Você está na página 1de 6

CAPÍTULO II

NEOLÍTICO ANTIGO

Cronologia:
A tipologia cerâmica e lítica, as estratigrafias observadas na gruta do Caldeirão (Tomar) e em Vale
Pincel I (Sines), e as datações radiocarbónicas disponíveis induzem a dividir o Neolítico Antigo
português em dois horizontes:
• Neolítico Antigo Pleno, Neolítico Cardial ou Neolítico IA
Meados e 2ª metade do V milénio a.C.
Horizonte de cerâmica com decoração impressa.
• Neolítico Antigo Evolucionado
Finais do V milénio e 1ª metade do IV milénio a.C.
Horizonte de cerâmica com decoração impressa-incisa.

Conteúdo:
1. A paisagem vegetal. Primeiros sinais de pressão antrópica.
2. A introdução da economia de produção de alimentos.
3. Habitat. Sua localização e organização.
4. A cultura material e a sua evolução. Cerâmica e indústria lítica.
5. Estratégias de subsistência.
6. A transição para o Neolítico Médio.
*
1. A paisagem vegetal. Primeiros sinais de pressão antrópica.
As primeiras alterações sentidas ao nível do meio biofísico, na passagem do Mesolítico
para o Neolítico, relacionam-se, por um lado, com a morfologia costeira, em resultado
da transgressão flandriana (agora de ritmo muito lento e com uma estabilização por
volta de 3.000 anos a.C.) e, por outro lado, com a pressão antrópica que, a partir deste
momento, se irá fazer sentir de modo progressivo e imparável. Com o pastoreio e a
utilização do fogo ao serviço das práticas agrícolas – agricultura de corte e queimada –
originam-se formações vegetais degeneradas, expandindo-se as estevas, as ericáceas e
os carrascos.
No litoral sul, mais precisamente no troço compreendido entre a Comporta e Melides,
os estudos polínicos da autoria de Mateus assinalam, cerca de 4.500 anos a.C.,
profundas mudanças na paisagem vegetal. A floresta retrai-se, dando lugar a formações

1
Capítulo II – NEOLÍTICO ANTIGO

mais abertas e arbustivas, formando-se uma garrigue litoral. A intervenção humana só


em parte explica esta fitocenose. A subida do nível marinho e a consequente migração
da influência oceânica para o interior poderá ter representado um fator determinante na
sua origem.153

2. A introdução da economia de produção de alimentos.


A criação de gado e a agricultura representaram formas de economia introduzidas no
nosso território, visto não existirem aqui, em estado selvagem, os animais e as plantas
que foram domesticados.
Neste sentido, importa conhecer as condições em que se processou essa introdução: as
formas de economia de produção de alimentos chegaram através de grupos humanos
exógenos, «colonos», ou foram veiculadas através de uma osmose cultural
proporcionada, por exemplo, pelas relações intergrupais processadas no âmbito da
exogamia? Se houve assimilação por parte dos grupos autóctones do Mesolítico
terminal, que factores levaram esses grupos a adotarem formas de produção de
alimentos?

As comunidades mesolíticas autóctones encontravam-se preparadas económica e


socialmente, em resultado da sua própria dinâmica evolutiva, para assimilarem formas
de economia de produção de alimentos.
Com efeito, praticavam uma economia de caça-recoleção-armazenamento que está na
origem de uma organização social mais estável, reduzindo-se a mobilidade do grupo e
desenvolvendo-se a vida em comum. A emergência do papel social dos antepassados,
que será fundamental para a coesão das comunidades rurais, de acordo com as
exigências do continium agrícola, parece estar documentada no aparecimento de
verdadeiras necrópoles no interior do habitat.153
Por outro lado, não se notam rupturas significativas entre o Mesolítico e o Neolítico
Antigo que permitam sustentar a hipótese da chegada de grupos exógenos. Observa-se,
de facto, no Neolítico Antigo, um prolongamento das tecnologias, das condições de
povoamento e de subsistência do Mesolítico. Mesmo o pouco que se sabe acerca do
«Homem físico» do Neolítico mostra tratar-se de uma população semelhante à do
concheiro mesolítico de Moita do Sebastião.
*
A assimilação das inovações neolíticas foi progressiva e seletiva ao longo do V.º milénio
a.C. e fez-se em função das situações de equilíbrio ou de rutura demográfico/ecológica.
Uma situação de rutura nesse equilíbrio ocorreu talvez mais cedo na zona costeira do
que nos vales do Tejo e do Sado.
Lembremos a data de cerca de 4.500 anos a.C. (obtida próximo da Comporta) para o
início da antropização da paisagem vegetal. Vale Pincel I, estabelecimento de base

2
Capítulo II – NEOLÍTICO ANTIGO

neolítico, no concelho de Sines, forneceu datas radiocarbónicas da primeira metade e de


meados do V.º milénio a.C.
Os vales do Tejo e do Sado comportavam, como dissemos no capítulo anterior,
ecótonos de grande produtividade biológica, permitindo manter o equilíbrio
demográfico-ecológico. Por outro lado, no litoral, a transgressão flandriana teria
progressivamente reduzido os territórios dos caçadores-recolectores, acentuando o
desequilíbrio demográfico-ecológico. Também não podemos esquecer que a faixa litoral
representava um corredor natural por onde mais facilmente circularia o conhecimento
das inovações tecnológicas da economia de produção.
Temos, pois, na faixa litoral uma adesão relativamente precoce e pouco seletiva dos
elementos neolíticos que, no entanto, não consegue fazer desaparecer o fundo cultural
indígena mesolítico.
Nos vales do Tejo e do Sado, uma adesão seletiva em que só a cerâmica é adotada. De
notar que esta inovação seria extremamente útil numa economia mesolítica de caça-
recoleção-armazenamento.154

3. Habitat. Sua localização e organização.


Os principais testemunhos do Neolítico Antigo situam-se ao longo da faixa litoral, para
sul da Figueira da Foz. Podem, porém, atingir sítios localizados mais no interior como o
da Gruta do Escoural (Alto Alentejo) ou o do habitat de ar livre da Gaspeia (Alvalade
do Sado, no Baixo Alentejo). Pipas, do período de transição para o Neolítico Médio,
situa-se ainda mais no interior, no concelho de Reguengos de Monsaraz.
Os habitats de ar livre de ambos os horizontes do Neolítico Antigo ocupam áreas
arenosas, planas e abertas, quer junto da linha de costa (Vale Pincel I, Vale Vistoso,
Samoqueira), quer a poucos quilómetros da costa nas margens de cursos de água
(Junqueira, Salema, Cabranosa), quer ainda a muitas dezenas de quilómetros do litoral
(Gaspeira e Pipas).
Cada habitat organiza-se em diversos núcleos habitacionais separados entre si por
alguns metros e dispersos pela vasta área ocupada que, por exemplo, em Vale Pincel I
atinge os 10 hectares. Aqui surgiram estruturas que correspondem, provavelmente, a
cabanas ou abrigos cuja superestrutura seria formada por materiais de natureza vegetal,
revestidos por barro.
Cada unidade habitacional possuía estruturas de combustão de diversos tipos: «covas de
combustão»; depressões ovaladas pouco fundas; «empedrados»; «cinzeiros»; e
depressões. Na Salema (Santiago do Cacém), no horizonte de cerâmica com decoração
impressa-incisa, ocorrem «empedrados» associados a estruturas de planta ovalada com
paredes de argila cozida, que parece terem sido utilizadas como pequenos fornos.
Além dos habitats de ar livre conhecem-se também habitats em gruta ou em abrigo

3
Capítulo II – NEOLÍTICO ANTIGO

sob rocha, sobretudo no maciço calcário estremenho,157 não esquecendo também a


Gruta do Escoural (Alto Alentejo).

4. A cultura material e a sua evolução. Cerâmica e indústria lítica.


Cerâmica
As formas dos recipientes são simples e pouco variadas, de tendência esférica e ovóide.
Quanto à decoração, distinguem-se dois grandes grupos correspondentes ao:
• Neolítico Antigo Pleno, Neolítico Cardial ou Neolítico IA
Meados e 2ª metade do V milénio a.C.
Cerâmica com decoração essencialmente impressa (cardial ou não cardial) e plástica
(cordões horizontais ou verticais, lisos ou segmentados por impressões; mamilos
situados junto ou sobre o bordo).155
• Neolítico Antigo Evolucionado
Finais do V milénio e 1ª metade do IV milénio a.C.
Cerâmica com decoração impressa e incisa. Neste grupo, as impressões revelam a
utilização de variado número de matrizes (espátulas, cunhas, punções, caules) que
aparecem associadas a numerosos motivos incisos (linhas horizontais, verticais,
oblíquas, em grinaldas ou em chevrons), organizando-se em bandas horizontais ou
verticais metopadas.
Os elementos plásticos são constituídos, predominantemente, por mamilos situados
junto ou sobre o bordo e, mais raramente, por cordões verticais, horizontais ou
oblíquos.156

Indústria lítica
• Neolítico Antigo Pleno, Neolítico Cardial ou Neolítico IA (Vale Pincel I, Sines)
Meados e 2ª metade do Vº milénio a.C.
Pedra polida
✔ A utensilagem de pedra polida é rara e fruste - enxós e machados, parcialmente
polidos.
✔ As mós, pouco abundantes, são, em geral, de pequenas dimensões.
Pedra lascada
✔ O talhe é acentuadamente lamelar.
✔ O grupo tipológico melhor representado é o das lamelas com retoque parcial,
irregular, oblíquo e pouco profundo.
✔ Ocorrem raspadores, entalhes e denticulados, lamelas de dorso.
✔ O grupo dos geométricos é essencialmente constituído por trapézios e crescentes.
✔ A técnica do microburil foi largamente utilizada.

4
Capítulo II – NEOLÍTICO ANTIGO

• Neolítico Antigo Evolucionado


Finais do Vº milénio e 1ª metade do IVº milénio a.C.
Pedra polida
Em alguns habitats, como o da Salema (Santiago do Cacém), a indústria de pedra polida
é relativamente numerosa e bem elaborada:
✔ mós abundantes.
✔ enxós completamente polidas.
Pedra lascada
✔ Acentua-se o domínio das lascas sobre as lamelas em relação à indústria de Vale
Pincel I.
✔ São muito abundantes, como em Vale Pincel I, os utensílios pouco especializados
(de retoque parcial, irregular, oblíquo e pouco profundos).
✔ Os geométricos estão representados principalmente por crescentes.
✔ As lamelas de dorso são, por vezes, frequentes (Vale Vistoso, por exemplo).
✔ A técnica do microburil mantém-se presente.

5. Estratégias de subsistência.
Durante o Neolítico Antigo existiram duas estratégias articuladas, complementares, de
exploração do território, que remontam ao Mesolítico:
Exploração de largo espectro (caça, recoleção, pesca) enriquecida pela introdução da
agricultura e da criação de gado. Esta estratégia era desenvolvida a partir dos habitats
de base, ocupados provavelmente durante todo o ano em função do ciclo agrícola;
Exploração de curto espectro (exploração de reduzida banda do conjunto dos recursos
naturais disponíveis). Esta estratégia está representada por concheiros (níveis
superiores) e pelo provável acampamento de caça na gruta do Caldeirão (Tomar). Trata-
se de sítios ocupados temporariamente (sazonalmente), associados aos habitats de base,
durante os períodos de menor atividade agrícola.

6. A transição para o Neolítico Médio.


O arqueossítio da Salema forneceu uma indústria de pedra lascada muito afastada do
fundo tradicional mesolítico e uma utensilagem de pedra polida numerosa e bem
acabada, com um número relativamente elevado de elementos de mós; revelou
estruturas de habitat muito especializadas e elaboradas relacionáveis indiretamente com
as práticas agrícolas – os chamados «fornos». A própria organização do espaço é algo 158
diferente das demais jazidas do Neolítico Antigo: enquanto nestas o povoamento se
efetuou através de núcleos habitacionais dispersos pela extensa área ocupada, na
Salema o povoamento parece mais concentrado.

5
Capítulo II – NEOLÍTICO ANTIGO

Assim, é possível que a Salema se situe na base da linha evolutiva que, graças a
condições ecológicas favoráveis ao desenvolvimento da economia agro-pastoril, foi
originar, por meados do IVº milénio a.C., as primeiras formas de megalitismo. E de
facto, apenas a cerca de 400 metros da Salema, no Marco Branco, escavámos uma
sepultura que considerámos protomegalítica.
*
Alguns autores defendem a ideia de que nos inícios do Neolítico do sul do país terão
coexistido duas correntes culturais distintas:
✔ uma localizada na faixa litoral que obedeceria às características que temos vindo
a expor;
✔ outra no interior, protomegalítica, resultante diretamente da aculturação das
comunidades de caçadores-recoletores mesolíticos.
Tal dualismo é questionado pelo habitat de Pipas (concelho de Reguengos de
Monsaraz): com as características essenciais dos povoados do Neolítico Antigo do
litoral, quer no que concerne ao padrão de ocupação, quer no que respeita ao espólio,
este habitat, situado no interior do Alto Alentejo, numa área megalítica por excelência,
parece também se relacionar com os construtores das mais antigas sepulturas
megalíticas (nesta região são conhecidas algumas sepulturas de câmara fechada como a
anta 1 da Herdade da Falcoeira e a anta 10 da Herdade das Areias).
Pensamos que a génese do nosso megalitismo terá de ser procurada em comunidades já
neolíticas nas quais, pelo desenvolvimento da economia de produção de alimentos, se
assiste ao reforço das relações de parentesco (sem o qual não seria, aliás, viável a
exploração agro-pastoril organizada), no quadro de uma estrutura social segmentária em
formação, processo que se virá a manifestar, entre outros aspetos, através da construção
de megálitos.159

Você também pode gostar