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PERMANÊNCIAS E TRANSFORMAÇÕES TERRITORIAIS: A MANDIOCULTURA


E O DESENVOLVIMENTO SOCIOECONÔMICO NO RECÔNCAVO BAIANO

Felix Souza Santos1

RESUMO

Discute essencialmente aspectos referentes a mandiocultura no Recôncavo baiano. Considera as


origens da mandiocultura e sua presença como item básico da alimentação e economia agrícola no
Recôncavo; a escolha da mandioca como objeto prioritário de estudos da Escola de Agronomia da
Universidade Federal da Bahia (UFBA) entre 1969 e 1975; a industrialização do beneficiamento da
mandioca para obtenção de amidos naturais e modificados através da Bahiamido – fecularia instalada
no município de Lage, Recôncavo baiano, pertencente às empresas Odebrecht; e, a organização dos
produtores de mandioca no entorno do parque industrial dessa fecularia através da Coopamido –
cooperativa dos produtores de amido da Bahiamido. Partiu-se de análise bibliográfica interdisciplinar
referente a mandiocultura, privilegia aspectos relacionados às relações sociais de produção no
conjunto da cadeia produtiva da mandioca, faz referências ao Estado como mediador do
desenvolvimento socioeconômico, especialmente, quando menciona subsídios governamentais à
importação do trigo e farinha de trigo; quando o Estado se faz presente através da UFBA em projetos
de pesquisa da mandiocultura no inicio da década de 1970; na Embrapa Mandioca e Fruticultura no
município de Cruz das Almas; e, quando mediador nos processos de instalação da fecularia Bahiamido
em 2010.

Palavras-chave: Mandioca. Alimentação. Economia de Subsistência. Desenvolvimento


Socioeconômico no Recôncavo Baiano.

1 A MANDIOCA E A SUBSISTÊNCIA NO RECÔNCAVO BAIANO

A mandioca e, consequentemente, a farinha de mandioca, foram fundamentais ao


desenvolvimento socioeconômico no Recôncavo baiano. A mandioca é planta originária da
Bacia Amazônica, presente na América do Sul, Central e Caribe, é uma raiz de feição dos
inhames e batatas (SOUZA, 1978, p. 172), com o advento da colonização mercantil expandiu-
se para a África e Ásia, atualmente os maiores produtores mundiais desse tubérculo. Desde o
século XVI, a mandioca compõe a base alimentar e da economia agrícola do Recôncavo
baiano, essa região definida como a hinterlândia da cidade do Salvador (MATTOSO, 1978, p.
29), seu ciclo produtivo, do plantio à colheita, leva de 10 a 18 meses, mas esse tempo pode ser
estendido e a raiz ser conservada na terra até o momento de ser processada e tornar alimento.

1
Doutorando em Planejamento Territorial e Desenvolvimento Social – UCSAL - (felixsantoss@yahoo.com.br).
2

A mandioca e o aipim pertencem a uma única espécie vegetal – Manihot esculenta Crantz. A
polinização natural feita por insetos e o intercâmbio de mudas e sementes praticados desde os
cultivadores indígenas até os agricultores atuais, contribuíram para a difusão e
aperfeiçoamento genético das variedades primitivas. Isto resulta em que uma mesma
variedade receba diferentes denominações regionais e exista, atualmente, mais de 4.000
denominações para diferentes cultivares desse tubérculo no Nordeste.
Estudos arqueológicos indicaram a presença do cultivo da mandioca na bacia
Amazônica há cerca de 3.600 a, C. “Nos refugos da época, foram encontrados fragmentos de
bacias de cerâmica denominados “budares” do tipo usado para cozinhar a mandioca amarga”
(EMBRAPA, 2005, p. 21). A Mandioca foi mencionada na Carta escrita por Pero Vaz de
Caminha em abril de 1500, como alimento básico da população indígena. Gabriel Soares de
Souza indicou a Manihot como base da alimentação humana e animal no Brasil: “As raízes da
Mandioca comem-nas as vacas, éguas, ovelhas, cabras, porcos e a caça do mato, e todos
engordam com elas comendo-as cruas” (SOUZA, 1978, p. 174).
No âmbito da economia agrícola do Recôncavo baiano a mandiocultura esteve sempre
vinculada à economia de subsistência, a tradição historiográfica (SAMPAIO, 1925, p. 20),
defende que no processo da formação histórica da agricultura brasileira, o elemento
fundamental foi a grande propriedade monocultora trabalhada por escravos, este tipo de
organização agrária que correspondia à exploração agrícola em larga escala, costumava situar-
se em oposição à pequena exploração do tipo camponês, ou de subsistência (PRADO
JÚNIOR, 1994, p. 113), essas duas estruturas produtivas se constituíram esteios centrais da
economia agrícola e do desenvolvimento social do Recôncavo baiano. Esse padrão de
desenvolvimento, economia de subsistência versus economia de escala, quando aplicado à
mandiocultura, permaneceu com poucas alterações até períodos bem recentes para o território
em apreço. A importância da mandioca se observa, por exemplo, em Carta Régia de 12 de
julho de 1799, constava que para cada quatro casais de novos povoadores vindos da Europa
para essas áreas ao sul do Recôncavo, precisavam trazer dentre outros utensílios, uma roda de
ralar Mandioca e pequenos alguidares de cobre para cozer a Farinha (FLEXOR, 2004, p. 26).
A região conhecida como Cairu, Boipeba, Rio Real, Sergipe de El Rey e, especialmente, áreas
meridionais do Recôncavo como Jaguaripe e Maragogipe, especializaram-se no cultivo da
Mandioca (SCHWARTZ, 1995, p. 353), características que se manteve até recentemente.
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A mandioca foi o principal alimento da Bahia colonial, (STADEN, 2006, p.143),


indígenas, negros, brancos, ricos e pobres, dependiam da farinha de mandioca na dieta
cotidiana. A roça de mandioca serviu como um local onde escravos recém-chegados
adquiriam conhecimentos sobre as regras e exigências da grande lavoura (SCHWARTZ,
1995, p. 64), foi componente básico da agricultura nas áreas ao sul do Recôncavo (FLEXOR,
2004, p. 2). A farinha de mandioca foi, por volta de 1625, o principal alimento da tropa
sediada na cidade do Salvador, onde cada um dos seus integrantes consumia um arrátel2 dessa
farinha a cada dia, note-se que o contingente da tropa, em números, variava em torno de 3.000
homens (AZEVEDEO, 1969, p. 309). A dependência social à farinha de mandioca se refletia
no costume de alguns senhores permitirem aos escravos plantarem para si pequenas roças de
mandioca ou aipim, isto servia para que não padecessem fome nos períodos de escassez de
farinha. Gabriel Soares de Souza ao relatar aspectos da sociedade colonial e o cotidiano
alimentar do brasileiro, destacou a importância da farinha de mandioca ou “farinha de
guerra”, se dizia que “o gentio do Brasil costumava chamar-lhe assim pela sua língua, porque
quando faziam a seus contrários algumas jornadas fora de sua casa, se provinham dessa
farinha”, e comentou com relação ao aipim também denominado mandioca mansa, mandioca
doce, que eram raízes de feição da mesma mandioca, mas as que mais se estimavam, por
serem mais saborosas, eram uns que chamam jerimuns (SOUZA, 1978, p. 178-179). A
mandioca amarga ou brava possui alta concentração de ácido cianídrico, por isso é um vegetal
extremamente venenoso se consumido in natura, necessita ser prensado e posteriormente
cozido ou torrado para evaporar esse ácido, consome-se geralmente na forma de farinhas. A
mandioca doce, macaxeira ou aipim possui baixo teor de ácido cianídrico, são comidas
cozidas, como farinhas, mingaus, massa para bolos, dentre muitos usos culinários.
A relevância da mandioca no desenvolvimento socioeconômico do Recôncavo baiano,
desde a conquista portuguesa desse território, século XVI, até tempos bem recentes, fez da
farinha de mandioca uma mercadoria de duplo caráter, destacadamente, por seu valor de uso,
e valor de troca. Como valor de uso, foi a base da alimentação; como valor de troca, foi e
ainda é mercadoria presente nas feiras e mercados de toda essa região e, “numa economia de
troca, o esforço para obter renda é, inevitavelmente, a força motriz última de toda ação
econômica” (WEBER, 1999, p. 137). No inicio da colonização, “a população já acostumada à
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Arrátel, antiga unidade de peso, equivalia a 459 g, ou 16 onças (FERREIRA, 2010, p. 65).
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farinha de mandioca, não fazia muita questão de comer o pão do Reino” (AZEVEDO, 1969,
p. 358), por isso a mandioca, além do alimento básico, foi também, fator de equilíbrio político
e social na Bahia, porque sua escassez ou carestia nas feiras e mercados desencadeava, por
exemplo, regulamentos, motins e revoltas populares (RIBEIRO, 1982, p. 56) ao longo do
desenvolvimento histórico desse Recôncavo.
O dia 22 de abril é também o Dia Nacional da Mandioca, o Pão do Brasil, assim a
Embrapa nomeou a Manihot em seu estudo de 2005. Câmara Cascudo, no estudo da história
da alimentação brasileira, a denominou de Rainha do Brasil, comentou que no inicio da
colonização os cronistas afirmavam ser aquela raiz o alimento indispensável aos nativos e
europeus recém-vindos, era o “Pão da terra em sua legitimidade funcional” (CASCUDO,
2008, p. 90). Alimento regular enquanto duraram os vínculos coloniais entre o Brasil e
Portugal, tem-se que determinação real de 8 de maio de 1801, exigia que todos os navios
portugueses, ao regressar do Brasil, conduzissem pelo menos 200 alqueires de farinha 3,
seriam premiados os comandantes que ultrapassassem tal quantidade. Essa farinha servia ao
sustento da tripulação e atendia ao abastecimento de Portugal continental (AGUIAR, 1984,
p.79). E a partir do Brasil, a mandioca difundiu-se por quase toda a África, onde farinha,
beiju, aipim cozido ou frito são produzidos e consumidos até hoje (SILVA, 1996, p. 18).
A farinha de mandioca foi mercadoria no comércio com a África, supriu Portugal nos
momentos de crise alimentar, serviu ao comercio inter-regional transportada pela Estrada de
Ferro Bahia e Minas, como se pode observar em relatório apresentado em 1900, pelo
engenheiro José Joaquim Rodrigues Saldanha, Secretário da Agricultura, Viação, Indústria e
Obras Públicas, ao Governador da Bahia, Severino dos Santos Vieira, nesse relatório consta
dentre os gêneros alimentícios transportados, a farinha de mandioca (BOLETIM, 1900, p.
127). João Silveira, engenheiro agrônomo que estudou o cultivo da Mandioca, e foi destacado
professor da Escola Agrícola da Bahia no período do governador José Marcelino de Souza
(1904-1908), em relatório também apresentado ao Governador da Bahia, Severino dos Santos
Vieira em 1901, ao descrever visita de estudos a Fazendo Salto Grande, em Campinas, São
Paulo, João Silveira comentou que o fabrico de farinha de mandioca naquela propriedade
atingia a máxima perfeição, com produção diária de 50 sacas de 80 litros realizada em 10
horas de trabalho (BOLETIM, 1901, p. 85). Esses Boletins, juntamente com jornais que
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Um alqueire equivalia a 36,3 quilogramas (SCHWARTZ, 1995, p. 16).
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circularam na Cidade do Salvador entre a segunda metade do século XIX, à primeira metade
do século XX, faziam – e ainda hoje o faz, a exemplo do jornal A Tarde - o acompanhamento
mensal da variação do preço da farinha de mandioca no comércio de Salvador. Ao analisar as
informações econômicas contidas nos volumes 20 e 21 da Enciclopédia dos Municípios
Brasileiros (EMB) publicada em 1958, percebe-se a predominância da mandioca como
fundamental à economia de 95% dos municípios baianos.
A mandioca está, historicamente, como o alimento primordial do baiano,
especialmente o trabalhador rural, e se constituiu em fator de equilíbrio da dinâmica
socioeconômica da Bahia tanto no passado como no presente. Do ponto de vista da pesquisa
historiográfica a importância da mandioca pode ser dimensionada a partir de informações
obtidas em variadas fontes a exemplo de correspondências e relatórios governamentais,
boletins, periódicos, teses de conclusão de curso na Escola Agrícola da Bahia, inventários
post-mortem, etc., produzidos na Bahia a partir do período colonial, imperial, republicano e,
chega-se atualmente ao acervo bibliográfico da Embrapa: Mandioca e Fruticultura - situada na
cidade e município de Cruz das Almas no Recôncavo baiano - que desde 1969 desenvolve
pesquisas específicas referentes à mandiocultura. A essas fontes informativas baianas somam-
se dados da Pesquisa de Orçamento Familiar do IBGE que indicou, por exemplo, para o ano
de 2002, o consumo médio per capta anual de farinha de mandioca em Salvador em 14,387
kg. Enquanto se observava na década de 1970, que esse alimento tradicional representava no
Nordeste do Brasil um consumo per capta de 73,8 kg\ano nas áreas rurais e, 32,0 kg\ano nas
áreas urbanas (GRAMACHO; ALMEIDA, 1994, p. 7). Observa-se um declínio do consumo
per capta de farinha ocorrido entres os anos 1970 e 2000, se atribuem a urbanização da
sociedade, que impôs a adoção de novos hábitos alimentares, o subsídio governamental ao
trigo facilitando maior acesso dos trabalhadores a produtos panificáveis, investimentos na
difusão dos supermercados como centros de compras urbanos em detrimento das feiras-livres,
difusão de geladeiras como espaços de armazenamento de alimentos industrializados, o
costume de se pensar que derivados do trigo seriam mais saudáveis que os derivados da
mandioca, etc. Entretanto, ao declínio do consumo da farinha ampliou-se o consumo de outros
derivados da mandioca a exemplo do uso alimentício e industrial do amido ou fécula.
No contexto das permanências e transformações do consumo da farinha notou-se
desde a fundação da Cidade do Salvador em 1549, que a mandioca se mantém como relevante
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na dieta alimentar dos baianos. Nota-se (EMB, 1958), que no sul da Bahia no apogeu da
lavoura cacaueira o cultivo da mandioca para a produção de farinha esteve presente na
maioria dos estabelecimentos agrícolas. Em São Felipe, entre o final do século XIX e inicio
do século XX, inventários post-mortem indicaram o cultivo da mandioca associada ao café e
cana-de-açúcar como fundamentais à sobrevivência local (SANTOS, 2013, p. 30). De acordo
com dados disponíveis em página web da Embrapa, estima-se que a produção mundial de
mandioca esteja atualmente em torno de 170 milhões de toneladas\ano (EMBRAPA 2015).
Até o final da década de 1970 o Brasil ocupava o lugar de maior produtor de mandioca no
mundo. Atualmente, a Nigéria e República Democrática do Congo fazem da África o maior
produtor mundial, seguido pela Ásia, representada por Tailândia e Indonésia, o Brasil
atualmente é o terceiro maior produtor de mandioca (EMBRAPA, 2015).
Os Estados Unidos da América (EUA) e a Europa Ocidental (Mercado Comum
Europeu\União Europeia) foram, durante o século XX e ainda hoje, os maiores importadores
de derivados da mandioca. Não obstante a demanda externa, a mandiocultura brasileira esteve
sempre voltada para o mercado interno, exceto o contexto do escravismo colonial, momentos
específicos de crise alimentar em Portugal, primeira metade do século XX, para atender
demandas específicas da I e II Guerras (1914-1918) e (1939-1945), respectivamente, mas não
houve no Brasil durante o século XX, ações políticas continuadas de incentivo à produção de
mandioca para atender ao mercado externo. O Brasil figurou até os anos 1970 como o maior
produtor mundial de raízes de mandioca, mas produzia basicamente para atender a demanda
interna de farinha de mesa, a perda do protagonismo brasileiro na produção mundial se deveu
mais ao crescimento da mandiocultura fora do País, que a redução substancial do seu cultivo
na agricultura nacional. Comparativamente com o aumento do cultivo africano e asiático, ao
não crescimento da mandiocultura no Brasil após 1970, se pode atribuir o grande volume de
subsídios concedidos pelo Governo ao trigo, “que no período de 1967 a 1989, totalizaram
cerca de US$ 12.662 bilhões” (TAKAHASHI, 2002, p. 51). Os produtos derivados do trigo
contavam com incentivos governamentais que os tornavam disponíveis no mercado a preços
atrativos comparativamente com outros alimentos. Esses incentivos fiscais não eram
extensivos à cadeia produtiva da mandioca. Esta influência do subsídio governamental ao
trigo inviabilizou, por exemplo, a prática de se misturar fécula ou goma à farinha panificável
comumente utilizada na proporção de 2%, uma prática que remontava a década de 1940. O
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resultado imediato do subsídio foi, na década de 1970, o fechamento de moinhos de raspas de


mandioca localizados principalmente no Estado de São Paulo (TAKAHASHI, 2002, p. 25).
Após 1970, subsídios oferecidos também à produção do milho e da soja baratearam os custos
de produção e tornaram possível seu uso na ração animal, quando além de milho e soja se
poderia adicionar também derivados da mandioca como se pratica na Europa e assim oferecer
dinamismo econômico a cadeia produtiva da Manihot nacional.
Do ponto de vista dos estudos acadêmicos, comparativamente à cana-de-açúcar, o café
e o cacau e, do ponto de vista do planejamento econômico por parte de Estado, a cadeia
produtiva da mandioca foi, historicamente, tratada de forma secundária nesse processo de
permanências e transformações no desenvolvimento socioeconômico e territorial do
Recôncavo (ALMEIDA, 1977, p. 28). As políticas governamentais, especialmente no período
1964-1985, privilegiavam ao desenvolvimento urbano e industrial, entendia-se o
desenvolvimento econômico e industrial como sinônimos; o trabalhador rural e a pequena
agricultura eram expressão do atraso. Essa visão política do mundo rural, especialmente
nordestino, contribuiu para reforçar ideias de que o pequeno mandiocultor se relacionava a
esse atraso, renegando-se seu conhecimento, seus saberes centenários adquiridos nas labutas
rurais. No âmbito do consumo alimentar, comparativamente com alimentos industrializados,
associava-se o consumo da farinha de mandioca como alimento de pobre; aos derivados do
trigo associava-se o alimento do rico. Acresça-se ao declínio do consumo de derivados de
mandioca no Brasil o predomínio de conglomerados internacionais nos setores de produção
de alimentos derivados de trigo, milho e soja, constantes apelos midiáticos ao consumo de
derivados dessas culturas; e situe-se noutro extremo o trabalhador rural mandiocultor sem
garantia de preço mínimo para sua produção, sem financiamentos bancários, assistência
técnica e extensão rural continuadas. Adicione-se a não continuidade de políticas de crédito
rural ao pequeno agricultor mandioqueiro; apenas recentemente, depois de superados entraves
políticos e burocráticos, o agricultor proprietário da terra passou a acessar algum crédito via
Pronaf ou Bolsa Família. Comparativamente com os setores agroindustriais ainda são poucos
os incentivos governamentais à permanência do trabalhador rural no campo, especialmente na
Bahia, “que concentra a maior população rural do Brasil, em torno de 665 mil famílias, o
maior número de agricultores familiares do país” (LESSA, 2014, p. 2). Esses pequenos
proprietários de terras ainda mantêm a cultura da mandioca como fundamental às suas
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atividades econômicas, sabe-se que na perspectiva da longa duração os hábitos culturais


alimentares se alteram muito lentamente e, apesar das vicissitudes do tempo e dos mercados o
mandiocultor continuará a produzir seguindo a tradição mandioqueira do Recôncavo: planta
em um inverno, colhe no inverno seguinte.

2 PROJETO PRIORITÁRIO I - MANDIOCA

Na Bahia, ao contrário do que se verificou com a cana-de-açúcar, a mandioca tardou


muito para despertar interesses nos estudos acadêmicos relacionados à planta e seus produtos.
Na segunda metade do século XIX, o Imperial Instituto Baiano de Agricultura, criado em
1859, e a partir de 1877, denominado Imperial Escola Agrícola da Bahia, dedicou ao estudo
da mandioca algumas dissertações - teses -, textos manuscritos elaborados como requisito
necessário a obtenção do título de engenheiro agrônomo daquela escola. Adentrou-se o século
XX e entre 1900 e 1969, observou-se divulgação de poucos estudos sobre mandioca -
trabalhos esporádicos - como indicado em Conceição (1978). Após 1969, a mandioca passou
a ser objeto prioritário de pesquisas e mantém-se em Cruz das Almas, no Recôncavo baiano, o
Centro Nacional de Pesquisas em Mandioca e Fruticultura da Empresa Brasileira de Pesquisa
Agropecuária (CNPMF\EMBRAPA), esse centro é atualmente referência no estudo da
mandioca na Bahia, se localiza em área central do Recôncavo onde o clima oferece um ciclo
hidrológico ideal ao cultivo da mandioca, o plantio geralmente começa nas primeiras chuvas
de março e pode se estender até julho, período em que o solo está úmido e há chuvas
constantes para atender às necessidades hídricas de desenvolvimento da planta, a fase
seguinte, após agosto, inicia-se o período da estação seca quando a planta reduz a produção de
ramas, amplia o acúmulo de nutrientes nas raízes e chega a sua fase adulta (RAMOS; LINS,
1975, p. 139). O mandiocultor costuma plantar a mandioca quando chove, e colhe suas raízes
a partir de dez meses após o plantio, a planta atinge a idade adulta entre 12 e 18 meses de vida
e pode permanecer no solo por até seis anos sem perda considerável de rendimento, isto
permite ao agricultor fazer colheitas semanais para a fabricação de farinha de uso doméstico
ou comercialização no mercado local (CONCEIÇÃO, 1978, p. 7).
Em 1969, no contexto da reforma universitária e conjuntura política e administrativa
vigentes no país naquele momento, o Governo Federal patrocinou na Bahia o Projeto
Prioritário I - mandioca, implementado a partir da Escola de Agronomia da Universidade
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Federal da Bahia (UFBA). A escolha da mandioca como objeto de uma programação de


estudos não foi acidental, mas decorrente de consideração quanto à sua “exequibilidade,
importância econômica e, sobretudo pelo tradicionalismo que sua cultura alcançou no Brasil”
(UFBA, 1972, p. 1). No âmbito desse Projeto o pensamento dos pesquisadores se voltou para
a criação de novas variedades que possibilitassem o desenvolvimento industrial da mandioca
na Bahia e extensivamente ao Nordeste brasileiro (UFBA, 1973, p. 10). Uma das bases do
Projeto Prioritário I foi estabelecer o Banco de Germoplasma da mandioca, reunindo em
coleção parte do material genético de cultivares existentes no Município de Cruz das Almas e
circunvizinhos constituindo, assim, o maior programa fitotécnico da mandioca já
desenvolvido na Bahia, posto que, a literatura registrava para esse Estado, poucos trabalhos
acadêmicos memoráveis destacadamente, as pesquisas de L. Zehntner, agrônomo, professor e
pesquisador alemão trazido de Java, Indonésia, por Miguel Calmon Du Pin e Almeida para
trabalhar com o desenvolvimento de culturas tropicais na Escola Agrícola da Bahia durante o
governo de José Marcelino de Souza (1904-1908), e Carlos Valeriano Conceição de
Cerqueira, que realizou estudo botânico da mandioca4. Não obstante a relevância histórica e
científica desses pesquisadores e, dadas às condições técnicas em que os estudos foram
produzidos, estes consistiam principalmente na descrição de caracteres botânicos e no
desenvolvimento de determinações analíticas em mandiocas brasileiras (UFBA, 1973, p. 10).
O Projeto Prioritário I – mandioca, começou a ser discutido em outubro de 1968 entre
Universidade Federal da Bahia (UFBA) e a Brascan Nordeste - Sociedade Civil de
Desenvolvimento e Pesquisas sediada em Recife, Pernambuco, propunha-se na época
aperfeiçoar a mandiocultura nacional e inserir a mandioca e seus derivados no Mercado
Comum Europeu, àquela época e ainda hoje, o maior mercado consumidor de derivados de
mandioca. Em 16 de abril de 1969 sob coordenação da Escola de Agronomia da UFBA e
direção do professor e pesquisador Antônio José da Conceição instalou-se oficialmente o
primeiro projeto prioritário de pesquisa da referida Escola, com disposição de um campo
experimental de sete hectares exclusivos para pesquisas com mandioca no município de Cruz
das Almas, Bahia, em área do campus da Escola de Agronomia ((RAMOS; LINS, 1975, p.
18). Como resultado desse convênio formou-se uma equipe inicial com 9 professores da
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ZEHNTNER L. Estudo sobre algumas variedades de mandiocas brasileiras. Sociedade Nacional de
Agricultura. Imprensa Inglesa. 1919 e; CERQUEIRA, Carlos Valeriano Conceição de. Estudo botânico da
mandioca. Instituto Biológico da Bahia, 1954.
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UFBA para atuar em regime de tempo integral e dedicação exclusiva apoiados por técnicos
contratados pela Brascan para, a partir dos campos de experimentação, laboratórios e setor
zootécnico da Escola de Agronomia, desenvolver estudos em diferentes áreas de investigação
da planta num sistema operacional de âmbito interdepartamental, multidisciplinar e
multinstitucional que, a partir de Cruz das Almas, se estendesse a outros campos de
experimentação e outras instituições interessadas no desenvolvimento da mandiocultura.
Posteriormente, o Banco do Nordeste, Embrapa, SUDENE e Fundação Rockfeller aderiram
ao Projeto Prioritário I – mandioca -, considerado até aquele momento, o maior projeto de
pesquisa direcionado à mandioca já feito no Brasil (CONCEIÇÃO, 1974, p. 10).
Ainda sob patrocínio do Governo Federal, em 28 de julho de 1972 o Projeto Prioritário
I – mandioca -, teve suas atividades ampliadas e transformou-se no Projeto Mandioca,
previsto para vigorar até o dia 30 de junho de 1975 ((RAMOS; LINS, 1975, p. 18). No
desenvolvimento do Projeto Mandioca verificou-se que o processo de comercialização da
mandioca no Nordeste apresentava complexidades regionais influenciadas pala baixa
produtividade, cultivares não totalmente adaptados às alterações climáticas, práticas de
agricultura de subsistência que tornava a sua cotação muito instável, preços mínimos nas
épocas mais propícias à colheita, quando a oferta do produto é maior do que a procura, e
preços máximos nos períodos de verão, porque a falta de umidade no solo redundava em
maiores dificuldades para a colheita e, tradicionalmente, o agricultor plantava em um inverno
e colhia no inverno seguinte. Essa instabilidade na produção dificultava o desenvolvimento de
uma indústria voltada ao beneficiamento da mandioca e, na superação desses entraves o
Projeto Mandioca deveria centrar as pesquisas no melhoramento genético da planta visando
ao ganho de produtividade e busca de cultivares capazes produzir bem de acordo com cada
variedade de solo e climas característicos do Nordeste brasileiro. Superados esses entraves
seria possível o processamento em escala industrial da mandioca (CONCEIÇÃO, 1974, p.
33), inclusive para a produção de álcool a ser utilizado como combustível automotivo.
A alta verificada nos preços dos derivados do petróleo ocorrida no início da década de
1970 contribuiu para que o Governo brasileiro determinasse em novembro de 1975, através
do Decreto-Lei nº 76.593, a instituição do Programam Nacional do Álcool, com a finalidade
de atender às necessidades do mercado de combustíveis automotivos. O referido Decreto-Lei
indicava que o Governo Federal apoiaria a produção de álcool de cana-de-açúcar, de
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mandioca ou de qualquer outra matéria-prima. Seriam criados incentivos governamentais à


expansão da oferta de matérias-primas, modernização das destilarias existentes e instalação de
novas unidades produtoras, anexas a usinas ou autônomas a estas, além do apoio
governamental à construção de unidades armazenadoras desse álcool combustível. Nesse
contexto, o Governo da Bahia em parceria com a Petrobrás, iniciou estudos técnicos com o
objetivo de desenvolver o cultivo da mandioca na região de Itaetê, sul da Bahia, visando
instalação de usina de álcool para uso automotivo. Mas após três anos de estudos o projeto
não se concretizou, observou-se posteriormente, que a produção de álcool derivado da cana-
de-açúcar era economicamente mais viável que produzi-lo a partir da mandioca.
O Projeto Mandioca findou-se em 1975, mas as pesquisas continuaram no âmbito da
Embrapa Mandioca e Fruticultura e da Escola de Agronomia da UFBA, esta, incorporada à
Universidade Federal do Recôncavo da Bahia (UFRB) em meados da década de 1990. O
Projeto Mandioca destacou dificuldades em se estabelecer naquele momento a produção de
mandioca para demanda industrial. Notou por exemplo, que a produção de mandioca ocorria
em pequena escala com vistas a atender demandas imediatas dos cultivadores, as casas de
farinha que produziam em maior escala alegavam o custo da mão de obra e ausência de
mecanização como fator limitante à produção (RAMOS; LINS, 1975, p. 173). Observou-se o
baixo uso de técnicas agronômicas nos processos produtivos, exceto o uso de esterco animal,
nenhum fertilizante industrial, qualquer que fosse o tipo era usado na cultura, o controle
fitossanitário e mecanização eram práticas quase desconhecidas pelos produtores nordestinos
(CONCEIÇÃO, 1975, p. 3). Constatavam também que a obtenção de uma maior gama de
produtos à base da mandioca apresentava-se, naquele momento, como perspectiva de longo
prazo, a produção de amido era muito pequena e não existia naquele momento nenhuma
fábrica de grande porte ativamente engajada na produção de fécula. Nesse contexto, dada as
condições em que se praticavam a agricultura, tornava-se necessário ampliar as pesquisas para
se possibilitar o desenvolvimento da mandiocultura no Nordeste.
Concluía-se ao final do Projeto Mandioca, em 1975, que somente seria possível
industrializar economicamente a mandioca diversificando a oferta de produtos tradicionais
para além da farinha de mesa e da tapioca característicos da produção nordestina. Destacava
que a produção agroindustrial da mandioca demandava a necessidade de integração entre
pequenos produtores e a produção industrial, indicava a necessidade da indústria dispor total
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ou parcialmente da própria matéria-prima (CONCEIÇÃO, 1975, p. 3). Destaque-se, porém,


que o Projeto Mandioca contribuiu para a formação de um corpo técnico e acadêmico que
permitem situar a Bahia, na vanguarda do conhecimento e das pesquisas sobre mandioca e
esse conhecimento está atualmente à disposição da sociedade e do capital investidor.
Ressalte-se também que, não obstante os avanços técnicos obtidos, os resultados não
impactaram diretamente nas forças produtivas ou nas relações sociais de produção cotidianas
dos produtores dessa região mandioqueira circunvizinha a Cruz das Almas. Característico
daquela conjuntura política nacional (1969-1975), o Projeto Mandioca centrava-se
primeiramente no aspecto técnico, secundariamente, no cotidiano social, bastante vasto e
complexo, dos mandioqueiros locais. Estes mantiveram o ritmo da produção, circulação e
consumo com o aporte de experiências centenárias: cultivo em pequenas roças, adubação
orgânica, uso manual da enxada como instrumento de trabalho, mão de obra familiar,
produção artesanal da farinha, venda direta da produção nas feiras em medidas de litro, quilo
ou sacas. A despeito da falta de suporte técnico governamental, como no passado, quando
chove plantam, quando precisam, colhem.

3 A BAHIAMIDO E A INDUSTRIALIZAÇÃO DA MANDIOCA NO RECÔNCAVO


BAIANO

Decorridos quarenta anos do Projeto Mandioca, a Odebrecht (conglomerado industrial


surgido na Bahia na década de 1940, atua em vários setores econômicos dentro e fora do
Brasil), construiu no município de Lage, Recôncavo baiano, uma estrutura agroindustrial para
produzir amido (também conhecido como fécula ou goma) de mandioca em escala industrial e
fornecê-lo, natural ou modificado, como matéria-prima de uma série de produtos abrangidos
por petroquímicos, colas industriais, bebidas, farmacêuticos, cosméticos e alimentação
humana. Para atender a demanda de matéria-prima a Bahiamido fomentou a criação de uma
cooperativa composta por pequenos produtores de mandioca do município de Lage, estes
recebem sementes e assistência técnica e, em contrapartida, vinculam sua produção à
Bahiamido Serviços Agroindustriais S.A. A Bahiamido é uma companhia agroindustrial
fundada em 11 de março de 2010 pelo empresário Norberto Odebrecht e pela investidora
Kieppe Participações e Administração Ltda., também vinculada às empresas Odebrecht. A
fecularia possui estrutura capaz de processar 300 t\dia de mandioca, processava no começo de
13

2015 em torno de 100 a 150 t\dia em face da carência de matéria-prima local. A Bahiamido
entende o amido da mandioca como estratégico ao mercado, há demanda para esse insumo
vegetal natural capaz de atender a um amplo setor produtivo (INFOAMIDO, 2014, p.10).
Atualmente a Bahiamido é a principal produtora de amido extraído da mandioca e,
principal referência industrial na cadeia produtiva da mandioca no Recôncavo baiano5.
A instalação da fecularia e a constituição da cooperativa resultam em novas formas de
uso territorial e do trabalho (SANTOS; SILVEIRA, 2008, p. 135), produz o assalariamento do
trabalhador rural que migrou para a atividade fabril, aproxima as relações trabalho e capital,
indica a penetração de nova ordem espacial em território (SANTOS; SILVEIRA, 2008, p.
289), historicamente caracterizado pela mandiocultura de subsistência, denota alianças
históricas no âmbito das relações do capital com o Estado, este se apresenta como financiador
do empreendimento e faz a regulação do capital no território ao fornecer licenças ambientais e
outros condicionantes à exploração da força de trabalho e dos recursos naturais no território
abrangido pelo empreendimento, e oferece assistência técnica através da Embrapa Mandioca e
Fruticultura que mantém cultivos experimentais em terras da Bahiamido, evidências da
proximidade de relações entre Estado e capital.
É bem possível que o Estado tenha mudado suas funções com o crescimento
e amadurecimento do capitalismo. No entanto, a noção de que o capitalismo
alguma vez funcionou sem o envolvimento estreito e firme do Estado é um
mito que merece ser corrigido (HARVEY, 2006, p. 92).

Situado no Recôncavo baiano, o município de Laje, dista 226 km da cidade do


Salvador, é cortado pela BR 101, às margens da qual se localiza o complexo agroindustrial da
Bahiamido, onde a mandioca é cultivada dentro de padrões agroindustriais: uso intensivo de
maquinário agrícola, sementes selecionadas, acompanhamento técnico – cada lote cultivado
dispõe de um técnico agrícola que faz o monitoramento do desenvolvimento da planta do
plantio à colheita - rigidez às normas de higiene e segurança, rastreabilidade dos produtos por
meio de plataforma de dados que oferece indicadores produtivos, ambientais e sociais à
produção e garante qualidade técnica ao amido produzido (INFOAMIDO, 2014, p. 10). A

5
A presença da Odebrecht na organização da atividade mandioqueira nessa região iniciou-se em 1993 com a
Cooperativa de Produtores Rurais de Presidente Tancredo Neves (Cooptan) localizada na Fazenda Novo
Horizonte, BR 101 - Km 315, município de Presidente Tancredo Neves. A Cooptan direciona suas ações ao
apoio técnico e educacional de produtores familiares dedicados especialmente aos cultivos de mandioca e
banana, além de abacaxi, graviola, mamão, criação de suínos em cativeiro, itens característicos da economia
agrícola dessa região limítrofe entre o Recôncavo e o Baixo Sul baiano.
14

planta industrial e as áreas de plantação buscam atender aos requisitos legais de preservação
das nascentes dos rios, reserva legal de vegetação nativa e preservação ambiental, nas
propriedades vinculadas à produção industrial da referida empresa evidenciando renovações
nas forças produtivas com acréscimos de ciência e técnica característicos de formas recentes
de uso do território (SANTOS; SILVEIRA, 2008, p. 93). Neste caso, considerem-se
acréscimos de ciência e técnica adotados pela Bahiamido, comparativamente às formas
tradicionais de cultivo: mão de obra familiar e uso da enxada como instrumento de trabalho.
O Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) com base no Censo de 1950, e
tendo como critério de localização a adoção de Zonas Fisiográficas, publicou em 1958 a
Enciclopédia dos Municípios Brasileiros (EMB). Naquele momento, o município de Lage
localizava-se na zona fisiográfica de Jequié, “limitava-se com os municípios de São Miguel
das Matas, Santo Antônio de Jesus, Aratuípe, Valença, Jequiriçá, Ubaíra, Amargosa, Mutuípe
e Jaguaripe” (EMB, 1958, Vol. 20, p. 386). A EMB indica que no âmbito das atividades
econômicas a maior fonte de renda do município de Lage provinha da mandioca e do café,
merecendo relevo especial as culturas do fumo e cacau. O município não dispunha de
indústrias, “só merecendo a classificação de “indústria caseira”, como o era o fabrico da
farinha de mandioca, realizado a través de numerosas casas de farinha” (EMB, 1958, Vol. 20,
p. 387). Note-se que mandioca, cana, café, cacau e fumo compunham a base da economia
agrícola do Recôncavo até a década de 1960 (SANTOS, 2013, p. 17), que a produção agrícola
centrada no cultivo da mandioca ainda é fundamental à estrutura socioeconômica dessa região
inclusive por demandar poucos recursos tecnológicos à produção familiar da farinha.
O Recôncavo é uma região de tradição mandioqueira que também se constituiu como
soma de processos orgânicos mediados pelas condições sociais, econômicas, políticas,
ambientais e históricas (SANTOS, 2004, p. 246). Nesse sentido, a partir de acúmulos de
processos históricos essa região construiu um saber, uma experiência social em mais de
quatro séculos de mandiocultura que resulta neste momento no município de Lage em dois
modos de se produzir mandioca: a produção de subsistência destinada ao consumo social e
comercialização da farinha - uso e troca; e a agroindústria da Bahiamido. Há um caráter
capitalista na forma como a fecularia explora a mandioca, exclusivamente como insumo
industrial, produz-se para o mercado. Entende-se mercado “quando pelo menos por um lado
há uma pluralidade de interessados que competem por oportunidades de troca” (WEBER,
15

1999, p. 419). Até a chegada da Bahiamido no município de Lage em 2010, a totalidade do


cultivo de mandioca local se destinava a fabricação de farinha de mesa. A necessidade de
organizar a produção para suprir a demanda de matéria-prima, fez com que em 2009 a
Bahiamido organizasse alguns produtores locais na Coopamido - Cooperativa de Produtores
de Amido de Mandioca do Estado da Bahia (INFOAMIDO, 2014, p. 4). A indústria
incentivava aos produtores rurais a organização cooperativada com vistas a dispor de
matéria-prima à demanda fabril; em contrapartida prometia desenvolvimento econômico e
profissional, assistência técnica e sementes sem custos adicionais a exemplo do pagamento de
royalties sobre patentes das sementes ofertadas. Permitia-se ao lavrador cooperado ou
associado cultivar com mandioca sua própria terra, sendo ele proprietário, ou cultivar um lote
das terras pertencentes a Bahiamido, estabelecia-se em contrato as respectivas relações de
produção.
Como indicado em Santos (2013), a organização de cooperativas e sindicatos patronais
rurais no Recôncavo já era notada no início do século XX, Joaquim Ignácio Tosta presidente
da Sociedade Baiana de Agricultura defendia a organização dos proprietários rurais em
sindicatos e cooperativas de crédito agrícola. Presentemente, a Odebrecht entende a
organização cooperada dos produtores de mandioca dessa região como “um modelo
estratégico de negócio na cadeia produtiva da mandioca (INFOAMIDO, 2014, p. 4). A
Coopamido nasceu em abril de 2009, com 25 sócios fundadores residentes no mesmo
município, as atividades tiveram início em junho do mesmo ano. A cooperativa contava em
abril de 2015 com 109 associados em 20 propriedades, sendo estas compostas de terras
próprias ou cultivadas em forma de parcerias, a área abrangida em abril de 2015 totalizava
1.142,16 hectares, com produtividade em torno de 23 toneladas por hectare, evidência do uso
de ciência e técnica na produção; comparativamente, na mandiocultura regional fora do
âmbito da Coopamido extrai-se geralmente em torno de 15 t\ha.
A necessidade de suprimento de mandioca para atender a demanda industrial força a
ampliação da área de abrangência da Coopamido que em abril de 2015 já desenvolvia
atividades nos municípios de Lage, Santo Antônio de Jesus, Sapeaçu, Conceição do Almeida,
Castro Alves, São Miguel das Matas, Valença e Jaguaripe (INFOAMIDO, 2014, p. 4). Dessa
forma, ampliam-se extensões apropriadas e usadas do território (SANTOS; SILVEIRA, 2008,
p. 19), amplia-se o leque de fornecedores privados ou cooperados, ao tempo em que busca
16

ampliar territórios sob domínio privado próprio como garantia de oferta regular de mandioca à
capacidade operacional da empresa. Justifica-se a noção na qual “A territorialização constitui-
se num processo que se afirma pelas tensões decorrentes da apropriação da natureza, direta
(mundo rural) ou indireta (mundo urbano)” (ALENCAR, 2008, p. 53). Nota-se a agroindústria
subordinando o território e as relações sociais de produção às demanda do mercado, o caráter
de agroindústria adotado pela Bahiamido se evidencia na dimensão da área de domínio
privado próprio, a fecularia possuía em abril de 2015, 2 mil hectares cultivados com mandioca
comparativamente, os pequenos produtores locais cultivam 5 a 10 hectares. A fabricação de
amido no Recôncavo permite à Bahiamido dispor de vantagens adicionais: a mandioca ainda
não ser uma commodity no mercado baiano, não depender de concorrência regional imposta
por empresas estrangeiras sobre a produção e comércio da mandioca, comparativamente a
outros cultivos agroindustriais a mandioca é adaptada ao solo e clima locais, não ocorre
quebra de safra significativa por eventos climáticos nessa região, comparativamente a outras
amiláceas a mandioca resulta em um amido de melhor qualidade e facilidade de reação
porque os grânulos do amido de mandioca não têm resíduos de óleo. E no âmbito dos
impactos ambientais, na mandiocultura a maior parte do controle de pragas e doenças ainda é
possível através de controle biológico e cultural, com pouco uso de agrotóxico; a mandioca
pode ser armazenada no solo sem alterações substanciais na produtividade, vantagem que
permite planejamento e escalonamento de produção de acordo com as necessidades de
processamento empresarial. E apesar de demandar mão de obra superior comparativamente a
outras culturas, busca-se constantemente adaptar-se maquinário específico ao seu cultivo e
manejo. Na modalidade agroindustrial um hectare de mandioca produz entre de 25 e 30
toneladas de raízes e mais 10 a 20\t de subprodutos (folhas, ramas e cepas) utilizáveis como
complemento de ração animal o que torna seu cultivo economicamente viável, essa
viabilidade é buscada também pela Embrapa através do Projeto Reniva, dedicado a
aperfeiçoar cultivares da mandioca e adequá-los às demandas específicas de cada produtor.
Finalmente, entende-se que num contexto de produção familiar ou de subsistência o
mandiocultor trabalha e produz em sintonia com os ritmos climáticos e apreço ao meio
ambiente, seu trabalho tem antes um valor social que valor de mercado. Entende-se que o
conjunto das forças produtivas e das relações sociais de produção de uma sociedade se renova
constantemente e nesse processo produzem-se acúmulos de conhecimentos centenários. A
17

apropriação desse conhecimento e outros condicionantes possibilitam atualmente produzir


derivados da mandioca para atender demandas industriais. Deseja-se que haja a
profissionalização da cadeia produtiva da mandioca extensiva ao pequeno produtor, que se
efetivem parcerias entre agricultores, fornecedores de equipamentos industriais, centros de
pesquisas, indústrias regionais de processamento da mandioca, que seja socializada a
assistência técnica e os conhecimentos produzidos nos centros de pesquisas mantidos pelo
poder público. Que assim se proceda respeitando-se os saberes culturais do cultivo de
mandioca local.
Ao indicar a baixa oferta de mandioca ante a capacidade de processamento industrial
da Bahiamido, isto pode estar relacionado às formas como se estabelecem os vínculos entre o
produtor rural, cooperado ou não, e o agente industrial fomentador da atividade produtiva. Ao
oferecer ao produtor rural sementes e assistência técnica vinculadas à aquisição da mandioca
impõe-se a racionalização da produção, a modernização forçada de antigas práticas
produtivas; impõe-se vínculos contratuais, obrigações contratuais, subordinações contratuais
estranhas ao modo como tradicionalmente se exerceu a atividade mandioqueira local; garante-
se ao produtor rural a certeza de escoamento da sua produção, mas cria vínculos de
subordinação ainda incompatíveis com uma experiência centenária de agricultura de
subsistência, experiência construída distante dos centros acadêmicos e de pesquisas. Mesmo
que assentada em relações de produção cooperadas observa-se a imposição de relações de
mercado, de economia de escala, onde historicamente prevaleceram relações de produção
autônomas. Ante o impasse entre a capacidade de processamento instalada e a oferta de
mandioca disponibilizada pelos cooperados vinculados a Bahiamido, a tendência observada é
de ampliação das áreas cultivadas sob responsabilidade da fecularia, para que não haja
dependência direta junto aos pequenos produtores ou cooperados. Não se concretizaram as
promessas entre usineiros e fornecedores de cana cooperados no Recôncavo açucareiro no
início do século XX, prevaleceu o aumento da área cultivada sob domínio próprio dos
usineiros e a extinção dos pequenos fornecedores privados de cana. As relações sociais de
produção estabelecidas entre a Bahiaamido, Coopamido e fornecedores privados é ainda uma
história em construção, os embates entre capital e trabalho serão inevitáveis. Desse embate
entre capital, forças produtivas e relações sociais de produção a História é fiel testemunha.
18

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