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Mudança climática fará com que

países inteiros desapareçam


DAKOPE, Bangladesh - Quando uma forte tempestade destruiu sua
casa ribeirinha, em 2009, Jahanara Khatun perdeu mais do que um
teto. Na sequência, seu marido morreu, e ela ficou tão desamparada
que vendeu seus filhos num vínculo de servidão.

Khatun agora vive em um barraco de bambu que fica abaixo do nível do


mar. Ela passa os dias recolhendo esterco de vaca para usar como
combustível e luta para cultivar hortaliças no solo envenenado pela
água salgada.

Os climatologistas preveem que essa área será inundada por causa do


aumento do nível do mar e pela intensificação das ressacas marítimas.
Um ciclone ou outro desastre podem facilmente varrer novamente a
sua vida. Khatun faz parte dos milhões de pessoas com os dias
contados nesta vasta paisagem de ilhas fluviais, cabanas de bambu,
decisões dolorosas e esperanças impossíveis.
Bengalesamostra lugar onde morava antes de uma tempestade, em 2009, deixa-la sem teto

A mudança climática já está provocando efeitos em todos os


continentes e em todos os oceanos, segundo relatório apresentado em
31 de março por cientistas reunidos em Yokohama, no Japão. Eles
alertaram que o problema tende a piorar substancialmente, a menos
que as emissões de gases de efeito estufa sejam controladas.

O Painel Intergovernamental sobre Mudança Climática, grupo das


Nações Unidas, concluiu que as calotas polares estão derretendo, o gelo
marinho no Ártico está em colapso, o abastecimento de água está
sobrecarregado, ondas de calor e chuvas fortes estão se intensificando,
os recifes de corais estão morrendo e os peixes e muitas outras
criaturas estão migrando para os polos ou sendo extintos.

Porém, o pior ainda está por vir, disseram os cientistas no segundo de


três relatórios que devem influenciar o debate a respeito de um novo
tratado climático global no ano que vem. O relatório enfatizou, em
especial, o risco considerável ao abastecimento alimentar do planeta -
ameaça que pode ter sérias consequências para nações mais pobres.

"Ninguém ficará intocado pelos impactos da mudança climática", disse


Rajendra Pachauri, presidente da comissão.

No topo da pauta está a previsão de que o nível global do mar pode


subir até um metro neste século. Tal aumento será desigual por causa
dos efeitos gravitacionais e da intervenção humana, de modo que
prever o seu resultado em qualquer lugar é difícil. Mas nações
insulares, como Maldivas, Kiribati e Fiji, podem perder grande parte do
seu território, e milhões de bengaleses terão que ser deslocados. "Há
muitos lugares no mundo sob risco de elevação do nível do mar, mas
Bangladesh está no topo da lista", disse Rafael Reuveny, professor na
Universidade de Indiana, em Bloomington.

Os efeitos da mudança climática têm levado a um crescente sentimento


de indignação nos países em desenvolvimento. Muitos deles sofrerão
em cheio as consequências do aumento das temperaturas e do nível do
mar, apesar de terem contribuído pouco para a poluição apontada
como a causa desses problemas.

Em uma conferência climática em Varsóvia, em novembro, houve uma


emotiva manifestação de países que enfrentam ameaças existenciais,
entre eles Bangladesh, que produz apenas 0,3% das emissões
responsáveis pela mudança climática. Alguns líderes exigiram que os
países ricos compensem as nações pobres pelo fato de serem os ricos os
maiores poluidores da atmosfera. Alguns dizem que os países
desenvolvidos devem abrir suas fronteiras aos migrantes climáticos. "É
uma questão de justiça global", disse Atiq Rahman, do Centro de
Estudos Avançados de Bangladesh.

Deltas fluviais do mundo todo estão particularmente vulneráveis aos


efeitos da elevação do nível dos mares, e cidades mais ricas, como
Londres, Veneza e Nova Orleans, também enfrentam um futuro
incerto.

Bangladesh contribui pouco para a poluição atmosférica, mas sua


necessidade de extrair água subterrânea para abastecer a população -já
que os rios estão poluídos demais- faz a terra ceder. Assim, enquanto o
nível do mar está subindo, as cidades bengalesas estão afundando.

Políticos e cientistas climáticos de Bangladesh concordam que, até


2050, o aumento do nível do mar inundará cerca de 17% do território e
obrigará o deslocamento de cerca de 18 milhões de pessoas, segundo
Rahman.

Os bengaleses já começaram a se afastar das aldeias mais baixas nos


deltas fluviais da baía de Bengala, segundo cientistas.

Grande parte do que o governo de Bangladesh está fazendo para tentar


impedir o dilúvio -erguendo diques, dragando canais, bombeando
água- agrava a ameaça de inundação a longo prazo, disse John Pethick,
ex-professor da Universidade de Newcastle, no Reino Unido. Ele previu
que o mar pode subir até quatro metros em Bangladesh até 2100,
aumento que teria consequências desastrosas num país onde quase um
quarto do território está menos de dois metros acima do nível do mar.

"Precisamos de uma solução regional e global", disse Tariq Karim,


embaixador de Bangladesh na Índia. "E, se não conseguirmos uma
logo, o povo de Bangladesh em breve vai se tornar um problema do
mundo, porque não seremos capazes de contê-lo."

Karim estimou que 50 milhões de bengaleses poderão fugir do país até


2050, se o nível do mar subir conforme o esperado.
Os sinais de erosão já estão por toda parte no delta do Ganges -o maior
delta do mundo, que drena grande parte da água proveniente do
Himalaia. Alicerces de tijolos estão partidos ao meio, palmeiras
crescem no meio dos rios e um gado esquálido pasta em poucas
centenas de metros quadrados. Os campos estão polvilhados de sal.

Alguns cientistas acreditam que o aumento das temperaturas levará a


condições climáticas mais extremas em todo o mundo, incluindo
ciclones mais fortes e mais frequentes na baía de Bengala. A elevação
dos mares vai tornar qualquer tempestade mais perigosa, porque as
áreas baixas ficarão mais expostas a inundações.

Bangladesh criou um sistema de alerta e construiu pelo menos 2.500


abrigos de concreto contra tempestades, melhorias que reduziram o
número de mortes relacionadas a tormentas. Enquanto o ciclone Bhola
matou mais de 550 mil pessoas em 1970, o ciclone Aila, em 2009,
deixou 300 mortos.

Quando o Aila chegou, Khatun estava em casa com seu marido, seus
pais e quatro filhos. Um caminho à beira do rio, a poucos metros da sua
casa, desmoronou, e a cabana da família foi levada embora em questão
de minutos. Khatun colocou seu filho mais novo nas costas e, com o
marido, lutou contra a enxurrada até chegar a uma estrada mais
elevada. Seus pais foram arrastados. "Depois de mais ou menos um
quilômetro, consegui agarrar uma árvore", disse Abddus Satter, pai de
Khatun. "E consegui ajudar minha mulher a se agarrar também."

Toda a família se reuniu na estrada no dia seguinte, depois de as


crianças passarem uma noite angustiante evitando as cobras, que
também haviam procurado um lugar mais alto. Eles beberam a água da
chuva até que as equipes de resgate chegassem.

Essa provação teve um efeito sobre o marido de Khatun, cuja saúde se


deteriorou. Para pagar o tratamento dele e o custo de reconstruir a
cabana, a família pegou dinheiro emprestado de um agiota. Em troca,
Khatun e seus três filhos mais velhos, então com 10, 12 e 15 anos,
prometeram trabalhar em uma olaria. Um ano depois, para pagar
dívidas, ela vendeu outros dois filhos por US$ 450 para o proprietário
de outra olaria. Seu marido morreu quatro anos depois da tempestade.

Em uma entrevista, um dos filhos dela, Mamun Sardar, agora com 14


anos, disse que trabalha de sol a sol levando tijolos até o forno da
olaria. Ele disse que sentia saudades da mãe, "mas ela mora muito
longe".

GROENLÂNDIA

Um crescente volume de pesquisas mostra que a mudança climática


está derretendo rapidamente a camada de gelo da Groenlândia. Em
2012, observações de satélite revelaram um "evento de derretimento
extremo", em que o gelo se desfez na superfície ou perto dela em 98,6%
da camada de gelo. Reconstruções simuladas mostram que a
temporada de degelo no verão dura atualmente 70 dias a mais do que
em 1972 e que a extensão do gelo derretido em 2010 foi o dobro do que
havia sido no começo dos anos 1970.

Esses fatores aumentam a contribuição do degelo groenlandês para a


elevação global do nível do mar. Mas, enquanto os efeitos das
mudanças climáticas ameaçam as pessoas em Estados insulares de
baixa altitude no Pacífico, eles poderiam ser uma dádiva em algumas
partes da Groenlândia. Alguns groenlandeses esperam que a mudança
climática os ajude a alcançar a independência em relação à Dinamarca,
que colonizou a ilha no século 18.

O imenso peso da camada de gelo da Groenlândia empurra a ilha para


dentro do oceano; assim, o derretimento deixa a ilha mais leve, e ela
sobe. O derretimento e o clima mais quente estão remodelando a
geografia da Groenlândia, tornando aráveis terras que antes estavam
congeladas. O degelo também está abrindo o acesso a jazidas de
petróleo, zinco, ouro, diamantes e urânio. Há na Groenlândia um
movimento político pequeno, mas crescente, que propõe aproveitar a
nova riqueza de recursos como parte de um esforço pela
independência.

PANAMÁ

O arquipélago de San Blas, com mais de 350 ilhas de areias brancas


salpicadas por toda a costa caribenha do Panamá, é há milênios o lar
do povo kuna. Agora, a elevação do nível do mar e as ressacas mais
fortes estão inundando suas aldeias. Cientistas do Instituto
Smithsonian de Pesquisas Tropicais estimam que o nível do mar em
torno das ilhas esteja subindo cerca de dois centímetros por ano e que
as ilhas estarão submersas dentro de 20 a 30 anos.
O governo está desenvolvendo um plano para transferir os kunas para
o continente, mas esse grupo desconfia do governo, e muitos estão
resistindo à proposta.

"O governo do Panamá reconhece que muitas das pessoas não querem
ser transferidas", disse Scott Leckie, da organização Displacement
Solutions, de Genebra, que trabalha com pessoas desabrigadas pela
mudança climática. "Quanto mais jovem é a pessoa, mais propensa está
a aceitar a mudança. As pessoas com mais condições físicas e mais
formação se mudam primeiro. As mais doentes, as mais velhas, as mais
fracas e as mais incapacitadas -as menos dispostas a se mudarem-
serão as deixadas para trás."

FIJI

Tal como Kiribati, seu vizinho no Pacífico, Fiji está vendo os efeitos do
avanço marítimo, e o governo já começou a realocar moradores das
ilhas exteriores do arquipélago e das áreas costeiras de baixa altitude
para o interior da ilha principal. Moradores foram retirados da aldeia
costeira de Vunidogoloa depois que a água salgada arruinou o solo para
cultivo.
As autoridades também estão investindo em outras medidas de
adaptação: estão construindo usinas de dessalinização e tanques de
água em ilhas vulneráveis do norte do país e continuam fazendo planos
para realocar pessoas.

Ao mesmo tempo, Fiji reconhece que a sua situação não é tão terrível
quanto a de nações como Kiribati e Tuvalu, que, segundo os cientistas,
provavelmente irão desaparecer até 2100. O presidente de Fiji, Ratu
Epeli Nailatikau, disse que vai acolher as populações em fuga desses
países, um gesto que poderá sobrecarregar os recursos e o território
fijianos, também em declínio.

ESTADOS UNIDOS

Embora os mares estejam subindo no mundo todo, o fenômeno não


ocorre em ritmo igual no planeta inteiro. Um estudo de 2012 do
Departamento de Pesquisas Geológicas dos EUA concluiu que o nível
do mar na Costa Leste aumentará três ou quatro vezes mais
rapidamente do que na média global no próximo século. Enquanto na
média global a estimativa seja de que o nível do mar suba um metro até
2100, na costa atlântica dos EUA a elevação pode chegar a dois metros.
O estudo cita Boston, Nova York e Norfolk (Virgínia) como as áreas
metropolitanas mais vulneráveis.

Outro estudo mostrou que uma elevação ligeiramente inferior a meio


metro já exporia imóveis num valor de US$ 6 trilhões a inundações
litorâneas nas regiões de Baltimore, Boston, Nova York, Filadélfia e
Providence (Rhode Island). Isso gera enormes dúvidas sobre o destino
do porto de Boston, onde os incorporadores vêm investindo milhões
em projetos de construção.
Os urbanistas anteveem um futuro em que ressacas inundarão
enormes faixas de Boston. Eles desenvolveram um plano de ação
climática descrevendo como a cidade pode se preparar melhor para o
desastre.

Miami (foto) está construída sobre uma porosa fundação de calcário,


na costa sul da Flórida, o que a torna extremamente vulnerável à
elevação do nível do mar, segundo um esboço da Avaliação Climática
Nacional feito pelo governo federal em 2013. Como o gelo do Ártico
continua a derreter, as águas nos arredores de Miami podem subir
mais do que meio metro até 2060, de acordo com um relatório do
Compacto Regional do Sudeste da Flórida para a Mudança Climática.

Os moradores dizem que já estão sofrendo efeitos com a inundação de


ruas e sistemas de esgoto. O calcário poroso cria uma ameaça ímpar, já
que a água do mar se infiltra pelas fundações da cidade.

"Você não está necessariamente recebendo água que transborda sobre


uma barreira -em vez disso, ela está se drenando pelo calcário e
subindo pelos bueiros", disse Leonard Berry, codiretor da Iniciativa
para as Mudanças Climáticas da Universidade Atlântica da Flórida.
"Isso já está acontecendo."

Um estudo do Departamento de Transportes da Flórida concluiu que,


nos próximos 35 anos, o aumento do nível do mar pode danificar
estradas vicinais na região de Miami e que, a partir de 2050, as
principais rodovias litorâneas também sofrerão inundações
significativas e ficarão deterioradas, à medida que o calcário sob elas
ficar saturado e se desmanchar.

KIRIBATI

As ilhas baixas de Kiribati estão na linha de frente das mudanças


climáticas. Globalmente, o nível do mar subiu até 25 centímetros desde
1880, mas estudos mostram que essa tendência está se acelerando. Se
as emissões de carbono continuarem desenfreadas, concluíram
especialistas numa pesquisa recente, o mar pode subir cerca de um
metro até 2100.

Isso poderia inundar a maior parte de Kiribati até o final do século. As


ilhas, onde vivem cerca de 100 mil pessoas, já estão sentindo o
impacto. O governo de Kiribati diz que a infiltração de água salgada
devido ao aumento do nível do mar contaminou os suprimentos de
água doce e o solo cultivável, e o presidente Anote Tong já previu que
seu país se tornará inabitável dentro de 30 a 60 anos.

De acordo com o Alto Comissariado das Nações Unidas para os


Refugiados, todos os moradores de Kiribati, juntamente com os de
outros Estados insulares, como Maldivas e Tuvalu, podem ser
obrigados a fugir por causa das mudanças climáticas. "Populações
inteiras poderiam, assim, se tornar apátridas", escreveu a agência.

Essa remota nação, mais de 1.900 km ao sul do Havaí e 6.115


quilômetros a nordeste da Austrália, já adquiriu 2.400 hectares no
vizinho Estado insular de Fiji, a fim de proteger a sua segurança
alimentar à medida que o mar invade suas terras aráveis -e
possivelmente, no futuro, para realocar seus moradores.

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