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Defesa da Fé

Teofanias no Antigo Testamento


Por Paulo Ribeiro

Em contraste com as mitológicas interações retratadas entre os deuses e os


humanos nas religiões pagãs, o Deus das Sagradas Escrituras, ao longo do
tempo, vividamente evidenciou estruturas de um relacionamento pessoal para
com a humanidade. Diversas foram as maneiras pelas quais o Deus bíblico se
revelou ao homem.

No entanto, apesar da grandiosidade de suas revelações naturais e especiais,


o Senhor, por vezes, revelou-se ao seu povo de forma ainda mais enfática.

Houve ocasiões em que Deus, a fim de transmitir mensagens especiais aos


seus escolhidos, em momentos decisivos da história da redenção, optou por
revelar-se ao homem rompendo modelos habituais de contato e autorrevelação
e estabeleceu uma comunicação muito mais próxima, divorciada das leis
naturais e imbuída no sobrenatural. Essas distintas interações entre o
Criador e sua criatura ficaram conhecidas como teofanias.

A natureza das manifestações teofânicas


Popularmente, se tem definido as teofanias simplesmente como aparições
encarnadas ou visíveis de Deus, geralmente restritas ao Antigo Testamento.
Contudo, a natureza das manifestações teofânicas é bem mais abrangente e
não se restringe aos termos da definição popular.

Em primeiro lugar, o Novo Testamento também relata teofanias (embora as


teofanias neotestamentárias não sejam o foco deste artigo). Em segundo,
subjaz ao significado da palavra "teofania" um fenômeno cuja qualidade parece
compreender muito mais.

A palavra teofania vem do grego theopháneia, que, mediante a união de


dois vocábulos, theos (Deus) e phaínein (aparecer), se define como
"manifestação de Deus". Essa definição traz, obviamente, um conceito
desconfortavelmente vago; e, infelizmente, ele é. Isso devido ao fato de que, a
rigor, a "manifestação de Deus" pode contemplar uma grande variedade de
fenômenos.

Até mesmo a outorga sobrenatural de sonhos proféticos a certo personagem


bíblico pode, neste caso, ser chamada de teofania (Gn 20.3-7).

Todavia, estudiosos como R. N. Champlin têm demonstrado, mediante um


criterioso estudo do Antigo Testamento, que as manifestações teofânicas, em
sua forma mais completa, são, geralmente, acompanhadas de certos
elementos característicos , de forma que tipos de manifestações como sonhos
ou visões, por exemplo, são, por assim dizer, revelações parciais ou
incompletas.

De modo geral, há textos veterotestamentários que mostram manifestações


teofânicas ligadas a fenômenos naturais, encontrados, por exemplo, em Êxodo
3.2-6 e 20.18.
Em outros textos, como nos de Êxodo 23.20-23 e Isaías 63.9, manifestações
teofânicas na forma do personagem Anjo do Senhor são narradas. A maioria
das referências, no entanto, traz em comum um ou alguns dos seguintes
elementos:

Elementos e Explicação das ocorrências

1-Temporaneidade: As aparições de Deus serviam a um propósito específico


e, tão logo esse propósito era alcançado, o Senhor se retirava.

2-Salvação e julgamento: As aparições de Deus eram frequentemente


realizadas para fins de libertação de seu povo e, às vezes, para fins de
julgamento.

3-Atribuição de santidade: Os locais em que Deus aparecia tornavam-se,


temporariamente, locais santos.

4-Parcialidade das revelações: Os humanos não são capazes de contemplar


Deus em sua totalidade, logo, os vislumbres de Deus e sua glória sempre se
mostraram parciais.

5-Resposta temerosa: Uma vez que os humanos se davam conta de que


presenciavam uma manifestação de Deus, sua resposta psicológica
instantânea era o medo.

6-Mutação no ambiente: As manifestações divinas frequentemente


promoviam um distúrbio no ambiente natural em que ocorriam.

7-Escatologia esboçada: As teofanias permitiram uma antevisão do papel de


Deus no fim dos tempos.

Palavras teofânicas: O único motivo para as aparições de Deus era a


transmissão de uma mensagem; Deus só aparecia por ter a intenção de
transmitir uma mensagem específica.

Assim, as teofanias, em sua forma mais completa, apresentam-se com uma


grande riqueza cenográfica.

Obviamente, não são em todas as narrações de teofanias que esses elementos


estão, ao mesmo tempo, presentes, mas, definitivamente, é possível identificar
um padrão nos grandes eventos teofânicos. Portanto, como podemos ver, a
natureza das manifestações teofânicas no Antigo Testamento não pode ser
cerceada pelas definições populares de teofania, de forma que uma completa
definição de "teofania veterotestamentária" deveria comportar a realidade
audível da manifestação, sua temporaneidade e, principalmente, seu propósito.

Exemplos de acontecimentos teofânicos

Embora diversos textos narrem fantásticas ocorrências teofânicas, cabe-


nos ilustrar esse fenômeno por meio de acontecimentos significativamente
distintos, entre os quais selecionamos a perícope de Gênesis 16.7-13, de
Êxodo 19 e de 1Reis 19.9-19.

A primeira passagem mostra uma teofania na forma do Anjo do Senhor,


figura que discutiremos mais adiante. A segunda narra um grande distúrbio na
natureza, devido à presença de Deus.

E a terceira contraria toda a expectativa do profeta Elias sobre a maneira


como a presença do Senhor deveria se configurar.

O trecho de Gênesis 16.7-13 nos aponta uma típica manifestação teofânica: a


figura do Anjo do Senhor. Nesta passagem, o anjo de Javé encontra Agar
(escrava de Sarai) no deserto e, em uma demonstração de graça divina (v. 11),
a instrui a retornar à sua dona e humilhar-se (v. 9), uma vez que, legalmente, a
criança pertencia a Abraão.

O texto, no versículo 13, identifica o anjo com o próprio Deus, embora outros
indícios do caráter sobrenatural do ser que a abordou já tivessem sido
demonstrados, como no momento em que ele a chama pelo nome sem a
conhecer (v. 8) e em seu discurso profético (v. 10-12).

A indagação de Agar, no versículo 13, pode sugerir temor, uma vez que sua
frase pode ser interpretada em outros termos: "Será verdade que eu vi Deus e,
depois dessa visão, ainda estou viva?".

Por sua vez, a perícope de Êxodo 19 caracteriza-se como uma das mais
vislumbrantes narrações bíblicas de teofania que dispomos.
Nessa passagem, um cenário perturbador é descrito sendo claramente
associado à magnitude da presença divina.

A narrativa se inicia com instruções iniciais de Deus a Moisés que diziam


respeito à consagração individual de cada pessoa, sem a qual seria impossível
presenciar o momento em que haveria de vir (v. 10-15).

Por fim, a tenebrosa manifestação de Deus é descrita em meio a trovões,


raios, fumaça, nuvem, fogo e som de trombeta (v.16-19). A reação dos
presentes foi, novamente, de terror (v. 18-19).

Aqui, claramente a teofania ocorre em meio a fenômenos naturais; há a


indicação da santificação do local em que ocorre; a manifestação é audível e,
obviamente, o pronunciamento de palavras teofânicas torna-se o cume da
manifestação.

Finalmente, a passagem de 1Reis 19.9-19 mostra o profeta Elias em uma


caverna no Sinai (talvez, a mesma na qual Moisés se refugiou durante a
aparição divina de Êx 33.22).

Nessa circunstância, diferentes distúrbios naturais ocorrem como precursores


da presença de Deus. Mas Deus não estava nesses fenômenos (v. 11,12) que,
precisamente em Êxodo 19, caracterizaram a presença divina. Com efeito,
Deus falou a Elias mediante um "sussurro" ou um "murmúrio de uma brisa
suave" (v. 12,13).

Embora seja comum a interpretação de que tal suavidade representa o agir


de Deus, os versículos 15 a 17 parecem contrariar essa ideia. Portanto, a
suavidade do "murmúrio" pode simbolizar, na verdade, a intimidade do trato
de Deus para com seus profetas.

Tal intimidade, então, não precisa necessariamente trazer a ideia de


suavidade. O fato de Elias ter coberto o rosto diante da presença divina (v.
13) pode, antes, indicar sua consciência temerosa ligada à magnitude da
presença de Javé.

O Anjo do Senhor
Nenhum estudo que mencione "teofanias" deveria ser empreendido sem
considerar especificamente o enigmático personagem Anjo do Senhor. Este
ser, que, na literatura hebraica, é frequentemente confundido com o próprio
Deus, tem sido um típico representante dos eventos teofânicos, de modo que
uma correta definição de sua natureza pode ser de grande valia para o estudo
das teofanias.

O Anjo do Senhor é, por vezes, indiscriminadamente qualificado como uma


pré-encarnação de Cristo; e as passagens em que este personagem aparece
costumam ser citadas como textos-prova para a doutrina trinitária.

No entanto, apesar da antiquíssima tradição cristã em interpretá-lo dessa


forma, a abordagem que se seguirá mostrará que tal interpretação não deve
necessariamente constituir-se em um dogma.

É verdade que muitos exegetas consideram o Anjo do Senhor uma pré-


encarnação de Cristo. Alguns, inclusive, sequer enxergam outra opção para a
identidade desse personagem, e a obra norte-americana The Dictionary of the
Bible sintetiza a teologia por trás dessa linha de interpretação.

Em exposição sobre o verbete "anjos", o Dictionary of the Bible diz: "Deve ser
observado também que, lado a lado com essas expressões ['anjo de Javé',
'Javé' e 'Deus'], nós vemos Deus sendo manifestado em forma de homem [...]
já que sabemos que 'nenhum homem viu Deus' (o Pai) 'em qualquer tempo', e
que 'o Deus unigênito, que está no seio do Pai, é quem o revelou' (Jo 1.18), a
inferência inevitável é que o 'Anjo do Senhor' nessas passagens se refere a
Ele, que é, desde o princípio, o 'Verbo'".

Evidentemente, essa maneira de concebermos a figura do Anjo de Javé é


antiga e conta com muitos defensores. Contudo, é fato que, para um
responsável estudo das teofanias no Antigo Testamento, o assentimento de
que as laudas veterotestamentárias componham uma coleção de documentos
cuja teologia foi, aos poucos, sendo erigida, é necessário.

Buckland nos diz propriamente que "não achamos uma teologia no Antigo
Testamento; achamos uma religião [...].
Somos nós próprios que fazemos a teologia, quando damos a essas ideias
e convicções religiosas uma forma sistemática ou metódica. Portanto, o método
deve ser histórico". Westermann corrobora com a assertiva ao declarar:

"Não existe diferença [no Antigo Testamento] entre história e religião; Deus é
a realidade e a realidade é Deus".

Logo, ao abordarmos exegeticamente os textos do Antigo Testamento, é


preciso levar em consideração sua historicidade em cujo bojo repousa uma
teologia primeva, a teologia dos povos orientais dos primeiros milênios antes
de Cristo; além disso, faz-se necessário conhecer os costumes daqueles
povos, costumes que se mostram maravilhosamente retratados em seus
documentos.

No Antigo Oriente Próximo, qualquer mensageiro real era tratado como um


substituto do rei. Podemos ver exemplos dessa prática nos textos de Juízes
11.13, 2Samuel 3.12,13 e 1Reis 20.2-4. Esses textos bíblicos mostram,
inclusive, que os mensageiros falavam em nome dos reis. E falavam na
primeira pessoa. Sendo o ser angelical um mensageiro de Deus (anjo, no
hebraico, significa "mensageiro"), nada seria mais natural que essas
criaturas, ao executarem as tarefas por Deus designadas, falassem em nome
de Deus e portassem sua autoridade.

Em última análise, poderíamos também concluir que, sendo designados por


Deus para o cumprimento de tarefas extraordinárias, os anjos fossem
especialmente capacitados com poderes para executar tais tarefas.

Assim, podemos ver que, embora alguns estudiosos concluam que o Anjo do
Senhor seja uma manifestação pré-encarnada de Cristo, "outros acreditam que
ele é estreitamente identificado com Deus por ser o representante de Deus".
Isso justificaria o fato de ele ser identificado, em várias ocasiões, com Deus,
enquanto, de alguma forma, mostra-se distinto dele (Gn 18.1-21; Jz 5.23; Ml
3.1).

Portanto, a usual interpretação do Anjo do Senhor como uma "cristofania"


não se constitui em uma verdade irrefutável, embora possa, em certo sentido,
continuar estabelecida como um tipo de manifestação teofânica.
Finalmente, resta-nos enfocar o elemento mais importante nas ocorrências
teofânicas: a razão de tais manifestações.

A importância das teofanias

A razão das ocorrências teofânicas, como se pode deduzir, não estava


ligada à satisfação da curiosidade humana com relação ao transcendental, nem
às meras retratações visuais de manifestações divinas.

O principal motivo que ensejou os eventos teofânicos foi a necessidade de


Deus em chamar a atenção do homem para as mensagens que
acompanhariam as manifestações. A ênfase das teofanias nunca foi seu
aspecto visual, mas sua mensagem.

A "própria Bíblia nunca [se] dá ênfase à maneira da manifestação divina sob


a forma de teofania", diz Champlin. E prossegue: "O que ali importa é o que
Deus fez e disse. Normalmente, a teofania visa dar uma mensagem, ao passo
que a forma visível meramente atrai e fixa a atenção [...] Os aspectos físicos
estão ali a fim de magnificar e autenticar a revelação, mas esta última é que
realmente importa".

Portanto, a despeito do quanto nos empenhemos em estudar e sistematizar


os eventos teofânicos, o que realmente importa neles é a mensagem que está
sendo transmitida.

Deus, em sua sabedoria e soberana determinação, optou por revelar-se


contundentemente ao homem por meio de manifestações extraordinárias (e, às
vezes, terríveis), a fim de que, justamente pelo impacto de tais manifestações,
sua mensagem fosse entendida, guardada e registrada com um único fim:
tornar o homem sábio para a salvação por meio da fé em Cristo Jesus (2Tm
3.15).

Notas:

1 Bible.org, OT Theophanies.
2 Disponível em: http://bible.org/illustration/ot-theophanies (acessado em
julho de 2012).
3 SMITH, William (ed.). Dictionary of the Bible. New York: Fleming H.
Revell Company, 1998, p. 46.
4 BUCKLAND, A. R. Dicionário Universal. São Paulo: Vida, 2007, p. 39.

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