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O Que É A Vida - Antonio Donato
O Que É A Vida - Antonio Donato
INTRODUÇÃO A CONCEITOS
FILOSÓFICOS E METAFÍSICOS
FUNDAMENTAIS
[versão 21 provisória e parcial]
I. INTRODUÇÃO
A maioria dos homens não possui uma noção clara do que é cada coisa. Uma das
provas deste fato é a facilidade com que a propaganda e a ideologia podem facilmente
modificar os conceitos de uma sociedade sobre a maioria dos assuntos. Mas mesmo que
alguém conhecesse a natureza de cada uma das coisas, isto não revelaria a trama última da
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natureza. O universo não é um amontoado desordenado de entes que possuem uma natureza
exata, assim como a história não é um conjunto de fatos que se sucedem, nem a soma dos
personagens que a compõe. Uma rede de relações de causalidade, invisível aos aparelhos
científicos e aos computadores, somente apreensíveis pela mente humana, interliga todos
estes entes em uma ordem comum. Ainda que um homem conhecesse todas as coisas, se
não penetrasse nesta ordem, pouco conheceria da realidade. O estudo da ordenação de
todas as coisas é o segundo objeto de estudo do filósofo. Neste sentido, compete ao filósofo
não apenas conhecer de cada coisa o que ela é, mas também ordenar em sua mente todo o
universo à sua volta. Uma vez feito isto, ele poderá ordenar sua vida, sua escola, sua
sociedade, cada uma das realidades sobre a qual ele possui alguma influência, ao conjunto
de todas as coisas. E, neste sentido, o filósofo deveria ser a figura mais necessária à missão
de governar. Nenhum rei, nenhum presidente, nenhum Papa, nenhum bispo, nenhum
ministro, nenhum legislador, nenhum juiz, nenhum educador, nenhum pai de família
poderia dispensar responsavelmente o conhecimento filosófico. Sem o conhecimento
filosófico somos como cegos que somente apreendemos o que imediatamente podemos
tocar; se o resto do mundo quisesse reunir-se para nos destruir, nada compreenderíamos até
que o golpe final tivesse sido dado.
Finalmente, em terceiro lugar, toda ordem enquanto tal deve possuir uma ordenação
a um princípio último do qual depende toda a ordem. Sem o conhecimento deste princípio
não se pode dizer que seja conhecida a verdadeira natureza da ordem. O conhecimento do
primeiro princípio do qual depende a ordem de todas as coisas é o que em filosofia se
chama simplesmente de o conhecimento da verdade. Filosoficamente o conhecimento da
verdade é muito difícil. Ele supõe o conhecimento da ordenação de todas as coisas,
pressupondo que esta ordenação realmente exista, o qual conhecimento por sua vez supõe o
conhecimento da natureza exata de cada uma das coisas, pressupondo que cada coisa tenha
uma natureza cognoscível.
Neste texto não iremos nos ocupar nem com o conhecimento da verdade, nem com
o conhecimento da ordem universal, nem com o conhecimento da natureza de todas as
coisas. Vamos preocupar-nos apenas em compreender, exata e filosoficamente, a essência
do que é uma única coisa, e esta será a vida. Vamos buscar compreender, de modo
introdutório para um estudo de Filosofia, o que é exatamente a vida. Para os que supõem
que seja um objetivo muito ambicioso, vale notar que trata-se apenas de um dos muitos
entes que o filósofo deve conhecer exatamente, antes de tentar empreender em sua alma a
construção de uma reprodução da ordem cósmica.
2. O que é a vida.
A filosofia grega chegou a uma definição exata e final do que seja a vida, na qual no
correr dos séculos a meditação dos sábios não mais encontrou o que corrigir.
Nos escritos da Filosofia Perene os seres vivos são apresentados como aqueles entes
que são, pela sua própria natureza, capazes de produzir movimentos imanentes. Entende-se
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por movimentos imanentes os movimentos que, por contraposição, não são transeuntes. Um
movimento transeunte é aquele que passa de um ente a outro, ou aquele pelo qual um ente
move a outro ente. Um movimento imanente é aquele que permanece no próprio ente, ou
aquele pelo qual um ente é capaz de mover a si mesmo. São seres vivos aqueles que são,
pela sua própria natureza, capazes de moverem a si mesmos. São seres inanimados aqueles
que somente são capazes de mover a outros e são incapazes de se moverem a si próprios.
Neste sentido, vida é a capacidade de mover-se a si mesmo ou a capacidade de produzir um
movimento imanente.
Note que, conforme será discutido mais adiante, há um princípio metafísico segundo
o qual nada pode mover-se a si próprio e tudo o que é movido deve ser movido por outro.
Este princípio parece contradizer a definição da vida, pois afirmamos que a vida é a
capacidade de produzir um movimento imanente ou a capacidade de que algo mova a si
próprio. Os dois princípios reconciliam-se compreendendo-se os seguintes dois pontos, que
serão explicados no decorrer do presente texto:
Colocadas as coisas desta maneira, para que algo possa estar vivo ele deve poder,
por sua própria natureza, mover a si mesmo.
Isto implica, em primeiro lugar, que tanto a parte movente como a parte movida do
ser vivo devem compartilhar a mesma natureza, pois se assim não fosse o movimento não
seria imanente mas transeunte. Isto é, se a parte movente e a parte movida tivessem
naturezas diferentes, ambas constituiriam dois entes diversos e o movimento estaria
passando de um ente a outro, em vez de permanecer no mesmo ente. A unidade de natureza
entre as partes do ser vivo, porém, implica em uma unidade de forma substancial. Logo
mais adiante veremos o que significa isto. Fica, porém, a conclusão de que não pode haver
movimento imanente se não houver unidade de forma substancial entre as partes movente e
movida.
Mas isto implica também, em segundo lugar, que o movimento imanente pelo qual
se define a vida deve provir também, como de seu princípio formal, da própria forma
substancial que dá unidade ao ser vivo, caso contrário não seria por sua própria natureza
que ele seria capaz de mover a si mesmo. O que determina a natureza de cada ser é a sua
forma substancial. Portanto, se o ser vivo é o ente capaz de, por sua própria natureza,
mover a si mesmo, esta capacidade deve provir de sua forma substancial. Logo mais
adiante veremos mais claramente o que significa a forma substancial de cada coisa.
Mas assumindo por enquanto que se cada coisa possui uma natureza específica por
causa de sua forma substancial, algo somente poderá mover a si mesmo por sua própria
natureza se possuir uma única forma substancial e se esta capacidade de mover a si mesmo
provier desta forma substancial como de sua causa formal. Portanto uma coisa somente
poderá estar viva, ou animada, se esta vida ou animação provier de sua forma substancial
como de seu primeiro princípio. Daí que chamamos à forma substancial dos seres vivos de
seu princípio vital, de seu princípio animador, ou simplesmente de alma, aquilo que anima
os seres animados. Para que um ente possa ser vivo, ele deverá ser formalmente animado
pela sua própria forma substancial. Se não for assim ele não moverá, por sua própria
natureza, a si mesmo.
É por este motivo que nos escritos de Aristóteles e de Santo Tomás de Aquino
define-se a alma como sendo
Muitas vezes diz-se também, abreviadamente, apenas que a alma é a forma substancial do
corpo, subentendendo-se nestas palavras o restante da definição.
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II. CONTEXTUALIZAÇÃO
HISTÓRICA DA FILOSOFIA
Esta lei não é conseqüência do conceito de força, mas uma restrição dele. Nas definições
Newton havia definido força como "uma ação capaz de modificar a quantidade de
movimento". Esta definição, porém, não exigia que a quantidade de movimento não
pudesse ser modificada por si mesma sem ter uma força como causa. A primeira lei do
movimento passa a exigir que sempre que uma força age, a quantidade de movimento tenha
que ser modificada e, inversamente, sempre que a quantidade de movimento é modificada,
uma força necessariamente teve que agir.
C. A cada ação [de uma força] existirá sempre uma reação [de outra força]
igual e contrária.
Daí para a frente, ao longo do primeiro livro, Newton passa a demonstrar como
a força gravitacional pode produzir diversos tipos de movimentos e, no Livro II, estuda o
movimento dos corpos submetidos às forças de atrito. Finalmente, no Livro III, deduz o que
ele chamou de "Esquema do Sistema do Mundo", em que mostra como, partindo dos
princípios estabelecidos, podem ser descritas as órbitas dos planetas e dos cometas em
torno do Sol, dos satélites em torno dos planetas e os movimentos das marés sobre a Terra.
Segundo suas palavras:
No último parágrafo de sua obra, Isaac Newton advertiu que, para que a Filosofia Natural
fosse completa, seria necessário acrescentar à matéria e à força gravitacional, esta tão
exaustivamente estudada nos Principia Mathematica, aquilo que posteriormente veio a ser
conhecido como carga elétrica e a força eletromagnética,
Principia Mathematica,
Livro III, Escólio Geral
Assim podemos dizer que as ciências experimentais foram concebidas como um sistema de
Filosofia que postula como realidades fundamentais do cosmos entidades tais como a
massa e a carga elétrica, a força gravitacional e a força eletromagnética e, a partir destas
realidades tomadas como princípios, elaboraram uma impressionante síntese do Universo.
Os desenvolvimentos recentes das ciências experimentais não alteraram substancialmente o
sistema original. Acrescentaram à massa, à carga elétrica e às forças gravitacionais e
eletromagnéticas novos elementos e modificaram a metodologia com que estas entidades
fundamentais deveriam ser descritas, mas conservaram a mesma concepção básica pela
qual o cosmos é descrito.
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Principia Mathematica,
Livro III, Escólio Geral
A segunda lacuna das ciências experimentais como Filosofia consiste em que os princípios
que aí são tomados como primeiros não parecem ser primeiros de um modo absoluto. Em
vez disso parece claro que deva haver princípios anteriores aos que são tomados como
primeiros, ao mesmo tempo em que parece não haver modo de identificá-los. O problema
foi claramente apontado por Newton e persiste substancialmente inalterado até hoje, o que
sugere a possibilidade de ser causado não pela carência de um maior número de dados
experimentais, mas por uma limitação do próprio sistema, ou a dependência do sistema de
algum outro baseado em princípios mais elementares. Segundo as palavras do próprio
autor,
Principia Mathematica,
Livro III, Escólio Geral
Antes das ciências experimentais, houve uma segunda tentativa de construção de uma
síntese da estrutura do cosmos. Ficou conhecida na história como a Filosofia Moderna. O
sistema teve início em 1637, com a publicação da obra "Discurso do Método", de René
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Descartes. O autor, conhecido também como criador da Geometria Analítica, apesar de ter
vivido antes de Newton, parece ter iniciado suas indagações a este respeito como se
estivesse partindo da segunda das lacunas que acabamos de apontar nas ciências
experimentais, aquela segundo a qual seus primeiros princípios parecem pressupor outros
mais elementares e anteriores. No "Discurso do Método" René Descartes narra a história
de uma obstinada busca por um princípio de conhecimento que seja absolutamente
primeiro, sem qualquer outro que lhe possa ser anterior, que possa ser o fundamento de um
sistema de conhecimento que não dependa de outro fundamentado em princípios mais
elementares e cujo ponto de partida seja indubitavelmente certo. Na quarta das seis partes
desta obra, o autor narra ter encontrado este princípio não na força da gravidade, mas na
realidade da consciência humana. Segundo suas palavras:
era tão certa e tão firme que as mais extravagantes suposições que
pudessem ser levantadas pelo céticos eram incapazes de abalá-la.
Cheguei, portanto, à conclusão que eu poderia receber esta
verdade sem qualquer escrúpulo como o primeiro princípio da
Filosofia que estava buscando".
René Descartes
Discurso do Método, Parte IV
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O autor assume, portanto, que não pode haver conhecimento mais elementar e mais certo
do que a realidade de sua própria consciência. E, a partir do princípio de que a consciência
que se percebe a si mesma pensando existe necessariamente, iniciou o empreendimento da
construção de uma síntese do cosmos, tal como Newton um século mais tarde o tornaria a
fazer, desta vez partindo das forças da gravidade e eletromagnética. O trabalho de gerações
de estudiosos e o longo desenvolvimento da Filosofia Moderna, assentada sobre a base
estabelecida por Descartes, produziu os contornos desta síntese, notável principalmente
pela descrição do modo pelo qual a mente humana conhece seus objetos, ainda que
discutíveis em muitos aspectos. Mas assim como no caso das ciências experimentais,
podem também ser apontadas duas grandes lacunas nos resultados da Filosofia Moderna.
Que algo existe e que seu ser, enquanto tal, é a sua primeira realidade, não
significa que, diante da multidão dos entes que nos são constantemente apresentados pela
experiência, estamos apontando quais são aqueles que realmente existem. Determinar quais
são as coisas que realmente existem no Universo é irrelevante para o princípio. Muitas
coisas às quais costumamos atribuir o ser, melhor examinadas, poderão revelar-se apenas
uma ilusão, sem que de fato possuam ser ou realidade. Para a validade do princípio, basta
que se admita que em todo o Universo exista pelo menos um ou alguns entes, sem que seja
necessário determinar quais sejam nem o que sejam. Será suficiente pressupor que, sejam
quais forem ou o que sejam tais entes, o seu ser, isto é, aquilo que faz com que eles sejam
distintos do puro nada, seja uma realidade e que, ademais, esta seja a primeira realidade
sobre a qual se baseiam todas as suas demais determinações. A negação deste princípio
equivaleria à afirmação de que nada existe e, em assim o sendo, qualquer busca do
conhecimento se tornaria sem sentido.
Colocado deste modo, o primeiro princípio parece ser tão óbvio que o fato de
que alguém o conheça por uma formulação explícita parece não acrescentar nada de
significativo para o conhecimento de qualquer homem. Supõe-se que do conhecimento dos
princípios de uma ciência os homens possam esperar conhecimentos novos e insuspeitados.
Mas em que alguém poderia ter crescido no conhecimento pelo fato de admitir que algo
exista? Que passa ele a saber de novo que já não o soubesse desde o seu primeiro momento
de consciência? No entanto, é exatamente por ter sido colocado deste modo que este
princípio, à primeira vista tão evidente que chegaria a ser tomado como desprovido de
qualquer utilidade, impõe um desafio fundamental para os procedimentos das ciências
modernas sob cuja ótica praticamente todos os homens, sejam eles cientistas ou não,
modelam hoje o universo que a experiência nos apresenta. Pois o existir ou o ser das coisas,
pelo menos enquanto tal, aquilo que é postulado por este princípio como sendo a realidade
primeira de tudo, é algo que está além do alcance do método das ciências experimentais,
pela razão de que o existir ou o ser das coisas, enquanto tal, não pode ser detectado nem
pelos sentidos humanos nem pelos instrumentos de laboratório de que o cientista se utiliza
como ponto de partida de sua ciência. Não há, nem jamais poderá haver, um único
instrumento de laboratório que poderá detectar diretamente o próprio existir das coisas. E
no entanto nós temos conhecimento dele e não podemos pressupor que ele não seja
realidade. Instrumentos de laboratório não detectam o ser, mas as propriedades que
decorrem da realidade deste ser, tais como a temperatura, a cor e o peso. A inferência de
que as coisas existem não procede dos instrumentos. A admissão de que algo existe e o ser
é a primeira realidade exige, por conseguinte, a admissão da presença de uma outra
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O terceiro princípio da Filosofia afirma que tanto o ser como o poder ser,
enquanto tais, não podem ser apreendidos pelos sentidos nem por instrumentos de
laboratório. Os instrumentos de laboratório são, de fato, uma extensão dos sentidos
humanos. O ser e o poder ser somente podem ser apreendidos por um modo de consciência
ao qual chamamos de inteligência. Neste sentido, define-se inteligência na Filosofia como a
faculdade capaz de apreender o ser enquanto tal. A possibilidade de construção de uma
síntese da estrutura do cosmos na Filosofia pressupõe, por conseguinte, a existência de três
realidades fundamentais: o ser, o poder ser, e a inteligência que apreende o ser e o poder
ser.
2. Resultados da Filosofia.
Colocada a questão deste modo, deve-se dizer que os vários princípios das três
grandes sínteses admitem graus diversos de certeza, e que os menos certos são os das
ciências experimentais, o que já na época de Newton suscitou não pequena controvérsia.
Livro III
Proposição 7, Teorema 7
No final do Escólio Geral, Newton esboça uma definição mais detalhada, mas afirma que
de fato não faz idéia de qual seja a natureza desta força:
Hoje, após termos sido acostumados durante séculos a estudar em nossas escolas a
gravidade como uma verdade estabelecida sem questionamentos, é-nos difícil perceber o
quanto ela não é evidente. A grande justificativa para que se aceite a hipótese da gravidade
é a extensão do quanto ela se ajusta à medição dos movimentos dos astros. No entanto, ao
contrário do que costuma-se supor, não é evidente que haja uma força da gravidade
puxando uma maçã quando ela cai de uma árvore. É importante notar que jamais alguém
pôde observar esta força agindo. O que se pode perceber é apenas a maçã caindo ou, ao
segurar a fruta, uma tendência para a sua queda. Que exista uma força exercida pela Terra
puxando a maçã não é evidente senão para as gerações que aprenderam o assunto, sem
questionamentos, nas escolas modernas. Na época de Newton, quando as escolas ainda não
ensinavam estas teorias, mesmo com todos os cálculos impressionantes apresentados pelos
Principia Mathematica, a hipótese da gravidade não era evidente até para muitos cientistas
que haviam estudado demoradamente toda a evidência apresentada. O matemático e
filósofo Leibniz trocou diversas correspondências com o próprio Newton e seus assistentes
mais próximos sobre o quão absurda ele considerava a teoria da gravidade, e o próprio
Newton, o autor da hipótese, chegou a concordar em parte com estas objeções. Segundo
Leibniz a gravidade postulada por Newton seria uma qualidade oculta ou um perpétuo
milagre. Constituiria um absurdo supor que qualquer corpo, por mais diminuto e
insignificante que fosse, seria capaz de agir, a distâncias astronômicas e, sem nenhum meio
de contato, simultaneamente sobre todos os demais corpos do Universo, não importando
onde estes pudessem se ocultar dos melhores instrumentos de observação:
Samuel Clarke, o destinatário destas cartas, era colaborador de Newton, que as respondia
sob orientação do mestre. Clarke contesta às objeções de Leibniz concordando que uma
atração à distância é impossível, mas o caso da gravidade que atua no cosmos não constitui
um milagre porque deve existir algum meio invisível pelo qual um corpo age sobre o outro.
No entanto, nem Clarke nem Newton sabiam dizer qual fosse este meio invisível:
Samuel Clarke,
Quarta Réplica a Leibniz
Leibniz não aceita esta explicação. Na quinta carta a Clarke, assim contesta:
No mesmo ano, em outra carta escrita para o professor Bentley, Newton faz declarações
semelhantes:
E, vinte anos mais adiante, no prefácio à edição de 1717 da Ótica, Newton ainda avisava
que estava introduzindo no texto uma questão sobre a causa da gravidade para mostrar
"que não estava satisfeito" com as possíveis explicações ao assunto e que de nenhuma
maneira "eu suponho que a gravidade é uma propriedade essencial da matéria".
princípios não matemáticos. Leia-se a este respeito a segunda carta de Leibniz a Samuel
Clarke:
"Não posso crer que o Sr. Clarke tenha razão ao afirmar que os
Princípios Matemáticos da Filosofia são opostos aos dos
materialistas. Ao contrário, estes princípios são os mesmos. A
única diferença consiste em que os materialistas limitam suas
crenças aos princípios matemáticos e somente admitem como
realidade os corpos, enquanto que os matemáticos cristãos, [isto é,
os newtonianos, afirmam] admitir as substâncias imateriais, [isto
é, Deus]. Não é possível opor aos princípios dos materialistas
apenas princípios matemáticos".
universal dos sentidos, dos instrumentos de laboratório e vai contra a própria experiência
da construção do conhecimento que se modifica à medida em que progride. Negar o
segundo princípio significa negar a possibilidade da realização da construção do
conhecimento. Negar o terceiro princípio, que afirma a possibilidade da verdade, no sentido
de negar que ao apreender o que seja o ser, este conceito corresponde a uma realidade extra
mental, implica negar pela base a validade de qualquer conhecimento alcançado. Quaisquer
que sejam os princípios dos quais o homem parte, ele somente poderá buscar o
conhecimento com a esperança de poder encontrá-lo se pressupor, conscientemente ou não,
a validade dos três princípios da Filosofia.
Não tentaremos agora deduzir a imagem do Universo que resulta dos princípios
da Filosofia. Mas a correta compreensão do assunto nos obriga a apresentar alguns traços
fundamentais desta imagem. As demonstrações completas das conclusões apresentadas a
seguir ultrapassam os objetivos introdutórios deste texto, mas todas elas podem ser
deduzidas dos princípios do ser, do movimento e da verdade. Isto considerado, podemos
dizer que o Universo tal como descrito pela Filosofia delineia-se em alguns de seus
principais traços pelas seguintes proposições:
A idéia de que exista uma realidade além do mundo material da qual seu movimento e, por
conseqüência, sua também sua estrutura, dependam, pode ser difícil de ser aceita por quem
foi educado, seja ele cientista ou não, pelos estabelecimentos de ensino moderno
impregnados pela idéia de que a ciência experimental é a descrição exata e última da
estrutura cósmica. Mas é muito simples apreender o contrário. É imensamente fácil
perceber como existe algo além do universo tal como no-lo é descrito pela física
newtoniana. A consciência humana é o primeiro exemplo deste algo. Dizer que a
consciência humana é algo existente e que situa-se além do universo descrito para física
newtoniana é o mesmo que dizer que jamais será possível elaborar um programa de
computador que seja capaz de perceber que ele exista. Qualquer pessoa que tenha um
mínimo de experiência em programação percebe o quão evidente é esta afirmação. Pelos
mesmos motivos não é possível construir um robô, não importa o quão complexo ele possa
ser, que fosse capaz de apreender sua própria existência enquanto tal. Se o fosse, em pouco
tempo ele também apreenderia seus direitos e exigiria não ser desligado. Tais coisas,
porém, não passam de ficção científica. Qualquer programador ou engenheiro sabe que não
existe nenhuma via possível para escrever um programa ou construir uma máquina que
tenha consciência de sua existência. No entanto, um robô ou um programa de computador
são suficientemente explicados pela física newtoniana, e foi graças a ela que aparelhos
como estes puderam ser construídos. A impossibilidade anterior mostra o quanto há algo
atuando no universo extenso além dos princípios propostos pelas ciências experimentais e
que, portanto, não se pode invocar a priori uma impossibilidade de que o universo extenso
não possa sofrer a ação de causas que se situem além de sua natureza.
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Uma coisa, porém, que nos interessa de modo especial é a notável conclusão
segundo a qual, se admitimos para a consciência humana a natureza que a Filosofia lhe
atribui, abre-se com isto uma porta para um estudo científico da ética, do direito e da
sociedade, na medida em que por ciência se entenda um conhecimento baseado em
princípios, e que os princípios da ética, do direito e da sociedade não são frutos de
convenção humana, mas os mesmos que regem a ordem do cosmos. Ética, direito e
sociedade, portanto, tornam-se parte da estrutura do universo enquanto tal.
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Para entender o que seja a natureza, portanto, seria necessário definir primeiro o que é o
movimento. Não é este aqui o nosso objetivo, e portanto deixaremos esta questão para
outros textos. Devemos notar, entretanto, que o sentido pelo qual aqui se entende
movimento é bastante amplo. Não se trata apenas do movimento local, aquele pelo qual se
dá o deslocamento de um corpo de um lugar a outro, mas algo que inclui todas as alterações
observáveis no mundo real. Neste sentido são movimentos, além dos movimentos locais, as
mudanças de cor, de temperatura e de consistência; são movimentos também o nascimento,
o crescimento e a morte dos seres vivos, e as transformações químicas em geral. Entendido
o movimento deste modo tão amplo, pertence à natureza não apenas aquilo que se nos
apresenta como estando em constante movimento mas que, além disso, parece ter em si
mesmo um princípio de movimento.
As coisas que pertencem à natureza são aquelas que, por um caráter intrínseco, são
passíveis de serem movidas.
Por contraposição não pertencem à natureza todas aquelas coisas que, pelo menos
enquanto tais, não são passíveis de serem movidas. Uma obra de arte, enquanto tal, não
pertence à natureza. Ela pode ser movida na medida em que é feita de mármore, mas não
enquanto obra de arte. Enquanto mármore pertence à natureza, enquanto obra de arte não.
Eletromagnetismo. Seja qual fosse o universo existente, a Filosofia da Natureza quer saber,
conceituado o movimento do modo mais amplo possível, quais deveriam seriam os
requisitos para que possa existir qualquer tipo de movimento. Ao contrário do que ocorre
com a física experimental moderna, uma investigação deste gênero não depende da
acumulação de uma grande quantidade de dados experimentais; os dados experimentais
podem inclusive ser coletados de um modo mais primitivo sem que este fato produza uma
grande diferença no resultado final, pois parte-se da hipótese de que a natureza poderia
apresentar até mesmo movimentos diversos dos que são efetivamente observados. No
entender de Aristóteles, as coisas são ditas pertencer à natureza ou à Física na medida em
que
e o que se deseja saber é qual seria a estrutura essencial que a realidade deve possuir para
que isto seja possível, independentemente de qual seja efetivamente o movimento
observado. A evidência experimental necessária para este tipo de estudo é apenas a
suficiente para que se possa deduzir com certeza a existência do movimento, e os
resultados que daí podem ser obtidos seriam, por princípio, válidos para qualquer universo
passível de existência.
Deve-se notar que esta afirmação não diz apenas que a natureza é um princípio de
movimento, mas também que é um princípio intrínseco de movimento. Este acréscimo
diferencia a natureza da possibilidade de ser um princípio extrínseco de movimento.
Deseja-se com isto dizer que o princípio de movimento do qual se afirma ser a natureza não
é o agente exterior que provoca o movimento. Conforme veremos mais adiante, o agente ou
princípio exterior não apenas existe, como também será sempre necessário que exista, mas
apesar disto ele não é natureza.
Assim, para que a água se aqueça, será necessário haver um agente exterior que a
aqueça. Este agente exterior é também, inegavelmente, um princípio de movimento, mas a
natureza não é este agente exterior. O princípio de movimento que afirmamos ser a
natureza é uma possibilidade natural que faz com que a água, enquanto tal, possa ser
aquecida e esta possibilidade está na própria água. Quando algum ente é movido segundo
esta possibilidade ou tendência que já está na própria essência do ente movido, ainda que
este seja movido por um agente externo que, conforme veremos, sempre terá que existir, o
movimento será dito natural.
naturais. Sejam eles quais ou quantos forem, seja apenas um, sejam dois ou mais, estes
princípios serão denominados de natureza, pois, segundo a filosofia, a natureza é um
princípio intrínseco de movimento.
Qualquer coisa que passe por uma mutação está se tornando alguma coisa a partir da
negação desta coisa. Exemplificando esta afirmação, dizemos que o branco se torna branco
a partir do não branco. Temos assim os dois primeiros princípios necessários em qualquer
mutação, o término para o qual tende o movimento e o oposto deste término, a partir do
qual se iniciou o movimento. A natureza, pois, supondo o movimento, pressupõe também,
em cada movimento, como princípios, a existência de dois contrários entre os quais se
realiza o movimento.
A. O sujeito;
Aristóteles chama de término para o qual tende o movimento de ‘forma para o qual tende o
movimento’, ou simplesmente de ‘forma’, a qual inere em um sujeito. O oposto desta
forma, para a qual tende o movimento, ele a chama apenas de ‘privação desta forma’.
Há, porém, uma outra transformação a que pode submeter-se o minério de ferro na
qual, diversamente do que ocorre na que acabamos de expor, o sujeito deixará de ser
minério de ferro para transformar-se em ferro e aço. Se, de fato, em vez de ser apenas
aquecido, este material for colocado juntamente com carvão em um alto forno a mais de mil
graus de temperatura, o minério se transformará em metal reluzente, a princípio líquido,
sólido depois de esfriado à temperatura ambiente. Não terão sido mais as qualidades do
sujeito que mudaram do frio para o quente ou vice versa, permanecendo inalterado o
sujeito, mas será o próprio sujeito que se ocultava sob estas qualidades que terá se
transformado.
Consideremos agora este novo sujeito. Seja ele quem for, poderá ou não ser capaz
de mudanças. Se possuir qualquer determinação identificável, necessariamente poderá
sofrer algum tipo de mutação, porque se ele, sendo determinado, é tal ou qual coisa, poderá
vir a se tornar algo que não seja esta tal ou qual coisa. Se ele possuir alguma determinação,
portanto, deverá ser também composto de sujeito e de forma. E este outro sujeito também,
se possuir alguma determinação, deverá igualmente ser composto, e assim sucessivamente,
até chegarmos a um sujeito absolutamente primeiro que seja inteiramente indeterminado.
Este, sendo inteiramente indeterminado, não poderá ser mais transformado em si mesmo.
Este primeiro sujeito, inteiramente indeterminado, que deve postular-se na natureza para
poder explicar-se o movimento, é o que Aristóteles chama de matéria primeira.
A matéria primeira, enquanto tal, não pode existir por si só. Se fosse possível isolar-
se um pouco de matéria primeira em estado puro e colocá-la, por exemplo, em um vidro
para observação, ela já não seria mais matéria primeira. Teria as dimensões do vidro,
estaria localizada em tal ou qual lugar, teria uma tal e qual extensão e, com isto, já não mais
se poderia dizer tratar-se de algo inteiramente indeterminado. De onde se conclui que a
matéria primeira, devido à sua total indeterminação, enquanto tal não pode existir por si só.
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Deve-se postular sua existência, mas ela não poderá ser individualmente identificada. Diz-
se que ela apenas existe em potência e que não existe em ato. Não existindo em ato, não
poderá surgir individualmente em algum lugar para que possa ser identificada. Para ser algo
e passar a existir, a matéria primeira necessita de receber uma determinação mínima que lhe
será dada por uma forma primeira. Esta primeira forma que a matéria primeira deve receber
para que daí possa resultar um primeiro ente em ato ou um primeiro sujeito em ato é
chamada de forma substancial. O composto formado pela matéria primeira e forma
substancial é o que se chama, na filosofia aristotélica, de substância. A matéria primeira,
considerada em si mesma, é inteiramente indeterminada e não pode existir. É o composto
de matéria primeira e forma substancial, a que chamamos de substância, que constitui algo
capaz de subsistir por si mesmo.
A. A matéria;
B. a forma;
C. a privação da forma.
matéria como da forma, e pode ser dita, afirma Aristóteles, mais da forma do que da
matéria, na medida em que aquilo pelo qual algo é em ato é mais ente do que aquilo pelo
qual este algo é em potência. A matéria, de fato, em si mesmo, não é ente em ato, mas pura
potência para sê-lo.
Embora sejam três os princípios internos do movimento e a natureza possa ser dita
da matéria e da forma, o mesmo não pode ser afirmado quanto ao terceiro princípio. A
natureza não pode ser dita propriamente da privação da forma, porque a privação da forma,
enquanto tal, não é um ente real, mas apenas um ente de razão. Uma entidade que consiste
em ser privação de outra não pode existir como ente real; um ente somente pode possuir
privação de algo não na medida em que possui esta privação, mas na medida em que possui
alguma outra coisa que seja uma forma em ato a qual, apenas indiretamente, implique na
privação da anterior.
A natureza também não pode ser dita do composto de matéria e forma, porque este
composto não é princípio, mas algo que provém de princípios.
Que a matéria primeira não possa ser identificada pelos sentidos humanos ou por
instrumentos de laboratório deveria ser algo já claro. Se não fosse assim, para ser
identificada por estes recursos a matéria primeira teria que possuir alguma determinação.
No entanto, segundo nossa linha de raciocínio, a matéria primeira é algo inteiramente
indeterminado. Não poderia, portanto, ser identificada nem pelos sentidos, nem por
instrumentos.
No entanto, mais ainda do que isso, o fato de que ser algo inteiramente
indeterminado faz com que a matéria primeira também não possa ser conhecida, enquanto
tal, nem sequer por uma abstração da inteligência. Por sua total indeterminação, a matéria
primeira somente pode ser conhecida, ainda que por uma concepção puramente intelectual,
por meio de analogias. De fato, se fosse possível existir na inteligência uma representação
da matéria primeira enquanto tal, isto já seria para ela uma determinação e, portanto, o que
teria sido concebido no intelecto não poderia ser, por isso mesmo, a matéria primeira.
olhos, por exemplo, são instrumentos que detectam ondas eletromagnéticas na faixa de
freqüência a que chamamos de luz visível; os aparelhos de raios X, as antenas de rádio, as
antenas de televisão e as de microondas, os filmes fotográficos sensíveis às freqüências do
infra- vermelho e do ultra-violeta, todos estes são instrumentos que captam ondas
eletromagnéticas em faixas de freqüências mais amplas do que as já captadas pelos olhos;
são, portanto, em sua essência, uma extensão do sentido da visão. Neste mesmo sentido o
termômetro é uma extensão do sentido do tato e o peagâmetro, o instrumento usado para
medir com precisão a acidez das soluções aquosas, é uma extensão do sentido do gosto.
Segundo Aristóteles nem os sentidos humanos nem nenhum destes instrumentos são
capazes de captar a forma substancial.
Para os que se defrontam com estes tipos de dificuldades, embora todo o raciocínio
anteriormente feito seja suficiente para demonstrar a existência destas realidades que
escapam ao método experimental, poderá ser útil oferecer uma evidência adicional sobre a
existência de realidades transcendentes ao método experimental.
A existência dos entes, em que a matéria principia a entrar pela forma substancial, é
algo de que ninguém duvida. Eis aí novamente uma realidade da qual ninguém duvida e
que, no entanto, não pode ser detectada nem pelos sentidos, nem por nenhum instrumento
de laboratório, mas que não por isso deixa de ser real.
Para sermos mais claros, consideremos de que modo apreendemos a existência dos
entes.
31
Examinando o funcionamento do sentido da vista, será fácil perceber que ele não
apreende a existência dos entes, mas apenas acidentes, como as suas cores e os seus
formatos. O sentido da vista não garante que a pessoa que estamos vendo seja um ser
efetivamente existente. Poderá trata-se de um sonho, de um holograma ou de uma
alucinação. O que os olhos vêem é apenas a cor desta pessoa, não a sua existência. O
mesmo pode ser dito do ouvido; por este sentido pode-se ouvir o som que algo produz, mas
não a existência deste algo. Não há nenhum sentido que possa garantir que as coisas às
quais atribuímos o que vemos e ouvimos não sejam um sonho destituído de existência real.
No entanto, nós sabemos que os entes que nos cercam existem e que esta existência
é uma realidade. Não o sabemos, porém, por causa dos sentidos, nem dos instrumentos de
laboratório, que não ultrapassam os limites essenciais dos sentidos. A consciência do real é
a conseqüência de um longo trabalho de abstração da inteligência. Nós temos consciência
de que as coisas existem porque em algum momento do nosso desenvolvimento a
experiência sensorial tornou-se suficientemente rica e a inteligência tornou-se
suficientemente madura para que esta última, por abstração, se tivesse tornado capaz de
apreender o que é ser real e, por oposição, a diferença entre isto e o que é não ser real. A
partir do momento em que a inteligência se tornou capaz de apreender abstratamente o que
é ser em ato, torna-se também possível que no homem surja a consciência de que alguma
coisa individualmente considerada seja real. Esta consciência ocorre quando as
informações que chegam ao homem pelos sentidos são confrontadas com outras anteriores
e a rica coerência destes dados obriga a inteligência a explicá-los atribuindo às coisas vistas
e ouvidas a realidade do ser em ato que ela já se havia tornado capaz de apreender. Por este
motivo, a experiência da consciência da realidade não é uma experiência sensorial, mas
uma experiência essencialmente intelectiva, abstraída e sobreposta aos dados dos sentidos.
Somente um ser dotado de inteligência pode possuí-la. Nunca uma máquina irá possuí-la,
nem um instrumento de laboratório, nem um computador. Por mais elaborados que sejam, o
grau de consciência da realidade de todos estes instrumentos é e será sempre exatamente
nulo. Os sentidos e os instrumentos de laboratório nunca passam das formas acidentais.
Este raciocínio mostra que há algo, como é o caso da existência dos entes que nos
circundam, cuja realidade é tão óbvia, e que, não obstante isso, não pode e não poderá
nunca ser apreendido nem pelos sentidos nem por instrumentos. Trata-se de uma realidade
que está além das possibilidades das ciências experimentais, além dos sentidos e dos
instrumentos, e possui uma natureza puramente inteligível.
O primeiro princípio extrínseco que deve ser admitido para poder explicar-se o
movimento é o que se chama de causa eficiente. A causa eficiente é a causa externa que
produz efetivamente o movimento. Quando uma pessoa empurra uma mesa ela é a causa
eficiente do movimento da mesa; quando a panela ferve, o fogo é a causa eficiente do
aquecimento.
A seção anterior mostrou que para que possa ocorrer o movimento, qualquer
movimento, exige-se uma causalidade eficiente externa. Nada pode ser movido por si
mesmo ou sem causalidade eficiente externa. Qualquer ente em movimento tem que ser
movido por um agente externo em ato que é a causa eficiente deste movimento. A
demonstração dada para tanto é necessária e universal. Trata-se, portanto, de uma lei da
natureza que deve ser obedecida tanto no cosmos que conhecemos como em quaisquer
outros que existirem. Se as leis da mecânica e do eletromagnetismo atualmente conhecidas
e descritas pela Física experimental não existissem ou fossem inteiramente diversas das que
atualmente conhecemos, ainda assim a natureza teria que admitir necessariamente a
causalidade eficiente, supondo que nela houvesse movimento. Colocada neste plano de
abstração, não há exceção possível a esta lei.
A pergunta é a seguinte: se nada se move a si mesmo, mas tudo o que se move deve ser
movido por outro, como se explica que ao arremessar uma pedra para longe, após a pedra
ter-se separado de minha mão que a arremessou, ela continue se deslocando para a frente?
Porque neste caso a pedra continua caminhando para a frente sem ser movida por nenhuma
34
causa eficiente. Ela estava sendo movida por uma causa eficiente durante os momentos em
que estava sendo impulsionada pela minha mão, mas depois disso o movimento continua
por algum tempo sem causa movente, como se a pedra pudesse mover-se por si mesma, ou
pelo menos sem motor.
A pergunta portanto é a seguinte: se tudo o que se move tem que ser movido por
outro, como se explica que uma sonda ou qualquer objeto lançado ao espaço, uma vez que
inicie sua trajetória, continua movendo-se sem necessidade de uma causa externa?
existisse um universo como este, ele entraria em colapso. No caso do universo realmente
existente, qualquer corpo que esteja se movimentando dentro dele estaria sendo atraído
gravitacionalmente por todo o restante dos corpos do universo e, portanto, não poderia
deslocar-se em movimento retilíneo uniforme.
Segundo a Filosofia, se tudo o que se move deve ser movido por uma causa
eficiente, esta causa eficiente que move também deve por sua vez ser movida por uma
segunda causa eficiente, pois a primeira causa eficiente, ao mover, passou do estado de não
movente para o estado de movente e, portanto, moveu-se. Se moveu-se, deve ter sido
movida por uma segunda causa eficiente. A segunda causa eficiente, por sua vez, deve ter
sido movida por uma terceira causa eficiente, e assim sucessivamente, mas não é possível
aceitar a existência de uma sucessão infinita de causas de causas eficientes movendo-se
umas às outras, porque neste caso o movimento da primeira dependeria de um número de
causas que, por ser infinito, não poderia iniciar-se nunca. Portanto, qualquer movimento
observável deve ter começado em uma causa primeira que move sem ser movida. Esta
causa primeira não pode ser material, porque nada material pode mover sem ser movido.
Deste raciocínio conclui-se que o movimento dentro do universo físico deve ter uma
origem externa ao universo segundo uma linha de causalidade que, em um determinado
ponto, principia a mover o universo físico e daí para diante todos os demais movimentos
internos ao universo passam a depender deste primeiro movimento situado em sua
fronteira. Todos os movimentos dentro do universo, portanto, dependem do primeiro
movimento que é impresso ao universo, o qual depende de causas externas a este universo.
acrescentar também que todos os entes existentes seriam também reduzidos a um estado
elementar e indiferenciado em questão de momentos. A Terra perderia sua estrutura, a
sonda se desintegraria, o fogo perderia as suas propriedades. De fato, se o movimento
conjunto do universo cessasse e o fogo não perdesse suas propriedades, não haveria motivo
para que ele não continuasse aquecendo os demais corpos mais frios, o que iria contra a
conclusão de que o movimento teria cessado no universo. Portanto, se o primeiro
movimento do universo cessasse, todos os demais entes seriam reduzidos a um estado
elementaríssimo no qual teriam perdido as distinções pelas quais poderiam agir uns sobre
os outros como causas eficientes de movimento. Portanto, não apenas os movimentos de
cada um dos entes do universo, mas também a própria integridade da estrutura física de
cada um deles, depende e é causada pelo primeiro movimento conjunto de todo o universo.
Daqui pode concluir-se que o único universo em que poderia dar-se um movimento
retilíneo uniforme, que seria um espaço vazio contendo um único corpo movendo-se em
linha reta, não poderia subsistir. Os corpos não subsistem em sua integridade por si
mesmos, mas necessitam como de uma causa de um universo complexo em constante
movimento para tanto.
37
Pode-se concluir também que os corpos que parecem estar movendo-se pelo espaço
sem ser movidos por nenhuma causa eficiente estão na verdade sendo movidos pelo
movimento conjunto de todo o universo, sem o qual não se moveriam e sequer subsistiriam
em sua estrutura atual.
Finalmente, pode-se depreender também pelo que foi dito a natureza do conceito de
inércia introduzido pela Mecânica Newtoniana. Segundo Newton expõe nas definições com
que inicia a sua obra, há
a menos que uma força externa o obrigue a mudar este estado. Ainda segundo Newton,
Ora, se os princípios filosóficos anteriormente descritos são válidos, pode-se concluir que
esta propriedade a que Newton chama de inércia, tal como é descrita em sua obra, não pode
existir como algo real, e haverá dois motivos para isto.
Em primeiro lugar porque, se a inércia existe para um corpo, existiria também para
todos os corpos simultaneamente e, portanto, se o Universo todo estivesse em repouso,
continuaria indefinidamente em repouso, devido à inércia, a menos que uma força externa o
obrigasse a abandonar este estado. No entanto, acabamos de ver que se o Universo inteiro
estivesse em repouso, ele não poderia permanecer em repouso, mas seria reduzido a um
estado primitivíssimo. Conclui-se, portanto, que se os corpos em repouso permanecem em
repouso quando não são molestados por forças externas, isto não pode ser causado por uma
força inerente à matéria, já que, se existisse tal força, ela se manifestaria também no caso
de um Universo estático.
Suponha um campo de futebol com uma bola parada no gramado. Um jogador corre
para a bola, chuta-a e ela, de parada que estava, passa a dirigir-se para o gol. Ainda que
possa conceder-se que a bola aparentemente parada estivesse movendo-se junto com a
Terra em torno de seu eixo e em torno do Sol, e junto com este em torno da Galáxia e junto
com esta através do Universo, o fato é que a bola adquiriu um componente adicional de
movimento que não proveio do Universo, mas do pé do jogador, e que este novo
movimento, originado por este pé, continua mesmo depois que o pé cessou de atuar como
causa eficiente. Pelo menos a parcela de movimento da bola em direção ao gol não parece
poder ser explicada pela argumentação acima.
limitada, que são apenas elas, e não o restante universo, que estariam movendo umas às
outras e que, ademais, uma vez golpeada uma peça, o movimento da nova trajetória da peça
golpeada não necessita de causa eficiente para poder continuar, como se a causalidade
eficiente de uma peça agindo sobre a outra pudesse continuar produzindo virtualmente seu
efeito mesmo após a cessação da ação atual da causa. Na verdade, se o movimento geral do
caleidoscópio cessasse, todas as peças cessariam seus movimentos e nenhuma teria mais a
possibilidade de agir sobre a outra.
9. A causalidade final.
ST III Q. 86 a.6
Tomando o nome de causa nesta acepção mais ampla, não é apenas a causa eficiente que
pode corretamente ser dita causa, mas também a matéria e a forma, as quais são, neste
sentido, chamadas de causa material e formal. Pode-se dizer então que o movimento exige,
para poder ser explicado, pelo menos três linhas de causalidade. Como princípios
intrínsecos o movimento exige a causalidade material e a causalidade formal, e como
princípio extrínseco o movimento exige a causalidade eficiente.
Algo é dito ser causa final de um movimento na medida em que este algo é um fim
para um determinado movimento. Quando vamos a algum lugar para tratar de algum
assunto dizemos que este assunto é a causa final do movimento, porque todo o movimento
de dirigir-se ao tal lugar foi feito tendo em vista aquele fim. Embora este exemplo seja
tirado da psicologia em vez da natureza em geral, ele é exato e particularmente claro para
se entender o que é a causalidade final, e é por meio deste tipo de exemplo que Aristóteles
e Santo Tomás costumam explicá-la pela primeira vez. O exemplo é exato porque o assunto
a ser tratado foi verdadeiramente o fim em função do qual se deu o movimento e pelo qual
o movimento se explica como por uma de suas causas. Quando perguntamos por que tais
ou quais pessoas se dirigiram a um determinado lugar e alguém nos responde que foi para
40
tratar de um determinado assunto, costumamos entender com isto que nos foi dada uma
explicação satisfatória das razões daquele movimento.
No entanto, a causalidade final ocorre em uma extensão muito mais ampla do que
nos é sugerido por este exemplo tomado da psicologia. Segundo Aristóteles e S. Tomás de
Aquino todos os movimentos da natureza se realizam tendo em vista algum fim, e não
apenas os atos humanos, mesmo considerando que no caso da natureza em geral as causas
eficientes envolvidas, diversamente de como sucede no caso dos atos humanos, não são
inteligentes e por isso mesmo não têm consciência do fim ao qual se dirigem.
Toda causa eficiente, para agir como tal, tem que estar em ato. Isto ocorre por causa
de uma determinada forma, a qual também confere uma pré-determinação para o modo de
agir desta causa eficiente. Segue-se daqui que todos os movimentos da natureza são
necessariamente ordenados a algum fim. O fato facilmente observável de que agentes
naturais semelhantes sempre agem de modo semelhante é indício de que a natureza se
comporta, em seus movimentos, com uma ordenação a algum fim. A palavra que, em
grego, significa fim ou finalidade é `teles'; diz-se, por isso, que a natureza é
necessariamente teleológica em seus movimentos.
Assim entendida, a causalidade final é a causa que move a causa eficiente, a qual,
por sua vez, move o composto cujos princípios intrínsecos são a causalidade material e
formal. A causa final é, portanto, a causa de todas as outras causas, ou simplesmente a
causa das causas e é, neste sentido, também a verdadeira explicação última do movimento.
Segundo esta concepção da natureza, essencialmente teleológica, só se poderá dizer que o
movimento é verdadeiramente conhecido quando for possível explicá-lo por meio da causa
final, e não quando apenas identificamos a causa eficiente.
Queremos saber efetivamente por que o homem morreu. Então surge alguém que nos
explica que o pobre homem havia tentado imprudentemente reagir a um assalto e o ladrão,
sentindo a sua própria vida ameaçada, atirou na infeliz vítima. Esta seria a explicação pela
causa final e só quando se chega a este ponto é que julgamos haver sido explicado o que
ocorreu em sua integridade.
O mesmo ocorre com a natureza, diz Aristóteles. Ela não se explica suficientemente
enquanto não se alcança a linha da causalidade final. Esta causalidade teria que existir
necessariamente, qualquer que fosse o modo como a natureza tivesse sido construída, já
que o composto de matéria e forma, causas intrínsecas necessárias ao movimento, só pode
ser levado ao movimento através de uma causa eficiente em ato. Esta causa eficiente, na
medida em que está em ato através de sua própria forma, tende necessariamente para algo
determinado, e este algo determinado é a causalidade final do movimento. A causalidade
final, deste modo, não é uma questão psicológica, mas de Filosofia Natural. Ela é
conseqüência do fato de que o agente, para agir, deve estar em ato determinado por uma
forma, e esta determinação é a razão da existência da causa final. A causalidade final não é
conseqüência do livre arbítrio ou de um fator essencialmente psicológico. Se ela se
manifesta mais claramente nos seres inteligentes, de onde foram tirados os exemplos
anteriores, é porque ela existe de um modo mais nobre nos seres inteligentes, mas
essencialmente pelos mesmos motivos pelos quais existe necessariamente na natureza em
geral.
Vista sob este novo ângulo, a explicação da existência da causalidade final no caso
dos seres inteligentes provém do fato de que neles a causa do movimento é a forma
apreendida pela inteligência do agente que, através de sua vontade, causa o movimento.
Conforme diz Santo Tomás:
ST Ia Q.87 a.4
Esta explicação mostra por que a natureza da causalidade final é idêntica nos seres
inteligentes e nos seres inanimados. A diferença que existe entre estes dois casos reside
apenas no fato de que, enquanto nos seres inanimados esta forma é única e, por isso
mesmo, sempre predeterminada a um fim também único, nos seres inteligentes dotados de
vontade ela não é necessariamente predeterminada. Nos seres dotados de inteligência a
forma apreendida pelas faculdades cognitivas pode variar e, por este motivo, suas
faculdades não estão necessariamente condicionadas a um fim predeterminado. A
causalidade final, por conseguinte, é mais propriamente um problema de Filosofia Natural
do que de Psicologia; ela existe na natureza em geral no mesmo sentido com que existe nos
seres inteligentes, embora nestes o seja de um modo mais nobre.
Da noção de que todo ente móvel deve ser composto de sujeito e forma, chega-se ao
conceito de [3] matéria primeira. Aqui a matéria primeira significa um sujeito totalmente
43
indeterminado que entra na composição última de qualquer ente móvel. A noção de que
haja um elemento que seja pura indeterminação na composição dos entes naturais está
longe do óbvio. Na descrição newtoniana da natureza, que pareceu óbvia aos cientistas e
aos filósofos modernos durante séculos, não havia lugar para indeterminações. Todos os
princípios descritos na física de Newton eram bem definidos e determinados. A idéia de
que pudesse haver um elemento indeterminado na natureza foi descartada com uma
assombrosa facilidade. Esta rejeição pode ser explicada, em parte, ao fato que um princípio
deste tipo não poderia ser objeto de experimentação, mas esta explicação esconde a razão
mais profunda, que é o quanto um princípio desta natureza, está distante da obviedade.
O modo pelo qual foram introduzidos os conceitos de forma e ato, o primeiro para
explicar o movimento, o segundo por contraposição à potência, mostra por que a forma
implica limitação, mas não o ato. Postulado o movimento, este somente pode ser explicado
se o ente móvel for composto por dois princípios aos quais chamamos de sujeito e forma. A
necessidade de um sujeito que permaneça durante o movimento é exigida porque, caso não
exista este sujeito permanente, o movimento consistiria de duas etapas onde na primeira um
primeiro ente seria reduzido ao nada e na segunda um segundo ente seria criado a partir do
nada. Aquilo que foi suposto como sendo um movimento, portanto, já não seria mais um
movimento. A necessidade da forma é exigida porque para dar-se o movimento é
necessário que o sujeito perca uma determinação, que será substituída por outra outra,
diversa da anterior. Esta diversidade já implica que a tanto a primeira forma como a
segunda forma tenham que ser necessariamente limitadas, porque se além da primeira
determinação existe outra possibilidade diversa de ser, existe um limite para o que é a
primeira forma. Em outras palavras, se algo é pedra, e o que está além da pedra é a não-
pedra, existem muitas coisas que são não-pedras, como os homens, os animais, as plantas e
44
os rios e a forma pedra possui uma limitação na medida em que a forma homem está além
do limite da forma pedra. O ser não-pedra é uma vasta realidade e constitui um limite para
a forma pedra.
um ato criador é algo que deve ser provado a partir destes princípios, o que é um tema que
será discutido mais adiante. Mas, supondo que o ato criador seja possível e que este seria
aquele ato pelo qual um ente surgiria do nada, é possível mostrar já que este terá que ser
produzido por uma causa eficiente externa. Se da pura potência, por esta ser indeterminada,
não pode surgir o ato sem um ato externo que atue como causa eficiente, com mais razão
do nada não poderia surgir um ente em ato sem que um ato externo o determinasse.
Poderíamos argumentar que tal ato externo poderia não ser necessário, porque os entes
poderiam existir por si mesmos, sem necessidade de ato criador. Mas neste caso estaríamos
indo contra a hipótese inicial, que é a possibilidade do ato criador. Esta possibilidade deve
ser demonstrada, mas, suposta ter sido demonstrada e que, portanto, exista o ato criador, o
que está-se concluindo neste momento é que tal ato criador terá que possuir uma causa
externa pela mesma razão, e com mais razão, pela qual todo o movimento exige uma causa
eficiente. No entanto o ato criador não é um movimento, porque no ato criador não há
passagem da potência ao ato. Portanto, se existe o ato criador, sua causa poderá ser
chamada de causa eficiente, mas trata-se já de uma extensão do conceito inicial de
causalidade eficiente. Em sua conceituação original, a causalidade eficiente é o ato externo
necessário em todo movimento. O ato criador, porém, não é movimento e, no entanto, exige
uma causa externa pelos mesmos motivos pelos quais o movimento exige uma causa
eficiente. Portanto, o conceito de causa eficiente transcende o âmbito do movimento.
seu movimento não é apenas a forma, mas também a própria existência do ente, um ato que
transcende o conceito de forma. Por conseguinte, tal ato criador, suposta demonstrada a sua
possibilidade, exigirá como causa eficiente um ato que também transcenda o conceito de
forma. Uma forma não pode determinar algo que transcende sua possibilidade de
determinação.
Conforme vimos, algo é dito ser causa final de um movimento na medida em que
este algo é um fim para um determinado movimento. Na natureza a causalidade final
procede do fato de que a causa eficiente, para que possa ser ente em ato, deve possuir uma
determinada forma. Seguir-se-á a esta forma uma determinada inclinação que faz com que
o ente, enquanto causa, tenha que estar determinado em seu modo de agir a um algum fim.
Portanto, os movimentos da natureza são necessariamente ordenados a algum fim, o que é
facilmente observável porque agentes naturais semelhantes sempre agem de modo
semelhante. Diz-se, por isso, que a natureza é necessariamente teleológica em seus
movimentos.
Toda ação segue-se a uma forma do ente que age. No caso dos seres inanimados
esta forma pertence à constituição do ente. Isto faz com que os entes inanimados somente
ajam de um único modo, conforme a tendência que lhes é dada pela forma que lhes é
inerente. Já os animais e os homens, podendo apreender outras formas pelos sentidos ou
pela inteligência, podem agir de múltiplos modos, conforme a tendência que lhes é
conferida pelas diversas formas apreendidas.
Mas no caso dos homens, se algo é apreendido pela inteligência como um fim a ser
alcançado, a inteligência poderá apreender também uma relação de causalidade entre o fim
a ser alcançado e o meio que será a causa pela qual aquele fim poderá ser alcançado. Esta
mesma inteligência poderá também apreender que o mesmo fim poderá ser alcançado
através de outro meio e, portanto, através de outra ou mesmo de várias relações de
48
Por este motivo, se dentro na natureza houver agentes livres, capazes de apreender
relações de causalidade, os movimentos da natureza não poderão ser totalmente
predeterminados. O mesmo, por extensão, pode ser dito também da História. Enquanto em
uma sociedade existirem homens sábios e livres, tampouco a história humana poderá ser
predeterminada ou sujeita a leis que possam prever o seu curso. Estes homens, em cujo
íntimo existe uma ordem que se origina da ordem do cosmos, mas em que não imperam leis
determinísticas como as que são descritas na mecânica newtoniana, são os agentes que
determinam o curso da história.
Uma vez examinado o caso dos seres humanos, pode-se recolocar a pergunta inicial
do seguinte modo. Suponhamos que na natureza não existissem seres inteligentes capazes
de apreender relações de causalidade. Neste caso, se a causa eficiente, enquanto tal, é
determinada em seu modo de agir a algum fim, poder-se-ia concluir que os movimentos da
natureza seriam predeterminados e tudo o que nela teria ocorrido não poderia ter-se dado de
modo diverso?
Aparentemente a resposta parece que tenha que ser afirmativa. A Física newtoniana,
através da qual hoje todos fomos acostumados a pensar, afirma que sim. Supondo dois
sistemas naturais completamente idênticos, sujeitos às mesmas leis, e nas mesmas
condições iniciais de posição e velocidade, tais sistemas terão que comportar-se, ao longo
do tempo, exatamente do mesmo modo. Este seria o motivo pelo qual dois satélites,
exatamente iguais, lançados do mesmo lugar com a mesma velocidade e trajetória, terão
que seguir órbitas idênticas. Este é também o motivo pelo qual as órbitas de planetas e
cometas podem ser previstas com precisão com muitos anos de antecedência. Segundo
Newton, não há liberdade na natureza. Ela funciona como um relógio.
O caso dos satélites lançados do mesmo lugar com a mesma velocidade e trajetória
e que seguem órbitas idênticas, ou das órbitas previsíveis dos planetas e dos cometas, são
exemplos em que dificilmente poderia dar-se uma causa que altera uma forma tornando-a
incompatível com outras formas do mesmo sujeito e sobre as quais aquele agente não
poderia determinar suas alterações. Nestes movimentos exemplificados o que varia é o
lugar. O lugar é um acidente externo aos entes e dificilmente incompatível, enquanto tal,
com o restante da estrutura do ente movido. Já o mesmo não pode ser dito com a mesma
certeza quando o movimento se dá tendo como sujeito algo próximo à matéria primeira,
pois, conforme veremos mais adiante, uma causa eficiente natural não pode agir
diretamente sobre uma forma substancial. Também não poderia dizer-se o mesmo em
alguns movimentos dos animais, nos quais, apesar de distantes da matéria primeira, as
formas são tão complexas que um agente externo poderia facilmente introduzir uma nova
forma incompatível com outras já existentes sem que pudesse determinar completamente as
segundas.
Pode-se entender mais facilmente que existam na natureza tais movimentos não
determinados se considerarmos a hipótese da criação simultânea de dois planetas em
condições totalmente idênticas e aos quais se permite prosseguir seus movimentos naturais
durante milhões de anos, sem que neles sejam criados seres humanos, os quais, como
vimos, são necessariamente livres. Neste caso, se todos os movimentos naturais fossem
determinados, após qualquer número de milhões de anos tudo o que tivesse ocorrido no
primeiro planeta teria que ser corresponder exatamente ao que teria ocorrido no segundo
planeta. Supondo que houvesse surgido vida não humana no primeiro planeta, o mesmos
seres vivos que tivessem surgido no primeiro planeta teriam que haver surgido também no
segundo, e cada par destes seres vivos teria que possuir inclusive o mesmo histórico
individual. Porém, ainda que não saibam explicar os motivos, ninguém se aventuraria a
levar o determinismo dos movimentos naturais a este ponto. Isto somente poderia ser assim
50
A idéia de que a ciência experimental trabalha com modelos e não com verdades
surgiu no século XX. Desde Newton até o final do século XIX a comunidade científica
considerava que a física newtoniana havia apreendido a realidade última do cosmos, que o
Universo havia sido completamente explicado pelos princípios da Física e que a ciência
somente avançaria no conhecimento de novos detalhes, mas nunca no conhecimento dos
princípios fundamentais, os quais supunha-se que haviam sido completamente entendidos e
que eram verdades definitivas.
conhecimento seria impossível, porque todo conhecimento pressupõe que algo exista. Se
supormos que o movimento não existe, qualquer conhecimento igualmente será impossível,
porque todo conhecimento tem sua primeira origem na apreensão dos entes mutáveis. E,
finalmente, se não existe verdade na apreensão do ser, nenhuma outra verdade será
possível. Por conseguinte, todos os conceitos que derivam diretamente dos três primeiros
postulados não podem ser hipóteses meramente funcionais como o são os modelos das
ciências experimentais, mas condições da verdade do conhecimento. Não podem estar no
mesmo nível dos modelos das ciências experimentais. Representam um conhecimento tão
certo que, se não forem verdadeiros, simplesmente não poderá existir nenhum outro
conhecimento.
A ordem dos conceitos permite dirimir alguns erros sobre Filosofia, introduzidos na
cultura ocidental através de uma longa guerra ideológica, naquilo que deveria ser a mais
clara de todas as linhas de pensamento.
Mas o principal golpe ideológico contra a Filosofia veio através da obra de Isaac
Newton, hoje supostamente considerada como um paradigma de objetividade. Em vez de
apresentar a mecânica newtoniana como uma metodologia de cálculo dos movimentos dos
corpos celestes, Newton decidiu apresentá-la como um novo sistema filosófico que
substituiria a antiga Filosofia. Apesar de ter colocado claramente esta posição desde o
próprio título do livro, ao qual intitulou de Princípios Matemáticos da Filosofia Natural, o
autor procurou em sua vida não insistir muito neste aspecto de sua obra. Mas os pensadores
iluministas, contemporâneos de Newton, perceberam claramente todo o alcance da
polêmica que a verdadeira posição do autor poderia desencadear e utilizaram a sua obra
para fundamentar a disseminação de suas próprias idéias, entre as quais estava a de que a
Filosofia seria algo que pertenceria à idade das trevas.
54
Esta tão curta sentença de abertura esconde facilmente o alcance do projeto que estabelece.
que tal força sempre foi algo evidente aos nossos olhos, é um salto em princípio não menos
difícil do que afirmar a existência de uma forma substancial. Sob este aspecto, a Física
Newtoniana é tão oculta quanto a Filosofia.
E, se isto é assim, segue-se não ser verdade que não existe nenhuma evidência para
tais conceitos que são falsamente admitidos como princípios da Filosofia.
importância de examinar o tema procede de sua importância histórica e que ainda pesa no
pensamento do homem contemporâneo. Os motivos comumente apontados pelos quais a
Igreja não deveria cultivar a Filosofia são, por um lado, que esta instituição deveria limitar-
se a anunciar o Evangelho como o fizeram os Apóstolos, isto é, com uma linguagem
estritamente bíblica e teológica, em vez de recorrer à Filosofia, cujas origens remontam a
uma cultura pagã. Ademais, por outro lado, a Filosofia começou a ser cultivada pela Igreja
em um período bastante posterior à idade apostólica, o que mostraria que, historicamente,
ela não lhe é essencial.
Nos Mistérios da Fé Cristã, Hugo de S. Vitor afirma que Deus ofereceu ao homem
duas revelações distintas, à primeira das quais o autor chama de Revelação Natural e à
segunda de Revelação Escrita, acrescentando que ambas, para serem plenamente
entendidas pelo homem, necessitam do auxílio da graça. A Revelação Natural seria aquela
que guiava o homem em seu estado original e pela qual, através da natureza, o homem pode
alcançar o conhecimento das coisas divinas. É à Revelação Natural que São Paulo se referia
quando sustenta que os Romanos, mesmo não tendo sido visitados pelos Profetas, serão
julgados pela sua impiedade e injustiça porque
Rom. 1, 18-20
Hugo de S. Vitor faz notar como nesta passagem São Paulo afirma não apenas que "o que
se pode conhecer de Deus é manifesto" pela natureza, mas também acrescenta que "Deus
lho manifestou", para mostrar com isto o papel da graça naqueles que buscam
compreender o conteúdo da Revelação Natural. A Revelação Natural, portanto, não apenas
existiu no estado primordial do homem, mas continua em vigor até os dias de hoje.
Se não houvesse ocorrido a queda do homem de seu estado original, afirma Hugo de
S. Vitor, nenhuma outra revelação teria sido necessária. Mas, após a queda, com o passar
do tempo, a dificuldade dos homens em compreender esta forma de revelação foi se
deteriorando e, por este motivo, Deus decidiu revelar-se de um modo mais explícito através
da Revelação Escrita. As Sagradas Escrituras contém a Revelação Escrita. Tanto a
Revelação Escrita como a Natural exigem o auxílio da graça para poderem ser
compreendidas, mas a Escrita, além de ser mais mais explícita, pode ir além da Natural,
embora pressuponha a Natural e não possa contradizê-la.
57
Desta explicação é fácil perceber que aquilo que costumamos chamar hoje de
Teologia é, de fato, uma reflexão sobre a Revelação Escrita e o que chamamos de Filosofia,
ou mesmo de Filosofia Grega, não é nada mais do que uma reflexão sobre a Revelação
Natural. Não se trata, portanto, de uma instituição pagã, mas do próprio pressuposto da
Revelação Escrita. E, se é assim, o que deveria causar perplexidade não é o fato da Igreja
ter iniciado o cultivo da Filosofia muitos séculos após a época dos Apóstolos, mas o fato de
não tê-lo feito imediatamente já desde o início do Cristianismo.
Do que foi exposto pode-se compreender o que sucede à instituição chamada Igreja,
e ao próprio homem, quando abandonam o cultivo da Filosofia.
Mas, se é assim, continua Tomás, então a Lei do Novo Testamento não é, ao contrário da
Lei do Antigo Testamento, principalmente uma lei escrita, embora contenha elementos
escritos que são
Por este motivo, conclui Tomás, a Lei do Novo Testamento derroga a multidão das leis
cerimoniais e judiciais do Antigo Testamento, conservando apenas
As leis morais, porém, acrescenta ainda Tomás, pertencem mais propriamente à Revelação
Natural, embora para o julgamento de algumas delas a razão humana necessite da instrução
divina contida nas Escrituras (ST I-II 100 a.1).
58
1. Introdução.
Conforme explicado na seção anterior, matéria e forma são os dois princípios que se
unem para constituírem os entes naturais. No entanto, tanto a matéria quanto a forma não
são realidades visíveis, nem detectáveis por instrumentos de laboratório, e isto não
importando o quanto possa vir a evoluir a tecnologia com que são construídos estes
instrumentos. A estrutura que subsiste por trás da realidade dos entes naturais é constituída
por elementos puramente inteligíveis. Sem que possam jamais cair sob o domínio da
ciência experimental, elementos deste tipo, no entanto, segundo a Filosofia, não somente
são reais como inclusive são princípios fundamentais da natureza. Nenhum dos entes que
observamos cotidianamente com nossos olhos poderia existir se estes princípios neles não
subsistissem de modo real.
Para o objetivo deste texto, que é a determinação introdutória do que seja a vida, um
destes princípios, a forma substancial, é a explicação fundamental envolvida na questão do
que seja a vida. O primeiro princípio que explica a essência do que seja a vida é a forma
substancial dos seres vivos, à qual a filosofia convencionou chamar de alma. A palavra
"alma", uma tradução portuguesa do latim "anima", designa o princípio que dá animação,
ou que anima, os seres vivos. Este princípio, segundo os filósofos, é a sua forma
substancial, daí a definição segundo a qual a alma é a forma substancial do corpo vivente.
Supondo corretas estas colocações, por um lado elas implicam que a explicação do
que seja a vida transcenda a possibilidade das ciências experimentais. Por outro lado, elas
exigem que penetremos mais detalhamente na questão sobre o modo como a forma interage
com a matéria para que possamos entender como deste princípio puramente inteligível,
indetectável pelos recursos da ciência experimental, possa surgir a vida.
2. O que é a substância.
quais não mais subsistem por si mesmas mas no primeiro subsistente que é o composto de
matéria e forma substancial. O primeiro subsistente, aquilo que é composto apenas de
matéria e forma substancial, é não detectável pelos sentidos e pelos instrumentos de
laboratório, já que é composto de partes, a matéria e a forma substancial, as quais, se
pudessem existir separadamente, seriam também não detectáveis pelos sentidos e por estes
instrumentos. Os entes passam a ser visíveis e detectáveis por instrumentos na medida em
que o primeiro subsistente, composto de matéria e forma substancial, recebe os acidentes
que nele subsistem. São acidentes, entre outros, a quantidade ou extensão, e as qualidades
como a cor, a dureza, etc. Estas realidades não podem subsistir por si mesmas, devendo
subsistir no composto de matéria e forma substancial.
Deste texto pode-se concluir que as demais coisas que se predicam de um sujeito, ou
encontram-se em um sujeito, não são substâncias em seu sentido primário mais verdadeiro.
Ao definir no Livro das Categorias substância em seu sentido primário, pode notar-
se que, quando o termo é tomado não em contraposição à substância segunda, mas ao
acidente, o Filósofo chama de substância não apenas ao composto de matéria e forma
substancial, mas a todo o composto de matéria, forma substancial e acidentes necessários.
O homem concreto e o cavalo concreto que Aristóteles utiliza como exemplo não é apenas
a sua matéria e forma substancial, mas inclui também seus acidentes necessários. Apesar de
que os acidentes considerados em si mesmo se predicam da substância, a substância,
considerada como incluindo os acidentes necessários, nunca se predica de outra coisa.
Diverso é o caso do oxigênio e dos metais, que são substâncias. O oxigênio não é
constituído de partes que possuíam existência autônoma antes de constituir o oxigênio e
que, formado o oxigênio, foram simplesmente agregados e continuam a apresentar uma
existência autônoma. O oxigênio e os metais são substâncias.
Para compreender por que a água e, principalmente, os seres vivos são substâncias,
entretanto, devemos antes relacionar estes conceitos com a estrutura da matéria tal como
ela nos é apresentada hoje pela Química Moderna.
63
A objeção seria a seguinte. Segundo afirmamos, um corpo não homogêneo não pode
ser uma substância se for constituído de partes que subsistam por si. Neste caso, cada parte
separadamente subsistente seria uma substância e o conjunto somente seria uma unidade
por causa de uma forma acidental acrescentada a entes já existentes e não unida
diretamente à matéria primeira indeterminada.
Ora, a Química moderna afirma que a água é constituída por minúsculas partículas
chamadas moléculas. Chama-se molécula à menor partícula de uma espécie química que
ainda conserva as propriedades desta espécie. No caso, cada molécula de água, por menor
que seja, ainda conserva as propriedades da água, mas as partes de que ela é constituída, os
átomos de hidrogênio e oxigênio, já não são água. Segundo a Química, cada molécula de
água é composta de dois átomos de hidrogênio ligados a um átomo de oxigênio, e como o
hidrogênio e o oxigênio em separadamente não conservam as propriedades da água, não
podem mais ser ditos água. Algo semelhante pode ser dito do sal e dos demais compostos
químicos.
Segundo este entendimento, pareceria que segundo a Química a água não poderia
ser uma substância segundo o modo como definido pela Filosofia, porque a molécula de
água, que é a menor porção possível da água, é composta ela mesma de dois entes menores,
que são os átomos de hidrogênio e oxigênio. Neste caso, a água não poderia ser composta
diretamente de matéria e forma substancial, mas das partes às quais chamamos de oxigênio
e hidrogênio. Portanto, se existe na água algo que devesse ser substância, talvez fossem os
átomos de hidrogênio e de oxigênio, mas certamente não a própria água. A água seria
composta de oxigênio e hidrogênio, afirma a Química, e não de forma substancial unida
diretamente à matéria prima.
Porém, continuaria a Química, esta questão seria ainda mais delicada, porque cada
um destes átomos parece por sua vez ser composto de partículas menores, às quais
chamamos de prótons, nêutrons e eléctrons. Neste caso nem os átomos de hidrogênio e
oxigênio seriam substâncias compostas de forma substancial unida diretamente à matéria
prima. Talvez pudessem sê-los os prótons, os nêutrons e os eléctrons.
De onde parece concluir-se que, se tudo é assim como descrito pela ciência
experimental, os conceitos filosóficos de substância, matéria e forma substancial não teriam
mais qualquer sentido ou utilidade, e com muito mais razão também deixaria de fazer
qualquer sentido a afirmação de que um ser vivo constituiria, em seu todo, uma só e única
substância. Não existiria um primeiro subsistente na natureza ou, se existisse, seriam
partículas muito menores que os já diminutos prótons, nêutrons e elétrons que compõem os
átomos e não, certamente, a água, e muito menos um ser vivo em seu todo.
podemos escolher quais átomos queremos utilizar para combiná-los em moléculas. Apesar
dos químicos usualmente raciocinarem deste modo, os que conhecem verdadeiramente esta
ciência sabem tratar-se de um artifício prático para prever o resultado de uma reação
química a realizar e não da realidade verdadeiramente subjacente ao mecanismo da reação
química. Todas as moléculas existentes provieram de átomos que já subsistiam sim, mas
em outras moléculas e não por si mesmos. Durante uma reação química, quando ocorre a
transformação de um tipo de molécula para outra, não existe um tempo intermediário em
que estes átomos subsistem autonomamente por si mesmos. Seja qual for a verdadeira
realidade destes átomos, com certeza não podem ser comparados a pequenas bolinhas de
bilhar que subsistem por si mesmas e se recombinam aleatoriamente. O primeiro ente que
subsiste por si mesmo é a própria molécula, e todo o restante, se puder ser demonstrado que
seja mais do que um modelo conceitual, entra na existência como subsistente na molécula e
não por si mesmo. Átomos e demais partículas elementares, portanto, não subsistem em si,
mas em outro. A forma que lhes dá o ser, por conseguinte, não pode ser uma forma
substancial própria. O que lhes dá o ser que possam ter é, no caso, a forma substancial da
molécula, a qual é a primeira que, unindo-se à matéria prima, constitui o primeiro ente
subsistente, juntamente com sua estrutura interna que lhe é inerente mas que não possui
subsistência autônoma.
"é dizer que é aquilo que nunca se predica de outra coisa, nem
pode achar-se em um sujeito. Como exemplo de substância
podemos colocar um homem concreto ou um cavalo concreto”.
No Livro das Categorias Aristóteles enumerou uma lista dos gêneros de todos os
acidentes possíveis. Mais tarde, no Comentário às Física, S. Tomás de Aquino conseguiu
demonstrar que a lista das dez categorias apresentada por Aristóteles não é meramente
exemplificativa, mas abarca todos os gêneros de acidentes possíveis. Neste sentido, Santo
Tomás afirma que as dez categorias dividem-se de acordo com os modos de existência.
Mas os modos de existência, continua Tomás, são proporcionais aos modos de predicação
porque quando predicamos algo de outro, dizemos como estas coisas existem, e é por isso
que estes modos de existência são chamados de “categorias” ou “predicamentos”.
Tudo o que existe ou é uma substância, que é a primeira das dez categorias listada
por Aristóteles, ou um dos nove gêneros de acidentes que são as nove categorias restantes.
Com exceção da substância, que é a primeira categoria, as seguintes categorias são
acidentes: a quantidade, a qualidade, a relação, o lugar, o tempo, a posição, o hábito, a ação
e a paixão. O estudo detalhado das categorias está além das finalidades deste texto.
contingencialidade, e sim pelo fato de que, para existir, a cor deve subsistir em uma
substância.
A idéia que está por trás da lista dos predicáveis é simples. Todo universal que,
portanto, pode ser predicado de muitos sujeitos, ou representa a essência do sujeito, ou
alguma coisa que é acrescentada.
Chama-se acidente, de um segundo modo, tudo o que não é substância nem próprio.
Este é o significado apresentado pela lista dos predicáveis do Isagoge e, neste sentido, tudo
o que existe ou é substância, próprio ou acidente.
Os acidentes próprios não possuem uma causa eficiente direta. Apesar de que eles
não são parte da espécie do sujeito, eles são causados necessaria e diretamente pelos
princípios essenciais deste sujeito, e não por uma causa eficiente extrínseca. Isto é, uma vez
que a forma substancial se une à matéria primeira, o subsistente daí formado exige o
surgimento destes acidentes próprios. Há uma causa eficiente envolvida que une a forma
substancial à matéria e da união destes dois elementos, surgem necessariamente, como de
princípios essenciais, os acidentes próprios.
perceber que nem sempre um homem pensa. Quando dormem, os homens não pensam e,
quando está acordada, a maior parte dos homens, na maior parte do tempo, não pensa. Mas
quando o homem pensa, é evidente que seu pensamento não existe por si mesmo, mas
subsiste no homem. Não existe pensamento subsistente por si mesmo. Nunca foi visto um
pensamento atravessar uma rua e tomar um táxi. Para existir o pensamento deve existir o
homem que pensa; o pensamento, quando existe, subsiste no homem que pensa. Como,
ademais, o pensamento não subsiste de modo contínuo, às vezes existindo e outras vezes
não existindo, o ato intelectivo no homem possui, por conseguinte, todas as características
de um acidente contingente. O ato intelectivo humano é um acidente contingente. A mesma
coisa pode ser dita dos atos da vontade e o mesmo pode ser dito também dos atos dos cinco
sentidos. Nem sempre o homem vê. Apesar de que ele pareça ver a maior parte do tempo,
ele pode ver coisas diferentes e desviar seus olhos de um objeto para outro. Em alguns
momentos ele pode deixar de ver e em outros ele pode voltar a ver. Os atos dos cinco
sentidos são também acidentes contingentes. De modo geral, os atos vitais dos seres vivos
são acidentes contingentes.
Se, portanto, existem as potências pelas quais se produzem os atos dos seres vivos,
o que são estas potências? Não podem ser substâncias, porque elas compartilham a mesma
natureza que os seus atos, e estes atos são acidentes. De fato, pelo raciocínio exposto uma
potência deve ser a mesma coisa que o seu ato, mas em estado potencial. As potências,
enquanto potências, devem compartilhar da mesma natureza que os seus atos. Por
conseguinte, se os atos são acidentes, as potências não podem ser substâncias, mesmo
entendendo que fossem substâncias não em ato mas em potência pois, se assim ocorresse,
70
Pode-se concluir também que, se as potências dos seres vivos são acidentes
próprios, elas devem subsistir em alguma substância. Este assunto, porém, merece ser
abordado mais adiante em uma seção à parte.
6. Ente e essência.
Assim, a essência depende dos acidentes próprios para que possa existir em ato. No
entanto, isto não significa que a essência somente passa ao ato depois da produção dos
acidentes próprios ou que o ato da essência é causado pelos acidentes próprios. De fato,
segundo afirma S. Tomás de Aquino na Summa Totius Logicae, há dois modos pelos quais
algo pode depender de outro. De um primeiro modo, algo depende de outro como de algo
que lhe é anterior, ao menos pela natureza; é neste sentido que uma coisa depende de outra
como de uma de suas quatro causas, a material, a formal, a eficiente e a final. De um
segundo modo algo pode depender de outro consecutivamente, como o corpo depende da
figura e a linha depende da retidão ou da curvidade, pois não pode haver um corpo no qual
não haja uma figura e não pode haver uma linha que não seja reta ou curva. É conforme
este segundo modo que o conjunto de matéria primeira e forma substancial, ou essência,
não pode possuir existência em ato sem os acidentes próprios. Embora a essência seja
potencialidade a um determinado ente, não poderia exigir, como de princípios intrínsecos,
os acidentes próprios se não existisse já em ato. O que é pura potência não pode exigir nem
71
causar. Não é a potencialidade da essência que exige a atualidade dos acidentes próprios
para poder passar ao ato, mas é a atualidade da essência que exige a atualidade dos
acidentes. Não obstante, a essência depende dos acidentes próprios, no sentido que
acabamos de mencionar, para existir em ato. Conforme afirma Tomás de Aquino na Summa
Theologiae,
Iª Pars, Q. 77 a. 6
Na medida em que é aquilo pelo qual os entes possuem o ser, isto é, sob um ponto
de vista metafísico, a essência das coisas materiais é o primeiro subsistente de matéria e
forma substancial.
A definição das coisas naturais, diz Tomás, não pode conter apenas a matéria,
porque cada coisa é cognoscível pela sua definição e a matéria nem é princípio de
conhecimento, nem por ela algo se ordena à sua espécie.
Por outro lado, a definição das coisas naturais também não pode conter somente a
forma pois, se assim fosse as definições dos objetos naturais e matemáticos não difeririam.
Um triângulo de madeira e um triângulo tal como é considerado apenas em sua quantidade
e de enquanto assim abstraído de sua matéria pela Matemática seriam a mesma coisa.
Portanto, é evidente que a definição das coisas naturais deve conter tanto a matéria
quanto a forma.
Mas a matéria contida na definição de cada coisa, continua Tomás, não pode ser a
matéria dita assinalada, isto é, a matéria considerada sob determinadas dimensões, porque a
matéria assinalada é o princípio de individuação das coisas naturais. Uma pedra constituída
de mesmo material e de mesmas dimensões que outra pedra é um indivíduo diverso da
primeira porque a matéria assinalada da segunda, isto é, a sua matéria contida sob
determinadas dimensões, não é a mesma que a da primeira pedra. Deste modo, se a matéria
que entrasse na definição das coisas naturais fosse a matéria assinalada, estaríamos
definindo através dela não a espécie universal, mas um único indivíduo. A matéria
assinalada, diz Santo Tomás no De Ente et Essentia, não pode ser colocada na definição do
homem enquanto homem, mas ela seria colocada na definição de Sócrates, se Sócrates
tivesse uma definição. Por conseguinte na definição de homem, afirma Tomás de Aquino,
deve colocar-se a matéria não assinalada, isto é, não este osso e esta carne, mas o osso e a
carne em absoluto, que são a matéria não assinalada do homem.
A definição das coisas naturais, que significa a essência destas coisas, portanto, é
composta da forma substancial e da matéria não assinalada. A matéria não assinalada,
porém, é a matéria antes que receba o acidente próprio da quantidade e, por conseguinte,
antes que receba também todos os demais acidentes próprios, os quais não podem ser
recebidos se não for recebido primeiro o acidente da quantidade. De fato, se existisse um
corpo sem quantidade, este corpo seria um ponto. Mas um ponto material e adimensional,
se tal coisa pudesse existir fisicamente, não possuindo extensão, não poderia receber cor,
nem temperatura, nem os demais acidentes. A matéria não assinalada, portanto, significa a
matéria sem os acidentes próprios. A essência lógica, por conseguinte, aquela essência que
é significada pela definição, é constituída de forma e de matéria não assinalada, o que
corresponde à essência metafísica, que é constituída do composto de forma e matéria, sem
73
os próprios, e que é aquela essência que entra realmente na composição do ente existente
em ato.
Embora às vezes se diga que a potência passe ao ato, o que verdadeiramente está em
ato é o ente composto e não a potência em si mesma. A potência enquanto tal não passa ao
ato, mas pode receber a forma ou a determinação pela qual resulta um composto em ato. É
o ente composto, na medida em que contém a potência, que está em ato. Pode-se entretanto
dizer que a potência passa ao ato se por isso entendemos que a potência recebe a forma, e
não que a potência em si mesmo se transforme em ato, sofrendo uma alteração pela qual ela
própria, passando ao ato, deixe de existir como potência. Este princípio fica mais claro se
em vez de considerarmos as essências, refletimos sobre o conceito de matéria primeira
como potência, pois é manifesto que a matéria primeira enquanto tal não pode sofrer
transformação quando passa ao ato. Se a matéria primeira enquanto tal se transformasse ao
passar da potência ao ato, isto implicaria que a matéria primeira teria composição, porque,
conforme explicado mais acima, somente um composto de sujeito e forma pode ser
movido. Portanto, se fosse a própria a matéria que se alterasse passando de um estado de
potência a outro de ato, ela mesma teria que ser composta de sujeito e forma, o que é
contrário à razão da matéria ser pura potência indeterminada. A matéria primeira, portanto,
altera-se na medida em que recebe a forma e não na medida em que ela própria se altera.
No ente composto a matéria continua subsistindo e, na medida em que compõe um ente em
ato, limita as possibilidades de transformação deste ente ao plano material, pois tal ente
somente poderá receber novas formas que possam entrar em composição com a matéria.
74
Todo ente, portanto, com apenas uma única exceção que será discutida mais
adiante, é necessariamente composto de essência, levada ao ato através da existência, e de
próprios. Como a essência é o ente em potência que, ao passar ao ato, produz os próprios
que derivam de seus princípios essenciais, esta essência, enquanto potência, constitui o
princípio limitador do ente que o faz ser o que é, em vez de ser um ato ilimitado. A mesma
essência, uma vez que seja levada ao ato, passa a compor o ente como o sujeito em que
inerem os próprios que dela derivam.
É possível mostrar que é necessário que existam entes constituídos apenas de forma,
sem composição com a matéria. A razão procede, em primeiro lugar, da própria estrutura
do cosmos, cuja ordenação exige que existam entes sem composição com a matéria. A
ordem do universo exige que haja entes que não sejam compostos com a matéria porque,
conforme já discutido, tudo o que se move tem que ser movido por outro e, sendo
impossível uma seqüência infinita de causas, deve haver necessariamente uma causa
primeira que mova sem ser movida. Ora, esta primeira causa não poderá ser material,
porque todo ente material, para que mova, deve também ser movido e, portanto, deve ser
causado por outro. Os entes materiais devem ser movidos para que movam porque, para
que movam, devem possuir o ato que determine o movimento do qual serão causa. Uma
vez que a única coisa permanente nos entes materiais é a própria matéria primeira que é seu
sujeito último, e esta não pode ser o ato pelo qual se determine o movimento externo, o ato
pelo qual se determinará este movimento não será necessário, mas contingente e causado.
Portanto, para chegar a mover, o movente deverá ter passado da potência ao ato, ou seja,
deverá ter sido movido, e não poderá sê-lo senão por outra causa. O mesmo raciocínio deve
ser aplicado a esta outra causa, de modo que haverá uma série de causas que não poderá
estender-se até o infinito, pois se assim o fosse nenhum movimento jamais se iniciaria. De
onde que deve-se concluir que existe pelo menos um ente que mova sem ser movido e,
portanto, que não tenha composição com a matéria. Este argumento mostra que a existência
sem a matéria não é uma impossibilidade metafísica. Resta mostrar que nestes entes sem
composição com a matéria deva haver uma forma. Isto somente pode ser mostrado supondo
que haja mais de um ente que subsista sem matéria. De fato, se existirem vários entes que
subsistam sem matéria, estes deverão diferir uns dos outros. Ora, que uns difiram dos
outros, significa que alguns não serão o que são os outros. O ser destes entes será, portanto,
limitado, pois além de cada um deles haverá outras possibilidades de ser que não o ser
próprio de cada um, o que significa que estes entes possuirão determinações não só
diversas como também limitadas. Ora, estas são precisamente as características daquilo a
que chamamos de forma. A forma é aquilo pelo qual se determina e se limita o ser. Tais
entes, portanto, serão constituídos de forma sem matéria.
A dificuldade seguinte consiste em entender como pode dar-se uma forma existindo
sem a matéria. O argumento cosmológico apresentado mostra que deve existir pelo menos
um ente sem composição com a matéria e que, se existir mais de um, estes entes deverão
ser, ademais, formas sem composição com a matéria. Mas o argumento não explica o que
seriam estas formas. Este talvez seja o nó que prenda todas as dificuldades fundamentais
75
De um terceiro modo, pode-se mostrar, como será feito melhor mais adiante neste
texto, que nenhum raciocínio é possível sem pressupor o conhecimento do conceito de ser.
Quando fazemos um raciocínio simples como: “Todo homem é mortal, mas Sócrates é
homem, portanto Sócrates é mortal”, a conclusão somente parece evidente porque, na
hipótese de que Sócrates não fosse mortal, teríamos a contradição que todo homem seria
mortal ao mesmo tempo em que este homem não o seria. Isto contraria o princípio de que
algo não pode ser e não ser ao mesmo tempo, princípio incluído na apreensão do conceito
de ser. Depreende-se daqui que a inteligência humana valida as conclusões dos raciocínios
através da apreensão do conceito de ser, sem a qual, portanto, nenhum raciocínio seria
possível.
Estas três evidências mostram que a inteligência simplesmente não operaria se não
conhecesse em primeiro lugar o que é ser.
Para isto será necessário perguntar também qual é o ser que a inteligência humana
apreende em primeiro lugar para, com base neste primeiro conhecimento, esta inteligência
poder desenvolver a aquisição de todo o seu conhecimento.
Tampouco é o ser do tempo, assim como o ser de todos os outros acidentes. Porque
para apreender o tempo é necessário que se tenha apreendido antes o movimento, e o
movimento não é apreendido se não se apreendem antes os entes móveis. Nem poderia ser
o ser da qualidade, embora quando éramos bebês nossos sentidos tivessem reconhecido as
qualidades das coisas antes que nossa inteligência pudesse ter apreendido pela primeira vez
o que é ser. A apreensão das qualidades pelos sentidos precede o conhecimento do ser, mas
a apreensão do ser das qualidades pela inteligência não é a primeira apreensão que se
produz na inteligência humana. As qualidades são sensorialmente reconhecidas antes do
próprio conceito de ser, mas apreender o que é uma qualidade enquanto ser e, por
conseguinte, possuir a capacidade de defini-la em sua espécie depende do conhecimento
prévio do que é a substância, pois a qualidade, sendo um acidente, implica sua inerência em
uma substância e, portanto, não pode ser apreendida em sua natureza enquanto acidente se
antes não se apreende o que é uma substância, do mesmo modo que não é possível
apreender o que é tempo se antes não se apreende o que é movimento, e o movimento não
pode ser apreendido se antes não se apreende a substância que se move. De modo geral a
primeira apreensão do ser por parte da inteligência humana não pode ser o ser a apreensão
intelectiva de nenhum dos acidentes, porque a natureza do acidente pressupõe a substância
em que ela inere.
Destas constatações pode concluir que o ser que a inteligência humana apreende por
primeiro, a partir do qual entende o ser de todas as demais coisas, é o ser das substâncias
corporais, isto é, das substâncias que podem cair sob a apreensão dos sentidos antes que
caiam sob a apreensão da inteligência.
Aqui deve-se notar que a apreensão do ser é requisito universal para a operação de
qualquer inteligência, mas a operação da inteligência humana, em particular, pressupõe a
apreensão do ser das substâncias corpóreas, a operação da inteligência angélica pressupõe a
apreensão do ser de sua natureza angélica e a inteligência divina a do ser do próprio Deus.
Daqui pode-se concluir também que o princípio de partida da filosofia moderna, postulado
por Descartes como sendo “penso, logo existo”, somente poderia ser admitido como um
possível primeiro princípio do conhecimento para uma inteligência angélica, mas nunca
para uma inteligência humana. Para concluir que existo porque penso, a mente humana
precisa ter entendido primeiro o que é existência, e ela aprende pela primeira vez o que é
77
existência a partir dos entes sensoriais, e não a partir da apreensão do pensamento humano.
Somente uma inteligência angélica teria estrutura para poder fazê-lo diversamente.
Foi assim que no século XVII Isaac Newton iniciou a exposição de seu novos
princípios de Física substancializando o tempo e o espaço, um erro que, apesar de
elementaríssimo, o autor considerou como produto de grande abstração. “O leigo”, afirma
Newton, “não concebe tempo, espaço e lugar a não ser a partir das relações que elas
guardam com objetos perceptíveis”. E, logo após estas palavras, antes de enunciar suas
três leis do movimento, Newton estabeleceu que
extensão dos corpos materiais que nos quais esta extensão subsiste; ao serem criados os
corpos materiais, criam-se com eles as suas extensões, as quais dependem destes corpos, e
não vice versa; a continuidade e a contigüidade dos corpos materiais são o que cria em nós
a ilusão de que exista um espaço.
O motivo pelo qual Newton caiu neste erro deve-se ao fato de que inteligência
humana, entendendo o ser de todas as coisas a partir do ser da substância sensorial, tende a
substancializar, ao modo da substância sensorial, o ser de todas as demais coisas, no que
não pode corrigir-se com método a não ser através do conhecimento metafísico
rigorosamente cultivado.
Cerca de um século mais tarde o professor de filosofia Immanuel Kant, que havia
absorvido os princípios de Newton como verdades absolutas, entendeu também que, tal
como haviam sido postulados por Newton, o tempo e o espaço não podiam existir. No
entanto, Kant considerava que a natureza do tempo e do espaço, assim como toda a teoria
newtoniana, eram verdades absolutas e definitivas. Certo dia compreendeu maravilhado
que ambas estas colocações somente poderiam ser conciliadas se o tempo e o espaço, tais
como postulados de modo supostamente correto por Newton, fossem admitidos como não
podendo existir na realidade exterior à inteligência como tais, mas como moldes pré-
existentes na mente humana, dos quais a mente se utiliza para poder compreender o mundo
que o rodeia. Assim que entendeu isto, Kant pronunciou uma conferência a respeito,
explicando que fazia-se necessário reformular todo o conhecimento filosófico a partir da
hipótese de que o tempo e o espaço seriam apenas moldes da mente humana, e não
realidades externas. Depois desta conferência, durante muitos anos, Kant mergulhou em um
profundo silêncio, ministrando apenas aulas convencionais. Não pronunciou mais uma só
palavra a respeito daquela conferência, não intercambiou suas novas idéias com ninguém,
nem publicou nenhum trabalho sobre qualquer assunto. Cerca de uma década mais tarde,
surgiu repentinamente com uma extensa obra toda pronta, à qual deu o nome de Crítica da
Razão Pura, na qual reestruturava toda a Metafísica clássica e afirmava que não apenas o
tempo e o espaço, como também todas as categorias aristotélicas, o conceito de ser e o
conceito de causalidade não seriam mais do que moldes mentais pelos quais a inteligência
humana elaboraria os dados procedentes do mundo externo. Por mais estranho que possa
parecer, em um certo sentido Kant tinha razão. Tais como Newton os havia apresentado, o
tempo e o espaço não podiam existir, e foram apenas um molde pelo qual a mente do
próprio cientista tentou explicar o Universo. Filosoficamente, porém, isto não significava
que tempo e espaço não existissem enquanto tais, mas sim que eles não podiam ser
substancializados.
Neste sentido, a dificuldade de entender como seja possível existir uma forma sem
matéria se origina de um caso extremo de susbtancialização sensorial do qual a mente
humana não pode libertar-se a não ser através do conhecimento metafísico. Exposto em
outras palavras, como em geral ao ouvirmos falar de forma sem matéria não conseguimos
apreender imediatamente conta o que seja especificamente tal forma sem matéria, tentamos
pensar nela pelo menos como um ser e, ao fazer isto, inevitavelmente pensamos em um ser
como o das substâncias corpóreas. Ora, é óbvio que o ser das coisas corpóreas tem que ser
material; por conseqüência, quanto mais tentamos pensar em uma forma sem matéria, mais
a idéia nos parece contraditória e incompreensível.
O que vamos fazer a seguir para quebrar este círculo vicioso será mostrar que a
possibilidade de existir uma forma sem matéria é uma exigência da realidade a que
chamamos de conhecimento.
O conhecimento, enquanto tal, não pode ser explicado pelas leis das ciências
experimentais. Se os princípios da ciência experimental pudessem explicar o conhecimento,
seria possível construir um computador dotado de conhecimento e consciência. Mas, bem
diversamente disto, conforme será explicado mais adiante, não existe nenhuma maneira de
explicar o conhecimento enquanto tal senão como um processo de independização da forma
da matéria. Ora, como os conceitos de forma e de matéria extrapolam as possibilidades das
ciências experimentais, o conhecimento enquanto tal está além da possibilidade de
compreensão das ciências experimentais. O processo de independização da forma em
relação à matéria, a que chamamos de conhecimento, por outro lado, depende daquilo que a
chamamos de vida e constitui um desenvolvimento desta. Os vários graus de conhecimento
que observamos nos seres vivos representam graus diversos de independização da forma
em relação à matéria nos seres vivos. Este processo de independização da forma em relação
à matéria se inicia com as manifestações de vida mais primitivas em que ainda não há
sinais de conhecimento. À medida em que passamos das plantas para os animais, em que
existe o conhecimento sensorial, e dos animais para o homem, em que existe o
80
Mas, se isto é assim, e o conhecimento somente pode ser explicado através dos
conceitos de matéria e forma, e o conhecimento intelectivo implica uma forma
independente da matéria, aqueles que sustentam que o conhecimento enquanto tal nada
mais é do que uma reação eletroquímica em um cérebro animal, estarão em uma situação de
total impossibilidade de compreender como uma forma pode existir sem a matéria. E, sendo
incapazes de compreender isto, estas pessoas estarão também impossibilitadas de
reconhecer qualquer outra verdade da metafísica tais como as estamos apresentando. Se
elas tiverem razão, poderão esperar pela construção de um computador dotado de
conhecimento e consciência para confirmarem suas posições.
Dizer, portanto, que as formas que não se compõem com a matéria são necessariamente
dotadas de inteligência ou capazes de atos intelectivos significa dizer o mesmo que as
formas que não se compõem com a matéria não podem ser objetos inconscientes, mas são
necessariamente pessoas. Estas pessoas, no entanto, apesar de dotadas de inteligência, não
são apenas inteligências ou puras inteligências. A razão consiste em que a inteligência é
acidente e, portanto, deve subsistir em uma substância, o que pode deduzir-se do seguinte
raciocínio: o ato intelectivo é contingente e acidental, pois pode dar-se e não dar-se, o que
mostra que este ato é acidente contingente. Portanto ele deve proceder de uma capacidade
permanente de produzir este ato, ao qual chamamos de potência intelectiva. Ora, se o ato é
acidente, a potência a este ato deve também ser acidente, porque ambos condividem a
mesma natureza e diferem um do outro apenas porque um é em ato o que o outro é em
potência. Ora, todo acidente tem que subsistir em outro que subsiste por si mesmo, ao qual
chamamos de substância ou essência.
Podemos entender por que as formas que não se compõem com a matéria são entes
dotados de inteligência considerando que os vários graus de vida encontrados na natureza
podem ser entendidos como uma crescente independência do princípio formal sobre a
matéria. Nos entes inanimados, quando uma causa eficiente produz uma essência gera uma
forma substancial que nada pode fazer exceto dar o ser ao ente gerado. Nenhum movimento
interno ao próprio ente gerado terá esta forma como seu princípio. Qualquer movimento
que for causado neste ente será inteiramente produzido por causas externas. A forma dos
entes inanimados somente pode produzir movimentos externos. No que diz respeito à
estrutura interna do ente inanimado, esta forma está como que congelada na matéria com a
qual combinou-se. No que diz respeito aos movimentos externos, a forma dos entes
inanimados somente pode produzir ao longo do tempo os mesmos tipos de movimento.
Uma pedra apenas cai, o fogo apenas esquenta, etc.. Já nos seres vivos, incluindo aí até os
mais elementares, sucede algo completamente diferente. A forma dos vegetais, ao mesmo
tempo em que lhes dá o ser, é capaz também de ser princípio de produção de movimentos
variados e internos ao ente animado, como se a forma estivesse começando a adquirir uma
primeiro grau de independência da matéria, coisa impossível ao ser inanimado, cuja
dependência extrema da forma para com a matéria somente permite uma ação sempre
idêntica e somente externa. Os animais dotados de sentidos são capazes de terem
consciência do mundo exterior, o que supõe um grau ainda menor de dependência da forma
para com a matéria. A consciência, mesmo a consciência sensorial limitada, de que um
computador não é capaz, supõe mais do que a gravação em nós de uma forma semelhante à
de um ente externo. A simples gravação de uma forma semelhante à de um ente externo
pode ser feita por um computador, pode ser feita em uma pintura e pode ser feita até por
nossa memória quando não nos estamos lembrando em ato do que há nela, sem que isto
produza o que se chama de consciência. No momento em que uma forma apreendida
produz a consciência ocorre algo mais do que a gravação de uma cópia da forma de um
ente externo no ser consciente. Quando ocorre a consciência o ser consciente apreeende a
forma interiorizada como a forma de um ente externo mas, apesar de ser a forma de um
ente externo, todavia esta forma apreendida não entra em composição com a matéria do
ente externo. Ao contrário, ela foi recebida na matéria do animal onde se produz a
consciência e, portanto, está compondo com a matéria do animal consciente mas, por outro
lado, também não é apreendida como uma forma em composição com a matéria do animal
consciente, pois neste caso estaria sendo apreendida como parte de seu próprio ser e não
como a forma de um ente externo. Colocado em outras palavras, quando o animal vê um
pássaro não apreende o pássaro enquanto gravado em sua retina ou em seus neurônios, mas
enquanto voando no espaço exterior, apesar de que a imagem vista está gravada em sua
retina e não voando no espaço exterior. Portanto, no momento em que se dá a consciência,
esta significa a existência de uma forma apreendida que apresenta um grau de relativa
independência tanto da matéria do objeto como da própria matéria do sujeito consciente. A
consciência sensorial é, portanto, o resultado de um movimento imanente, - todos os atos
vitais são movimento imanentes -, em que a forma substancial do ser vivo, o princípio que
possibilita estes movimentos imanentes, tornou-se princípio de produção de uma forma
82
Todo este raciocínio já seria válido para a consciência sensorial, que é comum ao
homem e a todos os demais animais. Mas no homem a consciência ultrapassa o grau da
sensorialidade e alcança o da intelectualidade. Isto significa que ele pode conhecer não
apenas seres materiais externos e individuais mas também entes abstratos e inexistentes,
enquanto tais, no mundo real. O homem pode apreender o que significa, por exemplo, o
conceito de existir. Um computador, ou um programa de computador, jamais apreenderá o
que significa existir, nem poderá atribuir este conceito a si mesmo e ter consciência de que
ele existe. Um átomo, uma molécula, uma reação química, a luz ou a força da gravidade
jamais poderão ter consciência de que eles existem. Por um raciocínio semelhante ao
anteriormente feito, deve-se concluir que, se um átomo ou uma reação química possuem
consciência nula, uma grande quantidade de átomos ou de reações químicas, não importa
de que maneira e em que quantidade possam combinar-se, não poderão ter uma
consciência maior de sua existência do que uma pequena quantidade deles. Pode-se mostrar
que a consciência de existir, ou simplesmente a consciência do que seja o ser, exige uma
forma não somente relativamente independente da matéria, como a que produz a
consciência dos seres sensoriais, mas também que uma forma fisicamente subsistente sem
necessidade da matéria como seu sujeito. A análise que conduz a esta conclusão transcende
uma introdução geral à natureza da vida e deve ser feita ao ser estudada a natureza da
inteligência, que é o objeto do terceiro livro do De Anima. Do raciocínio realizado no De
Anima, importa ressaltar aqui a conclusão segundo a qual, embora o homem seja um ser
dotado de corpo material, quando ele apreende um conceito abstrato, está produzindo em si
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Por outro lado, pode-se mostrar também que uma forma que não necessite da
matéria como sujeito para subsistir implica necessariamente a capacidade de inteligir e,
portanto, não poderia ser um simples objeto, mas um ente consciente ou em composição
com um ente consciente. Embora a demonstração desta afirmativa não pertença ao objetivo
do presente texto, podemos exemplificar o que ele significa. Um conceito intelectual
abstrato, se pudesse existir fora da mente, seria necessariamente um ente sem composição
com a matéria. O conceito de beleza, o conceito de justiça e outros conceitos abstratos
semelhantes, se existissem fora da mente, seriam certamente entes sem composição com a
matéria. Tais objetos, porém, não existem fora da mente. Entretanto, estes conceitos
existem como entes na mente humana que os apreende. De fato, se existe a consciência
intelectual, e sabemos por experiência que este é o caso, estes conceitos existem dentro da
mente e são formas tão necessariamente não compostas com a matéria como se existissem
fora dela. Não se pode dizer o mesmo da apreensão sensorial, apesar de sua relativa
independência da matéria. O que é apreendido pelo sentido, se existe também no mundo
exterior, necessariamente será um ente material, e estes são de fato os entes materiais que
são apreendidos pelos nossos sentidos.
O fato que uma forma que não necessite da matéria como sujeito para subsistir
implique necessariamente na possibilidade de intelecção significa, por este motivo, que se
existirem formas inteiramente desprovidas de matéria, e já provamos anteriormente que a
estrutura cosmos exige que elas existam, estas formas deverão ser inteligentes e portanto
deverão ser pessoas. Não existem objetos imateriais. Qualquer forma que não subsista na
matéria tem que ser uma pessoa.
No entanto, conforme dissemos, estas pessoas não são apenas inteligências ou puras
inteligências. A composição de essência e próprios descrita para os seres materiais é
comum tanto aos entes materiais como aos entes constituídos de forma sem composição
com a matéria, o que pode ser entendido do seguinte modo.
Os seres que não são dotados de matéria são constituídos de forma substancial sem
composição com a matéria. Esta forma substancial separada da matéria deverá ser
necessariamente capaz de um ato intelectivo. Tal como no homem, este ato intelectivo será
um acidente contingente. Ele poderá dar-se e não dar-se. Suporá, portanto, que exista algo
que possa inteligir e não inteligir. Suporá a possibilidade do ato intelectivo, ou seja, suporá
a potência intelectiva que deverá compartilhar a natureza acidental do ato que lhe
corresponde. Esta potência intelectiva será, por conseguinte, um acidente próprio, que
surgirá como uma exigência interna da forma substancial. A forma substancial, exigindo
necessariamente a possibilidade de inteligir, não poderá existir em ato sem a potência
84
Uma objeção deve ser levantada quando afirmamos que os acidentes contingentes
são causados por um agente ou causa eficiente externa, mas os acidentes próprios são
causados internamente por exigência dos princípios essenciais da espécie.
A objeção pela qual o a essência não pode mover o acidente ao ato porque neste
caso estaria violando o princípio de que nada pode mover a si mesmo é importantíssima e
correta, na medida em que exige um agente externo para que da essência em potência se
produza o ser em ato. O agente externo, de fato, sempre terá que existir, pois nenhuma nova
essência poderá ser produzida sem a intervenção do agente externo, e este agente externo
que irá produzir a essência será também o motor externo pelo qual da essência se
produzirão os acidentes próprios quando o ente passa ao ato.
Mas se para que da essência possam surgir os próprios, todo ser composto de
essência e próprios deve ter uma causa eficiente externa, então devemos concluir que se
esta causa eficiente externa for também ela composta de essência e próprios, ele por sua
vez deverá ter outra causa externa para que possa ter começado a existir. E o mesmo deverá
ser dito desta segunda causa externa, se também ela for composta de essênxcia e próprios,
de tal maneira que para evitar uma seqüência infinita impossível de causas externa teremos
que chegar a uma causa primeira que não sela composta de essência e próprios.
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Não poderá, porém, ser composta somente de próprios, porque os próprios são
acidentes e necessitam, por isso mesmo, de outro em que subsistir.
A causa primeira deverá, portanto, ser constituída somente de essência. Não poderá,
porém, ser constituída somente de essência de esta essência estiver em potência, pois nada
que é somente em potência pode existir em ato. Para existir, portanto, esta essência deverá
ser levado ao ato e formar com este ato uma composição de potência e ato. Entretanto, se
pudesse existir um ente composto somente de essência e ato, sem composição com nenhum
acidente próprio, tal ente não poderia exercer nenhuma ação externa e, portanto, não
poderia ser causa eficiente. O motivo é que nenhuma ação é subsistente por si mesma,
sendo acidentes que subsistem em alguma substância. Dito em outras palavras, para existir
uma ação, é necessário subsistir um ente que aja, não existindo ações que existam por si
mesmas sem um agante que as produzam. Por conseguinte, se as ações são acidentes, a
potência para agir também deverá ser acidente, de onde que se conclui que um ente que
fosse composto apenas de essência e ato sem acidentes próprios não poderia interagir com
nenhum outro ente do universo.
Deste raciocínio fica claro que a essência, enquanto potência, é potência apenas
para o ato substancial e, portanto, limita o ato do composto ao ser substancial. A essência
não é potência ao ser acidental. Já em composição com o ato substancial, a forma
substancial atualmente subsistente em um ente imaterial ou o composto de matéria e forma
substancial atualmente subsistente em um ente material, e não somente a sua essência
enquanto potência, possui também potência ao acidente próprio, sem os quais nenhum ente
poderia exercer causalidade eficiente. Um ente que fosse composto apenas de ess6encia e
ato não pode exercer causalidade eficiente porque a essência é apenas potência à substância
e limitaria o ato do ente apenas à substancialidade, e a substancialidade não pode agir como
causa eficiente por si mesmo.
Conduzindo este raciocínio um pouco mais adiante temos, portanto, que todo ente
finito composto de essência e próprios é necessariamente causado. Mais exatamente, a
própria essência destes entes deve ser externamente causada para que dela possam surgir os
acidentes próprios como de seus princípios internos sem que seja violado os princípios que
justificam a afirmação de que tudo o que é movido deve ser movido por outro.
Ora, segundo encontra-se exposto na segunda parte deste texto, o movimento supõe
uma composição de sujeito e forma. Esta composição é uma exigência para que durante o
movimento se preserve o ente que está mudando. Se um ente que não fosse composto de
sujeito e forma mudasse, esta aparente significaria na verdade a redução ao nada de um
ente anterior e a criação do nada de um novo ente totalmente distinto.
Deve-se concluir daqui que, havendo dois gêneros de essências, isto é, a essência
dos entes materiais composta de forma substancial e matéria primeira e a essência dos entes
imateriais constituída somente de forma substancial, sendo que ambas exigem uma causa
externa para se constituírem em entes em ato, haverá dois modos destes entes serem
causados.
O primeiro modo corresponde aos entes materiais. Estes entes, por possuírem uma
essência composta de forma e matéria, podem ter sua essência causada através do
movimento a partir de outra essência composta. Neste caso, durante o movimento a matéria
primeira permanece enquanto um agente externo atua como causa eficiente provocando a
alteração de uma forma por outra. As essências de tais entes, apesar de não existirem
isoladamente em ato, existem de modo real, entretanto, como potências componentes e
limitantes dos vários entes materiais que existem atualmente, a partir dos quais podem
gerar-se, por via de causalidade eficiente, novas essências.
No caso dos entes imateriais, em vez da criação a partir do nada, poder-se-ia supor
também que, se o tempo jamais tivesse tido início, seria suficiente que o ser destes entes
imateriais possuíssem uma dependência eterna de uma causa eficiente, sem que houvesse
havido um primeiro momento antes que tais entes não tivessem existido. Esta hipótese
significaria o mesmo que supor um ato criador que tivesse existido sempre sem jamais ter
tido início. O raciocínio é correto e, de fato, nas obras de Santo Tomás, encontra-se a
observação segundo a qual, embora saibamos pela Revelação que houve, de fato, um
primeiro momento criador, antes do qual nada havia, a Causa Primeira poderia ter
produzido, se assim o tivesse desejado, um mundo que tivesse existido eternamente, sem
um instante inicial antes do qual nada tivesse havido. Esta posição de Santo Tomás tem
sido contestada por muitos filósofos sérios e este é um dos raros casos em que a sentença
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deles é preferível à de Tomás. O motivo consiste em que considera-se como um dado certo,
admitido por Aristóteles e Santo Tomás, que não pode existir um número infinito de entes
em ato. “Nenhuma espécie de número é infinita”, afirma Santo Tomás, “porque qualquer
número é uma multidão medida pela unidade, de onde que é impossível existir uma
multidão infinita em ato” (Ia. Q.7 a3). Os matemáticos podem obter resultados
interessantes em seu trabalho especulativo supondo idealmente a existência de números
infinitos, mas a existência real de um número infinito de entes é, em sua própria natureza,
algo contraditório. Muitas objeções que podem ser levantadas contra esta afirmação são
facilmente respondidas. Alguns, por exemplo, podem argumentar que uma linha é
constituída de um número infinito de pontos e, portanto, como ninguém pode duvidar que
existem linhas no mundo real, dever-se-ia concluir que necessariamente existem também
números infinitos de pontos no mundo real. Este argumento pode ser respondido dizendo
que se um ponto é, por sua definição, um ente sem extensão, qualquer quantidade de pontos
colocados juntos também não teria extensão e, portanto, jamais poderiam constituir uma
linha. Tais linhas, portanto, não poderiam ser realmente constituídas por um número
infinito de pontos, mas somente por um número finito de pedaços de linha. Ora, se não
pode haver um número infinito de entes em ato, também não pode existir um tempo que
jamais tenha tido início. Porque neste caso, se tal tempo fosse dividido em partes finitas,
em cada um destes tempos finitos a Causa Primeira poderia ter criado um novo ente, com o
que acabaríamos tendo um número atualmente infinito de entes em ato, o que é impossível.
De onde se conclui também que, se esta argumentação é correta, os entes imateriais, tendo
por um lado que ser causados em seu ser e tal ser não podendo originar-se de outros entes
pelo movimento, sua causalidade supõe necessariamente um ato criador a partir do nada, e
não apenas uma dependência, sem princípio no tempo, de ser destes entes a partir de uma
causa eficiente.
Admitido este raciocínio, o mesmo pode-se estender-se também para o caso dos
entes materiais. Apesar de que tais entes, por possuírem uma essência composta de forma e
matéria, possam ter sua essência causada, não na linha da causalidade eficiente, mas na
linha da causalidade material, através do movimento a partir de outra essência composta, na
medida em que, durante o movimento, a matéria primeira permanece enquanto um agente
externo atua provocando a alteração de uma forma por outra, este processo não pode
prolongar-se até o infinito. Não pelo mesmo motivo alegado na linha da causalidade
eficiente, segundo o qual não haveria uma causa primeira do movimento presente e,
portanto, tal movimento jamais poderia iniciar-se, mas porque, na linha da causalidade
material, uma seqüência infinita de entes, na qual cada ente procederia de outro anterior,
implicaria um tempo infinito e, por conseqüência, a possibilidade de um número infinito de
entes em ato, o que não pode ser. Deve, portanto, ter havido um primeiro ente que não
proveio materialmente de outro, mas foi criado do nada.
Temos agora condições de examinar o texto das cinco vias para a demonstração da
existência de Deus apresentado por São Tomás de Aquino no início da Summa Theologiae
(Primeira Parte, questão 2 artigo 3). Embora esta análise não fosse estritamente necessária
para a exposição do tema deste trabalho, ela permite trabalhar e esclarecer tão bem os
conceitos já expostos que se torna quase obrigatória para o melhor prosseguimento do
estudo.
Desde sua infância, quando ainda era jovem estudante entre os monges beneditinos,
S. Tomás foi visto diversas vezes, por horas seguidas, em silenciosa reflexão. Certo dia, a
um frade que lhe perguntou qual a razão de seu alheamento, o jovem Tomás lhe responde
que buscava compreender quem era Deus. Seus biógrafos sempre viram nesta resposta um
nítido presságio pois, examinando a extensa obra que ao morrer S. Tomás deixou, percebe-
se que a questão sobre Deus acompanhou-o durante toda a sua vida e foi um dos principais
motores, senão o principal motor, de suas investigações em Filosofia e Teologia.
Entre as diversas questões que podem ser colocadas sobre Deus, uma delas diz
respeito à possibilidade de provar que Deus existe. Santo Tomás tratou dezenas de vezes
sobre este assunto ao longo de sua vida, modificando o modo de apresentar a questão, como
se ele mesmo estivesse buscando compreender o tema de modo mais profundo e apresentá-
lo de modo mais claro, ou estivesse, em momentos diferentes de sua vida e magistério,
explorando diversos aspectos particulares de uma mesma questão. Pode-se perceber, por
exemplo, que nas Quaestiones Disputatae de Potentia Questão 3 artigo 5, quando Tomás
pergunta se é possível existir alguma coisa que não tivesse sido criada por Deus, Tomás
discute uma maneira de provar a existência de Deus que é bastante diversa daquela que é
apresentada de modo principal no princípio da Summa contra Gentiles. No final de sua
vida, quando escreveu a Summa Theologiae e apresentou o texto que passou a ser
conhecido como “As Cinco Vias”, S. Tomás parece ter feito uma síntese final, tão
resumida quanto profunda, de tudo quanto havia meditado a este respeito em sua vida.
O texto da Summa Theologiae inicia-se afirmando que há cinco vias para poder
demonstrar-se a existência de Deus. Tomás abstém-se de dizer explicitamente se estas
cinco vias são todas as vias possíveis ou se, além delas, pode haver outras ou mesmo se
podem existir muitas mais. É evidente que as exposições apresentadas de cada uma das
cinco vias são também exposições mais maduras, apesar de mais resumidas do que as
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Santo Tomás inicia o texto afirmando que há cinco vias para poder provar-se a
existência de Deus. Vamos primeiro enumerá-las, antes de examiná-las e discuti-las.
A primeira via, que ele afirma ser a mais manifesta, é aquela que procede da análise
da existência do movimento, e daí chega à conclusão de que deve existir uma causa
primeira do movimento de todas as coisas, à qual chamamos Deus.
A quarta via procede da graduação que é observada nas coisas. O exame desta
graduação conduz à conclusão de que há um ente, que possui de modo eminente as
qualidades observadas nas graduações da natureza, que é a causa da qual se originam estas
mesmas graduações, ente ao qual chamamos Deus.
A quinta via procede do exame da ordem dos entes naturais a um fim. Onde existe
ordem, deve haver um princípio desta ordem, caso contrário já não se trataria de uma
ordem. Pode-se mostrar que este princípio é aquele ente a quem chamamos Deus.
A PRIMEIRA VIA
Uma das primeiras conclusões que resultam do exame atento das cinco vias, à luz
dos conceitos já expostos neste trabalho, é que as cinco vias não são enumeradas ao acaso.
A primeira via parte dos conceitos mais elementares e as restantes dependem, cada uma
delas, de conceitos que foram apresentados nas anteriores. Santo Tomás afirma, ao iniciar
seu raciocínio, que
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e isto significa, na sua linguagem, não que seja a mais evidente para os homens, mas a que
parte diretamente dos primeiros princípios da Filosofia, sendo, por isso mesmo, para quem
domina estes princípios, a mais fácil de se trabalhar e ser reduzida aos primeiros princípios
dos quais é impossível duvidar. As demais vias podem ser mais impactantes para o homem
comum, parecendo-lhe mais claras e mais convincentes. Rigorosamente examinadas,
entretanto, são mais difíceis de serem reduzidas aos primeiros princípios que são evidentes
por si mesmos.
Ora, este é justamente o segundo dos três primeiros princípios da Filosofia. Segundo
anteriormente exposto, a Filosofia parte de três princípios segundo os quais (1) alguma
coisa existe, (2) alguma coisa se move e (3) quando a inteligência humana apreende estes
dois primeiros princípios, apreende uma realidade tal como ela se dá fora da mente e não
apenas um fenômeno mental. A negação de qualquer um destes três princípios, aos quais
chamamos de princípio do ser, princípio do movimento e princípio da verdade, implica a
negação da validade de qualquer outro conhecimento. Os demais conceitos da Filosofia e
da Metafísica são conseqüências destes primeiros princípios e, a menos que haja erros de
raciocínio, as conclusões derivadas terão que ser tão firmes quanto estes mesmos
princípios. Santo Tomás parte, na primeira via, diretamente do segundo princípio da
Filosofia, quando afirma: “é indiscutível que algo se move no mundo”. A primeira via, por
isso mesmo, terá que ser a mais fundamental e a mais manifesta de todas, pois ela se baseia
diretamente nos primeiros princípios da Filosofia. Ora, continua Tomás,
O grande obstáculo para a compreensão da validade deste raciocínio, ainda que as pessoas
não se lembrem disto, está no modo como nos foi ensinado nas escolas o princípio do
movimento retilíneo uniforme da Física Newtoniana. Ninguém no-lo apresentou como
simples instrumento de cálculo, ontologicamente inválido. Ao contrário, foi-nos
apresentado como uma verdade absoluta. Ora, segundo este princípio, algo que esteja se
movendo em movimento retilíneo uniforme continuará se movendo indefinidamente em
movimento retilíneo uniforme até que alguma causa externa o detenha. Portanto, um corpo
em movimento retilíneo uniforme pode mover-se a si próprio sem necessidade de nenhuma
causa externa e, se o princípio de Newton é verdadeiro, a primeira via pela qual se pode
provar a existência de Deus, a mais manifesta, e sobre a qual se baseiam as outras quatro,
nada prova e a Summa Theologiae estaria viciada em sua própria base. Não existiu na
história do pensamento humano nenhum outro princípio que, sob a inocente aparência da
imparcialidade científica, tão sutilmente destruísse os fundamentos da verdade como os
postulados e as leis da mecânica newtoniana.
A SEGUNDA VIA
“A segunda via”,
afirma Tomás,
eficientes: não acontece, porém, nem isso seria possível, que algo
seja causa eficiente de si mesmo - pois, nessa hipótese, seria
anterior a si mesmo - o que é impossível”.
A partir deste ponto S. Tomás continua o raciocínio afirmando que, pelo mesmo motivo
apontado na primeira via, se há uma ordem de causas eficientes, onde uma é causa de outra,
esta ordem não poderia ser infinita. O motivo consiste em que a última causa que operasse
na série somente operaria se a anterior operasse e, portanto, todas operariam somente se a
primeira de toda a série operasse. Se, porém, houvesse infinitas causas, neste caso a última
da série nunca chegaria a operar, porque necessitaria que antes disso tivessem agido um
número infinito de causas. Portanto, seria novamente necessário colocar uma causa
eficiente primeira que não fosse causada por nenhuma outra, e esta causa todos chamam
Deus.
uma série de movimentos causados, argumentar que tudo o que é movido é movido por
outro, como faz a primeira via, e argumentar que todo motor, ou causa eficiente, é movido
por outro, parece ser apenas o mesmo raciocínio cujo início foi deslocado do último
movimento para o último motor. Pareceria, então, que já não haveria diferença entre a
primeira e a segunda via.
Mas, ao contrário, deve-se dizer que as duas vias diferem consideravelmente e que
esta diferença é claramente visível no contexto das cinco vias. Na apresentação de Santo
Tomás, cada uma das cinco vias pressupõe a anterior e retoma o raciocínio da precedente
ampliando o alcance da conclusão. A primeira via, neste sentido, partindo do movimento,
apresenta seu raciocínio na perspectiva do efeito, conclui com a existência de algo que
todos entendem ser Deus, mas somente pode concluir que este ente é um motor imóvel. A
segunda via situa-se em um nível mais alto. Utilizando-se do conceito de causa, derivado
da primeira via, parece ser um raciocínio idêntico, partindo do mesmo movimento, mas
desta vez examinado na perspectiva de sua causa. A segunda via conclui, como a primeira
via, com a existência de algo que todos entendem ser Deus, mas apresentado como uma
causa eficiente que não é causada. A diferença está em que, embora inicialmente o conceito
de causa eficiente tenha sido derivado do movimento, este conceito pode ser estendido a
outras causas que não apenas a causalidade do movimento. Conforme já notamos, se a
passagem da potência ao ato necessita de uma causa eficiente, a criação de um ente do nada
necessita com muito mais razão de uma causa eficiente e, neste caso a causa eficiente não
será mais a causa de um movimento, mas a causa do próprio ser da coisa. Raciocinar em
termos de causa, em vez de movimento, permite revalidar o mesmo raciocínio não apenas
para o movimento, mas também para todos os casos em que o raciocínio já não se dá em
termos do movimento das coisas, mas também do ser das coisas. É o que acontece no início
do enunciado da segunda via, quando Tomás afirma que
Nesta simples frase, quase imperceptivelmente, Santo Tomás já não está mais
necessariamente raciocinando em termos de movimento, mas principia a pensar em termos
do ser das coisas. Aparentando repetir o raciocínio da primeira via, ele nos mostra
sutilmente que, colocado nos termos da segunda, o mesmo raciocínio poderia ser aplicado
não somente ao movimento, mas ao próprio ser das coisas. É o que irá acontecer mais
abertamente na terceira via.
A TERCEIRA VIA
podem ser e não ser: pois encontramos coisas que são geradas e
corrompidas e, por conseqüência, podem ser e não ser”.
A terceira via pode também ser chamada de via da contingência. De fato, chama-se
contingente, por oposição ao necessário, tudo aquilo que é, mas que poderia ser diferente
do que é. Portanto, na terminologia usada por Santo Tomás, o possível significa o mesmo
que contingente. A primeira via partiu da constatação da existência do movimento, que é
também um dos primeiros princípios da Filosofia. A segunda via partiu da constatação da
existência de uma ordenação entre as causas eficientes observáveis na realidade, uma
constatação que, de fato, depende não mais apenas da simples observação, mas também do
argumento desenvolvido na primeira via. A terceira via parte da constatação de que existem
entes contingentes na realidade.
Ora, na medida em que definimos os entes contingentes como aqueles que podem
ser e não ser, à primeira vista parece que a terceira via parte do mesmo ponto que a
primeira, pois o único modo de constatar que existe contingência nos entes será através da
observação de que um ente tenha sido e depois já não tenha sido, o que parece significar o
mesmo que observar que tais entes se moveram. Portanto, afirmar que um ente é
contingente parece ser o mesmo que afirmar que ele se move.
A terceira via contém ainda um pressuposto implícito que não está declarado no
texto de Santo Tomás, sem o qual não pode ser entendido o argumento apresentado. Este
pressuposto é a tese segundo a qual todos os entes contingentes, aqueles cuja estrutura
exige potência, são causados por outro. Partindo deste pressuposto, o ser de todo ente
contingente deverá ter uma causa que, por sua vez, deverá ser um ente contingente ou
necessário. Se esta causa for um ente contingente, tal ente deverá ter uma causa e esta
segunda causa deverá ser, por sua vez, outro ente contingente ou necessário. Se for um ente
contingente, esta nova causa deverá ser novamente causada por outro ente que deverá ser
novamente contingente ou necessário. Como não se pode proceder na linha da causalidade
até o infinito, a prova terminará por concluir que devemos chegar a uma causa primeira,
que deverá ser um ente necessário, que não seja causado por outro.
Esta conclusão é, agora, não só muito mais ampla do que a conclusão da primeira
via como também do que a da segunda via. A primeira via, baseada no movimento,
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concluía que deveria haver uma primeira causa do movimento do Universo. A segunda via,
baseada na causalidade eficiente, concluía que deveria haver uma primeira causa eficiente
do Universo, um conceito que é mais amplo do que o do primeiro motor, já que pode
abarcar mais do que apenas a causalidade do movimento. Mas na terceira via, partindo do
pressuposto de que todo ente contingente seja causado, exige-se que a primeira causa seja
mais do que a causa do movimento, exige-se que ela seja também a causa do ser de todas as
coisas.
A terceira via pode ser apresentada de muitos modos, dependendo do modo segundo
o qual possamos provar que todo ente contingente tem que ser causado por outro.
Um dos modos pelo qual é possível provar que todo ente contingente deve ser
causado por outro já foi apresentado anteriormente. Mostra-se, em primeiro lugar, que todo
ente contingente possui uma essência e que, para que tal ente possa interagir com outros
entes, desta essência devem emanar acidentes próprios. Mas, para não admitir que, ao
emanarem os acidentes próprios da essência, esta essência ter-se-ia movido a si mesma,
deveremos concluir que tais acidentes próprios não poderão emanar da essência se esta
própria essência não for causada externamente, com o que fica concluída a prova.
Supondo esta prova, a terceira via poderia ser apresentada da seguinte maneira.
Vimos anteriormente que tais entes, para que possuam acidentes próprios, exigem a
intervenção de uma causa eficiente externa, que se utilize instrumentalmente da própria
essência por ela produzida, para que desta essência emanem os acidentes próprios. Conclui-
se, portanto, que o ente contingente deve ter sua essência causada por uma causa eficiente
externa.
Tal causa externa, porém, se for também um ente contingente e limitado, deverá por
sua vez ser causada por outra causa eficiente. Porém, pelos mesmos motivos já
anteriormente expostos, não é possível uma sucessão infinita de causas externas
contingentes e limitadas, cada uma delas causada por outra causa eficiente também
contingente e limitada. Deve-se admitir, portanto, uma primeira causa externa não
contingente e não limitada, que não possua potência e que seja, portanto, um ato puro e
ilimitado. Se esta primeira causa existe, ela estará em ato; se, ademais, não possuir
98
potência, será apenas ato, ou ato puro, sem admitir potência em sua constituição. Se não
possui potência, também não poderá ter essência, se entendermos a essência como potência
ao ser substancial. Esta primeira causa não será nada além do seu próprio existir. Seu
existir, porém, não possuirá nenhuma das limitações impostas por cada essência. Existe,
por conseguinte, uma causa primeira que não é mais, como na primeira via, apenas o
primeiro motor imóvel ou, como na segunda via, a causa eficiente primeira, mas um ente
não contingente, não causado por outro, não constituído por potência, ato puro, necessário e
ilimitado, que é a causa primeira não somente do movimento, mas também do próprio ser
de todos os demais entes constituídos de ato e potência. E este ente necessário e não
causado todos dizem ser Deus.
“Encontramos nas coisas algumas que são possíveis ser e não ser.
Ora, é impossível que essas coisas sejam sempre, pois aquilo que é
possível não ser, em algum momento não foi”.
Esta conclusão parece absurda, porque não parece ser necessário que aquilo que é possível
não ser, em algum momento certamente não tenha sido. Esta conclusão, aparentemente
paradoxal, somente será necessária se admitirmos, além do que é apresentado no texto, que
Santo Tomás aceita, como princípio implícito, que todo ente contingente é externamente
causado. O argumento, apresentado do modo como está no texto e sem este pressuposto,
não pode concluir de modo certo, mas apenas provável. Em outras palavras, sem que se
admita como proposição provada que todo ente contingente seja externamente causado, é
provável, mas não certo, que aquilo que pode não ser, em algum momento não tenha sido.
O motivo, pelo qual não se pode considerar tal conclusão como certa, é o mesmo pelo qual
alguém que possui um direito poderá nunca querer exercê-lo, sem que por isto deixe de
possuir tal direito.
Por outro lado, se admitirmos como princípio implícito que todo ente contingente
seja externamente causado, a conclusão deverá ser considerada como certa. Para entender o
motivo, deve-se recordar primeiro que a causa do movimento deve ser concomitante no
tempo com o movimento causado, mas as causas dos entes contingentes, quando são entes
materiais gerados por meio do movimento, podem ser, ao contrário, anteriores no tempo ao
próprio ente gerado. Colocando em exemplos, ao contrário do que afirma Newton, se algo
se move, deve estar sendo movido por uma causa concomitante ao movimento. Mas já no
caso das causas não dos movimentos, mas dos entes materiais, temos o exemplo do alto
forno que produziu um lingote de aço, o qual foi anterior no tempo à existência da barra de
aço, e temos o exemplo da geração da semente da qual se produziu uma árvore, que foi
anterior no tempo à existência desta árvore. Posto isto, admitimos em seguida que não pode
existir uma sucessão infinita de causas, tanto no caso das causas do movimento quanto no
caso das causas do ser. O motivo, entretanto, é distinto em ambos os casos. Uma sucessão
infinita de causas concomitantes, como é o caso das causas do movimento, não pode existir
porque neste caso o último efeito jamais se iniciaria, enquanto que uma sucessão infinita de
causas não concomitantes, como às vezes é o caso das causas do ser, não pode existir
99
Ora, como todo ente contingente é externamente causado, se sua causa externa for
também um ente contingente, ela deverá exigir outra causa externa e assim sucessivamente.
Já que as causas não podem prosseguir até o infinito, deveremos daqui concluir que, (1) se
negamos que exista uma primeira causa não contingente, seremos forçados a admitir, para
evitar uma série infinita de causas, que (2) existiu um primeiro momento antes do qual não
havia nenhuma causa para o ente contingente. Mas, como todo ente contingente deve ser
externamente causado, deveremos concluir, portanto, que antes daquele momento ele
também já não poderia ser.
“Mas, se tal foi o caso, ainda agora não existiria coisa alguma.
Na verdade, aquilo que não existe, não começa a existir senão por
algo existente; ora, não existindo qualquer ser, seria impossível
que algo começasse a existir e assim nada agora existiria - o que é
evidentemente falso. Portanto, nem todos os seres são puramente
possíveis, mas forçoso é que exista, na realidade, o ser
necessário”.
A terceira via terminaria neste ponto se S. Tomás não tivesse introduzido uma distinção
diversa da que fizemos:
Esta colocação final de São Tomás torna-se clara se entendermos que o autor chama de
“contingentes” somente os entes cuja essência é composta de matéria e forma, chamando
de “entes necessários que possuem a causa de sua necessidade em outro” aos entes cuja
essência é constituída apenas de forma. Na verdade, ambos estes entes são contingentes,
porque ambos podem não existir. O motivo da distinção de Santo Tomás reside em que os
primeiros podem mudar de essência, enquanto que os segundos, durante o tempo em que
existirem, não podem mudar de essência.
100
A QUARTA VIA
As características da causa primeira, tais como foram deduzidas pela terceira via,
transcendem as deduzidas para a mesma causa primeira a partir da análise do movimento e
da própria causalidade. A análise do movimento, suposto como uma alteração da forma,
conclui pela necessidade de uma causa eficiente e esta conclusão, aplicada à primeira via,
conduz a uma causa primeira que é um motor imóvel. A análise da causalidade, aplicada à
segunda via, conduz a uma causa primeira que é uma causa não causada. Mas a causa
primeira, tal como é deduzida pela terceira via, é um ente necessário, destituído de
potência, destituído de essência e ilimitado. O que é necessário notar agora é o quanto uma
causa com estas características, ao agir, transcende o modo de causalidade próprio das
causas contingentes.
A causa primeira da terceira via, entretanto, não possuindo acidentes, não poderá
agir através deles. Não poderá tampouco agir através de uma essência limitada, que
também não possui. Sendo um ato de ser ilimitado, se ela é causa, portanto, deveria ser
capaz de transcender aquele modo de causalidade que termina em uma forma e ser capaz de
produzir o próprio ato de ser. Ora, isto é o ato criador.
Tal como se pode depreender pelo exame da terceira via, este ato criador consiste
em mais do que apenas dar o ser apenas produzindo algo do nada. Se o ato criador
consistisse apenas em produzir algo do nada, a causa primeira da terceira via poderia causar
outro ente ilimitado igual a ela mesma. Pode-se provar, porém, que isto seria impossível
porque, se pudessem existir dois entes sem essência e ilimitados, o segundo ente deveria
diferir do primeiro em algo. Neste caso o segundo ente deveria não possuir algo que o
primeiro tem e, neste caso, o segundo teria uma limitação, ou deveria possuir algo que o
primeiro não tivesse e, neste caso, o primeiro teria uma limitação, o que contraria a
hipótese inicial de que ambos eram ilimitados. Portanto a causa primeira da terceira via não
pode criar outro ente ilimitado, mas apenas entes limitados. Ora, os entes limitados não são
atos puros, mas compostos de potência e ato. Portanto, criar algo do nada implica não
apenas em causar o próprio ato de ser, mas também limitar ou modular este ato pela
potência ou essência do ente criado. A ilimitação ou infinitude do ato de ser considerado
em si mesmo pode produzir uma graduação ilimitada de possibilidades, na medida em que
a potência moduladora seja maior ou menor. O ato criador, portanto, não consiste apenas na
101
produção de algo do nada, mas também na modulação do ato ilimitado de ser da causa
primeira, o que, por este mesmo motivo, supõe infinitas possibilidades que variam desde
quase a pura potência até algo menos do que o ilimitado.
Quando um ente possui em parte algo que outro possui plenamente, ou quando,
como neste caso, o efeito possui em parte o que a causa possui plenamente, diz-se que o
efeito participa da causa. A participação que deriva da causalidade não ocorre apenas
quando a causa é a causa primeira, mas com todas as causas. O fogo, por exemplo, aquece
de modo desigual, segundo a maior ou menor proximidade, os vários objetos que se lhe
acercam e nenhum deles possuirá o calor no mesmo sentido em que este é possuído pelo
fogo, que não somente transmite o calor como podem fazê-lo os objetos por ele aquecidos,
mas também é fonte de calor. A inteligência humana produz artefatos diversos que variam
em grau de engenhosidade; tais artefatos participam da inteligência humana, mas nenhum
deles possui inteligência no mesmo sentido em que a mente humana a possui.
“Dionísio manifesta que Deus é conhecido por todos e diz que isto
se deve ao fato da sabedoria divina ser a causa efetiva de todas as
coisas, na medida em que produz as coisas no ser e não somente
dá o ser às coisas, como também o dá com ordem, na medida em
que as coisas se coadunam entre si ordenando-se a um fim último.
Dionísio também acrescenta o modo desta ordem, porque sempre
os fins dos primeiros, isto é, os menores entre os maiores, se unem
aos princípios dos segundos, isto é, os maiores dos menores, de
modo que une o maior da criatura corporal, a saber, o corpo
humano, ao menor da natureza intelectual, que é a alma racional.
E o mesmo se vê nas demais coisas, operando assim a beleza do
102
Tomás de Aquino sustenta que, quando se encontra este tipo de graduação nas coisas, isto é
indício certo da existência de uma causa que produziu semelhante graduação. Na
Exposição sobre o Símbolo dos Apóstolos ele se utiliza do seguinte exemplo para explicar
esta afirmação:
De onde que, observando-se na natureza uma graduação de propriedades que não se limita
a uma determinada classe de entes, nem a uma determinada classe de efeitos, mas que
perpassa todas as possibilidades do ser, tal constatação é tomada como indício certo de uma
causa primeira ilimitada. Daqui procede a tese da quarta via pela qual se pode demonstrar a
existência de Deus, exposta por S. Tomás desta maneira:
“A quarta via é tomada dos graus que são encontrados nas coisas.
De fato, encontramos nas coisas algo mais e menos bom,
verdadeiro e nobre, e outras semelhantes. Mas o mais e o menos
são ditos de coisas diversas na medida em que se aproximam
diversamente a algo que é maximamente, como o mais quente é o
que mais se aproxima do maximamente quente. Há, portanto,
103
Esta conclusão contradiz frontalmente a conclusão apresentada no século XIX pela teoria
da evolução de Darwin. A mesma graduação dos entes, que para Tomás de Aquino é
indício certo da atuação de uma causa primeira à qual chamamos Deus, é para Darwin
indício da atuação da seleção natural, um mecanismo pelo qual variações ao acaso nas
características dos seres vivos, na medida em que tornam o ser vivo mais apto para a luta
pela sobrevivência, são consecutivamente selecionadas pela natureza ao longo de
incontáveis gerações até que, de uma espécie mais primitiva, surja outra espécie mais
evoluída e mais apta para a sobrevivência. A idéia surgiu, segundo narrado nos primeiros
capítulos do livro “A Origem das Espécies” de Charles Darwin, da observação do autor
sobre o trabalho realizado nas fazendas inglesas. Darwin observou como os animais
ingleses eram melhores do que os mesmos animais do restante do mundo. As ovelhas
inglesas produziam mais lã e os cavalos ingleses corriam mais rápido que as mesmas
espécies provenientes de outros lugares do mundo. O motivo era que cada geração de
novos animais era sistematicamente selecionada pelos fazendeiros, de modo que, entre as
novas ovelhas, aquelas que produzissem mais lã eram poupadas para reprodução, enquanto
as demais eram destinadas ao abate, o mesmo sendo feito com vacas e cavalos. Assim,
depois de alguns séculos, as novas gerações de animais ingleses possuíam características
superiores às das mesmas espécies provenientes de outros lugares do mundo. Darwin
concluiu que, por um processo essencialmente semelhante, porém mais lento, a própria
natureza selecionaria, devido à luta pela sobrevivência, as características de cada geração
de seres vivos, aprimorando-os de tal maneira que, ao longo de eras, as modificações
acumuladas por estes seres vivos seriam tão drásticas que viriam a produzir espécies
inteiramente novas de plantas e de animais.
Apesar de ter sido exposta apenas para o âmbito biológico, a teoria de Darwin supõe
um raciocínio exatamente inverso ao da quarta via de S. Tomás de Aquino, e levanta
algumas objeções irrespondíveis.
Em primeiro lugar, até hoje jamais foi observada a produção de uma nova espécie
de um ser vivo a partir de outra, seja em conseqüência da seleção natural, seja em
conseqüência da seleção artificial praticada pelos fazendeiros. Tudo o que a seleção natural
ou artificial pôde realmente produzir e que foi realmente comprovado pela observação
foram variações dentro da mesma espécie. A hipótese segundo a qual, tanto pela seleção
104
natural como pela artificial, seria possível produzir, a partir de uma espécie mais primitiva,
uma nova espécie de ser vivo mais evoluída, é até hoje uma simples conjectura sem
nenhuma comprovação experimental. Trata-se, ademais, de uma hipótese que, do ponto de
vista metafísico, é, no mínimo, muito inverossímil, porque uma causa não poderia produzir
um efeito maior do que ela própria. Neste sentido seria temerário afirmar que uma série de
transformações casuais, selecionadas por condições naturais cuja seqüência também é
casual, pudesse ter produzido, a partir de seres primitivos, estruturas tão sofisticadas como
mamíferos e homens, e mais temerário ainda afirmar que este seria o mecanismo padrão
segundo o qual a natureza agiria.
europeu, veio a tornar, duzentos anos depois, a teoria da evolução tão ilusoriamente
verossímil apesar das objeções em contrário e da falta de comprovação experimental. A
estrutura biológica dos diversos seres vivos e os registros geológicos mostravam
claramente que as espécies mais perfeitas dependem das menos perfeitas para a sua
existência e, portanto, devem ter surgido posteriormente no tempo. Como no Universo
newtoniano não é necessária a existência de uma causa primeira para explicar os
movimentos observáveis da natureza, a observação do surgimento seqüencial das espécies,
excluída a ação da causa primeira, parece exigir a seleção natural. A força probatória
intrínseca dos argumentos de Darwin é ilusória e a verdade é que, em um Universo
newtoniano, já não haveria outra explicação possível. Supondo que as leis de Newton
sejam consideradas como princípios metafísicos, a seleção natural seria dedutível da Física
newtoniana, sem necessidade do arrazoado contido no livro a Origem das Espécies.
Conforme veremos mais adiante, vinte anos após ter escrito a “Origem das Espécies”,
Darwin comentou a este respeito em sua autobiografia:
para fazer com que, a partir de um ente que não poderia, por si mesmo, causar mais do que
a sua essência lhe permite, se produza um outro ente de uma espécie mais elevada. Isto é,
não há motivo para que não seja plausível o relato da criação contido no Livro do Gênesis,
o qual não afirma uma criação constante a partir do nada mas, após a criação do primeiro
dia, não volta mais a usar este termo exceto no momento em que a vida surge pela primeira
vez no surgimento do homem, descrevendo, nos demais dias da obra da ornamentação, a
produção das espécies superiores a partir das inferiores já existentes em virtude de uma
intervenção direta da causa primeira.
Por mais desconcertante que possa parecer, o descobridor da seleção natural afirma,
em um livro que somente foi divulgado muito discretamente e não antes de se terem
passado vários anos após a sua morte, quando praticamente toda a humanidade havia
aceitado a teoria da evolução como fato consumado, que concorda com estas afirmações.
Enquanto o público lia em todo o mundo a “Origem das Espécies”, a obra em que era
apresentada a teoria da evolução, o próprio autor da teoria admitia, mas para ser divulgado
apenas entre seus familiares, que não conseguia acreditar nela. A afirmação está contida na
autobiografia de Charles Darwin, um documento originalmente escrito pelo autor apenas
para a leitura privada de seus descendentes, mas publicada discretamente após a morte do
autor, quando a aceitação da seleção natural por parte do público já era um fato consumado.
Neste relato pessoal de sua vida, lemos que, retornando à Inglaterra, após a viagem de
cinco anos ao redor do mundo a bordo do Beagle, Darwin tentou iniciar, sem sucesso,
alguns estudos de Metafísica, para os quais reconheceu “não ser bem dotado”. Logo em
seguida afirma, ao contrário do que faz na “Origem das Espécies”, que é “impossível
conceber o universo como sendo o resultado de um cego acaso ou de uma necessidade”.
Em outras palavras, o autor não consegue crer nas evidências da teoria que ele próprio
propôs, mas que o mundo inteiro estava sendo induzido a aceitar através da divulgação de
sua principal obra. Darwin então se justifica a si mesmo, propondo a paradoxal hipótese
segundo a qual a impossibilidade da mente humana em compreender a evidência da teoria
da evolução poderia ser explicada como sendo o resultado do próprio mecanismo da
seleção natural:
“Os dois anos e três meses, desde minha volta à Inglaterra até
meu casamento, foram os mais ativos que jamais tive. Iniciei o
meu primeiro livro de notas sobre fatos relacionados com a
"Origem das Espécies", sobre o qual nunca cessei de trabalhar
durante os vinte anos seguintes. Como não era capaz de trabalhar
o dia todo na ciência, li bastante durante estes dois anos sobre
vários temas, incluindo alguns livros de metafísica, mas não era
bem dotado para estes estudos.
Suposta a mecânica newtoniana, a teoria da evolução pode corretamente ser vista como
uma aplicação particular, no âmbito da Biologia, de uma hipótese mais geral, segundo a
qual, sempre que na natureza pode dar-se o surgimento de várias estruturas igualmente
possíveis e observam-se apenas aquelas que, sob algum ponto de vista, são precisamente as
mais perfeitas, isto seria conseqüência de um mecanismo através do qual todas ou grande
parte destas estruturas realmente surgiram, entre as quais, através de leis fixas da natureza,
algumas entre elas foram selecionadas. Considerada neste âmbito mais amplo, dados
recentes da ciência moderna parecem caminhar para a contradição da hipótese. A partir da
segunda metade do século XX os homens da ciência começaram a considerar com
crescente perplexidade a constatação de que as constantes fundamentais da física, como a
massa do elétron (igual a 1/1840 da massa do próton), a carga do elétron, as relações de
grandeza entre as quatro forças fundamentais da física (a força gravitacional, a força
elétrica, a força nuclear e a força fraca), e mais outras constantes básicas, estavam, cada
uma delas, ajustadas a valores muito precisos, de tal maneira que variações mínimas não
apenas destas constantes, como também da combinação entre todas elas, teriam
impossibilitado a formação não somente das estrelas, como até mesmo de quaisquer outros
elementos químicos além do hidrogênio e do hélio. Ou seja, sem esta combinação
espantosamente exata de valores, o Universo, se tivesse chegado a formar-se, seria, na
melhor das hipóteses uma massa informe de gases e não apenas a vida, como também a
natureza, tal como a conhecemos em sua diversidade e beleza, seriam impossíveis.
Entretanto, não existe nenhuma teoria aceita que explique como tais valores tenham
puderam ter sido escolhidos pela natureza, e também não há qualquer evidência que tal
combinação tenha sido alcançada por meio de um processo de seleção casual entre várias
tentativas com valores diferentes. A probabilidade de que tal combinação seja produto de
um simples acaso em uma única tentativa é praticamente nula. Ora, se é possível que o
Universo selecione com tanta exatidão os únicos valores de todas as constantes básicas que
permitem o surgimento da vida e a diversidade da natureza, e aparentemente isto não se
realizou nem pelo acaso, nem por um processo semelhante à seleção natural tal como é
descrito pela biologia darwiniana, não há motivo por que não se possa admitir que exista na
natureza a possibilidade de outras explicações, atualmente ignoradas pela ciência, para a
origem das espécies, além da própria seleção natural. E aqui, ao contrário do que afirma a
autobiografia de Darwin, seria muito difícil explicar que as hipóteses que estas
constatações sugerem sejam uma simples ilusão da mente humana produzida pela própria
seleção natural.
A QUINTA VIA
A quarta via, tomada a partir dos graus do ser, pressupõe as vias anteriores e as
estende. Na medida em que, identificando uma gradação dos seres nas coisas, deduz que
esta gradação exige um ente ilimitado como sua causa, pressupõe o conceito de causa, cuja
primeira prova está contida na primeira via e cujas extensões são apresentadas na segunda e
terceira via. A terceira via, na medida em que conclui a existência de uma causa primeira
desprovida de potência e, portanto, ilimitada em seu ser, permite admitir como efeito desta
mesma causa uma vasta gradação de entes que participam do ser ilimitado da causa
primeira, segundo a graduação da potência os constituem.
109
Deve-se notar, entretanto, que as essências dos diversos entes, graduados segundo a
participação do ser da causa primeira, não são diretamente observáveis pelos sentidos
humanos. Os olhos e demais sentidos apreendem os acidentes, e não as essências dos
diversos entes e, a partir destes acidentes, é a inteligência que, por abstração, apreende o
que chamamos de essência. Estes acidentes, porém, e as ações que deles derivam, emanam
das essências dos entes e são como que instrumentos destes. O espetáculo que os olhos
humanos apreendem no Universo de modo imediato, portanto, não é propriamente o
espetáculo da gradação dos entes, mas o espetáculo da ordem que resulta dos entes assim
graduados, na medida em que, através de seus acidentes, tais entes atuam uns sobre os
outros. Desta ordem, que deriva da gradação dos entes que constitui o ponto de partida da
quarta via, tem origem a quinta via. A quinta via, observando a ordem que existe na
natureza, conclui que tal ordem exige a existência de uma causa primeira que a produza.
Segundo a exposição de Tomás de Aquino,
Note-se também que, sendo assim, a quinta via é a única das cinco para demonstrar a
existência de Deus cujo ponto de partida é imediatamente apreensível pelos sentidos. As
demais vias partem respectivamente do movimento, tomado enquanto passagem da
potência ao ato, da causalidade, da contingência e da essência dos entes, coisas que não são
imediatamente observáveis pelos sentidos, mas apenas apreensíveis pela abstração do
intelecto. Somente um filósofo pode, por este motivo, compreender adequadamente as
quatro primeiras vias. A quinta via, porém, é acessível, até um certo ponto, também pelos
homens simples, incapazes do esforço de abstração requerido pela Metafísica. Não é
preciso estudar Metafísica para apreender a ordem do Universo e, desde os primórdios da
História, tanto os homens simples como os homens sábios concluíam a existência de Deus
observando a ordem existente na natureza. O raciocínio delineado por S. Tomás de Aquino
no conjunto seqüencial das cinco vias explica por que a fortíssima impressão produzida
pela ordem das coisas observável no mundo, segundo a qual tal ordem deveria ter sua
origem em um ordenador inteligente, é metafisicamente correta, mesmo que a pessoa
tomada por esta impressão não saiba como justificá-la rigorosamente. De fato, para
compreender claramente todo o seu valor probatório, o homem que está sob o impacto da
experiência que se origina do exame da ordem do Universo teria que reduzir a quinta via às
110
quatro anteriores, e isto somente os sábios seriam capazes de fazê-lo. Soma-se a isto que,
para compreender todo o alcance da quinta via, o homem sábio que tivesse vivido durante
os últimos quatro séculos da história teria que ser capaz também de explicar por que os
conceitos introduzidos na cultura moderna pela Mecânica Newtoniana e pela Teoria da
Evolução de Darwin não são metafisicamente sustentáveis, embora possam ter utilidade
como instrumentos de cálculo.
Ao iniciar sua exposição das cinco vias, S. Tomás afirma que a primeira, que
procede da análise do movimento, é a mais manifesta. Esta afirmação deve ser entendida no
sentido de ser a mais manifesta para o homem versado em Metafísica, por partir da
constatação do movimento, que é um dos primeiros princípios da Filosofia, enquanto que as
demais vias partem de princípios derivados, que devem, portanto, ser reduzidos aos
primeiros para poderem ser manifestamente compreendidos. Neste sentido, do ponto de
vista do rigor metafísico, a primeira via é a menos complexa e a mais manifesta, porque
parte de princípios mais elementares e mais evidentes. Segundo este mesmo sentido, a
quinta via, pelos motivos inversos, é a menos evidente e a mais complexa. Mas do ponto de
vista do homem comum, que pouco se eleva além da vida sensorial, a quinta via é a mais
manifesta e, de um certo modo, a única que lhe seria compreensível, se não tivesse sido
educado durante estes últimos séculos a considerar os conceitos da ciência moderna como
princípios metafísicos. No que depende da razão natural, a maioria dos homens não
possuirá outra maneira de apreender a existência de Deus senão através da quinta via e,
ainda que ela tenha uma solidíssima base metafísica, não saberão justificá-la
rigorosamente.
ele não está se referindo à gradação da essência dos entes, mas à ordem observável no
Universo. Ele está, de fato, considerando a quinta via de Santo Tomás de Aquino, e afirma
que, “quando pensa nestas coisas, sente-se compelido a supor uma Causa Primeira”,
mas não sabe justificar o motivo desta compulsão.
Examinando o texto anterior, nota-se que Darwin o inicia afirmando que, após
voltar à Inglaterra, tentou estudar “alguns livros de metafísica”, mas descobriu que “não
era bem dotado para estes estudos”. A análise da autobiografia completa de Darwin e de
111
outras obras deste mesmo autor revela um homem muito pouco dotado para o raciocínio
abstrato, que exige uma quantidade incomumente elevada de exemplos concretos para que
possa daí deduzir conclusões. No capítulo 3 da “Descendência do Homem”, Darwin revela
uma radical incapacidade para entender o que é o próprio conceito de abstração, quando
sustenta que um cachorro é capaz de apreender abstratamente o que seja um cachorro:
“Se julgarmos pelo que está escrito em vários artigos que foram
publicados recentemente, parece dar-se uma grande importância
a uma suposta completa ausência nos animais do poder de
abstração, ou de formar conceitos genéricos. Mas quando um
cachorro enxerga um outro cachorro à distância, fica
frequentemente claro que ele está percebendo que se trata de um
cachorro em abstrato, porque quando o outro cachorro se
aproxima, todas as suas maneiras subitamente se alteram ao
perceber tratar-se de seu amigo”.
A Metafísica das cinco vias apresentada neste texto pode explicar a atitude de
Darwin com mais coerência do que ele mesmo pôde fazê-lo. Conforme podia-se esperar,
não sendo capaz de debruçar-se sobre o raciocínio Metafísico, Darwin não foi capaz de
encontrara nenhuma das quatro primeiras vias. Corretamente negou valor probatório a
vários argumentos que não coincidem com nenhuma das cinco vias. Corretamente sentiu o
impacto da quinta via, que é a única acessível, com força probatória, às mentes para as
quais o exercício da abstração faz-se difícil. Embora sentisse o impacto probatório da
quinta via, não tendo sido capaz de compreender as quatro anteriores, não foi também
capaz de justificar rigorosamente a quinta. De fato, Darwin não afirma que a quinta via
prova a existência de Deus, mas declara apenas que ela o compele a crer nisto e sustenta
também, diante das considerações da quinta via, ser impossível para a mente humana
conceber o Universo sem uma Causa Primeira. Mas, devido à sua incapacidade de
fundamentar a quinta via nas anteriores, Darwin se detém neste ponto. O fato de, diante da
quinta via, ser impossível para a mente humana conceber o Universo sem uma Causa
Primeira, não significa, para o autor, que esta Causa Primeira realmente exista e que esta
suposta existência não seja mais do apenas uma ilusão da mente humana. Darwin foi, por
112
conseguinte, até o limite onde a mente do comum dos homens, presa muito proximamente
aos sentidos, teria sido capaz de ir. Tivesse ele tido a capacidade de compreender as vias
anteriores, teria tido também a possibilidade de responder ao seu dilema.
Para a grande maioria dos homens, a única via natural para o conhecimento de uma
Causa Primeira é a partir da ordem da natureza. Deve-se, porém, observar que esta mesma
ordem, da qual ninguém duvida, é também o fundamento da moral humana. De fato, faz
parte da ordem da natureza que o homem forme uma família, pois sem ela não seria
possível a educação humana e com isto a sobrevivência da espécie. Faz parte da ordem da
natureza que os homens não se matem uns aos outros, pois o assassinato subverte a
estabilidade da sociedade em que os homens vivem e o homem é, por natureza, um animal
social que, ao contrário de outros animais, não sobrevive senão em sociedade. Mas apenas
desta ordem, considerada em si mesma, não se deduz a existência de uma moral ou lei
natural. Corretamente Tomás de Aquino afirma na Summa Theologiae que qualquer lei é,
em sua essência, não apenas uma ordem, mas uma ordem ditada por uma inteligência que
possui, ademais, um poder de governo (IIa IIae, q.90 a.4). Portanto, para que a ordem da
natureza possa ser apreendida como uma lei moral natural, exige-se que, através das quinta
via, rigorosamente ou não, o homem possa apreender que esta ordem procede de uma
inteligência superior. A ciência moderna que, apesar de toda a sua falta de rigor metafísico,
apresenta-se como se realmente fosse possuidora deste atributo, impossibilita ao homem
comum, incapaz do estudo da Metafísica, não apenas apreender a existência de uma Causa
Primeira, como também apreender a ordem da natureza como uma lei moral natural. É
evidente o dano que, com o decorrer da história, à medida em que estas idéias são
progressivamente inseridas sem questionamento na cultura humana, isto pode causar à toda
a sociedade.
Todos os demais entes além desta causa primeira são entes causados compostos de
essência e próprios. Estes demais entes não poderiam ser constituídos somente de essência,
pois neste caso seriam Deus.
subsistir em um sujeito, de tal modo que seriam os próprios que supunha-se que não
existiriam.
Os demais entes além da causa primeira, se forem entes imateriais, terão uma
essência constituída somente de forma substancial. Sendo ademais inteligentes, da essência
destes entes imateriais emanarão próprios dos quais pelo menos um será a potência
intelectiva e outro será a vontade que necessariamente sempre deve estar presente onde
existe a potência intelectiva.
Isto é o que se pode dizer da essência dos acidentes do ponto de vista lógico. Mas cada
coisa deve ser definida a partir do que ela é na realidade e a definição é verdadeira quando
corresponde à realidade que está sendo definida. De onde que à essência do ponto de vista
lógico deve corresponder uma realidade metafísica. Neste ponto o De Ente et Essentia não
detalha qual é a realidade metafísica que corresponde à essência assim definida do acidente,
e cabe a nós fazer uma digressão a respeito.
Descrita deste modo, verifica-se não ser possível encontrar na composição dos entes
nenhuma estrutura que corresponda plenamente à razão da essência dos acidentes.
114
Não existe, portanto, uma estrutura metafísica no ente que corresponde ao que
deveria ser a essência dos acidentes, ao contrário do que ocorre na essência das substâncias.
Metafisicamente os acidentes possuem apenas uma essência incompleta e segundo um certo
aspecto.
116
Se a estrutura dos acidentes é conforme foi descrita no ítem anterior, será necessário
esclarecer algumas dificuldades sobre o modo pelo qual estes acidentes passam ao ato.
Para Santo Tomás a matéria não existe por ser matéria, a forma substancial não
existe por ser forma substancial, a forma acidental não existe por ser forma acidental, e o
composto destes elementos também não pode existir simplesmente por ser uma composição
117
destes princípios, como se o existir fosse atributo inerente dos mesmos. O existir é algo a
mais, acrescentado a estes princípios, e que irá fazer composição com eles, e não um
atributo inerente aos mesmos.
No De Ente et Essentia S. Tomás explica que isto deve ser assim do seguinte modo:
Em primeiro lugar, afirma-se claramente que, se o existir não faz parte da essência,
fica claro por conseguinte que a matéria, a forma substancial e o composto de ambos não
existem somente porque são. A forma substancial e o composto de matéria e forma
substancial são alguma coisa, nem por isso existem. Conforme diz Tomás, a existência não
faz parte destas coisas. Por incrível que possa parecer esta afirmação, as coisas não
necessariamente existem apenas por que são. Não basta ter essência para existir. Se
chamarmos de ser aquilo que é dado pela essência, existir é mais do que ser.
Em segundo lugar, o texto acima afirma que o existir, por si só, pode ser alguma
coisa. As coisas são algo quando possuem uma essência. Se a essência de alguma coisa for
o seu existir, este existir será alguma coisa. Mostramos no item oitavo desta seção que a
estrutura da causalidade do movimento exige que exista um ser que não possua matéria e
não seja composto de essência e próprios, mas seja apenas essência. Mas neste caso esta
essência não poderá ser potência, senão tal ente não existiria. Sua essência deveria existir
ela própria em ato e não possuir próprios. Seria a própria existência em estado puro. Mas se
existe um ente como este, e de fato pode-se mostrar que ele é a causa de todos os demais
entes, isto significa que o existir não é, como costumamos dar por concedido, um atributo
inerente aos demais entes. Algo pode ser a pura existência. A pura existência pode ser algo.
Se o existir pode ser algo e o existir não é parte integrante da essência dos entes,
para que se constitua um ente é necessário acrescentar o existir ao composto de matéria e
forma substancial ou, no caso dos entes espirituais, à forma substancial. Isto é feito pelo ato
criador que procede da causa de todas as coisas que é o ente cuja essência é o existir. No
ato criador o existir é acrescentado diretamente à essência, fazendo composição com ela e
sendo limitado por ela. Acrescentado o existir à essência e compondo com ela, os acidentes
passam a existir por exigência dos princípios da essência e na dependência do existir desta
essência.
118
Nos entes que nos circundam, o existir é algo real, mas não é um puro existir. Os
entes que nos circundam são o existir em composição com a essência. Mesmo que em
nossa mente façamos abstração deste existir de sua essência, o resultado desta abstração
não será o puro existir da causa primeira de todos os entes. Quando entendemos algo
existir, o que apreendemos é um existir já limitado pela essência daquele algo. Se por
abstração desconsideramos a essência do ente, o que restará em nossa mente poderá ser
apenas um existir, mas não o puro existir; será um existir que, apesar de estar abstratamente
desconectado da essência com que se compunha, ainda será limitado como se estivesse em
composição com aquela mesma essência, não será o existir ilimitado da causa primeira.
Será um existir que, por paradoxal que isto possa ser dito, não poderá existir senão em
nossa razão. Nenhum existir limitado pode existir sem composição em ato com uma
essência que o limite. O existir ilimitado da causa primeira somente pode ser apreendido
pela mente humana por analogia.
Os entes espirituais, por terem uma essência simples constituída apenas de forma,
somente podem sofrer alterações acidentais. Podem por exemplo aprender, que é uma
alteração acidental, mas não podem sofrer alterações substanciais. Já os entes materiais, por
terem uma essência composta de matéria e forma substancial, podem sofrer alterações
substanciais. O fato de que os entes materiais possam ter não somente seus acidentes, mas
também suas essências completamente modificadas, sem que para isso tenham que
necessariamente deixar de existir durante estas transformações, mostra que a diferença
entre essência e existência, apesar destes componentes não poderem ser jamais encontrados
separados um do outro, é uma diferença real e não apenas de razão.
Daqui depreende-se que a Metafísica tal como é exposta por Santo Tomás de
Aquino desenvolve e aprofunda os princípios fundamentais expostos por Aristóteles
particularmente no livro da Física.
Poderá ocorrer, porém, que não somente o composto de sujeito e forma, mas
também o próprio sujeito deste composto possa ser movido. Isto significará que este sujeito
também era composto, por sua vez, de outro sujeito e forma. De fato, se o movimento exige
composição e não houvesse composição naquele sujeito, ele não poderia mover-se.
119
Este segundo sujeito, se puder mover-se, será também composto de sujeito e forma,
e assim sucessivamente, até que se chegue a um primeiro sujeito que não seja composto e
não possa ser movido. Este primeiro sujeito que não pode ser movido deverá ser totalmente
indeterminado, pois se possuísse alguma determinação, poderia perdê-la e, por conseguinte,
poderia ser movido, de onde que teria que ser composto, contrariamente ao que havia sido
suposto.
Deste raciocínio Aristóteles conclui que a estrutura dos entes naturais é composta de
matéria primeira, que é pura potência totalmente indeterminada, de uma primeira forma que
dá à matéria o ser substancial, e das demais formas, chamadas acidentais, que são
acrescentadas ao primeiro composto subsistente de matéria e forma substancial. Aristóteles
parece supor tacitamente que esta estrutura de três elementos, matéria, forma substancial e
acidente, suficiente para explicar o movimento dos entes naturais, seja a estrutura completa
destes entes e não seja necessária nenhum outro princípio que explique sua existência.
Santo Tomás afirma que a estrutura dos entes é mais complexa do que esta. Existe
efetivamente uma matéria primeira totalmente indeterminada a qual, ao receber uma
primeira forma substancial, passa a ser algo, embora ainda não exista em ato. O primeiro
composto de matéria e forma substancial constitui uma essência, a qual é potência, mas não
mais pura potência, para o ato de existir e que, ao existir, constituirá um ente em ato,
limitado por esta essência. Para que este composto de matéria e forma substancial possa
passar ao ato, deve receber um novo princípio realmente distinto dos anteriores a que Santo
Tomás chama de "esse" e que pode ser traduzido como existência. O "esse" ou existir não
é nem forma nem matéria, mas um princípio totalmente distinto tanto da forma quanto da
matéria e que somente pode ter como causa direta aquele ser cuja essência é o seu existir,
que é também a causa primeira de todas as coisas. Esta essência, ao passar da potência ao
ato de existir exigirá, por princípios que lhe são inerentes, a imediata atualização das
formas acidentais sem as quais a essência não pode subsistir em ato. Mas, ao contrário da
forma substancial, as formas acidentais não recebem elas mesmas um novo ato de existir,
passando a existir em ato pela existência já recebida na essência que por isto passou a
exigir seus acidentes próprios em ato.
Porém, tal como a existência dos entes limitados, também não é forma. A forma
substancial é algo que necessita da existência de um princípio totalmente diverso, que é a
existência, para subsistir. A forma acidental necessita de uma forma substancial já
subsistente em composição com a existência para subsistir. O ser da causa primeira de nada
necessita para subsistir, sendo ele a causa eficiente pela qual as demais formas subsistem.
Trata-se, portanto, de um princípio diverso tanto da matéria como da forma e que não
necessita delas para existir.
Ademais, embora seja evidente que o ser da causa primeira não possa ser acidente,
não é tão imediato também que não possa ser substância. A substância é um ser que possui
limitações originárias de sua forma substancial, pela qual contrapõe-se ao ser dos acidentes.
A causa primeira não possui forma que a limite de nenhum modo, nem mesmo ao ser da
substância. Por isso ela, subsistindo por si mesma, pode agir e inteligir por si mesma sem
possuir acidentes, o que não seria possível a uma substância, e pode, se admitirmos o dado
revelado do mistério da Santíssima Trindade, possuir a realidade do acidente da relação
sem possuir a forma acidental da relação. A causa primeira, portanto, é um ente que
transcende os dez predicamentos listados no Livro das Categorias de Aristóteles. Algumas
vezes, em um sentido impróprio, diz-se da causa primeira ser substância, mas neste caso a
expressão, corretamente interpretada, significaria um modo de existência além do da
substância ou super-substancial, atribuível à causa primeira apenas segundo algum aspecto,
mas superada por ela em muitos outros.
Um terceiro grau encontra-se nos seres humanos, nos quais existe a faculdade
intelectiva, capaz de apreender o ser. Pode-se mostrar que, apesar de sempre preparado pela
sensorialidade que ainda se dá na matéria, o ato da inteligência humana, uma vez
produzido, é inteiramente independente da matéria. Não é objetivo deste texto apresentar a
prova formal desta afirmação. O que deseja-se discutir agora é, uma vez apresentada a
estrutura dos entes como constituída de essência e existência, como toda a atividade
intelectiva do homem se baseia também no ser enquanto constituído destes dois elementos.
antes dos sete anos de vida. Antes deste momento o homem somente exerce uma atividade
sensorial, apreendendo imagens e sons, reunindo-os e ordenando-os em sua memória. Uma
vez que esta atividade sensorial tenha alcançado um determinado grau de perfeição, destes
dados ordenados do imaginário a inteligência apreende, por abstração, pela primeira vez, o
que é existir ou ser real. É significativo que antes que possa apreender a essência de
qualquer ente, a inteligência deve apreender primeiro o que é ser real ou existir. Seria de
esperar-se que assim fosse, porque a essência é potência ao existir, o ato é mais inteligível
por natureza que a potência, e a própria potência somente pode ser apreendida em função
de seu ato.
Uma vez apreendido o que é existir, a inteligência passa a aplicar este conhecimento
do que é ser real aos objetos que vai reconhecendo sensorialmente ao seu redor. Apesar de
parecer evidente ao adulto que certas coisas são reais e outras não, como se o ser real das
coisas fosse uma percepção imediata, a verdade é que este julgamento está longe de ser
imediato. Muito tempo atrás, quando éramos crianças, depois de termos apreendido pela
primeira vez, graças à faculdade intelectiva, o que é ser real, julgamos que certas coisas
eram reais e outras não através de um longo confronto com dados da experimentação
sensorial. Tivemos que julgar que a constância de certos fatos inúmeras vezes repetidos e
apresentados pelos sentidos somente poderia ser explicada supondo que tais coisas vistas
ou ouvidas fossem reais, enquanto que outras, ao contrário, somente poderiam ser
explicadas supondo o contrário. Um sonho pode parecer real, mas ao acordarmos a hipótese
de sua realidade não é coerente com a estrutura do cosmos que nos rodeia. Por outro lado, a
morte de um ente querido, por mais que gostaríamos que fosse o contrário, somente pode
ser explicada supondo tratar-se de algo real. Em ambos os casos, foi necessário que a
inteligência apreendesse primeiro o que fosse existir para poder fazer estes julgamentos.
Uma vez que tenhamos apreendido o que é existir e também que um grande número
de entes existem e outros tantos são apenas aparências destituídas de existência,
começamos a apreender que, se algumas coisas existem, elas também são alguma coisa.
Abstraindo de sua individualidade e de seu conteúdo sensorial, entendemos deste modo o
que é ser água, ser árvore, ser cachorro, ser homem. Começamos com isto a conhecer não
apenas a existência, mas também a essência das coisas que nos rodeiam. O conhecimento
da essência é posterior ao da existência.
comumente referirem-se a este, que é o conceito mais abstrato entre todos, como sendo o
conceito de ser, na realidade não se trata propriamente do conceito de ser, mas do de
essência. O ser é, de fato, um composto de essência e existência. Este conceito de ser, o
mais abstrato de todos os conceitos ao qual a inteligência humana chega, é a apreensão de
uma essência que, se existisse, seria apenas ser.
O que seria esta essência à qual os textos de filosofia costumam chamar de "o
conceito de ser"? Não seria talvez o próprio Deus? Não é Deus a causa primeira, cuja
essência é sumamente simples e é apenas ser? Ora, eis aí um conceito que, se existisse,
seria apenas ser. Não seria, portanto, talvez a essência divina?
É somente por analogia que a mente humana pode apreender o ser dos entes não
materiais constituídos apenas de forma sem matéria. Sem o recurso à analogia, a existência
de uma forma totalmente destituída de matéria choca com a capacidade de abstração da
inteligência humana, porque a essência dos entes sensoriais, conatural à mente humana, não
pode ser concebida como possível de existência sem a matéria. A mente humana pode
deduzir a necessidade da existência de entes destituídos de matéria, porque a ordem
cósmica visível aos nossos olhos é inexplicável se não se admite a existência destes entes
imateriais. Ademais, pelo exame introspectivo da atividade intelectiva humana, pode-se
mostrar que a mente humana é ela mesma um destes entes que podem subsistir sem a
matéria. Mas quando tentamos inteligir, do modo como o fazemos com os entes materiais,
como poderia dar-se a existência de uma forma sem matéria, frequentemente nos vemos
tentando imaginar uma forma dotada de uma matéria extremamente sutil em vez de aceitar
a existência de uma forma totalmente destituída de matéria.
Uma vez apreendido o conceito de ser a inteligência humana torna-se capaz, através
destes princípios, de raciocinar. A conclusão de um raciocínio ou silogismo somente pode
tornar-se evidente para a inteligência porque ela apreendeu antes o que é o ser e suas
propriedades. Examinemos um exemplo para entender por que.
124
A conclusão deste silogismo parece tão evidente que não necessitaria de explicação. Na
realidade, porém, pode-se mostrar que este silogismo somente é evidente porque
conhecíamos antes o que é o ser, sem o que este e todos os demais raciocínios seriam
impossíveis.
Que todo homem é mortal significa que o conceito de homem está totalmente
contido dentro do conceito de mortal. Ou seja, há mais coisas mortais do que o homem,
como as planta e os cachorros, e não há nenhum homem que não esteja fora do círculo da
mortalidade.
Ora, Sócrates ser homem significa que Sócrates está totalmente contido dentro do
conceito de homem. Ou seja, que há mais homens do que Sócrates, tais como Platão e
Aristóteles, e que Sócrates não está fora do círculo da humanidade.
A estrutura do ente finito descrita nos ítens precedentes exige como conseqüência
que as suas essências não possam exercer uma causalidade eficiente diretamente por si
mesmas.
Esta conseqüência se deve ao fato de que nenhuma ação finita pode ser subsistente,
portanto não pode ser uma substância. Dito em outras palavras, toda ação finita tem
125
natureza de acidente, não de substância. Quando uma ação é realizada, esta ação não existe
por si própria, mas porque algo que subsiste por si está realizando aquela ação. Não
existem, portanto, ações em si mesmas, toda ação tem natureza de acidente. Sendo assim, a
potência para esta ação, que deve condividir a mesma natureza com o seu ato, também deve
ser um acidente.
Por outro lado, a essência não é potência para o acidente, mas para o ato de existir,
existência que, juntamente com a essência que a limita, constituirá o ente finito. Se a
essência enquanto tal tivesse potência para o agir, ela teria que ser, enquanto tal, também
potência para o acidente. Neste caso, possuiria simultaneamente natureza de substância e de
acidente, o que é uma contradição. A essência do ente finito é, em si mesma, potência
apenas para o ente substancial em ato. Não poderá, portanto, por si mesma, ser causa
eficiente de movimentos, pois estes são acidentes. A essência, subsistindo em um composto
existente em ato juntamente com os próprios que se lhe acrescentam, poderá agir como
causa eficiente somente através dos acidentes e das potências que dela emanam e das quais
é princípio, mas não poderá agir diretamente enquanto essência. Segue-se daqui por
conseqüência que quando os entes finitos movem-se entre si, são na realidade os acidentes
destes entes que movem-se uns aos outros. A essência dos entes finitos não pode mover
senão através dos acidentes.
No mundo não material, onde existem formas sem composição com a matéria e,
portanto, não há nem uma potência radical a outra forma substancial nem sujeito possível
para uma transformação substancial, estas transformações são impossíveis. Mas, assim
como ocorre no mundo material, as essências imateriais são potência para o ato de existir e
por conseguinte, não sendo acidentes, também não podem agir como causas eficientes. Os
acidentes podem exercer uma causalidade eficiente sobre outros acidentes mas, uma vez
alcançado o limite imposto pela potência que havia na essência, nenhuma modificação
ulterior poderá ser produzida por absoluta ausência de potência para a mesma. No mundo
imaterial uma substância não pode transformar-se em outra, não importando qual seja a
causa eficiente que tente produzir esta transformação.
Deve, por conseguinte, ter causado diretamente a própria essência do ente produzido, sem
intermediação dos acidentes. Nestes casos ainda a composição de potência e ato da essência
do ente produzido exigirá uma causa eficiente que possua em grau mais eminente o ato que
será causado no sujeito. Esta causa eficiente não poderá ser um acidente, porque a natureza
do efeito, que neste caso é o próprio ato substancial, excederia a natureza da causa. Se esta
causa eficiente fosse a essência de outro ente existente em um ato mais eminente e
pudéssemos ignorar a objeção segundo a qual uma essência não pode exercer uma ação
porque a ação é um ente acidental e a essência é potência ao ato substancial, teríamos ainda
assim que encontrar uma nova causa para esta essência ter passado da potência ao ato e, se
esta nova causa fosse a essência de outro ente ainda mais eminente, a seqüência novamente
não poderia ser estendida até o infinito. Será necessário admitir uma primeira essência que
não fosse ser em potência, mas que por si mesma exista em ato sem ter potência para tal.
Mas se a essência deste primeiro ente não é potência, este ente poderia ignorar a
objeção pela qual uma essência não pode exercer uma ação. De fato, a essência dos entes
finitos não pode exercer uma ação porque a essência do ente finito, mesmo levada ao ato de
existir, está limitada ao ser substancial pela sua essência que é potência ao ato substancial,
enquanto que a ação é ente acidental. Mas a essência do primeiro ente, não sendo potência,
não pode por isto mesmo possuir qualquer limitação em seu ato de ser. Se este primeiro
ente não pudesse agir, isto significaria que sua essência possuiria também um limite ao ser
substancial, o que vai contra a suposição inicial de que sua essência não é potência. A
estrutura dos entes finitos, portanto, exige que exista um primeiro ente não seja nem
substância nem acidente, mas algo que transcenda todas as primeiras dez categorias pelas
quais se distribuem os demais entes.
E, se todos os demais entes tem que ser causados, e somente poderão sê-lo por este
ente cuja essência é ato, segue-se que este ente é também o único capaz não somente de
causá-los mas também de agir diretamente sobre a essência de todos os demais entes
finitos. Nada lhe é inacessível, nada se lhe oculta, em um grau muito além da limitada
possibilidade de entendimento de todas as demais criaturas.
E com isto cremos ter agora todos os elementos filosóficos necessários para
descrever a estrutura básica do que é a vida, o que tentaremos fazer a seguir, deixando os
detalhes para as transcrições do terceiro volume do Curso Filosófico Tomista de João de
São Tomás.
128
1. Introdução.
Temos agora condições de examinar melhor o que significa a alma ser a forma
substancial do ente vivo.
Os seres vivos são entes capazes de produzir movimentos imanentes, ou dito por
outras palavras, são entes animados. Se são entes animados, deve haver algo que os anima
como um princípio formal, porque cada coisa é o que é pela sua forma. Portanto, o
princípio formal que os torna animados pode ser corretamente chamado de "anima", um
termo latino que pode ser traduzido em portugues como "alma", que significa "o que
anima". Entendendo por "anima" ou "alma" o princípio formal que faz o ente vivo ser
animado, necessariamente todo ente vivo terá que possuir uma alma. A dificuldade da
questão, portanto, não reside na existência deste princípio formal, pois os seres vivos são
manifestamente animados e isto deve-lhes provir de um princípio formal. O que não é
evidente e necessita ser provado é que este princípio seja a própria forma substancial do
ente animado.
Para isto temos que examinar, em primeiro lugar, se o ser vivo é realmente uma só
substância, como a água ou o ferro também o são, apesar da aparente diversidade do ser
vivo para com estes dois exemplos.
Confirmado que o ser vivo seja uma só substância, seguir-se-á que necessariamente
possuirá uma só forma substancial. Teremos então que, em segundo lugar, examinar se a
forma substancial deste ser vivo é também a mesma forma que o anima, isto é, que lhe dá a
capacidade de produzir movimentos imanentes, ou se a capacidade de produzir movimentos
imanentes provém de um princípio diverso da forma substancial, como seria o caso se
proviesse de um acidente próprio acrescentado ao composto de matéria e forma substancial.
Somente se forem cumpridos estes dois requisitos é que poderá concluir-se que a
alma, ou seja, aquilo que formalmente anima o ser vivo, seja a sua própria forma
substancial.
Examinadas estas coisas, ficará mais claro que a vida, em seu grau mais simples,
representa o início de uma seqüência de graus de independização da forma para com a
matéria.
A seqüência mencionada possui seu início nos entes inanimados, em que a forma
somente pode dar-lhes o ser mas não um movimento imanente. A forma substancial dos
entes inanimados é produzida por uma causa eficiente externa e permanece inalterada,
129
juntamente com o composto que recebe esta forma, até o momento em que uma outra causa
externa venha a destruir o composto, às vezes depois de longas eras.
A seqüência passa em seguida pela vida vegetativa das plantas onde a maior
autonomia do princípio formal em relação à matéria pode ser observada no movimento
próprio da vida vegetativa que, embora tenha sua causalidade eficiente última em agentes
externos ao ser vivo, não é se origina, na linha da causalidade eficiente, exclusivamente por
causas externas.
A seqüência chega à vida intelectiva humana onde não apenas a forma em que
consiste o conhecimento intelectivo, mas também a própria forma substancial que anima o
ser vivo, necessariamente apresentam subsistência independente da matéria, embora ainda
coexistam com ela.
A vida vegetativa, a vida sensorial e a vida intelectiva humana são os três graus da
vida identificados por Aristóteles no segundo livro do De Anima, os quais representam os
três primeiros níveis seqüenciais de independência da forma para com a matéria. No De
Anima, por tratar-se de um texto de Filosofia da Natureza e não de Metafísica, Aristóteles
entendeu por vida intelectiva apenas a vida intelectiva humana. Se se tratasse de um texto
de Metafísica, deveria o Filósofo ter completado a seqüência e afirmado que há cinco graus
de vida representando níveis seqüenciais de independência da forma para com a matéria.
Os três primeiros são os representados pelos três graus assinalados no De Anima, isto é, a
vida vegetativa, a vida sensorial e a vida intelectiva humana, aos quais se acrescentam a
vida intelectiva das substâncias separadas e, por último, a vida intelectiva da Causa
Primeira.
Metafisicamente a substância é aquilo que existe por primeiro quando o ente passa
da potência ao ato. A substância é aquilo sobre o qual todos os demais acidentes próprios e
contingentes existem como em um primeiro subsistente e sem o qual estes acidentes não
poderiam subsistir por si mesmos.
Ora, a experiência mostra que os entes vivos materiais são constituídos de partes
quantitativamente extensas. Um ser vivo material, portanto, somente poderá ser uma
substância se o que nele subsistir por primeiro for o próprio todo e não cada uma das partes
com anterioridade ao todo. Ou dito de outro modo, se os seres vivos que observamos forem
um agregado em que cada parte subsiste por si própria, estes supostos seres vivos não
poderão ser uma só substância. Se, ao contrário, forem algo cujo todo subsiste por si, sem
que as partes tenham subsistência própria, os seres vivos serão, cada um, uma só
substância.
Qual seja o caso é algo que pode ser facilmente compreendido considerando o
contra exemplo de um robô ou de um computador. Atualmente o desenvolvimento
tecnológico está muito próximo de criar um robô que imite o comportamento humano.
Brevemente teremos robôs que nos sirvam à mesa, conversem conosco e convivam com os
homens como se estas máquinas estivessem vivas. Para muitos biólogos, conforme veremos
mais adiante, bastaria muito menos do que isso para declarar estes artefatos como
possuidores de vida no mesmo nível que a vida que anima as plantas, os animais e o
homem.
No caso do robô é, porém, evidente que este, considerado em seu todo, não subsiste
por si mesmo. Cada parte de que é composto o robô possui uma existência própria, isto é, já
subsistia por si mesma, antes de fazer parte do robô. Cada peça do robô, cada engrenagem,
cada fio, cada circuito, cada lâmpada, cada componente já havia sido fabricado ou já existia
por si mesmo antes de entrar na composição do robô. Estas partes estavam guardadas em
algum armário ou depósito, já prontas e existentes, de onde podiam ser retiradas para serem
adicionadas ao robô que estava sendo montado. O robô, portanto, ainda que supostamente
imitasse à perfeição o comportamento humano, não poderia ser uma substância, mas é
apenas um agregado acidental de substâncias que já subsistiam por si mesmas.
A continuação deste raciocínio mostra que, por este mesmo motivo, o robô não pode
estar vivo. O seres vivos materiais são entes compostos de partes distintas em que,
justamente por constituírem um todo heterogêneo, uma parte em ato pode mover outra
parte em potência. Se, apesar da heterogeneidade das partes, estes entes constituírem uma
só substância, tais movimentos permanecerão dentro da mesma substância e serão, por
131
O exame de como isto ocorre nos seres aos quais habitualmente chamamos de vivos
mostra que a distinção entre estes e o robô é muito mais do que nominal.
Porém isto não é tudo. Além de não subsistir anteriormente ao todo, nenhuma das
partes do ser vivo poderia subsistir se todas as demais partes do ser vivo também já não
subsistisse. Jamais subsistiria o rim se o sangue já não subsistisse, jamais subsistiria o
sangue se o coração já não subsistisse, jamais subsistiria o coração se o cérebro já não
subsistisse, e assim por diante. As partes do ser vivo, portanto, não somente não subsistiam
antes de subsistir no todo, como também, já dentro do todo, não subsistem por si mesmas,
mas subsistem pelo todo. Mais precisamente, subsistem por causa de uma lógica que
pervade o todo. Esta lógica, que deriva da forma substancial, não está em alguma mente,
mas na própria matéria do ser vivo. Esta forma exige, como um princípio interno, a
atualização de cada uma destas partes, nenhuma das quais pode subsistir
independentemente por si mesma. Exigido assim pela própria essência do ser vivo,
constituída de forma substancial e matéria, o que subsiste por primeiro no ser vivo não é
cada uma de suas partes para que, constituídas as partes, possa formar-se o todo, mas o
próprio todo através no qual subsistem as partes. O ser vivo é, portanto, em seu todo, uma
só e única substância.
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Cumpre notar novamente que nada minimamente semelhante a isto ocorre no robô
ou no computador.
3. A forma substancial dos seres vivos como princípio formal de movimento imanente.
Mostramos no ítem anterior que um ser vivo é uma única substância, possuindo,
portanto, uma só forma substancial, enquanto que um robô ou um computador é um
agregado de substâncias, cada uma das quais possuindo sua própria forma substancial antes
mesmo da própria existência do robô.
Temos que mostrar agora que a forma substancial do ser vivo é também a forma que
lhe confere a vida, e que sua vida não deriva de outra segunda forma acrescentada àquela
que confere ao ser vivo a sua existência.
Uma vez dado este segundo passo, seguir-se-á necessariamente que a alma, ou o
princípio formal que anima o ser vivo, é a forma substancial ser vivo ou, nas palavras do
Filósofo, que podem ser interpretadas no mesmo sentido, "a forma substancial do corpo
orgânico que tem potência à vida".
Completamente diverso é o caso dos seres vivos. Sua substância depende de sua
vida e sua vida depende de sua substância.
Nos seres vivos a substância depende de suas vidas porque neles a vida não é
acrescentada à substância, mas, desde o primeiro instante em que uma causa eficiente
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externa os traz à existência, eles já passam a produzir movimentos imanentes através dos
quais sua substância continua a ser gerada. Com exceção da sua substância tal como existiu
em seu primeiro instante de vida, a substância dos seres vivos jamais seria gerada se eles já
não estivessem vivos.
Por outro lado, a vida dos seres vivos depende totalmente de sua substância. Toda a
estrutura atual de suas substâncias é exatamente a que é necessária para produzir os seus
movimentos imanentes e, de fato, estas substâncias passam a produzir tais movimentos
imanentes por si mesmas, imediatamente ao entrarem na existência, sem necessidade de
nada que se lhes acrescente.
4. Comentários gerais.
Platão, República, L. V
Conforme já mencionado, o exame mais atento do ato intelectivo tal como é descrito por
Sócrates conduz à conclusão de que no momento em que se dá tal ato a mente humana
contempla uma forma totalmente desrevestida das características próprias da materialidade.
Esta forma, se pudesse realizar-se fora da mente humana, constituiria um ente inteiramente
desprovisto de matéria. E no entanto, esta forma existe, e em toda a sua imaterialidade,
dentro da mente.
Mas, apesar do sentido apreender uma forma sem a matéria, tanto a matéria do
objeto como a do próprio sentido em que se grava a forma sensorial, esta forma apreendida
manifestamente depende ontologicamente da matéria. As formas apreendidas pelo sentido
são formas acidentais do objeto, como suas cores e sua extensão. O sentido é incapaz de
apreender uma forma substancial. As formas acidentais tem que inerir em um sujeito
subsistente e, ademais, no caso das que são apreendidas pelo sentido, são formas que
exigem a materialidade para subsistirem. Não existem cores e extensão sem matéria, apesar
de que o sentido pode apreender estas coisas sem a matéria.
O ato da inteligência humana, portanto, é uma realidade imaterial. E não apenas este
ato é imaterial, mas também deverá sê-lo a própria potência intelectiva enquanto tal, por
compartilhar, como toda potência, da mesma natureza do seu ato.
O exame da natureza do ato intelectivo humano que permite chegar a esta conclusão
é mais complexo do que o aqui apresentado e tratar deste assunto como seria devido está
além dos objetivos deste texto. Trata-se de um tema que, por sua dificuldade e importância,
exige uma abordagem à parte e pressupõe, para poder tornar-se claro, uma razoável
familiaridade com a introspecção filosófica, que só se adquire como produto de exercício.
Tal como o acabamos de discutir, as presentes explicações sobre este tema são apenas
exposições gerais para contextualizar o assunto dentro dos objetivos deste texto.
animado e nos entes materiais, constituídos de matéria e forma substancial, o que subsiste é
o composto e não a forma ou a matéria. A forma subsiste no composto, a matéria subsiste
no composto e o que subsiste por si e por primeiro é o próprio composto. Portanto parece
ser descabido perguntar se em um ente material a forma substancial é subsistente. Não
poderia sê-lo. É o composto de matéria e forma substancial que subsiste.
Mas Santo Tomás observa que, no caso do homem, quando este intelige, seu ato
intelectivo não se utiliza do corpo e, portanto, é imaterial. Por conseqüência a potência,
que comunga destas mesmas características, não poderia ter como sujeito, no qual inere
como acidente, o próprio composto de forma substancial e matéria. De fato, o próprio
acidente não existe senão pela existência de seu sujeito. Ademais, o acidente não age por si
só, mas é o sujeito em que o acidente inere que age através do acidente. Se o sujeito no qual
inere a potência intelectiva fosse o composto de matéria e forma substancial a inteligência
humana teria que utilizar-se da matéria em seu ato intelectivo. A inteligência humana,
portanto, não pode ter como sujeito o próprio composto de corpo e alma. Sendo, porém,
acidente, e tendo por isso que inerir em um sujeito, este somente poderá ser a própria alma,
sem o corpo.
A questão que se coloca é se isto não seria suficiente, no caso especial do homem,
para que se possa concluir que a própria alma humana possa subsistir por si mesma, sem
necessidade do corpo. Note-se que o que se pergunta não é se a alma humana sobrevive à
morte, algo que era admitido, no livro terceiro do De Anima, já pelo próprio Aristóteles,
como conseqüência da imaterialidade da inteligência. O que se pergunta é se a alma
humana já subsiste por si mesma, no homem vivo, enquanto composto de corpo e alma. O
argumento inicial parecia sugerir que a alma não deveria subsistir, porque nos entes
materiais o que subsiste é o composto, e não a matéria nem a forma, constituintes que
subsistem no composto. Mas por outro lado a inteligência é imaterial e subsiste como em
seu sujeito apenas na forma, não no composto. Não seria isto suficiente para que a alma
humana se tivesse independizado a tal ponto da matéria que, ainda que, como forma do
corpo, determine a matéria com a qual se compõe, já possa entretanto subsistir
independentemente desta matéria?
Com base no princípio de que as coisas operam segundo o modo pelo qual possuem
o ser, Santo Tomás conclui que, se a inteligência pode operar sem necessidade do corpo,
ela também deve ser capaz de subsistir sem o corpo. Como a inteligência é um acidente e
não pode subsistir senão em um sujeito, este sujeito, que é a alma, deve ser também capaz
de subsistir sem necessidade do corpo.
Admitida esta conclusão, porém, uma primeira objeção que se levanta é que, se realmente a
alma humana, devido à sua natureza intelectiva, é algo subsistente, então a alma já não
seria mais uma forma que compõe a substância, mas ela própria seria por si só uma
substância, o que além de ir contra tudo o que se havia exposto até o momento, criaria
muitas novas dificuldades para explicar a estrutura metafísica do homem.
Esta conclusão é conseqüência do proprio princípio que o operar segue o ser. Tal
como as coisas operam, deste modo elas possuem o ser. Neste sentido, é mais propriamente
correto dizer que é o homem que vê através dos olhos, embora não se possa negar que, de
algum modo, os olhos vêem. Do mesmo modo, é o homem que opera pelas mãos, embora
também não se possa negar que, de algum modo, as mãos operam. E, se é assim e o operar
pode entender-se de dois modos, um mais próprio e outro menos próprio, a subsistência
também poderá ser entendida de dois modos, um mais próprio e outro menos próprio.
A alma humana, não necessitando do corpo para sua atividade intelectiva, subsiste
por si mesma sem necessidade do corpo, não porém, ao modo de substância, mas do modo
menos próprio como a parte de um todo.
Já a alma dos animais brutos não subsiste de nenhum modo, porque todas as
operações dos brutos ocorrem com alguma imutação material, de onde que são exercidas
com o corpo material. A alma dos brutos não possui nenhuma operação própria por si
mesma, de onde que não pode subsistir por si mesma.
138
Portanto, se o ser pertence por si a algo subsistente, este ser será inseparável deste
algo e tal subsistente será incorruptível.
Nos seres brutos, o ser pertence ao composto, mas provém da forma que dá o ser.
Portanto, o ser não convém por si mesmo ao composto, mas na medida em que este
composto possui forma. Separando-se, pois, a forma do composto, o composto perde o ser e
se corrompe.
Um sinal disto, afirma Santo Tomás, é o próprio modo do desejo de ser que há nos
homens. Todas as coisas naturalmente desejam ser ao seu próprio modo. Nas coisas que
não conhecem há uma inclinação natural ao próprio ser, o qual é maior nas plantas que nos
demais entes inanimados. Nas coisas dotadas de conhecimento este desejo segue o
conhecimento. O sentido, que limita o conhecimento animal, não conhece o ser senão
segundo o aqui e o agora, mas no homem o intelecto apreende o ser absolutamente e
segundo todo o tempo. De onde que todo ente que possui intelecto deseja naturalmente ser
sempre. Ora, o desejo natural não pode ser em vão, o que reforça o argumento segundo o
qual toda substância intelectual é incorruptível.
Santo Tomás diferencia neste ponto o que se chama de potência passiva da potência
ativa, afirmando que em Deus há potência ativa. Ao longo deste texto na maior parte das
vezes chamamos de potência ao que aqui Santo Tomás conhece como potência passiva.
Chama-se potência passiva à potência para uma forma, enquanto que potência ativa é a
potência para uma ação. Como os entes agem em conseqüência de uma forma, à qual se
139
Em Deus não pode existir potência passiva, pois isto significaria que em Deus
haveria a possibilidade de uma atualização e, portanto, de movimento e composição, o que
contraria a simplicidade e a imutabilidade divinas.
Mas, sendo ato puro e portanto ilimitado, convém a Deus ser a causa primeira de
todas as coisas, de onde que, ao contrário do que ocorre com a potência passiva, deve haver
em Deus potência ativa em sumo grau. Nele porém a potência ativa não é algo que entre em
composição com o seu ser, mas é a sua própria essência na medida em que é a causa de
todas as coisas.
De fato, a razão de ser desta questão é que, já que as potências da alma são
acidentes, elas devem inerir em um sujeito. Cabe, portanto, perguntar qual é este sujeito e
se é o mesmo para todas as potências da alma.
Santo Tomás responde afirmando que o sujeito de uma potência operativa é aquilo
que pode operar. O sujeito de um ato é aquilo que atua. O sujeito de um ato e de sua
potência, portanto, devem ser o mesmo. Por conseguinte, o sujeito de cada potência é
aquilo que opera no ato desta potência.
Ora, algumas operações da alma são sem órgão corporal, como ocorre na operação
do intelecto e da vontade. Portanto as potências que são princípios destas operações devem
estar na alma como em seu sujeito. Seu sujeito, afirma Tomás, é a própria essência da alma.
140
Outras operações são da alma, mas mediante os órgãos corporais, como ocorre com
a visão e a audição. As potências que são princípios destas operações, tem como seu sujeito
o composto de alma e corpo, e não apenas a alma.
Pode-se dizer porém, que todas as potências, tanto as que têm a alma como as que
têm o composto como seu sujeito, são potências da alma, não como de seu sujeito, mas
como de seu princípio.
Santo Tomás, ademais, usa a expressão essência da alma para designar a alma
humana na medida em que pode subsistir sem necessidade do corpo. Neste sentido, os
animais possuem alma mas neles não de pode falar de uma essência da alma.
As dez categorias correspondem aos diversos modos de existência. No entanto, estes modos
de existência são proporcionais aos modos de predicação. É por este motivo que no Livro
das Categorias Aristóteles as enumera no contexto de um tratado que estuda os modos de
predicação. O Livro das Categorias, de fato, inicia-se com um capítulo que trata da
diferença entre predicação equívoca e unívoca e passa a um segundo capítulo onde, após
estabelecer a diferença entre expressões simples e compostas, o Filósofo estuda os modos
pelos quais as coisas significadas pelas expressões simples podem predicar-se de outro. No
quinto capítulo, finalmente, ao descrever a primeira categoria, esta é definida segundo o
modo pelo qual se predica:
É evidente, por estas e outras passagens do Livro das Categorias, que Aristóteles está
estudando os modos de predicação do ser, não porém enquanto tomado como verdade das
proposições, mas enquanto referindo-se a entes que existem na realidade exterior à mente
humana.
Apesar de deduzida a partir dos modos de predicação, não obstante isso, a teoria das
categorias não é uma teoria da predicação em seu sentido mais amplo, uma vez que não
inclui as predicações entre entes de razão, mas apenas a predicação entre coisas que
existem na realidade extra mental. É uma teoria, portanto, dos modos de existência, os
quais são proporcionais a modos de predicação.
Tanto na lista das dez categorias de Aristóteles como na lista dos cinco predicáveis
de Porfírio temos acidentes. A diferença entre os acidentes de Aristóteles e os acidentes de
Porfírio deriva precisamente de que para Aristóteles as dez categorias ou predicamentos
correspondem aos diversos modos de existência, enquanto que para Porfírio, os cinco
predicáveis correspondem às diversas espécies de conceitos universais. Na lista dos
predicáveis de Porfírio se o conceito universal representa a essência do sujeito, teremos os
predicáveis do gênero, da diferença específica e da espécie. Se o conceito universal
representa o que é acrescentado ao sujeito, este conceito corresponderá ou a algo que lhe é
atribuído necessariamente, e teremos com isto o predicável conhecido como "próprio", ou
corresponderá a algo que lhe é atribuído contingentemente, e teremos com isto o predicável
conhecido como "acidente". Apesar de Porfírio fazer uma distinção entre próprio e
acidente, tanto o próprio quanto o acidente da lista dos predicáveis representam algo
acrescentado ao sujeito e, portanto, do ponto de vista da lista das categorias de Aristóteles,
143
tanto o próprio como o acidente descritos por Porfírio seriam acidentes. Hoje, conforme
vimos anteriormente, ao tratarmos de um assunto onde seja necessário envolver
simultaneamente os dois pontos de vista, o de Aristóteles nas Categorias e o de Porfírio nos
Predicáveis, pode-se falar de um modo mais geral em acidentes próprios e acidentes
contingentes.
Nesta seção final utilizaremos como ponto de partida para este aprofundamento os
capítulos finais do primeiro livro da Summa Totius Logicae atribuído a Santo Tomás de
Aquino, mas provavelmente de sua autoria ou de alguém diretamente orientado por ele, e o
artigo 2 da Questão IIª do Terceiro Livro do Curso Filosófico Tomista de João de S.
Tomás.
dependência é chamada por Santo Tomás de emanação. Vamos discorrer, a seguir, sobre o
que é mais precisamente emanação.
Conforme vimos, enquanto os acidentes contingentes são produzidos por uma causa
eficiente externa ao sujeito, os acidentes próprios surgem por uma exigência dos principios
essenciais deste sujeito ao ser produzida a sua essência, essência esta que é produzida por
uma causa eficiente externa. Há portanto uma relação de necessidade entre a essência e
acidentes próprios. Ora, esta conexão tem natureza de causalidade.
Iª P. Q. 77 a. 6
L. I c. 6
A essência, segundo afirma Santo Tomás, é apenas causa material do acidente contingente,
mas para os acidentes próprios é, além de causa material, também causa eficiente, segundo
um modo especial que é denominado de emanação.
Iª Q. 77 a. 6 ad 3
A explicação do que é emanação, e como ela possui razão de causalidade eficiente, inicia-
se na Summa Totius Logicae (L. I C. 6), onde Tomás afirma que
Segundo este texto, se uma causa eficiente produz um efeito sobre um sujeito mediante
uma conexão necessária de um intermediário que também é movido pela causa eficiente,
este intermediário possui uma relação de causalidade eficiente para com o efeito, que será
em outras passagens chamada de emanação.
146
Deste raciocínio pode-se concluir que a causa eficiente é o ato externo necessário
para determinar a passagem de um sujeito da potência ao ato. Colocado nestes termos,
somente pode-se falar de causalidade eficiente no caso de um movimento no tempo.
O conceito de causa eficiente pode, porém, ser estendido para outros casos em que
um ato é recebido pela potência através de uma causa externa que seja anterior e da qual a
composição do sujeito em potência e ato dependa em seu ser, mesmo que não tenha
existido movimento, como é o caso do ato criador. No ato criador não existe passagem da
potência ao ato, mas uma causa externa que cria simultaneamente a composição de
potência e ato de um modo como se a potência tivesse passado ao ato ou tivesse recebido o
ato. O ato criador, neste sentido, possui natureza de causalidade eficiente.
somente para explicar o movimento em seu sentido estrito. Mas, no conceito ampliado que
se encontra nos escritos de Santo Tomás de Aquino, pelo qual a causalidade eficiente pode
incluir o ato criador, no qual não existe movimento, a dependência do acidente próprio da
essência da qual é acidente possui, suposta a causa eficiente que produziu a essência, seja
esta causa criadora ou não, razão de causalidade eficiente instrumental.
A dificuldade no caso da relação entre a substância e os próprios está em se esta pode ser
considerada de uma verdadeira causalidade eficiente:
João de Santo Tomás conhece as respostas que a Filosofia produziu a estas objeções, mas
afirma que tais respostas também possuem as suas dificuldades.
Dizer, por exemplo, que os princípios não são realmente causados por uma ação da
essência, mas pela causa eficiente que produziu a essência, equivale a reconhecer que a
essência realmente não é a causa produtiva dos próprios, sendo-o apenas a causa geradora
da essência.
Responder a esta objeção dizendo que a emanação é uma ação da natureza distinta
da ação da causa eficiente externa, porque a causa externa produz não apenas a substância
mas também os acidentes, através da substância, quando produz a substância dotada dos
princípios e acidentes de que necessita para agir, também levanta outra série de
dificuldades, pois nesse caso deveria-se perguntar onde exatamente termina a ação do
agente externo, se ela se estende até a produção da substância mas não além desta, ou se ela
se estende realmente até a produção das propriedades da substância.
A solução destas dificuldades, afirma João de Santo Tomás, está na primeira parte
da Summa Theologiae de Santo Tomás de Aquino, na questão 77 a.6 ad 3, quando Tomás
sustenta que
149
E também, continua João, no próprio corpo deste artigo, quando Tomás afirma que o
sujeito, de um certo modo, é ativo em relação ao acidente próprio.
Estes textos, sustenta João de Santo Tomás, devem ser explicados dizendo que a
emanação, em relação à essência, não é ação, mas uma conexão natural, enquanto que em
relação ao agente externo é uma ação que atinge de modo imediato a substância a qual, por
ser conexa a tais propriedades, mediante esta conexão o agente externo atinge também as
propriedades.
Esta é a explicação, afirma João, pela qual salvamos uma verdadeira e própria
causalidade eficiente da essência em relação aos próprios, que ao mesmo tempo não é
distinta da ação do agente externo, de modo que não é necessário colocar uma dupla ação
em relação aos acidentes próprios, uma precedente da essência e outra do agente externo,
ou negar que o agente externo alcance os acidentes próprios.
Pode-se dizer também, continua João, que a emanação é ação propriamente dita e
que possui dois princípios: o primeiro, em que se inicia, que é o agente externo, e o
segundo, que é o meio pelo qual este alcança o acidente próprio, devido a que este meio
conecta-se com o acidente próprio. Em relação ao primeiro princípio, a ação é dita
operação; em relação ao segundo, a ação é dita emanação ou resultação.
A substância não age imediatamente por uma ação propriamente dita, posto que a
emanação, na medida em que é ação, procede do agente externo por meio de sua virtude
ativa. A emanação, na medida em que procede da substância gerada, não é uma ação que
procede por primeiro e per se desta substância, mas através dela como por um meio que
conecta-se per se com o acidente próprio.
À objeção segundo a qual algo moveria a si mesmo pode-se responder que como a
ação procede por primeiro e per se do agente externo, já está dada a distinção entre o
movente e o movido.
150
L. I, c. 6
e isto ocorre, continua Tomás de Aquino, “porque as formas substanciais dos sujeitos são
causas eficientes de seus próprios”, ainda que apenas instrumentalmente através de um
agente externo.
Algo é dito ser causa final de um movimento na medida em que este algo é um fim
para um determinado movimento. Nos movimentos da natureza encontra-se a causalidade
final porque o agente externo que age como causa eficiente faz devido a uma determinada
forma que este deve possuir que lhe permite estar em ato. Esta forma faz com que a causa
eficiente, ao atuar, esteja determinada a seu modo de ação como a um determinado fim. Em
nenhum movimento da natureza isto é mais claramente visível do que na reprodução dos
seres vivos. Na reprodução dos seres vivos, e mais ainda na dos seres vivos superiores,
encontramos uma seqüência de causas eficientes complexas e precisas que se ordenam,
mais nitidamente do que em qualquer outro movimento, à produção de uma nova essência.
No entanto, em nenhum momento uma essência agiu sobre outra essência. Nenhum
acidente jamais poderia produzir semelhante efeito se a relação destes para com a sua
essência fosse apenas a da causalidade material sem a causalidade eficiente instrumental a
que chamamos de emanação.
Ainda que o efeito da ação produzida pelo acidente próprio possa dirigir-se per se à
geração de uma essência como a um fim, isto entretanto não elimina o fato que nesta
geração o acidente não pode alcançar diretamente a essência do ente gerado. Esta
152
As espécies na natureza diferem entre si como números inteiros porque os entes são
distribuídos em suas espécies segundo as suas essências e estas não podem distribuir-se de
um modo contínuo precisamente porque suas causas eficientes naturais, que são os
acidentes emanados pelas essências, não podem alcançar diretamente estas mesmas
essências. A possibilidade de produzir espécies que diferissem de modo contínuo uma da
outra pressuporia na ordem da natureza uma causa que pudesse alcançar diretamente a
matéria primeira, somente a qual possui uma potencialidade inteiramente indeterminada
para qualquer forma substancial. Somente a causa primeira de todos os entes poderia
alcançar diretamente a matéria primeira, pois devido à ilimitação de seu ato é o único ente
capaz de agir diretamente sobre as essências e produzir diretamente a atualização da
matéria pela forma substancial.
Todavia, supondo que a causa primeira agisse sobre a natureza sem a utilização de
causas segundas, mesmo assim não poderíamos encontrar essências em perfeita
continuidade entre si como a que existe entre os pontos de uma reta. A diferença entre a
natureza e a reta consiste em que na reta perfeitamente contínua os pontos indivisíveis não
existem em ato, mas apenas em potência, na medida em que cada segmento de reta é
divisível em potência até o infinito, sem que esta divisão possa vir a alcançar efetivamente
um ponto indivisível o qual, justamente por não possuir extensão, não poderia existir em
ato. Na natureza, ao contrário, cada substância, sendo indivídua em ato, não poderia
constituir uma continuidade atual com as demais substâncias. Se a causa primeira
interviesse diretamente sobre a natureza esta poderia produzir uma continuidade potencial
na medida em que poderia criar substâncias indivíduas tão próximas umas das outras
quanto nós podemos dividir uma reta em partes tão pequenas quanto quisermos.
Metafisica L. VIII, l. 3.