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Bufos, infiltrados, provocadores e arre­

pendidos
OS PRINCÍPIOS DEMOCRÁTICO E DA LEALDADE EM
PROCESSO PENAL’

GERMANO MARQUES DA SILVA

SUMÁRIO: 1. Os princípios gerais do processo


penal 2. O princípio democrático 3. O princípio da
lealdade 4. O criminoso arrependido 5. Conclusão.

1. Os princípios gerais do processo penal

A enunciação de princípios gerais do processo penal tem objectivos


vários, nomeadamente de política legislativa, ao permitir o confronto
fácil do sistema processual penal vigente com os valores socio-
j

I
I ■ Texto correspondente ao de uma lição proferida na Faculdade de Direito de
Lisboa, no âmbito da disciplina de Processo Penal, por amável convite da sra. Prof.
1 Doutora Teresa Pizarro Beleza, a quem muito agradeço a honra e a oportunidade que me
proporcionou.
I O texto foi vertido num discurso escrito, mas para ser proposto oralmente na aula.
Conserva-se a sua versão inicial, apenas se acrescentaram as notas de rodapé e omitiram
i as palavras iniciais e finais de circunstância.

i
i
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políticos dominantes, e, noutra perspectiva, a crítica das próprias soluções


adoptadas pelo direito positivo em confronto com um tipo ideal de
processo.
Proponho-me discorrer sobre os princípios democrático e da lealdade
processual a propósito da legitimidade de soluções muito em voga na
investigação policial e criminal - no estrangeiro e também cá -
particularmente a utilização de agentes informadores, infiltrados e
provocadores, e bem assim dos criminosos arrependidos.

2. O princípio democrático

I - É pacífico que o princípio democrático não tem carácter puramente


formal, tem também e sobretudo um conteúdo material, de contornos
nem sempre bem definidos, porque em constante evolução, em resposta
às condições de cada tempo e de cada circunstância, mas inspirado em
ideais permanentes: o da suprema dignidade da pessoa humana e o da
igualdade de todos os cidadãos, igualdade perante a lei, de direitos e deve­
res, mas também e essencialmente igualdade de natureza, de dignidade.
Na concepção democrática da sociedade não há cidadãos que por
natureza sejam bons e cidadãos que sejam maus; não é, por isso,
admissível a estigmatização colectiva, de grupos, raças ou classes de
pessoas, em razão da sua maior ou menor apetência para o crime, porque
é pressuposto que a capacidade para praticar o bem e o mal está
«democraticamente» repartida, por igual.
A capacidade para o bem e para o mal está em cada um de nós como
uma possibilidade que as circunstâncias estimulam- «a ocasião faz o
herói e o ladrão» Por isso que a sociedade se deve organizar política e
juridicamente no sentido de evitar as tentações, de todos e de cada um,
senão impossibilitando-as, minimizando-as, pelo menos.
Acresce que a concepção de bem e de mal, e sobretudo de lícito e
de ilícito, de crime e de não crime, é relativa, está situada no tempo e no
espaço, porque é por essência cultural e consequentemente mutável.

II - Se assim é, ou pelo menos se assim é pressuposto, é de excluir


liminarmente como método de investigação criminal a provocação ao
crime.
Numa concepção aristocrática da sociedade pode considerar-se a
provocação ao crime como método legítimo para combater a
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criminalidade, ao aceitar-se que há pessoas que por natureza são inaptas


para o bem e para o respeito da lei e, por isso, que a provocação actua
como uma espécie de laboratório para as descobrir. A apetência para o
mal, para o crime, estaria de tal forma radicada na personalidade do
indíviduo que a provocação seria apenas uma causa secundária da sua
prática. O agente, criminoso por natureza, acabaria sempre por cometer
o crime, sendo apenas questão de tempo e de ocasião, pelo que a
provocação apenas precipita a actuação criminosa. «A ocasião faz o
ladrão» porque a pessoa já tem tendência para o mal e aproveita todas as
ocasiões para o praticar.
Não assim numa concepção democrática que, admitindo a fraqueza
humana, considera que a ocasião, na forma de provocação, não revela
apenas a apetência natural ou intrínseca para o crime, mas pode fazer
vacilar aquele que, como a grande maioria de nós, sendo capaz de roçar
os limites do ilícito, não os ultrapassa espontaneamente, não comete o
crime senão por causa da provocação. Raros os que merecem a veneração
devida aos Santos e as honras aos Heróis!

III - Numa perspectiva menos política e mais jurídica, embora a que


acabámos de expor jurídica seja também, a provocação é também
inaceitável como método de investigação criminal, como meio de
obtenção de provas.
E que a provocação não é apenas informativa, mas sobretudo
formativa, não revela o crime e o criminoso, mas cria o próprio crime e
o próprio criminoso e, por isso, é contrária à própria finalidade da
investigação criminal,uma vez que gera o seu próprio objecto. Por outra
parte, a actividade do agente provocador é em si mesma objectivamente
ilícita, pelo menos, e, por isso, as provas obtidas por esse meio não são
admissíveis, são provas proibidas. Com efeito, as provas obtidas por
actos expressamente proibidos por lei ou inconciliáveis com os princípios .
substanciais do processo penal ou com os princípios gerais do direito são
inadmissíveis (art°125° do CPP).
Há que ponderar que a ordem pública é mais perturbada pela
violação das regras fundamentais da dignidade e da rectidão da actuação
judiciária, pilares fundamentais da sociedade democrática, do que pela
não repressão de alguns crimes, por mais graves que sejam, pois
são sempre muitos, porventura a maioria, os que não são punidos, por
não descobertos, sejam quais forem os métodos de investigação utili­
zados.
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■—>> IV- Alguns autores e a jurisprudência de certos países1 socorrem-se


também do princípio da lealdade para fundamentar a ilegitimidade do
recurso aos agentes provocadores e consequente proibição da prova
obtida por esse meio. Não cremos que tal seja necessário, no que se refere
aos agentes provocadores, embora nos pareça correcto o recurso a esse
princípio quanto aos agentes infiltrados e informadores, como
explicitaremos de seguida.

3. O princípio da lealdade

I - Tenho vindo a defender que a lealdade é um princípio inerente à


estrutura do processo penal2, sobretudo porque considero que os princípios
deontológicos que regem os operadores judiciários integram de al­
gum modo os princípios jurídicos, mais não seja para iluminar o
intérprete na busca do espírito da lei, princípio reitor da interpretação
jurídica.
Reconheço evidentemente que o princípio tem contornos mal
definidos, o que prejudica a sua operacionalidade jurídica. Como escrevi
já, a lealdade não é uma noção jurídica autónoma, é sobretudo de
natureza essencialmente moral, e traduz uma maneira de ser da
investigação e obtenção das provas em conformidade com o respeito dos
direitos da pessoa e a dignidade da justiça3, A actuação desleal como
meio de investigação é sempre reprovável moralmente, embora nem
sempre sancionada juridicamente. É sobretudo lamentável a tolerância
frequente das autoridades responsáveis face aos abusos, o que traduz
desrespeito e incompreensão pelos valores inerentes à pessoa humana e
à dignidade da Justiça e é manifestação das suas próprias limitações
morais e intelectuais.
A lealdade pretende imprimir a priori toda uma atitude de respeito
pela dignidade das pessoas e da Justiça e é o fundamento das proibições
de prova, mas não só. E nesta perspectiva que me parece que o recurso a
agentes informadores e agentes infiltrados viola o princípio da lealdade

1 Cristian De Valkeneer,« Limites et Importance de Ia Provocation en Droit Pénal»,


in Le Journal des Proces, de 14/10/94,pp. 26 a 30.
2 Curso de Processo Pezia/,I,2*ed.,pp.61 a 63.
3 Ob.cit.,p.62. Cf. também Pierre Bouzat, «La loyauté dans la recherche des
preuvesw.in Problèmes Contemporains de Procédure Pénale,Paris,1964,p. 172.
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e pode acarretar como consequência a proibição das provas obtidas por


essa via.
Devo anotar, porém, e desde já, que a problemática dos agentes
informadores e infiltrados não tem a mesma tensão da dos agentes
provocadores; estes são sempre inadmissíveis, porque agentes do próprio
crime, e em circunstância alguma se pode admitir que a Justiça actue por
meios ilícitos e que o combate da criminalidade se possa fazer por meios
criminosos, o que redundaria em que a Justiça e os criminosos se
distinguissem apenas pela quantidade e não pela qualidade dos seus
actos, sendo que bem poderia suceder serem mais os actos criminosos da
Justiça do que aqueles que buscam ou conseguem combater.
Os agentes informadores e infiltrados não participam na prática do
crime, a sua actividade não é constitutiva do crime, mas apenas informativa,
e,por isso, é de admitir, que no limite, se possa recorrer a estes meios de
investigação.

II - Dizemos no limite, ou seja, quando a inteligência dos agentes da


Justiça ou os meios sejam insuficientes para afrontar com sucesso a
actividade dos criminosos e a criminalidade ponha gravemente em causa
os valores fundamentais que à Justiça criminal cabe tutelar. E que uma
sociedade organizada na base do respeito pelos valores da dignidade
humana, que respeite e promova os valores da amizade e da solidariedade,
que vise a construção de um país mais livre, mais justo e mais fraterno*,
não pode consentir que o exercício de uma função soberana possa
constituir a causa da quebra de solidariedade entre os seus membros,
possa ser motivo da desconfiança no próximo, conduzir ao egoismo e ao
isolamento.
A sociedade que assim se organize, que consinta a delação organizada
e a estimule, tem na sua própria estrutura os germens da sua destruição.
E da história.

4. O criminoso «arrependido»

I - Próximo dos institutos referidos é o do prémio concedido ao


criminoso arrependido e delator: o prémio pela delação.

4 Preâmbulo da Constituição da República Portuguesa.


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Aquele que erra e se arrepende merece ter um tratamento penal mais l


favorável, enquanto o arrependimento deva ser considerado como um
primeiro passo para a sua conformação aos valores que as leis consagram
e tutelam, enquanto o arrependimento representa para a sociedade a
esperança de que aquele seu membro não mais a afrontará pela via do
crime, ou constitui, pelo menos, um voto de confiança na pessoa e no
arrependimento como meio de recuperação : está desde então atingida
uma das finalidades da pena criminal. Não assim quando o
«arrependimento» nada representa de vontade de conformação com a lei,
mas traduz tão-só a exteriorização de pusilanimidade e de traição.
Não consigo entender que uma sociedade que cultiva os valores
democráticos, e por isso e antes de tudo os valores humanos fundamentais,
possa premiar o criminoso delator, possa negociar a perfídia em nome da
própria Justiça.

II - Mas também no puro plano da actuação processual, o prémio


pela delação do arrependido suscita graves e complexos problemas
jurídicos. Desde logo no que respeita à fiabilidade do depoimento do
arrependido e aos efeitos conexos, nomeadamente para a imagem da
Justiça, resultantes da condenação que assente no depoimento suspeito,
e suspeito porque «pago», porque contrapartida do prémio e não prestado
em cumprimento do dever cívico de colaboração com a Justiça. Acrescem
os custos dos programas de protecção dos arrependidos e dos seus
familiares, que são sempre necessários.
Mas não só. O «arrependimento e a delação » são o fruto de um
negócio com a justiça. Por isso, talvez, que o instituto tenha surgido
primeiro nos EUA onde impera no processo penal o princípio da
oportunidade.

III - O princípio da oportunidade, em forma mitigada, foi consagrado


pelo Código de Processo Penal de 1987 e são suas manifestações a
suspensão provisória do processo (art. 28 Io), o arquivamento do inquérito
em caso de dispensa ou isenção da pena (art°. 280°), o processo
sumaríssimo (arts. 392° e ss.) e a limitação dos poderes jurisdicionais pelo
Ministério Público, nos termos do art. 16°, n°s 3 e 4. Importa-nos agora
a suspensão provisória do processo, principal manifestação daquele
princípio.
Ora, a suspensão provisória do processo é um acto processual
complexo que exige a conjugação de vontades do M°P° e do Juiz, pelo

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menos assim o entendo. A concordância do juiz, que a lei exige, não é um


acto meramente formal, de acerto legal dos respectivos pressupostos;
implica o juízo da própria oportunidade ou conveniência da medida.
Aliás, a justificação do princípio da oportunidade no nosso direito
foi assumida, no essencial, como um meio de realização dos fins do
próprio direito penal, evitando a estigmatização do condenado, ainda que
também por razões de economia processual (v.g. nos art°s 16°,n°3, e
392°). As injunções e regras de conduta oponíveis ao arguido na suspensão
provisória do processo são, de certo modo, medidas alternativas da pena
e visam realizar os mesmos fins, embora por outros meios menos
gravosos para o arguido. Não é isso, porém, que sucede nos casos em que
a suspensão é, antes de tudo, um prémio pela delação.

IV - O recurso a um tal meio para a investigação de quaisquer crimes


vai possibilitar e incentivar na fase pré-processual da investigação
policial e na fase do inquérito a negociação com o suspeito para que o
denuncie e facilite a prova do próprio crime - o que seria de somenos - mas
também os dos seus comparticipantes e dos crimes conexos. Promessa do
prémio em troca da denúncia e das provas, promessa de vantagem
legalmente inadmissível, porém, porque a concessão do prémio não
depende nem das autoridades policiais nem apenas do Ministério Público,
mas exige a concordância do juiz, no momento processual próprio, e os
seus critérios são unicamente os da realização da Justiça no caso e não
apenas nem sobretudo as conveniências da investigação, embora nalguns
casos esta possa ser um dos seus pressupostos.
Dir-se-á que nem as polícias nem o Ministério Público prometerão
o que não podem dar, apenas advertirão da possibilidade de que tal possa
suceder e de que se esforçarão para isso. Receio bem que a tentação da
eficácia na investigação possa nalgumas circunstâncias levar a que as
autoridades ultrapassem os limites e penso por isso que mais vale
prevenir5.

5 O art° 9o da Lei n° 36/94, de 29 de Setembro, dispõe que no crime de corrupção


activa, o Ministério Público, com a concordância do juiz de instrução, pode suspender
provisoriamente o processo, se, entre outros pressupostos, o arguido tiver « denunciado
o crime ou contribuído decisivamente para a descoberta da verdade». O crime a que se
refere este preceito é o crime de corrupção activa e, por isso, o prémio só pode ser
concedido quando o arguido se tiver denunciado a si próprio e aos seus comparticipantes
ou ti ver contribuído para a descoberta da verdade acerca do próprio crime por si cometido.
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5. Conclusão

Tenho para mim que o princípio democrático que inspira e legitima


a nossa ordem jurídica não tolera, seja qual for o título, meios de
investigação que passem pelo arguido infamar-se a si próprio, ainda que
a troco de paga, nem pela denúncia dos seus cúmplices e correlegionários.
Eram métodos próprios dos sistemas inquisitórios.
Com os meios preventivos e repressivos de que o Estado moderno
se dotou é hoje absolutamente inadmissível o recurso a tais métodos de
investigação policial e processual. Por isso que o sistema acusatório
moderno se diz também sistema democrático.
O princípio da lealdade é porventura ainda apenas um princípio
deontológico, moral, mas não tenhamos ilusões que enquanto não estiver
bem claro nas leis e não entrar bem fundo nas ideias e nos costumes que
nem a confissão do arguido, mesmo em se tratando do odioso crime de
corrupção, nem a denúncia dos corresponsáveis não interessa à Justiça,
enquanto isto não for consciência comum, sempre a polícia, qualquer
polícia do mundo, sobretudo onde intervêm ideologias e apartheids
raciais ou sociais, violará a dignidade pessoal e procurará penetrar na
consciência do suspeito, decerto por brio e eficácia profissional, mas não
só6.
Há que travar este combate que a função do jurista em democracia
não é somente a de conhecer as leis que em dado momento o poder
político criou. As leis são mutáveis, só os princípios permanecem.

Lisboa, 20 de Dezembro de 1994.

O arto 9° da Lei n° 36/94 nada tem que ver com o crime de corrupção passiva, que é crime
autónomo do de corrupção activa. Parece-me claro que as autoridades de investigação não
se contentarão com a denúncia e provas do crime do próprio.
6D. António Ferreira Gomes, A Sociedade eo Trabalho: Democracia, Sindicalismo,
Justiça e Paz, «■ Direito e Justiça»,Vol.I,n°1,1980,p. 12.

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