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Universidade Estadual da Paraíba - UEPB

Centro de Educação – CEDUC


Departamento de Letras e Artes - DLA
Curso de Licenciatura em Letras/Português
Componente Curricular: Português Histórico
Professor: Rinaldo Brandão

Formação do Vocabulário Português

Um menino aprende a ler

Minha mãe sentava-se a coser e retinha-me de livro na mão, ao lado dela,


ao pé da máquina de costura. O livro tinha numa página a figura de um bicho carcunda
ao lado do qual, em letras graúdas, destacava-se esta palavra: ESTÔMAGO. Depois de
soletrar “es-to-ma-go”, pronunciei “estomágo”. Eu havia pronunciado bem as duas
primeiras palavras que li, camelo e dromedário. Mas estômago, pronunciei estomágo.
Minha mãe, bonita como só poder ser mãe jovem para filho pequeno, o rosto alvíssimo,
os cabelos enrolados no pescoço, parou a costura e me fitou de fazer medo: “Gilberto!”.
Estremeci. “Estomágo? Leia de novo, soletre”. Soletrei, repeti: “Estomágo”. Foi o diabo.
Jamais tinha ouvido, ao que me lembrasse então, a palavra estômago. A
cozinheira, o estribeiro, os criados Bernarda, diziam “estambo”. “Estou com uma dor na
boca do estambo...”. “Meu estambo está tinindo...”. Meus pais teriam pronunciado direito
na minha presença, mas eu não me lembrava. E criança, como o povo, sempre que
pode repele proparoxítono.
A língua portuguesa, em tão grande parte de formação literária, absorveu
as formas eruditas preservadas nos conventos. Não foi do uso popular que a linguagem
passou à côrte e aos mosteiros. No português, no espanhol e no toscano, o povo não
teve tempo de mastigar o esdrúxulo, que ficou assim encoscorando a prosódia. o
francês o destruiu completamente. “As palavras francesas não nasceram dos vocábulos
latinos escritos, mas dos falados”. A ausência em França de um Dante, de um grande
clássico que fixasse a língua de uma vez, deixou-a mais tempo na boca do povo. No
patoá, o esdrúxulo morreu. Por influência cultural prevaleceu no nosso falar. Mas
sempre que pode, o povo acaba com ele. É uma diferença extraordinária. A sílaba
tônica não empola a palavra no meio. A criança francesa pode, desde cedo, pronunciar
polissílabo.
Uma vez em Paris, na casa de apartamentos em que morava, esta cena de
Itaporanga, esta minha pronúncia da palavra estômago, me veio súbito à memória
fazendo-me rir, de um riso tão diferente que levou a pessoa, em cuja presença me
achava, a perguntar: “Por que ri assim?”. Evidentemente não pude explicar. Nessa casa
havia um pequenote, sobrinho da encarregada, Janot, engraçado e vivo. Eu brincava
sempre com ele ao sair e ao entrar, quando o achava ali, junto da concierge. Trazia-lhe
bombons, presentinhos. Nesse dia o pequenote, olhando-me com especial interesse,
disse: “Hoje é meu aniversário!”. “Que queres que te traga, Janot?”. Debatemos o
problema brinquedo; ele fixou-se afinal num chemim de fer. Prometi. “Mas veja bem,
monsieur Amadô, qu’il soit mécanique!”. Tive o súbito riso a que aludi. Estômago,
estomac... mecânico, mécanique. O garotinho francês solta a palavra toda na cadência
correntia da prosódia sem tem de arquear o acento na corcova do esdrúxulo.

AMADO, Gilberto.História da
Minha Infância.
3 ed. Rio de
Janeiro, 1966.

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