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CAPÍTULO IV

PALEOLÍTICO SUPERIOR

Cronologia do Paleolítico Superior Inicial:


Desde há cerca de 40.000/35.000 anos (passagem do Würm Antigo para o Würm
Recente ou passagem do Plistocénico Superior Pleno para o Plistocénico Superior Final)
até há cerca de 20.000 anos (início do «último máximo glaciário»).81
A expansão do «Homem Moderno» para a Europa ocorreu sensivelmente durante o período
temperado, interestadial, que separa o Würm Antigo do Würm Recente (também designado por
«interestádio II/III» ou «oscilação de Hengelo»), de 45.000 a 35.000 anos BP).82

Cronologia do Paleolítico Superior Recente, subdivisível em:


▪ Paleolítico Superior Pleno: Na ocasião do «último máximo glaciário», de 20.000 a
18.000 anos BP.81
▪ Paleolítico Superior Final: Desde a passagem do «último máximo glaciário» até
ao final da Idade Glaciária, há cerca de 10.000 anos BP (8.000 anos a.C.).
Esta periodização, tendo por base os sítios e as coleções reconhecidas no nosso país, é muito
marcada pela evolução climática do período de tempo considerado.82

Objetivos:
1. Analisar a equação: Paleolítico Superior = «Homem Moderno» + arte +
produção de lâminas e entender a natureza da passagem/rutura entre o Paleolítico
Médio e o Paleolítico Superior.
2. Referir elementos adicionais definidores do Paleolítico Superior.
3. Reconhecer formas de ocupação no território português.
4. Reconhecer elementos da evolução técnica: a tecnologia laminar.
5. Reconhecer as indústrias líticas no território português: os diferentes complexos
industriais. Mencionar respetivas estações arqueológicas.
6. Indicar as principais características do fenómeno artístico do Paleolítico
Superior e suas marcas no território português.

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Capítulo IV – PALEOLÍTICO SUPERIOR

1. Analisar a equação: Paleolítico Superior = «Homem Moderno» + arte +


produção de lâminas e entender a natureza da passagem/rutura entre o Paleolítico
Médio e o Paleolítico Superior.
Tal como o Paleolítico Médio, também o Paleolítico Superior tem sido definido
tradicionalmente através de uma equação muito simples. Apesar de se tratar de uma
fórmula que merece maior aceitação que a do período anterior, não deixa de ser também
discutível e demasiado simplificadora.
De um modo global, a primeira crítica que se pode fazer a esta definição é a de ela
assumir como características gerais de todo o Paleolítico Superior aspetos que em
muitas regiões apenas ocorrem em momentos avançados do período, frequentemente já
no seu final.77
Uma segunda crítica é a da definição em apreço resultar principalmente de uma
perspetiva europocêntrica – e ainda assim limitada a certas zonas do continente – já que
pelo menos um dos termos da equação (caso do fenómeno artístico) se encontra ausente
ao longo de todo o Paleolítico Superior em amplas áreas geográficas e outro termo (o
«Homem Moderno») surja muito antes deste período, noutras regiões (como o Próximo-
Oriente).
1.1. «Homem Moderno»
O tipo humano associado ao Paleolítico Superior é o «Homem Moderno» ou mais
exatamente o Homo Sapiens Sapiens, o que é válido para a maior parte do território
europeu.78
De facto, existe uma rutura de populações a que, na Europa, se pode assimilar a
passagem do Paleolítico Médio para o Paleolítico Superior. Mas ela não é inteiramente
clara, nem absoluta.
Por um lado, conhecem-se alguns exemplos de culturas que documentam a ocorrência
de populações neandertalenses terminais, detentoras de tecnologias que as fazem
colocar no Paleolítico Superior. O exemplo mais conhecido desta situação é o do
Castelperronense, situado na parte ocidental do território francês e na região cantábrica
espanhola; outro exemplo poderão ser as diversas indústrias de pontas foliácias do norte
da Europa.
Por outro lado, a atribuição ao «Homem Moderno» do primeiro complexo industrial
verdadeiramente pan-europeu do Paleolítico Superior (pelo menos a latitudes baixas) –
o Aurinhacense – continua a ser um tanto hipotética, já que não se conhecem
efetivamente fósseis que documentem os autores dos seus estados iniciais.
Assim, o que parece certo é que, mercê de processos de aculturação ou de
desenvolvimento próprio, algumas populações neandertalenses passaram a fronteira
convencional definidora do Paleolítico Médio, tanto no domínio tecnológico como até
no domínio simbólico.

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Capítulo IV – PALEOLÍTICO SUPERIOR

1.2. Arte
De facto, existiram populações néandertalenses que produziram alguns objetos artísticos
(móveis e parietais). A arte não é assim exclusiva do «Homem Moderno». Em todo o
caso, é inegável que o fenómeno artístico em toda a sua extensão é uma característica do
Paleolítico Superior, pelo menos a partir do chamado «último máximo glaciário» (c. 20
a 18 mil anos BP).79
1.3. Produção de lâminas
O último elemento da equação é o da produção de lâminas, ou seja, a tecnologia
laminar. Neste aspecto, a rutura tecnológica aqui subentendida (tecnologia levallois
versus tecnologia laminar ou leptolítica) não assume um carácter universal. Poderá
efetivamente existir em certas regiões (incluindo Portugal), mas não em muitas outras
onde desde antes ocorre a produção de lâminas ou onde importantes indústrias do
Paleolítico Superior são feitas a partir de lascas, tal como em épocas precedentes.

2. Referir elementos adicionais definidores do Paleolítico Superior.


No plano tecnológico: fabrico de instrumentos em osso, de transporte (trenó, raqueta de
neve, etc.), de vestuário (o botão, a agulha, indumentárias constituídas por várias peças,
calçado, etc.), de conservação de alimentos (através do frio e da fumagem), de
armazenamento (fossas escavadas no solo), de caça e de pesca (pontas de projétil em
pedra, arpões, por vezes impulsionados pelo propulsor - a primeira máquina na história
humana).
No plano do habitat: uma complexidade sem precedentes em épocas anteriores
(unidades de habitação de dimensões variadas, divisão interior do espaço habitado que
no final do período em alguns locais parece dar indícios de práticas cultuais - ocorrência
de objetos de valor simbólico, como as «vénus»); e, no plano das sepulturas, ocorrência
de formas muito variadas, correspondentes a rituais funerários igualmente muito
diversificados (em Portugal, apenas existe a referência feita por J. Roche a um
hipotético enterramento no nível do Paleolítico Superior Final na Lapa do Suão,
Bombarral, representado por «dois molares humanos numa pequena fossa arranjada
entre blocos» e rodeada por objetos de adorno: conchas de moluscos, ocre vermelho e
dentes de lince).
No plano territorial: multiplicação do número de sítios, assim como o aumento da sua
extensão; e, sobretudo, existência de áreas de exploração de recursos ou até, no final do
período, de sistemas de trocas a grande ou muito grande distância: à volta dos 400 Kms,
podendo80 em certos casos atingir os 700 Kms (de que são exemplo algumas conchas do
litoral, encontradas no interior do continente Europeu e utilizadas como adornos);
ocupação de zonas claramente setentrionais da Europa, acima dos 54O de latitude e até
ao Círculo Polar Ártico, o que vai também permitir a penetração e rápido povoamento

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Capítulo IV – PALEOLÍTICO SUPERIOR

do continente americano, a partir do Estreito de Bering.


No plano da percepção temporal: sinais evidentes de uma certa calendarização do
Tempo, visível tanto em alguns possíveis exemplares de calendários lunares (gravados
em peças ósseas móveis e nas paredes das grutas), como principalmente num
planeamento antecipado da vida económica (possibilitando a adoção regular de
estratégias de obtenção do alimento de forma logisticamente organizada) e social
(dando origem à frequência, em certas alturas do ano, de «lugares agregadores», como
poderiam ser algumas grutas decoradas).
No plano económico: utilização de uma gama muito maior de recursos materiais (entre
eles, pela novidade do seu uso extensivo, sobressai o osso e o marfim, mas poderiam
incluir também a argila e outras rochas antes pouco trabalhadas) e energéticos: para
além da caça de mamíferos terrestres, a pesca e a recolha de recursos marinhos variados,
a caça de aves, a recoleção de vegetais, etc.; e, em simultâneo com esta maior
diversidade, uma especialização, sobretudo ao nível da caça (o veado, o cavalo, a rena
ou o mamute, por exemplo, segundo as regiões e as fases climáticas); uma caça,
portanto, seletiva tanto no que respeita às espécies, como quanto aos indivíduos dentro
das manadas.
No plano social, enfim: uma maior complexidade e consciência de pertença a grupos
definidos (sentido étnico), dando origem a verdadeiras culturas no sentido antropológico
do termo e à própria produção artística.81

3. Reconhecer formas de ocupação no território português.


Ao contrário da tendência registada durante todo o Paleolítico Inferior e Médio, no
sentido de uma ocupação extensiva do território ao longo das bacias fluviais e nos
planaltos e maciços rochosos a baixa altitude, os sítios arqueológicos do Paleolítico
Superior parecem estar muito menos dispersos.
Esta situação poderá resultar de duas circunstâncias:
1. A correspondência entre o Paleolítico Superior e o mais rigoroso período
glaciário plistocénico (Würm Recente, o único documentado em Portugal), que
poderia conduzir ao despovoamento significativo do interior peninsular,
transformando os planaltos mesetenhos em zonas estépicas e mesmo totalmente
desérticas;
2. E, por outro lado, uma nova estrutura do povoamento humano, agora claramente
aglutinado em áreas e sítios privilegiados, como é o caso, em Portugal, da
Estremadura, possuidora de uma considerável diversidade regional (faixa
costeira, terras baixas do litoral, planaltos e montanhas de baixa altitude, bacia
fluvial do Tejo) e de uma grande variedade de matérias-primas, tanto

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materiais (com zonas onde, por exemplo, abunda o sílex de boa qualidade),
como energéticas (pela riqueza de biótopos resultante das características
climáticas, geográficas e geológicas indicadas).
Compreende-se assim que a quase totalidade dos sítios arqueológicos do Paleolítico
Superior português se localizem nesta zona. Excecionalmente registam-se dois locais
importantes no Alentejo: Gruta do Escoural, em Montemor-o-Novo, e Monte de Faínha,
em Évora-Monte.83

4. Reconhecer elementos da evolução técnica: a tecnologia laminar.


As técnicas de fabrico de instrumentos incluem-se, desde o início do período, no padrão
geral da chamada tecnologia laminar ou leptolítica.
Esta evolução tecnológica constitui um dos tradicionais elementos caracterizadores do
Paleolítico Superior e dá lugar à consideração de um quarto e último patamar no
trabalho da pedra por lascamento, que A. Leroi-Gourhan assim define:
Estereotipo neantropiano (Homem anatomicamente moderno / indústrias de lâminas):
talhe por percussão ou por pressão, com percutor duro ou elástico, direto ou indireto (ou
seja, com a intercalação de um punção ou escropo); desenvolvimento da conceção
levallois sob a forma do método prismático, ou seja, a construção volumétrica dos
núcleos de tal modo que, a partir de uma aresta-guia, se extrai uma primeira lâmina (dita
«lâmina de crista»), que passa a constituir o arranque para a obtenção sucessiva de
outras, dando ao núcleo o aspeto de um prisma (ou pirâmide de muitos lados), cuja área
vai diminuindo à medida que é explorado até se esgotar.
Trata-se de uma evolução técnica que dá origem a importantes consequências
económicas: a produção em série de lâminas muito idênticas umas às outras, que depois
serão retocadas, dando origem a utensílios muito variados e especializados: buris e
raspadeiras de tipos diversos, furadores, pontas variadíssimas, etc.
É esta, em termos gerais, a tecnologia lítica do Paleolítico Superior português, desde o
seu início, num violento contraste com as indústrias do Paleolítico Médio, contraste que
se estende às matérias-primas utilizadas: no Paleolítico Médio, o quartzito, o quartzo e
só eventualmente o sílex; no Paleolítico Superior, a procura sistemática de sílex,
reservando as outras rochas para instrumentos cujo fabrico não supunha a aplicação da
técnica laminar (seixos talhados, por exemplo).84

5. Reconhecer as indústrias líticas no território português: os diferentes complexos


industriais. Mencionar respetivas estações arqueológicas.
Diferentes tradições culturais do Paleolítico Superior português enquadradas nas
três fases em que o período pode ser dividido:

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Capítulo IV – PALEOLÍTICO SUPERIOR

1) Paleolítico Superior Inicial (40/35 a 20 mil anos BP): Castelperronense;


Aurinhacense; e Gravetense.
Castelperronense: c. 36/35 a 32 mil anos BP.
Cultura correspondente à adoção (por assimilação através do contacto com o «Homem
Moderno» ou por desenvolvimento próprio) por parte do «Homem de Néandertal» de
tecnologias (tecnologia laminar) e tipos de utensílios líticos (buris, pontas, raspadeiras,
etc.) e em osso integráveis no Paleolítico Superior, que surgem em associação com
outros mais antigos (raspadores sobre lasca, facas de dorso, etc.).
É limitado geograficamente ao sudoeste e centro-oeste de França, assim como a alguns
(raros) locais da região cantábrica espanhola.
Aurinhacense: c. 40/39 a 26/25 mil anos BP.
Complexo industrial correspondente ao «Homem Moderno», é caracterizado pelo uso
da tecnologia laminar e pela produção de instrumentos “do tipo Paleolítico Superior”
bem como por uma significativa indústria em osso e alguma produção artística.
É reconhecido extensivamente em toda a Europa a baixas latitudes desde a Península
Balcânica (onde se encontram as suas datações mais antigas, na ordem dos 43 mil anos)
até à Península Ibérica.85
O mais importante local do Aurinhacense português é Vale de Porcos (Rio Maior),
localizado numa zona extraordinariamente rica em sílex e por isso muito marcado por
uma atividade de talhe, patente na abundância de núcleos e restos de talhe (entre os
quais numerosas lâminas) e na escassez de utensílios retocados (buris e, em menor
percentagem, raspadeiras).86
Gravetense: c. de 27/26 mil a 21 mil anos BP.
Conjunto de complexos indústriais muito diversos, tendo eventualmente origens
também diferentes (nas indústrias foliácias do norte da Europa, em continuidade desde o
Paleolítico Médio; e no desenvolvimento local das comunidades sapiens sapiens),
corresponde basicamente à adoção de um procedimento técnico (o retoque abrupto das
arestas, ditas de dorso abatido ou rebaixado), dentro do quadro geral da tecnologia
laminar, dando origem a diferentes tipos de pontas (sendo a mais conhecida a dita de La
Gravette) que se colocariam ao serviço de uma invenção/técnica de caça que talvez
explique uma «moda tecnológica»: a invenção das pontas de projétil em pedra inseridas
em cabos.
Está documentado em toda a Europa.85
Da cerca de meia dúzia de locais atribuídos ao Gravetense em Portugal, salientam-se
os de Casal do Filipe e Terra do Manuel, ambos em Rio Maior. O sítio de Terra do
Manuel constitui o melhor exemplo até hoje conhecido de uma possível fase de
transição entre este período (Paleolítico Superior Inicial) e o seguinte (Paleolítico

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Capítulo IV – PALEOLÍTICO SUPERIOR

Superior Pleno).
2) Paleolítico Superior Pleno (20 a 18 mil anos BP): Solutrense.
Complexo industrial que preenche o período de tempo correspondente ao máximo
glaciário Würmiano, de 20 a 18 mil anos BP.
Globalmente, as utensilagens líticas solutrenses caracterizam-se pelo emprego corrente
da técnica de retoque plano e invasor, realizada sobre lascas (ou lâminas) num só lado
(pontas de face plana) ou em ambos os lados (retoque bifacial), 86 dando, neste caso,
origem a instrumentos foliácios, tais como as «folhas de loureiro» e «de salgueiro»,
destinadas a serem utilizadas como pontas de lança (hipoteticamente, algumas delas
poderiam ser pontas de flecha, se bem que a técnica do arco e da flecha apenas se
encontra bem documentada a partir do Mesolítico).87
Estende-se desde o Oeste do Vale do Ródano, em França, até à Península Ibérica onde
ocupa uma faixa litoral (raramente a mais de 50 Km da costa atual) e se individualiza
através de dois fácies regionais: o Cantábrico e o Levantino (ou Mediterrânico).86
O Solutrense português é representado por cerca de 20 estações arqueológicas.
Regista-se agora uma ocupação extensiva de quase todo o território da Estremadura,
havendo até a frequência sazonal (durante o Verão, certamente) e regular das zonas
montanhosas, para a caça de animais próprios desses biótopos (como na Gruta do
Caldeirão, em Tomar, onde se caçaram a camurça e a cabra-montês).88
Segundo J. Zilhão, o Solutrense português caracteriza-se por uma evolução em 3 fases:
Solutrense Inferior (anterior a 20,5 mil anos BP), caracterizado pela ocorrência de
pontas de face plana e ausência de peças foliácias bifaciais;
Solutrense Médio (entre 20,5 e 20 mil anos BP), caracterizado pela introdução e
abundância das pontas bifaciais foliácias;
Solutrense Superior (até há cerca de 18 mil anos BP) durante o qual surgem peças
como a «ponta de Parpalló».89

3) Paleolítico Superior Final (17 a 10 mil anos BP): Madalenense


Passado o «último máximo glaciário» entramos no Paleolítico Superior Final.
Na Europa Ocidental registam-se basicamente dois tipos de tradições tecnológicas: a
das indústrias de tradição gravetense, ditas por isso Epi-Gravetenses, que ocorrem em
latitudes meridionais, em regiões onde as tecnologias foliácias do Solutrense não
chegaram a ser amplamente desenvolvidas; e o Madalenense.
O Madalenense é caracterizado por um conjunto de instrumentos líticos (utensílios
sobre lasca, raspadeiras de retoque marginal, buris de tipo diverso, diferentes tipos de
micrólitos lamelares e geométricos: triângulos, trapézios e crescentes) e, sobretudo, por
indústrias em osso muito elaboradas (zagaias, arpões de barbe-luras simples ou duplas,

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Capítulo IV – PALEOLÍTICO SUPERIOR

etc.).89
Constituindo para alguns “o apogeu das sociedades de caçadores-recoletores do
Paleolítico”, quando também se atinge o máximo expoente da produção artística, das
redes de trocas a longa distância, etc., o Madalenense irá dar gradualmente lugar a
diversas indústrias epipaleolíticas, entre as quais a mais tradicionalmente referida é o
Azilense (gruta do Mas-d’Azil, Ariège) que afinal, como dizia F. Bordes, não passa de
um Madalenense em época pós-glaciária.
J. Zilhão definiu dois90 estádios evolutivos do Madalenense português:
• um antigo, caracterizado pelas raspadeiras de retoque marginal e por buris
transversais;
• outro recente, caracterizado pela expansão das utensilagens lamelares e
microlíticas.91
O Madalenense português é conhecido em grutas (Casa da Moura, Lapa do Suão e
Caldeirão, esta última já referida a propósito do Solutrense) e em estações de ar livre,
situadas quer no interior (Rio Maior) quer no litoral da Estremadura (Magoito, S.
Julião).90

6. Indicar as principais características do fenómeno artístico do Paleolítico


Superior e suas marcas no território português.
O fenómeno artístico constitui um dos elementos mais sugestivos da equação com que
tradicionalmente se define o Paleolítico Superior.
Datam do final do séc. XIX as primeiras descobertas da arte do Paleolítico nas paredes
de algumas grutas (caso da gruta de Altamira), as quais não foram então aceites como
verídicas por se duvidar que o homem pré-histórico pudesse ter capacidades
(interioridade, expressividade, tecnologia) suscetíveis de darem origem a tal tipo de
produções.
Desde então as descobertas sucederam-se e hoje podem alinhar-se as seguintes provas
de autenticidade desta primitiva «arte das cavernas»: entradas por vezes seladas por
sedimentos ou, como aconteceu na recente descoberta de uma gruta próximo de
Marselha, pela subida do nível do mar; sobreposição estratigráfica de camadas
arqueológicas da época; cobertura dos motivos por espessas camadas calcíticas ou de
outros elementos químicos (óxidos de ferro, de manganés, etc.); representação de
animais extintos, de biótopos de tipo glaciário; etc.
– A arte parietal (ou «arte das cavernas») é uma arte claramente animalística, porque
nela predominam as representações de animais.
As primeiras análises desta arte procuraram explicá-la quer por motivos puramente
lúdicos (uma espécie de «arte pela arte»), quer por motivos mágicos, designadamente

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Capítulo IV – PALEOLÍTICO SUPERIOR

como instrumento garantidor da renovação das populações faunísticas (magia de


fecundidade) e propiciatório da realização de boas caçadas (magia simpática). A esta
última tese encontra-se ligado o nome do padre H. Breuil. 91 Porém, a primeira teoria
explicativa parece-nos um tanto anacrónica e a segunda defronta-se com a observação
nítida de que as espécies animais mais pintadas ou gravadas estavam longe de ser as
mais consumidas, não parecendo portanto que a sua representação fosse tida como
prenúncio da sua captura.
Modernamente, na sequência dos trabalhos hoje clássicos de autores como A. Leroi-
Gourhan, divide-se a arte parietal num conjunto de estádios ou estilos (desde um
momento «pré-figurativo», passando depois por 4 estádios figurativos, numa evolução
estilística que atinge o seu apogeu no período imediatamente seguinte ao «último
máximo glaciário».
Cada gruta decorada constitui um universo estruturado, no qual cada motivo ocupa uma
determinada posição não aleatória, dando origem à constituição de verdadeiros
mitogramas. A gruta decorada surge assim como um santuário, um todo organizado.
Afirma Leroi-Gourhan:
“Não existe linearidade na arte paleolítica. As imagens apresentam-se como um
quadro no qual há um centro e uma periferia. Elas acumulam-se sem perder o sentido
desta repartição em auréolas. Quando se olha com atenção e com suficiente recuo
apercebemo-nos de que tudo se constrói em torno de um tema que não pode ter sido
senão um mito”.
O tema central aqui referido é, segundo o mesmo autor, o do mistério da vida e da
sua regeneração, detetável em dois princípios vitais complementares (o masculino e o
feminino) e expresso através de simbologias próprias (animais com valor de «princípio
masculino» - cavalo, veado, cabra... - e animais com valor de «princípio feminino» -
bisonte, auroque...); atributos sexuais mais ou menos estilizados; e simples signos
geométricos.
Na Europa ocidental, a principal «província» desta «arte das cavernas» é a da região
franco-cantábrica, onde se incluem os exemplos célebres de Altamira, Lascaux, Niaux e
tantos outros. Fora deste espaço geográfico, os limites extremos são, a sul, a Cueva de
La Pileta (em Málaga) e, a oeste, a Gruta do Escoural (em Montemor-o-Novo).
*
Compreende-se assim a enorme importância da Gruta do Escoural, que aliás se insere
num local frequentado longamente, desde o Paleolítico Médio até ao Calcolítico, e
utilizado com um sentido sagrado em diversas épocas. Para além de ser a mais ocidental
gruta decorada do Paleolítico europeu, ela é também a única conhecida até hoje no
nosso país.

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Capítulo IV – PALEOLÍTICO SUPERIOR

As pinturas e gravuras paleolíticas do Escoural, embora não se comparem nem92 em


quantidade nem em riqueza expressiva com as das grutas mais conhecidas da região
franco-cantábrica, são constituídas igualmente por representações animais (equídeos,
bovídeos, caprídeos, etc.), signos abstratos (geométricos, pontuações, etc.) e outros
vagamente sugestivos de objetos reais (tectiformes, arciformes, etc.).
Na base de pressupostos estilísticos, mais do que de contextos arqueológicos, as
pinturas e as gravuras da Gruta do Escoural foram classificadas e datadas por M. Varela
Gomes que apresenta a seguinte sucessão de períodos:
1.º Solutrense: pinturas animalísticas, sobretudo quadrúpedes (bois e cavalos), de
contorno negro ou vermelho, e gravuras com incisão larga e profunda, situadas em
zonas de fácil acesso e boa visibilidade;
2.º Madalenense: apenas gravuras, representando pequenas cabeças de equídeos e de
caprídeos, com a característica de o interior ser preenchido por incisões múltiplas, muito
finas;
3.º Madalenense Final e primeiros tempos Holocénicos: enorme explosão de signos
geométricos e de figuras abstratas, manchas de traços, escalariformes e reticulados, por
vezes sobrepostos a figuras de períodos precedentes, mas que sobretudo procuram locais
dissimulados.93
Em Portugal, regista-se apenas um outro exemplo do mesmo período, mas de arte
rupestre ao ar livre, situado nas margens do rio Douro, em Mazouco (Freixo de Espada
à Cinta) que apresenta 3 figuras zoomórficas, entre as quais um cavalo de 60 cm de
comprimento.92
*
– No Paleolítico Superior ocorre igualmente a chamada «arte móvel», constituída por
um conjunto muito variado de peças:
1. Objetos simbólicos (de que são exemplo as chamadas «vénus», ou seja, estatuetas
femininas com as formas intencionalmente deformadas, podendo ser
interpretadas como símbolos da fecundidade, mas não ainda como verdadeiras
«deusas-mãe»);
2. Utensílios de uso comum decorados (especialmente em osso ou marfim: zagaias,
arpões, propulsores...);
3. Ou simples adornos (conchas ou dentes perfurados, contas de colar, etc.).

Excluindo a ocorrência de duas hipotéticas «vénus», uma descoberta em Sesimbra e a


outra nas proximidades da Gruta do Escoural, os mais significativos objetos de arte
móvel do Paleolítico Superior português são:
• uma placa de xisto com gravações zoomórficas, uma antropomórfica e
escalariformes, encontrada na Gruta do Caldeirão.

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Capítulo IV – PALEOLÍTICO SUPERIOR

• Algumas conchas e dentes perfurados registados no mesmo e noutros locais.


• Um pequeno número de zagaias em osso, a mais importante das quais descoberta
na Gruta de Salemas (Loures)93 que apresenta uma sucessão de traços
transversais ao longo de todo o seu comprimento (aquilo que, por sugestão
etnográfica, se chamou outrora de «marcas de caça»).
• E, sobretudo, um conjunto de mais de uma vintena de falanges de veado
perfuradas a meio, detetadas na Gruta do Caldeirão, interpretadas como apitos
(uma espécie de negaças de caça) ou, simplesmente, como pendentes.94

Fig. 1 – Cronologia dos estilos da arte do Paleolítico Superior.


Segundo André Leroi-Gourhan (1964)

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