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36 | 2021
Periferias urbanas: transformações e ressignificações
Edição electrónica
URL: https://journals.openedition.org/eces/6793
DOI: 10.4000/eces.6793
ISSN: 1647-0737
Editora
Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra
Refêrencia eletrónica
Eliana do Pilar Rocha e Carlos Smaniotto Costa, «O efeito metrópole de Curitiba: as configurações
espaciais e os reflexos socioambientais da periferização», e-cadernos CES [Online], 36 | 2021, posto
online no dia 02 maio 2022, consultado o 11 maio 2022. URL: http://journals.openedition.org/eces/
6793 ; DOI: https://doi.org/10.4000/eces.6793
e-cadernos CES, 36, 2021: 131-148
Resumo: Este trabalho analisa como a cidade de Curitiba (Brasil) tem expandido a sua
influência territorial e social para além das fronteiras municipais. A questão da
periferização é abordada através de um breve resumo dos planos de urbanização da
cidade e da expansão de sua influência socioeconômica e de modernidade aos municípios
fronteiriços da Região Metropolitana de Curitiba (RMC). Pretende-se expor como um novo
fluxo migratório urbano-urbano se estabelece em direção aos municípios da RMC, com a
implementação de projetos de internacionalização econômica através da abertura de
novas zonas industriais e da expansão do agronegócio, aliado a incentivos do governo
federal para a construção de condomínios horizontais e verticais para as classes média e
baixa. Como efeito dessas novas ocupações socioespaciais, observa-se a criação de uma
nova periferia, para além das áreas agricultáveis e de preservação ambiental, e ainda mais
afastada das sedes dos municípios do entorno da cidade polo.
Palavras-chave: Curitiba, fragmentação do espaço metropolitano, influência
socioeconômica, periferização.
THE METROPOLIS EFFECT IN CURITIBA: THE SPATIAL SHAPING OF THE PERIPHERY AND THE
SOCIOENVIRONMENTAL IMPACT
Abstract: This paper takes a look at the spatial and social impact of the city of Curitiba
(Brazil) beyond its borders. The periphery issue is addressed through a brief overview of
the city's development plans and on the expansion of its socioeconomic and modernity
influence on the neighbouring municipalities in the Metropolitan Region of Curitiba. This
paper aims to shed light on how new urban-urban migration flows are taking place and how
projects for economic internationalization through the creation of new industrial zones and
investments in agribusiness, combined with incentives from the Federal Government to
build horizontal and vertical condominiums for the middle and lower classes, are being
directed towards the municipalities of the metropolitan region. As a result of this new socio-
spatial growth, a new periphery is now being drawn as it spreads out to areas of interest
for agriculture and environmental protection, even further away from the
towns/municipalities surrounding Curitiba.
Keywords: Curitiba, fragmentation of the metropolitan space, periphery, socioeconomic
impact.
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INTRODUÇÃO
A cidade, como campo de análise antropológica, vem sendo debatida no Brasil desde
meados da década de 1970. Tomado inicialmente como coadjuvante dentro dos temas
eleitos como precursores da Antropologia – ou seja, aqueles ligados às sociedades
“distantes” ou ao registro e análise dos arranjos e usos do espaço de outros povos a
partir de elementos que caracterizam e distinguem a relação entre os homens e a
natureza –, o estudo da cidade e dos modos como os grupos sociais organizam e
classificam seus modos de uso, apropriação e experimentação são relativamente
recentes no país.
Desde então, muitos autores brasileiros têm buscado entender como os indivíduos,
dotados de diferentes modos de tornar significativas as realidades a que estão sujeitos
dentro das cidades, constroem e articulam as experiências em sua lógica e contextos
específicos. Assim, os estudos de Antropologia Urbana no Brasil passaram a ter como
objeto de pesquisa a cidade, observando-a como um espaço complexo e em constante
transformação, construída a partir de diversas realidades por sujeitos urbanos dotados
de diversidade cultural, o que a torna única em sua multiplicidade de sentidos.
Não é pretensão deste artigo trazer um histórico dos trabalhos da Antropologia
Urbana no Brasil, nem trazer à tona as principais escolas que influenciaram o
desenvolvimento destes estudos ao longo do tempo. Otávio Velho (1973), Gilberto Velho
(1980, 1989, 1994, 2004, 2013), Roberto Cardoso de Oliveira (1988), José Guilherme
Magnani (1996, 2002, 2003) e Gilberto Velho e Karina Kuschnir (2003), entre outros
nomes, já o fizeram brilhantemente. Dirigimos antes nosso olhar ao debate atual da
Antropologia Urbana, sob a especificidade da Antropologia do Espaço, abordagem que
busca identificar e conhecer a relação entre a morfologia estrutural e a morfologia
socioespacial das cidades. Tal perspectiva não só analisa os trabalhos de outros
autores, mas também examina novos caminhos, que buscam identificar as implicações
decorrentes do crescimento e expansão da influência das cidades em direção às
periferias, analisando tanto os fatores estruturais como os fatores conjunturais de tal
fenômeno. Biase (2012: 199) defende que “os processos materiais, que transformam a
cidade, os discursos que participam destas transformações, são tão entrelaçados que é
necessário analisá-los de forma conjunta para poder entender suas complexidades e
interdependências”.
Segundo Costa (2006: 37), o espaço, traduzido como apreensão cultural e
identitária das múltiplas modalidades de realidade social, atua tanto no desenvolvimento
físico das cidades quanto na expressão das relações sociais, como uma tela onde se
projetam as formas ideais de organização dos seus habitantes. Nesse trabalho,
observamos a cidade como um conjunto de múltiplos espaços diferenciados entre si que
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2Principalmente na década de 1990, a cidade ganhou alguns prémios internacionais, como o Environmental
Award (em 1990, pelo United Nations Environment Programme), o Innovative City (em 1996, na conferência
Habitat II), o Capital of Culture of the Americas (em 2013), e se autointitulou e criou uma campanha de
marketing com o título de “Capital Ecológica do Brasil”.
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1943 com o Plano Agache que, sob uma ótica modernista, previa um crescimento radial
da cidade e a separação dos usos do espaço. Para esse fim, o plano dividia o município
em quatro zonas funcionais: um setor militar, que compreende o complexo da Base Aérea
do bairro Bacacheri (instalado em 1942); um setor educacional-hospitalar, com a cidade
universitária (posteriormente denominada de Centro Politécnico); um setor administrativo
denominado Centro Cívico; e um centro de abastecimento, com um novo Mercado
Municipal (Paludo, 2015: 22). Esses equipamentos foram sendo sucessivamente
construídos, porém mais acentuadamente a partir da década de 1950: o Centro Cívico
em 1953, o Mercado Municipal em 1958 e o Centro Politécnico em 1961. Ainda conforme
o autor, na década de 1960 foi desenvolvido o primeiro plano diretor da cidade,
denominado Plano Preliminar de Urbanismo (PPU) e criado o Instituto de Pesquisa e
Planejamento Urbano de Curitiba (IPPUC) que tinha como responsabilidade detalhar e
acompanhar a implantação do PPU.3
A história do planejamento da cidade insere-se no contexto global que, segundo o
mesmo autor, não traz nada de extraordinário:
3Site do IPPUC – Instituto de Pesquisa e Planejamento Urbano de Curitiba (2021), “Planejamento Urbano
– história”. Consultado a 25.04.2021, em https://ippuc.org.br/
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A partir do alto valor das parcelas de solo urbano, a cidade parece escolher seus
moradores e seus migrantes, privilegiando o recebimento das classes médias e altas
nos bairros nobres do município ou nos condomínios horizontais de luxo na RMC.
Enquanto isso, os migrantes das classes mais baixas dirigem-se para a mesma região,
mas adquirindo lotes baratos em bairros distantes – em zonas quase isentas de
equipamentos urbanos – e disputando o espaço com os novos condomínios construídos
para as classes populares de média e baixa renda subsidiados pelos programas de
moradia popular do governo federal. Nesse contexto, o desenvolvimento socioespacial
da RMC aparece no cenário nacional como lugar-comum, ao dividir as mesmas
problemáticas e os mesmos fatores. As regiões metropolitanas brasileiras podem ser
definidas como territórios complexos, que abrigam relações funcionais de alcance local,
regional, nacional e até mesmo global. Isso porque uma série de fenômenos ambientais,
econômicos e socioculturais perpassam a matriz político-institucional desses espaços,
que apresentam uma complexidade maior ao transitar nessas diferentes escalas, tanto
de alcance local, regional, nacional e até mesmo global (IPEA, 2015).
O histórico de formação da RMC não se apresenta diferente das demais regiões
metropolitanas do país. Criada em 1973 incluía municípios que exibiam uma grande
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Moura (2010) explica que o fenômeno da metropolização foi causado pelo rápido
crescimento populacional aliado à intensificação do uso do solo e, de forma paralela, à
implementação da estratégia de planejamento com o direcionamento da ocupação
populacional para áreas periféricas de Curitiba próximas aos seus municípios limítrofes.
A autora emprega o conceito de aglomeração urbana para essas manchas contínuas
de ocupação, resultando na metropolização da cidade polo, conforme segue:
[...] as unidades que compõem uma mancha contínua de ocupação sobre mais de
um município, envolvendo fluxos intermunicipais, complementaridade funcional e
integração socioeconômica, diferindo do entendimento de Região Metropolitana,
que, nessa pesquisa, corresponde a uma porção definida institucionalmente.
Considera metrópole a cidade principal de uma aglomeração, desde que se
destaque pelo tamanho populacional e econômico, desempenho de funções
complexas e diversificadas, e relações econômicas com várias outras
aglomerações, funcionando como centro de comando e coordenação da rede
urbana. (ibidem: 2)
Dessa forma, ainda conforme a autora, Curitiba acabou ultrapassando seus limites
territoriais municipais, através de medidas que levaram à expansão do núcleo urbano e
possibilitaram a formação de uma unidade contigua de ocupação, agregando o seu
entorno, demonstrado na Figura II, que envolveram “fluxos intermunicipais,
complementaridade funcional e integração socioeconômica” (Moura, 2010: 2). Carmo e
Moreira (2020) defendem que, no entanto, essa expansão do anel urbano em torno de
Curitiba não fortaleceu os municípios próximos, mas gerou antes uma dissociação entre
o local de moradia e o de trabalho e consumo. Isso porque o modelo favoreceu à cidade
polo a concentração da renda, das indústrias de alta tecnologia e do trabalho qualificado,
além de centralizar os mecanismos de administração e controle do capital, buscando
reafirmar sua centralidade. Desse modo, Curitiba passou então a inaugurar um novo
modelo de urbanização, onde o processo de metropolização passa a privilegiar funções
urbanas pré-determinadas, organizando e recompondo territórios com dimensões
urbanas cada vez maiores e transformando o sistema produtivo e a periferia.
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5 Agência Senado (2020), “MP cria programa Casa Verde Amarela no lugar do Minha Casa, Minha Vida”,
Senado Notícias, 26 de agosto. Consultado a 19.04.2022, em
https://www12.senado.leg.br/noticias/materias/2020/08/26/mp-cria-programa-casa-verde-amarela-no-
lugar-do-minha-casa-minha-vida.
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Bourdieu (1997) afirma que não há espaço que não seja hierarquizado numa
sociedade hierarquizada. Assim, denomina de violência simbólica essa distinção
fortemente enraizada na sociedade. Uma forma hegemônica de percepção e de
apreciação do mundo por meio de categorias mentais que, hierarquizadas, não
entendem ou não distinguem o outro e suas necessidades. Conforme o que se
apresenta neste artigo, essa nova periferia é produzida pelo próprio agente imobiliário
que, sendo o mesmo que constrói os empreendimentos (direcionados à classe média e
baixa migrante de Curitiba) próximos da fronteira com a cidade polo, a abrir loteamentos
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com preços mais acessíveis em novas áreas de ocupação (visivelmente em locais mais
afastados da sede das cidades da RMC), faz uso do discurso da aquisição da casa
própria e da proximidade com a natureza como forma de transformar a situação e
mascarar a realidade.
Assim, o que se vê é a criação de uma nova periferia urbana – distante dos limites
municipais entre as cidades da região metropolitana e o município polo, dispersa e
linear, notadamente próxima às rodovias – como uma alternativa aos valores dos lotes
urbanos com valores agregados devido às novas configurações espaciais. Essa nova
periferia é o resultado do modelo de exclusão geográfica decorrente da modernização
do território, construído com vistas à modernização e expansão da metrópole e pautado
em instrumentos de invizibilização do outro. Por isso, Carmo e Moreira (2020: 42)
afirmam que o modelo de planejamento de Curitiba e sua intensa divulgação mundial –
que já lhe conferiu o título de cidade modelo em economia verde e práticas sustentáveis
pela Organização das Nações Unidas – encobrem o fato de que, ao lado do modelo de
sustentabilidade creditado à cidade polo, existem outras cidades que apresentam
estatísticas sociais e ambientais preocupantes, observáveis em suas interações e que
podem demonstrar que Curitiba é hoje uma cidade desigual tanto nas periferias da
metrópole, quanto nas cidades de sua região.
CONCLUSÕES
É visível como a expansão das periferias comprova que a forma de produção do espaço
metropolitano de Curitiba se coloca longe de fornecer equidade nas oportunidades de
aquisição de moradia de qualidade para os habitantes do entorno da cidade polo. O
modelo de metropolização da cidade, pautado em políticas emblemáticas da cidade-
modelo e capital ecológica, construiu planos que transformaram as questões sociais em
resíduos, firmando e reafirmando as periferias da metrópole e da RMC de modo
polarizador e desigual. O efeito metrópole cria a fragmentação do espaço metropolitano,
colocando em risco a proteção de mananciais e obrigando os menos favorecidos a
ocuparem áreas ilegais e desconfortáveis. A intercalação de condomínios de luxo
fechados e as zonas em desenvolvimento estão criando padrões espaciais nas
periferias da cidade e, portanto, influenciando constantemente sua (re)configuração. A
junção física de Curitiba com as cidades vizinhas causa também a metropolização da
periferia, embaçando os contrastes entre os eixos urbanos e o mundo rural, porém
enfatizando a polarização do município polo e da periferia. Isso alterou a geografia
(social e física) da área ocupada pela RMC. A crescente metropolização do espaço
urbano e a concentração de recursos em zonas urbanas exíguas devem alertar-nos para
o papel ainda (e cada vez mais) relevante dos centros urbanos, isto é, das metrópoles
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– que no caso brasileiro, serão os espaços vividos pela maioria dos brasileiros, mas
num processo profundamente segregador.
Tal processo pode ser observado em diferentes escalas, como na do indivíduo que
se vê forçado a ocupar áreas mais afastadas do centro das cidades, criando uma nova
periferia. Isto ocorre devido ao aumento do valor da terra, decorrente dos equipamentos
urbanos disponibilizados a partir da construção de empreendimentos nas cidades da
região, que por sua vez sofrem pela expansão da mancha urbana curitibana e suas
consequências – como a necessidade de ampliação da infraestrutura e dos serviços,
além da ampliação do tráfego nas vias de acesso e a expansão do sistema de
transporte. A região metropolitana passa assim a ter uma nova configuração espacial,
que prevê a inauguração de outro tipo de planejamento urbano – por um lado mais
representativo, e por outro mais dependente das decisões da cidade polo.
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