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► CAPÍTULO 43

Princípios do apoio matricial


Sonia Saraiva
Jorge Zepeda

Aspectos-chave
► O apoio matricial na saúde é um modelo de cuidados colaborativos
em que equipes de serviços diferentes trabalham de forma integrada
no cuidado da população. Neste capítulo, refere-se à integração de
especialistas com equipes de referência da atenção primária à saúde
(APS) (equipes de saúde da família), mantendo o cuidado sob
coordenação destas.
► O apoio matricial tem dois componentes: suporte pedagógico,
representado por discussão de casos, atendimentos conjuntos e
outras atividades colaborativas do apoiador com as equipes de saúde
da família; e retaguarda assistencial, representada por atendimentos
e outras intervenções específicas do apoiador junto aos usuários. O
equilíbrio entre os dois componentes é crucial para o sucesso da
integração entre as equipes.
► No apoio matricial, o especialista elabora planos terapêuticos em
conjunto com as equipes de saúde da família e maneja os problemas
de forma compartilhada. Mesmo quando o apoiador realiza
atendimentos específicos, não há transferência da responsabilidade
pelas pessoas ou fragmentação da comunicação, como ocorre com
referenciamentos tradicionais.
► A gestão do apoio deve ser feita conjuntamente por meio de
encontros entre os profissionais, para definição contínua de papéis
dos profissionais na atenção compartilhada, planejamento e
execução de intervenções conjuntas e educação permanente. A
atuação específica de cada profissional deve ser definida a partir das
demandas da população local e das equipes de saúde da família.
► Estudos qualitativos e análises de dados secundários sugerem
benefícios do apoio matricial na APS, mas não há evidências diretas
da efetividade do modelo. Existem, no entanto, evidências sobre a
efetividade de modelos internacionais nos quais o apoio matricial se
baseia, como os cuidados colaborativos.
► As evidências sobre cuidados colaborativos apontam resultados
positivos no processo de cuidado (p. ex., detecção ou prescrição), na
adesão e na satisfação dos usuários, e em desfechos de saúde para
problemas como depressão, ansiedade e diabetes.
► Para a implantação de mudanças efetivas e duradouras na interface
entre APS e especializada, é necessária reforma simultânea dos
aspectos clínicos, estruturais e organizacionais da atenção, por meio
de atividades colaborativas diretas, comunicação facilitada entre as
equipes, definição de papéis profissionais na atenção compartilhada
e suporte institucional à integração.

O apoio matricial é um modelo de cuidados colaborativos com base na


integração entre equipes de referência – responsáveis pela atenção direta e
continuada de uma população definida – e apoiadores, profissionais com
conhecimentos e habilidades complementares aos da equipe de referência. Ele
pressupõe a personalização das relações profissionais e o trabalho
interdisciplinar como caminhos para superar os mecanismos de referência e de
contrarreferência tradicionais dos sistemas de saúde hierarquizados. A ênfase da
proposta em uma equipe de referência, em vez de um médico de referência,
pressupõe estímulo ao cuidado interdisciplinar. É, ao mesmo tempo, uma
metodologia para a gestão da atenção à saúde e uma proposta de reforma das
organizações de saúde. A proposta se baseia na hipótese de que a reforma das
práticas em saúde depende centralmente da reconstrução dos padrões de relação
nos serviços de saúde, com base nas diretrizes da cogestão, de
interdisciplinaridade e de corresponsabilização no cuidado em saúde.1–3
As primeiras experiências de apoio matricial no Sistema Único de Saúde
(SUS) foram implantadas na década de 1990 em Campinas, inicialmente em
serviços de saúde mental. Na década de 2000, o modelo foi gradualmente
incorporado em políticas e programas nacionais das áreas de humanização,
saúde mental e saúde da família. Nesta década, municípios de médio e grande
porte implantaram experiências abrangentes de apoio matricial, principalmente
em saúde mental, ajudando a projetar e a desenvolver o modelo nacionalmente.4
Com a criação dos Núcleos de Apoio à Saúde da Família (NASF) em 2008 –
equipes multiprofissionais que trabalham com base no apoio matricial –, o apoio
matricial passa a ser o principal modelo preconizado pelo Ministério da Saúde
(MS) para integração de especialistas com as equipes de saúde da família. A
disponibilidade de financiamento federal para os NASF oportunizou rápida
expansão das experiências de apoio matricial, hoje uma abrangente política de
fortalecimento da APS presente em grande parte dos municípios brasileiros (ver
Cap. 44, Organização de serviço e integração com os Núcleos de Apoio à Saúde
da Família).
No cotidiano dos serviços de saúde, o apoio matricial é frequentemente
chamado de “matriciamento”, sobretudo ao referir-se aos encontros entre os
profissionais de diferentes equipes para troca de saberes e combinação de ações
no cuidado das pessoas.5,6 Quando não especificado, apoio matricial e
matriciamento serão aqui utilizados como sinônimos. O apoio matricial também
é utilizado além do âmbito da APS, por exemplo, em hospitais e outros serviços
especializados. Existem ainda propostas que compartilham as diretrizes e os
métodos do apoio matricial, mas não são diretamente voltadas para a integração
da atenção entre profissionais clínicos, como o apoio institucional,3 incorporado
pela Política Nacional de Humanização e por áreas temáticas, como Saúde da
Mulher e Saúde da Criança. Estes outros usos da “função apoio” são mais
próximos de reformulações das funções gerenciais do sistema de saúde.
Este capítulo apresenta diretrizes para organização do apoio matricial;
orientações práticas para uso do apoio matricial como modelo de integração de
novos profissionais na APS; alguns resultados de experiências de implantação do
apoio matricial no SUS; e evidências sobre outros modelos de cuidados
colaborativos que podem apontar caminhos para o desenvolvimento do apoio
matricial.

Concepção do apoio matricial


O nome apoio matricial deriva da concepção de organizações matriciais do
campo da administração. Uma organização matricial pode ser representada
graficamente como uma matriz, com as equipes de referência no sentido vertical
e os distintos apoiadores (com as atividades e procedimentos oferecidos) na
linha horizontal (linha de apoio matricial). Essa forma de organização facilitaria
a combinação de saberes técnicos distintos no manejo interdisciplinar de alguns
problemas, transformando uma estrutura de trabalho centrada nas especialidades
ou categorias profissionais em uma estrutura de trabalho por projetos
terapêuticos. As múltiplas possibilidades de combinação dessa matriz permitem
que as equipes explorem ao máximo os campos e núcleos[NA] de competência de
todos os profissionais.1,3 No apoio matricial, o foco principal está nas trocas de
saber em torno de necessidades ou problemas das pessoas sob responsabilidade
da APS.
Para operacionalizar as diretrizes de aumento da vinculação, da
corresponsabilização, da negociação e da integração na relação entre as equipes
de saúde, o apoio matricial busca personalizar os sistemas de referência e
contrarreferência, facilitando o contato direto entre o profissional encarregado de
um determinado caso e o especialista de apoio. Além disso, propõe a revisão da
prática do referenciamento e a construção de um sistema de compartilhamento e
corresponsabilização, que reforce a coordenação das ações entre os profissionais
e garanta a utilização adequada dos recursos especializados. A decisão sobre o
acesso de um caso ao apoio especializado, por exemplo, deve ser tomada de
maneira interativa entre o profissional ou equipe de referência e o apoiador, ou
de acordo com diretrizes pactuadas entre eles.7
Essas diretrizes são coerentes com estudos empíricos que apontam a
interferência de fatores não clínicos no percurso das pessoas entre APS e
especializada, como características demográficas das pessoas atendidas (p. ex.,
gênero e raça/etnia) ou qualidade da relação entre os profissionais.8 O rico
contexto interpessoal em que os processos de integração assistencial acontecem
sugere que o aspecto formal das mudanças pode ser apenas uma parte da
intervenção necessária para melhorar a comunicação e o entendimento entre
equipes. O foco no manejo ativo das relações interpessoais e na melhoria da
comunicação pode ser uma contribuição importante para uma integração mais
efetiva entre APS e especializada.9
O apoio matricial é um modelo complementar às estratégias de sistemas
hierarquizados de saúde, como formulários de referência e contrarreferência,
centrais de regulação e protocolos de acesso, postulado como mais adequado
para os problemas crônicos e multidimensionais comuns na APS. A ampliação e
a singularização da oferta de intervenções e recursos terapêuticos pelas equipes
envolvidas no cuidado compartilhado não devem ser confundidas com diluição
da responsabilidade sobre os casos. Quando uma pessoa se utiliza de uma ação
ou serviço ofertado na forma de apoio matricial, deve manter o vínculo com sua
equipe de referência na APS, mesmo que a maior parte das intervenções
aconteça em outros serviços. Não deve haver referenciamentos com
transferência de responsabilidade, mas sim o desenho de projetos terapêuticos
coordenados pela equipe de referência e executados por um conjunto mais amplo
de profissionais.2,7,10
Para o médico de família e comunidade, mesmo no caso do referenciamento, a
transferência de responsabilidade não é total; ele sempre mantém a
responsabilidade pelo acompanhamento de sua população de referência. No
planejamento do cuidado, pelo vínculo com a pessoa e sua família e pelo
conhecimento do contexto, ele tem mais capacidade de selecionar e coordenar as
ações apropriadas entre aquelas disponíveis. O médico de família pode ainda
facilitar uma comunicação eficaz entre todos os envolvidos no cuidado.11
No apoio matricial, os gestores devem ter importante papel de sensibilização
das equipes, mediando conflitos, garantindo pactos e manejando situações
imprevistas, inclusive com oferta de soluções gerenciais e processos formativos.
Alguns municípios definem apoiadores institucionais para coordenar e
acompanhar a implantação do apoio matricial. Eles são técnicos com
conhecimento da proposta, dos problemas que serão manejados e da rede local
de saúde, além de terem disponibilidade para trabalho direto junto às equipes de
saúde.12 Os apoiadores institucionais devem ainda colaborar na integração de
setores da gestão local, como APS, atenção especializada, programas
estratégicos e sistemas de informação, participando da construção de normas, de
formas de registro e do monitoramento das atividades dos apoiadores. Essas
iniciativas de sustentação institucional estão de acordo com estudos sobre
integração de serviços de APS e especializada que apontam a necessidade de
apoio em nível organizacional e reforma simultânea dos aspectos clínico,
financeiro e estrutural.13–15

Prática do apoio matricial


Em seu aspecto operacional, o apoio matricial busca ao mesmo tempo ampliar o
acesso à atenção especializada e fortalecer a efetividade da APS. Os apoiadores
matriciais devem oferecer às equipes de referência (no âmbito do SUS, as
equipes de saúde da família) uma retaguarda assistencial especializada, na forma
de atendimentos específicos e outras intervenções diretas junto às pessoas sob
cuidado compartilhado; e suporte técnico-pedagógico, na forma de intervenções
conjuntas com as equipes apoiadas, discussão de casos e educação
permanente.2,10 O sucesso do apoio matricial depende do equilíbrio entre esses
componentes, da definição clara de papéis dos profissionais no cuidado
compartilhado, do estabelecimento de comunicação efetiva entre as equipes e da
constituição de espaços para gestão conjunta das pessoas acompanhadas.
A composição profissional das equipes de apoio matricial é variável.
Idealmente, essa composição se daria pela prevalência local de problemas em
áreas específicas e pelas necessidades de apoio das equipes de saúde da família.
A responsabilidade do apoiador por atendimentos diretos à população varia de
acordo com a demanda das equipes apoiadas, a existência ou não de outros
serviços na área temática do apoiador e o núcleo profissional do apoiador (p. ex.,
especialistas médicos talvez oferecessem mais tempo de atendimentos
específicos do que profissionais de educação física). Consequentemente, o grau
de presença de cada apoiador junto às equipes de referência pode variar, desde
uma maior dedicação a atividades conjuntas com estas equipes até uma parcela
significativa de responsabilidade por atendimentos individuais, que podem
ocorrer nas próprias unidades de APS ou em unidades de referência.
Nas reuniões e em outros contatos entre as equipes, deve ser feita a regulação
conjunta do acesso da equipe de referência e da população às atividades do
apoiador, por meio da combinação dos papéis e funções de cada profissional na
atenção, da construção de diretrizes para acionamento do apoio (critérios de
risco e vulnerabilidade, prioridades de atendimento especializado) e de formas
de contato em casos imprevistos ou urgentes (p. ex., por telefone ou por meio
eletrônico). Essas diretrizes devem facilitar o contato entre profissionais e o
compartilhamento da atenção, evitando a burocratização de fluxos ou a criação
de percursos intermináveis que possam dificultar o acesso às ações necessárias.
O apoio matricial também prevê a articulação das equipes de referência e de
apoio matricial com outros serviços, da saúde e de outros setores, e com recursos
comunitários, configurando redes locais de cuidados.6,10
O contato entre a equipe de APS e o apoiador pode ocorrer basicamente de
duas maneiras: de forma programada, em encontros regulares e periódicos para
discussão de casos e para planejamento e execução de intervenções conjuntas; e
em situações urgentes ou imprevistas, em que não seria prudente esperar o
encontro programado com o apoiador e este é acionado pela equipe de saúde da
família por meios previamente pactuados. Estudos sobre cuidados
compartilhados mostram que a facilidade do contato entre equipe de referência e
apoiador em situações difíceis pode ser tão importante para o sucesso da
integração quanto a frequência dos encontros.16
Os encontros entre as equipes (“reuniões de matriciamento”) também podem
ser utilizados para treinamentos breves voltados para necessidades definidas em
conjunto, visando aumentar a autonomia e a confiança da equipe de saúde da
família e qualificar os referenciamentos. Podem ser fornecidos artigos, manuais,
instrumentos diagnósticos e orientações escritas para situações comuns.
Interconsultas breves, sejam presenciais, por telefone, ou por meio de
prontuários eletrônicos compartilhados, podem resolver muitas situações sem a
necessidade de reuniões ou atendimentos especializados.10
A discussão de casos e a formulação de projetos terapêuticos são atividades
das quais participam profissionais de referência do caso em questão (que pode se
referir a uma pessoa, uma família, um grupo ou outros coletivos) e um ou mais
apoiadores matriciais. Tais atividades podem ocorrer nos próprios encontros
regulares de matriciamento ou sempre que for necessário, inclusive utilizando
ferramentas de comunicação, como e-mail ou prontuário eletrônico. Essas
atividades são mais abrangentes do que a interconsulta tradicional, com origem
principalmente na psiquiatria de ligação[NA] dos hospitais gerais, em grande
parte porque o apoiador está diretamente implicado no projeto terapêutico, por
meio de atendimentos próprios ou de atividades colaborativas com as equipes de
referência.
Em geral, os casos selecionados para discussão no apoio matricial são aqueles
mais complexos, em que tradicionalmente se fariam referenciamentos a outros
profissionais e/ou serviços, gerando intervenções fragmentadas e pouco eficazes.
A abordagem de casos complexos é um dos momentos mais oportunos para
inclusão de outros membros da equipe de referência no apoio matricial, como os
Agentes Comunitários de Saúde e técnicos de enfermagem, que podem realizar
intervenções específicas próprias de seus núcleos profissionais e também
assumir papéis importantes na gestão do cuidado, como o reforço à adesão, a
identificação de recursos comunitários ou a busca ativa.17 Discussões de casos e
de projetos terapêuticos também são oportunidades preciosas de educação, pois
os profissionais tendem a aprender mais quando motivados pelo envolvimento
com uma situação concreta sob sua responsabilidade.
O atendimento conjunto é uma intervenção que tem como sujeitos de ação,
pelo menos, um profissional da equipe de referência, um apoiador matricial e
uma pessoa em atendimento. Pode ser uma consulta na unidade de saúde, uma
visita domiciliar ou a coordenação de um grupo. Essa intervenção normalmente
é solicitada pelo profissional mais diretamente envolvido no caso. É muito útil
em situações de dúvida diagnóstica, dinâmica familiar ou social complexa,
dificuldade de adesão ou vinculação do usuário, ou encontros difíceis dos
profissionais com as pessoas atendidas.5
Um dos pontos essenciais da consulta conjunta é que cada um dos
participantes aprenda com o outro sobre as técnicas de abordagem utilizadas.5
Por exemplo, consultas conjuntas envolvendo um médico de família e
comunidade e um profissional de saúde mental poderiam beneficiar o primeiro
com maior capacidade de avaliar o sofrimento psíquico e oferecer suporte
psicológico, ao passo que o profissional de saúde mental poderia desenvolver
abordagens psicoterápicas mais ágeis, focadas e adequadas ao contexto da APS.
Trata-se de um dos momentos mais importantes de educação permanente e
compartilhamento da clínica no apoio matricial.
As prioridades de atuação do apoiador devem ser definidas a partir de
levantamento conjunto dos principais problemas da equipe de saúde da família e
da população, podendo variar conforme a equipe e o tempo. A agenda do
apoiador deve ser dinâmica e transparente, e os espaços de encontro entre as
equipes devem ser utilizados ao mesmo tempo para gestão do apoio, execução
de ações conjuntas e acompanhamento dos casos compartilhados. Os
coordenadores dos serviços devem garantir espaço na agenda dos profissionais e
organizar a equipe das unidades para dar retaguarda a esses encontros,
conciliando apoio matricial e atenção à demanda espontânea. Devem-se
construir, também, canais ágeis de comunicação entre os serviços (telefone,
internet, prontuário comum), não só para urgências, mas também para promover
um maior intercâmbio de informações entre os profissionais, não limitado às
demandas de referenciamento de casos. O aumento na comunicação é um
princípio organizativo da integração de serviços18,19 e pode melhorar o acesso
das pessoas a ações mais adequadas a suas necessidades, contribuindo para
diminuir iniquidades em um contexto de oferta ainda insuficiente de alguns
serviços no âmbito do SUS.
O Quadro 43.1 sintetiza atividades que devem ser definidas em conjunto e de
forma contínua entre equipes de saúde da família, apoiadores e gestores locais na
implantação do apoio matricial.

Quadro 43.1 | Atividades iniciais de apoio matricial

► Definição de papéis profissionais no cuidado compartilhado (inclusive papéis


dos gestores locais)
► Definição conjunta da agenda de reuniões e atividades colaborativas
► Definição de formas de acesso aos atendimentos e outras intervenções
diretas do apoiador (p. ex., grupos)
► Definição de formas de acesso da equipe de referência ao apoiador em
situações imprevistas ou urgentes
► Manejo de listas de espera nas áreas temáticas dos apoiadores
► Definição de fluxos para referenciamento a serviços especializados (p. ex.,
CAPS, ambulatórios)
► Definição de fluxo para casos recebidos de outros serviços e setores (p. ex.,
hospitais, CRAS)
► Discussão de casos e formulação de projetos terapêuticos
► Atendimentos específicos do apoiador (consultas, visitas, grupos)
► Atendimentos conjuntos (consultas, visitas, grupos)
► Atividades de educação permanente
► Construção de formas não presenciais de discussão de casos (e-mail,
telessaúde)
► Construção de critérios de prioridade para o apoio
► Construção de roteiros de consultas e outras ferramentas clínicas e de
gestão do cuidado
CAPS, centros de atenção psicossocial; CRAS, centros de referência de assistência social.

O acesso à atenção especializada ainda é um dos maiores problemas do SUS,


tanto devido à baixa oferta quanto a barreiras organizacionais nos serviços. Por
isso, não é incomum que a chegada de um apoiador seja entendida – pela equipe
de saúde da família e pela população – como uma oportunidade de oferecer
acesso a uma enorme demanda reprimida. Um dos primeiros temas a ser
trabalhado, portanto, é o manejo conjunto das listas de espera para atendimentos
especializados, que pode ser um foco de tensões e gerar atitudes de defesa e
desresponsabilização por parte dos profissionais, prejudicando a implantação do
apoio matricial. Por isso, merecem atenção especial da gestão local, na forma de
mediação e apoio nos encontros entre as equipes. Devem ser utilizadas as
próprias estratégias do apoio matricial para avaliação conjunta dessas pessoas,
como discussões de caso, além de estratégias de comunicação com a população,
como atividades em sala de espera e reuniões na comunidade. Essa pode ser uma
importante oportunidade para definição de papéis e fluxos entre os profissionais,
levantamento de necessidades de educação permanente, formulação de diretrizes
de acesso e roteiros para situações comuns, como referenciamentos externos ou
urgências. A clínica compartilhada deve ser construída no próprio processo de
manejo das demandas da APS, nunca à parte deste, sob o risco de tornar-se
irrelevante para as equipes apoiadas e para a população.
A tensão entre atendimentos específicos do apoiador e atividades
colaborativas diretas com as equipes apoiadas está presente nos textos seminais
sobre apoio matricial, assim como em grande parte das experiências de
implantação.20 Em parte, esta dicotomia foi reforçada pelas orientações iniciais
do MS para operacionalização dos NASF, que recomendavam atendimentos
específicos apenas em caráter excepcional e sempre mediados por discussão com
as equipes apoiadas.21 Em textos mais recentes, essa dicotomia é relativizada ao
se considerar uma dimensão clínico-assistencial para o NASF,10 mas mantém-se
certa subordinação da dimensão assistencial do apoio à dimensão técnico-
pedagógica. Outra fonte de confusão é a caracterização dos NASF como equipes
da atenção básica e o estímulo à realização de atividades generalistas por estes
profissionais (p. ex., acolhimento, territorialização, educação em saúde),
inclusive atividades próprias da gestão (p. ex., supervisão, monitoramento),
ligadas ou não a seus núcleos de atuação.20,22
Estas orientações contraditórias geram ambiguidades e superposições entre
funções das equipes de saúde da família, dos NASF e dos gestores locais, além
de dicotomias entre APS e especializada. Como resultado, observa-se uma série
de desvios dos apoiadores dos seus núcleos de competência, muitas vezes
assumindo funções superpostas àquelas das equipes apoiadas ou dos gestores
locais, minando o potencial do apoio matricial de ampliar a capacidade
assistencial da atenção básica e o acesso à atenção especializada. Uma vez que a
necessidade de atendimentos específicos costuma ser consensual entre
apoiadores e equipes de referência, a maior parte da agenda dos apoiadores deve
ser dedicada a ações assistenciais, pactuadas, articuladas e acompanhadas em
conjunto com as equipes apoiadas. Vale lembrar que o atendimento dos
problemas da população é o centro da missão da atenção básica, ocupando em
torno de 80% do tempo das equipes de saúde da família. A restrição aos
atendimentos específicos dos apoiadores e consequente responsabilização
exclusiva da equipe de saúde da família pela pressão da demanda gera mais
tensão do que oportunidades de trabalho colaborativo nas relações entre
apoiadores e equipes apoiadas. Muitas vezes, a saída encontrada por todas as
partes é uma retomada da organização tradicional de serviço de ambulatório, o
que também se revela ineficaz, uma vez que traz de volta a fragmentação do
cuidado e a transferência de responsabilidade que o apoio matricial busca
superar.20,22
O Quadro 43.2 lista alguns destes problemas encontrados na implantação do
apoio matricial.
A incorporação de novos profissionais ou novas funções em equipes de saúde
também demanda mudanças nas práticas clínicas e de gestão de todos os
envolvidos. No caso do apoio matricial, este é um dos objetivos pretendidos. As
competências necessárias ao desempenho da função de apoiador matricial muitas
vezes ultrapassam aquelas do núcleo profissional de cada apoiador. Apoiadores
matriciais precisam ampliar e compartilhar seus conhecimentos e habilidades,
adequar sua prática clínica à dinâmica da APS, lidar com pressões por
atendimentos e gerir uma agenda extremamente complexa. Os profissionais de
referência – além da responsabilidade direta pelo acompanhamento de sua
população de referência –, precisam organizar a demanda, encontrar brechas
para planejar ações conjuntas, selecionar casos para discussão e atendimento
pelo apoiador e coordenar projetos terapêuticos interdisciplinares. O grau de
organização da APS, incluindo formação e estabilidade dos profissionais, pode
ser um dos principais fatores determinantes do sucesso da implantação do apoio.
Ambas as equipes precisam ampliar suas capacidades clínicas, educativas e de
escuta, desenvolver habilidades de comunicação, de gestão e de trabalho
interdisciplinar e intersetorial.
As mudanças demandadas pelo apoio matricial na prática dos profissionais de
saúde e a ampla penetração deste modelo de atenção no SUS têm levado a
redirecionamentos importantes na formação e prática dos profissionais.6 Essas
mudanças impactam nas diretrizes curriculares de cursos de graduação e na
criação de modalidades específicas de pós-graduação. O MS e as Secretarias de
Saúde têm assumido papel central, em conjunto com as universidades, na
incorporação do apoio matricial na formação em pós-graduação, como
representado pela expansão dos programas de Residência Multiprofissional em
Saúde da Família para profissionais dos NASF. Outras iniciativas têm sido
produzidas também em nível de aperfeiçoamento, utilizando educação à
distância, como o Curso de Aperfeiçoamento Apoio Matricial na Atenção Básica
com ênfase nos NASF.23 As pessoas que buscam cuidado na APS precisam
compreender como usar os recursos disponíveis e ter suas demandas atendidas.
Pode ser difícil entender a organização do apoio matricial e o papel dos
apoiadores, principalmente quando há indefinição ou ambiguidade das equipes
de saúde da família a respeito dos papéis profissionais na atenção compartilhada
ou dos fluxos para acesso às intervenções dos apoiadores. Ainda que a atenção
compartilhada preveja outros mecanismos além das consultas especializadas do
apoiador, os recursos disponíveis e as formas de acesso devem estar claros,
evitando-se percursos intermináveis ou barreiras desnecessárias.

Quadro 43.2 | Problemas comuns na implantação do apoio matricial

► Concentração do apoiador em ações generalistas superpostas com as da


equipe de saúde da família com prejuízo da oferta de atendimentos
específicos
► Concentração do apoiador em atividades de supervisão próprias dos
gestores locais com prejuízo à atenção clínica compartilhada com as
equipes de saúde da família
► Concentração do apoiador em atendimentos específicos organizados como
serviço de ambulatório, sem qualificação da filtragem de casos, mecanismos
de regulação de acesso ou gestão da demanda
► Ênfase excessiva na realização de atividades conjuntas presenciais com as
equipes de saúde da família, levando a baixo rendimento do apoio e/ou à
sobrecarga das equipes apoiadas
► Ênfase excessiva na necessidade de discussão de caso e/ou construção de
projetos terapêuticos para todos os casos atendidos pelo apoiador, gerando
gargalos no acesso à atenção especializada
► Limitação do contato entre apoiadores e equipes de referência às reuniões
presenciais, levando à comunicação pouco efetiva e à baixa integração
► Suporte ausente ou pouco efetivo da gestão local à definição e gestão das
atividades do apoio matricial, levando à indefinição de papéis, ao descrédito
da proposta e à tensão por atendimentos em modelo ambulatorial

Evidências sobre apoio matricial


Apesar do tempo de experiência e da ampla penetração da proposta no âmbito do
SUS, as evidências sobre efetividade do apoio matricial ainda são inconsistentes.
A grande maioria dos estudos publicados sobre apoio matricial é descritiva ou
exploratória. Algumas avaliações qualitativas de experiências locais, em geral
baseadas em entrevistas com profissionais, apontam benefícios do apoio
matricial na detecção de transtornos mentais, no acesso a tratamentos e na
capacitação das equipes de APS.17,24,25 Um estudo longitudinal com base em
dados de produção ambulatorial de uma capital apontou aumento na detecção e
no acompanhamento de transtornos mentais por médicos de APS.26 Dois estudos
transversais de abrangência nacional, com base em dados do Programa de
Melhoria do Acesso e da Qualidade da Atenção Básica (PMAQ-AB), apontaram
correlação entre grau de apoio matricial e chance de a equipe de saúde da família
receber certificação positiva.27,28 Estes estudos são detalhados a seguir.
Em Campinas (SP), a partir de 2001, as equipes de saúde mental das Unidades
Básicas de Saúde (UBS) e dos Centros de Atenção Psicossocial (CAPS)
passaram a apoiar as equipes de saúde da família, discutindo casos e realizando
atendimentos especializados.4 Um estudo avaliativo com base em grupos focais
com profissionais de saúde da família, de saúde mental e gestores sugere
benefícios deste modelo, mas também revela dilemas. Os profissionais de saúde
da família destacaram como benéficos os roteiros de consulta discutidos no
matriciamento, usados para aprimorar a coleta de informações e orientar os
atendimentos, mas expressaram preocupação com a eficácia limitada de suas
intervenções e receio de não serem capazes de realizar uma avaliação adequada.
Na opinião destes, a capacidade de acolher o sofrimento mental dependeria de
disponibilidade de perfil e de formação do profissional. Os profissionais de
saúde mental destacaram como benéficos os atendimentos conjuntos, que trariam
capacitação in loco para as equipes de saúde da família, e apontaram a
necessidade de adequar a clínica de ambas as equipes para o contexto da APS.
Esses profissionais apontaram problemas na definição de responsabilidades dos
profissionais pela atenção aos usuários e demonstraram tendência em transferir
para as equipes de saúde da família a responsabilidade pelas dificuldades em
realizar o apoio matricial, com pouco reconhecimento de sua própria dificuldade
em compreender a proposta, assumir o papel de apoiadores e compartilhar seu
saber. Ambos os grupos de profissionais apontaram que a ampliação da
capacidade resolutiva das equipes de saúde da família não poderia substituir as
ofertas especializadas da saúde mental.24 Um estudo avaliativo mais recente
também realizado em Campinas apontou benefícios do apoio matricial para
definição de fluxos, qualificação das equipes e promoção de assistência
compartilhada.17
Em Sobral (CE), a partir de 2004, profissionais dos CAPS passaram a visitar
regularmente as UBS para discussão de casos, visitas domiciliares e consultas
conjuntas, visando ampliar a autonomia dos profissionais da APS para manejo
de transtornos mentais.13 Um estudo qualitativo com base em entrevistas com
profissionais e usuários de Sobral e de Fortaleza sugeriu melhoras na detecção
de transtornos mentais na APS, mas também apontou insegurança das equipes de
saúde da família no manejo dos usuários detectados e nos referenciamentos
precipitados e pouco efetivos aos CAPS.25 Macaé e Petrópolis (RJ) implantaram
modelos inspirados no caso de Sobral, tendo verificado diminuição nas
hospitalizações psiquiátricas e nos atendimentos de urgência.13
Florianópolis (SC) iniciou, em 2006, uma regionalização das equipes
ambulatoriais de saúde mental, compostas por psicólogos e psiquiatras, que
passaram a realizar apoio matricial às equipes de saúde da família. Os
profissionais de apoio também ficaram responsáveis pela assistência, realizando
atendimentos específicos dos casos que ultrapassam a capacidade de resolução
das equipes de saúde da família. Com isso, buscou-se ampliar o compromisso de
todos os profissionais com a gestão conjunta dos casos. Os profissionais de
saúde mental também se articulam regionalmente com os CAPS para discussão
de casos e regulação do percurso dos usuários entre os níveis de APS e
especializada. Nos dois primeiros anos de implantação, houve diminuição nas
internações psiquiátricas, maior do que nas internações por outras causas.12,26,29
A partir de 2009, mesmo com a integração das equipes de saúde mental aos
NASF, manteve-se o modelo anterior, com equilíbrio entre carga horária de
atendimentos específicos e atividades de suporte às equipes apoiadas.30
Um estudo longitudinal retrospectivo, com base na análise de dados
secundários do prontuário eletrônico cobrindo todas as consultas realizadas por
médicos da APS e psiquiatras entre 2005 e 2010, demonstrou aumento
significativo na detecção e no acompanhamento de transtornos mentais por
médicos de APS.26
As experiências descritas variam em relação ao serviço de onde é oferecido o
apoio, aos profissionais participantes ou ao grau de responsabilidade do apoiador
por atendimentos específicos, mas têm em comum o encontro presencial entre os
profissionais, com utilização variável de discussão de casos, atendimentos
conjuntos e educação permanente, e a regulação do acesso, com definição de
prioridades para atendimento especializado. A análise dessas e de outras
experiências bem documentadas pode gerar informações sobre barreiras e
facilitadores para implantação e sobre efeitos do apoio na APS, apontando
caminhos para o desenvolvimento do modelo.
Mais recentemente, dois estudos transversais27,28 buscaram correlacionar
níveis de apoio matricial com resultados obtidos pelas equipes de saúde da
família no primeiro ciclo do PMAQ-AB, que incluiu cerca de metade das
equipes de saúde da família do Brasil. Foram utilizadas respostas dessas equipes
durante a certificação externa do PMAQ-AB. Um dado notável da amostra
pesquisada é que 85% das equipes responderam que realizavam atividades de
apoio matricial, com 55% relatando receber entre seis e oito atividades distintas.
Em que pese a possibilidade de viés de inclusão – no primeiro ciclo do PMAQ-
AB, só foi permitida a inclusão de metade das equipes, o que pode ter levado os
gestores locais a incluírem suas “melhores equipes” com o objetivo de receber
melhor certificação e consequentemente mais recursos federais –, o dado revela
a alta penetração nacional do apoio matricial no cotidiano das equipes de saúde
da família.
No primeiro estudo,27 foi analisada a correlação entre um alto grau de apoio
recebido pelas equipes – representado por maior número de atividades de apoio
matricial[NA] – e a chance de a equipe receber melhor certificação nas áreas de
atenção à criança, à mulher, hipertensão/diabetes e saúde mental. Verificou-se
associação positiva entre grau de apoio e resultados bons/ótimos na certificação
em todas as áreas, com menor ênfase na saúde mental. A análise por atividades
específicas de apoio mostrou correlação positiva entre melhor certificação nas
áreas estudadas e educação permanente, construção conjunta de projetos
terapêuticos, discussão sobre processo de trabalho e intervenções no território, e
correlação negativa com consultas clínicas do apoiador e visita domiciliar com
os profissionais.

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