgesellschafter norma a ser aplicada.*
aufinimmt. Von dieser sich zur'normalen' GmbH entwickelnden Einheit ist schliesslich Depois da admissão da constituição unipessoal, a socie-
die GmbH als Verwaltungeinheir eines grossen Konzerns oder als Verkaufeinheit eines
dade unipessoal deixou de receber um tratamento me-
Syndikats zu unterscheiden usw” (A sociedade unipessoal, u
tação de responsabilidade, não pode receber tratamento indiferenciado de uma socie- todologicamente distinto. Não se trata mais de um caso
dade familiar, que como comunidade de herdeiros sucede o empreendimento paradigmatico de atribuigdo de normas, sendo ao con-
comercial herdado. Essa sociedade familiar, por sua vez, deve ser avaliada diferente- trario incluida no tratamento geral da desconsideragao,
mente quando ela aceita um ou mais prestadores de capital como sócios. Finalmente
deve também ser diferenciada a GmbH normal da sociedade ut
administrativa de um grande gnipo ou então como unidade de vendas de um sindicato).
42 É interessante observar que, quanto à sociedade unipessoal, as posigdes de Serick e
Milter-Freicafels representam aa realidade a transposição para um ambiente em que já. a4 Nesse sentido, E. Rehbinder, Konzernaussenrecht und allgemeines Privatrecht, Ber-
se reconhece a necessidade pritica da Einmanngesellschaft, da controvérsia que 8 cor-
rente pandecistica de Savigny e a handels-und gesellschafisrechilich orientierte, esco- lim-Zurique, Gehlen, 1969, p. 108.
45 Cf. H.J. Menens, Hachenburg Grosskommentar, cit., Anh. $ 13, Rdn. 36; K. Schmid,
la germanistica de Gierke, tinham sustentado no século XIX com relegio &
unipessoalidade. O tratamento que Miiller-Freienfels dá à sociedade unipessoal € mui- Gesellschaftsrecht, Colônia, Berlim, Bonn, Munique, Carl Heymanns Verlag, 1991,
to próximo da teoria do Sondervermigen, ¢ a aplicação especifica da teoriada descon- pp. 193-194; também nesse sentido, propondo a distinção hoje largamente aceita entre
sideragdio para a sociedade unipessoal que defende corresponde, mutatis murandis, à Haftungsdurchgriff e Zurechnungsdurchgriff, v. H. Wiedemann, Gesellschafisrecht,
impossibilidade de permanéncia da Korperschaft em auséncia de pluralidade de com , pp. 221 ess. O primeiro termo é empregado para os casos de Missbrauch (fraude),
ponentes, sustentada por Gierke. A pos itária e 0 raci jo regra/excegio de Se- entendida no scntido objetivo, e o segundo, nos casos de imputação de normas. O pri-
rick avizinham-se, ao contririo, da teoria ficcionista de Savigny (cf. E. Schanze, ineiro tem caráter emineniemente sancionatorio, enquanto no segunde prevalece o per-
Einmanngesellschaft und Durchgriffhafuung, cit., esp. pp. 19 e 61). fil reguiamentar.
43 Cf. H. 1. Mertens, Hachenburg Grosskommentar zum GmbH Geserz, cit., (1. Licfe- 46 H. J. Mertens, Hachenburg Grosskommentar, cit., $ 13, Anh. 1, Rdn. 41-42, E. Schan-
fung, Anh. 13, Rdn. 30). ze, Einmanngesellschafi und Durchgriffhaftung, cit, p. 15.
460 FABGIO KONDER COMPARATO E CALIXTO SALOMÃO FiLHO O PODER DE CONTROLE NA SOCIEDADE ANONIMA 461
ainda que continue a merecer tratamento especial na ca — conhecimentos do sécio podem, em certos casos, ser
suística da desconsideragao.*’ atribuidos 2 sociedade. O caso tipico de aplicagdo dessa
regra decorre de uma peculiaridade do sistema atemão,
c) Resultados aplicativos: a casuistica
qual seja, a existéncia de uma regulamentação especifi-
¢. 1. Desconsideração atributiva ca para a aquisigdo de propriedade com boa-fé. Nos
Com essa expressdo procura-se traduzir o mais fiel. negdcios entre sócio único ¢ socicdade ndo se aplicam as
mente possivel a aplicação da teoria da desconsidera- regras de aquisição de boa-fé, pois não é possivel susten-
ção de modo a permitir a aplicagdo de certas normasem tar que 0 sócio único possa ignorar a existéncia do prece-
forma coerente com o escopo do legislador. dente vinculo contratual entre essa e um terceiro (ou
São os seguintes os casos mais tipicos de desconsidera- vice-versa).”' No Brasil, devido 2 inexisténcia de uma tal
ção atributiva (Zurechnungsdurchgriff): regra, o fato de o negdcio ter sido realizado entre sécio
— caracteristicas pessoais do socio podem ser atribuídas único e sociedade poderia induzir no méximo a uma pre-
à sociedade. Assim são passiveis de anulagdo por erro
sunção simples de simulagdo, cabendo &s partes no ne-
essencial quanto à pessoa do destinatdrio declarações
gócio (sócio e sociedade) demonstrar o contrario;
tendo como destinataria a sociedade, em wm_._xa haja erro
— proibigdes impostas ao sócio podem ser estendidas
essencial quanto à pessoa do sécio único;**?
— comportamentos do sócio podem ser atribuidos 4 so- também a sociedade (e vice-versa). É o caso das proibi-
ciedade. Assim, por exemplo, no caso de dolo de tercei- ções de concorréncia impostas a0 socio que gravam
10, que para constituir vicio do ato juridico exige que também a sociedade.”
dele tenha conhecimento um dos participantes do ato, Ainda com relagdo à desconsiderag@o para atribuição
Para aplicagdo desse dispositivo o sócio não seria con- de normas deve-se mencionar a hipotese da aplicagdo &
siderado terceiro em relação a sociedade;” venda de todas as quotas da normativa referente aos vi-
cios da compra ¢ venda.
¢.2. Desconsiderag@o para fins de responsabilidade
47 Interessante é notar que Mertens, no seu comentdrio precedente 8 GmbH Novelle (Ha-
chenburg Grosskommentar, 1979), intitulava o Anh $ 13 Einmanngesellschaft únd Como j4 ressaltado anteriormente com relação a essa
Durchgriffhafiung, enquanto no comentário posterior (Hachenburg Grosskommentar, hipótese, 20 menos nos casos normais nao é razodvel
1990) o titulo passou a ser Durchgriffhaftung. fazer qualquer distingdo a priori entre sociedade uni-
48 Cf. V. Emmerich, Scholz Kommentar zum GmbH Gesetz, 7 ed., Kóln, Schmidt, 1986,
cit., $ 13, Rdn. 72; G Hueck, Baumbach-Hueck Kur=-Kommentar zum GmbH Geselz;
Munique, Beck, 1988, $ 13, Rdn. 16, p. 199. :
49 Existe interessante e recente exemplo de aplicação desse prin na jurisprudência
brasileira. Trata-se da decisão que revogou outra concessiva da concordata de uma em-
51 Cf. E. Schanze, Einmanngesellschaft und Durchgriffhaftung, cit., p. 104. V. ainda V.
presa, transformando-a em falência, com base na falta de idoneidade do controlador, Emmerich, Scholz Kommentar, cit., $ 13, Rda. 73, que considera requisito para a aqui-
afirmando que “a não idoneidade do controlador contamina de descrédito o pedido de sição em boa-fé a existéncia de uma transferénciz ndo apenas do ponto de vista juridi-
moratória da controlada”. No caso, além da inexistência dos requisitos economicos co, mas também econdmico.
para a concordata, foram levados em conta os fortes indícios de que o controlador, atra- 52 Nesse campo, atualmente regulado pelo art. 86 do Tratado CEE, a Corte de Justiça da
vês da concordata de empresa holding por ele controlada. pretendesse por a salvo. Comunidadejá firmou opinião de que se aplicam à sociedade filha (seja ou não unipes-
ações adquiridas com cheques sem fundos (v. RT 657/86, TJSP, acórdão de soal) as proibigdes existentes com relação a sociedade mãe (v. decisão da Corte de Jus-
25.04.1990). tiga da CE de 6.03.1974, nº 6-7/63, in Foro Italiano, 1974, TV, c. 261. No mesmo
50 Cf, comentando regra andloga contida no 123, Abs. 2 BGB, v. V. Emmerich, Scholz seatido, sentenga do Tribunal de Catânia, de 25 de janeiro de 1977, in Rivista di Diritto
Kommentar, cit., $ 13, Rán 13. Commerciale, 1977, 1L, p. 103).
FABIO KONDER COMPARATO E CALIXTO SALOMÃO FILHO O PODER DE CONTROLE NA SOCIEDADE ANONIMA 463
pessoal e pluripessoal. Os três casos paradigmáticos exercicio do comércio é suficiente para caracterizar a
que serão tratados — confusão de esferas, subcapitaliza- responsabilidade. Quando, ao contrério, a subcapitali-
ção e abuso de forma — podem se configurar tanto em zação ndo é evidente, é necessario demonstrar o ele-
uma como em outra hipótese. mento subjetivo, ou seja, a culpa ou dolo do(s) sócio(s)
A identificação dessas três hipóteses parece ligar-se in- em ndo prover o capital suficiente a atividade social. A
timamente a uma configuração objetiva da desconside-. óbvia dificuldade de produzir tal prova fez com que na
ração. No entanto, como se verá na formulação dos maioria dos casos de subcapitalizagdo simples a des-
requisitos para a configuração das referidas hipóteses, consideragio seja negada.”
fez-se necessário misturar elementos objetivos e subje-- - Sancionar a subcapitalizagdo nessas hipóteses parece
tivos, o que fez com que na prática não se conseguisse de um rigor excessivo. Com efeito, se o legislador não
eliminar totalmente os inconvenientes contidos na-teo= impde obrigação de capital minimo, ¢ dificil exigir do
ria subjetiva. sócio que faga a previsdo correta no momento de consti-
A confusdo de esferas caracteriza-se em sua forma tipi- tuigdo da sociedade. O mais correto parece ser conside-
ca quando a denominação social, a organização societá- rar a fixação do montante do capital como componente
ria ou o patrimônio da sociedade não se distinguem de da business judgement rule do socio e admitir a descon-
forma clara da pessoa do sócio, ou então quando forma- sideragdo somente nos casos em que a subcapitalizagio
lidades societárias necessárias à referida separação nio for extremamente evidente (qualificada). Até porque
são seguidas. Com relação ao primeiro caso (confusio existe remédio mais eficaz contra a subcapitalizagio. É
de denominação), pode-se mencionar o emprego de no- muito mais conveniente nesses casos adotar uma visão
mes semelhantes ou de fácil confusão com o nome da realista e ampla do capital, considerando como tal todos
sociedade controladora para designar a sociedade con- aqueles empréstimos (e ndo são raros) feitos pelo sócio
trotada. Evidentemente, a hipótese aproxima-se bastan- à sociedade em situagdes de crise.
te dos casos de aplicação da teoria da aparência”* Na Enfim, há ainda o abuso de forma. Pode-se distinguir
verdade, só será possível distinguir ambos os casos ainda entre o abuso de forma individual e o institucio-
mais adiante, depois da definição do método de descon- nal. No primeiro caso ha a utilização da personalidade
sideração da personalidade jurídica. Já os demais mo- juridica com o objetivo especifico de causar dano a ter-
dos de identificação da confusão de esferas baseiam-se ceiro. Nesse caso só ele (terceiro) serd legitimado a
sobretudo em critérios formais, como a existência de pleitear a desconsideragdo da personalidade juridica.
administração e contabilidade separadas entre sócio e Trata-se do caso classico de desconsideragdo da perso-
sociedade.™ nalidade juridica baseada em critérios subjetivos. O se-
Com relagio à subcapitalizagdo, é preciso fazer a dis- gundo, a0 contrério, caracteriza-se por uma utilização do
tinção entre subcapitalizagdo simples e qualificada. Na privilégio da responsabilidade limitada contrária a seus
última, o capital inicial é claramente insuficiente a0 objetivos e à sua função (zweck und funktionswidrige
cumpriimento dos objetivos e da atividade social e, con- Ausnutzung des Haftungsprivilegs) € tem como caracte-
seqiientemente, o perigo criado pelo(s) sécio(s) no ristica diferencial o fato de implicar a possibilidade de
53 Cf. H. Wiedemann, Gesellschafisrech, cit., p. 224. 55 Cf£ E. Schulte, “Rechtsprechungiibersicht zum Trennungsprinzip bei juristischen Per-
54 H. Wicdemann, Gesellschaftsrech, cit., p. 224. sonen”, in WertpapierMitleilungen, 1979, Sonderbeilage, nº 1, p. 7.
ey

O PODER DE CONTROLE NA SOCIEDADE ANONIMA 465


464 FABIO KONDER COMPARATO E CALIXTO SALOMAO F'
A aplicagdo exclusiva à sociedade unipessoal não pare-
desconsideragdo a favor de qualquer credor.% Exata.
ce correta, principalmente tendo em vista sua justifica-
—.ã:_n porque o que ocorre, como se verá mais adiante,
é a desconsideração em sentido estrito (ou talvez caH tiva: impedir que seja causado prejuizo aos demais
prio), ou seja, aquela que vai buscar seus motivos na sócios. Ora, na sociedade unipessoal, o prejuizo tam-
bém existe. Apenas não serd dos demais socios, mas
atividade social e não em um determinado ato.
sim dos credores sociais. Alids é cxatamente a necessi-
137. Aliás, essa desconsideração da personalidade jurídica não atua dade de proteção do capital social, como garantia dos
apenas no sentido da responsabilidade do controlador por dívidas da socie- credores, uma das principais razões invocadas para a li-
dade controlada, mas também em sentido inverso, ou seja, no da responsa- mitagdo da desconsideragio em sentido inverso. Fa-
bilidade desta última por atos do seu controlador. A jurisprudência la-se em incompatibilidade de uma tal desconsideragdo
americana, por exemplo,já firmou o principio de que os contratos celebra: com as regras societarias de conservação do capital. Por
dos pelo sócio único, ou pelo acionista largamente majoritário, em benefi- esse motivo, parte da doutrina admite a desconsidera-
cio da companhia, mesmo quando não foi a sociedade formalmente parte ção em sentido inverso apenas quando se trata de apli-
no negócio, obrigam o patrimônio social, uma vez demonstrada a confusão car ao sócio regras sobre Vertrauenshaftung, ou seja, no
patrimonial de facto.”* Da mesma forma, num caso de seguro contra incên- caso em que o socio tenha criado a aparéncia de nego-
dio em favor de uma sociedade anônima, provando-se que o sinistro foi cau- ciar em nome da sociedade.’ Retorna aqui o problema
sado pelo seu maior credor e controlador de fato, com o objetivo de da superposição entre institutos civilisticos e a descon-
.oxmo:ã. em seguida, o produto da indenização a ser pago pela mmmznx_oa_ sideragao. Com efeito, a situação parece situar-se muito
Julgou-se que a companhia não tinha direito a essa indenização.” mais no campo da aplicação da teoria da aparéncia do
que da teoria da desconsideração.”'
Nota de Texto 82 A hipótese tratada no texto caracteriza a chamada des- Mas esse não é o defeito de fundo de tais contestagdes.
consideração em sentido inverso. Na verdade, a mencionada incompatibilidade entre des-
Esse tipo de desconsideração merece tratamento distin- consideração em sentido inverso e conservagao do capi-
to, em função da peculiaridade dos principios envolvi- tal existiria apenas se fosse constituida uma obrigação
dos e de suas conseqiiéncias sistemáticas peculiares, sem contrapartida. Ndo é o que ocorre. A contrapartida
ainda que metodologicamente seus casos possam ser
existe e consiste no beneficio já auferido pela sociedade
enquadrados em uma ou outra das categorias mencio-
nadas acima (Nota de Texto 81).
em função da transferéncia patrimonial que justificou
Na doutrina e jurisprudência alemãs, a hipótese é de a desconsideragao, motivo pelo qual não é razodvel que a
aplicação restrira às sociedades unipessoais. O conceito
de “pertinência econômica”do patrimônio social ao só-
cio, formuiado pela jurisprudência, aplica-se apenas 60 V. H.J. Mertens, Hachenburg Grosskommentar, cit., Anh. 13, Rda. 23 e ss., p. 583.
quando todas as quotas pertencem a um só sócio. * 61 Cf. C. W. Canaris, Die Vertrauenshaftung im deutschen Privatrech, Munique,
Min-
a
chener Universititsschriften, Beck, 1971, p. 179, segundo o qual ndo se configura
desconsideragio, por não haver modificação no pélo ativo da obrigação, mas sim pro-
shaf-
cura do verdadeiro devedor. O autor ressalta, no entanto, o fato de que a Vertrauen
fung é mais facilmente aplicável responsal ização do sécio por dividas da sociedade
56 Cf.H. Wiedemann, Gesellschaflsrecht, cit., p. 228.
57 C£H. W. Ballantine, On Corporations, cit., p. 296. do que vice-versa. A razão seria que, no primeiro caso, a aparéncia de unidade € criada
regras sobre
58 D.I. Felsenthal Co, v, Northem Assur. Co., Ltd. 284111, 343, 120 N.E. 268, 1 A. L. R.603. pelo representante e não pelo sepresentado, o que pennile a aplicação das
também
59 Cf E. Schulte, “Rechisprechungsiibersicht zum Trennungsprinzip bei jusistischen Per- arepresentação. Nesse caso, a aparéncia não seria mais meramente fática, mas
sonen”, tando decisio do OLG Hamburg de 10 de novembro de 1976. jurídica.
466 FÁBIO KONDER COMPARAT
E CALIXTO
O SALOMÃO FILHO O PODER DE CONTROLE NA SOCIEDADE ANONIMA 467
responsabilidade da sociedade ultrapasse o valo; seja, respectivamente, a existéncia ou nao de concor-
T dessa
transferência. réncia com os credores sociais. No caso de penhora de
Mesmo em relação aos credores sociais, a desconsid
e- participagdes, a preferéncia é dos credores sociais, já
ração em favor de um credor particular não representa
- que o pagamento dos haveres se fez pela participagio
ria qualquer preferência.
proporcional no saldo positivo do patriménio liquido.
No caso imaginado, de transferência indevida de recur-
sos à sociedade, a simples devolugdo da conurapartida
138. Na jursprudéncia brasileira, tem-se desconsiderado, com fre-
dessa transferéncia ao credor (devolução essa evidente-
qiiéncia, a personalidade juridica de sociedades constituidas unicamente de
mente limitada ao valor da transferéncia) não represen-
marido e mulber, sob a alegação de nulidade. Mas tal hipótese &, propria-
taria qualquer diminuigdo de garantia. Nem mesmo
mente, de despersonalizagio e não de desconsideragio da pessoa juridica.®
qualquer agressão, direta ou indireta, ao capital da Socie-
São ainda muito raras as decisdes que admitem o afastamento da per-
dade (já que a hipótese que se está imaginando é a de
sonalidade juridica apenas in casu. Em causa decidida pelo Tribunal de
uma transferência sem contrapartida real, excluindo-se
Algada de São Paulo, discutiu-se a validade de uma penhora feita em bens
portanto, inclusive, o caso de contrapartida consistente
encontrados na residéncia do acionista controlador de uma companhia, e
em aumento de capital contra emissão de a¢des ou quo-
que esta alegava serem de sua propriedade. “Ha, no caso”, declarou o acor-
tas). Não há, assim, qualquer lesão aos credores socias,
dão, “completa confusdo do patriménio da pessoa fisica do executado com o
Mas pode-se ainda perguntar: mesmo nessas hipóteses
embargante, do que resultou evidente prejuizo para quem contratou com
e ainda que não disponha o sócio de qualquer patrimé-
aquele. Trata-se de bens encontrados no apartamento do executado, que
nio pessoal livre, tudo não se resolveria através da hoje
não apresenta justificativa aceitdvel; são bens que não poderiam ter sido
largamente admitida penhora da participagdo social do
adquiridos para um hospital, como a embargante (televisdo, vitrola e gela-
sócio (quotas ou agdes)?*? Essa ndo substituiria a des-
deira doméstica). A embargante se organizou em sociedade anénima, cujo
consideragdo?
patrimdnio se confunde com o do executado, que não quis provar nem di-
A resposta decorre dirctamente das consideragdes ante-
riores. O interesse do credor é o recebimento de seu cré- zer quantas ações tem e quem é o maior acionista”. E concluiu: “Como fic-
dito e não a participagdo em ou mesmo a venda de o útil da lei, a personalidade coletiva não pode isolar-se da personalidade
dos que a compdem, sob pena de fugir-se à realidade, mormente na época
quotas ou ações de uma sociedade a respeito da qual
não tem qualquer informagdo. Mesmo o exercicio do que atrayessamos, em que raras são as empresas comerciais ou industriais
direito de retirada (dissolução parcial) admitido em al- em nome individual. A assertiva de que a pessoa da sociedade não se con-
guns casos pela jurisprudéncia pode ndo ter qualquer
funde com a pessoa dos sécios é um principio juridico, mas não pode ser
um tabu, a entravar a propria ação do Estado, na realização de perfeita e boa
utilidade, caso a sociedade tenha patriménio liquido ne-
gativo. Na verdade, essa constatagio contabil nada Jjustiga, que outra não é a atitude do juiz procurando esclarecer os fatos para
mais é do que um reflexo da diferença juridica entre pe- ajusta-los ao direito.”*
nhora de participagdo social e desconsideragdo, qual
63 Cf, porex., Trib. Algada Civil de São Paulo, Apelação Civel n° 140.261, rel. Moreno
Gonzalez, RT 418/213: 1° Trib., Algada Civil de São Paulo, Apelação nº 195.339, rel.
62 Com relação às sociedades de capitais, a jurisprudéncia é praticamente unanime no
Toledo Piza, RT464/137.
sentido da admissibilidade da penhora (v., por exemplo, RT 655/172, TARS, j. em
Sobre a distinção entre a supressdo da personalidade juridica e sua desconsideração cf.
29.03.1990; RT 645/109, 1º TACivSP, acórdão de 26.06, 1989, ou então RTJ 95/837,
STE, j. em 21.10.1980).
supra nº 110.
64 Apelagdo nº 9.247, Rel. Edgard de Moura Bittencourt, RT 238/393.
468 FÁABIO KONDER COMPARATO E CALIXTO SALOMÃO FILHO
O PODER DE CONTROLE NA SOCIEDADE ANÔNIMA 469
Em brilhante sentença prolatada na 11* Vara Civel do Distrito Fede.
nima em comandita, em que os controladores seriam comanditados, ou de
ral, em 1960, o juiz Antdnio Pereira Pinto teve também ocasido de aplicar.
com proficiéncia, a teoria do disregard of legal entity. Tratava-se de abolir o princípio da irresponsabilidade do acionista pelos débitos sociais.
_5“ Mas não se pode deixar de sancionar a supressão prática da personalidade
personagem famigerado no mundo dos negócios, que adquirira 98% das juridica, consistente na confusio patrimonial, pois, afinal, a pessoa juridica
ações de uma companhia, dando em pagamento notas promissórias de.
emissão desta, com o seu aval pessoal. Fechado o negócio e entregue empresarial, como se repisou, nada mais é do que uma técnica da separagao
s o tf.. de patrimdnios.
tulos aos cedentes das agdes, dito personagem iniciou varios procedimen- -
tos judiciais contra estes, ex-diretores da companhia, pretendendo
imputar-lhes responsabilidades por má gestdo Nota de Texto 83 Apesar da existéncia dessas decisGes é preciso reconhe-
administrat iva, e com isto
furtar-se ao pagamento dos títulos avalizados. cer que a casuistica de desconsideragdo na jurisprudén-
º* A pessoa Jurídica servia, na
espécie, como alter ego do seu controlador. cia brasileira não ¢ muito variada.
¢
a) A desconsideração na doutrina e na jurisprudéncia
) 139. Bem se vê, portanto, da consideragao dos precedentes Jjudiciais brasileira
citados, que não se cuida, absolutamente, de transformar a sociedade ané-
A razão é muito provavelmente o fato de que, no Brasil,
a discussão a respeito da desconsideragdo continua cen-
trada no problema da esséncia e da função da personali-
65 Lé-sc na sentenga, publicada na RF 188/269: “E pacifico, assim na doutrina como ng dade juridica. As solugdes, mesmo sem admiti-lo,
Jurisprudéncia estrangeiras, que se deve, se o diretor ou acionista se serve fraudulenta- tendem sempre a um raciocinio regra/exce¢do. Assim,
mente da sociedade para fins pessoais, prescindir da existéncia da socicdade e conside- por exemplo, no pioneiro estudo de R. Requido, em que
rar o ato como se fosse praticado diretamente pelo acionista soberano interessado, [sso se sentem fortemente os reflexos da teoria de Serick, o
porque, se uma pessoa natural contraiu determinada obrigação de fazer ou não-fazer;
autor identifica hipdteses de desconsideragdo em todos
não pode subtrair-se ao seu cumprimento por via de sua ocultação atrás de uma socie-
dade anônima, pois, se tal ocorrer, o juiz, entendendo que a estrutura formal da pessoa 08 casos em que a separagdo patrimonial é utilizada
Juridica foi utilizada de maneira abusiva, prescindiré da regra fundamental que estabe- com abuso de direito ou para praticar uma fraude a lei.
lece a separação radical entre a sociedade e os sócios, a fim de que não vingueo resul~ No fim do seu trabalho, inclui ainda uma adverténcia
tado contririo ao direito, que se tem em vista. Existe um abuso quando se trata, com conlra o emprego exagerado da teoria, que poderia le-
ajuda da pessoa juridica, de burlar a lei, violar obrigações contratuais ou prejudicar frau- var a “destruir o instituto da pessoa jurídica” ºº Não é
dulentamente terceiros. Supera-se, daquelc modo, 2 forma extema da pessoa Juridica
surpreendente, portanto, que seu trabalho seja invocado
para alcançar as pessoas e bens que sob seu manlo se escondem. A investigação se situa,
portanto, dentro da chamada concepgio ‘realista’ da pessoa jurldica, a qual entende. queé pela maioria das decisdes que tentam limitar a descon-
possivel e até obrigatério ‘atravessar a cortina daquele conceito formal’, que estabelece sidera¢do à sociedade unipessoal.
uma radical separação entre
a pessoa juridica e os membros quea integram, para julgar Menos evidente é o unitarismo na obra de F. K. Compara-
os fatos mais de acordo com a realidade, de maneira que permita evitar ou corrigir peri- to. O autor nega a possibilidade de utilização do instituto
gosos desvios na sua utilização. Em face da exaltação da pessoa juridica como pura da fraude à lei como elemento central da desconsideragdo,
forma de organizagdo, ganha terreno, hoje em dia, a idéia de que é necessario im-
por-lhe limitagdes de ordem moral e ética, como freio
afirmando que pode ocorrer a desconsideragdo também a
ante possiveis desvios em sua
utilizagdo, J4 se começa a afirmar que não basta o frio ¢ externo respeito a0s pressupos- favor do sdcio (v. exemplo supracitado).
tos assinalados pela lei, para permitir que sc oculic alguém sob a méscara da pessoaju-
ridica e desfrute de seus inegáveis beneficios. Acredita-se ter sido encontrado pelos
autorese pela jurisprudéncia o remédio para esses desvios no uso da pessoa juridica, na
pos: idade de prescindir da sua estrutura formal para nela “penetrar' até descobrir-
seu substrato pessoal e patrimonial, pondo assim a descoberto os verdadeiros propósi
tos dos que se amparam sob aquela armadura legal 66 Cf. R, Requido, “Abuso de direito¢ fraude através da personalidade j L it
67 CL. R. Requido, “Abuso de direito”, cit.. n. 24.
470 FABIO KONDER COMPARATO E CALIXTO SALOMAO FILHO O PODER DE CONTROLE NA SOCIEDADE ANONIMA 471
Para justifica r sua opinido ndo faz referénci a, entretan.
dotada de qualquer elemento gualificativo. Permanece
to, a0 objetivo da norma.”® Invoca o desvio de função obscuro como se pode, em uma tal teoria, enquadrar o
da pessoa jurídica como justificativa da desconsidera- exemplo da Súmula 486,” tipico dos defensores da teo-
ção. A função da personalidade jurídica seria a criação Tia dos centros de imputação. Qual seria o critério a iden-
de um centro de interesses autônomo.”* Quando esse tificar o desvio de função? A verdade é que no momento
centro de interesses não estivesse presente, a desconsi- que se identifica na pessoa juridica uma função unitaria,
deração seria a solução. torna-se bastante dificil, pelo menos do ponto de vista
Na identificação dos critérios que caracterizam a ine- tedrico, flexibilizar a desconsideragao.
xistência de um centro de interesses autônomo, Compa- No mesmo sentido propugnado por Comparato, orien-
rato substitui, em uma analise na verdade semelhante ta-se a andlise de J. L. Correa de Oliveira, Em sua teo-
àquela de Galgano, o unitarismo subjetivo, por ele mes- ria, a análise da desconsideragdo como consegiiéncia de
uma disfungdo da personalidade juridica é ainda mais
mo criticado, por um método objetivo, mas da mesma
evidente. A construgdo teórica da desconsideragdo e
maneira unitário. Põe o controle ao centro de sua teo-
sua rica aplicagdo pratica são vistas pelo autor como
ria.” Vé nos grupos (de direito) um controle qualifica-
sintomas de uma crise de função da pessoa juridica.
do, merecedor de tutela especial. Quanto à sociedade
Para cle, a principal função da personalidade juridica é
unipessoal, a desconsideragdo ndo seria baseada em
a separagdo patrimonial,™ que por sua vez é vista como
qualquer abuso, mas sim na inexisténcia dos “pressu-
indicador da existéncia de um centro auténomo de in-
postos legais da personalidade juridica™.”" Esses pres-
teresses. Mesmo admitindo a ndo-coincidéncia entre
supostos inexistiriam na sociedade unipessoal singular
personalidade juridica e responsabilidade limitada, iden-
— pois a lei fixa um prazo máximo para a permanéncia
tifica na limitag3o de responsabilidade a função bésica
da unipessoalidade —, e na sociedade unipessoal de gru-
da pessoa juridica. Uma tal limitação da função da perso-
po (subsididria integral) em que existe a confusão patri-
nalidade juridica à separagdo patrimonial talvez se justi-
monial.”? A confusio patrimonial é, alids, o critério fique pelo objetivo, explicitado pelo autor, de analisar a
bésico no raciocinio de Comparato para a desconside- crise da pessoa juridica apenas com relagZo à sociedade
ragdo no caso de sociedade pluripessoal normal, não com responsabilidade limitada.”
Do ponto de vista tedrico, Correa de Oliveira parte da
negação do unitarismo de Serick, com base no racioci-
68 No caso da regra que prevé a possibilidade de despejo para uso préprio, invocada na Sá- nio pluralista de Miiller-Freienfels. Do pluralismo des-
mula 486, esse objetivo é claramente a proteção, a mais ampla possivel, do proprietário. se autor utiliza-se, no entanto, apenas da primeira
69 Cf. F. K. Comparato, O poder de controle na sociedade anônima, Rio de Janeiro, Fo- conseqiiéncia, ou seja, a necessidade de tratamento di-
rense, 1983, p. 286. ferenciado das diversas pessoas juridicas. Faz referén-
70 CF. F. K. Comparato, O poder de controle na sociedade anônima, Rio de Janeiro, Fo-
rense, 1983, p. 284, que afirma: “um dado porém ¢ certo, Essa desconsideragdo
cia à sociedade unipessoal e aos grupos de sociedades
da per-
sonalidade juridica é sempre feita em fungdo do poder de controle societario. É esse o
elemento fundamental, que acaba predominando sobre a considerago da pessoa jurl-
lica, como ente distinto dos seus componentes”.
71 Cf. F. K. Comparato, O poder de conirole na sociedade andnima, Rio de Janeiro, Fo- Súmula 486 do Supremo Tribuna! Federal, que permite o despejo, para uso da socieda-
rense, 1983, p. 350. de, de um imóvel de propriedade do sócio único.
72 Cf. F. K. Comparato; O poder de controle na sociedade anénima, Rio de Janeiro, Fo- 74 Cf. J. L. Correa de Oliveira, 4 dupla crise da personalidade juridica, cit., p. 263.
rense, 1983, p. 350, nota 30. 7 Cf. J. L. Correa de Oliveira, 4 dupla crise, cit., p. 262.
472 FÁBIO KONDER COMPARATO E CALIXTO SALOMAO FILHO O PODER DE CONTROLE NA SOCIEDADE ANÔNIMA 473
como casos especiais, nos quais é maior o risco de cony Deixando por um momento de lado a discussão sobre a
fusdo patrimonial. possibilidade de aplicação da teoria dualista à desconsi-
O segundo e mais inovador aspecto da teoria de Múller. deração (o que se fará mais adiante), é importante ressal-
Freienfels, isto é, a critica 4 concepção da personalidy., tar que permanece pouco claro o motivo da utilização
de juridica como fendmeno unitdrio com relação a to- dessa teoria por Correa de Oliveira. Com eféito, é ele
das as normas que lhe devem ser aplicadas,” não é próprio que aponta, no processo de desconsideração, um
utilizado por J. L. Correa de Oliveira. O autor nega que modo de fazer prevalecer a “realidade sobre a aparén-
se possa explicar a desconsideração como um problema cia”, identificando a pessoa que “realmente está a
de imputago.” Procura, portanto, distinguir os casos em agir”.*' Trata-se de afirmação muito mais próxima à
que há imputação de um fato próprio, os quais deveriam imputação de uma atividade a uma determinada pessoa
ser resolvidos através da aplicação de institutos civil; do que da responsabilidade sem dívida propugnada
cos, da aplicação da teoria da desconsideração, em que pela teoria dualista.
haveria responsabilidade por débito de terceiro.” Na jurisprudência, fazem-se sentir fortemente as in-
Chegado porém o momento de definir os casos de descon- fluéncias dessa impostagdo funcional-unitaria da dou-
sideração em sentido próprio, Correa de Oliveira retoma trina. Caracteristico da jurisprudéncia brasileira é o
ao conceito por ele anteriormente negado, admitindo que valor paradigmatico atribuido 4 pessoa juridica, que fez
mesmo nessas hipóteses os problemas são freqientemen- com que a separação patrimonial seja freqlientemente
te de imputação.”* A única diferença real para o autor en- reafirmada e sua desconsideragdo só seja admitida em
tre desconsideração e mera imputação de atos parece, presenga de previsdo legal expressa ou de compor-
portanto, residir no fato de que nos casos de desconsidera- tamentos considerados fraudulentos.® As decisdes
ção ocome imputação de responsabilidade por divida brasileiras ndo são, conseqiientemente, classificiveis se-
alheia, o que não se verifica nos demais casos em que há gundo o tipo de atuação a justificar a desconsideragio
imputação de ato próprio, com relação aos quais de- (confusdo de esferas, subcapitalizagdo ou abuso de for-
ver-se-iam aplicar os institutos civilísticos.ºº ma), mas segundo o fundamento juridico invocado para
76 Cf. W. Milller-Freieafels, “Zur Lehre , p. 529, *“Se essa separagdo não é escrupulosamente mantida, poderá haver caso de imputação
77 J. L. Correa de Oliveira, A dupla crise, cit., p. 610: “Desde logo, portanto, não podem deato a0 controfador da sociedade ~ para fins de responsabilidade civil - ou mesmo (se
ser entendidos como verdadeiros casos de desconsideração todos aqueles casos de em auténtica técnica desconsiderante) de mera imputag3o de responsabilidade por
mera imputação de ato”, vida alheia sendo a divida da sociedade e a responsabilidade (subsidiariz) do controla-
78 Cf.J. L. Correa de Oliveira, 4 dupla crise, cit., pp. 610-612. dor” (p. 611).
79 C£.J. L. Correa de Oliveira, A dupla crise, cit., p. 613, nota 82, em que afirma: “Os pro-
blemas ditos de ‘desconsideragio’ envolvem frequentemente um problema de imputa-
ção. O que importa basicamente é a verificação da resposta adequada 3 seguínte
pergunta: no caso em exame, foj realmente a pessoa jurídica que agiu, ou foi ela mero 81 CE.J. L. Correa de Oliveira, A dupla crise, cit., p. 613.
instrumento nas mãos de outras pessoas, fisicas ou juridicas?”. 82 Cf,, v.g., acórdãos do 1° TACivSP, respectivamente de 14.08.1973 e de 29.08.1973, in
O que parece ficar claro nos seguintes trechos: RT456/151 ¢ 457/141; preocupa-se em afirmar o valor da personalidade juridica tam-
"Para que se possa falar de verdadeira técnica desconsiderante, em tema de responsa-
idade, será necessária a presença do princípio da subsidiariedade, explicitado à luz | bém o principal defensor da teoria legalista da desconsideragio, segundo o qual a des-
consideragdo só seria possivel em presenga de disposigdo legal expressa. Cf. C.
de uma concepção dualista da obrigação: a responsabilidade subsidiária por dívida Ramalhete, “Sistema de legalidade na desconsideração da personalidade juridica”, in
alheia” (p. 610). j RT586/9.
a7 FABIO KONDER COMPARATO E CALIXTO SALOMAO FILHO O PODER DE CONTROLE NA SOCIEDADE ANÔNIMA 475
fundamentar a não-consideração da personalidade juri Incluem-se ainda nesse grupo aquelas decisões que,
dica societaria. Os casos mais recorrentes de desconsi. no campo da responsabilidade civil, procuram um
deração para fins de responsabilizagio sio basicamente fundamento legal no sistema civilistico para justifi-
de dois tipos. Um primeiro grupo fundamenta a descon- car a desconsideragdo. Recorre-se as regras sobre a
sideração em dispositivos legais: € o caso da desconsi-
deração prevista na legislagdo (rabalhista, a favor dog
trabalhadores, e no Cédigo Tributdrio Nacional, em fa- Também o Superior Tribunal de Justica j& manifestou entendimento que, se confirma-
vor da Fazenda, por débitos tributarios da sociedade5 do, implicaria importante restrição ao principio da limitação de responsabilidade nas
sociedades com responsabilidade limitada: “assim, mesmo que dissolvida legalmente
a sociedade, as obrigagdes remanescentes permanccem, mormente quanto ao fisco,
sob responsabilidade dos sécios™ (j. em 5.08.1991, in RT 677/231).
Entretanto, tendéncias jurisprudenciais foram afastadas. O Superior Tribunal de
0 aos débitos fiscais, a responsabilidade funda-se no art. 135 do Código Justiga pacificou a questão 20 afirmas, em diversos acórdãos, que a responsabilidade
Tributirio Nacional. A interpretação tradicional era no sentido de restringir a aplicação tributária do sécio-gerente não depende apenas do não recolhimento do imposto. Nes-
do dispositivo aos casos de dissolução irregular e comprovada fraude do sécio gerente, se seatido, v. alguns julgados: “E dominante no STJ a tese de que o ndo-recolhimento
V.TISP,j. em 17.04.1990, in RT654/95, 1° TACivSP, j. em 19.06.1987, in RT620/122, do tributo, por si só, não constitui infração A lei suficiente a ensejar a responsabilidade
expresso: “a penhora em bens particulares dos sócios só deve ser feita quando pre. solidaria dos socios, ainda que exergam geréncia, sendo necessério provar que agiram
sentes condições excepcionais justificadoras (inexisténcia de bens da sociedade, os mesmos dolosamente, com fraude ou excesso de poderes” (AgRg no REsp. nº
conduta lesiva ao patriménio alheio, dissolução irregularda sociedade etc.). A res- 346.109/SC, Rel. Min. Eliana Calmon,j. 19/03/2002); “Os sécios-gerentes são res-
ponsabilidade dos sécios, com aplicação da teoria da desconsideragio da personalj- ponsáveis, por substituigao, pelos créditos referentes a obrigagdes tributérias decor-
dade juridica, depende de prova de comportamento impróprio”; v. também, nesse rentes da prética de ato ou fato eivado de excesso de poderes ou com infração de lei,
o, C. C. Orcesi da Costa, “Responsabilidade dos sécios pelas dividas da socie- contrato social ou estatutos, ou quando tenha ocorrido a dissolução irregular da socie-
dade”, in RDM 56/64. dade, comprovada, porém, a culpa. 2. O simples inadimplemento de obrigagdes tribu-
Posteriormente, o legislador tributário tem-se orientado no sentido de estender a tárias não caracteriza infragdo legal” (REsp. nº 724.077/SP, Rel. Min. Francisco
aplicagdo do dispositivo, A.n_.::ão impostos cujo simples não-recolhimento impli- Peganha Martins, j. 20/10/2005); e “Tributdrio. Execugdo Fiscal. Redirecionamento
caria a responsabilização. É o caso da Portaria nº 99, de 5 de fevereiro de 1980 (DOU para O Sécio-Gerente, Art. 13 da Lei nº 8.620/93. Matéria decidida pelo Acordio
de 5.02.1980): ""'são solidariamente responsáveis com o sujeito passivo os acionistas Recorrido sob Enfoque Constitucional. Art. 135, III, do CTN. Dissolugdo [rregular
controladores, os diretores, gerentes ou representantesde pessoas jurídicas de direito da Sociedade. Inadimplemento da Obrigação de Pagar Tributos. (...) 2. Se o Tribunal
privado, pelos débitos decorrentes do não recolhimento do Imposto sobre Produtos de origem se manifestou expressamente pela ausência de indicios da dissolução irre-
Industrializados (IP]) e do Imposto de Renda (JR) descontado na fonte (Decreto-Lei gular da sociedade, a andlise da violagdo ao art. 135, 111, do CTN, importaria no re-
nº 1.736, de 20 de dezembro de 1979, art. 8º)””. A jurisprudência incluiu, ao lado do volvimento de aspectos faticos e prabatérios, o que é vedado no âmbito do recurso
TPi e do R, as contribuições previdenciárias (v. STJ, j. 17.06.1992, in RSTJ 36/306, especial, consoante o enunciado contido na Simula nº 7/STJ. 3. O mero inadimple-
em que sc responsabiliza o diretor presidente de uma socicdade anônima pelo referi- mento tributdrio não configura violagao à lei apta a ensejar o redirecionamento da
do débito). execução fiscal contra os sdcios. Precedentes” (REsp. n° 836663/PR, Rel. Min. Cas-
A fundamentação desse tipo de decisão é que a infração à lei, mencionada no art. 135 tro Meira, j. 3/8/2006).
do CTN, caracteriza-sejá no não recolhimento do imposto. É evidente que tal priuci- Com relagdo 2s dividas trabalhistas, existe a possibilidade, expressamente prevista em
pio, para que não implique um princípio geral de responsabilidade objetiva dos sócios lei, de responsabilização das demais sociedades componentes do grupo (de fato) —art
(e diretores), incompativel com a regra geral de limitação de responsabilidade, deveria 2º, $ 2º, CLT. Além disso, a jurisprudéncia, seguindo os passos das decisdes exaradas
ser aplicado exclusivamente com relação ao(s) sócio(s) e/ou diretor que praticou o ato em matéria tributria, tem permitido a responsabilizagdo dos socios, até mesmo inde-
em infração à lei, ou seja, que determinou o não-pagamento. Não é essa, no entanto, a pendentemente da demonstragdo de fraude. V., nesse sentido, R. M. B. Carvalho, “Da
mais recente tendência jurisprudencial. Em acórdão de 28.12.1988, o Tribunal de Jus- responsabilidade dos socios por dividas da sociedade: sociedade andnima e por quatas
tiça de São Paulo (7 Cam.) responsabilizou todos os sócios pelos débitos tributários, de responsabilidade limitada”, in RDM 73/27, com referéncias jurisprudenciais.
com base exclusivamente no fato de que uma alteração contratual não tinha sido regis- Nota-se finalmente que todas as decisdes acima referidas, ainda que não fazendo qu
trada, transformando portanto a sociedade em irregular (RT 639/78) — e nota-se que quer distinção expressa entre tipos societários, foram proferidas em casos envolvendo
aqui a referência é a qualquer tipo de tributo e não apenas aos mencionados acima. socicdades por quotas.
sE
e r———

O PODER DE CONTROLE NA SOCIEDADE ANONIMA 477


476 FABIO KONDER COMPARATO E CALIXTO SALOMAO FILHO
nulidade, a anulação e o fim ilicito, contidas no Codigo Como se verá mais adiante, a diferenciagao das regras
Civil.* Nesse tipo de decisão a sociedade unipessoa) é de responsabilidade segundo os tipos organizativos ba-
usada como 4ncora para os casos de desconsideragio, seia-se na reciproca complementariedade entre regras
organizativas e regras de responsabilidade. Isso fez
A desconsideragdo ¢ admitida por ser a sociedade
com que, onde menos presentes as primeiras, mais de-
tida como ficticia, com base normalmente na insigni-
vam estar as últimas. A maior abrangéncia das regras
ficância das participagdes remanescentes ou na exis-
organizativas nas sociedades anénimas poderia no má-
téncia de ligagdes de parentesco entre sócios majo-
ximo justificar a não-aplicação a elas de critérios obje-
ritário e minoritério. A desconsidera¢do, nesse caso;
tivos de desconsideragdo. Entretanto, não permite
é baseada na impossibilidade legal de exercicio do
afastar em absoluto a desconsideragdo (como parece
comércio em nome individual com limitagdo de res- ocorrer pela pouquissima freqiiéncia dos casos), sobre-
ponsabilidade.* : tudo em caso de atividade irregular ou fraudulenta.
O segundo grupo de casos é aquele em que não existe É preciso notar, antes de concluir a anélise da desconsi-
qualquer fundamento legal — nem mesmo a analogia deração no Brasil, que o Cédigo Civil de 2002 introdu-
com a sociedade unipessoal —, a “ancorar” a desconsi- ziu definição de desconsideragio da personalidade
deração. Nessa hipótese, procura-se demonstrar a exis- juridica que contribui para colocar a questão da descon-
téncia de abuso ou fraude 4 lei no comportamento do sideragdo em moldes tedricos mais corretos. O art. 50
sócio majoritario.®® do Cédigo Civil de 2002 dispde que “em caso de abuso
Finalmente, última caracteristica da jurisprudéncia da personalidade juridica, caracterizado pelo desvio de
analisada é a pouquissima freqiiéncia da desconsidera- finalidade, ou pela confusdo patrimonial, pode o juiz
ção das sociedades anônimas.”' Tal postura é criticável, decidir, a requerimento da parte, ou do Ministério Pa-
blico quando lhe couber intervir no processo, que os
efeitos de certas e determinadas relagdes de obrigagdes
sejam estendidos aos bens particulares dos administra-
Cf. C. Ramalhete, “Sistema da legalidade”, cit., p. 13. dos ou sócios da pessoa juridica”.
V. acórdão de 8.05.1984, do TIRS, in RT 592/172; 1° TACivSP, acórdão de 25.06.1985,
in RT 599/133. b) O método da desconsideragdo
86 Critério para identificação do abuso é freqiientemente a confusão patrimonial (v. acór-
dão de 3.03.1982, do 1º TACivSP, in RT 560/109); com fundamento na fraude 4 lei su-
Toma-se imperioso, então, para dar mais critério à apli-
perou-se a personalidade jurídica da sociedade e responsabilizou-se pessoalmente o cação jurisprudencial do novo dispositivo definir algo
sócio que tinha emitido um cheque sem fundos em nome da sociedade (v. TJRS, que se poderia chamar de “método de desconsideragao
5.04.1990, in RT654/182). É importante notar que nesse caso se fala em desconsidera- da personalidade juridica”, algo muito bem incorpora-
ção para atribuição de responsabilidade em via principal, e não subsidiária, ao sócio do, aliás, no referido dispositivo do Cédigo Civil de
único. 2002.
87 Em jurisprudência, diferencia-se frequentemente entre sociedade anônima e sociedade
por quotas, dando-se claramente mais força ao principio da limitação de responsabili- A desconsideragdo entendida como método não pode
dade na primeira do que na segunda forma. É o caso da supra referida decisão in RT ser confundida com uma aplicação da teoria dualista da
639/78, em que os sócios foram responsabilizados sob alegação de que se tratando de obrigagdo, ou seja, da imputação da responsabilidade a
sociedade por quotas, que tem natureza pessoal (sociedade de pessoas), a inexistência pessoa diferente do devedor.
de registro de alteração contratual transforma a sociedade em irregular — afinmação. Importante para os defensores desse tipo de equipara-
cuja coerência lógico-sistemática é impossivel captar, já que a faita de registro tem ção é, sobretudo, distinguir os casos de desconsidera-
como conseqiiéncia a não-produção de efeitos perante terceiros e não a transformação
de uma sociedadejá constituída em irregular. ção das solugdes baseadas na aplicagdo do direito
478 FÁBIO KONDER COMPARATO E CALIXTO SALOMÃO FILHO O PODER DE CONTROLE NA SOCIEDADE ANONIMA 479
civil.® Não pode ser esse o caráter distintivo da descon- Nota-se, portanto, que o elemento caracteristico do mé-
sideração. Em primeiro lugar, do ponto de vista meto- todo de desconsideragdo da personalidade juridica
dolégico parece bastante incorreto definir uma hipétese estd em buscar seu fundamento na atividade societaria
legal a partir da disciplina que não se quer (ou não se e não em um determinado ato. Assim, por exemplo, na
pode) aplicar. confusdo de esferas no abuso de forma ou no desvio de
Mas existe uma razão de fundo muito mais importante, finalidade (todos termos consagrados na nova defini-
Caracleristica fundamental da responsabilidade sem dj- ção do art. 50 do Código Civil de 2002). Não se pode
vida é a possibilidade de ressarcimento do sujeito obri- excluir, no entanto, que a lesividade da atividade carac-
gado a pagar perante o devedor.” Nas hipóteses de terize-se através de um único ato de natureza societaria.
desconsideragio aventadas, evidentemente não é possi- Nesse caso, sera preciso que o ato exija participagdo
vel imaginar a possibilidade de ressarcimento do sócio da organização societaria, servindo o proprio procedi-
perante a sociedade. Até mesmo do ponto de vista eqiii- mento societério de aprovagao do ato para desloci-lo
tativo. Basta pensar que, uma vez admitido o regresso para o campo da desconsideragdo da personalidade ju-
do sdcio contra a sociedade, essa seria onerada por uma ridica.
situagdo que teve como beneficidrio apenas o acionista Apenas na auséncia de participagdo da organizagdo
controlador.” societdria aplicar-se-iam os institutos civilisticos em
Não é esse, portanto, o elemento distintivo da desconsi- detrimento da teoria da desconsideragdo. Exemplo ti-
deração. Nela, o sujeito responde por divida prépria, pico é a teoria da aparéncia. Ali, trata-se de ato (ou se-
decorrente ndo de um ato mas de uma atividade abusi- qiiéncia de atos) atinente as relações externas da
va, Trata-se da responsabilidade societdria, que não sociedade, em que não há participagdo da organizagio
pode ser confundida com a responsabilidade civil nem societaria.
tampouco com a responsabilidade civil aplicada ao di- Qutra caracteristica do método da desconsideragdo ¢
reito societário. Seu cardter distintivo estd na prética de seu carater casuistico. A vantagem da desconsiderag@o
uma atividade lesiva e no fato de que o responsével serd é exatamente a flexibilidade, que permite modelar a se-
sempre seu beneficidrio, que não se confunde necessa- paração patrimonial. Uma regra geral de responsabili-
riamente com os executores da atividade lesiva. Assim,. dade pode influir sobre a caracterização tipologica da
em uma sociedade isolada, a desconsideração atingird o sociedade dentro do sistema societirio, não sendo, no
patrimdnio do controlador e não do administrador que entanto, manifestagdo do método de desconsideragao
cxecutou suas ordens. Em uma sociedade pertencente a da personalidade juridica. Além disso, uma regra geral
um grupo em que o beneficio foi transferido a outra so- de desconsideragio pode causar sério desestimulo 4 as-
ciedade controlada e não à holding, serd aquela e não sunção de risco empresarial, com graves conseqiiéncias
esta última a ser atingida pela desconsideragdo. sobre a atividade econdmica (v. infra itens c e ss. desta
Nota de Texto). Evidentemente, a avaliagdo casuistica
ndo pode ser feita sem pardmetros. Em forma aproxi-
mativa, pode-se dizer que os parametros são aqueles
88 Nesse sentido, J. L. Correa de Oliveira, 4 dupla crise, cit., p. 611. mesmos que foram presumidos para a atribuição da
89 Cf. F. K. Comparato, Essai d 'analyse dualistede ['obligation en droit privé, cit,,p. 212: personalidade juridica, ou seja, é necessirio demons-
90 Ainiqiidade é mais clara na sociedade pluripessoal, por causa da coexisténcia dos in-
teresses dos sócios minoritérios, mas existe também na sociedade unipessoal, bastando trar, a contrario sensu, que a organização criada não foi
para isso admitir-se a concepção instifucionalista. suficiente para garantir a existéncia de um centro de de-
480 FABIO KONDER COMPARATO E CALIXTO SALOMAO FILHO O PODER DE CONTROLE NA SOCIEDADE ANONIMA 481
cisões autonomo. Isso pode ocorrer em uma série de sj. do-a quanto aos restantes (o que seria inviável para os
tuagdes. adeptos da teoria unitarista, ao menos em sua forma
Não só a fattispecie, mas também a disciplina da des- pura). De outro lado, a desconsideração não influi sobre
consideragdo é especifica. A primeira caracteristica da a validade do ato ou atos praticados, o que permite pre-
disciplina, decorrente da negação do dualismo, ¢ que o servar direitos ¢ interesses de terceiros de boa-fé.
sujeito atingido pode ser responsabilizado em via prin- Finalmente, a desconsideração é instrumento para a
cipal pelo credor. É devedor e ndo apenas garante oy efetividade do processo executivo.”? Essa característi-
responsdvel. Conseqiientemente, é impossivel o exerci- ca, aliada ao supracitado caráter substitutivo da descon-
cio de direito de regresso contra a sociedade (ou o sócio). sideração em relação à falência, tem uma consequência
A desconsideragio também não implica qualquer alte-
importantíssima. À desconsideração não precisa ser de-
ração nas esferas co-envolvidas. É o que o Codigo Civil”
clarada ou obtida em processo autônomo. No próprio
de 2002 expressou ao afirmar no art. 50 que “os efeitos
processo de execução, não nomeando o devedor bens à
de certas e determinadas relações de obrigações” devem
penhora ou nomeando bens em quantidade insuficiente,
ser estendidos aos bens particulares dos administradores,
ao invés de pedir a declaração de falência da sociedade,
Assim, de um lado, permanece intacta a personalidade
o credor pode e deve, em presença dos pressupostos
Jjuridica, valendo a desconsideragdo apenas para aquele
que autorizam a aplicação do método da desconsidera-
caso especifico. Nesse sentido, a desconsideragdo € um
ção, definidos acima, pedir diretamente a penhora de
eficaz antidoto contra as situagdes falimentares, já que
bens do sócio (ou da sociedade, em caso de desconside-
permite a proteção do patriménio social. Ou seja, verna
pessoa juridica um centro de imputagdo de direitos e ração inversa). A desconsideração nesse caso, além de
atender melhor aos proprios interesses do credor, que
deveres, como fazem com correção os seguidores de
Miiller-Freienfels, permite utilizar a descoasideragdo seguramente não pretenderé sujeitar-se ao concurso fa-
como meio até mesmo de evitar um pedido de faléncia, limentar com os demais credores, tem consegiiéncias
preservando a empresa.” É possivel desconsiderar a benéficas para a comunidade, na medida em que evita a
pessoa juridica para um determinado fim, preservan- faléncia.
¢) Análise econbémico-juridica da desconsideragdo
Tão profundos são os efeitos da desconsideragdo que é
9 Deve ser refutado com veeméncia o possivel contra argumento de que mais consciente necessério, para completar sua análise, determinar seus
seria o reconhecimeato da desconsideragdo em processo de conhecimento tendo como efeitos econdmicos e juridicos.
fundameato garantias processuais (como o contraditério). Na verdade, é ressabido que
essas garantias existem no processo de execução com a óbvia vantagem nesse Gltimo
da celeridade. O contraditorio não se realiza só em embargos (do executado ou de ter-
ceiro). Trata-se de principio aplicável e aplicado ao préprio processo executivo (v. por 92 Poder-se-ia tentar argumentar que com o processo de recuperagdo da empres:
todos C. R. Dinamarco, Execugdo Civil, 5* ed., São Paulo, Malheiros, 1997, p. 164 ¢ zido pela nova legislação falimentar, a justificação da utilizacdo da desconsideração
s5., para quem a execução para ser qualificada como processo precisa de contraditório. como forma de preservação da empresa perderia sustentago. Essa argumentagdo care-
Em suas palavras: “Um procedimento em que umas das pessoas comparcga como ce, no entanto, de fundamento. Como discutido resro (nota de rodapé nº 10), a descon-
Tnero sujeito passivo não é sequer processo” —p. 167, invocando com razão texto cons- sideração da personalidade juridica, aplicada antes ou durante o processo falimentar,
titucional, art, 5º, inciso LX, da Constituigio Federal - em auxilio — p. 175).
de sua tese especialmente se de acordo com o método de desconsideragdo ora proposto, permite li-
Assim, a defesa da socio sobre cujos bens a desconsideração recairia pode e deve ser berar a sociedade de obrigagdes e relagdes juridicas a ela não imputéveis, aumentando,
{eita no próprio processo de execugdo, do qual se tornaré necessariamente parte. portanto, as chances de recuperagio.
FÁBIO KONDER COMPARATO E CALIXTO SALOMÃO FILHO O PODER DE CONTROLENA SOCIEDADE ANONIMA 483
Trata-se, portanto, aqui de análise econômica em senti- A admissão como dado do segundo pressuposto deriva
do próprio, que visa a análise de resultados e não a defi- diretamente de sua concepção liberal, que presume um
nição do direcionamento legal (como querem as cor- mercado em concorréncia perfeita e ampla possibilida-
rentes mais ideológicas e dogmaticamente mais frágeis de de negociagdo. Por isso, admite uma exceção apenas
da análise econômica do direito). para os credores que de direito e de fato não negociaram
Em um campo como esse. parece imprescindivel fazer com a sociedade, ou seja, os credores oriundos de atos
uma análise jurídico-econômica das conseqiiéncias de ilicitos (delitos civis) praticados pela sociedade.”
um método casuístico como o acima definido. Evidente- Dentro dessa perspectiva do autor, a desconsideragao
mente, trata-se de verificar quais são os custos em ter- parece agir negativamente sobre a expectativa das par-
mos de perda de segurança nas relações que um método tes e sobre 0s riscos que assumiram e pelos quais foram
cuja aplicação é “rare, severe and unprincipled”” bem remunerados. Dessa forma, dever-se-ia admitir a des-
como os meios para combater ou minimizar esses custos. consideragdo em beaeficio dos credores negociais ape-
nas em casos excepcionais, nos quais 0 abuso cria um
d) Responsabilidade limitada e livre mercado risco adicional, ndo previsto pelas partes.”
O tratamento de ambos os pressupostos na teoria de
Os estudos originais sobre os custos da responsabilida- Posner tem sido objeto de cerrada critica na doutrina
de limitada e de sua desconsideração foram feitos pela mais recente. Duas são as vertentes principais.
Escola de Chicago, em particular por R. A. Posner. Para
ele, a responsabilidade limitada encontra sua justificati- e) Responsabilidade limitada em situagdo de concor-
va econômica no negócio jurídico realizado entre credor
réncia imperfeita
e sociedade.”* O credor assume o risco da responsabili Uma primeira vertente, ainda vinculada à visão econdmi-
dade limitada (ou da auséncia de responsabilidade dos ca liberal, aceita a justificativa principal de Posner para a
s6cios), exigindo uma contraprestagio por isso, consis- responsabilidade limitada, ou seja, a livre negociação dos
tente na taxa de risco ¢ traduzida normalmeante em juros 1iscos entre as partes, Argumenta, no entanto, que a reali-
mais elevados. dade dos credores que se apresentam na faléncia ¢ muito
diversa da imaginada pelo autor. Trata-se, em sua maioria,
Dois são os pressupostos de tal teoria: em primeiro lugar,
de credores pequenos e ndo-profissionais, para os quais os
a plena informação de todos os agentes ¢, em segundo, a
custos de informagao (i. e., de obtenção de informagdes
hipbtese de que os agentes, informados, possam negociar
sobre a sociedade) são muito altos e que, ainda que infor-
com a sociedade. mados, não teriam condigdes de negociar com a socieda-
Posner, atento ao primeiro problema, considera neces- de, exatamente por seu pequeno poder de barganha.””
sario diminuir os custos de informagio e de supervisdo A segunda e hoje predominante linha doutrindria, pelo
da manutenção do capital social por parte dos credores. menos em ambientes não influenciados pelas idéias li-
Pensa em regras de publicidade dos atos sociais que berais da Escola de Chicago, ataca a premissa basica da
possam permitir melhor informagao para terceiros. teoria de Posner.
93 A frase, com certa dose de exagero, é de F. Easterbrook e D. Fischel, “Limited liability t 95 CER,A. Posner, “The rights of creditors...”, cit., pp. 507-508.
and the corporation”, in University of Chicago Law Review 52/89. 96 Cf.R. A. Posner, “The rights of creditors...”, cit., pp. 324 e ss
94 CER A, Posner, “The rights of creditors of affiliated corporations”, in University o $ 97 Cf.J.L. Landers, “Another word on parents, subsidiaries and affiliates in bankruptcy",
Chicago Law Review 43/501. ; in University of Chicago Law Review 43/529.
484 FABIO KONDER COMPARATO E CALIXTO SALOMÃO FILHO O PODER DE CONTROLE NA SOCIEDADE ANONIMA 485
Para essa corrente, a justificativa de Posner Para a res- ção liberal de eficiéncia consiste na negagdo da definição
ponsabilidade limitada, i. e., a livre negociação entre as de eficiéncia de Pareto, segundo a qual uma solução é
partes, exige que sejam feitas várias distinções. A pri- eficiente quando traz vantagens a um dos participantes
meira, óbvia, entre credores de contrato e de d 0. sem prejudicar os outros. O fundamento é a afirmação
Mas mesmo dentro do grupo de credores contratuais, é da insustentabilidade da definição de Pareto em um
necessario destacar dois tipos de credores que já à pri- tema de direito privado, cuja idéia basica ¢ a auronomia
meira vista não podem estar sujeitos aos principios ge- da vontade e não a igualdade.""
rais formulados por Posner: os fomecedores, que por Como solugdo, invoca-se o teorema de Kaldor-Hicks,
sua dependéncia da sociedade (sobretudo quando essa é segundo o qual uma solugdo é injusta apenas quando o
de grandes dimensdes) não têm condições de negociar ganho dos favorecidos supera a perda dos prejudicados
taxas de tisco; € os primeiros não estão prontos a indenizar os últimos.
e os empreg ados, tratado s na faléncia É importante destacar que, para os defensores dessa teo-
como credores, mas que são na realidade os maiores in- ria, a indenização é potencial e não necessariamente
teressados na sorte da sociedade, aos quais de toda for-
real, ou seja, basta que teoricamente haja ou possa ha-
ma não é permitido negociar tal risco.*
ver indenização. Evidentemente, um teorema assim
Mas o dado mais interessante e forte contra a teoria de
formulado é absolutamente idêntico, nos resultados
Posner parece ser o prático, levantado por seus críticos:
práticos, ao teorema liberal da maximização de riqueza
A análise evolutiva das taxas de juros bancários não de-
(ou eficiéncia).'”
monstra uma diferença entre taxa de risco exigida pelos
O argumento básico contra esse tipo de teoria é que um
bancos para as sociedades com e sem responsabilidade
principio geral de maximização de riqueza leva neces-
limitada.” sariamente à transferência de riquezas aqueles que
Derrubado o principal pressuposto da teoria de Posner,
possuem maior poder de barganha nas transações, ou
a livre negociação dos riscos entre as partes, resta deter-
seja, aqueles que já possuem riqueza. Conseqiiente-
minar qual a justificativa da responsabilidade limitada mente, a teoria da eficiéncia levaria à concentração de
em um sistema que admile expressamente a existéncia riquezas.'”
de profundas imperfei¢des no mercado.
Para isso, é necessario analisar um dos pressupostos bá-
sicos da Escola de Chicago para orientação das normas
juridicas, o chamado principio da eficiéncia. Segundo R. Posner, “Utilitarism, Economics
esse principio, as normas juridicas são “eficientes quan- and Legal Theory”, in The Journal of Legal Studies, 1979, pp. 116-117.
102 Cf. A. Kronman, “Wealth maximization”, cit., p. 238.
do permifem a maximizagdo da riqueza global, mesmo Um exemplo muito claro de Kronman demonstra a iniquidade a que pode fevar a ado-
que isso seja feito à custa de prejuizo a um agente econd- ção de uma tal teoria: “dssume that no one owns anything, even his body or labour po-
mico específico”."* Em termos econdmicos, essa defiai- wer, and that the rights to all this things are held in trust by an auctioneer who
proposes to sell the various entitlements he holds to the highest bidder. The outcome of
the auction is certain to satisfy the principle of wealth maximization since each right
will be assigned to the person willing and able to pay the most for it. But how can peo-
98 CF.G Roth, “Zur economic anslysis der beschrânkten Haftung”, in ZGR 1986, p. 375. ple bid at the auction before they have any rights and therefore any wealth? Since no
99 Cf. “Stellungsnahme von M. Lehmann”, sobreo artigo de Roth, in ZGR 1985, p. 382. one owns anything, a bid can be nothing more than a promise to pay for something out
100 Cf. A. Kronman, “Weaith maximization as a normative principle”, in The Journalof of the anticipated fisture income which the bidder hopes to realize from its use. Let us
Legal Studies, 1980, p. 232; F. Kilbler, “Effizienz als Rechtsprinzip", in Festschrift assume the auctioneer is prepared to extend credit to each of the bidders by assigning
Steindorff, Berlim-Nova lorque, de Gruyter, 1990, p. 694. them rights before the rights have been paid for (in the same way a seller of goods
FABIO KONDER COMPARATO E CALIXTO SALOMÃO FiLHO
O PODER DE CONTROLE NA SOCIEDADE ANONIMA 487
Parece fundamental, portanto, buscar um caminho in- nele influir, tentando minimizar os desequilibrios exis-
termedidrio que permita aliar eficiéncia a Justica dis- tentes.
tributiva.'™ A esse último valor deve-se atribui obvia-
mente muito mais importancia relativa em paises de /) Desconsideragdo como forma de redistribuicio de
acentuadas desigualdades sociais e mais ainda naqueles riscos
casos em que as conseqiiéncias das diversas alternat;
vas com relagdo à maximizagdo ¢ alocagio de riquezag Negado o teorema de Kaldor-Hicks, desaparece a justi-
sdo incertas. Foi baseado em um raciocinio muito seme- ficativa encontrada por Posner para a responsabilidade
Ihante que o Bundesverfassungsgericht alemão afirmoy limitada. Com efeito, é o principio da eficiéncia que
a constitucionalidade da lei de participação operaria nas justifica para Posner a responsabilidade limitada. Para
empresas, afirmando em suas razdes que era duvidosa e ele, admitida a livre negociação entre as partes, prejui-
não demonstrada a perda de eficiéncia das empresas em zos eventualmente causados aos credores pela limita-
função da co-gestão operéria.'® ção de responsabilidade encaixam-se perfeitamente na
Segundo essa teoria, portanto, o direito não deve assu- idéia liberal de maximizagdo de riquezas.
mir uma atitude neutra em relagdo ao mercado, mas sim
J4 em uma visão que procure equilibrar a eficiéacia
com a justiça distributiva (elemento que para Posner,
como para Smith, é obtido pela mão invisivel do merca-
might extend credit to the buyer). Of course the amount of credit the auctioneer extend
do), ¢ preciso buscar outras justificativas para a respon-
fo a particular bidder bidding on a particular entitlement will depend upon the auctio- sabilidade limitada.
ate of the magnitude of the income which the asset in quesiion is likely to Ao contrario da teoria liberal, passa-se a ver na regra
generate if this ownership is given to the bidder rather than another.” da responsabilidade limitada a excegdo. Trata-se de
O resultado é que, segundo o autor, os créditos dirigir-se-ão queles naturalmente mais
uma excegdo que leva a externalidades negativas em
dotados. Esses seriam os resultados de seu hipotético leilão: “Even in the hypothetical
auction designed to allocate rights of the most basic sort, the principle of wealth maxi- caso de faléncia, mas que se justifica na necessidade,
mization works to accentuate, rather than temper, nature’s prior distribution of advan- absoluta do ponto de vista macroecondmico, de pro-
tages and disadvantages. These advantages and disadvantages are not themselves porcionar aos agentes uma porta de saida do mercado
entitlements. They do not become entitlements until the auction is concluded. For that sem custos insuportdveis (como sdo aqueles da ruina
reason they cannot be eliminatedby simply wiping away the legal landscape and retur- pessoal).'® A responsabilidade limitada é, portanto,
ning to the imaginary state in which no one yet owns anything at all” (p. 242). uma distribuigdo de riscos, forgada, mas necessaria, fei-
Os resultados absurdos a que pode levar a teoria da maximizagdo de riquezas ficam
claros quando se observa que Posner adimite expressamente que a própria escravidão ta pelo legislador.
encontre justificação, em casos extremos, na maximizagio da rigueza (v. R. Posner, Conseqiientemente, a desconsideragdo, segundo essa
The ethical and political basis of effeiency norm in Common Law, apud A. Kronman, visdo, ndo interfere (negativamente) em uma distribui~
“Wealth maximization”, p. 42). A conseqiiéncia seria concluir que a norma que ção de riscos livremente negociada entre as partes, mas
impõe a escravatura é eficiente e defensével do ponto de vista juridico.
apenas redistribui os riscos, retomando a repartição de-
104 Cf, nesse sentido, G Calabresi, “About law and economics: 2 leiter to R. Dworkin'
Hofstra Law Review, 1980, p, 558. 106 Cf. M. Lehmann, “Das Privileg der beschrânkten Haftung und der Durchgriffin Ge-
105 V. o famoso Mitbestimmungsurteil, de 01.03.1973, in B Verf GE 50, pp. 290-322, co-
sellschafis — und Konzemrecht — eine juristische und Skonomische Analyse”, in ZGR,
mentada por F. Kiibler, “Effizienz als Rechtsprinzip”, cit., p. 700. 1986, p. 352.
O PODER DE CONTROLE NA SOCIEDADE ANONIMA 489
FABIO KONDER COMPARATO E CALIXTO SALOMAO FILHO
sejada pelo legislador. Ou, mais claramente, a descon- de controladora.'® É pressuposta, evidentemente, a
sideração enquadra-se em uma regra geral de repressão existéncia de um poder de negociagdo entre as partes. O
ao comportamento de free-rider. Como free-rider defi- resultado é o prejuizo da grande massa de pequenos cre-
ne-se o agente que quer gozar das vantagens, mas não dores que, como visto, ndo tém condigdes de negociar
dos custos da responsabilidade limitada, ou seja, aquele com a sociedade.
agente que usa a responsabilidade limitada não passiva- Apenas no Cédigo de Defesa do Consumidor nota-se
mente, como um meio de salvação no caso extremo de unia menor preocupagio com a neutralidade das leis e
falência, mas ativamente, como elemento estratégico
sua utilizagio com função substitutiva (Ersatzfunktion)
para a externalização de riscos em maneira diversa da- nas relagdes em que o mercado em si ndo consegue esta-
quela prevista no ordenamento.'” O ordenamento deve belecer um equilibrio entre as partes, O art. 28 prevé uma
intervir, conseqiientemente, para eliminar esses abusos série de razdes para a desconsideragdo: abuso de direito,
e repristinar a distribuição de riscos original. excesso de poder, fato ou ato ilicito, violagao dos estatu-
Essa perspectiva intervencionista (que vé no direito não tos ou do contrato social, ou liquidagdo da sociedade por
um corpo de regras que devam buscar a nentralidade do má administrag3o. Os $$ 2° a0 4° impdem a responsabili-
ponto de vista econdmico, mas sim que devam influir dade subsididria das sociedades de grupo controladas e
nos desequilibrios naturalmente criados pelo mercado) consorciadas pelos débitos perante o consumidor sem
facilita a aplicação mais ampla da desconsideragdo. A qualquer demonstragdo de culpa. Finalmente, o $ 5° con-
própria desconsideragdo atributiva torna-se aceitavel, tém uma férmula geral, capaz de dar liberdade ao juiz,
desde que existam razdes econdmicas (1.g., a proteção que prevé a desconsideragdo sempre que a personalidade
dos interesses de grupos particularmente fracos etc.) a juridica for, de qualquer modo, um óbice ao ressar
Jjustificar uma diversa distribui¢Zo dos riscos (o que cla- mento dos danos causados ao consumidor.
ramente ndo seria aceitavel na visão liberal). A amplitude das hipdteses ¢ incompativel com a tese li-
beral, mesmo admitindo-se o reconhecimento de uma
&) Recepção legislativa das teorias no Brasil maior dificuldade de informagdo por parte dos consum:
dores. Até porque o Codigo amplia grandemente o aces-
No Brasil, destaca-se a recepção tardia e ainda apenas
so 4 informação, diminuindo fortemente seus custos. Se
o pressuposto fosse liberal, bastariam as regras de infor-
parcial dessa teoria infervencionista, sem dúvida mais
mação, não sendo necesséria a desconsideragao.
adaptdvel a sua realidade econômica.
Mais recentemente, como ja observado, o Cédigo Civil
A lei acioniria de 1976 adotou plenamente a teoria de
de 2002 (art. 50) adotou definição que, bem interpreta-
Posner. A responsabilidade limitada nos grupos de direi-
da pela jurisprudéncia, podera limitav ainda mais a apli-
to e nas sociedades unipessoais (subsididrias integrais),
cação da tese liberal em nosso pais.
desacompanhada de qualquer regra especial de organi-
zação interna ou de desconsideragdo, é justificada pelo h) Os limites da desconsideragdo
legislador com base na livre negociação realizada entre
credor e devedor, afirmando-se que o credor normal-
Definiu-se acima um método de desconsideragdo que
mente exige garantias pessoais do sécio ou da socieda- permite um certo grau de direção externa da sociedade.
107 Cf. M. Lehmann, “Das Privileg der beschriinkten Haftung”, cit., pp. 362-363. 108 V. Exposição justificativa do Ministro da Fazenda a Lei nº 6.404/76, cap. 21.
490 FABIO KONDER COMPARATO E CALIXTO SALOMÃO FILHO O PODER DE CONTROLE NA SOCIEDADE ANONIMA 491
Viu-se também que esse método é totalmente compati- O segundo grupo, ao contrério, é composto de todos
vel com a visão que identifica na desconsideração for- aqueles credores aos quais não se pode aplicar a hipétese
ma de redistribuição de riscos entre empresa e os da concomréncia perfeita. Nele estio compreendidos,
interesses por ela influenciados. É necessário, no entan- portanto, tanto os credores de delito, que não negociaram
to, sistematizar os limites à teoria da desconsideração, com a sociedade, como os credores que tiveram a possi-
todosjá mencionados, sob pena de criar-se insegurança bilidade tedrica mas não efetiva de informar-se sobre a
Jurídica insuportdvel. situagdo da sociedade — ou, em termos mais técnicos:
O primeiro e mais relevante é constituído pelos próprios não têm o dever de informar-se em face de seus escassos
requisitos objetivos necessários para a aplicação da teo- meios econdmicos e do alto custo da informação.*""º E
ria da desconsideração. Um sócio que queira assegu-
rar-se de não ver seu patrimônio pessoal envolvido no
insucesso do seu negócio deve dotar a sociedade do mi-
nimo de capital necessário ao exercicio de sua atividade, 109 Hoje parece ser conclusão pacifica a existéncia de diversos graus de diligéncia exigiveis
assegurar a rigorosa separação de sua esfera patrimonial segundo as possibilidades ccondmicas do sujeito. Não é mais compativel com a sociedade
pessoal da esfera social, bem como não usar da forma
moderna a aplicação do grau médio de diligéncia do bonus pater familias como faziam os
romanos ¢ nem tampouco o conceito único de diligéncia do comerciante dos medievais.
societaria para beneficio proprio. Deve, portanto, asse- O critério de diligéncia a ser aplicado depende da possi lade econdmica do agente.
gurar que a organizagdo societaria constitua realmente Esse principio já é há muito reconhecido na jurisprudéncia alemi (v. decisio do BGH,
um centro autdnomo de decisdes, como presumido pelo de 17.09.1958). Para afirmação do mesmo principio na doutrina v. P, Buchmann, Re-
ordenamento. gisterpublizitit und Gliubigerschutz bei der Einmanngesellschaft, Frankfurt-Bern,
Mas é possivel ir mais adiante. Ambas as teorias sobre a Lang, 1984, que é expresso a p. 16: “Erfahrungsgemêss sehen nicht alle, insbesondere
análise econdmica da responsabilidade limitada são weniger geschéfisgewandte Glaubiger (Kleinglaubiger), vor Geschifisabschluss das
Handelsregister ein. Das gilt vor allen bei Geschfiften geringeren Unfangs. Erst den
úteis para determinar os limites da desconsideragdo. Grossgliubiger ist es als Obliegenheitsverletzung anzurechnen, wenn er sich auf die
Aqui, ndo se trata de preferir uma a outra, mas sim de nicht einsieht” (“A experiéncia demonstra que
Firma verlãsst und das Handelsregister
utilizar os aspectos relevantes de cada uma delas. nem todos os credores, sobretudo poucos pequenos credores, verificam o registro co-
Assim é que se podem individuar dois grupos de credo- mecial antes do fechamento do negécio. Sobretudo em caso de negdcios de pouca
res, cada um deles intemamente heterogéneo, mas que monta, Apeuas da parte do grande credor caracleriza-se o descumprimento de um de-
podem sujeitar-se, sem grande risco de erro, aos pressu- vee quando ele confia na firma e não verifica os registros™).
É interessante notar que, na Alemanha, existe inclusive uma obrigação dos bancos de
postos bisicos de cada uma das teorias. verificar a situagdo econdmica do devedor nos eaipréstimos superiores a DM 50.000
O primeiro grupo é composto pelos credores profissio- (Geseiz tiber das Kreditwesen), obrigação que inclui, segundo a doutrina, também a
nais ou institucionais, geralmente instituigdes financei- verificação dos registros. V. P. Buchmann, Registerpublizitdt und Gliubigerschurz bei
ras. Com relação a eles é possivel pressupor a existénciz der Einmann-Gesellschaft, cit., p. 76, nota 53.
de livre mercado e livre negociação de riscos. Portanto, 110 Uma aplicago parcial de tal principio na jurisprudéncia brasileira pode ser encontrada
a interessante decisdo do Tribunal de Justica do Rio Grande do Sul. Desconsiderou-se
com relação a eles pode-se presumir a possibilidade de, apersonalidade juridica de uma sociedade imobilidria, com base no fato de que o nome
com emprego da diligéncia normal do bom comercian- da sociedade controladora figurava nos contratos de venda de imdveis como uma espé-
te, informar-se sobre o risco envolvido na transagdo e, cie de garantidora dos ncgdcios — a0 mcnos essa era a impressdo que poderia causar
20 mesmo tempo, negociar esse risco com a sociedade. aos pequenos e desinformados compradores de moradias populares (j2 que ndo havia
qualquer cláusula contratual expressa que o caracterizasse como garante). Desconside-
Nota-se, aqui, que basta a possibilidade efetiva de ne-
rou-sc a personalidade juridica sem qualquer indicio de fraude, apenas com base na au-
gociação. Se realmente essa negociação existiu ou não séncia dos pressupostos para a manutengdo da personalidade juridica: no caso,
¢ se realmente foi cobrada uma taxa de risco é absoluta- tendo-se em vista sobretudo a diminuta possibilidade de informagdo dos pequenos
mente irrelevante para a hipétese analisada. compradores — cf. RT631/197, TIRS,j. em 11.05.1988.
FÁBIO KONDER COMPARATO E CALIXTO SALOMÃO FILHO O PODER DE CONTROLE NA SOCIEDADE ANÔNIMA 493
também aqueles que, mesmo informados, não teriam rificável no momento da conclusão do contrato. Mesmo
condições de negociar com a sociedade, a confusão patrimonial deverá ficar afastada como cri-
Esse grupo é composto tipicamente por pequenos for- tério de desconsideração caso se demonstre que sua
necedores e empregados. Os primeiros, sempre racioci- existência ou probabilidade era conhecida dos credores
nando-se em termos de fattispecie tipica, ndo tém nema no momento da contratação.
obrigação nem a possibilidade de informar-se ¢, mesmo Com relação ao segundo grupo, no entanto, a descon-
informados, não tém possibilidade de negociar taxas de sideração poderia basear-se em qualquer fato já existente
risco com um cliente do qual na maioria dos casos de- no momento da contratação ou mesmo, caso o objetivo
pendem. Quanto aos últimos, claramente não lhes é da norma a ser aplicada justificasse, na própria necessi-
possivel informar-se nem muito menos negociar taxas dade de imputar uma determinada relação também ao
de risco com os empregadores. Mesmo em presenga de sócio. A idéia da desconsideração como forma de redis-
poderosos sindicatos, que podem fazer presumir a pos- tribuição de riscos objetivada pelo legislador (e não pe-
sibilidade de uma negociação coletiva, a intima ligação las partes) — cf. supra item f desta Nota de Texto —
entre sucesso da empresa ¢ destino dos empregados faz ganha aqui então plena aplicação.
com que a negociação de uma taxa de risco seja pouco É importante notar que essa versão diferenciada da
provével. Ao contrério, a experiéncia demonstra que, em aplicação da teoria da desconsideração da personalida-
situações de crise, é comum a concordancia dos sindica- d de jurídica pode ser vista como recepcionada pelo art.
tos com mudangas desfavordveis aos trabalhadores. 50 do Código Civil de 2002. A referéncia ao abuso da
Essa distingdo entre credores tem influéncia direta so- personalidade juridica do previsto é plena de conteúr
bre a desconsiderag@o. Em face dela, pode-se sustentar do."" Abuso de personalidade juridica há (como visto
uma aplicagdo mais restritiva da desconsideragdo com supra item g desta Nota de Texto) quando a personal
relagdo aqueles credores, como os credores institucio- dade é usada de maneira estratégica de forma a externa-
nais (profissionais) que tém o dever de verificar a situa- lizar riscos e ndo como protegdo última contra a
ção econdmica do devedor e têm a possibilidade de faléncia pessoal. Ora, utilização estratégica (e abusiva)
negociar uma taxa de risco. O mesmo deve ser dito com não haverd caso menor grau de separação patrimonial
relagdo a outros credores, se do contrato pode-se depre- sécio-sociedade tenha ou pudesse ter sido levado em
ender claramente a existéncia de um controle prévio conta pelo credor. Assim, credores patrimoniais que ne-
das condições econdmicas do devedor e a assunção do gociaram e cobraram pelo risco de menor separação de
risco. Nesse caso, serd admissivel a desconsideragéo . esferas não foram vítimas de abuso da personalidade ju-
apenas com base em um aumento superveniente e im ridica. O mesmo não se pode dizer de credores incapazes
previsível dos riscos, de modo a modificar substancial- de conhecer ou negociar riscos. Para eles, qualquer in-
mente a situação inicial. fringência à separação patrimonial sócio-sociedade ca-
Assim, a desconsideração não será mais do que uma re- racterizará abuso da personalidade juridica.
pristinação da distribuição de riscos pretendida pelas
partes, um caso, portanto, de aplicação da cláusula rebus
sic stantibus com relação à solvabilidade do devedor. Fi-
111 Exatamente como ocorre no art. 173, $ 4º, da Constituição Federal, desvio de finalida-
caria afastada nesse caso, por exemplo, a possibilidade de e confusão patrimonial só geram desconsideração se caracterizadoras do abuso de
de desconsideração baseada em capitalização insuficien- personalidade jurídica prevista nº ivo. A caracterização desse abuso é
te, pois essa consistiria numa condição já existente e ve- então elemento central para a aplicação da regra do art. 50 do Código Civil de 2002.
494 FÁBIO KONDER COMPARATO E CALIXTO SALOMÃO FILHO O PODER DE CONTROLE NA SOCIEDADE ANÔNIMA 495
140. Além dessa admissibilidade in genere, da desconsideração da nas antigas sociedades em comandita, mas que se gene-
pessoa jurídica, quando demonstrada a confusão de patrimônios, a lei de- ralizou nos tempos modemos por meio da criação das
veria, a nosso ver, regular também a questão específica dos empréstimos do chamadas ações preferenciais.
controlador à sociedade controlada, fonte de litígios célebres, como Vimos, Assim, é preciso que o agente tenha auferido proveitos
Entendemos que, vindo a falir a sociedade controlada, seriam de se consj. na forma de lucros para caracterizar a sua condição de
derar ineficazes pleno jure, contra a massa, as garantias reais ou os Privilé-
sócio e, portanto, a sociedade de fato. A mera gestão,
gios eventualmente ligados ao crédito do controlador mutuante, que ”
como conirolador externo, pode equipará-lo, para fins
passaria, portanto, a concorrer, em igualdade de condigdes, com os credo-
de responsabilidade ao administrador mas não ao sécio
s simplesmente quirografirios. Sobreleva, aí, a consideragio da
(oculto).
insuficiéncia de capital, que a jurisprudéncia norte-americana assinala,
com razão, como um dos fundamentos da teoria do /iffing the corporate
Vindo a falir a devedora, pde-se a questdo da responsabilidade do
veil perante terceiros. Um dos deveres do controlador, em relação aos cre-
controlador pelo passivo falimentar.
dores sociais, € o de prover adequadamente a companhia de capital, tendo
A esse respeito, W. Ferreira manifestou uma opinido singular, queja
em vista o fato de que este representa a principal garantia do passivo social,
foi acolhida em acórdão do Tribunal de Justiça de São Paulo.'™ Sustentou
Nessas condigdes, se a sociedade necessita de um incremento de recursos
que “não há falar em socios ocultos quando as sociedades se constituem
proprios, para continuar a exercer, satisfatoriamente, a sua atividade em-
por escrito e arquivam os seus contratos ou atos constitutivos no Registro
presarial, não compete ao controlador fazer-lhe empréstimos, mas subscre-
do Comeércio. Se terceiros se propdem a auxilia-las monetariamente, perce~
ver e integralizar aumentos de capital. Ao colocar-se na posição de credor
bendo parte de seus lucros, tém-se o mútuo e a usura quiga. Não sociedade,
mutuante, e não de subscritor de novas agdes, ele quis, sem dúvida, fur-
propriamente dita. Quando muito, a sociedade em conta de participagdo.
tar-se ao risco do investimento. Mas este constitui uma das regras essenciais
De qualquer modo, sócios ocultos não são. Socios somente podem ser os
do jogo. A lei não pode coonestar a sua supressio.
mencionados no contrato devidamente arquivado”. E invocou, em abono
de sua doutrina, o disposto no art. 302 in fine do Codigo Comercial (ja re-
141. Problema diverso é o da responsabilidade do chamado sécio
vogado), pelo teor do qual “toda a cléusula ou condição oculta, contrária s
oculto. Já vimos que um credor social pode passar a controlar, de fato, uma
clausulas ou condições contidas no instrumento ostensivo do contrato, é
sociedade, com ou sem objetivo de obter satisfação de seu crédito.'? ==_D<«.__à
Esse último dispositivo legal era,ja na época, totalmente impertinen-
Nota de Texto 84 A questdo que então se coloca é se é possivel caracteri-
te & questdo. A lei veta, ai, que os socios se prevalegam de clausulas não
zar a figura do sécio oculto simplesmente com a deten-
langadas no insttumento contratual, e portanto não publicadas pelo arqui-
ção do poder de controle.
vamento na Junta Comercial, quer em litigio entre si, quer contra terceiros.
Parece necessdrio, no minimo, a cla aliar a efetiva per-
Mas nio obsta à pretensão execurdria contra 0s que passaram a agir como
cepção de dividendos. Por uma razio bem simples.
socios de fato, da propria sociedade.
Na sociedade modema, fundamental para a caracteriza-
Este, na verdade, o ponto saliente. O sócio oculto, pessoa fisica ou ju-
ção da condição de sócio não € o poder de influir na ges-
ridica, ndo entra nem pode entrar a fazer parte de sociedade regular. Ele cria
tão social. A perda de importancia dessa faculdade
uma sociedade de fato com ela, sócia ostensiva.
decorre diretamente da dissociagdo entre propriedade &
poder de gestdo na sociedade andnima, já encontrével
113 5* Camara Civil, Tribunal de Justiga de São Paulo, Apelação Civel nº 152.893, Relator
Gongalves Santana, RT 372/136.
112 CE supra nº |8. 114 W. Ferreira, Tratado de Direito comercial, cit., vol. 14 , pp. 149/150.
496 FÁBIO KONDER COMPARATO E CALIXTO SALOMÃO FILHO O PODER DE CONTROLE NA SOCIEDADE ANONIMA 497
E a responsabilidade de ambos ¢ solidária e ilimitada. Por isso mes. falida, comprovando-se inclusive a repartição com esse
mo, não tem cabida a afirmação de Pontes de Miranda!"* de que “a respon- de beneficios da atividade social.
sabilidade dos sócios ocultos depende da qualidade de sócio que lhes B) No Grupo Econdmico
corresponde”, sendo que a dos ocultos, simétricos a sócios ostensivos, é so-
142. Em matéria de grupo econdmico, igualmente, a jurisprudéncia
lidária; enquanto “a responsabilidade do sócio oculto, que participa da so- de alguns paises admite a extensdo da responsabilidade da sociedade con-
ciedade como comanditário, é a de comanditário”. Se assim é, o sócio trolada à holding, e vice-versa, invocando a confusdo de patrimonios.''®
oculto de uma companhia jamais responderia na falência desta, pois o acio- Também aqui, os tribunais norte-americanos aplicam o critério da subca-
ta não pode ser executado por débitos da sociedade. pitalização para superar a barreira da personalidade juridica. Assim, por exem-
Por aí se percebe quão insegura é a doutrina brasileira nessa matéria, plo, no caso Luckenbasch S. S. Co. v. WR. Grace and Co. Inc, uma
companhia, com o capital de 800 mil délares, possuia uma frota de navios, no
Nota de Texto 85 Na verdade, existe um princípio geral de responsabilida- valor de vérios milhões de délares, que fretava a uma sociedade subsidiaria,
de do sócio oculto. Esse princípio já vinha previsto nos cujo capital não ultrapassava 10 mil dolares. Os tribunais admitiram que cre-
arts. 304 e 305 do Código Comercial (já revogados), que dores da controlada executassem seus créditos contra a holding.""?
estabeleciam a responsabilidade pessoal dos sócios nas Na Alemanha Federal, a confusão de patriménios entre sociedades do
sociedades de fato e nas sociedades irregulares. O Códi- mesmo grupo econdmico é considerada manifestagdo do principio proibiti-
go Civil de 2002 veio a consagrar princípio mais amplo vo do venire contra factum proprium: quem desrespeita, na pritica, a sepa-
na matéria, prevendo em seu art. 990 a responsabilidade ragdo patrimonial conseqiiente à personalizagdo das sociedades não pode,
solidaria ¢ subsidi4ria dos sócios — excluidos quanto à depois, invocar essa mesma separação para pôr seus bens pessoais ao abri-
subsidiariedade os s6cios que por ela contrataram — des- go das execugdes de credores sociais.'®
se tipo de sociedade (a0 qual é de se equiparar o sécio
oculto da sociedade andnima). É exatamente a previsio 143. Outro critério freqiientemente utilizado, tanto na Europa quanto
de subsidiariedade cumulada com o desaparecimento na nos Estados Unidos, para desconsiderar a autonomia juridica de sociedades
nova lei de faléncias de dispositivo expresso sobre a res- componentes de um grupo econômico, ¢ o da confusdo aparente de perso-
ponsabilidade do sécio oculto (que era prevista expres- nalidades. Não apenas a confusdo interna — isto &, quando os administrado-
samente no art. 6° do revogado Decreto-Lei nº 7.661/45) res são comuns, as assembléias gerais reúnem-se no mesmo local e,
que cria um problema exegético a ser resolvido. Não é praticamente, no mesmo horério; as empresas possuem departarnentos uni-
mais possivel durante o processo falimentar discutir a ficados e os empregados recebem ordens, indistintamente, de várias admi-
responsabilidade do sécio oculto. Entretanto, subsistin- nistragdes, não sabendo ao certo para quem trabalham — mas também a
do o principio geral de responsabilidade e sua previsio confusdo externa, ou seja, a sua apresentação perante terceiros.
expressa no art. 990 do Codigo Civil, é de se entender
que, findo o processo falimentar e restando credores in-
satisfeitos (por insuficiéncia ativa da empresa falida),
podem esses intentar ação contra o controlador extemo, 116 O Tribunal de Justiga de São Paulo, decidindo um litigio a respeito de segúestro de
agdes, declarou, textualmente, que “sociedade pertencente a uma companhia holding
sócio oculto, para reaver seus créditos. Para isso serd ne-
não se considera terceiro em relação às demais componentes da mesma companhia”
cessario demonstrar, no entanto, a efetiva existéncia da (6* Cam. Civil, Apelação Civel nº 175,845, Relator Torres de Carvalho, RT 405/183).
sociedade de fato entre controlador extemo e empresa Mas o Tribunal enleou-se, no caso, numa distinção artificial entre relagdes intemas ao
grupo econdmico e relações com lerceiros, de modo a não sacrificar (aparentemente) o
principio da personalidade juridica, 20 qual nos encontramos ainda muito apegados.
117 Luckenbasch S. S. Co. v. W. R. Grace and Co. Inc., 267 Fed. 676 (4th, Cir.), 1920.
115 Pontes de Miranda, Tratado de Direito Privado, cit., XXVIII, $ 3.288, 11. 118 Cf. M. Lutter, “La responsabilité dans lc groupes de socictés”, cit.
498 FABIO KONDER COMPARATO E CALIXTO SALOMÃO FILHO O PODER DE CONTROLE NA SOCIEDADE ANONIMA 499
Num aresto de 1929, a Corte de Cassação francesa declarou que rando em vérios paises, sob legislagGes diversas, mas perseguindo, sempre,
“duas sociedades cuja razão social é praticamente idêntica formam uma só uma única politica global.
e mesma realidade, notadamente se possuem a mesma sede social, as mes- O Direito ndo pode, portanto, ignorar essa realidade insuprimivel e irre-
mas sucursais, o mesmo número de telefone e a mesma assinatura em sua versivel, mas deve disciplini-la em fungdo dos múltiplos interesses em jogo,
correspondência”.""* A Corte de Poitiers, por sua vez, admitiu a existência procurando aquela harmonia e proporção, insitas na propria idéia de justiça.
de confusão patrimonial, para o efeito de estender a responsabilidade pelos Já vimos, no capitulo anterior, que a proteção aos interesses dos não-
débitos de uma sociedade a outra, entre duas companhias de estradas de controladores no grupo econdmico passa por uma certa desconsideragdo da
ferro. Declarou, para tanto, que elas eram administradas pelas mesmas pes- personalidade juridica das sociedades componentes. Aqui, também, no que
s0as, nos mesmos locais, e possuíam as mesmas oficinas, as mesmas ferra- range à proteção dos terceiros credores, a via a seguir é a mesma.
mentas, uma reserva comum de gasolina, de óleo e de peças de reposição; A confusdo patrimonial, em maior ou menor grau, é inerente a todo
que, ademais, se utilizavam dos mesmos veículos, mediante simples troca grupo econdmico. O interesse individual de uma sociedade é sempre su-
de placas.*º bordinado ao interesse geral do complexo de empresas agrupadas. Com
Da mesma sorte, num caso envolvendo duas companhias ferroviárias, isto, são praticamente inevitaveis as transferéncias de ativo de uma socie-
um tribunal americano admitiu a mesma solução.!** A sociedade controla- dade a outra, ou uma distribuigdo proporcional de custos e prejuizos entre
da não tinha horários próprios, mas seguia os fixados pela controladora. Os todas elas.
pedidos de indenização contra a subsidiária eram, geralmente, apresenta- O dilema do direito tradicional &, pois, muito claro: ou se aplicam, ri-
dos, de início, a um preposto na holding, para exame prévio. No caso Jo- gidamente, as normas editadas para o funcionamento de uma sociedade
seph R. Foard Co. v. State.'” verificou-se que a sociedade controladora isolada, tornando ilegal e abusiva essa confusdo patrimonial, e condenan-
pagava, regularmente, as faturas emitidas contra a filial. Os prejuízos desta do, portanto, o grupo econdmico a uma vida a margem da ordem juridica;
figuravam, promiscuamente, na conta de resultados da controladora, que ou, ao contrério, suspende-se, completamente, a aplicagdo dessas normas,
tratava diretamente com terceiros assuntos concernentes à controlada. e, em conseqiiéncia, os interesses, tanto dos não controladores quanto dos
terceiros credores, ficam ao desamparo.
144. Não se pode negar, entretanto, que os grupos econômicos foram
criados, exatamente, para racionalizar a exploração empresarial, harmoni- 145. A fuga a esse dilema consiste na criagdo do direito dos grupos
zando e mesmo unificando as atividades das várias empresas que os com- econdmicos, como sistema complementar do direito societário tradicional.
pdem. É graças a essa racionalização administrativa que o lucro marginal é O legislador alemão deu exemplo, nessa matéria, desde a leiaciondria
elevado, com a baixa do custo unitário de produção. Eles propiciam a cria- de 1937. O atual diploma legal, de 1965, distingue, para o efeito da prote-
ção de “economias internas de escala”, já assinaladas pelos economistas ção dos interesses dos credores sociais, trés situagdes: a do grupo econômi-
desde fins do século XIX, Todos os sistemas econômicos, qualquer que co regularmente constituido pela celebragdo de um “contrato de empresa”,
seja o regime político que os acompanha, tendem a esse mesmo objetivo de ado grupo econdmico de fato ¢ a da sociedade subordinada (eingegliederte
agrupamento e coordenação empresarial. A empresa isolada é, atualmente, Gesellschaft).
uma realidade condenada, em todos os setores, máxime naqueles em que o - Quanto ao grupo econdmico contratual, a solugdo escolhida pelo le-
progresso está intimamente ligado à pesquisa tecnológica. A chamada em- gislador germânico, para proteger os interesses dos terceiros credores, foi a
presa multinacional nada mais ¢ do que uma constelação de empresas, ope- de obrigar a sociedade dominante a, de um lado, constituir reservas de ga-
rantia adequadas na subsidiaria e, de outro, a absorver os prejuizos verifi-
cados nos balangos desta, Tendo em vista que o funcionamento do grupo
tende a alterar ndo apenas a distribuição de lucros em cada sociedade inte-
119 Req. 19 de junhode 1929, Sirey 1930.1.176.
120 Sirey, 1933. 11 124. grante, mas também a propria apuragio de resultados, a lei impõe, nas socie-
121 Ross v. Pennsyivania Railroad Co, 136 N. J. Law 536, 148 Atl. 741 (1930). dades submetidas a um contrato de dominação ou de transferéncia de
122 Joseph R. Foard Co. v. State, 100 Ohio St. 505, 126 N. E. 881 (1919). lucros, a complementagdo da quantia destinada, anualmente, a compor a
500 FÁBIO KONDER COMPARATO E CALIXTO SALOMÃO FILHO O PODER DE CONTROLE NA SOCIEDADE ANONIMA 501
reserva legal, de acordo com uma estimação do que seria normalmente de- as sociedades, se houver, observem condigdes estritamente comutativas,
duzido, caso se tratasse de uma sociedade isolada ($ 300). Ademais, t mita, ou com pagamento compensatorio adequado”; ou seja, considera abusiva a
em qualquer hipétese, a importancia dos lucros a serem transferidos da subordinagdo do interesse particular de uma sociedade a0 interesse global
subsidiaria 4 controladora (§ 301). No que conceme aos prejuizos verifica- do grupo. Acrescenta, no artigo seguinte, que “a sociedade controladora
dos, anualmente, na sociedade controlada, a controladora fica obrigada a será obrigada a reparar os danos que causar à companhia por atos pratica-
assumi-los, a não ser que eles estejam cobertos pelas reservas facultativas, dos com infragdo ao disposto nos arts. 116 e 117” (desvio de poder). A agio
regularmente constituidas (§ 302). Vindo a expirar um contrato de domina- de reparagdo do dano, no caso, compete, unicamente, a acionistas da con-
ção, ou de transferéncia de lucros, a sociedade controlada ¢ obrigada a trolada, como se os direitos dos terceiros credores ndo pudessem também
prestar garantia aos credores, cujos direifos sejam anteriores a publicagio ser lesados pela prética de tais atos.
do ato dessa extingdo contratual no registro do comércio (§ 303). Tratando dos grupos societarios de direito, isto €, os que se consti-
Quanto aos faktische Konzerne, a lei declara que a empresa dominan- tuem mediante convengdo escrita, regularmente registrada, a Lei admite
te não pode usar do seu controle para induzir a controlada a concluir negó- que os adminisiradores das sociedades filiadas observem “a orientagdo ge-
cios danosos, ou a tomar decisões, ou incorrer em omissões, que lhe sejam ral estabelecida e as instrugdes expedidas pelos administradores do grupo
prejudiciais, a ndo ser que compense as perdas verificadas (§ 311). Não que não importem violação da lei ou da convengdo do grupo” (art. 273); ad-
sendo feita essa composição de prejuizos, a controladora e também seus mite, igualmente, “a subordinagdo dos interesses de uma sociedade aos de
administradores respondem perante 2 controlada e seus acionistas (§ 317). outra, ou do grupo, ¢ a participagio em custos, receitas ou resultados de ati-
Nada se diz, porém, quanto à responsabilidade direta perante os terceiros vidades ou empreendimentos” (art. 276). Mas o sistema de proteção,
credores, devendo-se concluir que estes encontrardo, como remédio juridi- previsto em conirapartida, só abrange os “direitos dos sécios minoritrios”
co, tão-só a ação obliqua ou sub-rogatéria, figurando na demanda como (arts. 276 e ss.).
substitutos processuais da propria sociedade. Mais surpreendente, ainda, é a total omissdo de regras relativas à garan-
Finalmente, em matéria de sociedade subordinada, cujas agdes per- tia dos credores, no que concerne & “subsididria integral” (arts. 251 e ss.). Não
tencem, em sua totalidade, à controladora, a partir do momento em que se haverd, ai, porventura, nenhum risco de confusio patrimonial a temer, susceti-
manifesta esse vincnlo de subordinação integral, ambas as sociedades res- vel de prejudicar terceiros? A sociedade controladora, que já não tem acionis-
pondem, solidariamente, por qualquer divida da controlada contraida apés tas minoritarios para fiscalizar a sua atividade, ndo deve nunca ser envolvida
a subordinação (§ 322). O credor da subordinada, nessas condigdes, ndo na faléncia da controlada, simples departamento do grupo?
tem o ônus de provar a insolvéncia ou insolvabilidade da devedora para A “exposição justificativa” do projeto de lei declara que não se criou
agir contra a holding. Em contrapartida, a subordinada fica isenta de cons- “a responsabilidade solidéria presumida das sociedades do mesmo grupo,
tituir a reserva legal (§ 324). que continuam a ser patrimdnios distintos, como unidades diversas de res-
ponsabilidade e risco, pois a experiéncia mostra que o credor, em geral, ob-
146. A Lei nº 6.404/76, embora dedicando um capitulo às “socieda- tém a proteção dos seus direitos pela via contratual, e exigird solidariedade
des coligadas, controladoras e controladas” (arts. 243 e ss.), e outro aos quando o desejar. Ademais, tal solidariedade, se estabelecida em lei, trans-
“grupos de sociedades” (arts. 265 e ss.), ignora, quase que por completo, a formaria as sociedades grupadas em departamentos da mesma sociedade,
questdo da responsabilidade do grupo perante os terceiros credores. descaracterizando 0 grupo, na sua natureza de associagdo de sociedades
Seguindo, em linhas gerais, a orientação germanica, a nova lei com personalidade e patrimdnio distintos”.
acionaria distingue grupos de fato, grupos de direito e a “subsididria in- A explicagdo é inconvincente, no seu todo.
tegral”. Em primeiro lugar, porque não se trata de criar, necessariamente, uma
Quanto aos primeiros, dispõe, no art. 245, que “os administradores responsabilidade soliddria e, sim, meramente subsidiária. Ao contrário
não podem, em prejulzo da companhia, favorecer sociedade coligada, con- do que afirma o Ministro da Fazenda, o grupo de sociedades ndo é, nem
troladora ou controlada, cumprindo-lhes zelar para que as operagdes entre poderia jamais ser, juridicamente, uma associação, porque o seu intuito é
502 FABIO KONDER COMPARATO E CALIXTO SALOMÃO FILHO O PODER DE CONTROLE NA SOCIEDADE ANÔNIMA 503
lucrativo. O grupo constitui, como salientamos,* uma sociedade, nada credores, com a formação do grupo econômico convencional, e com a
importando o reconhecimento, ou não, de sua personalidade jurídica. E en- constituição de “subsidiárias integrais”.
quanto sociedade, não parece ousado nem pioneiro reconhecer o princípio Inclinamo-nos, no entanto, em favor da adoção do sistema unificado
do projeto de lei de sociedade anônima européia, também nessa matéria (é
que o velho Código Comercial, já revogado, inscreveu em nosso sistema
importante notar que tais regras sobre grupos não foram incorporadas ao
juridico desde 1850, a saber, “os bens particulares dos sócios não podem
Estatuto das Societas Europea de 2001, pois havia disenso entre os países
ser executados por dividas da sociedade, senão depois de executados to-
membros sobre a conveniência de sua aplicação). Com ou sem o estabele-
dos os bens sociais” (art. 350). No caso, os bens particulares dos sócios são
cimento de uma convenção de grupo, a insolvabilidade de uma sociedade
os componentes do ativo patrimonial de cada uma das sociedades grupa-
controlada, caracterizada pela falência ou pela concordata, deveria acarre-
das, máxime da controladora do grupo. tara responsabilidade subsidiária da controladora. Incumbiria a esta o ônus
No que tange à “departamentalização” das sociedades grupadas, ela de provar, não havendo convenção, a inexistência de um poder de controle,
já existe na prática sob muitos e importantes aspectos.** Não se percebe, constituindo o grupo societário de subordinação.
com clareza, porque essa situação de fato só deve ser admitida em direito Como salienta a Comissão da Comunidade Econômica Européia, nos
quando favorece a constituição dos grupos, e não quando cria a responsabi- seus comentários ao projeto que elaborou,* essa responsabilidade global
lidade grupal em benefício dos credores. no seio do grupo, nos dias que correm, é considerada como indisputável na
Quanto a estes últimos, na verdade, a prática também ensina, sobeja- ética dos negócios. Não se vê por que o Direito não deveria, aí, seguir os di-
mente, que os credores que logram obter garantias complementares aos seus tames da moral comercial.
créditos são, em geral, as instituições financeiras; raramente, os fomecedo-
res, sobretudo se economicamente fracos. São estes, no entanto, que formam Nota de Texto 86 A necessidade de tutela dos credores de sociedade com-
a legião dos quirografários desamparados nas falências e concordatas e mes- ponentes de grupos de empresas por meio de regras mais
mo na nova lei de recuperação e falências, e são eles que deveriam — em sofisticadas que a simples ausência de responsabilidade
boa justiça — merecer a tutela do legislador. de uma sociedade pelas dívidas das outras é inegável.
A irresponsabilidade da sociedade de comando grupal, pelas dívidas É preciso então detalhar e aprofundar a discussão da
responsabilidade grupal. Para tanto se fará referência
da controlada, é insustentável na fase hodierna da evolução jurídica.
aos vários tipos possíveis de responsabilidade grupal
O direito brasileiro do trabalho, há várias décadas, impõe, pacifica-
mencionados na Nota de Texto 77, identificando aqui
mente, a solidariedade das empresas componentes do grupo econdmico seus efeitos sobre os interesses dos credores (e não so-
pelo passivo trabalhista de cada uma delas (Consolidagdo das Leis do Tra- bre a organização dos interesses internos).
balho, art. 2°, $ 2°).'* Do ponto de vista dos credores, soluções que favore-
Dentro da sistematica adotada, analoga a da Lei alema de 1965, a Lei cem uma responsabilidade objetiva, como as expressas
nº 6.404 não poderia deixar de prever garantias adequadas para os terceiros nos dois primeiros grupos e nas decisões de Tiefbau e
Video, assemelham-se bastante. Todas elas, ao aplicar
um rigoroso critério de responsabilidade estrutural (no
sentido definido acima), não permitem distinções, in-
123 Cf. supra nº 112. ternas ou externas. Em primeiro lugar, não é possivel
124 Cf supran® L11.
distinguir entre comportamentos desejéveis e indeseja-
125 O estudo mais completo sobre o tema é a tese do Professor O. B. Magano, “Os Grupos
veis da sociedade controladora. Em presenga de uma re-
de Empresas no Direito do Trabalho”, São Paulo, Revista dos Tribunais, 1979. Ccf
também E. Moraes Filho, parecer na RF 253/257. No direito europeu, cf. G Branca, La
prestazione di lavora in societd collegate, Milão, 1965; J. Guyénot, “Le régime juridi-
que et fiscal des filiales et sociétés participantes en droit francais dans le contexte euro-
RDC,1973,3/4, |, p. 94. 126 Cf. RDM, nova série, 1971, nº 4, p. 171.
FAB1O KONDER COMPARATO E CALIXTO SALOMÃO FILHO O PODER DE CONTROLE NA SOCIEDADE ANONIMA 505
gra geral de responsabilidade baseada na estrutura monstrado absolutamente insuficiente para sancionar
grupal, o incentivo ao “bom comportamento” € mínimo. todos os casos de abuso (v. para a critica dogmática a
A impossibilidade de distinguir revela-se não apenas essa interpretagdo da lei supra Nota de Texto 73).
dentro como também fora da sociedade. Com efeito, Como freqiientemente ocorre, a distribuição do dnus da
uma solução que adota uma fórmula geral e objetiva qn.
prova acaba por influir diretamente sobre o direito ma-
responsabilidade não permite distinguir entre credores
terial. Uma responsabilidade subjetiva que exige para
voluntirios e involuntérios. Se a responsabilidade obje-
sua configuragdo prova impossivel de ser obtida é equi-
tiva é justificável com relação aos Gltimos, parece pelo
menos discutivel do ponto de vista eqiiitativo com rela- valente a uma regra de isenção de responsabilidade.
ção aos primeiros. Permanece por ser analisada a responsabilidade setorial.
Não ocorre o mesmo com a responsabilidade subjetiva. Quod iuris com relagao a ela. Em primeiro lugar, a per-
Ela permite proteger os empresários respeitadores da secução do patrimdnio proposta por essa teoria criaria
separação de esferas, no mínimo contra os credores uma situação de incerteza juridica para todas as soci-
contratuais.'”” Mas também esse tipo de solução levan- edades do grupo e para seus respectivos credores, que
ta sérias indagações. A primeira é relativa aos critérios poderiam a qualquer momento estar sujeitos a concur-
para a presunção do comportamento fraudulento. Como so com os credores da sociedade devedora. Compara-
Já ressaltado, o exercício da administração na sociedade da às solugdes anteriores, não parece proporcionar um
controlada como critério para a presunção de comporta- grau mais elevado de proteção patrimonial. Evidente-
mento fraudulento e, conseqiientemente, como critério mente, o patriménio da holding do grupo, detendo to-
para a aplicação da regra de responsabilidade, tem valor das as participagdes, representa garantia muito mais
meramente formal. Isso porque, exatamente nos casos significativa do pagamento das dividas do que o patri-
de existéncia de um controle largamente majoritário, o
ménio das sociedades controladas. Na solução setori-
exercicio da administração é absolutamente desneces- o aumento da incerteza não é
al, consegiientemente,
sário para a determinação dos destinos da sociedade.
justificado por um aumento relevante do grau de pro-
Não existe, além disso, qualquer vinculo entre adminis- teção dos credores.*
tração e responsabilidade. Se o sócio único da socieda- A vantagem da solugdo setorial está na maior justiça
de unipessoal responde como sócio e não como com relação aos minoritários da sociedade controlado-
administrador, pode-se indagar do sentido de sua pre- Ta, indevidamente prejudicados no caso da aplicação de
sença na administração social. No sistema brasileiro, critérios subjetivos. Entretanto, caso a transferência te-
claro adepto do esquema de responsabilidade grupal nha sido feita da ou para uma sociedade unipessoal,
subjetiva, a questão da fixação dos critérios para formu- esse beneficio nem sempre existe. A sociedade unipes-
lação de presunções é central. Isso porque, até o mo- soal pode ser ao mesmo tempo ponto de partida como
mento, como demonstra a casuistica, a simples também ponto de chegada da transferência patrimonial
aplicação direta do art. 117 da lei societária, com a ne- Sendo ponto de chegada, o prejuízo dos minoritários da
cessidade de demonstração de dolo e culpa, tem-se de- sociedade pluripessoal de onde partiu a transferência é
127 —ã::.w.:nno &mo:.:ã_ se a mesma regra deve ser ou não aplicada com relação aos cre- 128 V. a respeito a crítica de G. Scognamiglio, “La responsabilitá della società capogruppo:
dores involuntários e Aqueles que não negociaram com a sociedade -- v. a respeito F. | problemi e orientamenti" in Il gruppo d'imprese nella realtà giuridica italiana, At
Kúbler, “Anmerkung zur TBB Entscheidung”, in NW 1993, p. 1.204. del Convegno di Verona (07 novembre 1987), Padova, Cedam, p. 87.
FÁBIO KONDER COMPARATO E CALIXTO SALOMÃO FILHO O PODER DE CONTROLE NA SOCIEDADE ANONIMA 507
evidente. Mas mesmo sendo ponto de partida, é neces- como um todo e sobre o equilibrio da relação entre inte-
sário verificar o tipo de beneficio que a outra socieda- resses externos e interesse da sociedade, do qual depen-
de controlada, por hipótese pluripessoal, auferiu. É de muito do seu equilibrio econdmico.
necessário verificar se ao beneficio patrimonial cor- Do ponto de vista juspolitico, se o objetivo é o incenti-
respondeu um beneficio econdmico. Essa coincidên- vo 4 formagdo dos grupos de estrutura descentralizada,
cia nem sempre ocorre. Imagine-se a transferência de sem entretanto criar um sistema que dificulte a limita-
uma atividade deficitária e dos bens necessários para ção dos riscos dentro dos grupos (sistema com relação
sua manutenção de uma sociedade controlada unipes- a0 qual poder-se-ia levantar a suspeita de ndo neutralida-
soal (sociedade A) para outra pluripessoal, do mesmo de ou aberta hostilidade as concentragdes), a regulamen-
grupo (sociedade B). Tal operação, patrimonialmente tação da responsabilidade externa não deve ultrapassar o
benéfica à sociedade destinatária da transferência e se- minimo necess4rio para obter tais efeitos.
gundo a teoria da responsabilidade setorial, geradora de Tal principio não ¢ de facil tradução em termos juridi-
responsabilidade, pode a curto prazo causar prejuízo cos. A formação de presungdes requer a fixação de li-
para a sociedade B. O que teria ocorrido seria, conse- mites com base não em critérios numéricos, mas sim
qiientemente, um prejuízo dos minoritários da sociedade em critérios qualitativos. Como jé visto com relação à
B em favor da controladora, que passa a ter na socieda- sociedade unipessoal, a relevancia desse problema é tão
de A uma atividade superavitaria. Tudo com o agravan- grande que se chega a discutir sobre a própria definição
te de, segundo as regras da responsabilidade estrutural, da fattispecie sociedade unipessoal.
a responsabilidade subsidiaria por dividas da sociedade Ora, como já visto, se a utilização do conceito amplo
A passar a incumbir a B. de sociedade unipessoal não é admissível nos casos de
Vé-se, portanto, que a tentativa de utilizag3o das regras de aplicação de regras internas de organização — como a
responsabilidade externa para a proteção concomitante de do conflito de interesses —, o mesmo não ocorre com as
interesses internos e externos cria um sistema de resulta- regras externas, para as quais é admissível a equipara-
dos incertos, nem sempre apto a tutelar corretamente a si- ção do controle quase-totalitário ao totalitário.
tuagdo dos minoritarios e dos credores do grupo. Mas, como estabelecer o limite de equiparação? Um
Conclusao primeiro critério de definição pode ser o que identifica
a possibilidade de equiparação em todas aquelas con-
Feita a separação logica entre problemas de organiza-
centragdes empresaniais que, pelo seu grau de coesao,
ção interna e de responsabilidade externa,* fica claro
tornam impossivel isolar as determinagdes individuais
que as solugdes devem ser também diferenciadas.
da sociedade controladora e determinar seus respecti-
Para os primeiros, importante é a reflexão sobre as regras
vos efeitos.'™® Nesse momento, uma regulamentagdo
de conflito de interesses (v. supra Nota de Texto 77).
societiria baseada em critérios de responsabilidade
Ja os últimos são mais complexos dada a sua influén
subjetiva “pura” (ndo-presumida) e em um sistema de
sobre a conformagdo econdmico-juridica do grupo
invalidagdo dos atos lesivos perde sua eficácia (exata-
mente porque é impossivel identificar e coligar atos e
efeitos).
129 Nota-se que, como também já observado, regras de responsabilidade externas são só
adas quando as regras de organização interna sdo pouco efctivas (dai a necessida-
de de aplicação da teoria da desconsideração a sociedades unipessoais) ou desaplica-
das (como ocorre no ordenamento sacietdrio brasileiro). 130 Cf. V. Emmerich - J. Sonnenschein, Konzernrecht, cit.
O PODER DE CONTROLE NA SOCIEDADE ANONIMA 509
508 FABIO KONDER COMPARATO E CALIXTO SALOMÃO FILHO
Nesse caso, parece razoável a aplicação de um sistema Figura-se, por exemplo, a emissão de debéntures por uma companhia
analogo ao desenvolvido pelos tribunais alemães para notoriamente pertencente a um grupo econdmico. É evidente que o investi-
distribuição do ônus da prova em matéria societária, dor adquire tais titulos fundado, entre outras razdes, na garantia oferecida
Reconhecendo as dificuidades específicas que terceiros pelo patrimdnio grupal, mesmo que ela não venha expressamente estipula-
têm em tomar ciência de fatos intemos à sociedade, em da na escritura de emissão. A lei de sociedades por agdes de 1976, numa ti-
várias oportunidades e mais recentemente com relação mida concessdo a essa realidade, estatui que “as debéntures emitidas por
aos qualifizierte faktische Konzern,*' os tribunais ale- companhia integrante de grupo de sociedades (art. 265) poderdo ter garan-
mães impuseram ao sócio controlador a obrigação de tia flutuante sobre o ativo de 2 (duas) ou mais sociedades do grupo” (art.
prestar esclarecimentos sobre a situação social intema. 58, $ 6°). Percebe-se qudo insuficiente é essa norma para atender à efetiva
Existe com relação a certos fatos específicos, além do protegdo dos debenturistas, quando se pensa que a garantia, assim prevista,
ônus de prestar esclarecimentos, o ônus de comprovar o & meramente negocial, e que “grupo de sociedades” no sistema da lei é ape-
que foi dito. É o caso, por exemplo, do emprego de nas o criado por convenção, regularmente levada a registro. Ela não pode
quantias sobre as quais o balanço não fornece informa- ser paciuada nos “grupos de fato”. Ela pode não ser estipulada nos “grupos
ções suficientes e com relação às quais há uma susten- de direito”.
tável suspeita de desvio. Nesse caso, b4 a obrigação de Aliás, em matéria de emissão de debêntures, no grupo econômico, o
demonstrar onde foram aplicados os recursos e quais os legislador deixou de disciplinar um problema levantado por Ascarelli, refe-
resultados provenientes dessa wv:nmomo.zu rente à necessária desconsideração, que vimos examinando, da personali-
Os critérios para a extensdo desse ônus a outras situa- dade jurídica de cada sociedade agrupada. Ele diz respeito 20 limite de
ções internas são incertos. Pode-se perguntar até que li- langamento de empréstimos debenturisticos, tradicionalmente fixado no
mite é possivel impor ao controlador o énus de provar montante do capital social. Se a sociedade controladora e uma ou mais das
fatos internos à sociedade. Pode-se dizer que esses limi- suas controladas fazem, ao mesmo tempo, tais emissdes, parece inquestio-
tes devem ser tanto mais eldsticos quanto menor seja a nável que a regra limitativa mencionada é, de certo modo, contornada:
possibilidade de confiar em um controle interno inde- como o capital da holding é, no todo ou em parte, representado no ativo por
pendente na sociedade. Quanto menos instrumentos de agdes das sociedades controladas, ndo se pode, no caso de emissão simulta-
fiscalizagdo interna existem, ndo só maior é a possibili- nea de obrigagdes, computar as cifras dos capitais sociais, isoladamente,
dade de utilização da sociedade no interesse pessoal do mas deve-se operar a dedução da parte do capital de cada controlada, detida
sócio mas também — e isso é o que mais interessa no pela holding. De outra sorte, os portadores desses titulos, para tutela dos
momento — maior ¢ a dificuldade de terceiros terem quais a lei fixa aquela limitagdo, poderdo ser iludidos quanto aefetiva rela-
acesso a informagdes sobre a sociedade. Simplesmente ção entre ativo empresarial e passivo debenturistico das companhias emi-
porque não ha discussdo interna que faga resultar qual- tentes.
13
quer informagao sobre as operagdes sociais nos livros. É verdade que a lei de sociedades por ações de 1976 prevé para a so-
Nesses casos, impor ao credor a demonstragdo de fatos lução da questdo uma vélvula de seguranga. “A Comissio de Valores Mobi-
internos à sociedade seria impor uma probatio diaboli-
ca e, na pratica, impedir a responsabiliza¢do do contro-
lador.
133 CE. T. Ascarelli, Saggi di Diritto Commerciale, cit., p. 251 e Problemi Giuridici, I,
p. 295. Nomesma seatido, B. Libonati, Holding e invesiment Trust, cit., pp. 25less.P.
Guerra, Le Societa di Partecipazione, Milio, Giuffrê, 1957, pp. 177 ess., embora reco-
131 Trata-se da decisão do caso TBB (in NJW 1993, pp. 1.200-1.203). nhecendo a procedéncia da dificuldade suscitada, estima que ela só pode ser resolvida,
na Itdlia, de jure condendo, face aos termos do art. 2.410 do Cédigo Civil de 1942.
132 BGHZ 100, 197.
el

510 FÁBIO KONDER COMPARATO E CALIXTO SALOMAO


Fitno
i os”, dispõe o seu art. 60, $ 3º, “poderá
fixar imi
mi_mmmnm de debéntures negociadas em mfl_mw
ouno vu_MMM oM:H.“fi ”
tribuidas no mercado”. Mas havendo
instituido o cm_mão.ocão:wns E
grupo (art. 275), que descaracteriza a
absoluta autonomia Ppatrimo v
sociedades componentes, poderia, sem
risco de €XCesso normalivo, .
Ver expressamente a questdo suscitada,
ao invés de confiar o probl o
cuidados da Comissão de Valores Mobilidrio
s. provloma aos Capitulo IV
o que se pretende, em suma, tanto na
companhia isolada co
grupo econômico, é simplesmente adequ
ar o diceito 4 realidade nnº:.m_ s
ce, nonma.oª..ao a personalidadejurídica em sua verda
PODER DE CONTROLE E NACIONALIDADE
deira &Egm m:o. _a.
€, como técnica, meramente relativa,
de separagdo de patrimôni, : _m.—c,
como entidade metafisica de valor absoluto.
e
147. Foi, justamente, na determinação da nacionalidade das socieda-
des que a noção do poder de controle surgiu em direito. Nesse campo, mais
do que em qualquer outro, os tribunais rejeitaram, a miúdo, a separação en-
tre a existéncia da pessoa juridica e a dos seus membros, tomando em con-
sideragdo a nacionalidade dos que exercem, de fato, o poder de comando
social. Atualmente, o critério do controle está consagrado em lei em vários
paises, inclusive no Brasil, como condictio juris do exercicio dg determina-
das atividades empresariais, consideradas, com ou sem razdo, como de in-
teresse vital para a nação.
Já se observou que, para a determinagdo da nacionalidade das socie-
dades, os critérios seguidos referem-se, ora ao seu aspecto contratual, ora
20 seu cardter institucional.' Fundados na relagdo contratual entre os sécios
¢ no principio da autonomia da vontade são os critérios do lugar de eleição,
do local de constituição da sociedade e da sede social estatutdria.? Por outro
lado, de cardter institucional é o critério da sede social efetiva, onde se si-
tua, de fato, a administragdo societaria.
Mas a classificagdo assim proposta suscita alguns reparos. Com efei-
to, em primeiro lugar, não se vé bem qual a diferenga entre “sede social efe-
tiva™ e centro de exploragdo.cmpresarial, ou local onde a empresa tem o seu
I CfY.Loussouamne]. D. Bredin, Droitdu Commerce International, Paris, Sirey, 1969,
pp. 261 e ss.
2 Oart. 19 do Cédigo Bustamante, ratificado pelo Brasil, dispõe: “À nacionalidade das
sociedades andnimas serd determinada pelo contrato social (sic) e, eventualmente,
pela lei do lugar em que, normalmente, sc reúna a assembléia geral dos acionistas, ou,
em sua falta, pela do lugar em que funcione o seu principal conselho administrativo ou
diretoria”,

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