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INTRODUÇÃO À TEOLOGIA

James Alan dos Santos Francos


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2 PROBLEMATIZAÇÃO DO FENÔMENO RELIGIOSO - PARTE II

Caro estudante, no bloco 1 vimos que o desenvolvimento do pensamento humano ao


longo da história tem tudo a ver com o pensamento teológico. Você, que escolheu
estudar teologia, notará que o estudo não se limita aos aspectos dogmáticos
empregados pelo pensamento teológico puro, mas é ampliado, pois o que irá
diferenciar os leigos do clero é justamente o nível do pensamento. Os leigos, por vezes
aceitam aquilo que lhes é passado sem maiores contestações, mas ao clero, ou seja,
aqueles que se dedicam no estudo da fé, estão conectados com as indagações mais
profundas sobre questões ligadas à fé e à teologia.

Neste bloco trataremos de questões sobre a fé e a teologia, você perceberá que o


enfoque será distinto. Trataremos da teofania, da revelação especial e geral de Deus,
bem como dos conceitos de inspiração, iluminação e, por fim, discutiremos o
desenvolvimento da hermenêutica.

2.1 Teofania

Como vimos nos temas anteriores, há diversas maneiras de compreensão e explicação


da realidade, seja pelo mito, seja pela filosofia, ou até mesmo pela ciência.

Neste momento, trataremos de temas próprios da teologia, e iniciaremos pelo tema


teofania, e para não surtir dúvidas, gostaríamos de limitar nosso objeto de análise ao
texto bíblico, de Gênesis à Apocalipse, como o lugar próprio das ocorrências das
Teofanias, ao menos o lugar onde foram registrados de maneira sistemática.

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Figura 2.1 – Ciência e Religião

Ao pesquisarmos sobre o tema Teofania, podemos ter como definição e explicação


uma revelação ou manifestação sensível da glória de Deus, esta pode ocorrer por meio
de um anjo, qualquer coisa inimaginável ou através de fenômenos impressionantes da
natureza. Podemos, ainda, chamá-lo de aparição. Há citações bíblicas nas quais Deus
usa desse processo para aparecer a alguém em especial, para manifestar-se ou
mostrar fatos do presente ou do futuro (WIKIPEDIA, s.d., s. p.).

De acordo com o Dicionário Priberam da Língua Portuguesa (2008-2020), teofania


significa “Aparição ou revelação de Deus”. Na enciclopédia online Wikipedia temos a
definição com mais detalhes:

Teofania é um conceito de cunho teológico que significa "manifestação


de Deus em algum lugar, coisa ou pessoa". Tem sua etimologia enraizada
na língua grega: "theophaneia" ou "theophania". Esse termo é uma palavra
composta por dois vocábulos, também gregos: "Theos" (Deus) e "phanei"
(aparecer). (WIKIPEDIA, s.d., s.p.).

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A principal forma de teofania teria ocorrido no Evangelho de João, capítulo 1, dos


versículos de 1 ao 4 que diz: “No princípio era o Verbo, e o Verbo estava com Deus, e o
Verbo era Deus. Ele estava no princípio com Deus. Todas as coisas foram feitas por ele,
e sem ele nada do que foi feito se fez. Nele estava a vida, e a vida era a luz dos
homens” (NVI).

Há referência do próprio Deus aparecendo ao ser humano, como referenciado no livro


do Êxodo, capítulo 3, versículos 2 e 3:

E o anjo do Senhor lhe apareceu em uma chama de fogo do meio de uma


sarça. E ele olhou, e eis que, a sarça queimava com fogo, e a sarça não era
consumida. [...] E quando o Senhor viu que ele se virara para ver, Deus o
chamou do meio da sarça e disse: Moisés, Moisés. E ele disse: Aqui estou.
(Bíblia NVI).

Eloim ou Elohim (do hebraico ‫אלהים‬, ‫לֹוהי‬


ִ ‫ ֱא‬, pronunciado elohim) é um substantivo que
se refere ao próprio Deus, usado na língua hebraica moderna e antiga.

"Eu Sou Javé, o SENHOR, teu Deus" (Bíblia King James, BKJ), também "Eu sou o
SENHOR vosso Deus" (BJ, WEB), (hebraico: ‫ֱֹלהיָך‬
ֶ֑֔ ‫ְהוה א‬
ָ֣ ‫ ָֽאנ ִ ִֹ֖כי י‬, transliteração neolatina:
Ānōḵî Yahweh 'ĕlōheḵā, que traduzido temos: "Eu Sou Javé Teu Deus".

A seguir vamos apresentar algumas passagens bíblicas que demonstram comprovações


de experiências de Teofania:

Em Gênesis 18:1-2, Deus aparece a Abraão na forma de três homens. Não se trata de
anjos pois eles não recebem adoração, e nesta passagem bíblica Abraão os adora
inclinando-se à terra. Contudo, essa interpretação está equivocada. Vejamos o que
dizem os versículos:

"1. Depois apareceu-lhe o Senhor nos carvalhais de Manre, estando ele


assentado à porta da tenda, no calor do dia. 2. E levantou os seus olhos, e
olhou, e eis três homens em pé junto a ele. E vendo-os, correu da porta da
tenda ao seu encontro e inclinou-se à terra," (Bíblia em português, versão
ACF).

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Deste modo, Teofania é a entrada no mundo físico de um ser pertencente ao mundo


metafísico-transcendente, ou seja, é a aparição divina do próprio Deus na Terra, lugar
de vida dos homens. Essa relação com o divino fortaleceu o pensamento sobre a
existência de Deus, especialmente porque o próprio Deus se revelou ao ser humano e
não o contrário, ou seja, temos os homens como seres capazes de encontrar Deus.

É importante, neste momento, dizer que o cristianismo parte da premissa que a Bíblia
Sagrada é um compendio de livros nos quais o próprio Deus se revelou ao ser humano,
no antigo testamento vemos claramente a figura do Deus-Pai e no novo testamento
vemos a figura do Deus-Filho-Jesus. A Bíblia, portanto, é o axioma fundamental para
àqueles que creem em Deus de Abraão, Isaque e Jacó, ou seja, o Deus dos judeus, bem
como, o Deus dos cristãos, pois toda a visão teológica parte, primeiramente, da Bíblia
Sagrada como sendo a palavra de Deus, seja pela visão parcial veterotestamentária,
seja pela visão Cristo Centrica.

2.2 Revelação Especial e Revelação Geral de Deus

Outra premissa fundamental para uma boa formação teológica versa sobre o conceito
de revelação, pois o objeto da teologia é Deus infinito e inacessível, ou seja, impossível
de ser colocado em uma bancada de experimentação científica própria do modelo
racional-científico para ser pesquisado.

Portanto, o conceito de revelação ganha essencialidade pois só através de Deus é


possível conhecer aquilo que ele próprio permitiu mostrar, ou seja, a revelação de
Deus é fundamental para conhecê-lo, pois sem esta seria impossível perceber Deus e
seus características.

Sem a autorrevelação é impossível conhecer qualquer coisa a respeito de Deus. AO


falarmos de inspiração em relação à Bíblia, falamos da forma como Deus moveu os
autores humanos para registrarem a revelação.

O Deus da Bíblia, o Deus dos cristãos, o Deus dos Hebreus, o Deus criador e
sustentador de todas as coisas não foi encontrado pelo ser humano, não foi pensado

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pelo ser humano, pois segundo a literatura sagrada, veio na direção dos seres
humanos e se auto revelou.

Portanto, se Deus não houvesse se revelado à humanidade, nada saberíamos sobre


Ele. Logo, temos como premissa que Deus não é uma criação humana nem, tão pouco,
foi idealizado, pois Ele saiu de seu lugar de origem e adentrou o tempo e espaço do
mundo físico-material e histórico, se revelando aos humanos. Por mais que os seres
humanos tentassem buscar a Deus, somente conseguiram encontrá-lo quando o
próprio Deus veio em direção à humanidade.

Uma abordagem reformada para a ciência e as Escrituras requer uma


compreensão reformada da revelação. A palavra “revelação” denota o ato
de revelar (lit. tirar o véu). Na teologia cristã, ela se refere ao ato de
comunicação de Deus com o homem ou ao conteúdo dessa comunicação.
Historicamente, teólogos têm distinguido entre diferentes tipos de
revelação. Muitos teólogos medievais descreveram a diferença usando os
termos revelação natural e sobrenatural. A distinção não tinha nada a ver
com a fonte ou origem da revelação – os teólogos que fizeram esta distinção
acreditavam que toda a revelação é de origem sobrenatural, uma vez que
Deus era sua fonte. Em vez disso, esta distinção tinha a ver com o modo da
revelação. A revelação natural é comunicada por Deus através dos
chamados fenômenos “naturais” (Suas obras criadas), enquanto a revelação
sobrenatural é comunicada por Deus através de uma intervenção especial
divina (sonhos, visões etc.). (MATHISON, s.d., s.p.).

A revelação de Deus é, ainda, subdividida em duas formas: a revelação geral e a


revelação especial:

A distinção mais comum entre os teólogos reformados é a distinção entre


revelação geral e revelação especial. O artigo 2 da Confissão Belga (sobre os
meios pelos quais conhecemos a Deus) afirma a distinção com as seguintes
palavras:

“Nós O conhecemos por dois meios. Primeiro: pela criação, manutenção e


governo do mundo inteiro, visto que o mundo, perante nossos olhos, é
como um livro formoso, em que todas as criaturas, grandes e pequenas,
servem de letras que nos fazem contemplar os atributos invisíveis de Deus,
isto é, o seu eterno poder e a sua divindade como diz o apóstolo Paulo em
Romanos 1:20. Todos estes atributos são suficientes para convencer os
homens e torná-los indesculpáveis. Segundo: Deus se fez conhecer, ainda
mais clara e plenamente, por sua sagrada e divina Palavra, isto é, tanto
quanto nos é necessário nesta vida, para sua glória e para a salvação dos
que Lhe pertencem.” (MATHISON, s.d., s.p.).

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Na Carta de Paulo aos Romanos, capítulo 1, versículos 19 e 20, o Apóstolo Paulo


escreveu que:

Pois o que de Deus se pode conhecer é manifesto entre eles, porque Deus
lhes manifestou. Pois desde a criação do mundo os atributos invisíveis de
Deus, seu eterno poder e sua natureza divina, têm sido vistos claramente,
sendo compreendidos por meio das coisas criadas, de forma que tais
homens são indesculpáveis. (Bíblia NVI).

Se há uma revelação geral, há também uma revelação especial, ou seja, um caminho


para se aproximar de Deus pela salvação da alma humana:

A revelação geral, imediata ou mediada, é dirigida a todos os homens. No


entanto, ela “não [é suficiente] para dar aquele conhecimento de Deus e da
sua vontade necessário para a salvação” (Confissão de Fé Westminster, I.1).
A revelação geral não revela Jesus Cristo ou Sua obra redentora dirigida aos
pecadores. Assim, torna-se necessário aquilo que é chamado de “revelação
especial”. A revelação especial é a revelação do caminho da salvação.

Um dos textos bíblicos mais importantes descrevendo a revelação especial


de Deus encontra-se em Hebreus 1:1-2, que diz:

“Há muito tempo Deus falou muitas vezes e de várias maneiras aos nossos
antepassados por meio dos profetas, mas nestes últimos dias falou-nos por
meio do Filho, a quem constituiu herdeiro de todas as coisas e por meio de
quem fez o universo.” (MATHISON, s.d., s.p.).

Assim sendo, a revelação geral e a revelação especial são formas de Deus se


apresentar à humanidade. Um fator interessante sobre o qual podemos refletir, é que
a revelação geral estaria contida dentro da revelação especial, que é a Bíblia Sagrada.

Vejamos o que o autor James W. Sire (1933-2018) diz sobre a revelação geral e a
revelação especial:

Por mais que a revelação geral nos forneça dados sobre Deus, ainda é
pouco. Como afirmou Tomás de Aquino, nós podemos saber que Deus existe
por meio da revelação geral, mas jamais saberíamos que ele é trino exceto
por uma revelação especial. A revelação especial é Deus se manifestando de
formas sobrenaturais. Ele não só se revelou ao aparecer de formas
espetaculares como a sarça ardente que não era consumida, como também
falou às pessoas em suas próprias línguas. (SIRE, 2009, p. 40).

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Segundo Rautmann (2018):

Quando usamos o termo no sentido teológico, estamos falando de uma


categoria que expressa a nossa fé cristã em um Deus dialógico. [...] Na
Sagrada Escritura, há diversas experiências particulares de revelações e
epifanias; no entanto, é no conjunto do acontecimento bíblico que se dá um
único e completo processo de automanifestação divina. (RAUTMANN, 2018,
p. 26)

A palavra Epifania, vem do grego epipháneia e significa aparições ou manifestações de


divindades. A revelação se daria por meio das aparições de deuses. Na Bíblia sagrada
temos relatos de Deus buscando se revelar ao ser humano e não o contrário:

Como manifestação de Deus à humanidade, a Revelação é compreendida


com base em três fenômenos distintos, porém interligados, sintetizados nos
seguintes conceitos: palavra, testemunho e encontro. Todos aqueles que,
no Antigo testamento, são designados como profetas eram os portadores da
palavra de Deus, a qual encontra sua plenitude no Novo Testamento por
meio do próprio Filho de Deus (Verbo de Deus) encarnado. Os apóstolos, no
momento que segue à ressureição de Jesus Cristo, testemunharam com suas
vidas as obras e palavras de Cristo; cada qual deu seu testemunho e, quando
se crê nesta palavra testemunhada, dá-se o encontro de Deus vivo e
verdadeiro. (RAUTMANN, 2018, p. 27)

Moraes e Moraes (2018) descrevem sobre os meios de revelação nos quais Deus se faz
conhecer aos seus filhos no Antigo Testamento, pontuam também que a revelação
geral é denominada universal ou histórica. Nela Deus Se faz conhecido por meio de
Sua ação, tanto na criação como na própria história.

No livro do profeta Ezequiel, capítulo 43, versículos 1 e 2, temos: “Então o homem


levou-me até a porta que dava para o leste, e vi a glória do Deus de Israel que vinha do
lado leste. Sua voz era como o rugido de águas avançando, e a terra estava refulgente
com a sua glória”. (Bíblia NVI)

E, no livro do profeta Isaías, capítulo 40, versículo 26, afirma-se: “Ergam os olhos e
olhem para as alturas. Quem criou tudo isso? Aquele que põe em marcha cada estrela
do seu exército celestial, e a todas chama pelo nome. Tão grande é o seu poder e tão
imensa a sua força, que nenhuma delas deixa de comparecer!” (Bíblia NVI).

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Martins (2015, p. 26) diz que a forma de Deus se manifestar-se à humanidade é por
meio da Criação, ou seja, das coisas criadas, do céu, da terra e tudo que se alcança
com os olhos. Pela sua criação, Deus demonstra inúmeras coisas a respeito de Si
mesmo: Sua divindade, Seu poder eterno, Seus atributos não visíveis, Sua glória e
imensidão, Suas obras criadas e Sua tenra bondade para com o ser humano.

Além desse vislumbre divino com base nas obras criadas, a história também testifica
que a humanidade não se desenrola ao léu, sem orientação ou ao acaso. A história
testemunha sobre alguém maior, conforme descrito no livro de Jó, capítulo 36, dos
versículos 26 ao 33, que diz:

Como Deus é grande! Ultrapassa o nosso entendimento! Não há como


calcular os anos da sua existência. Ele atrai as gotas de água, que se
dissolvem e descem como chuva para os regatos; as nuvens as despejam em
aguaceiros sobre a humanidade. Quem pode entender como ele estende as
suas nuvens, como ele troveja desde o seu pavilhão? Observe como ele
espalha os seus relâmpagos ao redor, iluminando até as profundezas do
mar. É assim que ele governa as nações e lhes fornece grande fartura. Ele
enche as mãos de relâmpagos e lhes determina o alvo que deverão
atingir. Seu trovão anuncia a tempestade que está a caminho; até o gado a
pressente. (Bíblia NVI).

Deus se revelou de forma muito peculiar com Jó, que aprendeu aspectos profundos
sobre Deus chegando a dizer que “Antes o conhecia de ouvir falar e depois passou a
dizer que o conhecia de com ele andar”. Em momentos de dor, sofrimento e aflição, Jó
entendeu que Deus se manifestou por meio de revelação especial em sua própria vida,
em uma espécie de relação pessoal.

Quanto a revelação especial, também chamado de teofania, no texto sagrado o seu


fundamento está expresso através de citações diretas:

Outro estágio da revelação é a palavra. A expressão Deus falou aparece


inúmeras vezes no AT [(Antigo Testamento)]. Ele falou com Noé, com os
patriarcas, com Moisés, com Samuel e com tanto outros. Por isso, é possível
afirmar que o tema da manifestação de Deus foi sendo transmitido
inicialmente de forma oral. (MORAES e MORAES, 2018, p. 39).

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Deste modo podemos também mencionar o autor Martins (2015) que descreveu as
camadas da forma com que Deus se revelou ao ser humano:

Portanto, na teologia, revelação é a manifestação de Deus, ou seja, Ele se


mostra, desvenda-se a si mesmo, expondo de forma clara seus atributos
naturais e morais. Além disso, Deus apresenta de forma clara seus desígnios
ao ser humano, dando-lhe todas as informações de si mesmo e de seu
anseio em tudo aquilo que o fiel deve e precisa saber. Aquilo que não é para
o Homem conhecer permanece oculto, sem desvendamento. Só há uma
forma de qualquer pessoa conhecer Deus verdadeiramente e ter comunhão
plena e consciente com e Ele: por intermédio da revelação divina.

[...] Uma forma de Deus se manifestar é por meio da Criação. Por ela, Deus
demonstra inúmeras coisas a respeito de Si mesmo: Sua divindade, Seu
poder eterno, Seus atributos não visíveis, Sua glória e imensidão, Suas obras
criadas e Sua tenra bondade para com o ser humano. (MARTINS, 2015, p.
25-26).

Portanto, tudo aquilo que podemos conhecer de Deus, Ele mesmo apresentou em sua
auto manifestação, ou seja, não conhecemos Deus como um cientista estuda um
objeto em um tubo de ensaio, fazendo experimentações, mas sim, à partir daquilo que
Ele permitiu conhecermos através de sua revelação especial (na bíblia e com Jesus) e
geral (através de sua criação).

2.3 Inspiração divina da escritura sagrada

A Inspiração, por outro lado, versa sobre a maneira pela qual Deus proporcionou sua
revelação secundária, já que a primária ocorreu no evento histórico de sua revelação.
Ou seja, a maneira pela qual os fatos histórico-bíblicos foram mantidos no ideário do
povo judeu e posteriormente foram grafados em códigos próprios do idioma hebraico,
recebeu o nome de inspiração.

O próprio texto bíblico traz esta assertiva na II Carta de Paulo à Timóteo, no capitulo 3,
versículo 16 e 17 quando diz: “Toda a Escritura é inspirada por Deus e útil para o
ensino, para a repreensão, para a correção e para a instrução na justiça, para que o
homem de Deus seja apto e plenamente preparado para toda boa obra.” (Bíblia NVI).

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A premissa é a seguinte: Deus se revelou ao homem e essa revelação foi gravada em


língua escrita. A pergunta agora é em relação à natureza da Bíblia Sagrada pela qual a
Revelação de Deus foi registrada.

O próprio texto sagrado traz a seguinte premissa em II Carta de Pedro: “Sabendo


primeiramente isto: que nenhuma profecia da Escritura é de particular interpretação.
Porque a profecia nunca foi produzida por vontade de homem algum, mas os homens
santos de Deus falaram inspirados pelo Espírito Santo.” (Bíblia NVI).

Martins (2015) explicita a dinâmica pela qual ocorreu o processo de revelação de Deus
ao homem e o processo de escrita do texto sagrado, ou seja, pela receptividade
humana do conjunto de escrita necessários e suficiente:

[...] a inspiração está conectada ao procedimento de composição e redação


da Bíblia, e não à obra da revelação em si. A revelação é a transmissão da
veridicidade de Deus ao ser humano; em contrapartida, a inspiração faz
referência à transmissão e a difusão dessa verdade, do receptor primário
para as demais pessoas.

[...] O fato de a Bíblia ser um registro inspirado da manifestação especial de


Deus a torna inteiramente inspirada na manifestação especial de Deus a
torna inteiramente verídica para a fé cristã. Ela é a verdade indefectível do
Criador para o ser humano, constituindo-se na fonte do comando supremo e
soberaníssimo em assuntos de fé e práxis cristã. (MARTINS, 2015, p. 29-31)

Martins aprofunda o tema, inclusive descrevendo a maneira pela qual Deus usa o texto
para se apresentar ao homem:

Quando o Espírito Santo persuade e convence a pessoa do pecado, da


justiça e do juízo, segue-se o poder que converte o pecador mediante a
força transformadora da palavra de Deus, a Bíblia. Outrossim, além de ter
um poder transformador, capaz de mudar a vida e o caráter da pessoa, as
Escrituras operam profundamente na santificação daquele que crê, para que
observe os ensinos nela exarados. Assim, a revelação de Deus foi poupada e
conservada em forma escrita para os seres humanos na Bíblia. Embora
muitas coisas que Deus ou Jesus disseram ou fizeram não estejam
registradas, ela representa a palavra divina para toda a humanidade.
(MARTINS, 2015, p.32-33).

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Essa explicação apresentada acima por Martins trata também do conceito de


iluminação (nosso próximo tema), ou seja, a maneira pela qual o texto sagrado salta
aos olhos do leitor e preenche seu coração, dando-lhe sentido e significado para
compreensão da vida, ou seja, do seu início, do seu desenvolvimento e do período pós
vida física-material, qual seja, a vida no mundo metafisico-transcendente.

2.4 Iluminação como chave hermenêutica divina de compreensão dos textos


sagrados

A premissa inicial sobre o assunto foi tratada nos tópicos anteriores, pois foi no texto
sagrado que Deus se revelou especialmente e traz o conceito sobre a revelação geral
de Deus. O item que tratou da inspiração fez com que o estudante de teologia
compreendesse a natureza dos escritos bíblicos. Mas é essencial abranger a maneira
pela qual o ser humano percebe Deus nas escrituras sagradas, bem como assimila ser
pecador e carecedor de um salvador. É, portanto, através do processo de ‘iluminação’,
que o leitor compreende o texto sagrado como um texto puramente humano, que o
texto surte o efeito salvífico no sujeito. Portanto, sem o toque divino o texto bíblico se
mantém ‘fechado’ para o espírito humano, permanecendo como mero escrito
histórico, perdendo a essência divina da qual creem os cristãos.

Portanto, “é por meio da iluminação, [que] os intérpretes contemporâneos podem-se


apropriar do significado do cânon bíblico para si mesmos” (DOCKERY, 2005. p.172).

Atualmente, por vezes o conceito de iluminação acaba ficando de lado, mas descobrir
que o “significado da Escritura envolve não apenas a análise do resultado do autor no
contexto escrito, mas também a obra realizada pelo Espírito Santo de iluminar a mente
do leitor para interpretar o texto” (DOCKERY, 2005. p.172).

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2.5 Hermenêutica: um panorama histórico

Antes de entrarmos com profundidade nas questões de técnica de interpretação é


importante partirmos da origem e do significado da palavra hermenêutica:

[...] que deriva do verbo grego hermeneuo e do substantivo hermeneia.


Estes termos estão relacionados a Hermes – o deus-mensageiro de pés
alados da mitologia grega. Cabia a ele transformar o que estava além do
entendimento humano em algo que a inteligência humana pudesse
assimilar. Afirma-se que foi ele quem descobriu a linguagem verbal e a
escrita, tendo sido o deus da literatura e da eloquência, dentre outras
coisas. Ele era o mensageiro ou intérprete dos deuses e principalmente do
pai, Zeus. Assim, o verbo hermeneuo passou a significar o ato de levar
alguém a compreender algo em seu próprio idioma (logo, “explicar”) ou em
outra língua (logo, “traduzir”). (ZUCK, 1994, p.20).

A hermenêutica, portanto, é a ciência e a arte de interpretar a Bíblia. É através dela


que se consegue extrair o seu real significado.

Não se trata de mecanismos meramente linguísticos e racionais, pois há na tarefa


hermenêutica um duplo desafio, ou seja, o de conhecer os aspectos próprios da vida
natural, e o outro é saber que estamos lidando um livro sagrado, portanto:

Quem não for regenerado não pode compreender totalmente o significado


da Bíblia. Quem não é salvo está cego espiritualmente (2 Co 4.4) e morto (Ef
2.1) Paulo escreveu: “Ora, o homem natural não aceita as cousas do Espirito
de Deus, porque lhe são loucura; e não pode entende-las porque elas se
discernem espiritualmente” (1 Co 2.14). isto significa que quem não é saldo
não tem condições de entender o que as Escrituras dizem? Não. Antes
significa que ele não tem a capacidade espiritual de receber e assimilar as
verdades espirituais. Como disse Martinho Lutero certa vez, os
irregenerados podem entender a gramática de João 3.16, mas eles não
agem em decorrência dos atos ali descritos. É neste sentido que são
incapazes de conhecer as coisas do Espírito de Deus.

Quem não é salvo não escolhe a verdade das Escrituras porque ela atinge
em cheio sua natureza pecaminosa... Uma pessoa que não é salva, em quem
o Espírito Santo não habita, pode entender mentalmente o que a Bíblia diz,
mas ela rejeita a mensagem e se recusa a assimilá-la e praticá-la. (ZUCK,
1994, p.24).

Dentro dos assuntos ligados à interpretação hermenêutica do texto sagrado, no caso, a


Bíblia, é importante dividi-la em dois momentos distintos: o Antigo Testamento e o
Novo Testamento.

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Para o antigo testamento nós temos, inicialmente, os intérpretes judaicos, que por
mais diversos que fossem tinham pontos em comum:

Em primeiro lugar, eles acreditavam na inspiração da Escritura. Em segundo


lugar, afirmavam que a Torá continha toda a verdade de Deus para a
orientação da humanidade [...]. Em terceiro lugar, os exegetas judaicos, por
sua perspectiva de que o texto continha muitos significados, levavam em
consideração tanto o significado literal ou manifesto quanto os implícitos.
Por fim, sustentavam que o objetivo de toda a interpretação é o de traduzir
as palavras de Deus em vida, tornando-as relevantes para as pessoas em
situações específicas de suas vidas. (DOCKERY, 2005. p.30)

Ocorre que, com o advento da vinda de Jesus Cristo, juntamente com os seus
apóstolos, o enfoque hermenêutico foi modificado:

[...] dependiam de práticas hermenêuticas estabelecidas pelo judaísmo


tardio, mas adaptaram os métodos à igreja com o acréscimo de um foco
cristológico. A igreja primitiva, provavelmente de forma mais inconsciente
do que intencional, praticava os procedimentos exegéticos do judaísmo
tardio, mas o contexto judaico no qual nasceu o NT não foi o paradigma
principal para a formação da hermenêutica cristã. Como afirma C.F.D.
Moule: “No cerne de sua interpretação bíblica está uma perspectiva
cristológico e cristocentrica”.

Jesus tornou-se a fonte direta e fundamental para o entendimento do AT


pela igreja. O novo paradigma desenvolveu-se porque ao paradigma
anterior faltava um foco cristológico. Era necessária uma perspectiva
hermenêutica que pudesse transformar a Torá numa Torá messiânica. Desta
forma, por meio do padrão que Jesus estabeleceu e que sua elevada
autoridade expressou por meio do Espírito, ele serviu como a fonte contínua
da abordagem hermenêutica das Escrituras, para a igreja primitiva. Portanto
a perspectiva cristológica dos primeiros cristãos permitiu-lhes a adoção do
uso normativo que o próprio Jesus fazia das Escrituras, possibilitando-os a se
voltarem para ele em busca de orientação em sua tarefa hermenêutica.
(DOCKERY, 2005. p.45).

No século II o enfoque passa a ser outro, pois a fé precisava ser protegida e defendida,
tamanha a quantidade de heresias surgidas no período. O pensamento era o seguinte:

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[...] os pais apostólicos, apologistas e heresiólogos encontraram o


verdadeiro entendimento da Bíblia no ensinamento dos apóstolos. Mas o
surgimento do gnosticismo e de outras contestações à ortodoxia prevalente
fizeram com que a exegese funcional dos pais apostólicos recebesse outros
desenvolvimentos hermenêuticos. Como a exegese funcional resultou tanto
na possibilidade de confusão e ambiguidade hermenêuticas como nas
questões relacionadas à unidade da Escritura e de sua mensagem, é preciso
encontrar uma resposta autorizada que lide com tais problemas.

O século II viu o surgimento de um cânon normativo, um bispo autorizado e


uma regra de fé aceita. Começando por Inácio e progredindo com Justino,
Irineu e Tertuliano, desenvolveu-se a alegação de que, se alguém quisesse
saber o verdadeiro significado da Escritura, deveria interpretar os textos sob
a orientação autorizada da regra de fé dos bispos ou presbíteros da igreja.
Todas as outras interpretações eram vistas como alienadas da verdade e
inaceitáveis na igreja. (DOCKERY, 2005. p.71)

O século II e III deu origem a Clemente de Alexandria e a Orígenes, fortes


influenciadores da interpretação bíblica (DOCKERY, 2005), principais nomes da escola
de alexandrina, com isso:

[...] a exegese escritural atingiu novos patamares. A exegese bíblica em


Clemente e Orígenes, ao adaptar a interpretação alegórica de Fílon e o
modelo filosófico do platonismo, ultrapassou a postura defensiva de Irineu e
Tertuliano. (DOCKERY, 2005. p.98)

A escola antioquena do século II, de Teófilo, João Crisóstomo e Teodoro de


Mopsuéstia, de pensamento aristotélico, reagiram fortemente ao
pensamento alegórico dos alexandrinos através de uma hermenêutica
lítero-histórica e tipológica.

Essa tradição enfatizava o significado literal e histórico do texto bíblico em


oposição a um significado espiritual e figurativo. Na mesma medida, seu
fundamento filosófico era mais aristotélico do que platônico. (DOCKERY,
2005. p.98-99 e 122).

Os séculos seguintes trariam uma hermenêutica canônica e católica e que seria


modificada por conta da reforma protestante:

Jeronimo, o grande tradutor Agostinho, o teólogo excelente, e Teodoreto, o


pastor-modelo, cada um mostrou elementos exegético literal e figurativa.
Cada um deles demonstrou suas preocupações para comunicar o significado
canônico da Escritura.

[...]

Enquanto Jerônimo e Agostinho mostraram um desenvolvimento que ia de


uma hermenêutica figurativa para uma literal, o moimento de Teodoreto
caminhou em outra direção. O que pode ser visto aí é o que nem as práticas
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alegóricas de Alexandria, nem as ênfases históricas de Antioquia


dominaram. Uma hermenêutica equilibrada e multifacetada emergiu,
influenciando as práticas hermenêuticas da Idade Média e dos períodos
posteriores à Reforma. (DOCKERY, 2005. p.149)

A contemporaneidade, pós reforma, no seio do período pós-moderno, precisa


compreender que o intérprete bíblico deve conhecer o conjunto histórico
hermenêutico para, também, conseguir ter bons métodos hermenêuticos para
conseguir entregar ao ouvinte o produto do seu labor.

Dockery (2005, p.173) vai concluir sua abordagem dizendo que: “[...] a variedade e o
desenvolvimento das abordagens hermenêuticas da igreja primitiva refletem-se na
diversidade representada pelas abordagens hermenêuticas contemporâneas”.

Osborne (2009, p27) afirma que: “A hermenêutica é importante porque capacita a


pessoa a se movimentar do texto para o contexto, para que o significado inspirado por
Deus na Bíblia fale hoje com uma relevância tão nova e dinâmica quanto em seu
ambiente original”.

O autor (2009, p. 29), ainda diz que: o objetivo da hermenêutica evangélica é bem
simples: descobrir a intenção do Autor/autor (autor=agente humano inspirado;
Autor=Deus, que inspira o texto)”.

Dockery ensina que são três os principais modelos hermenêuticos contemporâneos,


que se assemelham aos da igreja primitiva: orientadas para o autor, orientadas para o
leitor e, por fim, orientadas para o texto. O autor, ainda afirma que:

[...] diversas disciplinas abrangentes deveriam ser incorporadas à


interpretação bíblica: história, filosofia, teologia, estudos linguísticos e da
linguagem, literatura, retórica, sociologia e antropologia, entre outras.
Embora a preocupação com a interpretação bíblica deva permanecer
primordialmente como a preocupação das comunidades de fé, não
podemos adotar a obstinação de Tertuliano e tentar proteger a
interpretação da Bíblia das questões interdisciplinares mais amplas
suscitadas pelas perspectivas das diversas disciplinas. Dessa forma, a igreja
primitiva serve como uma importante janela não apenas para os insights
positivos sobre assuntos hermenêuticos contemporâneos, mas também
como meio de evitar as armadilhas e fracassos do passado. É preciso que
olhemos para aqueles sobre cujos ombros nos erguemos para obter clareza
de visão, conhecimento e motivação para abordar os desafios

16
,

hermenêuticos propostos pelos teólogos e intérpretes bíblicos de nosso


tempo. (2005, p.174-175)

Portanto, esmere-se no estudo, pois interpretar o texto sagrado é olhar para o texto
bíblico e prestar respostas condizentes às necessidades e respostas do tempo
presente, ou seja, é ser rico de informações do ambiente histórico-gramatical-social
bíblico e conseguir fazer a transposição segundo às demandas sócio histórico
contemporâneo, dando, portanto, significado à vida humana e ressignificação dos
problemas humanos.

Conclusão
Até o presente momento foi trabalhado o tema da vida humana em relação com o
divino, ou seja, a maneira pela qual Deus se revelou à humanidade, seja de maneira
geral, seja de maneira especial. Tratamos ainda, de temas teológicos como teofania,
revelação, inspiração e iluminação. Esses temas se relacionam com o livro sagrado dos
cristãos, pois é o fator fundador da fé cristã.
E, por fim, apresentamos um panorama histórico do desenvolvimento hermenêutico
para que o estudante consiga compreender e empregar na interpretação do texto
sagrado.

REFERÊNCIAS

DOCKERY, D. S. Hermenêutica contemporânea à luz da igreja primitiva. São Paulo:


Editora Vida, 2005.

ERICKSON, M. J. Introdução à Teologia Sistemática. São Paulo: Vida Nova, 1992.

MARTINS, J. G. Teologia sistemática: estudos iniciais. Curitiba: InterSaberes, 2015.

MATHISON, K. “Revelação Geral e Revelação Especial – Uma abordagem reformada


sobre a relação entre Ciência e Escrituras”. In: Tuporém. Disponível em:
<https://bit.ly/3msqRnM>. Acesso em: 18 set. 2020.

17
,

MATTOS, C. L. Francis Bacon, Descartes e Spinoza. São Paulo: Capivari, 1987.

MORAES, R. P. MORAES, M. M. Introdução à teologia bíblica do Antigo Testamento.


Curitiba: InterSaberes, 2018.

OSBORNE, G. R. A espiral hermenêutica: uma nova abordagem à interpretação


bíblica. São Paulo: Vida Nova, 2009.

RAUTMANN, R. Teologia Fundamental e da Revelação. Curitiba: InterSaberes, 2018.

SIRE, J. W. O universo ao lado: um catálogo básico sobre cosmovisão. 4. ed. São


Paulo: Hagnos, 2009.

“Teofania”. In: Wikipédia. Disponível em: <https://pt.wikipedia.org/wiki/Teofania>.


Acesso em: 18 set. 2020.

ZUCK, Roy B. A Interpretação Bíblica: meios de descobrir a verdade da Bíblia. São


Paulo: Vida Nova, 1994.

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