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E RESPONSABILIDADE PENAL
previsibilidade do resultado . No caso da SIDA, também não há conexão certo tipo de comportamento da vítima . É ainda homicídio introduzir um
directa, mas a conexão com a morte da vítima é inevitável . É igualmente factor da morte num indivíduo, a médio ou a longo prazo, mesmo que a
verdade que há uma probabilidade de intensidade não muito elevada de a duração desse prazo diminua as probabilidades de a morte ocorrer em vir-
conduta apta para contagiar (a relação sexual ou até o contacto com o tude desse mesmo factor? Alheando-nos dos casos de SIDA, perguntar-
sangue da vítima de seringa infectada) ser efectivamente danosa, concre- -se-á se a provocação de urna hipotética alteração genética num feto, que
tizando a contaminação. Por outro lado, como se disse, pode haver, também, predisponha, após o nascimento, a criança a contrair uma doença fatal,
uma "certa responsabilidade" da vítima nos casos de relações sexuais constitui ainda um homicídio?
voluntárias na sua própria colocação em perigo . Quando analisamos este problema . é o aspecto causal da acção de
Deste modo, a incerteza quanto à contaminação e os outros factores matar que está em discussão . O que desde logo nos intriga nestas situações
referidos retiram ao acto transmissor o imediato significado de homicídio, é não estarmos suficientemente preparados, do ponto de vista ético, para
apesar de a contaminação conduzir ao desencadeamento de um processo definir o conteúdo objectivo do "não matarás" .
causal com um percurso natural, mas irreversivelmente mortal . Por outro lado, é a relatividade inevitável da causalidade que nos sur-
Por outro lado, como também se referiu, o contexto social da con- preende . Matar não pode ser suscitar qualquer condição de morte futura,
duta, nomeadamente o relacionamento sexual ou a troca de seringas num como, por exemplo absurdo, dar vida a um ser mortal ou mesmo determi
ineiu de iuxicudependzncia, associa o acto transmissor a uma mera lógica nar uma causa futura de morte por manipulação do código genético ou por
de risco consentido, aos riscos gerais da vida . A "inevitabilidade" da morte transmissão de uma doença fatal durante a gravidez .
após um longo processo adequa-se à vulnerabilidade da vida humana . Por E, além disso, qual é o significado do comportamento da vítima?
seu turno, os novos conhecimentos médicos sobre a doença sugerem uma Trata-se de um consentimento relevante'?
cronicidade que adia a morte para um futuro cada vez mais longínquo . O Matar não tem um significado natural isticamente causal . mas sim um
alargamento, através de medicamentos, da duração da vida, permite-nos significado valorativo . Pressupondo a causalidade, matar exige um domí-
questionar se a probabilidade de morrer devido à doença (e não devido a nio específico sobre o processo causal que permita considerar causal a
outras circunstâncias) não estará altamente enfraquecida, em função da acção de uma pessoa e atribuir-lhe responsabilidade por ela .
possibilidade de interferência de outros factores durante o hiato temporal Estará nessas condições a transmissão do vírus da SIDA por via
entre a conduta e o evento . E, finalmente, o eventual consentimento da sexual . ou por contaminação de seringas'?
vítima no relacionamento sexual leva-nos a perguntar se, de alguma Em suma, impõe-se responder à questão do significado do processo
forma, não há um domínio do processo causal pela própria vítima que o causal desencadeado pela SIDA relativamente ao conceito típico de homi-
desvia do seu ponto originário - o comportamento do indivíduo infectado .
cídio .
Está, assim, manifestamente em causa que seja linear a caracteriza-
ção do acto transmissor como matar uma pessoa, ainda que o autor aja com 3. A tendência maioritária da doutrina penal é considerar que a impu-
dolo . Com efeito, mesmo o dolo de homicídio não bastará para suprir as
tação objectiva se justifica nestes casos de transmissão da SIDA . Schü-
debilidades da caracterização causal da conduta, porque não há, em geral, nemann resolve o problema através do conceito de autoria e do domínio
crime doloso onde o processo causal não for reconhecido como relevante
do facto' . O agente infectado tem um superior domínio do facto, através
ou dominado pelo agente, tendo de existir uma congruência entre o
tipo do conhecimento privilegiado de que dispõe . Um tal conhecimento torna-o,
subjectivo e o tipo objectivo . na transmissão da SIDA através de relações sexuais . uma espécie de autor
mediato . relativamente ao comportamento sexual do parceiro-vítima .
2 . Este é, por conseguinte, o primeiro grande problema que os casos essencial para que a contaminação se verifique . Mas Schünemann admite,
mais frequentes de transmissão do vírus da SIDA colocam ao Direito
ainda assim . que a imputação objectiva seja excluída nos casos de contac-
Penal e à Ética. Trata-se, como se disse, de delimitar, na nossa sociedade,
as fronteiras do homicídio, o significado de matar uma pessoa, dolosa ou
1 SCHUNEMANN, BERSD . "Problemas juridico-penales relacionados con el SIDA'- .
negligentemente, perante a inevitabilidade da morte e ainda, por vezes, um
em Problemas jnriclico-penales del SIDA . or g . Mir Puig . 1993 . p . 1 1 e ss .
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tos aventureiros com indivíduos pertencentes a grupos de risco ou de troca verdadeiro dever jurídico de prestar informação sobre a situação de saúde
de seringas num meio de toxicodependentes . de quem exerça actividades de prostituição .
Nessas situações, há uma predisposição da vítima para a lesão (auto- Todavia, o dilema é complexo : por um lado, é difícil reconhecer um
lesão) ao procurar a fonte do perigo - o agente infectado . O superior verdadeiro dever jurídico de informar sobre a infecção com o H.I .V. que
conhecimento do agente, aí, está limitado pela elevada previsibilidade que justificaria a imputação objectiva porque seria compatível com uma res-
a vítima tem do contágio . Schünemann defende a impunidade em casos ponsabilidade não partilhada do agente pelos efeitos do seu relaciona-
excepcionais, mas que outros autores generalizam, em face da propaganda mento sexual com a vítima e permitiria valorar como verdadeiro domínio
a
do sexo seguro e dos conhecimentos normais sobre sexualidade e SIDA . do facto, em termos sociais, o seu comportamento ; por outro lado, negar
risco, a im-
Porém, a posição que transfere para a vítima a necessidade de auto- imputação objectiva, aceitando, nesses casos de contactos de
protecção, tratando o agente como mera fonte de perigo, não colhe unani- punidade dos comportamentos seria admitir uma clareira de irresponsabi-
midade nem se pode considerar maioritária na doutrina penal . Com efeito, lidade dos agentes e de desprotecção das vítimas . E tal clareira abrangeria,
ela poria em causa princípios de auto-responsabilização relativamente a necessariamente, todos os terceiros (médicos, familiares, colegas, etc.) que
pessoas que têm um concreto conhecimento e domínio da situação em que sabendo do estado de saúde do agente colaborassem, silenciosamente -
se encontram . nada fazendo, nada impedindo -, no "suicídio" ou "autolesão" dos "clien-
Frisch2 . concordando com urna sentença úu BGH que se afastou da tes" em busca de contactos aventureiros .
tese da impunidade destes casos, afirma : "Na verdade, haveria um afasta- Seria uma lógica de autonomia, aliada a uma lógica de silêncio e de
mento de princípios elementares da responsabilidade pela morte.
evitação do
perigo se o peso da protecção perante certos perigos se transferisse
de É um tipo de situação em que a própria demissão do legislador é
quem causa o perigo para quem é sujeito ao perigo" . Nestas situações
. conspirativa, pois, a pretexto de uma não regulamentação dos modos de
porém, há uma questão prévia que não é fácil ultrapassar para relacionamento sexual, se permite que circule uma não informação con-
concluir
pela imputação objectiva - não é proibido o relacionamento
sexual dos creta sobre quem é portador da doença que, em última análise, cria um
agentes infectados com a SIDA e nem sequer existe um dever
legalmente grupo alargado de potenciais vítimas - todas as que, embora não procu-
consagrado de comunicação e de informação sobre tal estado
infeccioso . rando elas próprias os contactos aventureiros, venham, devido a relações
sexuais até mesmo estáveis com outras pessoas (também sem conheci-
4. No caso português . é claro que a SIDA não é uma
doença de mento concreto do facto de terem sido infectadas), a ser contagiadas sem
comunicação obrigatória3. Poder-se-á, então, vir a imputar a responsabili- que a ninguém possa ser atribuída a responsabilidade .
dade pela infecção de .terceiro. : ac ente5 integrados num inilieu
de sexo
profissional e reconhecidamente pertencentes a uma categoria
de risco, 5. Estaremos, na realidade, perante uma ideia pérfida de adequação
quando se integram, aparentemente, num espaço não tutelado peio
direito social que "branqueia" práticas homicidas? E, em face desta desregulação
tanto a sua actividade como a comunicação da sua doença? legal, não deverá o Direito Penal reconhecer, pura e simplesmente, que
A negação da referida transferência de responsabilidade não há vontade incriminadora relativamente aos agentes infectados nos
para a
vítima pressupõe, de algum modo, o controlo legal dessa actividade
ou do casos de comportamentos sexualmente aventureiros da vítima?
próprio relacionamento sexual do agente infectado com
a SIDA . Neste A interpretação que esta situação coloca ao Direito tem duas respos-
momento, porém, é difícil concluir que haja na legislação
portuguesa um tas : uma de jure condito e outra de ,jure condendo . No plano do direito
vigente, não é possível deixar de imputar objectivamente o comporta-
2 FRisCH, mento homicida aos que actuem, eles próprios, como fonte de perigo para
outros, não os informando de que são portadores da doença mas detendo
Wot.FGA .G, - Riskanter Geschechtsverkehr Bines
HIV-Infizierten ais
Straftat?", em Jurisrische Schule, 1990, _5, p .
um conhecimento exacto sobre o seu estado, enquanto os parceiros sexuais
369 .
3 Cf . Lei n .° 2036 de 1949 e Portaria
n .° 1071/98, em DR, I Série . n .° 801, de 31 de
Dezembro . No primeiro diploma, existem
disposições no sentido de proibir actos de que apenas podem contar em abstracto com tal perigo . Numa perspectiva de
possa resultar o contágio às
pessoas infectadas com certas doenças (Base IV) . direito a constituir, impõe-se a criação de deveres legais de informação às
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Transmissão da S/DA e Responsabilidade Penal
contraída, que isso não seja provado ou que as vítimas até já estejam perigo comum (em que a pena varia entre 1 e 8 anos de prisão), um evento
contaminadas. de perigo menos concreto .
Na primeira concepção do perigo, a concretização exigida é mínima . A diferença da medida da pena pode, porém, justificar-se pela exis-
ultrapassando-se as essenciais dificuldades de uma prova da causalidade - tência, nas ofensas corporais, de um elemento de agressão directa ao corpo
o perigo para a vida ou integridade física é reduzido à criação efectiva das da vítima através de uma conduta violenta, não devendo este elemento sis
condições adequadas para a contaminação e sua subsequente disseminação . temático ser bastante para concluir por uma menor concretização do evento-
Na segunda perspectiva, há um elemento concretizaçãr mais acentuado - -perigo no artigo 283 .° do Código Penal, em que se prevê que o agente
o evento-perigo é a efectiva contaminação das vítimas, o facto de elas se pratique, geralmente, actividades neutras sem relação directa com a vítima
tornarem portadoras do vírus .
e em que o dolo se associa a uma inconsideração grave e não a um efectivo
O princípio da legalidade impõe esta última interpretação, na medida propósito (que já deverá consubstanciar dolo de dano) .
em que só se verifica a propagação (e não mera possibilidade de propaga- O recurso ao crime de ofensas corporais perigosas suscita também as
ção) quando as vítimas contraírem a doença . A propagação pressupõe uma mesmas dificuldades relacionadas com a prova do nexo de causalidade e a
actividade de multiplicação da enfermidade (atingindo-se uma multiplici- prova do dolo, tendo apenas a vantagem de afastar as dificuldades de uma
dade de vítimas ou pelo menos mais do que uma) . caracterizacão como homicídio de várias condutas de transmissão do vírus
A contracção dc, úoct}"u pcla vítillia é. segunáo o sentido das pala-
da SIDA, nomeadamente por ser difícil estabelecer a relação directa com
vras, elemento essencial do tipo e não apenas uma circunstância agravante .
a morte da vítima .
Se as vítimas apenas foram postas em contacto com o agente da doença Em qualquer caso . a morte da vítima agravará a responsabilidade
mas não a chegaram a contrair, não se pode falar de propagação mas .
penal quer se trate de agravação pelo resultado em sede de crime de perigo
quando muito, de tentativa, se a propagação for dolosa .
comum ou em sede de ofensas corporais (artigos 285 .° e 145 .°, respectiva-
Poder-se-ia, na realidade, ter antecipado a tutela do crime consumado mente)~ .
doloso até à situação que corresponde, na actual configuração, à tentativa,
mas isso com a contrapartida de afastar a sua realização a título de
negli- 9. O conjunto de condutas susceptíveis de pôr em causa a vida e a
gência .
integridade física através da transmissão da SIDA não se limita aos con-
Uma vez que se pretendeu admitir como conduta típica de propa- textos de relacionamento sexual directo, de troca de seringas ou até mesmo
gação, para além da realização global por negligência (artigo 283 .°, n .° 3),
ao quadro de uma disseminação, geralmente ligada à utilização de produ-
uma simbiose de dolo quanto à conduta perigosa e negligência quanto à
tos de sangue que contenham o HIV . Há todo um grupo de comporta-
criação do perigo (artigo 283 .", tl . - 2), o que na realidade não é mais
do mentos reveladores do poder de controlo sobre as causas da transmissão o ,
que uma espécie de negligência grosseira ou até mesmo uma fórmula para
em que a característica dominante é a passividade . isto é . a omissão . Há .
abranger todos os casos limítrofes do dolo, então não é concebível
uma n a verdade, uma problemática específica da omissão em conexão com a
antecipação generalizada da tutela.
transmissão de SIDA, sendo necessário averiguar até que ponto se justifica
a intervenção penal .
8. A limitação de uma norma como o artigo 283 .°, n .° 1, do Código Poderemos distinguir . sem pretensão de exaustividade . três tipos de
Penal a condutas muito específicas de agentes com certo desempenho
situações : a omissão dos agentes contaminados quer quanto à prestação da
profissional não satisfaz, obviamente, a necessidade de um tipo incrimina- informação quer quanto à obtenção de informação para si próprios . a
dor de perigo subsidiário do homicídio para os casos mais correntes de
transmissão da SIDA .
A única solução alternativa é a aplicação do artigo 144.°, alíneas c) Em todos estes casos a ocorrência posterior da morte levanta delicados problemas
Consti-
ou d). A moldura penal mais grave do artigo 144 .°, alíneas c) processuais e relacionados com a prescrição . (sobre isso, cf . Acórdão do Tribunal
ou d), DR, Il Série, de 10 de Janeiro de 2003) .
relativamente à do artigo 283 .°, n .° 2, levanta de novo, porém, o problema tucional n .° 483/2002,
de saber se o legislador não teria representado, nos " Utilizando . aqui . a expressão de Schünemann em "Problemas juridico-penales
chamados crimes de relacionados con el SIDA", cit ., p . 54 ss .
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