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Cadernos de Estudos

A S S I S T Ê N C I A S O C I A L E M D E B AT E

Série Dialogando 2016

Caderno 3
GERALDO ALCKMIN
Governador do Estado de São Paulo

FLORIANO PESARO
Secretário de Estado de Desenvolvimento Social

MARINA BRAGANTE
Secretária Adjunta

MENDY TAL
Chefe de Gabinete
COORDENADORIA DE AÇÃO SOCIAL (CAS) / ESCOLA DE DESENVOLVIMENTO SOCIAL
PROTEÇÃO SOCIAL ESPECIAL DO ESTADO DE SÃO PAULO - EDESP

EQUIPE TÉCNICA EQUIPE TÉCNICA

TATIANE SOUSA MAGALHÃES MARIA ISABEL CUNHA SORES


Coordenadora da CAS Diretora Executiva

TATIANA AMENDOLA BARBOSA LIMA ANDRÉ LUIZ MACHADO DE LIMA


Diretora Técnica Diretor Técnico

MARCOS FREITAS DE SOUZA CLAUDIA BARONE DINIZ


Diretor Diretora Técnica

ANA PAULA SOUZA ROMEU EQUIPE DE APOIO ADMINISTRATIVO


Especialista em Desenvolvimento Social
ANTONIO CARLOS GONÇALVES
JULIANA OLIVEIRA DOS SANTOS Analista Administrativo
Agente de Desenvolvimento Social
MARCIA RODRIGUES DA SILVA
LUCIANA BOLOGNINI FERREIRA MACHADO Auxiliar Administrativo
Especialista em Desenvolvimento Social
SARA PEREIRA DOS SANTOS
MARIA DE FÁTIMA NASSIF Oficial Administrativo
Agente de Desenvolvimento Social

MARINA MARINHO DE AZEVEDO


Agente de Desenvolvimento Social

NAZIRA LEVY BRUDNIEWSKI


Assistente Técnico

S241c São Paulo (Estado). Secretaria de Desenvolvimento Social.


Cadernos de Estudos EDESP: Assistência Social em Debate - Série Dialogando 2016 / Secretaria de
Desenvolvimento Social, Escola de Desenvolvimento Social do Estado de São Paulo - N.3 (2017) - .
- São Paulo: Secretaria de Desenvolvimento Social, 2017.

124 p.

Publicação é parte dos Cadernos de Estudos Edesp – Assistência Social em Debate – Caderno 3 /
Secretaria de Desenvolvimento Social, 2017.

1. Desenvolvimento Social 2. Assistência Social 3. Políticas Públicas 4. Proteção Social Básica 5. Proteção
Social Especial 6. Garantia de Direitos I. Secretaria de Desenvolvimento Social.

CDU 304 (05)”550.1”

Ficha catalográfica elaborada pelo Centro de Documentação, Biblioteca e Arquivo da Secretaria de Desenvolvimento Social
“Penso em ficar só, mas minha natureza pede diálogo e afeto”
Lya Luft

A
presento a compilação dos encontros da “Série Dialogando”
- edição de 2016, promovidos pela Coordenadoria de Ação
Social/Proteção Social Especial em parceria com a Escola de
Desenvolvimento Social do Estado de São Paulo (Edesp).
Penso que o escopo do trabalho Proteção Social Especial (PSE) é cerca-
do de inquietudes, sendo imperativa a vontade de compartilhar e dialogar.
É impossível construir uma política que dê conta de situações de fragiliza-
ção e rompimentos de vínculos familiares e comunitários de forma isolada.
O desenho de um atendimento integral e de qualidade depende da
nossa capacidade de ampliarmos nossos olhares, aproximarmos atores
de forma a compreender o cotidiano, seus riscos e suas vulnerabilidades.
A muldimensionalidade das questões que envolvem a PSE traz à
tona a necessidade de diálogos teóricos e metodológicos entre as prá-
xis da Assistência Social e das outras políticas que por ela perpassam.
A “Série Dialogando” é um convite para que os profissionais da As-
sistência Social e os indiretamente ligados a ela saiam da sua zona de
conforto, discutindo e compreendendo a complexa construção de fe-
nômenos sociais que precisam de intervenções para que se garanta o
direito e a cidadania.
Neste ano, a equipe técnica teve o cuidado de escolher temas a
respeito dos quais ainda precisamos avançar, tais como: “Medidas
Socioeducativas em Meio Aberto e a Intersetorialidade”; “Mulheres no
Cárcere”; “Enfrentamento do Abuso e da Exploração Sexual de Crianças
e Adolescentes e as Mídias Sociais”; “Diversidade Sexual no Contexto
da Família”; “População em Situação de Rua: Estratégias para a Cons-
trução da Autonomia”; “Crianças e Adolescentes Ameaçados de Morte
e os Desafios da Proteção”; “A Pessoa com Deficiência e o Desafio do
Acolhimento Institucional”; “Mulher: Questão de Gênero e os Desafios
para a Política de Assistência Social”.
Os encontros contaram com a participação de 610 pessoas e, com a
presente publicação, ampliaremos nosso diálogo! Esta publicação é um
compromisso do Governo do Estado de São Paulo com a democracia,
com a transparência, com a participação e controle social e com a inter-
setorialidade na construção das políticas públicas.
Juntos podemos construir uma sociedade mais justa, humana e fraterna!

Floriano Pesaro
Secretário de Estado de Desenvolvimento Social
SÉRIE DIALOGANDO 2016

D
urante os meses de abril a novembro de 2016, a Secretaria
de Desenvolvimento Social (Seds), por meio da equipe téc-
nica da Proteção Social Especial (PSE) da Coordenadoria
de Ação Social (CAS), em parceria com Escola de Desenvol-
vimento Social do Estado de São Paulo (Edesp), promoveu a “Série
Dialogando”, composta por mesas de debates sobre temáticas per-
tinentes à Política de Assistência Social e, mais especificamente,
relacionadas à Proteção Social Especial, na perspectiva da interse-
torialidade. Foram realizados 8 encontros, com a participação total
de 610 pessoas.
A “Série Dialogando” foi criada no ano de 2013 e retomada em
2016, com o objetivo de oferecer informações, formação e reflexão
sobre as temáticas vinculadas aos serviços de média e alta com-
plexidades da Proteção Social Especial e à contrarreferência com
a Proteção Social Básica. Os eventos da série são gratuitos e têm
como público preferencial os trabalhadores da Assistência Social,
mas são abertos a demais interessados.
A edição de 2016 da “Série Dialogando” tratou das temáticas: “Me-
didas Socioeducativas em Meio Aberto e a Intersetorialidade”; “Mu-
lheres no Cárcere”; “Enfrentamento do Abuso e da Exploração Sexual
de Crianças e Adolescentes e as Mídias Sociais”; “Diversidade Sexual
no Contexto da Família”; “População em Situação de Rua: Estratégias
para a Construção da Autonomia”; “Crianças e Adolescentes Ameaça-
dos de Morte e os Desafios da Proteção”; “A Pessoa com Deficiência e
o Desafio do Acolhimento Institucional”; “Mulher: Questão de Gênero e
os Desafios para a Política de Assistência Social”.
A Proteção Social Especial na Política de Assistência Social é a
área que organiza no âmbito do Sistema Único de Assistência Social
(SUAS) a oferta de serviços, programas e projetos de caráter es-
pecializado, destinado a famílias e indivíduos em situação de risco
pessoal e social, por violação de direitos.
São situações de fragilização e rompimentos de vínculos familia-
res e comunitários que geram conflitos, tensões e rupturas, deman-
dando atenção especializada e maior articulação com as demais
políticas públicas e com o Sistema de Garantia de Direitos.
Nessas situações, destacam-se a violência física, psicológica e
a negligência; abandono; violência sexual; situação de rua; trabalho
infantil; cumprimento de medidas socioeducativas de meio aberto;
homofobia e outros preconceitos; afastamento do convívio familiar,
dentre outras.
A complexidade e os vários níveis de agravamentos exigem de
gestores e técnicos a atualização de conceitos, práticas e metodo-
logias de forma constante por meio de instrumentos informativos e
espaços de formação.
Nessa perspectiva, a “Série Dialogando” é um espaço institucio-
nal e público que estimula a reflexão sobre a ação que possibilita a
democratização da informação e o aprimoramento do conhecimen-
to técnico-científico para os profissionais da Secretaria de Desenvol-
vimento Social (Seds); técnicos municipais e de outras secretarias
estaduais; trabalhadores de organizações sociais; estudantes uni-
versitários de Serviço Social, Psicologia, Ciências Sociais e outros.
Para contribuir ainda mais com a disseminação da informação e o
aprimoramento técnico dos profissionais da Assistência Social e das
demais políticas públicas, foi solicitado aos palestrantes que elaboras-
sem artigos baseados nas suas apresentações durante a “Série Dialo-
gando 2016”, cujo resultado apresentamos nesta publicação.

Os encontros da Série Dialogando 2016 também foram grava-


dos e estão disponíveis no Canal Youtube - EDESP Social:
https://www.youtube.com/user/edespsocial/videos

Equipe da Proteção Social Especial


Os textos publicados em "Cadernos de Estudos EDESP: Assistência Social em Debate - Série
Dialogando 2016 - Caderno 3" são de responsabilidade dos autores e não refletem, necessaria-
mente, a opinião da Secretaria de Estado de Desenvolvimento Social (Seds).
Sumário

MEDIDAS SOCIOEDUCATIVAS EM MEIO ABERTO


E A INTERSETORIALIDADE
Sentir viver e agir... O Programa de Saúde do Adolescente do Estado
de São Paulo: medidas socioeducativas em meio aberto e a intersetorialidade

TEMA 1
Albertina Duarte Takiuti______________________________________________________________14

A experiência da Fábrica de Cultura Jaçanã e o atendimento


ao adolescente em cumprimento de medidas socioeducativas em meio aberto
Grace Damiana Souza Miranda______________________________________________________21

A importância da intersetorialidade nas medidas socioeducativas em meio aberto


Mathias Vaiano Glens_______________________________________________________________24

MULHERES NO CÁRCERE
Programa de Atendimento a Egressas da Secretaria de Administração Penitenciária (SAP):

TEMA 2
Re(Integração) de Egressas - Dos Sintomas às Causas
João Paulo Pires Pássaro_____________________________________________________________30

Mães em cárcere
Zoraide Caobianco Modenutte_______________________________________________________34

ENFRENTAMENTO DO ABUSO E DA EXPLORAÇÃO SEXUAL


DE CRIANÇAS E ADOLESCENTES E AS MÍDIAS SOCIAIS
Atendimento psicossocial de crianças, adolescentes e suas famílias
vítimas de crimes cibernéticos: efeitos psicossociais
TEMA 3

Dalka Chaves de Almeida Ferrari______________________________________________________39

Atuação do Ministério Público Federal na prevenção e no combate


aos crimes cibernéticos de pornografia infantil
Fernanda Teixeira Souza Domingos____________________________________________________46
TEMA 3

Experiência do Município de São Paulo no enfrentamento do abuso


e da exploração sexual de crianças e adolescentes
Francilene Gomes Fernandes_________________________________________________________51

DIVERSIDADE SEXUAL NO CONTEXTO DA FAMÍLIA


Ações públicas para a defesa da diversidade
Cássio Rodrigo_____________________________________________________________________59
TEMA 4

Os LGBTs e as relações familiares


Edith Modesto______________________________________________________________________68

Família homoafetiva: um relato de vida


Janaina Leslão_____________________________________________________________________72

POPULAÇÃO EM SITUAÇÃO DE RUA:


ESTRATÉGIAS PARA A CONSTRUÇÃO DA AUTONOMIA
A importância da construção da autonomia da população em situação de rua
Fernando Leonel Henrique Simões de Paula___________________________________________78
TEMA 5

Serviço de acolhimento institucional: do construir junto à gestão participativa do serviço


Leonardo Duart Bastos______________________________________________________________83

Experiência da Rede de Ferraz de Vasconcelos


Silvia Regina de Melo Auricchio______________________________________________________85

CRIANÇAS E ADOLESCENTES AMEAÇADOS DE MORTE


E OS DESAFIOS DA PROTEÇÃO
O Programa de Proteção a Crianças e Adolescentes Ameaçados de Morte (PPCAAM)
TEMA 6

e o contexto geral de metodologia e implementação no Estado de São Paulo


Ana Carolina Melo de Siqueira______________________________________________________89
Os desafios da convivência familiar e comunitária de adolescentes ameaçados

TEMA 6
de morte: proteção no acolhimento institucional?
Alice Duarte de Bittencourt___________________________________________________________94

A letalidade de adolescentes no Estado de São Paulo


e o mapa da violência no contexto do atendimento do Programa de Proteção
a Crianças e Adolescentes Ameaçados de Morte (PPCAAM)
Paulo Cesar Ferreira de Oliveira______________________________________________________99

A PESSOA COM DEFICIÊNCIA E O DESAFIO


DO ACOLHIMENTO INSTITUCIONAL
A Lei Brasileira de Inclusão e a garantia de vida plena à pessoa com deficiência
Carla Biancha Angelucci___________________________________________________________105

TEMA 7
Reordenamento do Serviço Estadualizado de Acolhimento Institucional
de Pessoa com Deficiência na modalidade Residência Inclusiva - Região de Bauru
Maria Moreno Perroni e Roberto Franceschetti Filho___________________________________110

Reordenamento de Serviço Municipal de Acolhimento Institucional em Araraquara:


Diretoria Regional de Assistência e Desenvolvimento Social (Drads) e Gestão Municipal
Béria Cristina da Silveira e Silva e Paulo Albano Filho___________________________________114

MULHER: QUESTÃO DE GÊNERO E OS DESAFIOS


PARA A POLÍTICA DE ASSISTÊNCIA SOCIAL
Bolsa Família e cidadania
Walquiria Domingues Leão Rego____________________________________________________120 TEMA 8
Medidas
Socioeducativas
em Meio Aberto e a
Intersetorialidade
SENTIR VIVER E AGIR...
O PROGRAMA DE SAÚDE
DO ADOLESCENTE DO ESTADO
DE SÃO PAULO: MEDIDAS
SOCIOEDUCATIVAS EM MEIO
ABERTO E A INTERSETORIALIDADE
Por Albertina Duarte Takiuti

A
adolescência é uma etapa da vida de grande criatividade, e o adolescente deve ter seu
potencial criador apoiado e estimulado. O projeto de vida na adolescência poderá ser faci-
litado ou dificultado pelas condições sociais e possibilidades que o meio possa oferecer.
O Programa de Saúde do Adolescente do Estado de São Paulo visa a implantação e im-
plementação de uma política pública universalizada de juventude na área da saúde, com atendimento
integral e gratuito para jovens de ambos os sexos, de 10 a 20 anos de idade, conforme as referências da
Organización Panamericana de la Salud (OPS)/ Organização Mundial da Saúde (OMS) (DONAS, 1992).
Dessa forma, adotou como objetivo o desenvolvimento de atividades para promover, proteger, re-
cuperar e reabilitar a saúde integral do adolescente, com provisão de habilidades para a vida, autoes-
tima, juízo crítico, criatividade, diminuição das diferenças de gênero, saúde reprodutiva e sexual, ética,
equidade, direitos humanos, empoderamento para decisões de vida e saúde, estilos de vida saudáveis,
planos de futuro, jovens e adolescentes multiplicadores, conquista de direitos e exercício da cidadania.
O Programa iniciou sua estruturação em 1985, ano do primeiro encontro intersetorial sobre
adolescência da Secretaria de Estado da Saúde, realizado em dezembro de 1985, no Centro de
Convenções Rebouças, com a participação de 1.113 participantes. Na ocasião, foi firmado um
compromisso oficial com o Governo do Estado de São Paulo, pelo Secretário de Saúde, para a
implantação de um projeto de atenção à saúde integral do adolescente.
O primeiro serviço de adolescente na rede pública foi inaugurado em 7 de março de 1987, em
homenagem ao Dia Internacional da Mulher, no Posto de Atendimento Médico (PAM) da Várzea do
Carmo, no município de São Paulo.
Em 1987 foi constituído o Grupo Executor do Programa (Gepro), quando técnicos e especialistas
juntaram-se na proposta binômio Universidade e Rede Pública para elaborar e pôr em prática planos

14 CADERNO DE ESTUDOS EDESP


de ação. Em 8 de março de 1991 foi assinada a resolução SS-69, que aprovou as diretrizes para a im-
plantação do Programa de Saúde do Adolescente em todo o Estado de São Paulo. Em 18 de novembro,
foi apresentado o projeto de lei 679 na Assembleia Legislativa de São Paulo, que decreta no Artigo 1o
"Fica criado o Programa Saúde do Adolescente na rede pública de saúde de Estado de São Paulo", por
iniciativa do Deputado Estadual Arnaldo Jardim, e transformado em Lei nº 11.976, de 25/08/2005.
Atualmente, o Programa de Atenção Integral à Saúde do Adolescente atende adolescentes por
meio de agenda diferenciada, com equipe multiprofissional composta de médicos, dentistas, psi-
cólogos, assistentes sociais, enfermeiros, naturólogos, fonoaudiólogos, terapeutas ocupacionais,
nutricionistas e educadores. Proporciona estágio em saúde do adolescente ao Curso de Naturolo-
gia da Universidade Anhembi-Morumbi. A integração e o intercâmbio de experiências e de conhe-
cimento são promovidos pela Comissão de Assessoria Científica, composta por especialistas em
adolescência ligados a várias universidades brasileiras.

PERFIL DOS ADOLESCENTES


Segundo levantamento do DATASUS (Departamento de Informática do Sistema Único de Sá-
ude – SUS) de 2014, nos 645 municípios do Estado de São Paulo vivem 6.733.095 adolescentes
com idades entre 10 e 19 anos, sendo 3.408.209 do sexo masculino e 3.324.886 do sexo feminino.
Foram realizados 15 milhões de atendimentos para adolescentes em 2010 no SUS. Este número
subiu para 20 milhões em 2011 e 21 milhões em 2012.
De acordo com investigação de 2010, os adolescentes e os jovens com menos de 20 anos
estão iniciando suas atividades sexuais cada vez mais cedo – entre os 14 e os 16 anos –, aumen-
tando as probabilidades de disseminação de DSTs/AIDS e reforçando a necessidade das ações de
prevenção no início da adolescência (BATISTA, 2010).
O trabalho realizado com adolescentes grávidas, na Casa do Adolescente de Pinheiros, levantou o
perfil de 55 mães adolescentes em 2011. Cerca de 67% não desejavam engravidar, e 69% continuaram
com parceiro. Ao receber a notícia que estava grávida, 38% disseram ter ficado feliz; 25,4% ficaram
assustadas/com medo; 16% desesperadas e 7,2% em estado depressivo. Ao engravidar, 40% aban-
donaram a escola, sendo que 14,5% já estavam fora. Atualmente, 60% moram com o marido e filho e
27,2% com a família materna. A faixa etária adequada para engravidar, na opinião das adolescentes,
foi de 14 a 17 anos, para 7,2%, 18 a 20 anos, para 16,4%, 21 a 25 anos, para 36,3%, e 26 a 35 anos,
para 27,2%. Observou-se também que 36,3% das entrevistadas estão trabalhando, 23,6% estudando e
30,9% cuidam da casa e do filho (TAKIUTI, A. D. et al., 2016).

ATIVIDADES DESENVOLVIDAS NAS CASAS DOS ADOLESCENTES


A prática de trabalho com metodologia participativa é desenvolvida nos serviços ou em parceria com
outras instituições governamentais, não governamentais e demais equipamentos sociais comunitários.
O diálogo e o conhecimento desta fase de vida são incentivados nas atividades em grupo, por

CADERNO DE ESTUDOS EDESP 15


meio de dinâmicas verbais e não verbais, jogos lúdicos, ponderações sobre um tema escolhido,
perguntas anônimas, dramatizações, vivências e danças de roda, tudo com a finalidade de dar voz,
comunicação e reflexão dos sentimentos dos adolescentes, construindo um espaço protetor e de
referência na sua rede social.
A “Oficina de Sentimentos” é uma produção coletiva que possibilita oportunidades iguais para
o adolescente se expressar, refletir, responder, sintetizar e generalizar o que foi construído coletiva-
mente, acolhendo as curiosidades e inquietações e aliviando o sofrimento. Desperta a criatividade
na resolução de problemas e favorece a resiliência dos adolescentes.
A proposta do grupo é desenvolver o juízo crítico, a autoestima, a criatividade, estilos de vida
saudáveis e um projeto de vida, para que o adolescente possa então exercer o autocuidado. Os
temas de interesse dos adolescentes discutidos/desenvolvidos são abordados na sua integra-
lidade por meio de metodologia participativa. A atividade em grupo de escuta dos sentimentos
torna-se espaço protetor.
O "Dá Pra Atender?" é uma oportunidade de atendimento imediato para adolescentes e
suas famílias, acolhendo as demandas do adolescente, do acompanhante e da equipe no mo-
mento em que a escuta psicológica se fizer necessária, sendo um importante diferencial, pois,
na maioria das vezes, para esse tipo de atendimento, é necessário o agendamento (KERR &
TAKIUTI, 2008).
As “Casas do Adolescentes” traduzem em seu cotidiano um modelo de atenção preconizado
pelo Programa, exemplo para serviços amigáveis e atenção básica. Quando o poder público, for-
ças locais, profissionais e comunidade se harmonizam, os resultados surgem naturalmente, com
ganhos concretos e expressivos para a sociedade e, particularmente, para os adolescentes que
encontram nessas unidades o acolhimento e a atenção necessários para conquistarem o legítimo
direito de construírem um futuro saudável.
Sobre a fase de acolhimento, é importante assinalar que ele deve ser participativo. Devemos res-
saltar a importância da valorização do nome, do saber ouvir e olhar e do sentir, sabendo os limites.
Também é importante integração da equipe multiprofissional no atendimento dos adolescentes.
Em relação aos aspectos emocionais, os profissionais devem levar em conta o mundo imagi-
nário e a realidade do adolescente, e também situações de vulnerabilidade e de resiliência. Duran-
te os atendimentos, os profissionais devem estar atentos a questões da ética, e preservar o sigilo,
sempre que não colocar em risco a vida do adolescente.
Os atendimentos realizados na Casa do Adolescente ocorrem por equipes multiprofissionais
formadas por médico, psicólogo, dentista, assistente social. Os profissionais são treinados para
dar voz e escuta a esses adolescentes e ao mesmo tempo incluí-los na escuta coletiva.
No atendimento dos adolescentes devem ser levadas em consideração as características da ado-
lescência como a busca de si mesmo, questões de gênero e papéis, a fantasia e a tendência grupal.
As Casas do Adolescente realizam atendimento de adolescentes em cumprimento de Medidas
Socioeducativas em Meio Aberto. Em relação aos adolescentes em cumprimento de medida so-
cioeducativa também deve ser considerada a importância da tendência grupal e o incentivo para
a participação em grupos e oficinas socioeducativas.
Atualmente, o Programa conta com 33 Casas do Adolescente, sendo 31 no Estado de São
Paulo e duas no Estado do Paraná.

16 CADERNO DE ESTUDOS EDESP


PROGRAMA SAÚDE DO ADOLESCENTE DO ESTADO DE SÃO PAULO
Em 25 de agosto de 2005 foi promulgada a Lei nº 11.976, pela Assembleia Legislativa do Esta-
do de São Paulo, que em seu “Art. 1º - cria o Programa de Saúde do Adolescente na rede pública
do Estado de São Paulo”.
O Programa mantém Interface com a Secretaria de Educação, Programa de Saúde da Mulher e Pro-
grama Estadual de Imunizações, para garantir adesão à vacina contra o HPV, com videoconferências
específicas e capacitações presenciais. Entre 2014 e 2016, foi elaborado o Plano de Fortalecimento do
Programa, com discussão simultânea com interlocutores regionais da adolescência, mulher, atenção
básica e Organización Panamericana de la Salud (OPS)/ Organização Mundial da Saúde (OMS).
Também foi criado o Prêmio Aplicativo "Saúde do Adolescente", elaborado por adolescentes,
profissionais de saúde e consultores internacionais da OPS/OMS.
O Programa tem reconhecimento nacional e internacional. Foi realizado intercâmbio com mais
de 700 profissionais de todo Brasil e 150 estrangeiros, foi premiado internacionalmente em congres-
sos realizados em vários países e em congressos nacionais em 12 estados brasileiros. Foram apre-
sentadas mais de 150 pesquisas científicas realizadas por equipes multiprofissionais em congres-
sos nacionais e internacionais; foram realizados quatro seminários internacionais e três seminários
de boas práticas, e distribuídas gratuitamente três mil publicações dos Seminários de Boas Práticas.
No âmbito do Programa, é desenvolvida capacitação continuada para profissionais da rede, por
meio de cursos em módulos que se repetem semestralmente (TAKIUTI & MONTELEONE, 2008),
já que a população de jovens coloca novos desafios aos profissionais de saúde, que precisam de
informações para cuidar das especificidades dessa atenção. Foram oferecidas capacitações nas
quais estiveram presentes 11.567 profissionais dos diversos municípios do Estado de São Paulo.
A oferta de capacitação e atualização permite que os municípios ampliem e consolidem os
programas de atenção destinados aos jovens. Capacitar o maior número possível de profissionais
que atuam com adolescentes, preferencialmente da rede pública de saúde, assistência social,
educação e áreas afins, permite a ampliação dessa atenção e a multiplicação dos programas.
A disseminação de informações é fundamental para o sucesso do programa. Foram publi-
cados três livros com a participação de 99 especialistas de diversas faculdades que integram a
comissão científica, distribuídos gratuitamente para os profissionais capacitados, e 18 videocon-
ferências (18) para as diversas regionais de saúde do Estado de São Paulo.

ALGUNS RESULTADOS EXITOSOS EM SAÚDE


DO ADOLESCENTE NO ESTADO DE SÃO PAULO
A Redução da Gravidez na Adolescência no Estado de São Paulo foi um importante resultado
que envolveu a participação do Programa na redução da gravidez na adolescência. Este indica-
dor é fundamental para o cumprimento das Metas do Milênio da Organização Mundial de Saúde
(OMS) e das Nações Unidas.
Segundo os dados provenientes do DATASUS, observa-se uma redução de gravidez na adoles-

CADERNO DE ESTUDOS EDESP 17


cência no Estado de São Paulo. No universo de mães de 10 a 19 anos, em 1998 foram 134.318
nascimentos, em 2013 este número caiu para 87.751, representando uma redução de 34% na
primeira gestação. De acordo com os dados da Fundação Seade, esta redução é de 37%.
Para mães de 10 a 14 anos, parcela especialmente vulnerável, em 1998 o número de nas-
cimentos era de 4.248, em 2013 o número caiu para 3.473, correspondendo a uma redução de
18,2%. No mesmo período, os dados nacionais denotam um aumento nesta mesma faixa etária de
2,5%. Em relação à mortalidade materna, no ano de 2012, o Estado de São Paulo não teve mortes
em gestantes nesta faixa etária. O perfil de Partos no ano de 2013 mostra que foram realizadas
11.356 cesáreas (32%) e 16.525 (68%) partos vaginais nesta mesma faixa etária.
Considerando-se a segunda gravidez na adolescência, a redução foi de 47% no mesmo período.
A redução da incidência de casos de AIDS em adolescentes é outro resultado do trabalho com
adolescentes, do ponto de vista de sua saúde.
A redução da mortalidade materna em adolescência de 10 a 14 e de 15 a 19 anos, de 1998 a
2013, também teve redução importante, conforme gráfico abaixo.

A diminuição da mortalidade infantil de filhos de mães adolescentes é outro resultado impor-


tante, conforme pode ser visto na tabela abaixo.

18 CADERNO DE ESTUDOS EDESP


A redução da mortalidade materna em adolescência de 10 a 14 e de 15 a 19 anos, de 1998 a
2013, também teve redução importante, conforme gráfico abaixo.

CONSIDERAÇÕES FINAIS
O Programa de Saúde do Adolescente do Estado de São Paulo tem o compromisso com a
integralidade do cuidado e das ações, inovações em saúde, participação social e científica, amiga-
bilidade dos serviços de atendimento e militância e tem demonstrado um impacto importante nos
dados descritos acima e como um modelo de política pública no aprimoramento das condições
de saúde e prevenção dos agravos de saúde durante a fase da adolescência.
Fortalecendo e potencializando a experiência acumulada pelo Programa das Casas do Adoles-
cente e identificando e divulgando as experiências na área da Saúde, pretendemos cumprir o au-
mento da oferta de atendimento e da rede de serviços, com amigabilidade, avaliação da qualidade
de acesso e diminuição de barreiras ao atendimento integrado e multiprofissional em São Paulo.

Albertina Duarte Takiuti é Mestre e Doutora em Ginecologia pela Fa-


culdade de Medicina da Universidade de São Paulo, com a tese “Estudo de
um Modelo de Atendimento à Mulher Adolescente no Sistema Público de
Saúde”, 1999. Coordenadora das Políticas Públicas da Mulher do Estado de
São Paulo; Coordenadora do Programa Saúde do Adolescente da Secretaria
de Estado da Saúde de São Paulo, desde 1986.

CADERNO DE ESTUDOS EDESP 19


REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:
BATISTA, K. B. C. et al. In: Atenção à gestante e à puérpera no SUS-SP: Manual Técnico do Pré-na-
tal e Puerpério. SES/SP, 2010.
DONAS, S. Marco epidemiológico conceptual de la salud integral del adolescente. Marco Epide-
miológico-Conceptual da Saúde Integr. do Adolesc.,1992.
KERR, J. M. S. & TAKIUTI, A. D. in Adolescência e saúde 3 260–263 (São Paulo (Estado). Secretaria
da Saúde, 2008).
MADDALENO, M. et al. La salud del adolescente y del joven. Organización Panamericana de la
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MONTALTO, Juliana T.; CALVO, Floriano; POÇO, Rosana R.; R. P. M. H. & BARACAT, E. C. Gravidez
na Adolescência Tempos Depois. 698 (2011). Disponível em: <http://www.congressocdh.com.br/
anais>. Acesso em: 15 de dezembro. 2016.
MONTELEONI, M. L., TAKIUTI, A. D. & Conception, I. J. Kerr Emergency Contraception and Ado-
lescents [abstract]. Latin American Congress of Gynecology and Obstetrics, 2006, Rio de Janeiro,
Brazil.[Text on the Internet]. New York: REDECE, 2005. [Accessed November 2010].
TAKIUTI, A. D. Utopia? Análise de um modelo de atenção integral à saúde do adolescente no
Sistema Único de Saúde do Estado de São Paulo. Artes e Contos, 2001.
TAKIUTI, Albertina D.; ALMEIDA, Giovanna M.; KERR, Joana M.S.; C. F. S. P.;
TAKIUTI, A. D. & MONTELEONE, M. L. A. Adolescência e saúde 3. São Paulo: Secretaria da Saúde
(SES-SP), 2008, p. 29–48.

ORGANIZAÇÃO PAN-AMERICANA DA SAÚDE. Adolescer, verbo de transição. Brasília: Organiza-


ção Pan-Americana da Saúde; 2015. 154 p.
ORGANIZACIÓN PANAMERICANA DE LA SALUD. La salud del adolescente y el joven en las Amé-
ricas. Publicação científica nº 489. Washington, D.C., 1985.

20 CADERNO DE ESTUDOS EDESP


A EXPERIÊNCIA DA FÁBRICA
DE CULTURA JAÇANÃ
E O ATENDIMENTO AO
ADOLESCENTE EM CUMPRIMENTO
DE MEDIDAS SOCIOEDUCATIVAS
EM MEIO ABERTO
Por Grace Damiana Souza Miranda

A
s Fábricas de Cultura são espaços com oportunidades de acesso gratuito a diversas ati-
vidades artísticas, vinculados ao Programa Fábricas de Cultura, da Secretaria de Estado
da Cultura de São Paulo. Criadas com o objetivo de ampliar o conhecimento cultural e a
interação com a comunidade, oferecem ateliês de criação, programação cultural diversi-
ficada, estúdios de gravação e ações de linguagem artística.
As atividades são voltadas para o público prioritário, crianças, adolescentes e jovens entre
oito e vinte e um anos. Os jovens maiores de doze anos são atendidos com ações de formação
cultural (trilhas de produção).
Durante o ano a comunidade tem acesso à programação cultural com shows, espetáculos de
teatro, dança, circo, workshops, exibição de filmes e exposições.
A biblioteca é um espaço com diversidade de livros, filmes, jornais, revistas, jogos, espaço para
estudo, pesquisa, acesso gratuito à internet e contação de histórias.
Os Estúdios de gravação e captação de áudio contam com equipe técnica profissional.
O Projeto Espetáculo é um dos eixos que possibilitam a vivência mais aprofundada dos adoles-
centes e jovens na construção do processo artístico.
A Poiesis – Instituto de Apoio à Cultura, à Língua e à Literatura é a organização social que ge-
rencia as atividades desenvolvidas nas unidades Jaçanã, Vila Nova Cachoeirinha, Capão Redondo,
Jardim São Luiz e Brasilândia.
Os eixos norteadores do Projeto pedagógico, Autonomia, Experiência e Coletividade, permiti-
ram apoio enquanto linguagem de aproximação e envolvimento dos adolescentes inseridos em
medidas socioeducativas nas atividades artísticas.

CADERNO DE ESTUDOS EDESP 21


A inserção dos adolescentes na Fábrica de Cultura Jaçanã alcançou resultados satisfatórios,
priorizando aspectos como oportunidades de socialização, o uso dos bens culturais, utilizando
ferramentas para construção de matrizes identitárias, que transcendem o processo de educação
formal. Durante esse processo adolescentes distribuíram fanzines, participaram de ações na bi-
blioteca e nos ateliês de criação.
Na adolescência, fase das descobertas, é importante considerar os interesses e motivações,
além de investir na qualidade do acolhimento institucional.
Durante as ações com esses adolescentes, destacou-se o interesse de Antonio1, que desen-
volveu a habilidade em tocar saxofone. Ele participou da mostra de processos e manteve regulari-
dade de frequência no Programa Fábricas, indo além do estabelecido para o cumprimento de sua
medida socioeducativa.
Um outro destaque foi o Joaquim2, aprendiz da turma de canto, integrante do elenco musical
do Projeto Espetáculo com o tema Bando Jaçanã. Joaquim, desenvolveu uma composição que
denunciava a violência presente em seu bairro, as oportunidades negadas a ele, com muita ex-
pressividade em sua voz grave. Percebeu-se dedicação e aprendizagem durante todo o processo,
seja no preparo vocal, como na construção coletiva junto aos demais aprendizes do projeto.
No Programa Fábricas de Cultura a formação é baseada no processo criativo, não há uma
preocupação restrita a conteúdos, a proposta é que o adolescente ou jovem possa pensar sobre
si mesmo, sobre sua relação com o outro e com o mundo, a partir da linguagem artística. O resul-
tado do processo é um momento onde os aprendizes conseguem se reconhecer, identificar-se, a
partir do próprio cotidiano e externar suas emoções. Daí o alcance significativo do envolvimento
de Joaquim, ao construir sua própria música, por exemplo.
Diante das transformações mundiais como as novas tecnologias e sua velocidade, observar e
pesquisar as descobertas culturais territoriais, ou seja, nas comunidades locais, é também recur-
so de potencialização humana e transformação social para elencar perspectivas na adolescência
e juventude. Daí o grande desafio: tornar mais interessantes as escolhas e traçar novas rotas.
A convivência comunitária, a valorização das habilidades humanas, da diversidade e do prin-
cipio da alteridade fundamentam o trabalho de acolhimento junto aos adolescentes, inseridos
em medidas socioeducativas na Fábrica. Tais ações permitem potencializar os processos de so-
cialização do adolescente e a interação pacífica na comunidade em que reside. A colaboração
da equipe de trabalho composta pelas supervisões artísticas-pedagógicas, articulação, difusão e
ações administrativas possibilitam um “olhar diferenciado” aos adolescentes, sejam eles inseridos
ou não em medida socioeducativa, o que contribui para o estímulo dos interesses, o acesso à in-
formação e a garantia da solidez em suas condições de vida.
É possível observar que a arte e cultura contribuíram para a integração do adolescente inserido
em medidas socioeducativas, considerando os aspectos relacionados à violência, violação de direi-
tos e às transformações socioculturais. Cabe ressaltar que a adolescência e juventude são as fases

1
Nome fictício, em acordo com a lei 8069/90, art.247.
2
Nome fictício, em acordo com a lei 8069/90, art.247.

22 CADERNO DE ESTUDOS EDESP


de maior contundência e expressividade, pois estão imbuídas nas variadas expressões culturais.
Constata-se que a cultura não está excluída dos programas de inclusão social. A articulação
entre juventude e cultura na contemporaneidade, se dá com a aproximação do jovem e ampliação
de seus espaços de voz. E Voz é vez!

Grace Miranda é graduada em educação pela Universidade Presbiteria-


na Mackenzie, especializada em Gestão de Projetos Sociais, consultora no
terceiro setor, idealizadora do Encontro de Diálogos Sobre Juventude Cultura
e Violência, pesquisadora independente na área de juventude e gênero. Atua
como gerente da Fábrica de Cultura Jaçanã, programa da Secretaria de Es-
tado da Cultura do governo de São Paulo.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
FOUCAULT, M. Vigiar e punir: o nascimento da prisão. 30ª ed. Editora vozes, 1987.
MAGINANI, José Guilherme C., SOUZA, MANTESE, Bruna de (organizadores). Jovens na metrópole: et-
nografias de circuitos de lazer, encontro e sociabilidade. 1ª ed. São Paulo, editora Terceiro Nome, 2007.
RAMOS, Maria. Juízo, 2008, documentário.
Plano Nacional de Cultura. Secretaria de Estado da Cultura, Governo do Estado de São Paulo.
Disponível em: <www.cultura.sp.gov.br>. Acesso em: 20 de dezembro. 2016.
WINNICOT, D.W. Privação e delinquência. São Paulo: Edições Graal, 2003.

CADERNO DE ESTUDOS EDESP 23


A IMPORTÂNCIA
DA INTERSETORIALIDADE
NAS MEDIDAS SOCIOEDUCATIVAS
EM MEIO ABERTO1
Por Mathias Vaiano Glens

C
omo psicólogo social, com frequência costumo recorrer à história das práticas com as
quais trabalho ou dos objetos a respeito dos quais eu pesquiso. Com a intersetorialidade
nas medidas socioeducativas não poderia ser diferente. E, de fato, quando estudamos a
história das políticas públicas voltadas à infância e juventude, percebemos justamente o
oposto da intersetorialidade, ou seja, verificamos que a institucionalização é a sua marca funda-
mental (RIZZINI & PILOTTI, 1995). Em outras palavras, antes da publicação do Estatuto da Criança
e do Adolescente (ECA) (BRASIL, 1990), a compreensão que se tinha sobre o melhor modo para
proteger e cuidar de crianças e adolescentes era colocá-las em instituições, que acolhiam indistin-
tamente tanto aqueles que sofriam violência quanto os autores de atos infracionais. É essa cultu-
ra dos grandes orfanatos e internatos que atualmente tentamos superar por meio da construção
de um modelo intersetorial. Contudo, o que percebemos nos dias de hoje é que a mentalidade ins-
titucionalizante muitas vezes persiste, não tanto na estrutura física dos estabelecimentos atuais
de proteção e socioeducação, mas em suas práticas e concepções.
Tais instituições de antigamente, as quais Goffman (2003) denominou de “instituições totais2”,
pretendiam dar conta de todas as esferas da vida de seus internos: alimentação, educação, saú-
de, lazer etc. O resultado dessa prática foi o isolamento social daquelas crianças e adolescentes
vistas como indesejadas pela sociedade.
A institucionalização dos socialmente excluídos sob a falsa alegação de ajudá-los aconteceu
não só com crianças e adolescentes pobres. Pessoas com transtornos mentais, com hanse-

1
Este texto é baseado no terceiro capítulo de minha dissertação de mestrado “Órfãos de pais vivos: uma análise da política pública de abri-
gamento no Brasil” (GLENS, 2010). Para uma reflexão mais aprofundada dos tópicos aqui discutidos, sugiro a leitura do original, disponível
em http://www.teses.usp.br/teses/disponiveis/47/47131/tde-09112010-113124/pt-br.php.

2
“Locais de residência e trabalho onde um grande número de indivíduos com situação semelhante, separados da sociedade mais ampla por
considerável período de tempo, levam uma vida fechada e formalmente administrada” (p.11).

24 CADERNO DE ESTUDOS EDESP


níase ou tuberculose, aqueles que cometeram crimes, idosos e pessoas com deficiência, por
exemplo, também sofreram esse processo. Para cada parcela da população vista como “maldi-
ta”, existiu uma instituição de isolamento: manicômios, leprosários e sanatórios, prisões, asilos
e casas de internação.
No caso das políticas voltadas à infância e juventude no Brasil, a institucionalização iniciou-se
nas primeiras ações destinadas a esse público, realizadas pelos jesuítas. Uma vez que os índios
adultos se mostravam mais resistentes à doutrina cristã, os padres optavam preferencialmente pela
catequese de crianças e os retiravam de suas famílias, destinando-os para casas especialmente
reservadas a essa função (MARICONDI, 1997). Vemos, portanto, que desde o início a institucionali-
zação teve como pressuposto a desvalorização das famílias das crianças e dos adolescentes, algo
que só se intensificou com a Roda dos Expostos3 , política característica do período colonial.
A culpabilização da família da criança pobre por mazelas que são estruturalmente sociais,
com modificações específicas em cada época histórica, permaneceu em praticamente todos
os arranjos institucionais subsequentes e constitui atualmente um dos principais desafios das
práticas intersetoriais.
No final do século XIX, quando o Estado resolve assumir tarefas antes delegadas à Igreja, ele
também constrói um modelo institucionalizante, mas dessa vez com base na ideologia higienista,
muito em voga naquele momento. Segundo Silva (1997), o higienismo tem como uma de suas ca-
racterísticas a hegemonia do pensamento medicalizante em relação às questões sociais. É desse
período o afastamento dos internatos para locais muito distantes dos centros urbanos, numa
tentativa de prevenir doenças associadas a essas instituições, inclusive “doenças” do campo mo-
ral, concebidas como possivelmente contagiosas. Tais práticas apresentam reminiscências até
nossos dias, especialmente em relação às instituições de internação, quase sempre isoladas. Isso
dificulta não só o trabalho intersetorial como também a visitação dos familiares dos adolescentes,
reproduzindo, mais uma vez, a ideia de que, para proteger ou reeducar, a família seria um obstácu-
lo ou um empecilho. Na verdade, a intersetorialidade deve pressupor que o adolescente infrator é
apenas um porta-voz dos conflitos sociais que ecoam em sua família e que, portanto, as melhores
práticas são aquelas que atuam com o núcleo familiar e com sua comunidade de pertencimento.
Mas, em 1916, o Código Civil legitimou juridicamente apenas a família nuclear como capaz de
bem criar uma criança, pois restringiu o exercício dos direitos reprodutivos ao casamento, criando
as bases para uma discriminação social que segrega pessoas segundo o modo como elas foram
geradas (SILVA, 2003, p. 289).
A versão da ideia de que “pau que nasce torto nunca se endireita” se desenvolve no Código
de Menores de 1927. Denominando os menores de “vadios” (art. 28) ou de “libertinos” (art. 30)

3
A Roda dos Expostos ou Roda da Misericórdia, instaurada pelo papa Inocêncio III (século XV), consistia num cilindro de madeira que era
colocado nos Conventos e Casas de Misericórdia a fim de receber crianças enjeitadas. O mecanismo, em forma de tambor ou portinhola
giratória, era embutido numa parede, de forma que aquele que expunha a criança não era visto por aquele que a recebia. Nota dos editores,
com base em textos disponíveis em: <http://almanaque.weebly.com/roda-dos-expostos.html> e <https://pt.wikipedia.org/wiki/Roda_dos_
expostos>. Acesso em: 21 de dezembro. 2016.

CADERNO DE ESTUDOS EDESP 25


(BRASIL, 1927), por exemplo, o referido Código fez coro a um conjunto de pseudociências que,
sob a influência do positivismo, tentaram explicar as desigualdades sociais pelas diferentes in-
clinações pessoais dos indivíduos. Para todos os trabalhadores da área social, e especialmente
para aqueles que atuam com adolescentes em conflito com a lei, é muito importante termos a
consciência de que, em primeiro lugar, ninguém nasce torto! E, em segundo lugar, se por alguma
desventura social alguém foi sendo “entortado” ao longo da vida, sempre existem possibilidades
de transformação nesse processo!
Na discussão da intersetorialidade, outro ponto que podemos destacar do Código de 1927 foi
criação do Juizado de Menores e a consequente concentração gigantesca de poderes nas mãos
do juiz. O Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) iniciou uma desconstrução dessa prática
com a retirada de funções executivas e legislativas da competência do Judiciário e a criação de
instituições como o Conselho Tutelar e os Conselhos de Direitos e outras iniciativas. Mas, do meu
ponto de vista, o ECA ainda foi muito pouco audacioso nesse ponto, pois os operadores do siste-
ma de Justiça, e principalmente a figura do juiz, continuam concentrando um poder decisório que
deveria ser compartilhado com outros profissionais. O resultado disso é o desempoderamento da
equipe técnica dos serviços que fazem o atendimento direto do adolescente e que são, na maioria
dos casos, aqueles com mais conhecimento a respeito da vida de seu atendido. Contudo, costu-
meiramente são os menos ouvidos. Em um sistema verdadeiramente intersetorial as hierarquias
devem ser substituídas por parcerias em uma rede o mais horizontal possível.
Com o advento da Fundação Nacional do Bem-Estar do Menor (Funabem) em 1964, res-
ponsável pela produção de diretrizes unificadas para o campo da infância e adolescência e, a
partir dela, das Fundações Estaduais do Bem-Estar do Menor (Febems), órgãos de execução da
política traçada pela entidade federal, tem-se um aprofundamento do fenômeno da centralização
administrativa, algo que não somente o ECA se opôs mas também a própria Constituição de 1988
nos princípios de praticamente todas as políticas públicas, a exemplo da saúde (art. 198, inc. I) e
da assistência social (art. 204, inc. I). De acordo com RIZZINI & RIZZINI (2004, p. 38), a execução
estadual das políticas agravou o problema da desregionalização, promovendo um verdadeiro exí-
lio de crianças e adolescentes das capitais para o interior dos Estados. Isso contextualiza e nos
ensina a valorizar a legislação atual, que preceitua a execução municipal como modelo para as
políticas à infância e adolescência. Sob pena de transformarmos a proteção dos nossos usuários
em uma espécie de punição, as redes de instituições voltadas a esse público devem ser não ape-
nas intersetoriais, mas também locais.
Em 1979, é elaborado um novo Código de Menores que dá continuidade à ação institu-
cionalizante do Estado como uma resposta-padrão aos impasses apresentados pela condição
da infância e adolescência brasileiras. O conceito jurídico que operacionalizou tal modelo foi o de
“menor em situação irregular” que, por ser tão amplo (BRASIL, 1979, art. 2°), permitia que qualquer
criança ou adolescente pobre fosse internado, muitas vezes pelo simples fato de ser pobre.
Essa prática, que não distinguia as diferentes necessidades daqueles que precisavam de proteção,
foi por mim denominada em GLENS (2010, p. 27) de “indiferenciação da demanda”, algo que considero
uma das características essenciais do menorismo. Reunindo em um mesmo espaço crianças e ado-
lescentes vítimas de violência e autores de atos infracionais, por exemplo, era impossível fornecer um
atendimento especializado em relação às demandas mais prementes de cada caso.

26 CADERNO DE ESTUDOS EDESP


Atualmente, nosso desafio é a criação de políticas, serviços e instituições capazes de, ao mes-
mo tempo, dar conta de demandas específicas e extremamente diferentes no interior do campo
da infância e adolescência, sem o desenvolvimento de guetos, categorizações excessivas e “espe-
cialismos” que só favorecem o jogo de empurra dos casos difíceis. Daí a importância da interseto-
rialidade para a resolução desse impasse.
Em um serviço de medidas socioeducativas em meio aberto, por exemplo, a identificação, nos
casos atendidos, de necessidades que demandam a intervenção de outras instituições não sig-
nifica um simples encaminhamento do adolescente. Significa que esses outros serviços deverão
compor o plano individual de atendimento juntamente com o serviço de medidas. Isso ressalta
que os instrumentos e técnicas compartilhados por diferentes setores da rede, tais como o já
citado plano individual de atendimento ou os fóruns de discussão de casos, audiências concen-
tradas, supervisões conjuntas, entre outros, são cruciais para retirar a intersetorialidade do plano
do discurso vazio e garanti-la na prática.
No fundo, intersetorialidade é o exato oposto de institucionalização. Nesse sentido, construir
um sistema intersetorial é se contrapor a séculos de políticas autoritárias e ineficazes no Brasil. A
intersetorialidade não é simplesmente um princípio bonito. Ela nasce das reais necessidades de
atendimento a crianças e adolescentes. E já passou da hora de o Estado adaptar suas instituições
ao que crianças e adolescentes precisam e não o contrário.

Mathias Vaiano Glens é psicólogo formado pela Universidade de São


Paulo (USP). Atua como consultor na área de políticas para a infância e ado-
lescência, ministrando palestras, cursos, treinamentos e supervisões. Atua
também como psicólogo no Núcleo de Direitos Humanos da Defensoria Pú-
blica do Estado de São Paulo e no consultório particular com atendimento
psicoterapêutico. Contato: mathiasglens@yahoo.com.br

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Disponível em: <https://www.pla-
nalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm>. Acesso em: 03 de dezembro. 2016.
______. Decreto N° 17.943 de 12 de Outubro de 1927, que consolida as leis de assistencia e
protecção a menores. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto/1910-1929/
d17943a.htm>. Acesso em: 04 de dezembro. 2016.
______. Lei n° 6697 de 10 de outubro de 1979, que institui o Código de Menores. Disponível em:
<https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/1970-1979/L6697.htm>. Acesso em: 29 de novembro. 2016.

CADERNO DE ESTUDOS EDESP 27


______. Lei n° 8.069 de 13 de julho de 1990, que dispõe sobre o Estatuto da Criança e do Adoles-
cente. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Leis/L8069.htm>. Acesso em: 01 de
dezembro. 2016.
GLENS, M. Órfãos de pais vivos: uma análise da política pública de abrigamento no Brasil. 2010.
Disponível em: <http://www.teses.usp.br/teses/disponiveis/47/47131/tde-09112010-113124/pt-
-br.php>. Acesso em: 28 de novembro. 2016.
GOFFMAN, I. Manicômios, prisões e conventos. São Paulo: Editora Perspectiva, 2003.
MARICONDI, M. A. Falando de abrigo. Cinco anos de experiência em projeto Casas de Convivên-
cia. São Paulo: Febem, 1997.
RIZZINI, I. & PILOTTI, F. (Org.). A arte de governar crianças: história das políticas sociais, da legis-
lação e da assistência à infância no Brasil. Rio de Janeiro: Inn/Edusu/Amais, 1995.
RIZZINI, I. & RIZZINI, I. A institucionalização de crianças no Brasil: percurso histórico e desafios
do presente. São Paulo: Loyola, 2004.
SILVA, E.R.A. Os filhos do governo: a formação da identidade criminosa em crianças órfãs e aban-
donadas. São Paulo: Ática, 1997.
____________. O financiamento dos abrigos para crianças e adolescentes no Brasil. In: IPEA. Levan-
tamento Nacional de Abrigos para Crianças e Adolescentes da Rede SAC. Brasília: 2003, p. 169.

28 CADERNO DE ESTUDOS EDESP


Mulheres
no Cárcere
PROGRAMA DE ATENDIMENTO
A EGRESSAS DA SECRETARIA DE
ADMINISTRAÇÃO PENITENCIÁRIA
(SAP): RE(INTEGRAÇÃO) DE EGRESSAS
- DOS SINTOMAS ÀS CAUSAS
Por João Paulo Pires Pássaro

“A desigualdade social, econômica e politica na sociedade brasileira chegou a tal grau que se torna incom-
patível com a democratização da sociedade. Por decorrência, tem se falado na existência da apartação
social. No Brasil a discriminação é econômica, cultural e política, além de étnica.” (Aldaiza Sposati, 1996)

D
esigualdade social, sensação de impunidade, ausência de políticas públicas eficazes e
muitos tabus contribuem para que o Brasil esteja armando uma bomba-relógio no sis-
tema carcerário, prestes a explodir. Quase diariamente ouvimos dizer que “bandido bom
é bandido morto”, que “o Brasil é uma fábrica de produzir marginais” ou que “a cadeia é
a Universidade do Crime”; sempre levando a discussões dos sintomas, mas não de suas causas.
Inclusive, quando discutimos tais sintomas, as soluções são muitas vezes assombrosas, partindo
do endurecimento das penas até a aplicação de pena de morte.
Atualmente, o Brasil é o quarto país com maior população carcerária no mundo, fato ainda mais
alarmante quando visualizamos que, dentre os quatro países, o nosso é o único que não consegue
frear o crescimento carcerário. Só para termos uma ideia, segundo dados do Levantamento Nacio-
nal de Informações Penitenciárias (Infopen), em relatório produzido em 2014, estima-se que entre
2003 e 2014 a população carcerária no Brasil dobrou. Em apenas 11 anos encarceramos o mesmo
número de pessoas que em grande parte de nossa história.
É óbvio que precisamos ponderar sobre o crescimento populacional, a superpopulação de re-
giões e cidades e o “avanço” das leis. Mas precisamos, principalmente, considerar onde não evo-
luímos, onde não acompanhamos o crescimento populacional Brasileiro e suas necessidades. O
conceito “popular” sobre a pessoa presa é de que ela é um ser à parte da sociedade e lá deve ficar,
até o seu final. Entendemos que ela cometeu o crime por querer algo fácil, não querer trabalhar,
não querer passar pelas mesmas dificuldades que eu ou você passamos. Tal visualização já se faz
motivo suficiente para acendermos uma fogueira e queimarmos todos. Ou não.

30 CADERNO DE ESTUDOS EDESP


Muitas vezes penso que no imaginário popular existe a crença de que a pessoa já nasce ban-
dido(a), reforçando a separação de classes e cada vez menos discutindo a problemática e as
causas. Quando analisamos a fundo o perfil das pessoas presas, encontraremos, sim, pessoas
que cometeram crimes por simples prazer, por patologias e até os chamados “psicopatas”, mas
a grande “cara” do sistema penitenciário brasileiro constitui-se de pessoas pobres, negras, com
quase nenhuma escolaridade e que vem de uma história de negligencia, violência e privação de
direitos básicos. Que fique claro: tais condições não são predisposições e muito menos justifica-
tivas a uma vida delitiva, mas sim fatores de risco. Afinal, várias pessoas passam pelas mesmas
condições e tomam caminhos diferentes, aí entram as características individuais, cada indivíduo
reage a um mesmo evento de diferentes maneiras.
No Brasil, país com desigualdade social tão presente que traz as marcas da colonização e da
escravidão até hoje, é possível encontrar no mesmo bairro famílias com casas, energia elétrica,
saneamento básico e todos os direitos preservados, e ao mesmo tempo famílias com todos os
direitos negligenciados. Infelizmente, a nossa cultura ainda concebe que tais condições são deter-
minadas pela “disposição ao trabalho”, "se eu trabalho, posso progredir", "se não trabalho, tenho o
que mereço", sem considerar as marcas históricas da segmentação de classes.
É nesse ponto que se inicia um ciclo. O indivíduo que mora em um local inadequado, sem
energia elétrica, saneamento básico, alimentação, provavelmente não terá uma escolaridade de
qualidade, visto que precisará trabalhar precocemente em subempregos para se sustentar. Sem
estudo, não consegue colocação profissional adequada no mercado. Sempre continuando à mar-
gem da sociedade.
Ao mesmo tempo, como nos fala a professora Silvia Leser de Mello, “(...) os objetos de desejo,
sejam bens materiais, poder ou prestígio, não estão ao alcance de todos, embora sejam univer-
salmente exibidos” (1999). O desejo pertence a todos, sua concretização não. Pequenos delitos e
o início da prática delitiva se concretizam nesse ponto, a materialização da desigualdade social.
Ilustrando tal realidade, ao falarmos do perfil da população carcerária no Brasil, 56% são jovens
até 29 anos; 67% negra; 68% correspondem a pessoas com ensino fundamental incompleto ou
analfabetas; e 64% dos crimes cometidos são relacionados ao tráfico de drogas, furtos e roubos,
crimes que visam ao enriquecimento.
Em relação às mulheres, estima-se que 63% estejam presas por tráfico, número este que no
Estado de São Paulo sobe para 72%, segundo o "Manual de Diretrizes de Atenção à Mulher Presa"
(2017). Muito se debate sobre a motivação da prática delitiva. Em uma sociedade machista, a
mulher ocupa papéis ambíguos, nos quais muitas vezes se justifica que “foi presa por tráfico na
tentativa de ajudar o companheiro/marido”, que cometeu tal ato “por amor”, sendo tentada a en-
trar com entorpecentes em Unidades Prisionais ou a continuar a prática delitiva do cônjuge após
sua prisão, com motivações passionais e uma posição passiva. Poucas vezes se reconhece o
protagonismo da mulher, mesmo que sua punição seja severa.
A sociedade mantém a imagem sagrada da mulher, muitas vezes se negando a acreditar que
ela tenha capacidade de cometer tal delito, e quando aceita esse fato, o peso da discriminação é
maior. Por ser mulher, ela carrega a função do “cuidar”, seja da casa, da família ou dos filhos, que
se transforma em responsabilidade; é quase um pecado capital negar tal atribuição em “troca” da
prática delitiva.

CADERNO DE ESTUDOS EDESP 31


Quando presas, em sua maioria são abandonadas pelos cônjuges. No Estado de São Paulo, por
exemplo, apenas 47% das mulheres presas recebem visitas, sendo que os cônjuges representam
apenas 4%. A maioria das visitas recebidas é realizada pelos demais familiares.
Ainda segundo o "Manual de Diretrizes de Atenção à Mulher Presa" (2017), 85% das mulheres
têm filhos, dos quais apenas 21% são criados pelos pais; os demais, em grande parte, são criados
por avós e familiares. Estima-se que 15% das mulheres presas em São Paulo tiveram filhos dentro
da prisão, onde por lei têm direito à convivência de no mínimo seis meses com a criança, a fim de
garantir amamentação adequada.
O Estado de São Paulo atualmente possui Unidades Prisionais projetadas para mulheres, dife-
rentemente do passado, quando eram adaptações de Unidades Masculinas. Nelas se percebem
os esforços para atender às diversas necessidades da mulher, como as de saúde relacionadas
à mãe e ao bebê, porém, na prática, vemos, apesar da dor da separação, as mães quererem que
seus filhos fiquem o menor tempo possível dentro das Unidades Prisionais, passando os cuidados
a algum familiar.
A questão da maternidade dentro do sistema carcerário é tema que sensibiliza e aproxima to-
dos os atores envolvidos, mulheres presas, mães, familiares e funcionários. Impossível não se co-
locar no lugar da mãe ou do filho, de uma forma ou de outra, todos nós já ocupamos esses papéis.
Quando se pensa no futuro, questionadas sobre como não rescindir, 80% relatam que pre-
tendem arrumar um emprego. É aí que se inicia o pensamento sobre a Reintegração Social e o
retorno à Sociedade.
No Estado de São Paulo, onde se concentra a maior parte da população carcerária do país,
cerca de 220 mil pessoas presas, segundo relatório do Levantamento Nacional de Informações
Penitenciárias (Infopen) - 2014, algumas práticas voltadas à Reintegração Social da pessoa presa
se fizeram inovadoras, como a aplicação de Penas e Medidas Alternativas e o Programa de Aten-
ção ao Egresso e Família.
Entende-se que o processo de reintegração da pessoa presa inicia-se no momento de sua
prisão, na unidade prisional, porém tem fator primordial em sua saída, quando se torna egressa. É
impossível imaginar que uma pessoa sairá da mesma forma que entrou, organizada e adaptada
ao mundo externo após período de privação.
O Programa de Atenção ao Egresso e Família do Estado de São Paulo visa a auxiliar e a acom-
panhar as demandas específicas de cada indivíduo e seus familiares, como a obtenção de docu-
mentações básicas, realização de cursos e escolaridade, recolocação no mercado de trabalho,
além de orientações de saúde e jurídicas.
Percebe-se que muitas vezes a pessoa a ser Reintegrada na verdade precisa ser “Integrada”, visto
que antes da prática delitiva sempre viveu às margens da sociedade. E após o cumprimento de pena,
a sociedade mostra-se fechada em mais um aspecto a ela, que é a reintegração de ex-presos.
A principal demanda e solução para a não reincidência apontada pelas próprias pessoas pre-
sas é também a principal dificuldade, o mercado de trabalho. Por mais qualificado que um indiví-
duo seja em sua área, ele necessita do apoio de uma empresa sensibilizada com a temática para
conseguir a recolocação, visto que os antecedentes criminais o marcaram para que permaneça
à margem.
O atendimento do Programa de Atenção ao Egresso de São Paulo também se destina aos

32 CADERNO DE ESTUDOS EDESP


familiares, em suma maioria mulheres, em geral mães e esposas. O apoio e acompanhamento
oferecidos são relacionados ao apoio psicológico e a informações da situação processual de seus
familiares, como demais encaminhamentos que assim necessitar. Percebe-se que quando um
indivíduo é preso, leva parte de sua família e de seus vínculos com ele. A organização de tais pes-
soas sofre um abalo, assim como suas vidas.
Por fim, para tratar as causas do encarceramento, é necessário que a discussão seja expan-
dida além dos muros, com a participação efetiva da sociedade, visando ao antes, ao durante e ao
depois. Como ouvi de um colega um tempo atrás: “O preso hoje está contido, amanhã ele estará
contigo”. A forma de discutir tais questões mostrará a sociedade que pretendemos formar.

João Paulo Pires Pássaro é graduado em Psicologia pela Universidade


Paulista (UNIP), com formações em Acompanhamento Terapêutico e Terapia
Comunitária Integrativa. Atua no Programa de Atenção ao Egresso e Família
do Estado de São Paulo. Anteriormente ocupou a Diretoria do Centro de Políti-
cas Específicas e do Departamento de Atenção ao Egresso e Família, ambos
da Secretaria da Administração Penitenciária do Estado de São Paulo.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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Sposati, Aldaiza. Mapa da Exclusão/Inclusão na cidade de São Paulo. EDUC, São Paulo,1996.

CADERNO DE ESTUDOS EDESP 33


MÃES EM CÁRCERE
Por Zoraide Caobianco Modenutte

M
ães em Cárcere é o nome da Política Institucional de Atendimento da Defensoria Pú-
blica de São Paulo para as mulheres que estão presas e sejam mães ou estejam grá-
vidas. A construção desta política iniciou-se no ano de 2011, a partir de um diálogo da
Pastoral Carcerária com a Ouvidoria da Defensoria Pública do Estado de São Paulo,
em apoio conjunto com seus Núcleos Especializados de Infância e Juventude, de Promoção e
Defesa dos Direitos da Mulher e de Situação Carcerária.
O diálogo consistia em levar aos três Núcleos a proposta de assumirem a condução conjunta
dos trabalhos de construção da referida política, prezando pela articulação, no interior da Defen-
soria, entre a área cível e criminal.
Em Agosto de 2011, como fruto desse diálogo e dessas primeiras interlocuções a respeito do
tema, Defensoria Pública do Estado de São Paulo, Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo e
Pastoral Carcerária realizaram o “Seminário Mães do Cárcere: Construindo Caminhos para a Ga-
rantia da Convivência Familiar de Mulheres e Crianças”.
O evento resultou na produção de um documento, denominado Carta de São Paulo, no qual
constam diretrizes para a atuação dos diferentes setores do Poder Público envolvidos nessa te-
mática, entre os quais a Defensoria Pública, que elaborou Cartilha sobre o tema e se comprometeu
com o aprimoramento de sua política de atendimento às mulheres presas.
Essas iniciativas se desdobraram, no início do ano de 2012, na formação de uma comissão que
contava com a participação da 1ª Subdefensoria, dos(as) coordenadores(as) dos Núcleos Espe-
cializados já mencionados, de defensores(as) públicos(as) de diferentes áreas, de servidores(as)
de defensoria e da Pastoral Carcerária. O ponto de partida dos trabalhos dessa Comissão foi a
absorção da experiência produzida pela Pastoral Carcerária a partir de um projeto desenvolvido
pela Coordenação Jurídica dessa Organização no ano de 2010/2011.
A política tem como objetivos principais garantir o acesso à justiça; garantir o exercício da
maternidade; assegurar os direitos tanto da mãe quanto da criança que se encontram no am-
biente prisional; preservar ou restabelecer o vínculo familiar, incentivando o contato entre mães
e filhas(os); estreitar o contato da Defensoria Pública com a mãe que está presa e incentivar a
atuação interdisciplinar (Direito, Serviço Social, Psicologia) e intersetorial (Defensoria, Saúde, As-
sistência Social, Conselhos Tutelares etc.).
Para a efetivação desse trabalho, avançou-se na construção dessa política com a criação de
formulários que, aplicados no momento da inclusão das mulheres nas unidades prisionais femini-
nas, identificassem as mães e gestantes. Para isto, foi celebrado acordo com a Secretaria de Admi-
nistração Penitenciária. Por meio da criação de uma assessoria técnica para recebimento, registro

34 CADERNO DE ESTUDOS EDESP


e acompanhamento das demandas, denominada Convive; articulação com as unidades prisionais
femininas do Estado de São Paulo; estratégias para atendimento das unidades prisionais em co-
marcas sem atuação da Defensoria Pública; proposta de deliberação, para consolidar e assegurar a
dimensão de uma política institucional. (Deliberação aprovada dia 14 de fevereiro de 2014).
Atualmente, o Convive recebe demandas que chegam por meio das Unidades Prisionais, do
preenchimento do formulário inicial (Fundação Casa e Cadeias Públicas ainda em processo de
implantação), da visita de Defensores nas unidades prisionais, pela Divisão de Atendimento aos
Presos Provisórios (DAP), nos atendimentos realizados pelos Defensores nos Centros de Deten-
ção Provisória, das visitas de organizações da sociedade civil (ITTC, Pastoral Carcerária) e cartas
de mulheres presas enviadas para a Defensoria Pública do Estado.
Em geral as medidas adotadas compreendem atuações na área criminal (defesa da mãe), in-
fância e juventude e família. São elas: pedido de prisão domiciliar ou revogação da Prisão Cautelar
(opções para tirar a mulher do ambiente prisional); pedido de Indulto e Comutação (perdão total
ou parcial da(s) pena(s)); pedido de extensão do período de amamentação (LEP - Lei de Execução
Penal - prevê mínimo 6 meses), ou seja, prolongar o período de permanência do bebê com a mãe;
pedido de reaproximação familiar, procurando assegurar um processo gradual de separação da
mãe e do bebê e também para que o bebê se familiarize com quem assumirá sua guarda; garantir
a citação e o acesso às informações processuais, para que a mãe conheça e participe de qualquer
ação judicial que diga respeito a seus filhos; garantia do contraditório e da ampla defesa (no sen-
tido de preservar os direitos da mulher); regularização de guarda (com sensibilização e orientação
aos familiares), sempre priorizando a guarda a família extensa e evitando o acolhimento; desaco-
lhimento, quando este já tiver ocorrido; garantia de visita (principalmente quando estes estiverem
acolhidos); busca de abrigo para as estrangeiras e moradoras de rua (preparando o momento da
soltura); assegurar a prioridade na tramitação dos processos e parceria com a Defensoria Pública
da União para os casos de processos na justiça federal.
Entretanto, ao desenvolvermos este trabalho nos deparamos com inúmeras dificuldades e
desafios. Os mais relevantes dizem respeito a localização da família, pois, por vezes algumas
mulheres não sabem ou têm receio de informar telefones ou endereços, o que nos leva a desen-
volver verdadeiros trabalhos investigativos, envolvendo inúmeras pesquisas, inclusive com ou-
tros órgãos, até conseguirmos encontrar familiares ou conhecidos; dificuldades da família para
realização de visitas, quer sejam, a distância entre a moradia da família e a unidade prisional, que
acarreta viagens cansativas para idosos e crianças, gastos com transporte e hospedagem, além
dos materiais que faltam na unidade e que a família tem que suprir, como roupas, sabonetes,
alimentos, etc.; a revista íntima (vexatória) que constrange os visitantes obrigando-os a exporem
suas partes intimas enquanto realizam, nus, agachamentos e outros procedimentos, inclusive
idosos e bebês; as dificuldades financeiras dos familiares para arcarem com a criação dos filhos
enquanto a mulher permanecer presa, as quais muitas vezes não conseguem trabalho dentro
das unidades prisionais e portanto não podem ajuda-los, pois na maioria dos casos a mulher é a
principal cuidadora, ou a única.
Nestes casos articulamos com as unidades estatais da Política de Assistência Social a fim de
verificar a viabilidade de inscrição em Programas, Benefícios e Serviços que lhes propiciem renda
extra, proteção social e acesso à educação; existem também os SAICAs (Serviço de Acolhimento

CADERNO DE ESTUDOS EDESP 35


Institucional para Crianças e Adolescentes) que não levam os filhos e filhas para visita à mãe
encarcerada, estabelecemos contato com esses serviços e com a unidade prisional para facilitar
os seguintes trâmites: o relacionamento negativo entre a mãe e cuidadores, que é um dos maio-
res desafios, pois depende de um delicado trabalho de reaproximação; a ausência de residência
fixa e dificuldade de vagas fixas em Centros de Acolhida para pessoas em situação de rua, que
também depende de articulação com a rede socioassistencial; a sensibilização da família extensa
para que entenda a importância de evitar o acolhimento institucional; as crianças sem certidão de
nascimento ou com registro incorreto e a obtenção de documentos da criança que já está com
cuidador(a); os processos judiciais que tramitam em segredo de justiça, dificultando nosso aces-
so; a ausência de previsão legal expressa para crianças acima de seis anos e lactantes que deram
à luz antes de serem presas.
Importantíssima é a sensibilização do judiciário quanto à: relevância do vínculo afetivo, na
obtenção de prisão domiciliar (mesmo com existência de legislação expressa); necessidade de
comprovar a imprescindibilidade da mãe para a criança; obtenção de prioridade na tramitação do
processo criminal.
Outros entraves associam-se à burocratização, ao preconceito, à falta de estrutura nas institui-
ções (recursos materiais e humanos), ao agravamento de problemas já existentes com o encarce-
ramento materno e, por fim, ao entendimento da Destituição do Poder Familiar como uma “pena
perpétua” que deve ser evitada ao máximo.
A sociedade em geral clama pela contenção da violência, mas o aprisionamento apenas, sem
ações e práticas concomitantes que garantam o acesso aos direitos sociais e estimulem a cons-
trução de um projeto de vida, apenas aprofunda o problema.
Entendemos que é fundamental tratar o encarceramento como problema social e que já está
na hora de avançarmos no sentido de pensar na atuação da Política de Assistência Social no âm-
bito do sistema prisional.
O Sistema legal que subsidia a atuação da Defensoria é constituído por: LEP (Lei de Execução
Penal); CPP (Código de Processo Penal); Regras de Bangkok, Regras Mínimas da ONU para o Tra-
tamento de Mulheres Presas; Decreto Presidencial nº 8.172, de 14 de dezembro de 2013 (Indulto);
Constituição Federal, no artigo 227; ECA (Estatuto da Criança e do Adolescente); Estatuto da Pri-
meira Infância, Lei 13.257/16 (Marco Legal da Primeira Infância, que trouxe alterações no ECA, no
Código de Processo Penal, na CLT) – (preso provisório); Resolução CNPCP nº 4, de 15/07/2009
(Conselho Nacional de Política Criminal e Penitenciária); Decisão do STF em junho de 2016: Tráfi-
co privilegiado de drogas não é crime hediondo.

Zoraide Caobianco Modenutte é Bacharel em Serviço Social pelo


Complexo Educacional FMU – Faculdades Metropolitanas Unidas. Atua no
Centro de Atendimento Multidisciplinar (CAM) do Núcleo Especializado de
Situação Carcerária da Defensoria Pública do Estado de São Paulo.

36 CADERNO DE ESTUDOS EDESP


REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
CONVIVE – Assessoria Técnica da Política Institucional “Mães em Carcere”
Responsável: Michele Rosa: convive@defensoria.sp.gov.br
Dados Estatísticos - Marilene Alberini: malberine@defensoria.sp.gov.br
DEPEN – Levantamento Nacional de Informações Penitenciárias - INFOPEN Mulheres – junho 2014

CADERNO DE ESTUDOS EDESP 37


Enfrentamento
do Abuso e
da Exploração
Sexual de
Crianças e
Adolescentes e as
Mídias Sociais
ATENDIMENTO PSICOSSOCIAL
DE CRIANÇAS, ADOLESCENTES
E SUAS FAMÍLIAS VÍTIMAS
DE CRIMES CIBERNÉTICOS:
EFEITOS PSICOSSOCIAIS
Por Dalka Chaves de Almeida Ferrari

A
Internet para as crianças, que hoje podem ter acesso a ela, é um coadjuvante das tare-
fas escolares e da diversão. Representa uma mídia fácil e anônima para a distribuição
de pornografia infantil, aliciamento de crianças, enfim, um campo aberto para pedófilos
trocarem, comercializarem imagens de crianças, bem como compartilharem entre si até
a compra e venda de crianças (Sanderson, 2005).

E o que entendemos por pedofilia?

Pedofilia significa distúrbio de conduta sexual, com desejo compulsivo de um adulto por crian-
ças ou adolescentes, podendo ter característica homossexual ou heterossexual.
Em geral, adultos pedófilos foram filhos fetichizados por uma mãe que exaltava a sua infância
e da qual eles não puderam se desligar. Esse ponto de vista é comprovado por vários pesquisado-
res do mundo todo.
Para os pedófilos, compartilhar uma comunidade “virtual” tira-os do isolamento e da estigma-
tização. Legitima suas predileções e alimenta a racionalização de que é aceitável abusar sexual-
mente de crianças.

CARACTERÍSTICAS E EFEITOS DO CRIME CIBERNÉTICO


Podemos falar de Crime Cibernético ou abuso-online quando o indivíduo faz uso da Internet
para estabelecer contato, envolver, assediar e aliciar a vítima criança ou adolescente, desenca-
deando mudanças abruptas no comportamento das possíveis vítimas.
Dentre essas mudanças abruptas, surgem efeitos psicossociais específicos, tais como sen-

CADERNO DE ESTUDOS EDESP 39


timentos de vergonha, humilhação, repulsa, ódio, desrespeito por si mesma, timidez, culpa cons-
trangimento, medo, ansiedade, confusão, falta de poder, impotência, dúvida sobre si mesma, fal-
ta de confiança e de iniciativa, inferioridade, autodesvalorização, inadequação, raiva, hostilidade,
“congelamento”, transtorno obsessivo compulsivo (TOC). Todos esses efeitos são conhecidos por
efeitos emocionais que ocorrem no plano individual.
Outros efeitos psicossociais específicos podem surgir no plano da interação, e são denomi-
nados por efeitos interpessoais, tais como: medo da intimidade, evitando proximidade abraço/
afago/carícia com os outros ou a erotização da proximidade, ódio, hostilidade, que podem gerar
falta de confiança em si mesma e nos outros, podendo desencadear atitudes de cautela, solidão,
isolamento, alienação, com a redução das habilidades de comunicação, gerando atitudes de ini-
bição, falta de espontaneidade, de iniciativa com confusão de papéis – criança/pseudo-adulto ou
mostrando-se super dócil, super sensível às necessidades e atitudes dos outros ou com autossu-
ficiência, hostilidade e agressividade com os outros.
Podem surgir também efeitos psicossociais específicos no plano comportamental que são
denominados por efeitos comportamentais, tais como: brincadeira sexualizada, temas sexuais
em desenhos, histórias e jogos. Comportamentos regressivos: xixi na cama, chupar o dedo,
dependência. Distúrbios de conduta: por fogo em objetos, ataques histéricos. Mudanças nos pa-
drões de sono e alimentação. Comportamentos perigosos: fugir/lutar/acidentes ou autodestru-
tivos como machucar a si mesmo, tentativas de suicídio. Passar a receber presentes e dinheiro
sem explicação ou motivo, ou adotar comportamentos com promiscuidade.
É muito frequente o aparecimento de alterações na área cognitiva, que geram efeitos psi-
cossociais específicos denominados de sintomas cognitivos, tais como: baixa concentração e
atenção, dissociação, transtornos de memória, negação, podendo gerar refúgio na fantasia, sub
ou superaproveitamento na escola, sintomas de hipervigilância, distorções cognitivas.
Igualmente, podem ocorrer efeitos psicossociais específicos no plano físico, que são co-
nhecidos por efeitos físicos, os quais podem necessitar de atendimento de saúde de urgência,
tais como: hematomas e sangramento, traumas físicos nas regiões oral, genital e retal, traumas
físicos nos seios, nádegas, coxas e baixo ventre; danos visíveis pela introdução de objetos estra-
nhos nos orifícios genital, retal e uretral; coceira, inflamação e infecção nas áreas genital e retal;
dores e doenças psicossomáticas; presença de sêmen; odores estranhos na área vaginal; doen-
ças sexualmente transmissíveis; gravidez; desconforto em relação ao corpo; distúrbios de sono:
pesadelos e sonambulismo.
Dentre os efeitos psicossociais específicos, ocorrem também aqueles no plano da sexuali-
dade gerando efeitos sexuais, tais como: comportamentos sexuais inadequados e persistentes
com adultos/crianças ou brinquedos; temas sexuais nos trabalhos, em histórias ou em jogos;
masturbação compulsiva/ exibicionismo; medo de sexo; promiscuidade; Exploração sexual de
crianças e adolescentes (ESCA); problemas menstruais; gravidez na adolescência.

40 CADERNO DE ESTUDOS EDESP


ATENDIMENTO DE CRIANÇAS E ADOLESCENTES VÍTIMAS
DE CRIMES CIBERNÉTICOS SEGUNDO METODOLOGIA
DE ATENDIMENTO EXECUTADA E PROPOSTA PELO CNRVV
Desde o início de seus projetos de intervenção social, o Centro Nacional de Referência às Víti-
mas de Violência (CNRVV) veio testando, pesquisando, experimentando metodologias de atendi-
mento que mais se adequavam a essas diferentes demandas sociais. Essa implantação de mode-
lo de metodologia ocorreu, pela primeira vez, quando da participação do CNRVV no Programa Bem
Me Quer – representando a Secretaria Estadual de Assistência e Desenvolvimento Social (SEADS,
2001), junto à Secretaria Estadual de Saúde, o Hospital Pérola Bygthon, a Secretaria de Segurança
e as Delegacias de Defesa da Mulher (DDM).
Foi uma parceria interdisciplinar bastante proveitosa. Ao CNRVV, por meio de suas profissio-
nais assistentes sociais e/ou psicólogas coube fazer o acolhimento da vítima de violência sexual
e seus familiares que iam das Delegacias de Defesa da Mulher - DDMs do município de São Paulo
ao Hospital Perola Bygthon, em viatura especial (semelhante a uma pequena ambulância). Esta
viatura era dirigida por motoristas da Secretaria de Segurança Pública. Esse primeiro acolhimento,
das DDMs ao Hospital, bem como durante a espera para ser atendida no Hospital, era o momento
em que ocorria o Acolhimento, ou seja, o atendimento, pela Intervenção Psicossocial na crise.
Na medida em que o caso entrava para os atendimentos médico-legais, social, médico clínico,
psicológico e jurídico, o caso passava a ser atendido pela modalidade do Atendimento Integrado.

INTERVENÇÃO PSICOSSOCIAL NA CRISE


A violência sexual, decorrente do abuso online, dos crimes cibernéticos, funciona como uma
invasão no corpo e na mente da vítima, representando para ela a perda de suas fronteiras, limites
e do seu espaço individual.
Daí a importância do ACOLHIMENTO de casos com esta síndrome, quando o profissional acei-
ta e acolhe quaisquer emoções. Essa atitude favorece para a vítima a diminuição do seu grau de
excitação e ansiedade intensas (tais como, choque, desmaios, agitação e conversões).
Nesta etapa, observa-se o comportamento e a comunicação de crianças e adolescentes (como
por exemplo: negação, medos, tranquilidade, silêncio) bem como de seus familiares (brigas entre
casais, choro, raiva, impotência, culpa, silêncio e negação do abuso).

Invasão do corpo e mente, perda


Violência Sexual
das fronteiras e do espaço individual

Ambiente e Resgate da privacidade, senso de


profissionais "acolhedores" integridade e confiança

Vítima / paciente / passiva Agente / ativa / sujeitujo

CADERNO DE ESTUDOS EDESP 41


ATENDIMENTO INTEGRADO
Essa modalidade de atendimento favorece a integração de diferentes saberes para análise do
fenômeno da violência sexual contra crianças e adolescentes que vai seguir um fluxo de atendi-
mento. A partir de uma procura espontânea, o caso inicialmente é atendido pelo setor policial, nas
Delegacias de Polícia ou nas Delegacias de Defesa da Mulher que realizam o Boletim Ocorrência
(BO) e fazem a requisição do exame de corpo delito, que será realizado no IML, Instituto Médico-
-Legal, passando por uma perícia, e, em seguida para o Pronto Socorro do Serviço de Saúde, que
remete o caso para o Tratamento Médico Ambulatorial, se necessário; a partir daí segue para o
Atendimento Psicológico e Serviço Social para ser avaliado e receber orientação ; em seguida, o
caso vai para o setor jurídico – para Defensoria Pública, encaminhado para Varas, seja, da Infância
e Juventude, ou da Família ou Vara Criminal, bem como para o Conselho Tutelar.

Procura espontânea

DDP/DDM: B.O., requisição de exame de corpo de delito

IML: Perícia

Sistema de saúde

PS: Atendimento

Ambulatório: Tratamento Serviço social: Avaliação


médico, e psicológico social, orientação

Justiça: Defensoria Conselho


pública, VIJ, VF, tutelar
V. Criminal

42 CADERNO DE ESTUDOS EDESP


POR QUE A INTEGRAÇÃO É TERAPÊUTICA?
Desta forma, proporciona-se a atenção à concepção multicausal do fenômeno; promovendo
capacitação sobre o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), Código Penal, medicina legal e
abordagem clínica e psicossocial para evitar revitimizações.

ATENDIMENTO PSICOSSOCIAL
Após a ocorrência de uma situação de abuso online ou crime cibernético, a vítima é encami-
nhada para atendimento psicossocial. Esse atendimento deve ser especializado, executado por
profissionais capacitados, oferecendo atendimento em rede, garantindo os direitos das crianças
e dos adolescentes como sujeitos em condição peculiar de desenvolvimento, por meio de ativi-
dades e ações psico-socioeducativas, de apoio e especializadas, na modalidade Individual ou
em pequenos grupos, de caráter disciplinar e interdisciplinar, de cunho terapêutico, com níveis de
verticalização e planejamento (início, meio e fim), elaborando um Plano de atendimento, segundo
modelo do Centro de Referência Técnica em Psicologia e Políticas Públicas (Crepop).
Tanto o Atendimento Individual quanto Grupal da Vítima têm como objetivo trabalhar privaci-
dade e segredo, o sofrimento psicológico, autonomia e individuação. O Atendimento do Agressor
tem como objetivo: trabalhar as questões ligadas à síndrome da adição . Pode-se oferecer tam-
bém Atendimentos Psicossociais para Família, Cônjuges e Grupos de Orientação de Pais. A abor-
dagem com a FAMÍLIA tem como objetivo trabalhar as relações do casal ou entre os membros e
a violência como reguladora ou evitadora de conflitos. A concomitância dos diferentes modos de
terapia cria um espaço para transformar o segredo em privacidade. (Furniss, 1993)
Os relacionamentos saudáveis na vida adulta implicam em transformar o segredo à privacida-
de; nomear o abuso como realidade (romper o segredo) reavaliação da experiência, da confusão,
dos sentimentos, das fantasias. Casos muito graves são encaminhados, na rede, para a área da
saúde, a fim de realizarem Psicoterapia.

CONSIDERAÇÕES FINAIS
O abuso sexual online cometido por alguém de fora da família, ou na modalidade intrafamiliar,
deixa a criança numa sensação de total desamparo. O adulto que deveria ser sinônimo de prote-
ção se torna fonte de perturbação e ameaça. A criança sente que não tem com quem contar, não
pode comentar o fato e ainda é mobilizada, pela complexidade da relação, a sentir-se culpada. O
silêncio, portanto, pode estar associado ao sentimento de culpa, às ameaças feitas, ao vínculo
estabelecido na relação.
Já o autor da violência sexual nega o impacto moral e psicológico dessa violência, distorce a
experiência da vítima, desvaloriza ou desumaniza-a, o nível do dano, chegando a culpa-la, como
forma de negar a sua responsabilidade, o que lhe favorece continuar abusando. Por abusadores,
autores da violência sexual incluem-se tanto aqueles que são homens, mulheres e adolescentes
e/ou crianças. Um dado novo que se agrega, diz respeito aos abusos sexuais praticados por crian-

CADERNO DE ESTUDOS EDESP 43


ças e adolescentes – que vem aumentando ao longo dos últimos dez anos.
Mobilização da sociedade civil, das ONGs nacionais e internacionais, e de movimentos reivindi-
catórios estabeleceu-se junto aos órgãos públicos. Como consequência, o tema da violência sexual
contra crianças e adolescentes passou a ocupar, espaços na mídia, no parlamento, nos fóruns de
discussão e debates a respeito. Apesar do esforço de vários profissionais, representantes da socie-
dade civil e dos representantes do governo, sabe-se que o enfrentamento dos problemas da violên-
cia e da exploração sexual de crianças/adolescentes no Brasil, necessariamente exige a implemen-
tação de um amplo leque de ações previstas em âmbito nacional e regional para a real implantação
da doutrina de proteção integral preconizada pelo Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA).
O que vem sendo realizado no Brasil ainda é insuficiente para eliminar essa bárbara forma
de violência.
Essa responsabilidade da proteção cabe não apenas aos pais, mas a todos os adultos da co-
munidade. Para garantir a segurança de todas as crianças é essencial mudar da reação para a
prevenção, por meio de formação de redes de proteção e campanhas de saúde pública, sócio edu-
cacional, apoiadas pelo sistema de garantia de direitos. Proteger crianças é uma responsabilidade
de todos os adultos e, como tal, da comunidade na qual vivem.
Todavia, o atendimento ao autor da violência e do abuso sexual também é fundamental. Várias
propostas de metodologias para este atendimento vêm sendo apresentadas, a Justiça Restaurativa é
uma delas. As colocações aqui apresentadas estão em aberto para discussões, acréscimos,sugestões.
Só quando toda comunidade estiver esclarecida e envolvida na proteção de crianças é que será
transmitida uma mensagem clara e unificada de que a SOCIEDADE NÃO TOLERARÁ A VIOLÊNCIA,
O ABUSO E A EXPLORAÇÃO SEXUAL DE CRIANÇAS e ADOLESCENTES.

Dalka Chaves de Almeida Ferrari é Psicóloga pela PUC-SP. Especia-


lista em Violência Contra Criança e Adolescente pelo Lacri/IPUSP. Coordena-
dora geral do Centro Nacional de Referência às Vítimas de Violência (CNRVV).
Membro da diretoria do Instituto Sedes Sapientiae.

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ras Editora: Lacri, 3ª Edição, SP, 2004.

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AZEVEDO, M.A.; GUERRA, V.A. Pele de Asno Não é só História... Um estudo sobre a vitimização
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44 CADERNO DE ESTUDOS EDESP


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CNRVV – Centro Nacional de Referência às Vítimas de Violência – Relatório Anual 2010. Insti-
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CNRVV/Bem Me Quer. Programa de Atendimento Integrado, em parceria com a SEADS - Secre-


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CADERNO DE ESTUDOS EDESP 45


ATUAÇÃO DO MINISTÉRIO PÚBICO
FEDERAL NA PREVENÇÃO E NO
COMBATE AOS CRIMES CIBERNÉTICOS
DE PORNOGRAFIA INFANTIL
Por Fernanda Teixeira Souza Domingos

A
internet é uma ferramenta tecnológica que veio revolucionar nossa realidade. Não só
aproximou as pessoas, ao facilitar a comunicação entre elas de modo antes inimaginável,
como alterou a nossa percepção do mundo.
Essa rede global que conecta pessoas – e não apenas máquinas – foi originalmente
concebida com fins bélicos. Na década de 60, no auge da Guerra Fria, os militares americanos precisa-
vam de um meio rápido e seguro para permitir a comunicação e o compartilhamento de informações
sigilosas com o fim de descentralizá-las, evitando sua perda diante de um possível ataque a suas ba-
ses militares. Foi criada então a Advanced Research Projects Agency (Arpanet), mas, paralelamente,
professores e estudantes universitários também pesquisavam um meio de facilitar a troca de infor-
mações. Junte-se a isso o interesse das empresas de tecnologia e o potencial para o comércio que
uma rede de troca de informações propicia e estava criada a internet, atualmente com muito mais de 1
bilhão de usuários no planeta. As possibilidades oferecidas são inúmeras e não param de surgir.
A princípio o e-mail, troca de mensagem escrita, foi uma revolução, seguida pela possibilidade
de comunicação por voz, por imagem, e ainda as mensagens instantâneas que vieram reduzir ainda
mais o intervalo para comunicação entre os usuários da rede, tornando impensável à nossa socie-
dade existir sem essas facilidades.
Ferramentas de busca tornaram o conhecimento à disposição com um clique. Redes sociais são
a forma atual de encontrar pessoas e seus grupos de interesse, fazendo nascer novos modelos de
negócio e diferentes maneiras de organização social, desde propiciar o namoro virtual entre pessoas
que nunca se viram até ser o instrumento de organização de passeatas e movimentos sociais que
chacoalham as sociedades.
Esse turbilhão de informações e facilidade imediata e irrestrita de comunicação, ao passo que
representou um grande avanço nas relações sociais, trouxe, também, a possibilidade de interação
entre pessoas predispostas ao ilícito e o acesso à vítima incauta.
No âmbito dos crimes cometidos por meio da internet, o Ministério Público Federal (MPF) tem atri-
buição diante de crimes da competência da Justiça Federal, hipóteses descritas no artigo 109, incisos

46 CADERNO DE ESTUDOS EDESP


IV e V da Constituição Federal, quais sejam aqueles praticados em detrimento de bens, serviços ou
interesses da União, e dos crimes previstos em tratado ou convenção internacional, quando iniciada
a execução no Brasil, o resultado ocorra ou devesse ter ocorrido no estrangeiro, ou reciprocamente.
Em meio a essas hipóteses, os crimes dos artigos 241-A, 241-B, 241-C e 241-D, previstos no Es-
tatuto da Criança e do Adolescente (ECA), Lei nº 8.069, de 13 de julho de 1990, incluem-se dentre os
passíveis de ser cometidos por meio da internet ou envolverem meios digitais. Portanto, são objeto
de atenção e de atuação do Ministério Público Federal (MPF), uma vez que o Governo brasileiro rati-
ficou a Convenção sobre os Direitos da Criança, comprometendo-se a tomar medidas para impedir
todo o tipo de exploração da criança e, especificamente no seu artigo 34, a exploração sexual.
A troca, disponibilização ou publicação de imagens e vídeos contendo cenas de exploração se-
xual de crianças e adolescentes – já que a Convenção sobre os Direitos da Criança protege os me-
nores de 18 anos – por meio de sistema de informática ou telemático é um dos crimes que foram
viabilizados com o advento da internet.
Se por um lado a rede mundial de computadores deu visibilidade ao crime de abuso e explora-
ção sexual real, pois este é que fornece o material para as imagens difundidas, por outro alimentou
o seu crescimento, pois o uso da tecnologia permitiu que indivíduos com esse interesse perverso
pudessem se encontrar no ambiente virtual, a despeito de distâncias físicas, e fomentar essa ativi-
dade odiosa, inclusive com a criação de redes comerciais para a venda dessas imagens. Além disso,
grande quantidade de material de abuso sexual de crianças e adolescentes, num primeiro momento
de popularização na internet, era trocada e disponibilizada sem qualquer filtro na rede aberta, incen-
tivando inclusive a naturalização dessas condutas, para que as pessoas a vissem como normais.
O Ministério Público Federal (MPF) teve atuação decisiva durante a Comissão Parlamentar de In-
quérito (CPI) da Pedofilia em 2008, que culminou com a assinatura de Termo de Ajustamento de Con-
duta com a Google Brasil Internet Ltda., prevendo uma série de medidas para impedir a livre divulgação
de imagens de exploração sexual de crianças e adolescentes no serviço ORKUT de rede social, um dos
mais populares no país naquela época, bem como medidas que se anteciparam às previstas no Marco
Civil da Internet que pudessem assegurar a eficácia da investigação penal desses casos. Da CPI tam-
bém resultou alteração legislativa do Estatuto da Criança e do Adolescente, criando novos tipos penais
e endurecendo as penas de abuso e exploração sexual de crianças e adolescentes.
Desde então, as empresas provedoras de aplicações de internet têm colaborado para limpar a
rede dessas imagens e vídeos. A maior parte das empresas brasileiras de aplicações de internet pos-
suem termos de acordo com o MPF para retirar e remeter a esse órgão imagens e vídeos de abuso
sexual, bem como conversas online que possam indicar a ocorrência do aliciamento de criança com
fins sexuais, o crime do artigo 241-D do ECA, já que a lei brasileira não tem um comando de busca
ativa desse material ilícito e somente responsabiliza os representantes legais dessas empresas por
não retirada desse conteúdo ilegal após notificação oficial.
As empresas de aplicações de internet com escritórios ou filiais no Brasil que têm sua sede nos
Estados Unidos da América, em cumprimento à lei estadunidense a qual estão sujeitas as empresas
lá sediadas, desenvolveram ferramentas aptas a retirar todo o material de abuso e exploração sexual
de suas plataformas e o enviam ao National Center for Missing and Exploited Children (NCMEC), um
centro nacional mantido com verbas governamentais e do setor privado que recebe essas imagens,
compara com o seu banco de imagens, agrega todas as informações disponíveis em fontes abertas

CADERNO DE ESTUDOS EDESP 47


e as envia para as agências de investigação com atribuição para cada caso. As imagens com origem
no Brasil são disponibilizadas às autoridades brasileiras. Esse é um modelo interessante, e o Brasil
andaria bem se o implementasse, já que não possui um banco de dados único com informação
sobre crianças, adolescentes ou adultos desaparecidos, dificultando sobremaneira a investigação
desses casos. Ressalte-se que uma parte significativa de crianças e adolescentes desaparecidos
são vítimas de abuso e exploração sexual.
Um centro como esse, que compila imagens e informações sobre crianças e adolescentes em
situação de abuso também serve ao resgate dessas vítimas que sofrem, muitas vezes, dentro do
próprio lar. As imagens e vídeos divulgados por meio da internet com o objetivo de oferta, troca, dis-
ponibilização, transmissão, distribuição, publicação ou divulgação, além de representarem o próprio
crime cibernético também consistem em prova do abuso ou exploração sexual reais.
Atualmente, essa circulação de imagens e vídeos ilícitos migrou para a Deepweb, a parte não in-
dexada da internet, onde a navegação depende de conhecer exatamente o endereço que se pretende
acessar. Mesmo nesse ambiente onde a identificação do endereços de IP, Internet Protocol, é dificul-
tada pela utilização de proxies, computadores que servem de passagem mascarando a origem das
mensagens, os órgãos de persecução penal brasileiros tiveram êxito em investigação pioneira nesse
ambiente virtual, tendo sido deflagradas as operações Darknet I e II para investigação e processa-
mento dos crimes de divulgação de imagens e vídeos de abuso e exploração sexual na internet, com
o resgate de vítimas reais de abuso durante as operações.
Nesse contexto, o MPF percebeu que, infelizmente, o número desses delitos é enorme, havendo
inúmeras dificuldades a serem transpostas para resultar em investigação e condenações exitosas,
que venham a servir de desestímulo a prática desses delitos, os quais destroem a infância e juven-
tude de inúmeras crianças e adolescentes, comprometendo a construção de uma sociedade sadia.
A prevenção desses delitos é também, portanto, uma das vertentes de atuação do MPF, para
que, com educação e conscientização acerca dos riscos que a internet pode apresentar, as crianças
e os jovens possam estar melhor preparados para se defender. Uma vez que a internet dá a falsa
sensação de segurança, há uma tendência maior à exposição da intimidade nesse ambiente virtual
e uma predisposição a confiar em “amigos” virtuais com os quais se constroem relações, que dão
a errônea impressão de serem sólidas e reais, propiciando que crianças e adolescentes terminem
como vítimas nas mãos de predadores sexuais.
Para tanto, foi firmado um Termo de Cooperação do MPF com a Safernet Brasil, principal hotline
brasileiro para a utilização segura da internet e com o Comitê Gestor da Internet (CGI) no Brasil,
órgão responsável por gerir a internet no nosso País, com a finalidade de viabilizar o Projeto Minis-
tério Público pela Educação Digital nas Escolas, que consiste em capacitar professores das redes
de ensino público e privado no Brasil por meio da Oficina “Segurança, ética e cidadania na Internet:
educando para boas escolhas online”, para que abordem com seus alunos de forma transversal
as matérias do currículo como navegar com segurança na internet, não expondo sua intimidade e
também não se transformando em agressor, já que o meio virtual elide da percepção do usuário o
impacto que suas ações possuem.
As oficinas de prevenção têm o propósito de que educadores possam atuar como vetores de
conscientização de crianças e jovens, a fim de que aprendam a utilizar a internet de forma construti-
va, sabendo se proteger para não se tornarem vítimas. No mesmo sentido, alertando-os de que a di-

48 CADERNO DE ESTUDOS EDESP


vulgação dessas imagens e vídeos com conteúdo de abuso e exploração sexual é crime, consistindo
em ato infracional se o autor das condutas for adolescente, sujeitando-o a medidas socioeducativas.
Permitir que tirem fotografias íntimas ou a própria criança fazer essas fotografias ou vídeos e
transmiti-las a outros; fazer tais imagens com o próprio aparelho celular e deixá-lo facilmente ao
alcance de terceiros; expor a intimidade pela webcam para pretensos amigos. Essas são condutas
que podem levar a criança ou o adolescente a passar a ser vítima de chantagem de criminosos ines-
crupulosos, que obtêm mais fotos íntimas ou favores sexuais perante o medo que lhes é impingido.
Além disso, uma vez que tais imagens são divulgadas na internet, a sua retirada definitiva do ar é
uma tarefa quase impossível, pois embora tal conteúdo possa ser removido, nada impede que ele
possa ser reinserido na web a partir de novo upload de alguém que guardou esse material consigo.
Em suma, o MPF está atento e empenhado em proteger crianças e adolescentes do abuso e
exploração sexual online que, inclusive, propicia o resgate das vítimas do abuso real, mas também
se volta para a importância de crianças e adolescentes saberem se proteger no ambiente virtual,
resguardando sua intimidade e respeitando a do outro, para que não divulguem ou propaguem con-
teúdo ilícito, sendo essa tarefa uma responsabilidade compartilhada por toda a sociedade na edu-
cação de seus jovens.

Fernanda Teixeira Souza Domingos é procuradora da República em


São Paulo, bacharel em Direito pela Universidade de São Paulo, especialista em
direitos difusos e coletivos pela Escola Superior do Ministério Público do Estado
de São Paulo, coordenadora do grupo de combate aos crimes cibernéticos da
Procuradoria da República em São Paulo, membro do grupo de trabalho nacio-
nal de combate aos crimes cibernéticos do Ministério Público Federal (MPF).

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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unicef.org/brazil/pt/resources_10120.htm>. Ratificada pelo Brasil e promulgada pelo Decreto nº
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criada na Guerra Fria que deu início à Terceira Revolução Industrial. in História Viva, Universo
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<http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/L8069.htm>. Acesso em: 15 de dezembro. 2016.

CADERNO DE ESTUDOS EDESP 49


LAZZERI, Thaís. Procura por desaparecidos trava por falta de cadastro e legislação específica. In Fo-
lha de São Paulo, 11.12.2016. Disponível em: <http://www1.folha.uol.com.br/cotidiano/2016/12/
1840328-procura-por-desaparecidos-trava-por-falta-de-cadastro-e-legislacao-especifica.shtml>.
Acesso em: 15 de dezembro. 2016.

NCMEC – National Center for missing and Exploited Children. Disponível em:
<http://www.missingkids.com/home>. Acesso em: 15 de dezembro. 2016

POZZEBOM, Elina Rodrigues. CPI da Pedofilia abre debate sobre o tema e inicia esforço legislati-
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mpf.mp.br/projetos-finalisticos/educacao-digital-nas-escolas/o-que-e-o-projeto/>. Acesso em: 1
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<http://pfdc.pgr.mpf.mp.br/atuacao-e-conteudos-de-apoio/atuacao-e-conteudos-de-apoio/publica-
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Disponível em: <http://www.safernet.org.br/site/prevencao/cartilha/safer-dicas/internet> e
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em: <http://pfdc.pgr.mpf.mp.br/temas-de-atuacao/crianca-e-adolescente/abuso-exploracao-se-
xual/atas-oficios-docs/termos-de-ajustamento-de-conduta/tac_google_pedofilia_crimes_ciberne-
ticos>. Acesso em: 15 de dezembro. 2016.

50 CADERNO DE ESTUDOS EDESP


EXPERIÊNCIA DO MUNICÍPIO
DE SÃO PAULO NO ENFRENTAMENTO
DO ABUSO E DA EXPLORAÇÃO
SEXUAL DE CRIANÇAS
E ADOLESCENTES
Por Francilene Gomes Fernandes

A
presentar a experiência do município de São Paulo na ação formativa “Série Dialo-
gando 2016” foi uma grande oportunidade de publicizar a riqueza das ações que são
encampadas pelo município de São Paulo, fomentadas e articuladas pela “Comissão
Municipal de Enfrentamento à Violência, Abuso e Exploração Sexual contra Crianças e
Adolescentes” (CMESCA), sob a coordenação da Secretaria Municipal de Assistência e Desen-
volvimento Social (SMADS).
A Comissão foi instituída pelo Decreto nº 48.358, de 17/05/2007, o qual regulamentou a Lei nº
14.247/2006, que dispunha sobre o “Programa Municipal de Conscientização e Combate à Violên-
cia contra Crianças e Adolescentes”.
O “Plano Municipal de Enfrentamento à Violência, Abuso e Exploração Sexual contra Crianças
e Adolescentes da Cidade de São Paulo” pautou-se em discussões que antecederam a constitui-
ção da Comissão. O Plano é um marco para o enfrentamento da violência, abuso e da exploração
contra nossas crianças e adolescentes, pois, até então, na maior metrópole da América Latina, no-
tória por ser um centro de turismo de negócios e de oportunidades, não havia uma estratégia para
prevenir e combater, de forma integrada e intersetorial, este fenômeno complexo e multifacetado.
O Plano Municipal estrutura-se em oito eixos temáticos: Análise da Situação; Formação e Ca-
pacitação; Mobilização e Articulação; Defesa e Responsabilização; Atendimento; Prevenção; Pro-
tagonismo Infanto-Juvenil e Avaliação e Monitoramento.
Durante os últimos anos, temos enfrentado muitos desafios para a materialização do Plano,
os quais ficam evidentes nos dados de atendimento dos Serviços de Proteção a Crianças e Ado-
lescentes Vítimas de Violência (SPVV’s) da rede socioassistencial, sobretudo no que se refere ao
crescimento dos casos de abuso sexual e à diminuição da faixa etária, tendo aumentado significa-
tivamente o número de crianças cada vez mais novas vítimas de abuso sexual atendidas na rede
municipal de proteção.

CADERNO DE ESTUDOS EDESP 51


Distribuição Percentual de Média de Atendimento por tipo de agressão,
no Serviço de Proteção Social às Crianças e Adolescentes Vítimas
de Violência, de janeiro de 2014 a maio de 2016, no município de São Paulo

Distribuição Média das Pessoas Atendidas no Serviço de Proteção Social


às Crianças e Adolescentes Vítimas de Violência, por gênero e faixa etária,
de janeiro de 2014 a maio de 2016, no município de São Paulo

52 CADERNO DE ESTUDOS EDESP


Em que pese os desafios acima expostos, entendemos que há muitas possibilidades, entre estas, a
implementação e a expansão da nossa rede de atendimentos às vítimas de abuso e exploração sexual.
A Política de Assistência Social, que se pauta na perspectiva de defesa de direitos humanos e política de
proteção, conta hoje com uma rede de 22 Serviços de Proteção às Vítimas de Violência (SPVV), a saber:

REGIÃO SUL REGIÃO LESTE


SPVV Vila Mariana SPVV Aricanduva
SPVV Cidade Ademar SPVV Itaquera
SPVV Capela do Socorro SPVV São Mateus
SPVV Campo Limpo SPVV São Miguel Pta.
SPVV Jd. São Luiz SPVV Guaianazes
SPVV Jd. Angela SPVV Sapopemba
SPVV Santo Amaro SPVV Vila Prudente
SPVV Ipiranga SPVV Penha

REGIÃO NORTE REGIÃO CENTRO-OESTE


SPVV Freguesia do Ó SPVV Butantã
SPVV Jaçanã/Tremembé SPVV Lapa
SPVV Casa Verde SPVV Sé

IMPLANTAR 2017
SPVV Parelheiros
SPVV Cidade Tiradentes

Os SPVVs distribuídos em 21 Supervisões de Assistência Social (SAS), a partir da ampliação


realizada nos últimos quatro anos, visou a garantir a expansão de serviços de atendimento às
crianças e aos adolescentes em situação de violência sexual e exploração sexual, bem como aos
expostos aos demais tipos de violência, nos territórios nos quais ainda não há essa cobertura.
É relevante destacar que, no campo das possibilidades de concretude do Plano, ações de mobi-
lização e formação são executadas pela Comissão Municipal de Enfrentamento à Violência, Abu-
so e Exploração Sexual contra Crianças e Adolescentes (CMESCA) todos os anos. Em 2016, reali-
zou-se o Grito do Carnaval, no dia 02/02/2016. Contamos com o apoio do Conselho Municipal dos
Direitos das Crianças e dos Adolescentes (CMDCA) nas ações do Carnaval; demos visibilidade do
evento na mídia televisiva; tivemos maior participação de representantes de serviços conveniados
à Secretaria Municipal de Assistência e Desenvolvimento Social (SMADS) e de outras secretarias
na organização do evento; presença de crianças e adolescentes com seus familiares. Para o ano
de 2017, pretendemos confeccionar uma Arte própria para a cidade de São Paulo e articular ações
com os Blocos de Rua para divulgação da campanha contra a exploração sexual.
Realizamos, ainda em 2016, a ação do 18 de Maio1, no Parque Ibirapuera. Nesse ano, identi-

1
Dia Nacional de Combate à Exploração Sexual de Crianças e Adolescentes. Tem como objetivo mobilizar a sociedade brasileira e convocá-la
para o engajamento pelos direitos de crianças e adolescentes e na luta contra a violência sexual.

CADERNO DE ESTUDOS EDESP 53


ficamos uma maior presença de adultos (pais e responsáveis pelas crianças e adolescentes). A
metodologia utilizada nessa ação foi inovadora por contar com a presença de adolescentes no
processo de planejamento e execução. Foram realizadas 12 oficinas, cada qual com um nome
relacionado ao tema do evento para não descaracterizar sua finalidade: Assédio Feminino; Mas-
culinidade; Gravidez na Adolescência; Afetividade/Sexualidade; Diversidade Sexual; Prevenção
a DSTs/Aids / Tratamento; Top 10, Internet e Redes Sociais; Uso de Drogas, Lança Perfume,
Vinho Químico e Abuso Sexual Intrafamiliar. As respectivas metodologias foram construídas pe-
las crianças e adolescentes que integraram um Grupo de Trabalho dos serviços e coletivos: SPVV
Butantã; Rede de Enfrentamento Sul; CCA Reconciliação, Cedesp São Matheus, Rede de Enfren-
tamento de São Matheus e Proteção Especial. Foram disponibilizadas camisetas, mochilinhas,
bloquinhos de colorir, folders e cartazes. Contamos com cerca de 1.100 participantes, de diversas
regiões da cidade, numa proposta inovadora que primou pelo protagonismo infanto-juvenil.
Nesta atividade inovadora da Comissão Municipal de Enfrentamento do Abuso e da Explora-
ção Sexual (CMESCA), contamos com a oficina Top10, Internet e Rede Social. O tema foi eleito
pelos adolescentes envolvidos na organização da ação, os quais expuseram a violência sexual
que têm sofrido, especialmente, nos ranqueamentos feitos no WhatsApp. Esses tipos de mensa-
gens estigmatizam, sobretudo, as meninas, calcando-se em machismo e misoginia, mediante o
envio de vídeos com conteúdo sexual e vexatório, que viralizam nas redes e culminam em grande
sofrimento às vítimas. Muitos desses adolescentes relataram situações ocorridas, casos que in-
clusive culminaram em suicídios, diante do sofrimento vivido.
Em continuidade às ações de mobilização e formação, a CMESCA organizou em 2016 uma
Formação para Educadores da Secretaria Municipal de Educação (SME), tendo como público pro-
fessores titulares de Ensino Fundamental II e Médio em regência de turmas na Rede Municipal de
Ensino; coordenador de educação de Centro Educacional Unificado (CEU), professor orientador de
sala de leitura, professor orientador de Informática educativa, professor orientador de educação.
Tivemos como objetivo fornecer subsídios acerca do fenômeno da violência doméstica, do abuso
e da exploração sexual, bem como pautar as abordagens relacionadas ao tema, as formas de
identificação, os fluxos de encaminhamento e a notificação. Considerando o segmento de alunos
(as) envolvidos (as) nesta formação, a temática da internet e mídia foi pautada nos momentos
de formação teórica. Realizamos, também, seminários e oficinas ministrados por facilitadores/
trabalhadores dos SPVVs.
Os autores Azevedo e Guerra (2015, p. 312) consideram que “(...) profissionais, sensibilizados
com a questão, poderiam também introduzir um novo reordenamento de ideias sobre o fenômeno
em seu próprio espaço institucional (...) estaríamos partindo para trilhar novos caminhos que aju-
dassem crianças e adolescentes vítimas e seus familiares”.
Em continuidade às ações formativas promovidas, no dia 23 de julho de 2016 realizamos o semi-
nário “A Escola na rede de proteção”, no qual Maria Inês Rondello, do Serviço de Proteção a Crianças
e Adolescentes Vítimas de Violência (SPVV) - Quixote, e Luciana Sanches, da Associação de Pais e
Amigos dos Excepcionais (APAE), abordaram a discussão sobre sinais e sintomas de crianças e ado-
lescentes em situação de violência, bem como as especificidades da criança e do adolescente. E o
Dr. Eduardo Dias de Souza Ferreira, do Ministério Público, abordou o Sistema de Garantia de Direitos.
No dia 06 de agosto de 2016, ofertamos o seminário “Aspectos gerais do desenvolvimento
da sexualidade da criança e do adolescente”, com dinâmicas para o educador abordar o tema

54 CADERNO DE ESTUDOS EDESP


com estudantes. Como projeto de conclusão da formação, os participantes apresentaram uma
sequência didática desenvolvida com seus alunos, abordando o tema proteção. O foco, mais uma
vez, foi a questão das mídias e redes sociais, associada ao fenômeno da violência contra crianças
e adolescentes e seguida da elaboração de um desenho representando o significado da proteção
diante dessa forma bárbara de violência. Tais desenhos serão avaliados para serem a arte da
campanha do 18 de maio de 2017.
Devido ao histórico e expertise da “Comissão Municipal de Enfrentamento à Violência, Abuso
e Exploração Sexual contra Crianças e Adolescentes” (CMESCA), estivemos envolvidos na revisão
da publicação “Rede de Proteção Social para Crianças e Adolescentes - Enfrentamento do Abuso
e Exploração Sexual”, elaborado pelo Conselho Municipal dos Direitos da Criança e do Adolescente
(CMDCA), ao longo de 2016, lançada em dezembro do mesmo ano.
A Comissão organizou o documento “Ações de Proteção Integral à Criança e ao Adolescente
em grandes eventos”, construído entre a Secretaria Municipal de Assistência e Desenvolvimento
Social (SMADS) e a Secretaria Municipal de Direitos Humanos (SMDH), para atendimento ao De-
creto nº 57.030, de 01/06/2016, que estabeleceu medidas protetivas à infância e juventude duran-
te o período das Olimpíadas nos 30 dias que antecederam o evento e 30 dias posteriores. Cons-
tituímos um grupo de trabalho que encaminhou ações importantes, tais como: centralização das
solicitações de abordagem no número 1562; criação de um protocolo específico para funcionários
do metrô que tiveram um código específico “metrô”, visando a agilizar o atendimento; retaguarda
da Central de Atendimento Permanente (CAPE) nas abordagens realizadas no entorno do estádio
Arena Corinthians, em Itaquera; reserva técnica de vagas de acolhimento em Serviços de Acolhi-
mento Institucional para Crianças e Adolescentes (SAICAs) de referência, solicitadas diretamente
pela equipe de plantão na base; estabelecimento de base móvel para as equipes de abordagem.
Durante o evento da Corrida de Fórmula 1, realizamos ações nos dias 11 e 12/11/2016 na
região do Autódromo de Interlagos, visando a atuar no âmbito da prevenção. Pautamos a cam-
panha com o tema “Fique Atento, Denuncie”, com o objetivo de deixar claro para todos que abuso
e exploração sexual são crimes. Colocamos faixas da campanha em frente da estação de trem,
do bolsão das Nações Unidas e em frente do Autódromo. As Supervisões de Assistência Social
(SAS) Capela do Socorro e Parelheiros realizaram ações locais nos dias 27/10 e 04/11/2016. Em
parceria com a Secretaria Municipal de Direitos Humanos, foram confeccionados folders, cartazes
e faixas com as artes feitas pela Comunicação da Secretaria Municipal de Assistência e Desenvol-
vimento Social (SMADS). As equipes de abordagem social da Assistência Social realizaram ações
em bares da Vila Madalena e hotéis da região da Avenida Paulista. No Aeroporto de Guarulhos,
foram veiculadas em 3 telas de TV um arquivo de vídeo com 15 minutos acerca da importância da
denúncia sobre abuso e exploração sexual.
A Comissão, no final de 2016, iniciou a organização do Carnaval de 2017, prevendo o Grito de
Carnaval para o dia 21/02/2017 e a ampliação das ações de prevenção para os Blocos de Carna-
val, pois entendemos que nesse contexto de grandes eventos

2
A Central de Atendimento 156 é o canal de comunicação entre a população e a Prefeitura de São Paulo, para informações, solicitações e
serviços ao município.

CADERNO DE ESTUDOS EDESP 55


“a eficácia da prevenção vai depender do grau de compreensão que
se tenha dos verdadeiros fatores que dificilmente vamos poder intervir
com sucesso.(...) a prevenção é tributária do grau de clareza que se te-
nha acerca dos fatores que estão fabricando a violência doméstica em
nosso município” (Azevedo e Guerra, 2015, p. 316)

Para 2017, está na pauta a revisão do “Plano Municipal de Enfrentamento à Violência, Abuso e Ex-
ploração Sexual contra Crianças e Adolescentes da Cidade de São Paulo”, bem como a escolha da arte
para a Campanha do 18 de Maio, com base nos cerca de 100 desenhos feitos por crianças e adolescen-
tes de escolas de Ensino Fundamental II da rede municipal, oriundos do curso ofertado pela “Comissão
Municipal de Enfrentamento à Violência, Abuso e Exploração Sexual contra Crianças e Adolescentes”
(CMESCA) em parceria com a Secretaria Municipal de Educação (SME). Na continuidade dessas ações,
a CMESCA pretende retomar a articulação com o grupo de adolescentes do Grupo de Trabalho do 18 de
Maio, visando a construir com estes ações específicas que pautem a questão das mídias e redes sociais.
Nossa Comissão segue atuante, com a perspectiva de pautar a defesa intransigente de Direi-
tos Humanos de Crianças e Adolescentes, investindo na proteção das vítimas de violência, abuso
e exploração sexual e na prevenção. Para tanto, compreendemos ser imprescindível alcançarmos
cada vez mais atores que entendam a complexidade desse fenômeno, tendo condições de somar
frentes conosco nessa trincheira de lutas.

Francilene Gomes Fernandes é graduada em Serviço Social pela


Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP), onde também fez
mestrado, atualmente é doutoranda no Programa de Pós-Graduação. É do-
cente no curso de Serviço Social da Faculdade FMU, assistente social na
equipe da Proteção Social Especial da Secretaria Municipal de Assistência
e Desenvolvimento Social – SMADS e integra a Comissão Municipal de En-
frentamento ao Abuso e Exploração Sexual – CMESCA

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
AZEVEDO, M. Amélia e GUERRA, N. Viviane. Infância e Violência Doméstica: fronteiras do conhe-
cimento. 7ª ed. São Paulo: Cortez, 2015.
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BRASIL. Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome. Política Nacional de Assistên-
cia Social. Brasília. 2004.

56 CADERNO DE ESTUDOS EDESP


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CADERNO DE ESTUDOS EDESP 57


Diversidade
Sexual no
Contexto
da Família
AÇÕES PÚBLICAS PARA
A DEFESA DA DIVERSIDADE
Por Cássio Rodrigo

P
ara discorrermos sobre a questão da diversidade no contexto da família, necessitamos,
primeiramente, definir o que é Família. Num conceito mais simplista, designa-se por fa-
mília o conjunto de pessoas que possuem grau de parentesco entre si e vivem na mesma
casa formando um lar. O conceito da família tradicional é aquela formada pelo pai e pela
mãe, unidos por matrimônio ou união de fato, e por um ou mais filhos, compondo uma família
nuclear ou elementar.
Mas a família constitui uma das unidades básicas da nossa sociedade. É certo que a família
é a instituição e o agrupamento humano mais antigo, haja vista que todo ser humano, todo
indivíduo nasce em razão da família e, via de regra, no âmbito desta, associando-se com seus
demais membros.

“No interior da família, os indivíduos podem constituir subsistemas,


formados pela geração, sexo, interesse e função, havendo diferentes
níveis de poder, e onde os comportamentos de um membro afetam e
influenciam os outros membros. A família como unidade social, en-
frenta uma série de tarefas de desenvolvimento, diferindo a nível dos
parâmetros culturais, mas possuindo as mesmas raízes universais”
(MINUCHIN, 1990).

De acordo com o Dicionário Houaiss, o conceito atual de família é o “Núcleo social de pessoas
unidas por laços afetivos, que geralmente compartilham o mesmo espaço e mantêm entre si uma
relação solidária”. A nova definição surgiu após a campanha #TodasAsFamílias, iniciativa pioneira
promovida pela agência NBS em parceria com o Grande Dicionário Houaiss, que recebeu mais de
3 mil sugestões de textos de internautas para construir um conceito de família “sem preconceito
ou limitações” (IBDFAM, 2016).
Hoje temos novas composições, como as famílias com uma estrutura de pais únicos ou
monoparental, devido a fenômenos sociais como divórcio, óbito, abandono de lar, ilegitimidade
ou adoção de crianças por uma só pessoa. Ou a família ampliada ou extensa (consanguínea),
que consiste numa estrutura mais ampla, agregando à família nuclear os parentes diretos ou
colaterais, existindo uma extensão das relações entre pais e filhos para avós, pais e netos, tios
e sobrinhos.

CADERNO DE ESTUDOS EDESP 59


Vemos, ainda, novas famílias, como as “famílias arco-íris”, constituídas por pessoas LGBT (lés-
bicas, gays, bissexuais, travestis, mulheres transexuais e homens trans) e os seus filhos.

“Hoje, muito se critica as novas formas familiares, como a família


entre pessoas do mesmo sexo, porém, conforme já vimos, o elemento
que cria a família é a vontade entre as partes, portanto, não há como
negar o status de família a uniões estáveis, a famílias monoparentais e
à família advinda da união entre pessoas do mesmo sexo. A dignidade
da pessoa humana deve ser respeitada e protegida, não podendo utili-
zar uma ideia ultrapassada de família para privar as constituições de
novos tipos familiares. Afinal, o que deve-se proteger é a felicidade, a
liberdade e a igualdade entre os indivíduos, e não uma forma arcaica de
pensamento” (AUGUSTO, 2016).

Desse modo, “(...) a família constitui o primeiro, o mais fundante e o mais importante grupo
social de toda a pessoa, bem como o seu quadro de referência, estabelecido através das rela-
ções e identificações que a criança criou durante o desenvolvimento” (VARA, 1996), tornando-a
na matriz da identidade.
Nesse contexto, devemos pensar as políticas públicas voltadas para a população de Lésbicas,
Gays, Bissexuais, Travestis, Mulheres Transexuais e Homens Trans pautadas na transversalidade.
Não podemos estabelecer ações na educação sem incluirmos direitos humanos, não podemos
pensar a cultura sem agregarmos a assistência social, não pautamos segurança pública se não
atrelarmos à saúde, e assim por diante.
Por isso, o movimento social organizado, ao discutir a cidadania LGBT, construiu um tripé para
esta cidadania, composto por:

1) Criação de órgãos públicos, como Coordenadorias e/ou Assessorias, para executarem as po-
líticas públicas LGBTs, atendendo às necessidades do segmento LGBT, tanto na promoção da
cidadania quanto no combate ao preconceito e à discriminação;
2) Criação de Conselhos LGBTs, enquanto instâncias fiscalizadoras, com participação da socieda-
de civil, no acompanhamento da implementação dessas ações;
3) Instituição de Planos de Enfrentamento da LGBTfobia e Promoção da Cidadania LGBT,
sempre oriundos das diretrizes aprovadas em Conferências Municipais, Estaduais e/ou Na-
cional do segmento.

Também devemos ressaltar que, ao atuar com a população LGBT, devemos diferenciar o que é
orientação sexual (lésbicas, gays e bissexuais) e o que é identidade de gênero (travestis, mulheres
transexuais e homens trans).
Orientação sexual “é a atração afetiva e/ou sexual que uma pessoa manifesta em relação
à outra, para quem se direciona, involuntariamente, o seu desejo.” (GOVERNO DO ESTADO DE
SÃO PAULO, 2014)

60 CADERNO DE ESTUDOS EDESP


EXISTEM TRÊS TIPOS MAJORITÁRIOS DE ORIENTAÇÃO SEXUAL:
1) Heterossexual: Pessoa que se sente atraída afetiva e/ou sexualmente por pessoas do sexo/
gênero oposto.
2) Homossexual (Gays e Lésbicas): Pessoa que se sente atraída afetiva e/ou sexualmente por
pessoas do mesmo sexo/gênero.
3) Bissexual: Pessoa que se sente atraída afetiva e/ou sexualmente por pessoas de ambos os
sexos/gêneros.

É importante frisar que não nos utilizamos da expressão “opção sexual” por não se tratar de
uma escolha. Já a identidade de gênero “é a percepção íntima que uma pessoa tem de si como
sendo do gênero masculino, feminino ou de alguma combinação dos dois, independente do sexo
biológico.” (GOVERNO DO ESTADO DE SÃO PAULO, 2014).
A identidade traduz o entendimento que a pessoa tem sobre ela mesma, como ela se descreve
e deseja ser reconhecida.
Posto isto, passaremos a analisar os casos de LGBTFobia na Família. A Coordenação de Políti-
cas para a diversidade sexual recebeu 136 denúncias do DISQUE 100 (serviço do Governo Federal)
de janeiro a julho de 2016. Destas denúncias, 39 ocorrências se enquadravam em “casos familia-
res”, nos quais a LGBTfobia ocorreu entre cônjuges, avós/avôs, genitores, filhos, tios, sobrinhos,
que viviam ou não no mesmo ambiente familiar, perfazendo um total de 29% dos casos; quase 1/3
das denúncias trataram de discriminação interfamiliar.
Estes dados são corroborados por um estudo feito pela Prefeitura de São Paulo entre os
anos de 2006 e 2012 – o Mapa da Homofobia Denunciada –, que demonstrou que “a maioria
dos agressores possui vínculo com a vítima. Mesmo sabendo que serão reconhecidos, eles
praticam a violência, então eles não têm receio de praticar a violência, por isso a necessidade
de punição. Outro dado é que 22% dos casos de violência física acontecem dentro de casa”,
revela o estudo.

O MAPA DA HOMOFOBIA DENUNCIADA APONTOU QUE:


• Em 54% dos casos os autores das agressões conhecem os alvos;
• Em 16% dos casos são da própria família, e
• Em 38% dos casos são conhecidos, colegas de trabalho ou vizinhos.

Mas o Brasil possui avanços nas garantias dos direitos civis da população LGBT. Em maio de
2011, por decisão do Supremo Tribunal Federal (STF), houve a equiparação da união estável de
casais homossexuais às de casais heterossexuais. Com esta decisão, juízes de comarcas munici-
pais e estaduais passaram a converter essas uniões estáveis em casamentos. Até que o Conselho
Nacional de Justiça, CNJ, por meio da Resolução nº 175, de 14 de maio de 2013, aprovada durante

CADERNO DE ESTUDOS EDESP 61


a 169ª Sessão Plenária, estabeleceu que os cartórios de todo o Brasil não poderiam mais recusar
a celebração de casamentos civis de casais do mesmo sexo ou deixar de converter em casamen-
to a união estável homoafetiva.
O texto aprovado pelo CNJ proibiu as autoridades competentes de se recusarem a habilitar
ou celebrar o casamento civil ou, até mesmo, de converter a união estável em casamento entre
pessoas de mesmo sexo.
Em maio de 2015, o Brasil já registrava a realização de 3,7 mil casamentos entre pessoas
do mesmo sexo. Dados divulgados em dezembro de 2014 pelas estatísticas de registro civil do
Instituto Brasileiro de Geografia de Estatística (IBGE) apontaram São Paulo em liderança, com
1.945 registros de casamento. Desse número, 897 uniões ocorreram entre homens e 1.048, entre
mulheres. O Acre foi o único Estado a não registrar casamentos entre pessoas do mesmo sexo.
De acordo com dados da Associação dos Notários e Registradores do Brasil (Anoreg), o Dis-
trito Federal havia registrado, em maio de 2015, 245 casamentos entre pessoas do mesmo sexo.
Na Região Norte, a média anual chegou a 10 casamentos desde a aprovação da resolução. Fora a
inexistência de registros no Acre, Roraima apresentou dois casamentos; Amazonas, sete; e Ron-
dônia, dez legalizações de união estável. Já a Região Sudeste liderou, com São Paulo em primeiro
lugar no ranking nacional (1.945 uniões), seguido pelo Rio de Janeiro, com 211 casamentos, e
Minas Gerais, com 209.
Outro avanço foi o direito à adoção de crianças com o nome de ambos os pais ou ambas as
mães na certidão, o que não ocorria até pouco tempo atrás. Geralmente apenas um pai ou uma
mãe constava no registro da criança, o que acarretava problemas quando esse pai ou essa mãe vi-
nha a faltar, seja por motivo de morte, separação ou qualquer outro, voltando a criança a ficar órfã.
Em fevereiro de 2012, o Conselho Federal de Psicologia publicou uma reprimenda a uma psi-
cóloga de Curitiba (PR) que propunha terapia de cura e de conversão da homossexualidade em
heterossexualidade.
Devemos lembrar que não nos utilizamos “da expressão ‘homossexualismo’, pois, neste caso,
o sufixo ‘ismo’ denota doença. A homossexualidade não é considerada como patologia pela Orga-
nização Mundial da Saúde (OMS) desde 1990, quando modificou a Classificação Internacional de
Doenças (CID), declarando que ‘a homossexualidade não constitui doença, nem distúrbio e nem
perversão’.” (GOVERNO DO ESTADO DE SÃO PAULO, 2014)
Mas, infelizmente, ainda encontramos atitudes como esta. Em 2016, as redes sociais divulga-
ram uma falsa psicopedagoga, de Belo Horizonte, que depois declarou ser dentista, propor pales-
tra para pais que quisessem saber como curar seus filhos LGBTs.
Outro importante avanço foi a decisão do Tribunal Europeu dos Direitos Humanos (TEDH), em feve-
reiro de 2012, sobre caso ocorrido na Suécia. Um grupo de pessoas distribuiu panfletos em uma esco-
la sueca promovendo e incitando o ódio às pessoas LGBTs, considerando-os anormais. Em sua deci-
são, o TEDH afirmou que a expressão de homofobia não pode ser considerada direito à livre expressão.
Devemos lembrar, ainda, que o Estado de São Paulo possui a Lei Estadual nº 10.948/2001, que
proíbe e pune qualquer ato discriminatório em razão da orientação sexual e/ou identidade de gê-
nero. A normativa, que completou 15 anos em 5 de novembro de 2016, apresentou 359 processos
instaurados na Secretaria da Justiça e da Defesa da Cidadania.
Pela lei, a qualquer pessoa que for vítima de LGBTfobia poderá apresentar sua denúncia pes-

62 CADERNO DE ESTUDOS EDESP


soalmente na SJDC ou por e-mail, pelo Disque 100, ou ainda pelo site da Secretaria (www.justica.
sp.gov.br), sem a necessidade da presença de um advogado.
A Lei Estadual nº 10.948/2001 afirma que pode ser punido todo cidadão, inclusive detentor de
função pública, civil ou militar, e toda organização social ou empresa pública ou privada. E quem
discriminar poderá ser penalizado por meio de advertência, multa ou, em caso de estabelecimento
comercial, também suspensão ou cassação de licença de funcionamento. Se a pessoa que prati-
car o ato discriminatório for servidor público, será penalizado de acordo com os itens do estatuto
dos funcionários públicos e também na lei estadual 10.948/2001.
Em relação à identidade de gênero, o Governo Paulista editou o Decreto nº 55.588, de 17 de
março de 2010, que dispõe sobre o tratamento nominal das pessoas transexuais e travestis nos
órgãos públicos do Estado de São Paulo. Pelo Decreto,

“(...) fica assegurado às pessoas transexuais e travestis, nos termos


deste decreto, o direito à escolha de tratamento nominal nos atos e pro-
cedimentos promovidos no âmbito da Administração direta e indireta
do Estado de São Paulo.

Artigo 2º - A pessoa interessada indicará, no momento do preenchi-


mento do cadastro ou ao se apresentar para o atendimento, o prenome
que corresponda à forma pela qual se reconheça, é identificada, reco-
nhecida e denominada por sua comunidade e em sua inserção social.

§ 1º - Os servidores públicos deverão tratar a pessoa pelo prenome


indicado, que constará dos atos escritos. (...)” (ASSEMBLEIA LEGISLA-
TIVA DO ESTADO DE SÃO PAULO, 2010).

O Decreto nº 55.588/2010 acabou se desdobrando em outras normas legais, como a Resolu-


ção SAP nº 11, de 30 de janeiro de 2014, que dispõe sobre a atenção a travestis e transexuais no
âmbito do sistema penitenciário. De acordo com a resolução, fica assegurado “(...) o uso de peças
íntimas, feminina ou masculina, conforme seu gênero (...)” e “(...) às travestis e transexuais femi-
ninas é facultada a manutenção do cabelo na altura dos ombros (...)” (RESOLUÇÃO SAP, 2014).
Segundo a Resolução, “(...) As unidades prisionais podem implantar, após análise de viabilida-
de, cela ou ala específica para população de travestis e transexuais de modo a garantir sua dig-
nidade, individualidade e adequado alojamento (...)”(RESOLUÇÃO SAP, 2014), sempre observando
o interesse da população assistida, evitando assim a segregação social ou quaisquer formas de
discriminação negativa em razão da identidade de gênero ou orientação sexual.
Também estabelece para as pessoas que passarem por procedimento cirúrgico de transgeni-
talização a possibilidade de ser incluídas em Unidades Prisionais do sexo correspondente.
Outro fruto do Decreto foi no campo da Educação, com a edição, por parte do Conselho Estadual
da Educação, da Deliberação CEE nº 125, de 30 de abril de 2014, que dispôs sobre a inclusão de
nome social nos registros escolares das instituições públicas e privadas no Sistema de Ensino do
Estado de São Paulo:

CADERNO DE ESTUDOS EDESP 63


“Art. 1º - As instituições vinculadas ao Sistema de Ensino do Estado
de São Paulo, em respeito à cidadania, aos direitos humanos, à diversi-
dade, ao pluralismo e à dignidade humana, incluirão, a pedido dos inte-
ressados, além do nome civil, o nome social de travestis e transexuais
nos registros escolares internos. (...)

Art. 5º - A instituição deverá viabilizar as condições necessárias de


respeito às individualidades, mantendo, entre outros, programas educa-
tivos e assegurando ações e diretrizes previstas nos Planos Estaduais
de Enfrentamento à Homofobia e Promoção da Cidadania LGBT.” (DELI-
BERAÇÃO CEE, 2014)

Outro campo a ser exaustivamente trabalhado é o da cultura. No Brasil, ainda temos a represen-
tação cultural da população LGBT baseada em caricaturas, reforçando estigmas e preconceitos.
Muitas vezes, o estigma está tão internalizado e disfarçado que nem percebemos o pre-
conceito embutido. Alguns exemplos são as marchinhas de carnaval, como “Cabeleira do
Zezé”, de autoria de João Roberto Kelly e Roberto Faissal, datada de 1963, e “Maria Sapatão”,
também de autoria de João Roberto Kelly, que se popularizou na voz do velho guerreiro Cha-
crinha (Abelardo Barbosa), coautor da canção. Foi uma das músicas mais executadas no
Carnaval de 1981.
Com sua letra polêmica, utilizando-se de termo pejorativo em relação às mulheres lésbicas –
“Sapatão” (sic) –, esta música frequentemente é alvo de crítica nas redes sociais. Mas mesmo
com essa controvérsia, em 2011 a composição foi eleita a 9ª melhor Marchinha de Carnaval de
todos os tempos em pesquisa realizada pela revista Veja.
Se fizermos um recorte sobre a identidade de gênero, podemos elencar "Geni e o Zepelim",
composta e cantada por Chico Buarque de Holanda. Esta canção fez parte do musical “Ópera do
Malandro”, do mesmo autor, lançado em 1978, e do álbum (1979) e do filme (1986), todos com o
mesmo nome.
A letra descreve, em versos, a longa história que define o episódio ocorrido com Geni, uma
travesti (segundo representado na "Ópera do Malandro") que era hostilizada na cidade. Diante
de uma ameaça de ataque de um Zepelim, o comandante se encanta com os dotes de Geni, que
acaba sendo provisoriamente tratada de um modo diferenciado pelos seus detratores. Passada a
ameaça, ela retorna ao seu dia-a-dia normal, no qual as pessoas a ofendiam e excluíam, revelando
o caráter pseudo-moralista e hipócrita da sociedade.
O refrão da canção teve tal repercussão que “Joga pedra na Geni” se transformou numa espécie
de bordão, indicando como Geni pessoas ou até mesmo conceitos que, em determinadas circuns-
tâncias políticas, se tornam alvo de execração pública, ainda que de forma transitória ou volátil.
Se pensarmos na letra, Geni fez o serviço “sujo” para a sociedade. Serviu à saciedade e depois
voltou para o espaço amaldiçoado socialmente. O que estamos acostumados a ver, diuturnamen-
te, nas ruas centrais das grandes cidades brasileiras em relação às travestis; muitas evadidas das
escolas e tendo como única opção a prostituição.

64 CADERNO DE ESTUDOS EDESP


PERSONALIDADES HISTÓRICAS
É comum, também, não questionarmos a falta de referências históricas, inclusive nos livros es-
colares, sobre a orientação sexual e identidade de gênero de personalidades da história, a exemplo
dos imperadores romanos Nero e Heliogábalo.
Lembrado apenas por incendiar Roma, Nero substituiu sua esposa Pompéia, falecida, pelo
escravo Sporus, após mudar o sexo do escravo. Já a orientação sexual e identidade de genero de
Heliogábalo, de acordo com historiadores, são fontes de muito debate. Heliogábalo casou-se e
divorciou-se de cinco mulheres, três das quais são conhecidas: Júlia Cornélia Paula, Júlia Aquília
Severa e Ânia Faustina.
De acordo com o historiador Dião Cássio, a sua relação mais estável foi com o cocheiro de biga
da sua quadriga, um escravo louro da Cária chamado Hiérocles, a quem Heliogábalo se referia
como o seu marido. Há quem afirme que ele também se casou com um homem chamado Aurélio
Zótico, um atleta de Esmirna, numa cerimônia pública em Roma.
Dião Cássio diz que Heliogábalo pintava os olhos, depilava o seu cabelo e usava perucas (DIÃO
CASSIO, 1925). Outro historiador Herodiano comentou que Heliogábalo mimava a sua beleza na-
tural ao usar demasiada maquilagem. Foi descrito como sentindo-se "encantado ao ser chamado
a amante, a esposa, a rainha de Hiérocles" (Herodian's Roman History, 2016) e diz-se que ofereceu
metade de grandes somas de dinheiro ao médico que lhe pudesse dar genitais femininos. Sub-
sequentemente, Heliogábalo tem sido frequentemente caracterizado por historiadores modernos
como um transgênero, provavelmente transexual, termos não conhecidos há quase dois mil anos.

PARADA LGBT
Por fim, há quem compare a Parada do Orgulho LGBT com o Carnaval. Mas devemos lembrar
que o Carnaval originou-se em 600 a.C., na Grécia, como uma festa em agradecimento aos deuses
pela fertilidade do solo. Nesse dia, populares e escravos podiam dançar livremente pelas ruas de
Athenas. Aqui no Brasil, a festa foi trazida pela corte portuguesa, com origens no “entrudo”, em
que populares iam às ruas jogar ovos, farinha e água nos demais, comemorando a liberdade. E,
logo após a Abolição da Escravatura, passou a ser uma oportunidade de confraternização dos
escravos recém-libertos.
Nesse sentido, a Parada do Orgulho LGBT também é um espaço de libertação. Libertação da hi-
pocrisia social que nos usa para apedrejar e para fins sexuais, mas não nos reconhece em direitos.
A Parada do Orgulho LGBT é um movimento político e pela visibilidade, para que, ao menos neste
dia, não sejamos invisíveis aos olhos da sociedade, sociedade esta que deveria ser a primeira a
nos acolher nos seios de suas famílias.
Afinal, de acordo com Luis Fernando Augusto (2016),

“a dignidade da pessoa humana deve ser respeitada e protegida, não


podendo utilizar uma ideia ultrapassada de família para privar a cons-

CADERNO DE ESTUDOS EDESP 65


tituições de novos tipos familiares. (...) o que deve-se proteger é a feli-
cidade, a liberdade e a igualdade entre os indivíduos, e não uma forma
arcaica de pensamento. É preciso que haja uma conscientização popu-
lar, para que seja difundida a ideia de família como um instrumento de
felicidade e de desenvolvimento pessoal, e não como uma instituição”.

Cássio Rodrigo é jornalista, formado pela Pontifícia Universidade Católica


de São Paulo (PUC-SP). Palestrou, em 2006, na I Conferência Internacional
de Direitos Humanos para GLBT, em Montreal, sobre os temas de segurança
pública e direitos dos homossexuais e os movimentos de Paradas do Orgulho
como ação política e social. Atuou na Secretaria de Estado da Cultura de São
Paulo, como Assessor de Cultura para Gêneros e Etnias. Atualmente está à
frente da Coordenação de Políticas para a Diversidade Sexual, da Secretaria da
Justiça e da Defesa da Cidadania, do Governo de São Paulo.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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de 2010. Disponível em: <http://www.al.sp.gov.br/repositorio/legislacao/decreto/2010/decre-
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DIÃO CÁSSIO. Roman History VIII. trad. Ernest Cary. Cambridge, MA: Harvard University Press, 1925.
GOVERNO DO ESTADO DE SÃO PAULO. Secretaria da Justiça e da Defesa da Cidadania. Coorde-
nação de Políticas para a Diversidade Sexual. Diversidade sexual e Cidadania LGBT. São Paulo:
SJDC/SP, 2014. 44p. Disponível em: <http://www.justica.sp.gov.br/StaticFiles/SJDC/ArquivosCo-
muns/ProgramasProjetos/CPDS/Cartilha_Diversidade.pdf>. Acesso em: 19 de dezembro. 2016.

66 CADERNO DE ESTUDOS EDESP


HERODIAN'S ROMAN HISTORY. Disponível em: <http://www.livius.org/sources/content/herodian-
-s-roman-history/> Acesso em: 17 de dezembro. 2016
IBDFAM – Instituto Brasileiro de Direito da Família. Dicionário reformula conceito de família. Dis-
ponível em: <http://www.ibdfam.org.br/noticias/5990/Dicion%C3%A1rio+reformula+conceito+-
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MINUCHIN, Salvador. Famílias: Funcionamento & Tratamento. Porto Alegre: Artes Médicas, 1990.
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VARA, Lília Rosa Alexandre. Relação de ajuda à família da criança hospitalizada com doença de
mau prognóstico num serviço de pediatria. Revista Portuguesa de Enfermagem. Cacém: Instituto
de Formação em Enfermagem, 1996.
.

CADERNO DE ESTUDOS EDESP 67


OS LGBTs
E AS RELAÇÕES FAMILIARES
Por Edith Modesto

E
ste artigo propõe pensarmos sobre como os processos de aceitação das diferenças de
orientação afetivo-sexual1 vêm se desenvolvendo no Brasil, e possivelmente em vários ou-
tros países, comparando o que acontece dentro das famílias, no âmbito do privado, ao que
acontece no público, sociedade como um todo.

UM POSSÍVEL PARADOXO
No trabalho do GPH, grupo de pais de LGBTIs – Lésbicas, Gays, Bissexuais, Transexuais e In-
tersexuais, que fundamos há mais de 20 anos para ajudar a “re-unir” as famílias brasileiras, temos
tido muitas alegrias e, ao mesmo tempo, muitas dúvidas. Entre elas, escolhemos destacar neste
artigo uma questão que nos parece paradoxal e está resumida na pergunta:
Por que a aceitação das diferenças de orientação sexual e de identidades de gênero pela nossa so-
ciedade tem evoluído positivamente, mesmo que lentamente, mas continua praticamente estacionada
do ponto de vista familiar?
Por exemplo, há poucos anos, se uma mãe soubesse que o filho2 da vizinha era gay, ela teria
proibido seus filhos de terem contato com aquele jovem, por medo, como se a homossexua-
lidade fosse uma doença contagiosa. Hoje, a maioria das mães fica solidária com a vizinha,
“coitadinha”. Como hoje diz a sabedoria popular: “Com o filho dos outros é fácil, com o filho da
gente a coisa muda!”.
Comparando depoimentos de aproximadamente 20 anos atrás com os de hoje, enviados por
e-mail para o GPH, vemos que no contexto familiar nada mudou:

1
Vamos nos referir somente às diferentes orientações afetivo-sexuais, considerando a exiguidade do texto. Mas sugerimos que a questão se
estenda também às diferenças de identidades de gênero, conforme aponta nossa experiência em consultório e no projeto “Travessias” do GPH.
2
Considerando que a marca do masculino em Português é também a marca do genérico, para maior comodidade de leitura, usaremos “filhos”,
significando “filhas e filhos”.

68 CADERNO DE ESTUDOS EDESP


SÉCULO XX – DÉCADAS DE 80/90
Mãe: “Eu não sei o que fazer com tanta tristeza. Tem dias que eu sinto que não vou aguentar. Minha
gastrite queima feito fogo, é muito ruim [...]”.
Pai: “Eu não tenho conseguido trabalhar. Não suporto nem lembrar... E em casa só vejo minha mu-
lher pelos cantos chorando...” (2008, p.86).
Mãe: “[...] Não tem nada no mundo que faça eu aceitar isso. Eu criei, ele, eu cuidei dele com carinho,
sempre. O pai morre de vergonha... Eu não aceito. Pra resolver aqui, só se eu morrer ou ficar louca... Eu
sei que um dia ele vai mudar. Eu amo o meu filho [...]” (2008, p.88).

SÉCULO XXI – NOVEMBRO DE 2016


Pai: “[...] Choro dia após dia, perco minha concentração, perco meu sono e não quero perder a minha
FAMÍLIA, eu e minha esposa estamos juntos há 27 anos (21 de casados) e não quero destruir a minha
vida nem a dela, precisamos de ajuda [...]” (08-11-2016).
Mãe: “[...] Sinto uma dor imensa, uma dor física mesmo. Às vezes, eu chego a me arrepender de ter
tido o filho que tanto desejei. Racionalmente, eu sei que não deveria agir assim e me culpo por isso. Mas
é mais forte do que eu... Estou desnorteada, me ajuda. Me dá uma luz, uma palavra de conforto. Me
ensina a amenizar esse sofrimento, essa dor que me corrói [...]” (04-11-2016)
Por outro lado, inclusive divulgado pelas mídias, não há dúvida de que já vem se mostrando um
movimento social de mudança de valores e atitudes, como resultado de um trabalho bem-feito e
persistente de militantes pelos direitos humanos.
E a pergunta reverbera:
Por que a família não muda sentimentos, atitudes, já que se percebe uma mudança positiva na so-
ciedade, mesmo que menor do que se gostaria?

UMA PROPOSTA SEMIÓTICA


De um ponto de vista filosófico, em linhas gerais, podemos nos lembrar de diferentes contratos
que regem a nossa vida particular e nossa vida em sociedade: a) contratos e regras ligados à ética,
aos nossos modos de “ser” e de nos comportarmos, valores mais individuais que orientam o com-
portamento humano em família e: b) contratos e regras ligados à moral, contratos estabelecidos
que têm regido a interação entre os cidadãos, dentro da sociedade como um todo.
Do ponto de vista da semiótica francesa, uma teoria da significação discursiva, nossa atenção
se voltou para as nuances de significação diferentes desses contratos: o contrato ético, entre indiví-
duos próximos, ligados por vínculos afetivos familiares e; o contrato moral, entre os sujeitos sociais.
Assim, podemos considerar duas leituras significativas básicas, dos discursos:
a) Do ponto de vista social, leitura relacionada à moral: uma leitura sociopolítica, leitura das
transformações sociais;

CADERNO DE ESTUDOS EDESP 69


b) Do ponto de vista familiar, leitura relacionada à ética: uma leitura existencial, relacionada à
maternidade, ao vínculo familiar nuclear (pais e filhos);
No primeiro caso, a sociedade fica como “manipuladora”, como a doadora dos valores; no se-
gundo caso, há a mãe, o pai, a família, como os “manipuladores”, doadores dos valores. Haja vista
os mitos do “amor incondicional” das mães e a exigência de filhos realizarem os “sonhos” de seus
pais, crenças e valores internalizados em todos nós.
Desse modo dá para entender o significado mais profundo do texto de e-mail, como o que se-
gue, que vem sendo repetido de várias formas por jovens, há vários anos:
Jovem (13 anos): “Edith, por favor, me ensina a ser hétero... Como eu vou dizer pra minha mãe uma
coisa dessas? [...]” (05-05-2015).
Os textos enfatizam, ora um, oura outro, dois tipos de contrato: familiar e social, que se com-
plementam e superpõe-se um ao outro.

UM CONTRATO FIDUCIÁRIO
Do ponto de vista ético-afetivo, dentro do relacionamento familiar, podemos falar de contratos
entre mãe e filho – ser o sonho da mamãe/o amor incondicional da mãe – e reconhecemos aí
“contratos fiduciários”, isto é, contratos baseados na crença e na confiança. Um contrato fiduciá-
rio funciona como os contratos antigos, em que não se precisava de nada escrito, nem assinado,
basta “o fio de barba”. A força desse contrato ainda é surpreendente!
Por exemplo:
Filho: “[...] Sabe? Eu resolvi falar para o meu amigo (que sou gay). Eu vou ficar triste se perder
meu melhor amigo, mas posso arrumar outro... Se eu perder minha mãe, como vou arrumar outra?
[...]” (22-01-2013).
De alguma maneira, esse jovem sabe que o contrato com a mãe é fiduciário e ela vai se sentir
traída, se esse contrato for desrespeitado. Esse tipo de rompimento de contrato é muito mais di-
fícil emocionalmente do que ter um contrato jurídico rasgado. Romper esse contrato é ter certeza
da decepção, desespero, tristeza... E implica uma espécie de luto por um “filho vivo que faleceu”.
A fase de luto, pela qual passa a mãe, é pelo filho heterossexual, até que “o outro”, o filho ho-
mossexual, tome o seu lugar. O filho, por sua vez, passa por uma fase de renascimento, fase na
qual ele, finalmente, passa a ter mãe 100%; ele que sempre foi em parte órfão, e passa a poder ser
a pessoa que realmente ele é e viver com sua real identidade, uma possibilidade de ser feliz.
Do ponto de vista da sociedade, podemos falar em um contrato mais jurídico, como se as
pessoas tivessem firmado contratos em cartório, cujo teor têm mudado com o tempo. Paulatina-
mente, as diferenças vão sendo aceitas, os preconceitos diminuem.
O jovem homossexual, no texto a seguir, defende-se da avaliação social negativa e tenta unir os
dois tipos de contratos: público e privado, de aceitação social e familiar:
Jovem ativista gay: “[...] Sou gay, e EXIJO RESPEITO! Sou homossexual sim e sou uma pessoa muito
decente. Uma coisa aprendi com meus pais: ter respeito pelo próximo. Não vivo em meio a promiscuidade,
não escolhi ser assim, não vou mudar isso ‘porque é o certo perante a sociedade’, não acho que estou er-
rado, não faço mal a ninguém. Acho engraçado o fato de fazerem piadinhas tipo ‘sua mamãe já sabe?’, por

70 CADERNO DE ESTUDOS EDESP


que a pergunta? Você pretende contar? Não escondo nada da minha mãe, não escondo nada de ninguém,
e sabe por quê? Porque eu não tenho vergonha de ser quem eu sou e porque não prejudico ninguém sendo
assim. [...]” https://www.facebook.com/gaysonoficial/posts/25019729513762- 11.12.2013
Citando, quando o jovem ativista diz ser uma “piadinha” a pergunta, “sua mamãe já sabe?”, na
ironia do outro que falou, vislumbra-se uma configuração passional relacionada à insatisfação/
decepção da pessoa homossexual, que não conduz obrigatoriamente à liquidação da falta, e ace-
na com a insatisfação que, muitas vezes, se prolonga em difíceis processos de autoaceitação de
filhos e aceitação de pais, prenunciando grupos de paixões relacionados à mágoa, decepção ou
desilusão, frustração, tristeza, chegando até ao rancor e cólera.
Comparando o preconceito a muros, vemos o muro social, público, já trincado, enquanto o
muro familiar, privado – pelo menos logo depois da descoberta da homossexualidade de filhos –
ainda intacto.
A esperança é que “o amor sempre vence” e pais e filhos se amam.

Edith Modesto é mestra e doutora em Semiótica e Linguística Geral pela


Universidade de São Paulo (USP), psicanalista, especialista em diversidades
afetivo-sexual e de gênero, 1º Lugar no concurso de teses – área de Humanas
(USP). Fundou o GPH, 1º Grupo de Pais de LGBTs do Brasil (www.gph.org.br).

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
Barros, Diana L. Pessoa de. Teoria do Discurso – Fudamentos Semióticos. São Paulo, atual, 1988.
Modesto, Edith – Mãe sempre sabe? Mitos e verdade sobre pais e seus filhos homossexuais. 1ª.
Versão. Rio, Editora Record, 2008.
Modesto, Edith – Mãe sempre sabe? Mitos e verdades sobre pais e seus filhos LGBTs. 2ª. Versão
atualizada. Campinas, Editora Papel Social, 2015.

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FAMÍLIA HOMOAFETIVA:
UM RELATO DE VIDA
Por Janaína Leslão

N
ossa família é composta por duas mães, uma adolescente e um garotinho. Eu sou uma
das mães e irei compartilhar com vocês a experiência da maternidade sob o meu ponto
de vista, que por vezes é diferente da percepção de minha companheira, de nossos filhos
ou das pessoas que me lêem. Mas, creia, outras partes podem ser iguais.
Sempre quis ser mãe. Esse desejo era muito forte e eu dizia para minha própria mãe: “Vou te dar
um neto, mas não sei se te darei um genro”. Quando eu dizia isso, era porque eu tinha certeza da
minha maternidade, mas não sobre minha sexualidade. Naquela época, eu achava que amar outra
mulher era pecado, doença, abominação, todavia tinha sérias dúvidas sobre conseguir compor
uma parceria “para a vida toda” com um rapaz.
A decisão de ter um filho se deu em conjunto com minha companheira. Quando nos conhece-
mos, há mais de uma década, nos tornamos amigas. Eu sabia que ela era mãe de uma menininha
e desejava ter outro filho. Ela também sabia deste meu desejo. A vida seguiu. Anos depois nos
tornamos namoradas e, em seguida, nos casamos em uma cerimônia umbandista e assinamos
um registro de união estável. Na época, o casamento entre duas pessoas adultas e de comum
acordo não era possível para todos. Ainda não é lei, mas decisão judicial.
Quero explicitar que, embora eu ame profundamente minha enteada, ela não é “minha filha”.
Ela é minha família, minha querida, a irmã de meu filho e a pessoa mais importante do mundo
para minha esposa. Mas quando eu a conheci ela já tinha uma mãe e um pai, ambos presentes
em sua vida embora já não fossem um casal, e não havia espaço para que eu me tornasse sua
“outra mãe”. Amo, cuido, dou bronca, ensino, mas isso não me deu o status de “mãe”. Ela é minha
enteada, eu sou sua madrasta, nos amamos assim.
Com 4 anos de casadas, era um bom momento para que o novo membro da família chegasse.
A ideia inicial da criança ser gerada por mim foi posta à prova. Nosso amigo querido, que em nossa
adolescência se propôs a ser o pai biológico de meu filho, tinha desistido de “por mais uma pessoa
nesse planeta horrível”, e fazer reprodução assistida implicava altos custos e muita medicação
para viabilizar um bom resultado. Como gerar nunca foi o desejo primordial, optamos pela adoção.
No dia seguinte à decisão de que iríamos adotar nosso filho, avisamos a então pré-adolescente
que ela não seria mais filha única. Nas próximas semanas iríamos até o fórum da cidade para dar en-
trada no pedido. Sua alegria ao saber do irmãozinho, que provavelmente seria um menino de 5 anos
negro, era contagiante. Falava sem parar de seu futuro irmão, fazia planos até com seus possíveis
sobrinhos, sabíamos que ela queria um irmão, mas não imaginávamos a intensidade desse desejo.

72 CADERNO DE ESTUDOS EDESP


Tivemos medo de que, por ser um casal de mulheres, as trabalhadoras do judiciário da cidade
tivessem algum impedimento a conceder a adoção para uma família como a nossa. Não há ne-
nhum impeditivo legal, mas quando se tem má vontade existem maneiras de restringir o acesso.
Teríamos que passar por uma assistente social e uma psicóloga, conseguir o aval da promotoria
que cuida do melhor interesse das crianças e, finalmente, a resposta afirmativa da juíza que profe-
riria sua sentença. Não tivemos nenhum problema no contato com as profissionais.
Quando meu telefone tocou, havia se passado dois anos e meio desde o dia em que manifes-
tamos oficialmente nosso desejo de ter um filho perante a Justiça. Enquanto eu esperava a tele-
fonista completar a ligação, meu sentimento era um misto de alegria e desespero. Do outro lado
da linha uma voz feminina me disse: “Há um garotinho para vocês conhecerem. Ele mora em um
abrigo da cidade e está dentro do perfil que vocês nos descreveram exceto por uma característica,
ele é branco”.
Como havíamos falado que gostaríamos de ter um filho de até 5 anos negro ou pardo, realmen-
te não estávamos preparadas para conhecer um bebê de um ano branco. Mas a vida não é um
supermercado onde as pessoas estão nas prateleiras para serem escolhidas. Depois de tantos
planos e espera, era-nos dada a oportunidade de conhecer um garotinho que também nunca havia
conhecido uma família. Aceitamos e desejamos conhecê-lo, já sabendo que após o momento do
encontro já não seria possível dizer “não”. Nossos corações não conseguiriam.
Entre o telefonema e trazê-lo para casa, passaram-se sete dias. Sete dias sem dormir e sem
pensar em outra coisa que não fosse nele. Nós o conhecemos em uma quinta-feira, voltamos para
vê-lo em um domingo de páscoa e na terça o trouxemos para casa. Não nos conhecíamos, e a
fase da adaptação foi sofrida para todos. Como ele era bem pequeno, essa tal fase durou cerca de
um mês, o que é pouco. Mas foi tão intenso que os dias pareciam não ter fim.
Eu tirei licença maternidade de 180 dias. Foi o primeiro caso na instituição para a qual trabalho.
Antes a licença para quem adotasse crianças acima de 1 ano era de apenas 60 dias. Inicialmente
não concordaram com meu pedido de “licença igualitária”, mas depois, diante de vasta argumen-
tação, finalmente tive assegurado meu direito. Minha companheira teve concedido 45 dias de
licença adoção e ficou em casa por mais 15 dias de férias. Então, quando ele chegou em nossa
casa, pudemos nos dedicar intensamente a ele.
Sobre as melhores formas de cuidado, fomos nos entendendo sem conflitos. Passado alguns anos,
temos as mesmas responsabilidades com ele. Não existe “a que dá a comida” e “a que dá banho”; “a
que brinca” e “que dá bronca”. Ele tem duas mães e nenhum pai, e isso as vezes confunde as pessoas.
Há perguntas explícitas ou implícitas que respondemos da maneira mais franca que podemos:

Pergunta: “Qual de vocês o adotou?”


Resposta: “Nós duas o adotamos ao mesmo tempo.”

P: Quem é a “mãe” no documento oficial?


R: Hoje em dia na certidão de nascimento não existe mais os campos “mãe” e “pai”, consta apenas
“filiação”, sem distinção de gênero. Assim as crianças com “pai desconhecido” também ficam protegi-
das do inconveniente de não ter um nome no campo “pai”.

CADERNO DE ESTUDOS EDESP 73


P: A criança não vai ter problemas sem ter um pai?
R: Creio que esta não será a primeira criança que será criada sem um pai, ou todas as que você
conhece convive com um presente de fato?

P: O menino não terá problemas por ter duas mães?


R: Várias crianças consideram que tem duas mães, quando são criadas pela mãe e pela avó, pela
mãe e pela irmã mais velha, por duas tias. Ou seja, ter duas mães é bem comum. Penso que o problema
seria a criança crescer em um abrigo, sem a oportunidade de ter mães, irmãos, tios, avos, bisavós, pri-
mos, enfim, uma família que a ame e cuide dela.

P: Mas a criança sendo criada por um casal homossexual não pode se tornar homossexual também?
R: Geralmente as pessoas homossexuais são filhas de heterossexuais, ou seja, a orientação sexual
de pai e mãe não influencia na dos filhos. Desta forma, a probabilidade do filho de um casal homosse-
xual ser gay é igual a de todas as outras crianças. No mais, se ser gay não é nenhum problema, qual a
preocupação real por trás desta pergunta?

P: Falando em homoparentalidade, como abordar esses assuntos com crianças?


R: Publiquei dois livros de conto de fadas que trazem personagens LGBT. Há quem pense que isso se
deu porque agora sou mãe. Mas é importante dizer que o resumo da vida de alguém não é ser ou não mãe.
Ou seja, maternidade e literatura foram projetos gerados de formas bem distintas no tempo e espaço.
Foi em 2007 que tive vontade de escrever conto de fadas para adolescentes, quando no meu traba-
lho como psicóloga eles não conseguiam enxergar possibilidade de final feliz para pessoas que não se
encaixavam nos padrões heteronormativos. Apesar de adolescente, eles ainda tinham nos contos de
fadas as suas mais fortes referencias de “final feliz”.
Enfim, em 2015 publiquei “A Princesa e a Costureira”, no qual a princesa estava de casamento marca-
do com o príncipe, mas se apaixona pela costureira de seu vestido de noiva, e em 2016 lançamos “Joana
Princesa”, no qual a princesa do reino, ao nascer, recebeu o nome de João e sonhava em ser uma menina
como todas as outras.

P: Como espera que os pais ou responsáveis por adolescentes e crianças recebam suas histórias?
R: Espero que possam se apoiar na história para conversar sobre a diversidade das pessoas e
o respeito às diferenças. Para muitos adultos esse tema é bem complexo, e uma história pode des-
contrair e ajudar no diálogo. Muitos pensam que esses assuntos de famílias diversas só deveriam
ser abordados com quem tem mais de 18 anos. Todavia não é verdade que crianças e adolescentes
não sejam comunicados sobre a temática desde muito cedo. Por exemplo, quando um menino é
mais sensível e é chamado de “viadinho” pelos colegas, estamos comunicando que isso é algo para
se ter vergonha. Quando nos programas de humor a população LGBT e seus relacionamentos são
retratados de forma caricata, estamos comunicando que essas relações são motivo de piada. Ou
seja, abordamos o tempo todo a diversidade com crianças e adolescentes, mas dizendo que isso
é ruim, mau.

74 CADERNO DE ESTUDOS EDESP


P: Ainda existe muita discriminação intrafamiliar?
R: É comum achar famílias que discriminam um de seus membros por ele por ter uma orientação
sexual ou identidade de gênero diferente do que nossa sociedade espera. Lembro de algumas histórias
tais como a de um adolescente que foi expulso de casa, porque seu padrasto não aceitava o fato de ele
ser gay, e o menino não tinha trabalho e nem era permitido que sua mãe o ajudasse a se sustentar; outras
histórias comuns de mulheres que “moram com uma amiga, há 20 anos”, e a família de origem convida
somente uma delas para a ceia de natal, para aniversários e casamentos; o noticiário nos mostra travestis
e transexuais sendo assassinadas a todo momento, das maneiras mais cruéis... Por outro lado já ouvi his-
tórias lindas, de rapazes e moças que contam que tinham muito receio de falar para a família que estavam
namorando e, surpreendentemente, ouviram “filha/o eu te amo desde pequenininha/o, você nem pensava
em rapazes ou moças. Continuo te amando e pronto”. Ou um texto que li no qual a autora falava de sua
criança, que queria vê-la grande, na mesa, tomando um café e conversando sobre a vida, não importando
se no futuro a criança fosse um rapaz ou uma moça. É lindo! As pessoas se amam de forma inteira, sem
ressalvas por esse ou aquele fato que, no final das contas, não interfere na vida de mais ninguém.

P: É possível um final feliz para uma família não convencional?


R: Claro que é possível. E por que não seria? É verdade que a “torcida contra” é grande. Quando uma
moça fala que vai se casar com um rapaz, todo mundo faz festa, chá de cozinha, despedida de solteiro,
presentes, contribui para lua de mel, se faz presente na cerimônia e, se um dia o casal entra em crise, há
uma legião de aconselhadores para que superem os desentendimentos. Agora, se uma moça fala que
vai casar com outra moça, todos perguntam se ela tem certeza, na maioria das vezes não fazem um
ritual para o enlace, não tem lua de mel, a desconfiança sobre a durabilidade da relação é uma constante
para os amigos e família e, se um dia entram em crise, há uma legião de pessoas para dizer que “desde
o princípio achei que isso não daria certo”. Sem o apoio de família e amigos, sem serem recebidas como
uma família, as chances de acharem que de fato tudo não passou de um grande engano aumentam em
proporções absurdas! Multiplique por 10 a torcida contra se uma das pessoas for trans.

P: Como explicar às crianças que duas pessoas do mesmo sexo podem se amar e compor uma família?
R: A gente não explica que pessoas de sexo diferente se amam e que a família só é família porque
tem papai, mamãe e filhinhos. As pessoas se amam e pronto. Não existe um “grande evento” para dizer
que papai e mamãe são de sexos diferentes e é só por isso que nos amamos e formamos uma família.
Então não precisa ter cerimônia para dizer que a prima namora uma outra e que elas vão se casar. Famí-
lias são formadas por vínculos afetivos e pronto. Igual para todo mundo. As coisas têm que ser tratadas
com naturalidade para que sejam sentidas como naturais. Sei que parece difícil, mas não é impossível.
Mandela já disse que ninguém nasce odiando e que se as pessoas podem aprender a odiar, podem tam-
bém aprender a amar. Ninguém é igual a ninguém, cada ser é único e por isso a diferença é regra a ser
reconhecida e acolhida, e não exceção a ser combatida!

Esses são alguns dos questionamentos mais recorrentes. Para finalizar, só posso dizer que
educar uma criança é um trabalho incessante e difícil. Mas quando eles nos sorriem, se aninham
em nosso colo, todas as dificuldades diárias são recompensadas. Já é difícil imaginar como era

CADERNO DE ESTUDOS EDESP 75


minha vida antes, sem nosso garotinho. Parece que ele sempre esteve conosco e que não havia
outra possibilidade de existir sem sua chegada. Ser mãe era um sonho antigo e que está sendo
realizado na companhia da melhor família que eu poderia ter. Sou imensamente grata à genitora
de meu filho, porque hoje ele pode ser cuidado e amado por nós; à minha companheira por trilhar
o caminho da maternidade comigo; à minha enteada por tê-lo desejado tanto e ser a “Tata” mais
querida; e à minha família extensa, meus pais, irmãos, primos, tios, avós, por terem recebido meu
filho de coração aberto. Eles me fazem todos os dias mais feliz.

Janaína Leslão é escritora dos primeiros contos de fadas brasileiros a


abordarem direitos sexuais. Psicóloga pela Universidade Estadual Paulista
(Unesp), foi eleita conselheira no Conselho Regional de Psicologia de São
Paulo (CRP/SP) para os anos de 2010 a 2016. Tem especialização em Saúde
Mental pela Universidade de São Paulo (USP). É funcionária pública; trabalha
com prevenção às violências autoprovocadas e interpessoais.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
LESLÃO, Janaína. A Princesa e a Costureira. Rio de Janeiro: Metanoia, 2015.
_____________. Joana Princesa. Rio de Janeiro: Metanoia, 2016.

76 CADERNO DE ESTUDOS EDESP


População em
Situação de Rua:
Estratégias para
a Construção
da Autonomia
A IMPORTÂNCIA DA CONSTRUÇÃO
DA AUTONOMIA DA POPULAÇÃO
EM SITUAÇÃO DE RUA
Por Fernando Leonel Henrique Simões de Paula

S
egundo o Dicionário Aurélio, “rua é uma via pública de circulação urbana, total ou parcial,
ladeada de casas, normalmente entendida como espaço público em que o direito de ir e vir
é plenamente realizado”. Também existem ruas que não possuem calçadas, ou seja, espa-
ços para o trânsito de pedestres que são obrigados a caminhar dividindo o espaço com os
carros, às vezes não pavimentada e rodeadas por encostas, barrancos, matos ou ribanceiras, sem
calçadas. De qualquer forma, a rua é um espaço público de uso comum e posse de todos, portanto,
relacionada diretamente com a formação de uma cultura da agregação e do compartilhamento en-
tre os cidadãos. É, também, um elemento da mobilidade e articulador das localidades, podendo ser
considerada como a formadora da estrutura urbana e de sua representação mais ampla.
A “população de rua”1 é a pura e autêntica expressão da exclusão social que, não dispondo de
recursos para adquirir moradia, “expõe” publicamente sua mais íntima privacidade. O mais curioso
é que, ao passo que a lógica capitalista determina a apropriação dos espaços públicos tornando-
-os privados, a população de rua, muitas vezes, ocupa os espaços privatizados reconstituindo-os
como espaços públicos.
De acordo com a Secretaria Nacional de Assistência Social, a “População em Situação de Rua”,
ou simplesmente “Moradores de Rua”, caracteriza-se como um grupo populacional heterogêneo,
composto por pessoas egressas de diferentes realidades e singulares trajetórias de vida, mas que
têm em comum a extrema pobreza, com vínculo familiar interrompido ou fragilizado. Vão às ruas
e, com a falta de habitação convencional regular, são obrigadas a utilizá-las como espaço para
habitação e aquisição de sustento, em caráter temporário ou permanente.

1
Há uma grande polêmica em relação à expressão mais adequada para designar as pessoas que são encontradas dormindo ou tomando suas
refeições, enfim, vivendo na rua. De um lado, para alguns, as expressões “morador de rua” ou “moradora de rua” são inadequadas porque a rua
não é moradia para quem quer que seja e ela poderia, assim, “naturalizar” uma condição de vida que deve ser rechaçada. As expressões deve-
riam, então, ser substituídas pela expressão “pessoas em situação de rua”. De outro lado, colocam-se os que defendem as expressões men-
cionadas para fortalecer uma espécie de denúncia e que a expressão substituta “em situação de rua” camufla, eclipsa a verdadeira situação
histórica de exclusão da população que vive nas ruas do País. Neste trabalho, as expressões serão usadas livremente, pois nele estão claras a
posição ideológica do pesquisador em relação a essa população e suas relações com o Estado e com a Sociedade Civil em geral.

78 CADERNO DE ESTUDOS EDESP


CONJUNTURA DOMINANTE
O Poder Público brasileiro considera que a rua, enquanto moradia desses atores, tem um
caráter “temporário” e, por isso, acaba por considerá-los como “população em situação de rua”.
Tal proclamação traz implícita que a transitoriedade é histórica e é adstrita às relações sociais
injustas, decorrentes de um modo de produção que tem compromisso com a desigualdade e
ao qual corresponde uma sociedade rigidamente hierarquizada e provocadora da discrimina-
ção e, no limite, da exclusão. No entanto, ela é apenas retórica, pois a políticas do Estado Bur-
guês acabam determinando a continuidade e a permanência – porque não dizer, a eternização
– dessa “temporariedade”. “População em situação de rua” não deixa de ser uma nomenclatura
lenitiva para as consciências culpadas e, ao mesmo tempo, uma forma política que o Poder
Público, o Estado, encontrou para se aliviar ou se eximir de uma grave responsabilidade que
é sua. Considerá-la como transitória, como situação específica de um momento, ou de uma
conjuntura, é também uma forma de negar a desigualdade como tendência estrutural do Ca-
pitalismo. Finalmente, mesmo encarando-a como transitória, considera-a como resultante da
acomodação, da falta de coragem, da preguiça, da vagabundagem, em suma, da culpa do(a)
próprio(a) excluído(a), debitando na conta da responsabilidade individual do(a) excluído(a) a
própria exclusão.
A “população em situação de rua” carrega consigo algo que é muito maior do que o querer ter
o poder de consumo desenfreado, imposto pelo sistema capitalista nas suas várias vertentes:
a vontade de ser livre, de poder sentir-se como um ser presente e percebido entre outros atores
sociais, de não se transformar em mero número estatístico, em um mero indivíduo. Entretanto, o
alcance da liberdade plena exige maturidade intelectual para se chegar, à luz da reflexão crítica, à
compreensão da “essência”2 das coisas, dos fundamentos da violência (física ou simbólica), em
suma, da opressão. Ora, sabe-se que, por suas condições materiais de existência concreta, essa
população acaba por não ter as ferramentas mentais e intelectuais necessárias a essa análise
crítica, acabando por sucumbir-se ao fatalismo que muito ajuda a produção e a reprodução da
opressão, que fortalece, enfim, este mundo caracterizado pela falta de amor. A força da vontade
de ser livre ultrapassa suas capacidades e não elimina o sentimento de impotência, acabando por
fortalecer a submissão do(a) morador(a) de rua ao momento presente, reforçando o imediatismo
da luta pela sobrevivência, fazendo-o(a) sentir-se mais distante da dignidade humana. Não que
ele(a) a perca de uma só vez... a dignidade sempre terá voz na sua consciência... mas, pouco a
pouco, ela vai se estiolando diante das humilhações a que tem de se submeter para garantir o
mínimo de sobrevivência.

2
Essência, aqui, entre aspas, porque ela não existe, numa perspectiva materialista dialética, que é o referencial teórico desta dissertação.
O termo será usado ao longo deste trabalho como força de expressão de uma realidade necessária, porque determinada pela correlação
de forças históricas. As aspas denotam sua contingência, isto é, seu caráter histórico e, portanto, possível de ser superado.

CADERNO DE ESTUDOS EDESP 79


LIMITE DA CIDADANIA
Sabe-se que a opressão sofrida por essa população, por mais explícita que seja, acaba se tor-
nando invisível aos olhares dos passantes, que se fazem alheios a ela, certamente porque o opres-
sor passa a habitá-los, seja por meio do controle do Estado e de seus mecanismos e instrumentos
legais, seja pelo domínio das instituições (aparelhos ideológicos do Estado) e dos meios de comu-
nicação. As exclusões vão acontecendo, sem que quase nada seja dito ou feito para que elas, no
mínimo, se reduzam. Vale dizer que no mundo capitalista contemporâneo a cidadania é medida
pelo grau da capacidade de consumo e que, portanto, a maior exclusão se dá pela anulação da
possibilidade de consumo. Neste sentido, a população de rua vive uma espécie de “subcidadania”,
ou de “anticidadania”, no limite, de “não cidadania”. O mais terrível é que, “vacinados” pela desu-
manidade da sociedade burguesa, muitos “cidadãos” (consumidores) passam diante dos(as) “não
cidadãos(ãs)” e não percebem que a superação da fome, este terrível sofrimento provocado pela
sensação do vazio e que assombra uma grande parcela dessa população, não pode estar sujeita
às leis do mercado, na medida em que o alimento básico é um direito fundamental e universal de
todo ser vivo... ainda mais do ser humano.
Para os moradores e moradoras da rua, quando o sol desponta, emerge com ele mais um dia
de esperança, mais uma jornada de busca de alimentos pela sobrevivência, que passa a significar,
sem metáforas, mais que um desafio, uma verdadeira luta de vida ou morte.
O Estado Burguês, embora não seja árbitro na luta de classes, com o encargo de proteger os
mais fracos da sanha dos opressores, mas sendo o verdadeiro organizador da dominação e da re-
produção da dominação, se apresenta sempre como o responsável pelo “bem-estar” da população
de rua, na medida em que, mesmo na sua versão burguesa, ele busca a consolidação da Nação
que, para ser constituída, tem de oferecer um mínimo de condições materiais de existência a to-
dos os seus membros. Os (as) moradores(as) de rua constituem uma espécie de ferida exposta do
sistema vigente, podendo, inclusive, ensejar e fundamentar os argumentos dos críticos ao regime
hegemônico e, no limite, alimentar revoltas e rebeliões. Os dominadores e agentes desse Estado
não percebem que sua característica excludente é decorrente de sua tendência estrutural e que,
portanto, para eliminar a exclusão é necessário alterar a própria natureza do Estado e da Socieda-
de que lhe é correspondente3. Contudo, como esta última possibilidade somente se dará por meio
de um processo revolucionário e os dominantes jamais farão a transformação estrutural, nem
muito menos a revolução, as políticas assistencialistas e as atitudes individuais e sentimentais da
caridade alheia acabam por se tornar ação “enxuga gelo”, porque a retirada das ruas de alguns de
seus moradores é compensada por outras levas que aí chegam em decorrência do funcionamen-
to do próprio sistema instituído. Opressor e oportunista é este mesmo sistema “protetor” dos mais

3
Como escancarou o Marxismo, a cada tipo de Estado corresponde um tipo de Sociedade, já que o primeiro é a organização da dominação e
da reprodução da dominação e, não, o instrumento da reequilibração das diferenças provocadas pela luta de classes. Neste caso, a Sociedade
se autojustifica na sua rígida hierarquização social.

80 CADERNO DE ESTUDOS EDESP


fracos, que exclui os menos desprovidos da sorte, cuja exploração é que permite a acumulação
para a classe que mais tem. Os fracos se enfraquecem cada vez mais e possuindo cada vez me-
nos, vai ficando cada vez mais distante da libertação tão desejada e esperada.
Esses seres oprimidos, que caminham em círculos à procura de um espaço no meio social,
em busca de autonomia, de serem ouvidos, são considerados desocupados, vagabundos, pre-
guiçosos, como já foi afirmado neste trabalho, esperando encontrar apenas um caminho, uma
oportunidade para a chegada a um bom destino. Não são simplesmente “desocupados”; estão
desocupados tão somente pelo fato de o sistema os terem desocupado, pelo fato de o modo
de produção não os ocuparem mais, descartando-os pelo mesmo “princípio da obsolescência”
que domina a sociedade consumista em relação aos bens “duráveis” – aliás, no Capitalismo con-
temporâneo ainda existe bem durável? A mão de obra “menos qualificada” é a mais descartável,
quando nas fases anteriores do próprio Capitalismo ela era fundamental, não apenas para os
processos produtivos, como também para os reparos nos bens danificados. Entretanto, para não
por a culpa no próprio sistema, as causas são da precarização do trabalho – não foi assim que a
caracterizou Ricardo Antunes (1995), ao perceber uma espécie de “desproletarização” do trabalho
industrial e, por que não dizer, do próprio mundo do trabalho como um todo?
Várias são as formas de que se reveste a exclusão, mas todas elas acabam tendo origem na
“desempregabilidade” gerada pelas estratégias que a acumulação capitalista assumiu na atualida-
de, a partir da chamada “reconversão tecnológica” do sistema produtivo, que substituiu boa parte
da mão de obra humana, dos trabalhadores, enquanto atores da produção, e os lançou no limbo
do mercado de trabalho, ou melhor, os despejou e despeja todos os dias nas ruas das grandes
cidades, onde a chamada “economia informal” se desenvolve e permite o desenvolvimento de ati-
vidades “paralelas” ao mercado, garantindo a sobrevivência de milhões de subcidadãos.

CONCLUSÃO
O sistema econômico com esse modelo, com esse rabisco, não será capaz de promover políti-
cas de inclusão para a população de rua, pois a classe dominante se mantém de uma forma rígida,
incapaz de pensar e elaborar esta política, pois, sendo assim, a mantém excluída sem qualquer
possibilidade de superação.
A autonomia, a criticidade, são elementos importantes a esta população, podendo provocar uma
reflexão sobre sua existência e sua importância política na sociedade, pois a reflexão provoca uma
transformação em si e no universo que o cerca, que por sua vez altera o sistema transformando-o
em um ator autônomo, independente e crítico, sendo que este movimento o conduz à superação.

CADERNO DE ESTUDOS EDESP 81


Fernando Leonel Henrique Simões de Paula é professor de
Educação Física – Universidade Cidade de São Paulo; especialista em Ges-
tão Escolar – Universidade Cidade de São Paulo; especialista em Gestão
de Esporte – Universidade Nove de Julho; pedagogo – Faculdade Aldeia de
Carapicuíba; mestre em Educação.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
ANTUNES, Ricardo. Adeus ao trabalho? Ensaio sobre as metamorfoses e a centralidade do mun-
do do trabalho. São Paulo: Cortez; Campinas SP: Ed. da Unicamp, 1995.
GOLDMANN, Lucien. A criação cultural na sociedade moderna. São Paulo: DIFEL, 1972.
JACOBI, Pedro. Movimentos sociais e políticas públicas: Demandas por saneamento básico e
saúde. São Paulo 1974-84. 2. ed., São Paulo: Cortez, 1993.
NOGUEIRA, Marco Aurélio. Um Estado para a Sociedade Civil: Temas éticos e políticos da gestão
democrática. São Paulo: Cortez, 2004.
PONCE, Aníbal. Educação e lutas de classes. São Paulo: Cortez, 1982.
ROSDOLSKY, Roman. Gênese e estrutura de O capital de Karl Marx. Rio de Janeiro: EDUERJ;
Contraponto, 2001.
SADER, Eder. Quando novos personagens entraram em cena: Experiências e lutas dos trabalha-
dores da Grande São Paulo 1970-1980. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1988.
SECRETARIA MUNICIPAL DE ASSISTÊNCIA SOCIAL. Censo da população em situação de rua de
São Paulo 2009-2010. Disponível em: <http://www.prefeitura.sp.gov.br/cidade/secretarias/assis-
tencia_social/observatorio_social/pesquisas/index.php?p=2013>. Acesso em: 4 out. 2012.

82 CADERNO DE ESTUDOS EDESP


SERVIÇO DE ACOLHIMENTO
INSTITUCIONAL: DO CONSTRUIR
JUNTO À GESTÃO PARTICIPATIVA
DO SERVIÇO
Por Leonardo Duart Bastos

A
Casa Antonio Fernando dos Santos (CAFS) é um serviço de acolhimento institucional na
modalidade abrigo que atende pessoas em situação de rua em Campinas-SP em parceria
com a Secretaria Municipal de Assistência Social e Segurança Alimentar. Abriga 20 pes-
soas adultas em um imóvel na região central, e os moradores desenvolvem o seu plano
para superar a situação de rua. O serviço segue a Política Nacional de Assistência Social (2004).
Na construção cotidiana, o que caracteriza a CAFS é a horizontalidade nas relações e a parti-
cipação dos moradores e funcionários nos processos decisórios e na concretização do projeto.
Ou seja, morador e funcionário são constantemente convidados a refletirem sobre as questões do
abrigo, além de participar das tomadas de decisões. Nesse processo, todos são considerados em
mesmo grau de importância, não prevalecendo a ideia de que alguém é mais autoridade ou capaz
que outro. Na perspectiva de Freire (2011), o caminho adotado nesses espaços é o de dialogar e
pensar sobre a visão de todos. Sendo que a visão dos moradores, atendidos pelo serviço, reflete
a sua situação no mundo.
Essa horizontalização das relações não desconsidera os espaços e histórias diferentes que os
atores ocupam, seus papéis e seus saberes. Aliás, exige o reconhecimento das diferenças e os limi-
tes de cada um, tornando desafiadora a constituição de um diálogo efetivo entre esses diferentes.
Possibilitar que o conhecimento acadêmico da equipe técnica possa ser considerado um pro-
cesso de construção no qual se envolva um “usuário do serviço” exige mais que acreditar na
capacidade desse “usuário” de estar junto com o técnico nesse processo, exige um repensar na
função desse conhecimento acadêmico, o qual não deve servir para tornar o técnico um analista
ou cientista que tem o “fenômeno pessoa em situação de rua” como objeto de estudo, mas um
técnico que tenha o conhecimento como meio que ajuda a pensar junto, de forma que o atendido
possa conhecer melhor a si próprio e as diversas relações que envolvem seu projeto de vida, para
a partir daí fazer escolhas conscientes e se responsabilizar por elas.
O objetivo de fazer junto com o usuário é construir uma compreensão acerca do pensamento
linguagem referido à realidade, e não analisar os moradores como se fossem peças anatômicas,

CADERNO DE ESTUDOS EDESP 83


para assim poder emergir os temas geradores que serão a base da reflexão que contribuirá para
o processo de empoderamento do sujeito (Freire, 2011).
Dentro desse contexto, tem-se a participação mais efetiva do usuário na gestão de seu projeto
de vida, nas relações com a CAFS e nas decisões quanto à operacionalização do projeto. Antes de
criar espaços deliberativos no projeto, é preciso encarar o desafio de transformar todos os espa-
ços, todos os encontros, em momentos participativos.

Leonardo Duart Bastos é psicólogo social, coordenador de projetos


da Cáritas Arquidiocesana de Campinas no Serviço de Acolhimento Institu-
cional da Casa Antonio Fernando dos Santos. Conselheiro do Conselho Mu-
nicipal de Assistência Social de Campinas; assessoria e políticas públicas de
saúde mental e de assistência social.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
FREIRE, P. (1968). Pedagogia do oprimido. 50ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2011. 253p.
MINISTÉRIO DO DESENVOLVIMENTO SOCIAL E COMBATE À FOME. Secretaria Nacional de Assis-
tência Social. Política Nacional de Assistência Social – PNAS. Brasília, DF, 2004.

84 CADERNO DE ESTUDOS EDESP


EXPERIÊNCIA DA REDE DE FERRAZ
DE VASCONCELOS
Por Silvia Regina de Melo Auricchio

N
o município de Ferraz de Vasconcelos (SP) é possível observar diariamente pessoas pe-
rambulando e/ou utilizando os espaços públicos como moradia; elas circulam em pe-
quenos grupos ou individualmente. Parece que essas pessoas fazem parte do cenário
urbano, pois grande parte da população transita de um lado a outro sem percebê-las.
Diante dessa realidade, o município buscou diagnosticar por meio de entrevistas a problemá-
tica das pessoas em situação de rua, identificando de forma geral as condições em que vive essa
parcela da população, apontando os principais problemas enfrentados, na perspectiva da violação
de direitos e das estratégias de sobrevivência desenvolvida. Tendo como pano de fundo uma
sociedade que produz diariamente pessoas subjugadas, consideradas invisíveis perante a socie-
dade, sendo ainda vítimas de todas as formas de preconceito.
Tal diagnóstico apresentou indivíduos que acumulavam perdas, fracassos, impossibilidades,
frustações, violências, rupturas por conflitos e brigas, ou seja, apresentavam histórias de rupturas
sucessivas e que, com muita frequência, estavam associadas ao uso de substancias psicoativas
e etílicas, não só pela pessoa que estava na rua, mas por outros membros da família.
Observamos que tais fenômenos faziam esses indivíduos se distanciarem da perspectiva de
projeto de vida. Situações que culminaram no sentimento de impotência perante a vida, por vezes
provocando dificuldade para estabelecer vínculos.
A partir desse levantamento, observou-se a necessidade de elaborar estratégias e propostas
de intervenção que estivessem em consonância com o perfil de cada morador, priorizando o aten-
dimento individual, ou seja, pautado na singularidade de cada ser.
O nosso desafio, enquanto trabalhadores da assistência social, estava em elaborar alternativas
que pudessem adequar-se à realidade de quem vive nas ruas, especialmente que levassem em
conta o estágio em que as pessoas se encontravam, ações que respeitassem o nível de autono-
mia e o desejo de cada indivíduo. Ações personalizadas que reconhecessem a singularidade de
cada usuário do serviço, por mais difíceis, eram as mais apropriadas para propiciar o reconheci-
mento de potencialidades e promover a construção da autonomia. Visualizar essa proposta de
trabalho nos proporcionou repensar a prática profissional, as políticas e os serviços que estão à
disposição dessa população, nos permitindo reavaliar alguns conceitos e ações.
Buscamos nos pautar nos seguintes questionamentos: 1. Para essa população sair dessa si-
tuação é oferecido atendimento com diferentes características em serviços, com diferentes regras,
alguns não estabelecem tempo de permanência, outros permitem pernoite, enquanto há aqueles

CADERNO DE ESTUDOS EDESP 85


que possibilitam a permanência que varia de três dias a seis meses, podendo ser prorrogado ou
não. 2. Geralmente esses equipamentos oferecem acolhida, higienização e alimentação, além do
trabalho técnico dos profissionais que atuam realizando encaminhamentos, fazendo atendimen-
tos, garantindo condição de convivência. Mas qual o tempo ideal para que o usuário restaure
suas competências para autonomia? 3. Será que conseguiríamos mudar nossos hábitos, retomar
vínculos perdidos, reestabelecer laços familiares e garantir estabilidade financeira que nos propi-
cie autonomia considerando o intervalo de tempo que é dado ao usuário do serviço? 4. O fato de
esperar dos outros repostas que eles não estão prontos para dar; a ausência de flexibilidade das
regras (temos ciência da importância da existência destas, mas pode-se buscar trabalhá-las de
maneira flexível ou mesmo construí-las em comum acordo com o grupo assistido); a ausência de
uma escuta desprovida de preconceitos, do nosso ponto de vista, é um caminho que não facilita
a construção da autonomia.
Concluímos ser preciso avançar na problematização das ações cotidianas que vêm sendo exe-
cutadas pelos serviços disponibilizados a essa população; abordar temas que permitam uma re-
flexão sobre tais ações; questionar, por exemplo, o fato de muitas vezes os profissionais atuantes
serem reprodutores dos preconceitos socialmente construídos acerca dessa população, por meio
da reprodução de falas do senso comum, falas contraditórias.
A respeito dessa questão, é interessante refletir sobre a importância de manter nossos princí-
pios, abandonar nossas convicções morais e religiosas e atentar para os cuidados em não refor-
çar a exclusão presente no cotidiano desses sujeitos, atuando sempre em defesa do sujeito na
perspectiva do direito. Abandonar a crença - ainda, infelizmente, muito presente - do atendimento
de benevolência, de um favor prestado à população, no qual se oferta “serviços pobres, já que são
destinados a pessoas pobres”. Abandonar o atendimento genérico, tarefeiro e mecânico, em que,
por falta de capacitação e formação técnica aos profissionais que atendem esta demanda, em
razão do fluxo de atendimento estabelecido, os profissionais acabam subordinados e limitados,
o que contribui para um atendimento restrito e impessoal. Além disso, é preciso pensar sobre a
ausência de políticas públicas, que também convergem para condições nas quais as pessoas
em situação de rua, com diferentes perfis e traços de personalidade, são submetidas às mesmas
metodologias de atendimento.
Outro fator importante é compreender que o universo da população de rua se renova constan-
temente; as características, comportamentos e estratégias de sobrevivência da população atual
se diferem dos até então conhecidos. O reconhecimento do perfil deve se estabelecer por meio
de de um levantamento de informações referente ao histórico pessoal, familiar, profissional e de
saúde, além de outros dados, como tempo de exposição nas ruas, grau de vulnerabilidade física e
psíquica, comprometimento com substâncias psicoativas e etílicas, existência de vínculos fami-
liares, entre outros, que propiciará aos profissionais dos serviços a ambiência, o tempo e a dispo-
nibilidade necessários para a humanização do atendimento ofertado, a realização de um trabalho
pautado na escuta, no desenvolvimento de laços de confiança e respeito.
Essas ações são imprescindíveis para que a relação entre os profissionais e o atendido se
torne menos genérica, mecânica e burocrática, além de permitir a elaboração compartilhada de
planos de ação a curto, médio ou longo prazo, considerando as demandas e potencialidades de
cada atendido e os encaminhamentos específicos e que resultem em ações concretas.

86 CADERNO DE ESTUDOS EDESP


Para tanto, faz-se necessário criar processos de aproximação e articulação com a rede, e isso
implica visitas aos equipamentos, ampliando informações sobre a demanda e estabelecendo par-
cerias com serviços específicos que tenham uma atuação mais personalizada.
Dessa forma, propicia-se a essa rede conhecer as limitações dessa população para que seja
acolhida em suas fragilidades no momento do atendimento. Porém, é preciso considerar que as
conquistas e os bons resultados advêm da consolidação de uma ampla rede de proteção e da uni-
versalização do acesso aos serviços (assistência, saúde, educação, habitação), embora saiba-se
que, infelizmente não é o bastante, mas é um fator importante para a real efetivação dos direitos dos
indivíduos em situação de rua, pois uma política por si só não consegue dar respostas para todos
os problemas sociais.

Silvia Regina de Melo Auricchio é graduada no Curso de Serviço


Social pela Universidade Camilo Castelo Branco (Unicastelo). Atuou na equi-
pe da Proteção Social Especial da Secretaria Municipal de Desenvolvimento
e Promoção Social – Ferraz de Vasconcelos, para o serviço Especializado
em Abordagem Social e Serviço de Acolhimento Institucional para Pessoas
em Situação de Rua. Secretaria executiva no Conselho Municipal de Assis-
tência Social – FV (CMAS).

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
Termo de orientação – Atuação de assistentes sociais em abordagem social na rua. Disponível
em: <http://www.cressrj.org.br/download/arquivos/termo-de-orientacao-abordagem-na-rua.pdf>.
Acesso em: 30 de janeiro. 2016.
Diálogos sobre a população em situação de rua no Brasil e na Europa: experiências do Distrito
Federal, Paris e Londres. Disponível em: <http://www.sdh.gov.br/assuntos/bibliotecavirtual/pro-
mocao-e-defesa/publicacoes-2013/pdfs/dialogos-sobre-a-populacao-em-situacao-de-rua-no-bra-
sil-e-na-europa-1>. Acesso em: 30 de janeiro. 2016.

CADERNO DE ESTUDOS EDESP 87


Crianças e
Adolescentes
Ameaçados
de Morte e
os Desafios
da Proteção
O PROGRAMA DE PROTEÇÃO
A CRIANÇAS E ADOLESCENTES
AMEAÇADOS DE MORTE
E O CONTEXTO GERAL DE
METODOLOGIA E IMPLEMENTAÇÃO
NO ESTADO DE SÃO PAULO1
Por Ana Carolina Melo de Siqueira

E
ste texto tem o objetivo de contextualizar o Programa de Proteção a Crianças e Adolescentes
Ameaçados de Morte (PPCAAM) no Estado de São Paulo, no que tange à sua instituição, tran-
sição da gestão do Município para o Estado, metodologia e procedimentos, com o intuito de
difundir o Programa e levá-lo a um debate amplo, que busque sempre seu aperfeiçoamento.
O PPCAAM foi criado pelo Governo Federal no ano de 2003 e instituído, por meio do Decreto pre-
sidencial n° 6.231, em outubro de 2007, como uma iniciativa para a garantia dos direitos humanos
de crianças e adolescentes diante dos altos índices de letalidade infanto-juvenil registrados no Brasil.
O Programa consiste em uma política pública de natureza protetiva destinada a crianças e
adolescentes ameaçados de morte, bem como a jovens adultos até 21 anos, desde que egressos
do sistema socioeducativo. Foi desenvolvido em conformidade com os princípios da proteção in-
tegral, dignidade da pessoa humana e convivência familiar, e de acordo com os demais princípios
expressos no Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), Lei Federal nº 8.069/90, e tratados,
destacando-se a Convenção da Organização das Nações Unidas (ONU) sobre Direitos da Criança,
não sendo vinculada a atuação do programa à colaboração do protegido em inquérito policial ou
processo criminal, como se fazia antigamente, quando não existia o PPCAAM.

1
Este artigo é de autoria de Ana Carolina Melo de Siqueira, membro titular e secretária executiva do Conselho Gestor do PPCAAM, com base
nas palestras proferidas por Flasriston Francisco da Silva, coordenador geral do PPCAAM/SP, e por Marco Alexandre Davanzo, membro
suplente no Conselho Gestor do PPCAAM/SP, sobre o tema "Crianças e Adolescentes Ameaçados de Morte e os Desafios da Proteção" para
a Série Dialogando 2016.

CADERNO DE ESTUDOS EDESP 89


Por volta do ano de 2000, os casos de crianças e adolescentes ameaçadas eram encaminha-
dos ao Programa de Proteção a Vítimas e Testemunhas (Provita), programa que atuava desde
1996 na proteção de indivíduos que figuravam como vítimas ou testemunhas em processos ju-
diciais e, em decorrência disso, eram ameaçados de morte, necessitando da intervenção estatal.
Porém, com o passar do tempo, observou-se que o Provita era incompatível com as pecu-
liaridades intrínsecas do público infanto-juvenil. Dessa forma, a proteção, que anteriormente só
seria garantida se houvesse vínculo à participação em processo judicial, precisaria considerar a
diversidade da trajetória que leva o sujeito a situação de ameaça e, além da garantia incondicional
da sua integridade física e emocional, assegurar as condições do seu desenvolvimento futuro em
consonância com a Constituição Federal de 1988 e com o Estatuto da Criança e do Adolescente.
Nesse sentido, criou-se o programa de proteção a Crianças e Adolescentes Ameaçados de
Morte (PPCAAM), como forma de transformar as inquietações, vivenciadas anteriormente com
a experiência de inserção desse público no Provita, em um programa efetivo com metodologia
própria que garantisse a proteção à vida de crianças e adolescentes ameaçados.
Ao longo dos anos o Programa PPCAAM foi sendo consolidado em alguns Estados e, no con-
texto nacional, foi se adequando e aperfeiçoando a metodologia, tendo como base o diálogo e a
experiência vivenciada nos Estados, objetivando sempre garantir segurança nas operações, bem
como atender às especificidades desse público.
No ano de 2004, no Estado de São Paulo, o programa era executado pelo Município de São
Paulo, que havia firmado convênio diretamente com a União com vigência até 31 de outubro de
2012, atendendo 935 (novecentos e trinta e cinco) casos durante esse período. Nessa época um
único juiz centralizava os encaminhamentos para o PPCAAM, facilitando a triagem e inserção –
ou não – no programa (Provimento 18 TJSP).
Em novembro de 2012, o PPCAAM passou a ser de responsabilidade e gestão do Governo do
Estado, conforme Decreto Estadual n° 58.238, de 20 de julho de 2012, momento em que foi assi-
nado convênio com uma Organização da Sociedade Civil para executar os atendimentos, estipula-
dos como meta atender até 120 casos.
Previamente a essa transição Município–Estado foram feitas diversas reuniões realizadas
por um Grupo de Trabalho instituído em 2008 para debater sobre a viabilidade e o modelo a ser
adotado de PPCAAM no Estado de São Paulo. Deliberaram que seria de grande importância o
gerenciamento, a coordenação e execução do programa pelo Poder Público com a escolha da
Secretaria da Justiça e da Defesa da Cidadania para essas atividades e centralização das solici-
tações. Durante esse processo de transição foi realizado, também, um processo de capacitação
pela Coordenação Nacional do Programa à equipe da Organização da Sociedade Civil executora
do Programa, selecionada por meio do chamamento público.
A partir daí, em novembro de 2012, deu-se início aos trabalhos do PPCCAM em todo Estado de
São Paulo, e em consonância com o Decreto Estadual n° 58.238/2012 os encaminhamentos dos
casos passariam a ser feitos por meio das Portas de Entrada, instituições autorizadas para solicitar
o programa, quais sejam: Poder Judiciário; Ministério Público, Defensoria Pública e Conselho Tute-
lar. Tal requerimento deve ser feito à Secretaria da Justiça e da Defesa da Cidadania, por ofício que
acompanhe a Ficha de Pré-avaliação, instrumental elaborado pela Coordenação Nacional que com-
pilou as informações necessárias a serem estudadas pela equipe técnica na avaliação dos casos.

90 CADERNO DE ESTUDOS EDESP


Estruturalmente, no âmbito nacional, o PPCAAM conta com a Coordenação Nacional vinculada
a Secretária Nacional de Promoção dos Direitos da Criança e do Adolescente da Secretaria Especial
de Direitos Humanos do Ministério da Justiça e Cidadania, que atua na articulação das ações do Pro-
grama nos Estados, garantindo-lhes unidade, e no fortalecimento da articulação com outros órgãos
e políticas correlatas ao enfrentamento da violência letal contra crianças e adolescentes no Brasil.
Como apoio à Coordenação Nacional conta também com o Núcleo Técnico Federal, criado
para assessorá-la nos casos em que a proteção requer transferência de Estado, bem como buscar
efetivamente a proteção, por meio do trabalho em rede com o sistema de garantia de direitos, nos
Estados em que não há o Programa.
Nas Unidades da Federação em que há o PPCAAM, o programa conta com sua equipe técnica
que, conforme mencionado anteriormente, trabalha de forma efetiva na proteção. Além da equipe
técnica, tem-se o Conselho Gestor que consiste em um órgão colegiado, formado por representan-
tes do Governo Estadual (Secretaria do Desenvolvimento Social; Secretaria da Educação; Secreta-
ria da Saúde; Secretaria de Segurança Pública); Ministério Público; Tribunal de Justiça; Defensoria
Pública; Condeca e representantes da Organização da Sociedade Civil, com caráter deliberativo,
consultivo, orientador, articulador e fiscalizador que zela pela qualidade e efetividade do Programa.
No que tange aos procedimentos do Programa, a inclusão ocorrerá após análise pela equipe de
profissionais da entidade executora dos documentos encaminhados pelas portas de entrada e após
entrevistas a serem realizadas com a criança/adolescente, o responsável legal e um representante da
porta de entrada. Essas entrevistas acontecem sempre em locais neutros, distante do local da ameaça.
A inclusão da(do) criança/adolescente está vinculada à sua voluntariedade e/ou a seu respon-
sável legal, além disso, será necessário demonstrar a existência de ameaça iminente de morte.
Faz-se necessário esclarecer que, em consonância com o guia de procedimentos do Progra-
ma, existem modalidades de inclusão distintas, quais sejam:

a) Inclusão da criança ou adolescente com seus responsáveis:


• Nessa modalidade de inclusão, o ameaçado ingressa acompanhado
de um ou mais responsáveis e/ou membros da família, que são deslo-
cados para local seguro e distante do lugar da ameaça;

b) Inclusão da criança ou adolescente sem responsável legal, mas


com sua autorização:
• Nos casos em que o ingresso no Programa é realizado sem a retaguarda
familiar, a proteção será viabilizada por meio do acolhimento institucional
(abrigo provisório, casa de passagem, casa lar etc.) e/ou a família acolhe-
dora, serviços de proteção social especial de alta complexidade, previstos
no Artigo 101 do ECA;
•Em casos excepcionais, é possível adotar o recurso da moradia indepen-
dente, sendo necessário que o protegido tenha idade mínima de 18 anos
ou autorização judicial para tal e perfil favorável para gerir sozinho sua vida;
• O acompanhamento pela equipe técnica local será feito de maneira siste-
mática durante a permanência no Programa, e essa terá o papel de auxiliar

CADERNO DE ESTUDOS EDESP 91


a inserção do núcleo familiar na nova comunidade, acompanhar e estimu-
lar o protegido a frequentar a escola, a inserir-se em novos espaços de con-
vivência e a construir alternativas de profissionalização quando adequado;

c) Inclusão da criança ou adolescente sem responsável legal, mas


com autorização judicial:
• Quando o ameaçado é inserido sem seu responsável legal e sem a au-
torização desse, será indispensável autorização judicial para ingresso
no Programa. Os demais procedimentos se equiparam à inclusão com
autorização do responsável legal.
(Guia de Procedimentos PPCAAM, 2017)

Observa-se que, nos casos em que os responsáveis legais não tenham disponibilidade para
abandonarem o local de risco, a metodologia do programa possibilita a oferta da proteção indivi-
dualmente à criança ou ao adolescente que está sob ameaça. Porém, a modalidade de inclusão
para os casos sem o acompanhamento do responsável legal demanda necessariamente o equi-
pamento de acolhimento institucional, o que gera severas críticas ao Programa.
De fato, trata-se de uma questão que precisa evoluir em termos de debates e encaminhamentos
junto com os atores para pensar em novas possibilidades. Atualmente o que se observa é uma falta
de definições sistematizadas sobre o papel de cada ator na proteção do ameaçado, o que traz insegu-
rança aos profissionais dos acolhimentos, gerando consequentemente resistência nesses serviços em
relação aos usuários do Programa, muitas vezes estigmatizados por serem considerados uma ameaça
para outros acolhidos. Esse entendimento, no entanto, simplesmente não leva em consideração todo o
trabalho de uma equipe em relação à abrangência da ameaça, a fim de selecionar o local da proteção.
Ademais, outro ponto conflituoso consiste na municipalização das vagas de acolhimento ins-
titucional. O público do Programa apresenta necessidades peculiares se comparada às demais,
uma vez que, em virtude da ameaça sofrida, precisam sair de uma região para outra localidade
segura, situação que está em descompasso com as diretrizes de utilização dos acolhimentos e
precisam ser consideradas nos debates.
Vale acrescentar que, por meio de um trabalho da equipe técnica na sensibilização da família,
atualmente o número de crianças e/ou adolescentes que necessitam do acolhimento institucio-
nal não é alto. O perfil hoje da modalidade de inclusão inverteu. No início de 2016, o Programa
apresentava 70% dos casos de inclusão na modalidade proteção sem responsável legal, fazendo
necessário o trabalho em conjunto com o serviço de acolhimento. Os dados atuais mostram que
apenas 30% dos casos entram nessa modalidade, sendo os outros 70% inseridos na modalidade
de proteção com a família. Observa-se que essa modalidade de proteção familiar é mais eficiente,
pois dificilmente o adolescente retorna ao local de ameaça e o trabalho de reinserção social segu-
ra é feito com todo o núcleo familiar.
Superadas essas questões, havendo a inclusão do adolescente, independentemente da moda-
lidade, haverá um trabalho intenso de reinserção social segura, sendo a previsão legal de um ano
para permanência no programa, podendo ser esse prazo prorrogado, em situações excepcionais,
após autorização do Conselho Gestor.

92 CADERNO DE ESTUDOS EDESP


Durante esse processo, a criança e/ou adolescente e seus familiares assumem o compromis-
so de cumprir as normas de proteção do Programa. Caso haja o descumprimento reiterado de
normas, poderão ser desligados. Além disso, serão motivo de desligamento: cessação da ameaça
de morte; inserção social em local seguro; condutas conflitantes com a proteção; solicitação do
usuário; evasão do local de proteção; determinação judicial.
No decorrer da execução do Programa, os casos de inclusão, não inclusão e desligamento são
obrigatoriamente apresentados ao Conselho Gestor que deliberará sobre a indicação (inclusão,
não inclusão, desligamento) da equipe. Além disso, as Portas de Entrada também recebem relató-
rios informativos acerca da avaliação e acompanhamento do Programa, encerrando, dessa forma,
o fluxo básico das atividades.
Por fim, vale reafirmar a importância de um programa como o PPCAAM, que tem como papel
auxiliar no afastamento da ameaça e na reinserção segura e sustentável de crianças e adoles-
centes. E tem se mostrado relevante para o fim que se destina, pois permite a efetiva proteção de
crianças e adolescentes ameaçados de morte, sendo, sem exagero, uma das únicas políticas de
Estado voltadas à prevenção e superação da letalidade de crianças e adolescentes.

Ana Carolina Melo de Siqueira é Advogada pela Pontifícia Univer-


sidade Católica de Minas Gerais, pós-graduada em Direito e Relações do Tra-
balho pela Faculdade de Direito de São Bernardo do Campo/SP. Atualmente
é Secretária Executiva do Programa de Proteção a Crianças e Adolescentes
Ameaçados de Morte (PPCAAM) e Secretária Executiva Suplente do Progra-
ma de Proteção a Vítimas e Testemunhas (Provita).

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
Centro Popular de Formação da Juventude – Vida e Juventude em parceria com a Secretaria
de Direitos Humanos da Presidência da República, 2010, PPCAAM - Programa de Proteção a
Crianças e Adolescentes Ameaçados de Morte. Disponível em <http://www.crianca.mppr.mp.br/
arquivos/File/publi/sedh/ppcaam_livro_2010.pdf>. Acesso em: 04 de fevereiro de 2017.

Guia de Procedimentos PPCAAM. Disponível em <http://www.mppa.mp.br/upload/Guia_de_Pro-


cedimentos_PPCAAM.pdf>. Acesso em: 04 de fevereiro de 2017.

Processo Interno da Secretaria da Justiça e da Defesa da Cidadania Grupo de Trabalho para


estudos voltados a implementação de Programa de Proteção a Crianças e Adolescentes Amea-
çados de Morte no Estado de São Paulo – PPCAAM/SP. (Documento Sigiloso)

CADERNO DE ESTUDOS EDESP 93


OS DESAFIOS DA CONVIVÊNCIA
FAMILIAR E COMUNITÁRIA DE
ADOLESCENTES AMEAÇADOS
DE MORTE: PROTEÇÃO NO
ACOLHIMENTO INSTITUCIONAL?
Por Alice Duarte de Bittencourt

O
debate a respeito do Programa de Proteção a Crianças e Adolescentes Ameaçados de
Morte (PPCAAM) e sua interface com os serviços de acolhimento institucional é longo e
tem-se mostrado desgastante no que se refere à polêmica entre a proteção do adoles-
cente ameaçado de morte dentro de um serviço de acolhimento versus a proteção das
crianças e adolescentes em acolhimento no mesmo serviço.
Inicialmente, creio ser necessário entendermos o serviço de acolhimento institucional como
uma comunidade de acolhida, proteção e socioeducação. Referimos comunidade porque há uma
convivência entre crianças e adolescentes de idades diversas e educadores/cuidadores dentro de
um espaço físico que deverá assemelhar-se a uma residência inserida em um bairro da cidade.
A acolhida nos traz a referência do cuidado como um elemento essencial ao atendimento a esse
público que traz consigo diversas demandas de proteção especial de alta complexidade. A prote-
ção surge como uma necessidade premente considerando a situação de vulnerabilidade pessoal
e social que crianças e adolescentes estavam em seu ambiente familiar e comunitário. Já a edu-
cação combinada com o social afirma o desenvolvimento de fatores de crescimento e autonomia,
ampliando o pertencimento familiar e comunitário.
O serviço de acolhimento institucional objetiva auxiliar no desenvolvimento e no sentimento
de pertencimento de cada um dos acolhidos, garantir a proteção integral acessando programas e
serviços da rede de proteção municipal e favorecer o desenvolvimento de vínculos de amizade e
afeto que permitam seu retorno à vida familiar e comunitária.
O serviço de acolhimento possui um papel claro de construção e reconstrução da identidade de
cada um dos acolhidos, proporcionando o exercício da autonomia e independência e permitindo que
os acolhidos encontrem seu lugar no mundo, que encontrem e participem de grupos de pertenci-
mento e que possam ampliar suas possibilidades de apoio e proteção na família e na comunidade.
Podemos perceber com clareza, por todos esses motivos elencados, que o serviço de acolhimento

94 CADERNO DE ESTUDOS EDESP


trabalha nas perspectivas de construção da individualidade e amadurecimento dos acolhidos, de for-
talecimento da família de origem para a reinserção familiar e da inserção comunitária, construindo e
fortalecendo o pertencimento e a autonomia de cada um com vistas a sua saída do serviço.
A reintegração familiar, ou seja, o retorno da criança e do adolescente acolhidos para a sua fa-
mília de origem é o principal objetivo do trabalho da equipe dos serviços de acolhimento. Quando
isto não é possível, o caminho de possibilidades é feito em direção à família ampliada que pode
ser biológica ou por afinidades, sendo a colocação feita por guarda ou tutela. Caso isso também
não ocorra, a opção é por colocação em família substituta por adoção, por meio de inscrição no
Cadastro Nacional de Adoção (CNA) após a destituição do poder familiar.
Infelizmente, a realidade se sobrepõe a esses caminhos quando nos mostra em torno de 66%
de crianças/adolescentes, entre 11 e 17 anos, acolhidos em serviços de acolhimento do Estado de
São Paulo, resultado de um levantamento feito em 2014 pela Coordenadoria da Infância e Juven-
tude do Tribunal de Justiça de São Paulo. Logo, temos uma maioria de crianças e adolescentes
em acolhimento com mais de 11 anos e que possuem, portanto, frágeis chances de adoção. Es-
ses, por outro lado, têm muitas chances de ficarem morando nos serviços de acolhimento até os
18 anos. Para eles, a política de assistência social aponta os serviços de Repúblicas para Jovens
como alternativa após 18 anos, mas há alguns critérios para a entrada e permanência. Esses cri-
térios são diversos, mas vamos considerar o que exige estar recebendo alguma renda por trabalho
ou estágio, por exemplo, e que não contempla muitos dos adolescentes em acolhimento, já que,
em geral, apresentam baixa escolaridade, dificuldades na assiduidade escolar e muita agressivi-
dade, além da incidência de doenças mentais que dificultam ainda mais as alternativas de saída
dos serviços de acolhimento aos 18 anos.
Se nos é colocada a situação de proteção de uma criança ou adolescente ameaçado de morte,
em geral pelos traficantes de drogas, que necessita de um lugar para ficar invisível, longe do local
da ameaça por algum tempo, seria o espaço de um serviço de acolhimento o mais adequado,
mesmo estando longe desse local?
Esta é a pergunta que as equipes dos serviços de acolhimento fazem, considerando o caráter
comunitário do atendimento, pois o risco colocado aos outros acolhidos e educadores traz a im-
possibilidade deste serviço cumprir o papel de tornar este adolescente ameaçado invisível perante
a comunidade. E ainda mais em tempos de tecnologias e redes sociais ao alcance de todos onde
a comunicação é instantânea e logo a localização das pessoas é reconhecida.
Quando uma criança/adolescente ameaçado de morte é recebido por determinação judicial
em um serviço de acolhimento, em geral, a equipe do PPCAAM realiza uma avaliação da ameaça
e de seu grau de gravidade, o que poderá levar de 30 a 90 dias. Considerando-se que a gravidade
da ameaça seja comprovada como alta, todos no serviço de acolhimento estarão expostos ao
mesmo risco que provocou o acolhimento da criança/adolescente.
Este é o risco do qual as equipes dos serviços de acolhimento pedem ajuda a rede para ga-
rantirem a proteção de todos. Quando uma ameaça é real e grave, ela deixa de ser uma questão
apenas da assistência social e passa a ser de toda a rede de proteção. Essa criança/adolescen-
te precisa de fato desaparecer por algum tempo e o serviço de acolhimento não é o local mais
adequado, a não ser que esteja localizado em uma cidade distante ou estado. A assistência
social tem suas competências e deveres, mas também tem limites muito claros. A rede de servi-

CADERNO DE ESTUDOS EDESP 95


ços de proteção da região ou do município precisa estar presente e atuante de modo articulado
para que a proteção se efetive.
Uma rede é feita de parceiros independentes em suas atribuições, mas dependentes em suas
parcerias. Uma rede de parceiros juntos e integrados é um espaço de debates e resoluções, um
local de escuta e onde se é ouvido, um local de produção de resultados práticos e acordados entre
todos. Uma rede deve apresentar temas com interfaces e interesses que digam respeito a todos.
Em alguns casos, minirredes temáticas podem ser organizadas para aprofundamento de assun-
tos que sejam mais pertinentes e específicos a alguns parceiros. Uma rede deve preocupar-se em
ser organizada em uma liderança conjunta com estratégias de comunicação entre os parceiros
para que todos sejam constantemente convidados e lembrados da importância da presença e
das contribuições para as deliberações conjuntas. A rede deve proporcionar também as reflexões
sobre o trabalho conjunto com avaliações e monitoramento dos encaminhamentos que devem
ser resolutivos para que o grupo cresça em proatividade e resolutividade.
Com uma rede de parceiros atuante, integrada e disponível para as interlocuções, é possível
termos espaços que efetivem as proteções e a garantia dos direitos.
Mas não devemos perder de vista que a criança e, principalmente, o adolescente ameaçados
de morte devem voluntariamente aderir ao programa de proteção. Se esta adesão não for por
espontânea vontade, não haverá meios de consolidar a necessária proteção. Há muitos compro-
missos que o ameaçado de morte deve assumir para que a proteção seja efetivada. A não adesão
pode acontecer por vários motivos, nem sempre os mais adequados, mas sempre presentes, pois
a imaturidade dos adolescentes é uma realidade, a dificuldade de deixar de frequentar as redes
sociais, o medo das represálias, o receio de que sua família (se esta não quis sair do espaço de
ameaça) seja alvo de vingança, a falta de dimensão da gravidade da ameaça, enfim, muitos são
os motivos que fazem a proteção do programa ficar inviabilizada.
Se o adolescente aceita a proteção e as regras do PPCAAM e é levado a um serviço de aco-
lhimento, resolve-se a questão do adolescente parcialmente por que ele imediatamente coloca
outros dezenove adolescentes em situação de ameaça ou risco de morte.
Estamos então dizendo que o serviço de acolhimento, com as características que já foram aqui
referidas, não é o equipamento adequado para essa situação? Sim, estamos afirmando que não
é o local adequado.
Mas para onde então o PPCAAM pode encaminhar o adolescente ameaçado de morte de
modo a garantir sua proteção com sigilo e cuidado? Existe algum serviço da assistência social
que possa recebê-lo? Não, no momento atual não existe.
As discussões pelo Brasil estão cada vez mais focando na necessidade de sairmos deste im-
passe onde todos perdem. Queremos um espaço de proteção para todos onde ambos possam
usufruir dessa proteção, tanto o ameaçado de morte quanto o adolescente acolhido por vulnera-
bilidade social e pessoal.
As alternativas podem ser criativamente planejadas, mas a que mais têm se aproximado do
que é possível nesse momento é a possibilidade de um chamamento público para a implantação
de um serviço sigiloso na rede, aos moldes das casas de acolhimento para mulheres vítimas de
violência, com seus filhos ou não, que possuem endereço sigiloso e regras muito mais rígidas
de acesso, e que poderia responder a esta demanda necessária e solicitada pelo PPCAAM. Esse

96 CADERNO DE ESTUDOS EDESP


chamamento público selaria uma parceria com uma Organização da Sociedade Civil (OSC) e aten-
deria este perfil sigiloso e de cuidados específicos.
Outra possibilidade seria o gestor municipal ter o serviço de atendimento próprio dentro de
sua rede com essas características. O gestor estadual poderia organizar serviços regionalizados
para dar conta das necessidades de municípios menores ou da necessidade de transferência dos
adolescentes das cidades maiores para locais mais longínquos e de difícil acesso.
Também não podemos deixar de referir o serviço de acolhimento familiar especialmente orga-
nizado e capacitado para o acolhimento desses adolescentes em Pernambuco, onde se desenvol-
ve com sucesso. Parece impossível termos famílias da comunidade preparadas para acolherem
esse desafio? Pois esse serviço de acolhimento familiar que acolhe exclusivamente crianças e
adolescentes ameaçados de morte mostra essa possibilidade como real e bem-sucedida.
Essa discussão deve ser aprofundada nos espaços dos gestores municipais e estaduais com
o governo federal, pois levaria a debates municipais e estaduais mais aprofundados e com suges-
tões do que fazer e como fazer. Quem sabe das diversas facetas e peculiaridades da realidade
dos ameaçados de morte e dos acolhidos em serviços de acolhimento são as equipes de cada
um dos serviços. Elas é que deverão aprofundar esse debate com os parceiros da rede e levar aos
gestores essa demanda urgente para qualificá-la e fazê-la acontecer.
Recomendo que as redes de serviços de acolhimento unam-se ao PPCAAM nessa necessi-
dade do debate, promovam encontros e seminários de discussão e registrem suas sugestões
e alternativas para as soluções que serão apontadas. Dessa forma, as proposições poderão ser
levadas aos conselhos municipais e estaduais de assistência social, para que juntos encaminhem
alternativas que respondam como solução a essa demanda.

Alice Duarte de Bittencourt é Graduada em Letras; especialista em


Direito da Criança e do Adolescente pela Fundação Escola do Ministério Pú-
blico/RS; ex-coordenadora da Política Nacional de Convivência Familiar e Co-
munitária da Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da República;
associada e membro do Comitê Gestor do NECA – Associação de Pesquisa-
dores de Núcleos de Estudos e Pesquisas sobre Criança e Adolescente/SP.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
Abrigo: comunidade de acolhida e socioeducação. Coletânea abrigar. Myrian Veras Baptista
(coordenação). São Paulo: Instituto Camargo Corrêa, 2006.
DIGIÁCOMO, Murillo José e DIGIÁCOMO, Ildeara Amorim. 1969 - Estatuto da criança e do adoles-
cente anotado e interpretado. 6ª ed. Curitiba: Ministério Público do Estado do Paraná; Centro de
Apoio Operacional das Promotorias da Criança e do Adolescente, 2013.

CADERNO DE ESTUDOS EDESP 97


Novos rumos do acolhimento institucional. Maria Lúcia Carr Ribeiro Gulassa (organização). São
Paulo: NECA – Associação dos Pesquisadores de Núcleos de Estudos e Pesquisas sobre a Crian-
ça e o Adolescente, 2010.
Redes de proteção social. Coleção Abrigos em Movimento. Isa Maria F. R. Guará (coordenação).
1ª ed. São Paulo: Associação Fazendo História: NECA - Associação dos Pesquisadores de Núcleos
de Estudos e Pesquisas sobre a Criança e o Adolescente, 2010.

98 CADERNO DE ESTUDOS EDESP


A LETALIDADE DE ADOLESCENTES
NO ESTADO DE SÃO PAULO
E O MAPA DA VIOLÊNCIA NO
CONTEXTO DO ATENDIMENTO
DO PROGRAMA DE PROTEÇÃO
A CRIANÇAS E ADOLESCENTES
AMEAÇADOS DE MORTE (PPCAAM)
Por Paulo Cesar Ferreira de Oliveira

INTRODUÇÃO

E
ste artigo faz uma breve leitura da letalidade de adolescentes no Estado de São Paulo, do
Mapa da Violência e do Índice de Homicídio na Adolescência. Associa essa leitura a outros
textos e tece uma análise sobre taxas do atendimento do Programa de Proteção a Crianças e
Adolescentes Ameaçados de Morte (PPCAAM) no Estado de São Paulo no triênio 2013-2015.
Tem por objetivo chamar a atenção para o sinistro social da violência letal intencional contra
adolescentes, apresentar uma análise pontual do atendimento realizado pelo Programa no Estado
de São Paulo e destacar desafios e apontamentos.

CONTEXTO DA VIOLÊNCIA LETAL NO BRASIL


Nos anos 80 e 90, os homicídios praticados com armas de fogo cresceram 314,7% e a taxa de
assassinatos de jovens subiu para 154%. Na década seguinte, nas cidades com mais de 150 mil habi-
tantes, o consumo de drogas cresceu mais de 700%. Em 2014, foram assassinadas 58.497 pessoas1.

1
Anuário Brasileiro de Segurança Pública 2015.

CADERNO DE ESTUDOS EDESP 99


O gasto com a política pública brasileira de segurança cresceu 62% entre 2002 e 2015.
Em 2015, representou 1,38% do PIB2. Uma coisa é o custo da política de segurança e outra diferen-
te é o custo anual da violência, que no Brasil atinge, segundo Cerqueira (2007), 5% do PIB.
Nas três últimas décadas, as mortes por causas externas de adolescentes entre 14 e 18 anos au-
mentaram 77,5%, sendo 49% por assassinato e 52% por acidentes automobilísticos. Entre 2000 e 2012,
aproximadamente 5% dos adultos e 35% dos adolescentes tiveram óbitos por assassinato. O assassi-
nato de adolescentes no Brasil atingiu um patamar tão alarmante que o Fundo das Nações Unidas para
a Infância (Unicef)3 colocará esse tópico como prioridade da agenda de recomendações para 2017.

DIAGNÓSTICO DA LETALIDADE NA ADOLESCÊNCIA


O Índice de Homicídio na Adolescência – IHA/2012 possui uma metodologia que possibilita
calcular o risco relativo de grupos sociais vulnerados e estimar a quantidade de óbitos de adoles-
centes por homicídio para cada 100 mil habitantes numa escala de sete anos.
Esse índice verificou que meninos adolescentes têm 11,92 vezes mais risco de serem assas-
sinados do que meninas. Que os negros e pardos têm risco 2,96 vezes maior de morrer matado
do que os não afrodescendentes. E alerta que 42 mil adolescentes poderão ser assassinados no
Brasil entre 2013 e 2019, sendo 4.856 no Estado de São Paulo.
Com base no IHA, os principais municípios paulistas com maiores estimativas de violência letal
intencional são: São Paulo, 2.297 casos; Guarulhos, 329 casos; Campinas, 155 casos; Ribeirão Preto,
113; São José dos Campos, 102; Mauá, 101; Taboão da Serra; 97; Itaquaquecetuba, 90; Osasco, 87;
Diadema, 79; São Vicente, 76; Taubaté, 72; São Bernardo do Campo, 68; Santo André, 68; Jacareí,
58; e Embu das Artes, 57. Nessa projeção, 67,4% dos casos ou, numericamente, 3.273 adolescentes
foram estimados como demandantes de políticas preventivas de redução do risco a letalidade.

O PPCAAM NO TRIÊNIO 2013, 2014 E 2015


NO ESTADO DE SÃO PAULO
O PPCAAM tem por finalidade proteger, em conformidade com a Lei Federal nº 8.069/90, crian-
ças e adolescentes expostos a grave ameaça no território nacional (Decreto nº 6.231/2007). No
Estado de São Paulo, esse programa foi regulamentado pelo Decreto nº 58.238/2012.
No triênio 2013 a 2015, o PPCAAM atendeu 505 solicitações no Estado de São Paulo, das quais
95% eram adolescentes e 5% crianças; 79% dos ameaçados de morte eram do sexo masculino
e 68% tinham idade entre 15 e 17 anos. Além disso, 69% eram afrodescentes, 93% não haviam
concluído o ensino fundamental e 64% foram ameaçados por pessoas vinculadas ao tráfico de
drogas; outros 11% disseram ter sofrido ameaças de agentes policiais.

2
Anuário Brasileiro de Segurança Pública 2016.
3
United Nations Children’s Fund.

100 CADERNO DE ESTUDOS EDESP


DESAFIO PARA A PROTEÇÃO POR ACOLHIMENTO INSTITUCIONAL
Em 75% dos casos atendidos no PPCAAM paulista, as famílias não quiseram acompanhar
os filhos na proteção, restando quase sempre proteger crianças e adolescentes em serviços de
acolhimento institucional.
A proteção para ameaçados de morte, dentro de serviços de acolhimento localizados no mu-
nicípio da ameaça, pode implicar riscos para o serviço de acolhimento, temeridades para o pro-
tegido, receios para a família que fica no território do risco de morte e desconfiança para os tra-
balhadores envolvidos na ação protetiva. Além de tudo, dificulta sobremaneira gerenciar o Plano
Individual de Atendimento do protegido e não propicia um retorno seguro para o convívio familiar.
Como nada garante que o ímpeto vingativo dos ameaçadores cesse no tempo e no espaço,
torna-se necessário testar outras táticas que levem ao aumento do acompanhamento do res-
ponsável legal ou de tios, avós, padrinhos, entre outros, durante o processo avaliativo ou prote-
tivo, buscando, quando for o caso, o convencimento da família para acompanhar a mudança ou
transferência da criança ou adolescente ameaçado de morte, para residirem juntos em território
distante do município da origem da ameaça.

DESAFIO PARA PORTAS DE ENTRADA4


No triênio analisado, 56% dos casos encaminhados ao Programa foram encerrados por não
voluntariedade. Isso devido ao não reconhecimento da ameaça de morte por parte do adolescente
ou de sua família. Ou foram casos que não configuraram ameaça iminente de morte, segundo a
análise da equipe técnica multidisciplinar, não tendo, portanto, perfil para a inclusão no Programa,
conforme o Guia de Procedimentos5. Mas isso depois de 60, 90, 120 dias ou mais tramitando sem
conclusão, por causa de embaraços da família, do adolescente ou do representante da porta de
entrada responsável pelo encaminhamento da solicitação ao órgão gestor do PPCAAM, deixando
dúvidas quanto à prevalência da iminência da ameaça de morte nesse volume de casos.
Somando não voluntariedade e ameaça de morte não configurada, a taxa de 56% sugere que
metade dos atendimentos realizados pelo PPCAAM paulista poderia ter tido um olhar e uma escu-
ta mais qualificados pelas portas de entrada na pré-avaliação, e mais cuidado técnico na pré-pro-
teção, pois em 99% das vezes a pré-proteção foi feita em acolhimento institucional nas adjacên-
cias do território municipal de influência do ameaçador.
Um aspecto desse problema é que as portas de entrada ainda não tiveram capacitação sobre fatores de
risco de morte, fatores de vulnerabilidades, fatores de proteção, modalidades de proteção, sigilo, segurança,
mídia etc. Elas foram integradas no Programa, mas é como se o Programa lhes fosse alheio, desgarrado.

4
No Estado de São Paulo, as portas de entrada que podem solicitar a inclusão de ameaçados no PPCAAM são o Conselho Tutelar, o Ministério Público
do Estado de São Paulo, a autoridade judicial competente e a Defensoria Pública do Estado de São Paulo (Decreto Estadual nº 58.238/2012, art. 3º).
5
O Guia de Procedimentos do PPCAAM tem duas versões: uma voltada aos parceiros da rede de proteção e ao Sistema de Garantia de Direitos, e uma
versão interna de caráter confidencial. Esta é de conhecimento apenas das equipes técnicas locais do Programa.

CADERNO DE ESTUDOS EDESP 101


APONTAMENTOS
Ao mesmo tempo que parece necessário fortalecer e melhorar o PPCAAM, simultaneamente torna-
-se recorrente criar políticas municipais preventivas à violência letal. Nessa direção, a permanência das
crianças e dos adolescentes na vida escolar é um fator importante de prevenção ao risco de ameaça de
morte e letalidade, sendo fundamental combater a evasão escolar e identificar os problemas que colabo-
ram para o desânimo estudantil.
Outra janela positiva a ser priorizada pelo poder público nessa política de proteção e prevenção é am-
pliar o acesso dos adolescentes a programas da Lei do Aprendiz, a estágios e postos de trabalho.
Educação, saúde e inclusão produtiva são fatores fundamentais para a prevenção a letalidade, por-
que parte das ameaças de morte em São Paulo tiveram como causa principal conflitos no trabalho infan-
til no tráfico de drogas, exploração sexual e uso de drogas.
É preciso que o Poder Público proporcione ou estimule alternativas de inclusão produtiva, trabalho
e renda para o adolescente aprendiz, para o adolescente trabalhador e para as famílias vulneradas, por
meio de intercâmbios ou consórcios municipais que possibilite e estimule as famílias a se mudarem dos
territórios de origem da ameaça de morte para municípios distantes do poder de ação dos ameaçadores.

CONCLUSÃO
Por um lado, o Governador do Estado, conjuntamente com a Coordenadoria da Infância e da
Juventude do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo e a Assembleia Legislativa paulista, po-
deria lançar um pacto estadual pela prevenção e redução do custo anual da violência.
Para começar os atuais prefeitos, eleitos em 2016, poderiam instituir comitês de planos mu-
nicipais de políticas públicas de prevenção e redução do risco de morte violenta de adolescentes,
destacando nas agendas de metas para 2017-2020 o desafio de implementar o “Programa de
Redução da Violência Letal contra Adolescentes e Jovens (PRVL)”.

Paulo Cesar Ferreira de Oliveira é graduado em Sociologia e Polí-


tica pela Escola de Sociologia e Política de São Paulo (FESP) e Especialista
em Gestão Pública e Políticas Governamental pela Escola Paulista de Direito
(EPD). Foi Conselheiro Tutelar da Cidade de São Paulo (1998-2000). Foi coor-
denador técnico e coordenador geral do PPCAAM/SP entre maio/2014 e ju-
lho/2016. Foi Conselheiro Estadual dos Direitos da Criança e do Adolescente
de São Paulo de outubro/2013 a outubro/2016. Atualmente é Coordenador
Nacional da Política de Fortalecimento dos Conselhos do Departamento de
Políticas Temáticas Nacional de Promoção dos Direitos da Criança e do Ado-
lescente da Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da República.
paulodicesar@gmail.com

102 CADERNO DE ESTUDOS EDESP


REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
BRASIL. Decreto Nº 6231/2007. Institui o Programa de Proteção a Crianças e Adolescentes
Ameaçados de Morte - PPCAAM.
BRASIL. Lei Nº 12.852, de 5 de agosto de 2013. Institui o Estatuto da Juventude e dispõe sobre
os direitos dos jovens, os princípios e diretrizes das políticas públicas de juventude e o Sistema
Nacional de Juventude – SINAJUVE.
BRASIL. Lei Nº 8.069, de 13 de julho de 1990. Dispõe sobre o Estatuto da Criança e do Adolescen-
te e dá outras providências.
CERQUEIRA, Daniel Ricardo de Castro; SOARES Rodrigo R. Custo de bem-estar da violência letal
no Brasil e desigualdades regionais, educacionais e de gênero. IPEA. Brasília, julho 2011.
CERQUEIRA, Daniel. et al. Análise dos custos e consequências da violência no Brasil. Brasília:
Ipea, Brasília, 2007 (Texto para Discussão, n. 128).
CONDECA/SP. Conselho Estadual dos Direitos da Criança e do Adolescente de São Paulo. Ata da
reunião extraordinária de 07/04/2015.
CONDECA/SP. Conselho Estadual dos Direitos da Criança e do Adolescente de São Paulo. Ata da
reunião ordinária de 12/07/2016.
DORIAM, Luiz Borges de Melo & CANO, Ignácio. Índice de Homicídios na Adolescência: IHA 2012.
RJ, Observatório de Favelas, 2014.
FÓRUM Brasileiro de Segurança Pública. Anuário Brasileiro de Segurança Pública. 2016.
PPCAAM. Guia de Procedimentos. Versão pública. http://www.mppa.mp.br/upload/Guia_de_Pro-
cedimentos_PPCAAM.pdf
SÃO PAULO. Decreto estadual nº 58.238/2012. Institui, junto à Secretaria da Justiça e da Defesa
da Cidadania, o Programa de Proteção a Crianças e Adolescentes Ameaçados de Morte - PP-
CAAM/SP e dá providências correlatas.
UNICEF. Fundo das Nações Unidas para a Infância. Agenda pela Infância 2015-2018:
Presidência da República. Secretaria Nacional de Juventude, 2013;
WAISELFISZ, Julio Jacobo. Mapa da Violência 2016: Homicídios por armas de fogo.

CADERNO DE ESTUDOS EDESP 103


A Pessoa com
Deficiência
e o Desafio
do Acolhimento
Institucional
A LEI BRASILEIRA DE INCLUSÃO
E A GARANTIA DE VIDA PLENA
À PESSOA COM DEFICIÊNCIA
Por Carla Biancha Angelucci

A
reflexão sobre experiências de residências inclusivas para pessoas com deficiência,
hoje, no Brasil, insere-se no contexto de avanços na garantia de direitos desse setor
da população que vêm sendo empreendidos nos últimos quinze anos. Expressão legal
bastante recente de tais avanços é a Lei Brasileira de Inclusão, que vige desde janeiro
de 2015. Início de uma possibilidade de pensarmos juntas/os sobre o direito à moradia, em uma
perspectiva inclusiva.
Considerando tanto a legislação nacional (BRASIL, 2008; 2015) quanto a contribuição de pes-
quisadoras(es) do campo dos direitos humanos (BUCCI et alli, 2001; PALACIOS, 2008), a perspec-
tiva inclusiva pressupõe:

Reconhecimento da lógica historicamente desrespeitosa e discriminatória


que operou na atenção a pessoas com deficiência;
Reconhecimento da importância do protagonismo das pessoas com deficiência;
Reconhecimento dos efeitos violentos e despersonalizantes do asilamento
como resposta hegemônica da sociedade e do Estado às condições
humanas que requerem apoio permanente para o exercício da vida digna;
Compromisso com o direito à equidade;
Criação e oferta de serviços abertos, de base comunitária, inseridos no
território e comprometidos com a produção da circulação social.

Para discutir a autonomia das pessoas com deficiência intelectual e seu direito à vida plena,
com base nas residências inclusivas, tão somente destacaremos três conjuntos temáticos, sa-
bendo que cada um deles merece aprofundamento.

CADERNO DE ESTUDOS EDESP 105


1. DEFICIÊNCIA INTELECTUAL HOJE: MUITAS DISPUTAS
NO DIAGNÓSTICO, POUCAS DISCUSSÕES SOBRE
A CONDIÇÃO HUMANA
Na atualidade, temos três diferentes definições e classificações da deficiência intelectual em vigência:
1.1. Classificação Estatística Internacional de Doenças e Problemas Relacionados à Saúde – CID
10 (1997) – Retardo mental. Quociente de inteligência. Classificação: leve, moderado, severo/profundo.
1.2. Associação Americana de Deficiência Intelectual e Desenvolvimental – Aadid (2002)
– Desenvolvimento cognitivo significativamente inferior à média, prejuízo em duas ou mais ha-
bilidades adaptativas, sendo que tais características devem ter se desenvolvido anteriormente
aos 18 anos. Classificação por tipo de apoio necessário para a retomada do desenvolvimento
do sujeito. Apoio intermitente – o sujeito nem sempre necessita do(s) apoio(s), sendo esses ofe-
recidos de maneira episódica e momentânea. Apoio limitado – caracteriza-se pela delimitação
da temporalidade, ou seja, pelo tempo de duração. Apoio contínuo (extensivo) – caracteriza-se
pela regularidade; aplica-se a um ou mais ambientes (trabalho, escola, lar etc.). Apoio pervasivo
– caracteriza-se por ser constante, em todos os ambientes e áreas, podendo incluir medidas de
manutenção da própria vida.
1.3. Manual Diagnóstico e Estatístico de Saúde Mental - DSM V (2013) – déficits cognitivos,
acompanhados de déficits adaptativos, sendo que todos eles se manifestaram no período de de-
senvolvimento. Classificação em leve, moderado, severo.
Todos os manuais tratam a deficiência como patologia, com descrições generalizantes, pouco
auxiliando na compreensão de sua produção psicossocial e nos estigmas que constituem o dia a
dia de uma pessoa que vive essa condição. A voz do próprio setor populacional é calada, restando
apenas o discurso biomédico sobre suas anormais formas de funcionamento. A perspectiva que
prevalece é a de tratamento, não de cuidado e potencialização da autonomia. Desde nosso ponto
de vista, a proposta da Aadid é mais interessante, na medida em que se funda no esforço de dis-
cutir quais são os impedimentos psicossociais vividos e quais os tipos de apoio necessários ao
exercício da vida digna.

2. O CONCEITO DE DEFICIÊNCIA
De acordo com a Convenção Internacional sobre Direitos das Pessoas com Deficiência (BRA-
SIL, 2009), a deficiência configura-se não mais como mera expressão de uma condição do indiví-
duo, mas como efeito do encontro de barreiras psicossociais interpostas a um sujeito, prejudican-
do ou impedindo o exercício de sua vida digna. Vejamos:

106 CADERNO DE ESTUDOS EDESP


Art. 1 Pessoas com deficiência são aquelas que têm impedimentos de longo
prazo de natureza física, mental, intelectual ou sensorial, os quais, em intera-
ção com diversas barreiras, podem obstruir sua participação plena e efetiva na
sociedade em igualdades de condições com as demais pessoas.

Assim, o foco da atenção está nas barreiras constituídas, constituindo-se como desafio aos gover-
nos e aos estados o desenvolvimento de ações que as diminuam ou as exterminem. Assim, como pen-
sar a garantia do direito às pessoas com deficiência intelectual com base na Convenção? Quais são
as barreiras que interpomos ao exercício da vida digna das pessoas com deficiência intelectual? Como
as residências inclusivas podem tornar-se experiências de diminuição ou eliminação de tais barreiras,
na medida em que deve haver um trabalho constante de apoio ao desenvolvimento da autonomia e de
produção de negociações e diálogos sociais visando à superação de preconceitos e discriminações?

3. DEPENDÊNCIA E AUTONOMIA
Palacios (2008) é uma autora argentina que tem se debruçado sobre a discussão dos direitos das pes-
soas com deficiência, à luz da doutrina de direitos humanos. Destacaremos apenas dois tópicos de suas
discussões, com a finalidade de fomentar o debate sobre ética no trabalho com pessoas com deficiência.
3.1. Dependência como direito universal
A partir do ideário liberal, a ideia de que um sujeito possa depender de outro torna-se profundamente
ligada ao risco social. Alguém que não pode produzir seu próprio sustento é visto como inútil não só para
o autossustento, mas para a geração de riqueza no sistema de produção. Observem que não se trata de
preocupação com a qualidade de vida ou com a ameaça que alguém sem possibilidade de lutar pode
trazer para a pólis, elemento que justificava o extermínio dos chamados defeituosos na Atenas Antiga.
Trata-se da associação entre a ideia de dependência e risco social, por significar duplo prejuízo financei-
ro: do sujeito que depende e daquele que se incumbe de cuidar do que depende. Palacios (2008) realiza
percurso de retomada de várias(os) autoras(es) que discutem o conceito de dependência para tomá-lo
como direito de qualquer cidadã(o). Ora, há parcela da população que pode necessitar esporádica ou
permanentemente de apoio para a realização de sua vida e isso não deve ser tomado como eixo de ava-
liação moral ou de cálculo de prejuízo financeiro. Afirmar que todo sujeito pode contribuir socialmente e
realizar-se no e pelo trabalho não é o mesmo que dizer que todo sujeito deve, necessária e obrigatoria-
mente, gerar sustento de sua própria vida. Aliás, o que essas(es) autoras(es) propõem é que possamos
afirmar a comunidade humana como uma comunidade de sujeitos interdependentes, não devendo ser
aspiração de ninguém não depender das(os) outras(os) ou do Estado para nada, pois seria aderir ao
ideário liberal de que cada uma(um) de nós deve aspirar viver como célula isolada. Assim, a criação de es-
tratégias públicas de interdependência episódica ou permanente deve fazer parte das políticas públicas.
3.2. Autonomia moral como algo distinto da autonomia física
Esse ponto parece-nos por demais valoroso, na medida em que nos desafia a perceber a dominação,
costumeiramente, não só dos corpos, mas dos desejos e das escolhas de sujeitos que experimentam
prejuízos em sua mobilidade. Ao diferenciar autonomia física e moral, a autora sublinha a importância,

CADERNO DE ESTUDOS EDESP 107


no trabalho com pessoas com deficiência, de estabelecermos como diretriz ética a necessidade de
criação de novas tecnologias leves (estratégias comunicacionais e de memorização, por exemplo) e
pesadas (instrumentos de apoio à mobilidade e à comunicação, por exemplo) que estejam fundadas
no princípio de que todo sujeito tem direito a fazer escolhas para a sua própria vida. É possível que, para
exercer seu direito de escolha, precise de apoios, mas estes não devem implicar o assujeitamento e o
empobrecimento da autonomia. Para aprofundar este tema, sugerimos a leitura do Código Civil (2002),
modificado pela lei Brasileira de Inclusão (2015) no que concerne às decisões apoiadas.

Art. 1. 783-A. A tomada de decisão apoiada é o processo pelo qual a pessoa


com deficiência elege pelo menos 2 (duas) pessoas idôneas, com as quais
mantenha vínculos e que gozem de sua confiança, para prestar-lhe apoio na
tomada de decisão sobre atos da vida civil, fornecendo-lhes os elementos e
informações necessários para que possa exercer sua capacidade. (Incluído
pela Lei nº 13.146, de 2015)
§ 1o Para formular pedido de tomada de decisão apoiada, a pessoa com defi-
ciência e os apoiadores devem apresentar termo em que constem os limites
do apoio a ser oferecido e os compromissos dos apoiadores, inclusive o prazo
de vigência do acordo e o respeito à vontade, aos direitos e aos interesses da
pessoa que devem apoiar. (Incluído pela Lei nº 13.146, de 2015)
§ 2o O pedido de tomada de decisão apoiada será requerido pela pessoa a ser
apoiada, com indicação expressa das pessoas aptas a prestarem o apoio pre-
visto no caput deste artigo. (Incluído pela Lei nº 13.146, de 2015)

Por fim, parece-nos fundamental que essa discussão seja feita com movimentos de vida independen-
te, com pessoas com deficiência que passariam a ser usuárias de residências inclusivas e com os mo-
vimentos sociais de pessoas com deficiência. Se aprendemos algo desde a década de 1990, podemos
afirmar que nenhuma decisão sobre elas seja tomada sem elas. Assim, não há como avançar na discus-
são e não seria ético tomar alguma decisão sem o estabelecimento de ampla discussão com as pessoas
com deficiência. Se estamos, de fato, implicadas(os) na garantia de direitos para todas(os), é necessário
que façamos a lição desde já, reconhecendo e efetivando o direito à participação nos processos deci-
sórios atinentes às vidas das pessoas com deficiência, tal como preconiza a Lei Brasileira de Inclusão.

Carla Biancha Angelucci é psicóloga, doutora em Psicologia Social


pelo Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo. Docente do Depar-
tamento de Filosofia da Educação e Ciências da Educação da Faculdade de
Educação da Universidade de São Paulo. Professora nas áreas de Educação
Especial e Sociologia da Educação na graduação. Professora da pós-gra-
duação na linha de pesquisa em Educação Especial, área de concentração:
Ciências Sociais e Educação: diferenças e desigualdades.

108 CADERNO DE ESTUDOS EDESP


REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
AAIDD – American Association on Mental Retardation. (2010). Mental retardation definition. Disponível
em: <http://www.aamr.org/Policies/faq_mental_retardation.shtml>. Acesso em: 20 de fevereiro. 2016.

American Psychiatry Association. Diagnostic and Statistical Manual of Mental disorders - DSM-5.
5th.ed. Washington: American Psychiatric Association, 2013.

BRASIL. Lei No 10.406, de 10 de janeiro de 2002. Institui o Código Civil. Presidência da República.
Brasília, 2002.

_____. Decreto 6.949, de 25 de agosto de 2009. Promulga a Convenção Internacional sobre os


Direitos das Pessoas com Deficiência e seu Protocolo Facultativo, assinados em Nova York, em
30 de março de 2007.

_____. Ministério da Educação. Secretaria de Educação Especial. Política Nacional da educação


especial na perspectiva da educação inclusiva. MEC, SEESP, 2008.

_____. Presidência da República. LEI Nº 13.146, DE 6 DE JULHO DE 2015. Institui a Lei Brasileira
de Inclusão da Pessoa com Deficiência (Estatuto da Pessoa com Deficiência). Presidência da Re-
pública. Brasília. 2015.

BUCCI, Maria Paula Dallari et alli. Direitos humanos e políticas públicas. São Paulo: Pólis, 2001.

Organização Mundial da Saúde. CID-10 Classificação Estatística Internacional de Doenças e Pro-


blemas Relacionados à Saúde. 10a rev. São Paulo: Universidade de São Paulo; 1997.

PALACIOS, Agustina. El modelo social de discapacidad: orígenes, caracterización y plasmación en la


Convención Internacional sobre los Derechos de las Personas con Discapacidad. Cermi: Madri, 2008.

CADERNO DE ESTUDOS EDESP 109


REORDENAMENTO DO SERVIÇO
ESTADUALIZADO DE ACOLHIMENTO
INSTITUCIONAL DE PESSOA COM
DEFICIÊNCIA NA MODALIDADE
RESIDÊNCIA INCLUSIVA
- REGIÃO DE BAURU
Por Maria Moreno Perroni e Roberto Franceschetti Filho

O
Serviço de Acolhimento em Residência Inclusiva é uma unidade que oferta Acolhimento Ins-
titucional no âmbito da Proteção Social Especial de Alta Complexidade do Sistema Único de
Assistência Social (SUAS). O serviço é destinado a jovens e adultos com deficiência, com vín-
culos familiares rompidos, sem condições de autossustentabilidade e de retaguarda familiar,
ou ainda que estejam em processo de desligamento de instituições de longa permanência.
Os objetivos principais do Serviço de Residência Inclusiva consistem em superar vivências de
violências, garantindo proteção integral à pessoa com deficiência, e, também, em acolher pessoas
com deficiência que estejam saindo de instituições de longa permanência.
A estrutura física é o principal destaque desse serviço, pois garante a individualidade, o confor-
to dos residentes e respeita suas crenças e valores.
A Residência Inclusiva da Apae Bauru iniciou-se em maio de 2007, por meio de um convite
da Diretoria Regional de Assistência e Desenvolvimento Social (Drads) Bauru para a realização
de parceria e a construção de um novo modelo de acolhimento, que até então não era tipificado,
criando, assim, a residência feminina. No ano de 2011, novamente a Drads e a Apae formaram
novas parcerias para implantar a residência masculina, no mesmo padrão da residência feminina.
Ambas as residências foram inauguradas com pessoas que estavam em serviços de acolhimen-
tos antigos, com práticas de isolamentos que não favoreciam o convívio comunitário nem o de-
senvolvimento individual digno de cada usuário.
Nesse período, foi elaborado, no município de Bauru, o Plano de Reordenamento dos Serviços,
que justamente trabalhou com a intenção de aperfeiçoar os abrigos já existentes, com público de
50 usuários, e de transformá-los no atual modelo, com 10 pessoas por residência.
Reordenar significa reorientar os serviços para se adequar aos parâmetros de funcionamento,

110 CADERNO DE ESTUDOS EDESP


às normativas e às orientações metodológicas presentes no SUAS.
O olhar não deve ser direcionado apenas para a reestruturação física, mas também para es-
timular a capacidade de cada indivíduo, propiciando a possibilidade de adquirir maior grau de
autonomia, dignidade e sentimento de pertencimento.
O reordenamento do Serviço de Acolhimento Institucional para Pessoas com Deficiência – Re-
sidência Inclusiva foi implantado em dois municípios: Bauru (Duas Residências Inclusivas, uma
feminina e uma masculina) e Dois Córregos (Três Residências Masculinas).
Importante destacar que a Apae do município de Dois Córregos também implementou, no ano
de 2011, três residências inclusivas com estrutura totalmente adaptada, equipe preparada e nú-
mero reduzido de residentes. Da mesma forma, o serviço segue as normativas vigentes e garante
aos seus residentes a inserção social por meio de atividades planejadas pela equipe técnica. O
financiamento é realizado pela Secretaria de Estado de Desenvolvimento Social (Seds).
A equipe é composta por cuidadores (em sistema de plantão 12x36) , ajudante geral e técnico de nível
superior (psicólogo, assistente social, terapeuta ocupacional e coordenador). A equipe é especializada
na área da assistência social e constantemente é capacitada para melhor atendimento aos residentes.
A infraestrutura é idêntica à de uma residência “normal”, possuindo características residen-
ciais. A residência inclusiva favorece a progressão da autonomia nas atividades de vida diária
e instrumentais. Atualmente, o serviço executado pela Apae Bauru tem 12 residentes que estão
inseridos no mercado de trabalho. Eles se deslocam até seu trabalho em ônibus circular, com total
independência. Também estão inseridos na comunidade, participam de hidroginástica, natação,
musculação e jogos de futebol em parques públicos.
O técnico em terapia ocupacional é responsável pelo acompanhamento de rotinas, treino de
ônibus, atividades instrumentais de vida diária e prática, entre outros. Uma das atividades elenca-
das é a compra de alimentos e produtos de higiene por mês. A técnica da residência inclusiva leva
os residentes para realizar as compras, eles escolhem os produtos e fazem o pagamento. Outra
atividade elencada refere-se à necessidade do residente de comprar roupas, na qual a técnica
acompanha o residente nas lojas, garantindo a escolha dos seus produtos.
Por sua vez, o técnico em psicologia trabalha nas pautas voltadas ao comportamento do resi-
dente. Em conjunto com a assistente social, ele trabalha com a intenção de restabelecer os víncu-
los afetivos familiares e comunitários. O psicólogo é responsável pela manutenção do programa
Apadrinhamento Afetivo, que busca madrinhas e padrinhos na comunidade com a intenção de
oferecer laços afetivos e outras referências familiares. Esse programa é voltado aos residentes
que não possuem perspectivas de reintegração familiar.
O técnico em serviço social trabalha no desenvolvimento de ações burocráticas do serviço.
Encaminhamento de famílias aos órgãos públicos, aquisição de Benefício de Prestação Continua-
da (BPC), abertura de conta bancária, articulação com a rede de serviço socioassistencial e de
saúde e manutenção da condição de saúde são algumas responsabilidades do técnico em serviço
social. Ele também trabalha, em conjunto com os demais técnicos, o resgate do convívio familiar.
O cuidador é o profissional que mais convive com os residentes. É ele quem está na residência
24 horas por dia, preparando a alimentação, administrando a medicação via oral, organizando a
residência, acompanhando em atividades externas, entre outras rotinas exercidas.
Desde 2007, a Apae Bauru reintegrou 15 residentes ao convívio familiar e 1 residente (22 anos)

CADERNO DE ESTUDOS EDESP 111


foi adotada. Vale destacar que o trabalho de fortalecimento de vínculos com as famílias de origem
e as extensas são garantidos, mesmo sendo de outro município.
A articulação em rede é muito importante para o funcionamento adequado das residências.
Hoje a articulação é composta por Drads, Centro de Referência Especializado de Assistência So-
cial (Creas), Centro de Referência da Assistência Social (Cras), Poder Judiciário, Ministério Públi-
co, Centros de Atenção Psicossocial (CAPS), Unidade Básica de Saúde (UBS), Unidade de Pronto
Atendimento (UPA) e setor de educação.
Para o funcionamento das residências de Bauru, a fonte de recursos era proveniente de con-
vênio direto com a Secretaria de Estado de Desenvolvimento Social (Seds), intermediado por sua
Diretoria Regional de Assistência e Desenvolvimento Social (Drads) Bauru, até 2014. A partir do
exercício de 2014, ocorreu também cofinanciamento com a Secretaria Municipal do Bem-estar
Social (Sebes), no município de Bauru.
No período de 2013 a 2016, a Apae Bauru recebeu 25 municípios, inclusive dos Estados de
Alagoas, Espírito Santo e Santa Catarina, que estavam em processo de implantação de novas re-
sidências e vieram conhecer o serviço executado como modelo na região do Estado de São Paulo.
Importante mencionar que em 2012 e 2016 a Apae Bauru foi convidada pelo então Ministério do
Desenvolvimento Social e Combate à Fome (MDS) para apresentar sua experiência nesse projeto.
Em 2014, a Apae inaugurou a sede própria da residência feminina, com recursos do Estado de
São Paulo para a construção e mobília da residência. Totalmente adaptada, em ambiente colhe-
dor, a residência feminina tornou-se referência nacional na implementação de projetos em Resi-
dência Inclusiva.
Em 2016, as Residências Inclusivas da APAE Bauru conseguiram resgatar vínculos de famílias
de residentes que há anos não se encontravam. É a história de Carlos Alexandre Pacheco, 36 anos,
que há mais de 30 anos não falava com sua irmã; hoje ela reside na cidade de São Paulo. A equipe
da residência inclusiva também conseguiu resgatar o vínculo do residente Jeferson Rodrigo San-
tos, 35 anos, com sua irmã; há mais de 15 anos não se encontravam.

Os principais resultados do Serviço de


Acolhimento em Residência Inclusiva reordenado são:
Qualidade no atendimento;
Nível alto de autonomia;
Maior número de encaminhamento
ao mercado de trabalho;
Busca de vínculos familiares;
Retorno ao convívio familiar;
Maior participação social na comunidade;
Melhor articulação com a rede de serviços

112 CADERNO DE ESTUDOS EDESP


Maria Moreno Perroni é graduada Psicopedagogia, com especializa-
ção em Psicologia Social. Atualmente é Diretora Técnica II da Diretoria Re-
gional de Assistência e Desenvolvimento Social (Drads) Bauru.

Roberto Franceschetti Filho é graduado em Educação Física (2009)


e em Pedagogia (2013). Tem pós-graduação em Ensino Especializado de
Alunos com Necessidades Educacionais Especiais nas áreas das Deficiên-
cias Intelectual, Auditiva e Visual (2009) e em Educação Especial nas Áreas
das Deficiências Intelectual, Auditiva, Visual e Física (2012). Atualmente é
Coordenador do Serviço de Alta Complexidade - Residência Inclusiva.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
BRASIL. Lei Orgânica da Assistência Social, Lei Nº 8.742, de 07 de dezembro de 1993. Dispõe so-
bre a organização da Assistência Social e dá outras providências. Diário Oficial da União, Brasília,
DF, 08 dez. 1993. Seção 1, p. 18.
BRASIL. Resolução Nº 109, de 11 de novembro de 2009. Aprova a Tipificação Nacional de Servi-
ços Socioassistenciais. Diário Oficial da União, Brasília, DF, 25 nov. 2009. Seção 1, p. 89.
BRASIL. Portaria Nº 397, de 09 de outubro de 2002. Aprova a Classificação Brasileira de Ocupa-
ções - CBO/2002, para uso em todo território nacional e autoriza a sua publicação. Diário Oficial
da União, Brasília, DF, 10 out. 2002. Seção 1. p. 74.
BRASIL. Decreto nº 5.296 de 2 de dezembro de 2004. Regulamenta as Leis Nº 10.048, de 8 de
novembro de 2000, que dá prioridade de atendimento às pessoas que especifica, e Nº 10.098, de
19 de dezembro de 2000, que estabelece normas gerais e critérios básicos para a promoção da
acessibilidade das pessoas portadoras de deficiência ou com mobilidade reduzida, e dá outras
providências, Diário Oficial da União, Brasília, DF, 03 dez. 2004. Seção 1, p. 05.
BRASIL. Portaria Interministerial Nº 3, de 21 de setembro de 2012. Diário Oficial da União, Brasí-
lia, DF, 24 set. 2012. Seção 1, p. 77.
BRASIL. Resolução Nº 33, de 12 de dezembro de 2012. Aprova a Norma Operacional Básica do Sistema
Único de Assistência Social - NOB/SUAS. Diário Oficial da União, Brasília, DF, 03 jan. 2012. Seção 1, p. 155.
ORIENTAÇÕES TÉCNICAS. Serviço de Acolhimento Institucional para Jovens e Adultos Com De-
ficiência em Residências Inclusivas. Brasília, 2012.
BRASIL. Resolução CNAS Nº 6, 13 de março de 2013. Aprova a expansão qualificada de Serviços
de Acolhimento Institucional para Jovens e Adultos com Deficiência, em situação de dependência,
em Residências Inclusivas. Brasília. DF. 22 mar. 2013. Seção 1. p. 64
BRASIL. Lei nº 13.146, de 6 de julho de 2015. Institui a Lei Brasileira de Inclusão da Pessoa com
Deficiência (Estatuto da Pessoa com Deficiência). Brasília, DF. 07 jul. 2015. Seção 1. p. 2

CADERNO DE ESTUDOS EDESP 113


REORDENAMENTO DE SERVIÇO
MUNICIPAL DE ACOLHIMENTO
INSTITUCIONAL EM ARARAQUARA:
DIRETORIA REGIONAL DE ASSISTÊNCIA
E DESENVOLVIMENTO SOCIAL
(DRADS) E GESTÃO MUNICIPAL
Por Béria Cristina da Silveira e Silva e Paulo Albano Filho

E
ste artigo se propõe a relatar a experiência do município de Araraquara no processo
de Reordenamento do Serviço de Acolhimento para Pessoas com Deficiência em Re-
sidência Inclusiva, a partir do marco legal estabelecido pela Resolução CNAS nº 011,
de 24 de abril de 20121.
Para tanto, o Termo de Aceite assinado pelos municípios estabelecia as responsabilidades
e os compromissos a serem cumpridos pelo gestor municipal, ou seja, elaborar um Plano de
Reordenamento conforme o estabelecido na Resolução CNAS nº11/2012, contendo ações
necessárias para reordenar os serviços de acolhimento para pessoas com deficiência exis-
tentes no município, com prazo para demonstração do início do processo de reordenamento,
e submetê-lo à aprovação do Conselho Municipal de Assistência Social. Ao gestor estadual
da Política de Assistência Social caberia destinar recursos financeiros correspondentes a, no
mínimo, 50% do valor mensal do cofinanciamento federal; assegurar processos de capacita-
ção das equipes; promover a articulação entre Sistema Único de Assistência Social (SUAS) e
Sistema Único de Saúde (SUS) na perspectiva do matriciamento e referenciamento da oferta
do serviço; prestar apoio técnico aos municípios2.

1
NA referida Resolução traz a “aprovação de critérios de partilha do cofinanciamento federal para apoio à oferta dos Serviços de Proteção Social
Especial para Pessoas com Deficiência, em situação de dependência, e suas Famílias em Centros-Dia de Referência e em Residências Inclusivas,
considerando o Plano VIVER SEM LIMITE, instituído pelo Decreto nº 7.612, de 17 de novembro de 2011.”
2
Cláusula Quarta, TERMO DE ACEITE – Serviço de Acolhimento Institucional para Jovens e Adultos com Deficiência em Residência Inclusiva.

114 CADERNO DE ESTUDOS EDESP


O PROCESSO DE REORDENAMENTO DO SERVIÇO DE ACOLHIMENTO
PARA PESSOAS COM DEFICIÊNCIAS EM RESIDÊNCIA INCLUSIVA
A Residência Inclusiva é uma unidade que oferta o serviço de acolhimento institucional, no
âmbito da Proteção Social Especial de Alta Complexidade do SUAS, conforme estabelece a Tipifi-
cação Nacional dos Serviços Socioassistenciais. É destinada a jovens e adultos com deficiência
(acima de 18 anos), em situação de dependência que não disponha de condições de autossusten-
tabilidade ou de retaguarda familiar.
A Residência Inclusiva foi adotada como estratégia para reordenar os serviços de acolhi-
mento dos grandes abrigos para pessoas com deficiência, visando a qualificar a oferta do
serviço, por meio de atendimento personalizado e em pequenos grupos – no máximo 10 pes-
soas em áreas residenciais na comunidade –, na perspectiva de romper com a lógica segre-
gacionista de isolamento e apartação das pessoas institucionalizadas, buscando propiciar a
efetivação da garantia dos direitos e objetivando uma adequação às normativas, orientações
e legislações vigentes.
A proposta inicial de Araraquara elaborada no Plano de Reordenamento visava a reordenar o
serviço da entidade Nosso Ninho, que já atendia 21 usuários. Posteriormente, a gestão municipal
pretendia alugar um imóvel em um bairro de Araraquara até meados do ano de 2013 e assumir a
execução direta do serviço. Porém, essa proposta mostrou-se inviável ao longo do processo, por
encontrar dificuldades financeiras para locação do imóvel e contratação dos recursos humanos
necessários. Diante disso, o foco do reordenamento direcionou-se para a adequação do serviço já
executado pela entidade e a obtenção de novas parcerias.
O Nosso Ninho é uma entidade fundada há 49 anos e com reconhecimento na comunidade
local. No entanto, mantinha ainda o padrão de atendimento dos grandes abrigos institucionais
para pessoas com deficiência, estando muitas dessas pessoas institucionalizadas há décadas.
Portanto, era fundamental iniciar o reordenamento do serviço.
Localizada às margens da avenida que liga a cidade de Araraquara a Américo Brasiliense, es-
tava distante da rede socioassistencial, da Saúde e da comunidade. Atendia uma demanda de 21
usuários, dos quais seis – denominados de “tranquilos” – eram atendidos em uma modalidade
de casa-lar, em um imóvel localizado no mesmo terreno da instituição, porém em edificação inde-
pendente. Os outros 15 usuários – denominados de “casos severos” – ficavam no prédio principal
da instituição, sem acesso aos demais espaços, permanecendo no que foi comumente chamado
de “O Quadrado”. Isso porque, em sua configuração arquitetônica, os quartos davam para uma
espécie de pátio em formato de quadrado gradeado.
Reordenar o serviço executado por esta entidade apresentava-se, tanto para a gestão munici-
pal quanto para a equipe técnica da Drads, como um grande desafio a ser enfrentado e também
uma oportunidade para se aproximar daquela entidade, que se colocava extremamente fechada e
resistente ao contato e, principalmente, a mudanças.
Diversas reuniões foram realizadas entre a Drads, a Secretaria Municipal de Assistência e De-
senvolvimento Social de Araraquara, membros da entidade executora e, posteriormente, represen-
tantes da área da Saúde.
As reuniões iniciais com a entidade foram tensas, gerando uma série de cobranças ao poder

CADERNO DE ESTUDOS EDESP 115


público, principalmente em relação a recursos financeiros; este, por sinal, configurou-se o principal
entrave nas discussões. Por mais que as equipes do poder público tecessem orientações sobre o
novo paradigma de atendimento ao serviço de acolhimento, os membros da entidade menciona-
vam dificuldades em entender suas inadequações e permaneciam impondo uma série de obstá-
culos para a realização das adequações necessárias.
Algumas estratégias foram definidas para que se pudesse avançar no processo. Entre elas,
visita conjunta (Drads, representantes do município, membros da entidade) à Residência Inclusiva
da cidade de Bauru, que é referência no Estado de São Paulo. Posteriormente, haveria uma capaci-
tação sobre o tema, a ser ofertada em dois dias, para que toda equipe da entidade e os membros
da diretoria pudessem participar.
O resultado da visita à Bauru foi positivo, mesmo com a participação de apenas dois membros
da entidade. Perceberam, na prática, qual era a proposta em debate desde o princípio. A partir
dessa experiência a equipe técnica convenceu-se da possibilidade de aplicação do modelo de
Residência Inclusiva aos usuários.
Posteriormente, realizou-se a capacitação com a participação da Direoria Regional de Saúde
(DRS) de Araraquara, técnicos das Secretaria de Estado de Desenvolvimento Social (Seds) e mem-
bros da equipe técnica da Apae – Bauru (executora da Residência Inclusiva de Bauru-modelo esta-
dualizado). A capacitação foi aberta à entidade Nosso Ninho e às demais entidades que trabalham
com pessoas com deficiência do município de Araraquara. Novamente, apenas dois membros da
entidade Nosso Ninho participaram das ações planejadas.
Como se pode perceber, era grande a resistência da Diretoria da entidade, mas a semente es-
tava plantada e os movimentos para o reordenamento tinham de iniciar.
Vencido os prazos estabelecidos para o início do processo de reordenamento estabelecido no
Plano de Reordenamento pactuado, e depois de todas as ações realizadas no sentido de incenti-
var, apoiar e orientar o início do processo, o que restou à equipe técnica estadual foi a solicitação
de um Plano de Providência, conforme a Resolução CIT nº 08, estabelecendo o fluxo, os procedi-
mentos e o acompanhamento das ações e dos prazos para que o reordenamento do serviço fosse
concretizado, seja na entidade Nosso Ninho, seja por meio de novas parcerias.
A partir desse momento, a entidade passou a ter prazos definidos para a locação de um imó-
vel em um bairro residencial da cidade e também para a composição da equipe técnica e, dessa
forma, iniciar o reordenamento dentro de uma nova metodologia de atendimento a pessoas
com deficiência. Importante salientar, também, a posição do Conselho Municipal da Assistência
Social (CMAS), que atrelou o repasse financeiro à entidade, ao processo de reordenamento.
Em março de 2014, depois de grandes dificuldades em encontrar um imóvel com as caracterís-
ticas necessárias e superar a resistência por parte de alguns locadores e imobiliárias sobre o ob-
jetivo da locação, foi alugado um imóvel em um bairro central de Araraquara e iniciou-se, portanto,
a implantação da Residência Inclusiva, com nove usuários da entidade.
Vale destacar que a parceria com a Secretaria de Saúde do município e a Diretoria Regional
de Saúde do Estado foram muito importantes, uma vez que debruçaram-se em avaliações de to-
dos os usuários da entidade, estabelecendo quais encaminhamentos deveriam ser tomados para
cada um, de forma que tivessem seus direitos assegurados.
Por fim, pode-se afirmar que o processo de reordenamento do serviço de acolhimento para pes-

116 CADERNO DE ESTUDOS EDESP


soas com Deficiência em Residência Inclusiva no município de Araraquara foi exitoso e também muito
desafiador e gratificante. Observamos uma grande evolução da própria entidade no que se refere à
mudança de metodologia de trabalho. Também, no olhar e no cuidado de seus usuários pelos próprios
profissionais e, principalmente, por parte da Diretoria. O trabalho intersetorial e sistemático com a As-
sistência Social, a Saúde e outras entidades de referência foram fundamentais para o êxito do reorde-
namento. Atualmente, verificamos entre os usuários da Residência Inclusiva uma mudança de cultura,
um ganho de autonomia, de verbalização, de autocuidado e, principalmente, de liberdade de escolhas.

Béria Cristina da Silveira e Silva é graduada em Ciências Sociais


pela Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho” (Unesp) Cam-
pus de Araraquara. Atualmente é Agente de Desenvolvimento Social da Se-
cretaria de Estado de Desenvolvimento Social (Seds), atuando como técnica
de referência dos 26 municípios de abrangência da Diretoria Regional de As-
sistência e Desenvolvimento Social (Drads) de Araraquara.

Paulo Albano Filho é graduado em Ciências Sociais pela Universidade


Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho” (Unesp) Campus de Araraquara.
Atualmente é Diretor Técnico I do Núcleo de Supervisão, Avaliação e Monito-
ramento da Secretaria de Estado de Desenvolvimento Social (Seds), atuando
como técnico de referência dos 26 municípios de abrangência da Diretoria
Regional de Assistência e Desenvolvimento Social (Drads) de Araraquara.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil, 1988.
______. Lei nº. 8.742, de 07 de dezembro de 1993. Lei Orgânica de Assistência Social – LOAS.
Brasília, 1993.
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tubro de 2004. Política Nacional de Assistência Social – PNAS/2004. Brasília, 2004.
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NOB/SUAS. Brasília, 2005.
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Recursos Humanos do SUAS, NOB-RH/SUAS. Brasília, 2006.
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tência Social. Resolução nº 109 de 11 de novembro de 2009. Aprova a Tipificação Nacional de
Serviços Socioassistenciais. Brasília, 2009.

CADERNO DE ESTUDOS EDESP 117


______. Decreto 7.612 de 17 de novembro de 2011. Plano Nacional dos Direitos das Pessoas com
Deficiência – Viver sem Limite. Brasília, 2011.
______. Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome. Conselho Nacional de Assistên-
cia Social. Resolução CNAS nº 011, de 24 de abril de 2012. Aprova os critérios de partilha do co-
financiamento federal para apoio à oferta dos Serviços de Proteção Social Especial para Pessoas
com Deficiência, em situação de dependência, e suas Famílias em Centros Dia de Referência e em
Residências Inclusivas e, dá outras providências.
______. Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome. Secretaria Nacional de Assistên-
cia Social. Orientações Técnicas – Serviço de Acolhimento Institucional para Jovens e Adultos
com Deficiência em Residência Inclusiva. Brasília, 2012.
______. Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome. Secretaria Nacional de Assis-
tência Social. Resolução CIT nº08, de 14 de julho de 2010. Estabelece fluxos, procedimentos e
responsabilidades para o acompanhamento da gestão e dos serviços do Sistema Único da Assis-
tência Social – SUAS. Brasília, 2010.
______. Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome. Secretaria Nacional de Assis-
tência Social. TERMO DE ACEITE. Serviço de Serviço Institucional para Jovens e Adultos com
Deficiência em Residência Inclusiva. Brasília, 2012.

118 CADERNO DE ESTUDOS EDESP


Mulher:
Questão de
Gênero e os
Desafios para
a Política de
Assistência Social
CADERNO DE ESTUDOS EDESP 119
BOLSA FAMÍLIA E CIDADANIA
Por Walquiria Domingues Leão Rego

O
presente artigo, ainda que de modo breve, é parte de uma pesquisa mais ampla que tem
como escopo a apreensão de certos sentidos de mudanças morais e políticas, não no
sentido puramente eleitoral, mas sim associadas a mais liberdade pessoal, nas mulheres
pobres, resultantes do recebimento do Bolsa Família. A investigação efetuada durante
5 anos, de 2006 a 2011, se realizou por meio de entrevistas abertas com algumas mulheres e se-
guiam certo roteiro de questões. Nesta escuta, que, como se sabe, possui certo dinamismo próprio
da fala humana, se tentou captar alterações ocorridas em suas vidas no sentido mencionado aci-
ma. Outro critério eleito foi ouvi-las sobre os impactos que o programa havia feito em suas vidas.
No caso, significou, fundamentalmente, ouvir as mulheres que vivem em algumas das situações
de vida mais desfavoráveis e mais precárias. Tratava-se, em suma, de ouvir pessoas que, de certa
forma, estão nas piores situações sociais: porque vivem em pobreza extrema e habitam as regiões
mais tradicionalmente desassistidas pelo Estado Nacional em todos os sentidos. São moradoras
destituídas muitas vezes de serviços públicos mínimos, já que faltam escolas, estradas, hospitais,
centros de cultura, espaços de encontro. Isto facilita seu atomismo social e sua desagregação
política, fazendo delas pessoas excluídas de um ambiente estimulante ao desenvolvimento huma-
no. As regiões selecionadas foram: partes do alto sertão de Alagoas, bem como a Zona Litorânea
deste Estado, o Vale do Jequitinhonha (MG), algumas localidades do interior do Piauí e do interior
do Maranhão, bairros muito pobres da periferia de São Luís (MA) e do Recife (PE).

ENTREVISTAS
As entrevistas, como mencionado acima, foram abertas. Semelhante técnica investigativa re-
quer que se ouça atentamente as vozes das mulheres, dentro do possível, se sinta suas opiniões
e sentimentos a respeito da magnitude das mudanças que a percepção da renda monetária, pro-
vinda do recebimento da Bolsa Família, traz às suas vidas. Isto é importante, porque não nos
interessava ouvir as opiniões de outros que se colocam como interpretes das mulheres pobres,
mas precisávamos ouvir suas vozes. Estas devem ser ouvidas, de preferência, mais de uma vez,
para que se possa capturar uma dimensão não tangível às outras modalidades de pesquisa sobre
o tema. Neste sentido, o horizonte da nossa pesquisa é amplo, pois pretende avaliar o impacto
do Bolsa sobre a sua subjetividade. Com isto, para tentar apreender os possíveis graus de auto-
nomização alcançados e os meramente potencializados pela percepção de renda monetária, por
menor que esta seja, como é o caso do Bolsa Família.

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ESTADO AUSENTE E PERMANÊNCIA DA POBREZA EXTREMA
É sempre importante lembrar que se trata, no caso do Bolsa Família, de mulheres muito po-
bres, em termos de renda e riqueza, mas não é apenas esta faceta que se expõe desde logo que se
adentra em seu universo. Importa registrar sempre, para se compreender sua subjetividade, que
está se referindo a pessoas cuja existência inteira foi tecida de carecimentos básicos. O Estado
sequer lhes garantiu o direito à vida e à segurança, descumprindo assim suas funções precípuas
de proteger e assegurar a vida de seus cidadãos. Foram desprovidas do acesso aos gêneros in-
dispensáveis à reprodução da vida. Muitas delas passaram pela experiência humilhante de ser
obrigada a “caçar comida” como fazem os animais, constituindo o que Hannah Arendt chamou
de “povos sem Estado”, ou seja, de indivíduos sem direitos garantidos por um organismo estatal.
Isto posto, se pode afirmar que o Estado brasileiro por muitos anos decretou, ainda parafraseando
Arendt, sua expulsão da humanidade.
A ausência de Estado para lhes conceder e garantir direitos conforma a situação de pessoas
sem direito a terem direitos. Com isto, o Estado brasileiro decretou por muitos anos sua morte
civil. Essas mulheres, portanto, foram emudecidas, porque seu direito de voz pública não existe,
pois são desprovidas também de seus direitos civis básicos, e, por esta razão, não possuem con-
dições e canais institucionais de expressão. São milhões de brasileiras com escolaridade prati-
camente ausente, destituídas de qualificações e habilitações para qualquer tipo de emprego que
exija, por exemplo, escrita e leitura e capacidade de obedecer a certos comandos de trabalho
mais qualificados. Isto, per se, coloca em questão a natureza do crescimento econômico ocorrido
no Brasil nos últimos 70 anos, quando chegamos a crescer quase 10% ao ano. Que isto revela?
Nosso crescimento foi desprovido de projeto democrático substantivo. Ou seja, parte grande de
sua população não foi incluída nos benefícios mais decisivos da herança civilizatória da humani-
dade. Não se investiu em escolas de qualidade, em saúde, em bem-estar da maioria da população.
Às mulheres, em especial, sobrou sofrimento, pobreza e a vivência dos ciclos da vida, tal qual
haviam vivido suas mães e avós. Ou seja, a repetição dos seus destinos e tragédias. Gravidez
indesejada, carências de toda ordem, enfim, todas as violências que vitimam a extrema pobreza.

RENDA MONETÁRIA E AUMENTO DOS ESPAÇOS


DE LIBERDADE PESSOAL
A investigação se propõe a apreender, como dito anteriormente, os efeitos políticos e morais nada
secundários do Bolsa Família sobre as mulheres que recebem o benefício. A nossa hipótese funda-
mental repousa no fato de que a renda monetária e seu recebimento regular feito por meio do Bolsa
Família podem criar e ampliar espaços pessoais de liberdade, trazendo-lhes, consequentemente, mais
possibilidades de autonomização da vida em geral. Isto quer dizer que o ganho da regularidade de
rendimentos monetários abre-lhes fendas de liberdade, fundamentais, em potência, à sua constituição
em sujeitos de direitos e, consequentemente, mais controle sobre sua vida e destino.
Pode-se verificar esta possibilidade por meio das contundentes palavras de Dona Ednaide Soa-

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rez dos Santos, 41 anos, casada, 10 filhos (Pasmadinho, Vale do Jequitinhonha, Minas Gerais,
julho de 2008): “Porque a gente tem mais liberdade no dinheiro”.

Vejam-se trechos da entrevista:

- O que você acha de ser no seu nome e não do teu marido?


- O quê?
- Porque o cartão Bolsa Família é no seu nome, no nome da mulher. O que você acha disso?
- Eu acho bom, né.
- Por quê?
- Porque a gente tem mais liberdade no dinheiro.
- Por que tem mais liberdade?
- Porque a gente pode comprar mais o que a gente quer, né. Porque o marido também tem
liberdade, mas se ele vai comprar, ele compra o que ele quer e se for eu, eu compro o que eu quero.

Na primeira entrevista feita em abril de 2006, com Dona Madalena (nome fictício), de 34 anos,
casada e mãe de três filhos pequenos, moradores da zona rural do alto sertão de Alagoas, nas
redondezas da cidade de Inhapi, perguntamos-lhe sobre a questão dos maus-tratos dos maridos
nas famílias da região; chorou, e disse que não gostaria de falar sobre isto. A pergunta havia to-
cado em sua ferida. No ano seguinte, quando retornamos, encontramo-la separada do marido,
ostentando uma aparência muito mais tranquila. Recebeu-nos sorridente e nos confessou que no
ano anterior estava muito triste e deprimida, pois enfrentava uma situação muito difícil. À pergun-
ta sobre o que havia mudado na sua vida após seu ingresso no Programa Bolsa Família, que lhe
proporciona um rendimento monetário regular, dona Madalena respondeu:
“Adoro, porque eu não sei o que seria da minha vida sem ele. Ia ficar meio difícil, com três filhos.
Acho ótimo, ótimo, porque, se não fosse o Bolsa Família, eu não sei o que seria da família pobre”.
Deve-se ressaltar, contudo, que as possibilidades morais de liberação da opressão conjugal
ainda são muito raras nas regiões pobres e atrasadas do Brasil, devido aos rígidos controles fami-
liares que atuam sobre as mulheres. Os controles provêm de várias figuras familiares. A família e
seus controles se ampliam no casamento, originando a família ampliada e, com isto, a extensão
da dominação. Isto é, muitas delas estão submetidas ao sogro, à sogra, além do marido e do pai.

PERCURSOS DE EXCLUSÃO
Por inúmeras razões temos de investigar as expectativas das mulheres que entrevistamos. Por
exemplo, foi possível perceber que longe da acomodação proclamada pelo preconceito elitista,
com os níveis de renda percebidos, por meio do Programa Bolsa Família, as mulheres e homens
pobres querem muito mais da vida. Possuem em alta conta o trabalho que gera renda, mas sa-
bem que não foram capacitadas para tal, ou seja, aquele mais qualificado. É comum a fala triste.
“Não pude ir à escola, era muito longe de casa”. Ou “o pai tirou nóis da escola porque precisava
de nóis pro serviço”. Ao fim e ao cabo, a cultura da sociedade salarial age e agiu nas profundezas

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de suas subjetividades. Trabalho bom e regular não é para qualquer um! Na cidade alagoana do
Sertão, Delmiro Gouveia, existe uma fábrica de roupas de cama e mesa. Emprega apenas 800
pessoas. As mulheres pobres e seus maridos que moram nas redondezas sabem que ali jamais
conseguirão trabalhar. Não têm capacitação e habilidades para as tarefas ali exigidas. No fundo
sabem que estão excluídos dos empregos melhores. Seu destino foi traçado há muito tempo
pela produção incessante das iniquidades distributivas da sociedade brasileira. Como já foi dito
anteriormente, a escolaridade nestas regiões é privilégio de poucos. Contudo, não é verdade que
não queiram trabalhar, mas sabem como é difícil e penoso, sobretudo, para as mulheres, em um
país sem escolas e creches públicas, tanto sua busca de trabalho como dedicar-se a ele. Os filhos
sofrem e elas sabem na carne muito bem disso. Como sabem que o mercado de trabalho só lhes
reserva a elas e seus maridos as tarefas mais brutas. Isto, se encontrarem oportunidades de de-
sempenhá-las, pois seu recrutamento é episódico e irregular. No entanto, a produção de precon-
ceitos e estereótipos contra os pobres, e em especial contra a mulher pobre, não cessa. Aliás, são
partes constitutivas das estratégias de dominação política, cultural e social bastante conhecida
da sociologia e das teorias feministas. Adverte Martha Nusbaum: “A desigualdade de condições
sociais e políticas se traduz para as mulheres em desigualdade de capacidades humanas”.

CONCLUSÕES
Para concluir estas rápidas notas de uma pesquisa muito mais ampla, devemos ter em mente
que: O programa de transferência estatal de renda a mulheres pobres, o Programa Bolsa Família,
se insere em uma ainda incipiente política pública de cidadania. O fato de ser ainda muito insufi-
ciente como tal não nos permite ignorar suas possibilidades de se tornar em consistente política
de formação de cidadãos, se complementadas por um conjunto mais amplo de políticas públicas
que visem este alvo – a formação da cidadania democrática no Brasil. Neste sentido, comecemos
pela mais preliminar de todas as prerrogativas da cidadania, porque diz respeito ao mais prelimi-
nar direito, o direito à vida, que o atual Programa Bolsa Família garante.
Depois de cinco anos de entrevistas, pode-se afirmar que o programa produz mudanças signi-
ficativas na vida das pessoas destinatárias do Bolsa Família. Uma delas é o início da superação
da cultura da resignação, ou seja, a espera resignada da morte por fome e por doenças ligadas
a ela, drama este constante neste universo espacial. Suas cantigas e poesias populares sempre
o cantaram em tristes lamentos. Nossos grandes romancistas escreveram suas obras-primas
tendo como componentes de seu tecido dramático a miséria e a fome de nossos concidadãos. As
entrevistas e conversas realizadas até então com mulheres beneficiadas pelo programa governa-
mental mostraram que é possível entrever outras potencialidades liberatórias, outras dimensões
presentes na dotação de recursos monetários, sem perder de vista que este nível é o chão concre-
to de qualquer outra consideração.
A continuidade do programa e sua ampliação em direção a políticas culturais específicas
destinadas às mulheres bolsistas ainda precisam ser desenhadas. Infelizmente, o golpe de estado
desferido contra a democracia brasileira em 2016 pode ter posto fim nesta alvissareira experiên-
cia distributiva. Mais uma vez no Brasil, como mostra sua história, as classes dominantes não

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permitem, nem nunca permitiram, que os fracos tenham sua vez e sua hora; interrompem brutal-
mente qualquer processo distributivo. Assim o fizeram em 1954, 1964 e agora. Sabemos que a
cidadania das mulheres sempre foi na história uma luta das mais duras e cruéis. Nosso país, de
raízes escravocratas, forjou uma dita elite cruel e cínica. Nosso destino e tragédia exigem audácia,
persistência e grande empenho cívico. Ou seja, exigem formação de capacidades políticas: de lu-
tas e organização das mulheres pobres, para de fato, transformá-las em sujeitos políticos capazes
de se assenhorear de suas vidas e destinos.

Walquiria Domingues Leão Rego é Professora de teoria da Cidada-


nia do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas (IFCH) da Unicamp. Reali-
zou pesquisa por 5 anos sobre os efeitos políticos e morais provocados pelo
Programa Bolsa Família, cujo resultado está publicado no livro “Vozes do
Bolsa família - Autonomia, Dinheiro e Cidadania” (Editora Unesp, 2013), es-
crito em parceria com o filósofo Alessandro Pinzani. Publicou vários artigos
e capítulos de livros sobre o assunto, assim como artigos sobre o tema da
cidadania e democracia.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
ZINCONE, Giovanna. Da sudditi a Cittadini. Bologna. Il Mulino, 1992.
NUSBAUM, Martha and Jonathan Glover. Women, Culture and Development. A Study of Human
Capabilities. OXFORD Clarendon Press, 2007.
PAUGAM, Serge. Les Formes Elementaires de la Pauvretè. Paris, Press Universitaires de France, 2005.
OKIN, Moller Susan. Justice, Gender, and the Family. Princeton University Press, 1989.
REGO, Leão Walquiria e Alessandro Pinzani. Vozes da Bolsa Família. Autonomia, dinheiro e cida-
dania. São Paulo, 2ª Edição, 2014.

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