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Há regras morais absolutas?


Você não pode fazer o mal, mesmo que venha para o bem.*
São Paulo, Carta aos Romanos (50 d.C., aproximadamente)

HARRY TRUMAN E ELIZABETH ANSCOMBE

Harry S. Truman sempre será lembrado como o homem que tomou a decisão de
lançar bombas atômicas sobre Hiroshima e Nagasaki. Quando ele se tornou pre-
sidente, em 1945, após a morte de Franklin D. Roosevelt, Truman não conhecia
nada sobre a bomba. Os assessores de Roosevelt tiveram que informá-lo. Os alia-
dos estavam vencendo a guerra no Pacífico, eles disseram, mas a um custo terrí-
vel. Tinham sido feitos planos para uma invasão do Japão, mas a batalha poderia
ser mais sangrenta do que tinha sido aquela do Dia-D na Normandia. Usando a
bomba atômica em uma ou duas cidades japonesas poderia levar a guerra a um
fim rápido, tornando a invasão desnecessária.
Em um primeiro momento, Truman ficou relutante em usar a nova arma. O
problema é que cada bomba iria destruir uma cidade inteira – não somente os al-
vos militares, mas os hospitais, escolas, casas, mulheres, crianças, pessoas idosas
e outros não combatentes poderiam ser aniquilados junto com o pessoal militar.
Os aliados tinham bombardeado cidades anteriormente, mas Truman sentiu que
a nova arma tinha tornado a questão dos não combatentes mais aguda. Além
disso, os Estados Unidos tinham registros condenando ataques de alvos civis. Em
1939, antes de os Estados Unidos terem entrado na guerra, o presidente Roose-
velt tinha enviado uma mensagem aos governos da França, Alemanha, Itália, Po-
lônia e Grã-Bretanha denunciando, em termos fortes, o bombardeio de cidades.
Ele tinha chamado isso de um “barbarismo desumano”:

*
N. de T.: A citação referida é: “Então, por que não faríamos o mal para que dele venha o bem [...]”
[Rm 3: 8. Bíblia Sagrada. 32. ed., São Paulo: Editora “Ave Maria”, 1981].
136 James Rachels & Stuart Rachels

O bombardeio aéreo impiedoso de civis [...] que resultou na mutilação e na


morte de centenas de homens, mulheres e crianças indefesos, tem adoecido os
corações de cada homem e mulher civilizados e tem chocado profundamente
a consciência da humanidade. Se houver recurso a essa forma de barbarismo
desumano durante o período de conflagração trágica com o qual o mundo
é agora confrontado, centenas de milhares de seres humanos inocentes que
não têm responsabilidade por isso, e que não são nem mesmo remotamente
participantes das hostilidades que agora eclodiram, perderão as suas vidas.

Truman expressou pensamentos similares quando ele decidiu autorizar os


bombardeios. Ele escreveu em seu diário: “Eu disse ao secretário de guerra, Se-
nhor Stimson, para usar os bombardeios de tal forma que objetivos militares,
soldados e marinheiros sejam o alvo e não mulheres e crianças [...] O alvo será
puramente militar”. É difícil de saber o que fazer com isso, visto que Truman
sabia que as bombas iriam destruir cidades inteiras. Não obstante, é claro que
estava preocupado com a questão dos não combatentes.
É claro, também, que Truman estava seguro de sua decisão. Winston Chur-
chill, o líder da Grã-Bretanha durante o tempo da guerra, encontrou-se com
Truman um pouco antes de as bombas serem lançadas. Mais tarde, ele escreveu:
“A decisão de usar ou não usar a bomba atômica para compelir a rendição do
Japão nunca nem mesmo esteve em questão. Houve acordo unânime, automático
e inquestionado na nossa reunião”. Depois de assinar a ordem final, selando o
destino de Hiroshima, Truman disse, mais tarde, que “dormiu como um bebê”.
Elizabeth Anscombe, que morreu em 2001, era uma estudante de 20 anos
na Oxford University quando a Segunda Guerra Mundial começou. Na época,
ela foi coautora de um controverso panfleto argumentando que a Bretanha não
deveria fazer guerra porque países em guerra inevitavelmente terminam comba-
tendo por meio injustos. A “Senhorita Anscombe”, como sempre foi conhecida
– apesar de seu casamento de 59 anos e de suas sete crianças –, estaria entre os
mais distintos filósofos do século XX, e a maior filósofa da história.
A Senhorita Anscombe foi também católica, e sua religião foi central em
sua vida. Os seus pontos de vista éticos refletem ensinamentos católicos tradicio-
nais. Em 1968, após o Papa Paulo VI afirmar que a Igreja bania a contracepção,
ela escreveu um panfleto explicando por que o controle de natalidade artificial
é imoral. Mais tarde em sua vida, ela foi presa enquanto protestava nas portas
de uma clínica britânica de aborto. Ela também aceitou o ensinamento da Igreja
sobre a conduta ética na guerra, o que a levou ao conflito com Truman.
Harry Truman e Elizabeth Anscombe cruzaram seus caminhos em 1956.
A Oxford University estava planejando dar a Truman o título de doutor hono-
ris causa em agradecimento pela ajuda dos Estados Unidos durante o tempo
Os elementos da filosofia moral 137

da guerra. Aqueles que propuseram a honra pensaram que seria incontrover-


so. Porém, Anscombe e dois outros membros da faculdade se opuseram à ideia.
Ainda que eles tenham perdido, forçaram uma votação para o que teria sido uma
unanimidade. Então, enquanto o grau estava sendo conferido, Anscombe ficou
rezando de joelhos em frente do salão.
Anscombe escreveu um outro panfleto, desta feita explicando que Tru-
man era um assassino porque ele tinha ordenado o bombardeio de Hiroshima
e Nagasaki. Truman, naturalmente, pensou que os bombardeios foram justifi-
cados – eles encurtaram a guerra e salvaram vidas. Para Anscombe, isso não
era suficiente. “Pois o fato de homens escolherem matar um inocente como um
meio para seus fins”, escreveu ela, “é sempre assassinato”. Ao argumento de que os
bombardeios salvaram mais vidas do que mataram, ela replicou: “Convenhamos:
se você tivesse que escolher entre ferver um bebê e deixar algum desastre terrível
acontecer a mil pessoas – ou a um milhão de pessoas, se um mil não é suficiente
– o que você faria?”.
O exemplo de Anscombe é inteligente. A onda da bomba de Hiroshima,
que queimou pássaros no ar, levou à fervura de bebês: pessoas morreram em
rios, lagos e cisternas tentando, em vão, escapar do calor. O ponto de Anscombe
era que algumas coisas não devem ser feitas, não importa o quê. Não interessa se
podemos alcançar um bem maior fervendo um bebê. É errado, simplesmente.
Anscombe acreditava em uma multidão de tais regras. Sob nenhuma circuns-
tância, ela disse, nós podemos matar pessoas inocentes, adorar ídolos, fazer uma
falsa profissão de fé, praticar sodomia ou adultério, punir uma pessoa pelos atos
de outro ou cometer traição, que ela descreve como “obter a confiança de alguém
em uma questão grave prometendo-lhe amizade e, então, entregá-lo aos seus ini-
migos”.
O marido de Anscombe, Peter Geach (1916-) concordou com isso. Ans-
combe e Geach foram os maiores filósofos do século XX a defenderem a doutrina
de que as regras morais são absolutas.

O IMPERATIVO CATEGÓRICO

A ideia de que as regras morais não têm exceções é difícil de defender. É fácil de
explicar por que nós devemos descumprir uma regra – nós podemos simples-
mente apontar para casos nos quais seguir a regra poderia ter consequências
terríveis. Mas como podemos defender o não descumprimento da regra em tais
casos? É uma tarefa assustadora. Nós podemos dizer que as regras morais são
comandos invioláveis de Deus. O que se pode dizer a mais do que isso?

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