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TRANSMISSAO DA SIDA

E RESPONSABILIDADE PENAL

MARIA FERNANDA PALMA*

1. A transmissão do vírus da SIDA por via sexual ou através de


outros meios ;tso de seringas infectadaç ou plasma. contaminado - re\,c!
o carácter instável do conceito de homicídio introduzindo interrogações
onde parecia existirem certezas .
Com efeito, admitindo-se que a contaminação com o vírus da SIDA
provoca uma deficiência do sistema imunitário que permite o apareci-
mento de várias doenças graves que conduzem, irreversivelmente, à
morte, é desde logo questionável se este tipo de processo causal em cadeia
(sucessão de infecções) geralmente demorado e baseado em relações con-
sentidas corresponde ao tipo de causalidade e de domínio sobre o corpo da
vítima subjacente ao homicídio, em que geralmente se concebe uma con-
duta imediatamente causal e sem posibilidade de defesa pela vítima . Na
realidade, o paradoxo destes casos resulta de a morte da vítima não ser
directa consequência da contaminação . mas ser inevitável consequência da
incapacidade do organismo resistir às doenças contraídas, como se a
contaminação traçasse um destino irreversível para o organismo mas não
actuasse de modo causal relativamente à morte .
O facto de a possibilidade de morte da vítima após a contaminação
depender de um processo natural não comandado directamente pelo agente
suscita uma analogia entre estes casos e todos aqueles em que uma remota
acção inaugura um caminho irreversível sem, no entanto, se poder afirmar
dela que é mais do que mera conditio sine qua non do resultado . A pessoa
que é ligeiramente ferida e contrai tétano ou a pessoa que é exposta a uma
radiação e desenvolve um cancro configuram casos em que a afirmação da
causalidade é duvidosa devido à falta de conexão directa e à pouca

* Professora Associada da Faculdade de Direito de Lisboa, Juíza do Tribunal Cons-


titucional .
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previsibilidade do resultado . No caso da SIDA, também não há conexão certo tipo de comportamento da vítima . É ainda homicídio introduzir um
directa, mas a conexão com a morte da vítima é inevitável . É igualmente factor da morte num indivíduo, a médio ou a longo prazo, mesmo que a
verdade que há uma probabilidade de intensidade não muito elevada de a duração desse prazo diminua as probabilidades de a morte ocorrer em vir-
conduta apta para contagiar (a relação sexual ou até o contacto com o tude desse mesmo factor? Alheando-nos dos casos de SIDA, perguntar-
sangue da vítima de seringa infectada) ser efectivamente danosa, concre- -se-á se a provocação de urna hipotética alteração genética num feto, que
tizando a contaminação. Por outro lado, como se disse, pode haver, também, predisponha, após o nascimento, a criança a contrair uma doença fatal,
uma "certa responsabilidade" da vítima nos casos de relações sexuais constitui ainda um homicídio?
voluntárias na sua própria colocação em perigo . Quando analisamos este problema . é o aspecto causal da acção de
Deste modo, a incerteza quanto à contaminação e os outros factores matar que está em discussão . O que desde logo nos intriga nestas situações
referidos retiram ao acto transmissor o imediato significado de homicídio, é não estarmos suficientemente preparados, do ponto de vista ético, para
apesar de a contaminação conduzir ao desencadeamento de um processo definir o conteúdo objectivo do "não matarás" .
causal com um percurso natural, mas irreversivelmente mortal . Por outro lado, é a relatividade inevitável da causalidade que nos sur-
Por outro lado, como também se referiu, o contexto social da con- preende . Matar não pode ser suscitar qualquer condição de morte futura,
duta, nomeadamente o relacionamento sexual ou a troca de seringas num como, por exemplo absurdo, dar vida a um ser mortal ou mesmo determi
ineiu de iuxicudependzncia, associa o acto transmissor a uma mera lógica nar uma causa futura de morte por manipulação do código genético ou por
de risco consentido, aos riscos gerais da vida . A "inevitabilidade" da morte transmissão de uma doença fatal durante a gravidez .
após um longo processo adequa-se à vulnerabilidade da vida humana . Por E, além disso, qual é o significado do comportamento da vítima?
seu turno, os novos conhecimentos médicos sobre a doença sugerem uma Trata-se de um consentimento relevante'?
cronicidade que adia a morte para um futuro cada vez mais longínquo . O Matar não tem um significado natural isticamente causal . mas sim um
alargamento, através de medicamentos, da duração da vida, permite-nos significado valorativo . Pressupondo a causalidade, matar exige um domí-
questionar se a probabilidade de morrer devido à doença (e não devido a nio específico sobre o processo causal que permita considerar causal a
outras circunstâncias) não estará altamente enfraquecida, em função da acção de uma pessoa e atribuir-lhe responsabilidade por ela .
possibilidade de interferência de outros factores durante o hiato temporal Estará nessas condições a transmissão do vírus da SIDA por via
entre a conduta e o evento . E, finalmente, o eventual consentimento da sexual . ou por contaminação de seringas'?
vítima no relacionamento sexual leva-nos a perguntar se, de alguma Em suma, impõe-se responder à questão do significado do processo
forma, não há um domínio do processo causal pela própria vítima que o causal desencadeado pela SIDA relativamente ao conceito típico de homi-
desvia do seu ponto originário - o comportamento do indivíduo infectado .
cídio .
Está, assim, manifestamente em causa que seja linear a caracteriza-
ção do acto transmissor como matar uma pessoa, ainda que o autor aja com 3. A tendência maioritária da doutrina penal é considerar que a impu-
dolo . Com efeito, mesmo o dolo de homicídio não bastará para suprir as
tação objectiva se justifica nestes casos de transmissão da SIDA . Schü-
debilidades da caracterização causal da conduta, porque não há, em geral, nemann resolve o problema através do conceito de autoria e do domínio
crime doloso onde o processo causal não for reconhecido como relevante
do facto' . O agente infectado tem um superior domínio do facto, através
ou dominado pelo agente, tendo de existir uma congruência entre o
tipo do conhecimento privilegiado de que dispõe . Um tal conhecimento torna-o,
subjectivo e o tipo objectivo . na transmissão da SIDA através de relações sexuais . uma espécie de autor
mediato . relativamente ao comportamento sexual do parceiro-vítima .
2 . Este é, por conseguinte, o primeiro grande problema que os casos essencial para que a contaminação se verifique . Mas Schünemann admite,
mais frequentes de transmissão do vírus da SIDA colocam ao Direito
ainda assim . que a imputação objectiva seja excluída nos casos de contac-
Penal e à Ética. Trata-se, como se disse, de delimitar, na nossa sociedade,
as fronteiras do homicídio, o significado de matar uma pessoa, dolosa ou
1 SCHUNEMANN, BERSD . "Problemas juridico-penales relacionados con el SIDA'- .
negligentemente, perante a inevitabilidade da morte e ainda, por vezes, um
em Problemas jnriclico-penales del SIDA . or g . Mir Puig . 1993 . p . 1 1 e ss .
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tos aventureiros com indivíduos pertencentes a grupos de risco ou de troca verdadeiro dever jurídico de prestar informação sobre a situação de saúde
de seringas num meio de toxicodependentes . de quem exerça actividades de prostituição .
Nessas situações, há uma predisposição da vítima para a lesão (auto- Todavia, o dilema é complexo : por um lado, é difícil reconhecer um
lesão) ao procurar a fonte do perigo - o agente infectado . O superior verdadeiro dever jurídico de informar sobre a infecção com o H.I .V. que
conhecimento do agente, aí, está limitado pela elevada previsibilidade que justificaria a imputação objectiva porque seria compatível com uma res-
a vítima tem do contágio . Schünemann defende a impunidade em casos ponsabilidade não partilhada do agente pelos efeitos do seu relaciona-
excepcionais, mas que outros autores generalizam, em face da propaganda mento sexual com a vítima e permitiria valorar como verdadeiro domínio
a
do sexo seguro e dos conhecimentos normais sobre sexualidade e SIDA . do facto, em termos sociais, o seu comportamento ; por outro lado, negar
risco, a im-
Porém, a posição que transfere para a vítima a necessidade de auto- imputação objectiva, aceitando, nesses casos de contactos de
protecção, tratando o agente como mera fonte de perigo, não colhe unani- punidade dos comportamentos seria admitir uma clareira de irresponsabi-
midade nem se pode considerar maioritária na doutrina penal . Com efeito, lidade dos agentes e de desprotecção das vítimas . E tal clareira abrangeria,
ela poria em causa princípios de auto-responsabilização relativamente a necessariamente, todos os terceiros (médicos, familiares, colegas, etc.) que
pessoas que têm um concreto conhecimento e domínio da situação em que sabendo do estado de saúde do agente colaborassem, silenciosamente -
se encontram . nada fazendo, nada impedindo -, no "suicídio" ou "autolesão" dos "clien-
Frisch2 . concordando com urna sentença úu BGH que se afastou da tes" em busca de contactos aventureiros .
tese da impunidade destes casos, afirma : "Na verdade, haveria um afasta- Seria uma lógica de autonomia, aliada a uma lógica de silêncio e de
mento de princípios elementares da responsabilidade pela morte.
evitação do
perigo se o peso da protecção perante certos perigos se transferisse
de É um tipo de situação em que a própria demissão do legislador é
quem causa o perigo para quem é sujeito ao perigo" . Nestas situações
. conspirativa, pois, a pretexto de uma não regulamentação dos modos de
porém, há uma questão prévia que não é fácil ultrapassar para relacionamento sexual, se permite que circule uma não informação con-
concluir
pela imputação objectiva - não é proibido o relacionamento
sexual dos creta sobre quem é portador da doença que, em última análise, cria um
agentes infectados com a SIDA e nem sequer existe um dever
legalmente grupo alargado de potenciais vítimas - todas as que, embora não procu-
consagrado de comunicação e de informação sobre tal estado
infeccioso . rando elas próprias os contactos aventureiros, venham, devido a relações
sexuais até mesmo estáveis com outras pessoas (também sem conheci-
4. No caso português . é claro que a SIDA não é uma
doença de mento concreto do facto de terem sido infectadas), a ser contagiadas sem
comunicação obrigatória3. Poder-se-á, então, vir a imputar a responsabili- que a ninguém possa ser atribuída a responsabilidade .
dade pela infecção de .terceiro. : ac ente5 integrados num inilieu
de sexo
profissional e reconhecidamente pertencentes a uma categoria
de risco, 5. Estaremos, na realidade, perante uma ideia pérfida de adequação
quando se integram, aparentemente, num espaço não tutelado peio
direito social que "branqueia" práticas homicidas? E, em face desta desregulação
tanto a sua actividade como a comunicação da sua doença? legal, não deverá o Direito Penal reconhecer, pura e simplesmente, que
A negação da referida transferência de responsabilidade não há vontade incriminadora relativamente aos agentes infectados nos
para a
vítima pressupõe, de algum modo, o controlo legal dessa actividade
ou do casos de comportamentos sexualmente aventureiros da vítima?
próprio relacionamento sexual do agente infectado com
a SIDA . Neste A interpretação que esta situação coloca ao Direito tem duas respos-
momento, porém, é difícil concluir que haja na legislação
portuguesa um tas : uma de jure condito e outra de ,jure condendo . No plano do direito
vigente, não é possível deixar de imputar objectivamente o comporta-
2 FRisCH, mento homicida aos que actuem, eles próprios, como fonte de perigo para
outros, não os informando de que são portadores da doença mas detendo
Wot.FGA .G, - Riskanter Geschechtsverkehr Bines
HIV-Infizierten ais
Straftat?", em Jurisrische Schule, 1990, _5, p .
um conhecimento exacto sobre o seu estado, enquanto os parceiros sexuais
369 .
3 Cf . Lei n .° 2036 de 1949 e Portaria
n .° 1071/98, em DR, I Série . n .° 801, de 31 de
Dezembro . No primeiro diploma, existem
disposições no sentido de proibir actos de que apenas podem contar em abstracto com tal perigo . Numa perspectiva de
possa resultar o contágio às
pessoas infectadas com certas doenças (Base IV) . direito a constituir, impõe-se a criação de deveres legais de informação às
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Transmissão da S/DA e Responsabilidade Penal

vítimas e de comunicação de tal doença às autoridades para todos os que


e que não sejam as expectativas comuns com que se confronta na decisão
tenham actividades profissionais de relacionamento sexual ou em que espe-
de agir.
cificamente se verifique um acentuado perigo de contágios . É necessária a
Por outro lado, sempre se entendeu que a existência inequívoca de
intervenção da lei nesse espaço desregulado, não para proteger a credibi-
dolo directo em situações de risco mínimo, mas ainda risco proibido, não
lidade do negócio da prostituição, mas para proteger a sociedade . Onde
impediria a qualificação do crime como doloso, demonstrando-se a rela-
não há informação nem protecção deve passar a existir regulação e controlo .
tiva autonomia da intensidade da causalidade em face da intensidade do
Só assim será possível sustentar, indiscutivelmente, posições de garante
de dolo . Assim, por exemplo, quem dispara a uma distância enorme, com
terceiros e cortar pela raiz a conspiração de silêncio que a sociedade e o acertar . mas esperando acertar na vítima,
uma probabilidade mínima de
Direito instauraram em redor da transmissão da SIDA.
realiza um homicídio doloso . Nesse tipo de casos, apenas poderá estar em
questão a verificação de dolo eventual, por se admitir que o agente con-
6. A questão da qualificação como homicídio destas condutas de-
fiaria na não produção do resultado . Mas não estando em causa qualquer
pende ainda da avaliação da chamada imputação subjectiva, nomeada-
verdadeira adequação social do relacionamento sexual do agente com
mente das possibilidades de afirmação do dolo de homicídio.
SIDA que não revela tal facto ao seu parceiro sexual e existindo efectiva
Verificar-se-á, verdadeiramente, dolo de homicídio nestes casos, em
imputação objectiva do resultado ao comportamento do agente, ter-se-á de
que o agente transn :ibsvï àó puulu tepteseniar uma probabilidade
estatística concluir que o dolo se verifica em principio, apesar de nau existir unta
de pouca intensidade de o contágio se verificar? O contexto
do relacio elevada probabilidade estatística de contaminação .
namento sexual não será apto a propiciar uma confiança na não produção
Um outro aspecto a considerar é o contexto social em que a contami-
do resultado típico ou . para usar a fórmula do artigo 14.°, n.° 3,
do Código nação é produzida . Poderá ele ser critério de afastamento do dolo? Aqui
Penal, uma não conformação com a realização do facto típico?
também não pode ser dada, inequivocamente, uma resposta negativa . O
Há quanto a esta questão uma diversidade de respostas na
doutrina . relacionamento sexual ou se verifica num contexto amoroso e não é racional
O ponto decisivo para uma solução não é, porém . a probabilidade
estatís- que o agente não se confronte com as resistências que as convicções
tica . Com efeito, as representações comuns sobre a perigosidade das
rela- sociais comuns suscitam e que não as tenha de superar na sua decisão .
ções sexuais de um parceiro infectado com SIDA são muito
superam a perspectiva oferecida pelas estatísticas .
elevadas e fazendo prevalecer o interesse na ocultação à vítima da situação sobre o
perigo, ou se verifica num contexto puramente profissional e aí a mini-
Assim, a baixa probabilidade estatística não pode relevar decisiva-
mização do risco não é, em princípio, factor determinante da acção. porque
mente para efeitos de dolo. Ela não é adequada às representações
e ao temor de contágio que existe na sociedade, não
comuns o agente não nutre qualquer especial afecto pela vítima .
fornecendo, por isso, Por outras palavras, quando estivermos perante o acto de transmissão
uma base sólida para indiciar a não conformação com a produção
sultado . As estatísticas não são coincidentes com as
do re- em contexto amoroso, embora ele possa ser explicado e compreendido
e torna-se, por isso, duvidoso que o agente disponha de
expectativas comuns segundo uma lógica específica não é inequívoco que esteja excluído o dolo
um saber científico de homicídio, dado o natural confronto do agente com o risco da vítima e
a eventual sobreposição de certos interesses emocionais à não contamina-
4 Note-se que o Tribunal Constitucional italiano considerou
inconstitucional a ção da vítima . A lógica do desejo amoroso é, por vezes, egoísta e posses-
siva e pode tornar-se homicida . Não poderemos excluir, no entanto . que o
omissão let_ lativa quanto à exigência de testes de SIDA aos
enfermeiros que tivessem
tido contactos sexuais com pessoa intectada . Tratou-se da sentença
que declarou inconstitucional uma norma do programa de prevenção
de 23 de Maio de 1994 agente aja perturbado emocionalmente e se desvie da ponderação objec-
tiva da situação . de modo a criar uma convicção de que nada sucederá . não
e luta contra o SIDA,
na parte em que não previa exames de despista-em da seropositividade
revelando uma atitude indiferente para com a vítima, mas uma lógica de
HIV relativamente
ao exercício de actividades que comportam riscos para a saúde
de terceiros (pubfcada em
Raccolta Uficiale delle Serrten-e e Ordenan,.c della Corto
CostituJonale, vol . CXI . 1994 . decisão afectivamente perturbada .
p . 639) . Sobre tal sentença ver ainda Nicola Recchie . i n
Giurisprudenw CostituJonale, Não deveremos, certamente, resolver todos os casos da mesma ma-
neira, nem pressupor que há dolo ou não há dolo, em geral, nestas situa-
Ano XL, 1995, Fase . 1 . p . 559 . Fazend o referência a esta
sentença, cf . Acórdão do Tri-
ções . A única conclusão possível é que o contexto social não altera em si
bunal Constitucional n .° 368/2002, DR . 11 Série . d e 25 de
Outubro de 2002 .
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mesmo a caracterização do acto, sendo necessário confrontar o concreto


em que a intensidade do perigo justifica que os deveres de protecção das
comportamento do agente com o resultado da sua acção e a base da sua
vítimas pelos agentes sejam mais intensos do que os vulgares deveres de
decisão de agir.
cuidado?
As opções referidas, tanto no plano da tipicidade objectiva como no
7. A configuração da transmissão da SIDA como homicídio, através
de condutas cujo contexto causal ou subjectivo não é o tradicional no da tipicidade subjectiva, necessitam de ser reflectidas pelo legislador penal,
homicídio, pode, dadas as dificuldades assinaladas bem como as dificul correndo-se o risco, perante o não enfrentamento da questão, de uma confu-
são ética dos destinatários das normas . É o que sucederá quando os jul-
dades de prova, conduzir a uma situação em que, na prática, tais compor-
tamentos ficariam impunes . A eficácia preventiva do Direito Penal poderá gadores realizarem interpretações dos tipos de crimes de perigo que não
ser duvidosa se apenas se puderem relacionar tais condutas com o homi- tenham em conta as finalidades da antecipação da tutela, fazendo recuar
porventura em excesso essa tutela ou elevando a conduta puramente negli-
cídio . Haverá, assim, que procurar uma tutela eficaz, independentemente
da possibilidade de qualificar actos de transmissão da SIDA como homi- gente à categoria de dolosa, enfraquecendo assim a fronteira da delimi-
cídios . tação da censura do dolo em face da negligência ou tornando-a desfasada
Para além destas condutas de transmissão da SIDA, também a con- do sentido enraizado nas representações comuns sobre a acção .
Ac resnostac a estas ouestões nelo Código Penal nortuguês não são
taminação dos prodijtnc dQ sangue atra.; és dc acÜVidades profissionais que
também muito claras .
exigiriam uma especial cautela torna necessário cobrir, desde logo, uma área
de provocação da contaminação, independentemente da verificação da O crime de propagação de doença contagiosa (artigo 283 .° do Código
morte e sobretudo a partir do momento da criação do perigo . Penal), que mais directamente traduz as necessidades apontadas . revela
Os sistemas penais europeus têm-se confrontado com a necessidade duas intenções fundamentais : dar expressão jurídico-penal a actividades
dessa antecipação de tutela, procurando resolver o problema com recurso que podem ser particularmente perigosas e referir à concreta criação do
a tipos incriminadores que prescindem do resultado, como o envenenamento perigo para a vida ou para a integridade física a incriminação .
ou as ofensas corporais perigosas, ou pela criação de tipos específicos Em suma : trata-se de um crime de perigo concreto, doloso, em que o
transmissão ou propagação de doença .
de legislador modelou a incriminação em função do tipo de actividade e do
A questão que se coloca, desde logo, é a de saber qual o ponto ideal perigo criado . O perigo, que e elemento do tipo (resultado), pode ter sido
de antecipação da tutela penal . Isto é, qual será a fase do perigo que criado a título de dolo ou de negligência, distinguindo-se um crime doloso
justifica a incriminação : a mera realização de uma conduta susceptível de perigo concreto de um crime doloso quanto à acção e negligente quanto
causar a contaminação, embora possa ,-~ão se pim ai que a contaminação
de ao re ,~iiltado A estai modalidades típicas acresce nm tipo globalmente
ocorreu, apenas a contaminação efectiva ou tão só a contaminação apta a negligente (quanto à acção e quanto ao resultado) .
desencadear o processo irreversível da SIDA? De alguma forma, tais modalidades típicas revelam uma moderação
Por outro lado, na perspec-tiva da imputação subjectiva, coloca-se o na antecipação da tutela pela exigência da verificação de uma causalidade
problema de saber se a antecipação da tutela exigirá um dolo referido de perigo concreto, mas o facto de se admitirem formas negligentes quanto
perigo em abstracto, sem conexão com a representação da possibilidade ou
ao ao resultado e à própria acção alarga a incriminação a formas comporta-
probabilidade de dano, ou se se deverá configurar um intenso dolo de perigo mentais que . em geral, não poderiam ser consideradas negligentes por não
(dolo directo ou necessário), excluindo a área limítrofe do dolo eventual em serem senão formalmente crimes de resultado .
que, inevitavelmente, se cairá na referência da vontade ao perigo do perigo. Esta solução, acentuando o resultado-perigo e distinguindo variações
Que função deverá ter, efectivamente, a antecipação da tutela? Tratar- quanto à causalidade dolosa ou negligente não consegue evitar totalmente
-se-á, fundamentalmente, de uma norma subsidiária capaz de abarcar con- a problemática da prova, apesar de ela ser simplificada se se entender que
dutas em que as dificuldades de prova obstariam ao enquadramento o "de modo a criar perigo para a vida e integridade física" significa apenas
homicídio ou deverá abranger-se uma área intermédia entre o homicídio e
no uma susceptibilidade de dano pouco controlável, associada logo à coloca-
a
as ofensas corporais, entre o dolo e a negligência, de gravidade ção do corpo das vítimas em contacto directo com o vírus, de modo
específica, poder contrair a infecção e mesmo que ela não tenha sido efectivamente
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contraída, que isso não seja provado ou que as vítimas até já estejam perigo comum (em que a pena varia entre 1 e 8 anos de prisão), um evento
contaminadas. de perigo menos concreto .
Na primeira concepção do perigo, a concretização exigida é mínima . A diferença da medida da pena pode, porém, justificar-se pela exis-
ultrapassando-se as essenciais dificuldades de uma prova da causalidade - tência, nas ofensas corporais, de um elemento de agressão directa ao corpo
o perigo para a vida ou integridade física é reduzido à criação efectiva das da vítima através de uma conduta violenta, não devendo este elemento sis
condições adequadas para a contaminação e sua subsequente disseminação . temático ser bastante para concluir por uma menor concretização do evento-
Na segunda perspectiva, há um elemento concretizaçãr mais acentuado - -perigo no artigo 283 .° do Código Penal, em que se prevê que o agente
o evento-perigo é a efectiva contaminação das vítimas, o facto de elas se pratique, geralmente, actividades neutras sem relação directa com a vítima
tornarem portadoras do vírus .
e em que o dolo se associa a uma inconsideração grave e não a um efectivo
O princípio da legalidade impõe esta última interpretação, na medida propósito (que já deverá consubstanciar dolo de dano) .
em que só se verifica a propagação (e não mera possibilidade de propaga- O recurso ao crime de ofensas corporais perigosas suscita também as
ção) quando as vítimas contraírem a doença . A propagação pressupõe uma mesmas dificuldades relacionadas com a prova do nexo de causalidade e a
actividade de multiplicação da enfermidade (atingindo-se uma multiplici- prova do dolo, tendo apenas a vantagem de afastar as dificuldades de uma
dade de vítimas ou pelo menos mais do que uma) . caracterizacão como homicídio de várias condutas de transmissão do vírus
A contracção dc, úoct}"u pcla vítillia é. segunáo o sentido das pala-
da SIDA, nomeadamente por ser difícil estabelecer a relação directa com
vras, elemento essencial do tipo e não apenas uma circunstância agravante .
a morte da vítima .
Se as vítimas apenas foram postas em contacto com o agente da doença Em qualquer caso . a morte da vítima agravará a responsabilidade
mas não a chegaram a contrair, não se pode falar de propagação mas .
penal quer se trate de agravação pelo resultado em sede de crime de perigo
quando muito, de tentativa, se a propagação for dolosa .
comum ou em sede de ofensas corporais (artigos 285 .° e 145 .°, respectiva-
Poder-se-ia, na realidade, ter antecipado a tutela do crime consumado mente)~ .
doloso até à situação que corresponde, na actual configuração, à tentativa,
mas isso com a contrapartida de afastar a sua realização a título de
negli- 9. O conjunto de condutas susceptíveis de pôr em causa a vida e a
gência .
integridade física através da transmissão da SIDA não se limita aos con-
Uma vez que se pretendeu admitir como conduta típica de propa- textos de relacionamento sexual directo, de troca de seringas ou até mesmo
gação, para além da realização global por negligência (artigo 283 .°, n .° 3),
ao quadro de uma disseminação, geralmente ligada à utilização de produ-
uma simbiose de dolo quanto à conduta perigosa e negligência quanto à
tos de sangue que contenham o HIV . Há todo um grupo de comporta-
criação do perigo (artigo 283 .", tl . - 2), o que na realidade não é mais
do mentos reveladores do poder de controlo sobre as causas da transmissão o ,
que uma espécie de negligência grosseira ou até mesmo uma fórmula para
em que a característica dominante é a passividade . isto é . a omissão . Há .
abranger todos os casos limítrofes do dolo, então não é concebível
uma n a verdade, uma problemática específica da omissão em conexão com a
antecipação generalizada da tutela.
transmissão de SIDA, sendo necessário averiguar até que ponto se justifica
a intervenção penal .
8. A limitação de uma norma como o artigo 283 .°, n .° 1, do Código Poderemos distinguir . sem pretensão de exaustividade . três tipos de
Penal a condutas muito específicas de agentes com certo desempenho
situações : a omissão dos agentes contaminados quer quanto à prestação da
profissional não satisfaz, obviamente, a necessidade de um tipo incrimina- informação quer quanto à obtenção de informação para si próprios . a
dor de perigo subsidiário do homicídio para os casos mais correntes de
transmissão da SIDA .
A única solução alternativa é a aplicação do artigo 144.°, alíneas c) Em todos estes casos a ocorrência posterior da morte levanta delicados problemas
Consti-
ou d). A moldura penal mais grave do artigo 144 .°, alíneas c) processuais e relacionados com a prescrição . (sobre isso, cf . Acórdão do Tribunal
ou d), DR, Il Série, de 10 de Janeiro de 2003) .
relativamente à do artigo 283 .°, n .° 2, levanta de novo, porém, o problema tucional n .° 483/2002,
de saber se o legislador não teria representado, nos " Utilizando . aqui . a expressão de Schünemann em "Problemas juridico-penales
chamados crimes de relacionados con el SIDA", cit ., p . 54 ss .
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omissão dos agentes detentores de informação sobre a contaminação de como


11 . Na omissão de informação da vítima por parte de quem,
certas pessoas que poderão infectar terceiros e a omissão das autoridades
terceiro, tem um conhecimento privilegiado sobre a situação do agente, há
ou dos detentores de poder institucional relativamente a medidas ou infor- de garante
uma difícil questão subjacente - a da fundamentação da posição
mações susceptíveis de evitar a contaminação das vítimas . Estes grupos de uma tal posição de garante em certos
casos suscitam soluções específicas, estando envolvidos em contextos do terceiro . Existe ou deve existir
sociais diversos. casos?
posição
A resposta que se impõe, neste momento, é que só existirá tal
uma posição de protecção da
10. Na omissão dos próprios agentes contaminados relativamente de garante quando o agente tiver assumido
ao agente (situação das
a vítima ou tenha a mesma função relativamente
pessoas que com eles contactem de forma a poderem ser também contami- o
pessoas que sejam responsáveis por inimputáveis) - isto é, quando
nadas, há, em princípio, domínio das causas de contágio e, por isso, omis- uma posição de
são relevante . A possibilidade de o agente ser imediata fonte de perigo agente por razões legais, institucionais ou contratuais tiver
da
para outrem dispensa a identificação de um específico dever de agir, garante ou pelo menos quando tiver assumido um controlo exclusivo
médico do doente é
aqui praticamente equiparável a omissão à acção .
sendo situação . Assim sucederá, por exemplo, quando o
simultaneamente médico da mulher, é o único a conhecer a doença e sabe
Neste grupo incluem-se tanto os casos de contacto sexual (que são
um misto de acção e omissão) somo vN casos de pura omissão também que o marido não informa a mulher .
e
factual em Na maioria das situações em que um terceiro tem conhecimento,
que o agente não informa quem lhe presta certo tratamento susceptível evitar a contaminação se
de até exclusivo, da doença do agente, podendo
contágio ou ele próprio, como enfermeiro ou médico, não toma precauções a
informar a vítima, há obstáculos legais relativamente a tal informação,
para evitar transmitir a doença de que seja portador, situação em que casos, todavia, não se
encontraremos de novo perante uma conduta mista de omissão e
nos começar, desde logo, pelo segredo médico 7 . Nestes
vida .
Poderão, nestes casos, verificar-se situações de negligência
acção . poderá concluir que o valor do segredo prevalecerá sobre o valor da
necessidade . Mas
se o agente,
tendo razões para representar que foi contaminado . não averiguar ele sendo, em geral, justificada a sua violação por direito de
e, con-
prio a sua situação e, nesse estado de mera dúvida, não tomar
pró- também não se pode concluir que há um dever de violar o segredo
específicos,
qualquer sequentemente, uma omissão relevante, senão em casos muito
precaução para evitar o contágio .
como se referiu .
Haverá, assim, um dever jurídico de realizar o teste da SIDA, como
suporte desta omissão, apesar de ele não ser expressamente previsto que
na lei 12. Mais complexa é ainda a questão da omissão de terceiros
como obrigatório?
A solução preferível é, de facto, quc haja uma obrigatoriedade ocupem posições de autoridade .
indiví-
do teste relativamente a pessoas que exerçam certas profissões
legal Deverá a polícia intervir num meio de prostituição em que há
os clientes? Deverão
risco típico de transmissão, desde que não haja a possibilidade
que criem duos contaminados a fim de evitar os contágios com
exerrn-
de uma os dirigentes de certas instituições de saúde informar a polícia, por
prevenção generalizada de contágio através de procedimentos espe- com a
cíficos . plo, de que uma pessoa que exerce a prostituição está contaminada
verdadeira
SIDA? Existirá aqui, por força das funções que exercem, uma
Em todo o caso, a falta de obtenção de informação pelos testes
do posição de garante destes agentes?
agente que tenha razões sérias para admitir que está contagiado generalizada
mantido relacionamento sexual com pessoa infectada, por
(por ter A este tipo de situações não se pode dar uma resposta
exemplo) e que, homicídios ou ofensas corporais por
mesmo assim, realiza condutas aptas a transmitir o vírus da que permita concluir que haverá
S IDA pode ser contaminação não pode ser
caracterizada como negligência, desde que o perigo não seja muito omissão sistematicamente . A prevenção da
policial, mas sim através da
rico. E, neste tipo de situações, não há propriamente razões
gené- concebida sobretudo a partir da intervenção
elas sejam capazes
as acções das omissões, desde que seja patente uma
para distinguir prevenção dos riscos pelas vítimas, na medida em que
população e
violação do dever de
cuidado fundada no extravasamento da esfera de risco do de se defender. O esclarecimento, promovido pelo Estado, da
agente e na ina-
ceitável interferência causal nos bens jurídicos da vítima
. 7 Cf. artigo 195 .° do C . Penal .
Penal 169
168 Maria Fernanda Palma Trcursmissão da SIDA e Responsabilidade

indivíduo como um elemento irrele-


de certos grupos em especial sobre o nível de contaminação de grupos de saúde e a progressiva consideração do
risco e sobre os modos de a evitar são os meios adequados de intervenção . vante na lei dos grandes números .
recurso pacificador dos fra-
De qualquer modo, o controlo da situação nesses grupos através de meios O Direito Penal não pode ser, porém, o
directo de julgamento de políticas
institucionalizados (controlo legal da actividade de prostituição, realização cassos políticos e nem sequer instrumento
pessoa . O dolo e a negligência,
de testes de SIDA, distribuição de seringas a toxicodependentes, etc .) é de efeitos lesivos para bens essenciais da
deverão ser mitigados ou formalizados
uma exigência de uma política contra a difusão da doença . a causalidade e a justificação não política . A
responsabilidade
A ausência ou pelo menos o fraco empenhamento da sociedade nessa para que o Direito Penal resolva problemas de
a problemática do
política não pode ter como alternativa o recurso aos mecanismos da res- intervenção penal, nestes últimos casos . bem como toda
uma orientação polí-
ponsabilidade penal. homicídio referida têm subjacente a necessidade de
responsabilidade individual-ética de respeito e,
tica de construção ética da
como critério de justifi-
13 . Finalmente, a questão específica da responsabilidade por omis- por vezes, de responsabilidade pela vida alheia,
são de medidas adequadas ao controlo da qualidade do sangue forma um cação da liberdade e critério essencial de justiça .
outro núcleo problemático de eventual responsabilidade penal. Não há
também aqui uma questão tradicional de responsabilidade penal . Em geral,
estas situüçõc~ foiam desencadeadas, em diversos países, no contexto de
estratégias políticas baseadas na informação científica disponível e nas
opções tomadas em matéria de segurança e controlo de riscos .
Tais estratégias e opções revelaram-se, em muitos casos, fonte de
consequências catastróficas . Os casos de hemofílicos contagiados através
de produtos do sangue ocorreram em vários países, entre os quais Portugal .
Em geral, a crítica às opções políticas deu lugar à responsabilização
penal dos detentores de posições de autoridade e decisão, concretizada ou
não, mas sempre através de processos criminais altamente mediáticos . Em
certos casos concretos . fizeram-se acusações de terem existido opções
conscientes dos riscos baseadas no lucro económico de certas empresas
que comercializam os produtos do sangue . que conduziram à ausência de
uma adequada emiiiuação de factores de risco . Em situações desse tipo, se
efectivamente se verificaram, haveria comportamentos criminosos pelo
menos de propagação da SIDA .
Fora desse contexto, a mera estratégia de redução ao mínimo das
opções de segurança não revelará, geralmente, responsabilidade penal a
título de dolo, no sentido tradicional . A própria negligência, que pode ser
indiciada por comportamentos pouco exaustivos quanto à protecção dos
produtos do sangue, não tem de redundar numa directa responsabilidade
penal . onde os agentes inseridos numa máquina de decisão administrativa
pressionante para o tratamento massificado das situações decidiram com
inércia e burocraticamente .
A sociedade alivia-se do seu sistema projectando na figura de autori-
dades administrativas ou políticas a responsabilidade penal, fora dos seus
padrões clássicos, quando o verdadeiro problema é político : a economia da

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