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RESUMO
Mais importante e duradouro ciclo econômico brasileiro, o ciclo do café deixou significativas marcas na
paisagem rural do país, em especial nos estados do Sudeste. O espaço laboral da fazenda é
constituído em volta de um grande terreiro de secagem de café, delimitado pela casa grande –
construção de maior destaque no conjunto –, engenhos para o beneficiamento de café, tulhas, senzalas
e demais edificações. Este quadrilátero não era somente funcional, se levarmos em consideração os
edifícios que o constituem, ele estabelece principalmente a função hierárquica disciplinar de cada
indivíduo na sociedade agrária brasileira do século XIX. O quadrilátero era a representação espacial do
sistema social, cultural, econômico e político da época. A paisagem dessas fazendas é fortemente
marcada por todos os elementos de poder e controle oitocentista. Mesmo em regiões distantes do
centro econômico brasileiro da época, o vale do rio Paraíba, este sistema arquitetônico disciplinar
também pode ser observado, como nas fazendas escravocratas de café da região sul do Espírito
Santo, objeto deste estudo. Mas não foi a partir das fazendas oitocentistas que o quadrilátero funcional
se consolidou no Brasil, pois ele pode ser observado desde os primórdios de nossa ocupação territorial
nos aldeamentos jesuíticos, nas praças das primeiras cidades e nos engenhos de açúcar nordestinos.
Em todos esses períodos, ele é marcado pelos ícones do poder e controle local: a igreja matriz, a casa
de câmara e cadeia, o pelourinho ou a casa grande da fazenda, edificações que se destacam na
paisagem local. A partir de levantamentos realizados pelo INEPAC no vale do Paraíba Carioca, pelo
IEPHA, em Minas Gerais e pelo IPHAN no Espírito Santo, tendo como recorte 20 fazendas, sendo dez
no vale do Paraíba e dez no sul do Espírito Santo, o trabalho discute a constituição do espaço social,
laboral e de controle das fazendas cafeeiras escravocratas dessa região, em especial as fazendas
capixabas. Além dos autores consagrados da arquitetura como Carlos Augusto Silva Telles, Carlos
Lemos, Luís Saia, Nestor Goulart Reis Filho e Paulo Santos, o trabalho busca dialogar com o conceito
Foucautiano do poder soberano e disciplinar em que o barão ou o coronel, como no caso capixaba,
dono da fazenda, delibera sobre a vida e a morte de todos que estão no seu domínio territorial. O
exercício da violência, em especial sobre os negros cativos, se dá pela lógica do tronco e do martírio
que é a máxima expressão do poder soberano. Para tanto, o senhor exerce o controle de seus corpos
com o objetivo de “domesticá-los”, mas, para domesticar o corpo, primeiro é necessário domesticar a
alma, e nesse aspecto, edifica-se um conjunto arquitetônico, a sede da fazenda, contendo todos os
ícones disciplinares. Trata-se de uma arquitetura disciplinar, conceito que será discutido no presente
artigo.
Enormes extensões de mata foram derrubadas, permitindo a ocupação de novas terras onde
o café passou a ser plantado. A região do vale do Paraíba, bacia hidrográfica com 57.000 km²
de extensão, divididos entre os estados do Rio de Janeiro, Minas Gerais e São Paulo, possuía
solo e clima propícios para o plantio, por isso a região se consolidou como o principal centro
cafeeiro do país.
Embora o Vale do Paraíba já estivesse ocupado, no início do século XIX duas correntes
migratórias foram responsáveis pela aceleração de seu crescimento: mineiros provenientes
das Minas Gerais em função da exaustão das minas de ouro; e portugueses, comerciantes da
corte, aristocratas e burocratas, estimulados pelo governo que forneceu sementes e terras
visando a ampliação da cultura que era altamente lucrativa para a coroa.
A fazenda cafeeira no Brasil tem seu modelo referencial no Vale do Paraíba, região mais
abastada economicamente durante o ciclo cafeeiro. De forma geral, apresentam sua
implantação formada por um quadrilátero funcional e diversas edificações pertencentes ao
conjunto da fazenda em torno dele, casa grande, senzala, engenho de beneficiamento, tulhas,
enfermarias, casa do capataz e paióis são as principais edificações que formam este modelo
de implantação adotado majoritariamente pelas fazendas cafeeiras da região. Outras
disposições de implantação eram adotadas quando a topografia era desnivelada, ou quando
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existiam mais de um terreiro. Rocha (2006) compreende a expressão “quadrilátero” como
qualquer forma de quatro lados, incluindo nesta classificação os quadrados, retângulos e
paralelogramos regulares ou irregulares.
O princípio básico na adoção do quadrilátero funcional como modelo de implantação não tem
sua origem nas fazendas de café. No Brasil uma das referências primitivas desse modelo,
ainda sem qualquer influência europeia, pode ser observado nas aldeias indígenas.
A implantação das casas de câmara e cadeia presentes nas primeiras cidades brasileiras da
segunda metade do século XVI até o final século XIX, seguindo o modelo português, possui
uma localização central nos núcleos urbanos, geralmente em frente à principal praça da vila
onde também eram erguidos outros ícones do poder como o pelourinho e a igreja. Tal modelo
também pode ser compreendido como o quadrilátero do poder local.
Em 1822 durante sua segunda viagem aos núcleos rurais brasileiros, Hilaire observa na
região de Rio das Mortes, hoje Tiradentes, a existência de um sistema comum de
implantação.
A partir da análise dos escritos de Saint Hilaire e também de Rugendas (1802-1858), de Jean
Baptiste Debret (1768-1848) e Charles Ribeyrolles (1812-1860) que circularam por diversas
regiões do Brasil, conclui-se que a existência do modelo de implantação denominado
“quadrilátero” também foi adotado em fazendas anteriores ao ciclo cafeeiro. Em seu estudo
sobre as fazendas de café do Médio Vale do Paraíba Fluminense, Rocha (2006) conclui que a
existência do quadrilátero funcional é comum às diversas unidades agrárias, e podem ser
classificados quanto à existência de edificações em suas faces, quanto à sua forma e quanto
ao seu formato.
A partir da análise dos levantamentos estudados, percebe-se que a adoção deste modelo de
implantação pré-estabelecido denominado “quadrilátero funcional” é comum às fazendas
cafeeiras escravocratas na região do Vale do Paraíba, desta amostra. A Fazenda do Paraizo
(figura 1) é um dos exemplos mais claros da adoção deste. Localizada no município de Rio
das Flores (RJ), tem seu registro de fundação datado em 1853. Sua constituição arquitetônica
se dá pela divisão do espaço frontal da sede em duas partes. À esquerda, o antigo terreiro de
café em terra batida, hoje transformado em pomar. Na extremidade superior, ao lado da casa
sede, situa-se o bloco da antiga enfermaria e do hospital e a cozinha dos escravos. À
esquerda deste espaço, junto com a enfermaria, havia uma construção em formato de “O” que
era destinada à senzala dos escravos de eito, ainda que arruinada atualmente, é possível
compreender pela obra de Nicolau Facchinetti (figura 2) a forma deste espaço e seu principal
acesso.
Do lado direito da casa sede ainda podem ser observados vestígios de dois terreiros e uma
canaleta central de captação hídrica. Um dos terreiros, com piso original em macadâmia, está
hoje coberto por grama, o outro, ainda hoje, conserva seu calçamento original. Neste mesmo
espaço encontram-se as edificações destinadas ao beneficiamento e armazenamento do café,
denominadas respectivamente por engenho de beneficiamento e tulhas, estes, configuram
um partido em “L”, fechando as extremidades deste espaço. A Fazenda Paraizo possui ainda
outras edificações laborais remanescentes do ciclo cafeeiro, entretanto sua localização não
se estabelece no quadrilátero funcional.
Figura 2: Fazenda Flores do Paraizo, detalhe do óleo sobre tela de Nicolau Facchinetti
A partir dos levantamentos do IPHAN na região sul do Espírito Santo é possível perceber que
a existência do quadrilátero funcional, nas fazendas cafeeiras escravocratas da região, não se
estabeleceu de forma tão clara como no vale do Paraíba. O sul do Espírito Santo possui
Outro importante exemplar do Espírito Santo é a Fazenda Independência (figura 6), localizada
no município de Mimoso do Sul. Em 1872, o Capitão Leopoldino Gonçalves Castanheira,
vice-presidente da província do Espírito Santo, tomou posse da área em que foi implantada a
fazenda. As obras de construção da casa sede duraram de 1876 a 1881.
A estrada de acesso ao conjunto, que se estende até a parte posterior do terreiro, possui
pavimentação em pedra e assentamento do tipo “pé-de-moleque”, onde possivelmente
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situavam-se outros espaços laborais da fazenda, como podemos perceber pela existência de
baldrames de pedra. O sistema de captação e escoamento hídrico da fazenda também
mantém elementos que possibilitam sua identificação. Acima do terreiro pavimentado e
abaixo do espaço livre ao lado da casa sede é possível identificar os dutos de transporte
hídrico para a lavagem do café. Abaixo do terreiro em cimento, nota-se a existência de dutos
de escoamento que transportam o fluxo de água até o nível inferior abaixo da estrada de
acesso, onde existem mais três dutos deslocados ao lado direito deste espaço. No entorno
das edificações descritas como tulha e curral desativado é possível identificar estruturas de
fundação em pedra, possivelmente utilizadas como base de um conjunto de edificações
laborais ou como delimitação de um outro terreiro de café.
O processo laboral das fazendas cafeeiras no período imperial era, em todo o tempo,
dependente da mão de obra escrava. O tráfico negreiro obteve crescimento extraordinário na
primeira metade do século XIX para atender a mão de obra necessária a essas fazendas. O
sujeito escravizado era um bem de consumo durável, visto que o serviço prestado ao longo de
sua vida compensava o custo inicial de sua aquisição.
O local destinado ao negro escravizado nas fazendas cafeeiras era a senzala, a edificação
mais rústica do conjunto que, embora muitas das vezes fosse caiada externamente, tinha seu
espaço interior extremamente precário, dado o nível de insalubridade dessas edificações.
Pouco se sabe a respeito das edificações destinadas aos negros escravizados nas fazendas
cafeeiras, visto que os exemplares remanescentes se encontram arruinados ou modificados
pela ação do homem e da natureza. Sendo o espaço de frágil arquitetura, compreende-se
então que outros modos de controle, que não o confinamento, se faziam necessários para a
domesticação destes corpos.
A constante vigilância por parte dos feitores e administradores da fazenda era fundamental
para a condução do escravo ao trabalho e para a manutenção da ordem, entretanto, a não
aplicação de castigos seria prejudicial ao funcionamento do cafeeiro (TAUNAY, 2001).
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Varas e chibatas, as correntes e algemas. Há mesmo uma tecnologia da dor
para submeter o sujeito à escravidão. Ao longo da história disciplinar do país,
uma infinidade de instrumentos serviu para capturar, conter, suplicar e aviltar
o homem posto sob o domínio senhorial. Correntes de ferro, gargalheiras que
se prendiam ao pescoço, algemas para pés e mãos, máscara de folha de
flandres para impedir a alimentação, o suicídio ou o furto, anéis de ferro para
comprimir os dedos, a palmatória, os ferros quentes com iniciais, os
libambos, o tronco (LARA, 1988, apud IVIANO, acesso em 24 ago 2016).
A análise do sistema de punição aplicado aos negros por seus senhores durante o período
escravocrata no Brasil caracteriza a prática de indução de suplícios como estratégia do poder,
sobretudo, para manter a ordem na fazenda; a reconstituição da soberania do senhor e a
dominação dos sujeitos escravizados visando otimização produtiva e econômica. A
funcionalidade das práticas de punição senhorial sobre o negro escravizado não eram tidas
apenas como atos de violência e repressão, representaram o anseio de perpetuidade dos
interesses senhoriais.
CONCLUSÃO
No quadrilátero, cada edifício possui características próprias que não só estão vinculadas a
sua função, mas, principalmente, a seu significado hierárquico. A arquitetura não é feita
apenas “para ser vista [...], ou para vigiar o espaço exterior [...], mas para permitir um controle
O castigo é utilizado para a domesticação dos corpos, mas ele não deve inviabilizar as
condições de trabalho do negro. Ele deve ferir mais a alma do que o corpo, servindo de
exemplo para os demais. “O corpo só se torna força útil se é ao mesmo tempo corpo produtivo
e corpo submisso” (FOUCAULT, 1987, p. 26).
Outras fazendas como, por exemplo, a Santa Rita em Muqui, apresentaram uma disposição
diferente de organização do conjunto que não configuram um quadrilátero. Mesmo assim,
todas as edificações necessárias ao funcionamento da fazenda se fazem presentes.
Outro aspecto muito relevante, que influenciou na configuração espacial das fazendas
capixabas, foi a área cultivada das propriedades e a disponibilidade de recursos gerados pela
a produção, muito menor do que no Vale do Paraíba. No caso do Espírito Santo, poucas foram
as fazendas que tiveram um número significativo de negros escravizados, por exemplo.
Embora tendo seus corpos domesticados pelo medo, os escravos ainda assim apresentaram
resistência ao sistema. Entretanto, ele se manteve até 1888, quando foi assinada a Lei Áurea,
que “libertou” os corpos, mas que preservou outras formas de controle sobre o povo negro.
Como pudemos aqui atestar, a estrutura arquitetônica das antigas fazendas de café ainda nos
conta sua história, sua organização, e sua riqueza – conquistada a partir do sofrimento
daqueles que foram escravizados, e do poder dos seus barões. Estudar Arquitetura é ler
nossas construções, para além de escolas e critérios de beleza ou funcionalidade –
aprendendo a enxergar o cotidiano do ser humano e suas transformações.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
BICCA, Paulo Renato Silveira; BICCA, Briane Elisabeth Panitz (Ed.). Arquitetura na
formação do Brasil. Caixa: UNESCO, 2007.
FOUCAULT, Michel. A verdade e as formas jurídicas. Rio de Janeiro: Nau Ed., 1996.
______. Vigiar e punir: nascimento da prisão. Trad. Ligia M. Ponde Vassallo. 9ed. Petrópolis,
Rio de Janeiro: Vozes, 1987.
SAIA, Luís. Notas sobre a Arquitetura Rural Paulista do Segundo Século. In Arquitetura
Civil I. São Paulo: FAU/USP e MEC-IPHAN, 1975.
SAINT HILAIRE, Auguste. Segunda Viagem ao Rio de Janeiro, a Minas Gerais e a São
Paulo (1822). Tradução de Affonso de E. Taunay. São Paulo: Nacional, 1932.
______. Auguste de. Viagem pelas Províncias do Rio de Janeiro e São Paulo, São Paulo:
Cia Editora Nacional, 1938.
TAUNAY, Carlos Augusto. Manual do agricultor brasileiro. Editora Companhia das Letras,
2001.
TELLES, Norma A. Cartografia Brasilis. 1. ed. São Paulo: Loyola, 1984. 156p .