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O princípio da moralidade da administração

pública

OSWALDO OTHON DE PONTES SARAIVA FILHO

O princípio da moralidade administrativa


não era inusitado no direito brasileiro mesmo
antes da Carta Política de 1988, uma vez que
tanto a doutrina quanto a lei e a jurisprudência
pátrias já o enxergavam como informador do
princípio da legalidade quanto aos fins, tendo
sido invocado como fundamento do combate
ao desvio ou ao abuso de poder tanto em relação
ao ato vinculado como ao discricionário.
A referência expressa ao princípio da
moralidade apartado do princípio da legalidade
por parte do caput, do art. 37 da Carta Magna
de 1988 demonstra, antes de tudo, a autonomia
conferida ao princípio da moralidade para
propiciar, como bem preleciona a Professora
Maria Sylvia Zanella Di Pietro (Discricionari-
edade administrativa na Constituição de 1988.
São Paulo: Atlas, 1991. p. 110-111), em
conjunto com o princípio da razoabilidade (art.
5º LIV), o exame do objeto ou conteúdo dos
atos da administração pública, importando os
efeitos imediatos que os atos produzem, e não
a intenção subjetiva dos respectivos agentes.
Diante dessa autonomia, o princípio cons-
titucional da moralidade da administração
pública foi alçado à dignidade de informador e
pressuposto de validade de toda a atividade
administrativa e legal, especificamente em
relação aos procedimentos da administração.
No que tange à conceituação do princípio
da moralidade administrativa, não custa
mencionar a concepção dominante, entre os
administrativistas daqui e do exterior, de que a
moral administrativa não se confunde com a
Oswaldo Othon de Pontes Saraiva Filho é moral comum, embora ganhe influência desta,
Consultor da União, Procurador da Fazenda Nacional já que aquela, encontrando-se juridicizada,
de Categoria Especial, Sócio do IBDC e Mestrando representa o conjunto de regras de conduta para
na UnB. uma boa administração, tiradas da disciplina
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interior da administração pública, a qual não Ramos Reinaldo (O princípio da moralidade
deixa de espelhar os valores morais prestigiados na administração pública: a liceidade do limite
e amparados pelo ordenamento jurídico, etário para acesso aos cargos públicos):
mormente pela Lei Suprema.
“O constituinte, portanto, estabeleceu
A esse respeito, merece destaque a posição nítida distinção: juridicizou a ‘morali-
assumida pelo abalizado Ministro Moreira dade’, definindo-a como ‘princípio’, para
Alves, em sua conferência inaugural do XXI viger, paralelamente, com o da ‘lega-
Simpósio Nacional de Direito Tributário, lidade’. A distinção é evidente e
promovido pelo Centro de Extensão Universi- necessária. A moralidade administrativa
tária (São Paulo, 19 de novembro de 1996), no integra o direito (constitucional) como
sentido de que o princípio da moralidade
elemento de observância indeclinável
administrativa do art. 37, caput, da Carta (irretorquível), mas não está ínsita na
Magna reclama “a aplicação dos princípios
legalidade, nem desta constitui corolário.
morais dominantes dentro de um certo momento
histórico em relação à Administração”. O legislador constituinte, ao instituir o
princípio, não cuidou do mero ‘reenvio’
Desse modo, o preceptivo constitucional do
art. 37, caput, tem, ao meu ver, a intenção de da norma legal à norma moral, mas
alargar a abrangência do princípio da morali- atribui à moralidade administrativa
dade administrativa, permitindo que seja juri- relevância jurídica, de eficácia plena e
dicamente possível exigir-se da administração mandamental autônoma – e de vida
direta e indireta da União, dos estados, do própria. Nessa linha de raciocínio há que
Distrito Federal e dos municípios a atuação com se distinguir a ordem jurídica positiva,
a observância da lei e de conformidade com a que caracteriza a legalidade da ordem
finalidade pública, mas com a lei aferida quanto jurídica positiva que caracteriza a
a sua moralidade, alcançando, outrossim, o moralidade – ambas compondo a mesma
controle se a própria lei, colimado o princípio ordem jurídica integral – porque nem
da razoabilidade, compatibiliza-se ou não com tudo que é ‘legal é moral’. Decorre daí
a moralidade administrativa. que não basta que o administrador se
atenha ao estrito cumprimento da lega-
Nesse diapasão é o magistério de Maria lidade, devendo a sua atividade ser bali-
Sylvia Zanella di Pietro (Direito administrativo. zada e informada pelo princípio ético,
5. ed. São Paulo: Atlas, p. 71): porquanto a declaração de nulidade cons-
“... sempre que em matéria administra- titui sanção constitucional à moralidade
tiva se verificar que o comportamento da administrativa (art. 5º, LXIX). Cabe,
administração ou do administrado que pois, ao administrador, ao firmar o ato,
com ela se relaciona juridicamente, atender a ambos os princípios. Não
embora em consonância com a lei, ofende importa, ainda, que o ato administrativo
a moral, os bons costumes, as regras de seja ‘vinculado’ (ou regrado) e que tenha
boa administração, os princípios de preenchido todas as solenidades exigidas
justiça e de eqüidade, a idéia comum de na lei. A moralidade alcança os atos da
honestidade, estará havendo ofensa ao administração de qualquer natureza,
princípio da moralidade administrativa.” sejam ‘regrados ou discricionários’. O
E assim prossegue a Professora Titular de ato pode ser legal e, ao mesmo tempo,
Direito Administrativo da Faculdade de Direito imoral, incidindo na eiva de inconstitu-
da Universidade de São Paulo: cionalidade.”
“Ouso pensar que, com o advento da
“ Embora não se identifique com a nova ordem constitucional, as teorias
legalidade (porque a lei pode ser imoral, sobre o ‘abuso de poder’ perderam em
e a moral pode ultrapassar o âmbito da substância. O que importa, agora, é que
lei), a imoralidade administrativa produz a ação do administrador se componha
efeitos jurídicos, porque acarreta a inva- nos limites da ‘lei’ e da ‘moral’, em
lidade do ato, que pode ser decretada pela cumulação. Não importa indagar, ainda,
própria administração ou pelo Poder se o ato é ‘vinculado ou discricionário’,
Judiciário.” ou se, em relação ao último, existiu ou
Esta, também, é a lição do Senhor Ministro não desvio de finalidade (ou outros quais-
do Superior Tribunal de Justiça Demócrito quer vícios). Havendo afronta à morali-
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dade, o ato se inquina de ‘nulo’, ipso sendo esta ou aquela forma imoral...
facto, por contrariar princípio constitu- Então o que este princípio acrescentou
cional. Não há, aí, de perquirir se houve de novo ao ordenamento jurídico foi a
dano à administração (ou maltrato ao possibilidade do controle judicial com
interesse público), porque este é presu- referência às leis, para declará-las in-
mido juris et de jure. A nulidade inde- constitucionais, em casos extremados,
pende de verificação do resultado, porque observado o princípio da proporcionali-
o ato ‘imoral’ é ato ‘inconstitucional’, dade (CF, art. 5º, LIV), em conseqüência
nulo, ineficaz. exclusiva da moralidade, podendo ele
O princípio da moralidade adminis- examinar, inclusive, se o comportamento,
determinado à Administração, atenderia
trativa, na sua dicção ampla (art. 37),
ou não o princípio da moralidade.”
tampouco poderia depender de lei que
explicitasse o que é ou não moral. A A seu turno, merece especial atenção a
precisão que se exige da legalidade não questão sobre se o Poder Judiciário teria sido
tem cabimento quando se trata da mora- autorizado a controlar a valorização dos
lidade, pois, de outra forma, se estaria motivos e a escolha do objeto – consubstancia-
subsumindo um ao outro princípio, dores do mérito administrativo, efetuados pela
tornando-se ocioso falar-se em moral administração, diante da norma constitucional
administrativa. Sob esse critério, têm do art. 37, caput.
eficácia desconstitutiva sobre os atos, José Augusto Delgado, Ministro do Superior
contratos e atos administrativos Tribunal de Justiça e Professor Adjunto da
complexos praticados com violação da Universidade Federal do Rio Grande do Norte,
moralidade administrativa os preceitos representa bem uma das correntes de idéias a
do art. 5º LXVIII, LXIX e LXXIII e o esse respeito (O princípio da moralidade
princípio do art. 37. Serão nulos de pleno administrativa e a Constituição Federal de
direito, ainda que legais, abrangendo a 1988):
desconstituição todos os efeitos deles “A extensão do princípio da morali-
esperado.” (RT 711/19) dade conduz ao entendimento de que a
A conseqüência da constitucionalização do administração pública tem o dever de
princípio da moralidade administrativa foi melhor administrar, que ultrapassa o
explicitada pelo Excelentíssimo Senhor conceito de bem administrar. Isso repre-
Ministro Moreira Alves por ocasião da palestra senta que, em face de quatro ou cinco
retromencionada, da qual anotei as seguintes hipóteses boas, o administrador público,
lições: ao contrário do particular, não tem o
direito de escolher qualquer uma delas.
“O princípio da moralidade aplica-se É do seu dever adotar o melhor. Se não o
a todos os Poderes da República, quando fizer, em face de como está posto na
atuarem como administradores na Constituição Federal o princípio da
prática de atos administrativos.” moralidade administrativa, o juiz tem
“O Supremo Tribunal Federal rejeitou, mais do que poder jurisdicional, tem o
de modo absoluto, a tese de inconstitu- dever de, no exercício do controle da
cionalidade de texto constitucional. Não referida atividade administrativa,
há princípio constitucional mais elevado desfazer a decisão, por ser reflexo de uma
que outro princípio constitucional, de ação que infringiu a obrigação de ‘melhor
modo que o Judiciário não pode declarar administrar’. Esse poder constitucional do
a inconstitucionalidade de certo princípio juiz é, somente, o de desconstituir o ato
em relação ao outro.” administrativo. Não lhe é permitido que
“A conseqüência da constitucionali- substitua a ação administrativa, sob pena
zação do princípio da moralidade de ferir um outro princípio que é o da
administrativa é principalmente dizer independência e harmonia dos poderes.”
que, além de a Administração continuar (RT 680/39)
vinculada aos princípios legais, há um Em campo oposto, nesse caso, encontra-se,
plus: vincular ao princípio o legislador entre outros, o Professor Celso Ribeiro Bastos,
– impedir que o legislador possa, por que, no seu Curso de direito administrativo.
exemplo, determinar que a Administração São Paulo: Saraiva, 1994. p.37, opina:
Pública proceda desta ou daquela forma, “A inovação de um difuso princípio
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de moralidade pode, na verdade, valores morais do administrador público
escamotear um ingresso que, até então, pelos seus próprios valores, desde que uns
não tem sido aceito pelo Poder Judiciário e outros sejam admissíveis como válidos
no mérito do ato administrativo. Quer-nos dentro da sociedade; o que ele pode e deve
parecer que não tenha sido esta a invalidar são os atos que, pelos padrões
intenção do texto, nem corresponda ela do homem comum, atentam manifesta-
a uma aspiração doutrinária do nosso mente contra a moralidade.”
direito, que tem sabido sempre acatar as
distinções entre administrar e exercer a Por força do princípio da moralidade, os
jurisdição. Nem para o próprio Judiciário, atos da administração pública e de seus agentes
a nosso ver, convém um alargamento em geral devem conter a maior eficiência
desmensurado da sua competência nessa possível, pela obrigação de prestarem uma boa
matéria, que o transformará, de aplicador administração, observando-se a honestidade, a
da lei que é, num administrador de boa-fé, a lealdade, a moderação, a discrição, a
segundo grau.” economicidade, a sinceridade, sem que possa
Tenho para mim, após observar os teores existir qualquer inconfessável desejo de preju-
de alguns preceptivos constitucionais, tais como dicar ou beneficiar este ou aquele administrado.
do art. 37, caput (expressa o mandamento de Merecem destaque as seguintes palavras do
respeito ao princípio da moralidade admi- jurista luso Antônio José Brandão (espinçado
nistrativa, em paralelo aos princípios da do seu conhecido artigo Moralidade adminis-
legalidade, impessoalidade e publicidade), do trativa. RDA 25/459):
art. 5º, LXXIII (prevê ação popular – discipli- “... tanto infringe a moralidade adminis-
nada pela Lei nº 4.717/65 – para estimular a trativa o administrador que, para atuar,
defesa dos bens e interesses públicos e da foi determinado por fins imorais o u
moralidade administrativa), do art. 70 (autoriza desonestos, como aquele que desprezou
o controle interno e externo – aquele por meio a ordem institucional; embora movido por
da própria administração, este por meio do zelo profissional, invade a esfera reserva-
Congresso Nacional com o auxílio do Tribunal da a outras funções, ou procura obter mera
de Contas – não só da legalidade, mas também vantagem para o patrimônio à sua guar-
da legitimidade e da economicidade dos atos da. Em ambos esses casos, os seus atos
da administração), do art. 5º, LIV (assegura a são infiéis à idéia que tinha de servir, pois
razoabilidade das leis e dos atos administrativos), violam o equilíbrio que deve existir entre
e art. 2º (consagra a separação dos poderes), todas as funções, ou, embora mantendo ou
que, em nome do princípio da moralidade aumentando o patrimônio gerido, desvi-
administrativa, a qual difere da ilegalidade por am-no do fim institucional, que é o de
desvio ou abuso do poder, o Poder Judiciário, concorrer para a criação do bem-comum.”
excepcionalmente, tem competência para Aliás, nesse ponto, Celso Antônio Bandeira
anular o mérito do ato administrativo quando de Mello (Elementos de direito administrativo.
a valoração dos motivos e a escolha do objeto 3ª ed. São Paulo: Malheiros, 1992. p. 61)
do ato mostrem-se notória e iniludivelmente leciona:
ineficientes e contrários à moral dominante em “Segundo os cânones da lealdade e
relação às outras hipóteses que o senso comum boa-fé, a administração haverá de
da sociedade teria adotado. proceder, em relação aos administrados,
No entanto, se a valorização dos motivos com sinceridade e lhaneza, sendo-lhe
ou a escolha do objeto do ato enquadram-se, de interdito qualquer comportamento
algum modo, dentro da razoabilidade, mesmo astucioso, eivado de malícia, produzido
que, eventualmente, possa haver divergência de maneira a confundir, dificultar ou
de opinião, o ato deve ser mantido, em minimizar o exercício de direitos por
homenagem, também, à regra da separação de parte dos cidadãos.”
poderes. Insta ser ressaltado que o § 4º do art. 37 da
Maria Sylvia Zanella di Pietro (em sua obra Constituição Federal estatui que os atos de
Direito administrativo, p. 182), sobre os limites improbidade, nos escalões governamentais e
da discricionariedade administrativa e o administrativos, importarão a suspensão dos
controle pelo Poder Judiciário, assim arremata: direitos políticos, a perda da função pública, a
“Não cabe ao magistrado substituir os indisponibilidade dos bens e o ressarcimento
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ao erário, na forma e graduação previstas em Em nível infraconstitucional, vale ilustrar
lei, sem prejuízo da ação penal cabível. que o Estatuto dos Servidores Públicos Civis
Outrossim, por força do art. 85, V, do da União (Lei nº 8.112/90) prevê várias
Estatuto Político, atentar contra a probidade disposições concernentes aos deveres dos
administrativa é uma das hipóteses de crimes agentes públicos em geral e às vedações que
de responsabilidade do Presidente da República, eles estão sujeitos, com vista a garantir uma
conforme definido no art. 9º da Lei nº 1.079/ conduta compatível com a moralidade
50, fato que enseja o impeachment, alcançando, administrativa, havendo a previsão da
nos termos do art. 52, I, da Lei Maior, com a responsabilidade civil, penal e administrativa
destituição, os Ministros de Estado nos crimes do servidor pelo exercício irregular das suas
da mesma natureza conexos com aqueles. atribuições.

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