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Paulo de Sena Martins

Advogado; doutor em Educação pela Universidade


de Brasília, UnB; consultor legislativo da Área XV -
Educação, Cultura e Desporto.

O direito à educação
dos refugiados

Artigos & Ensaios 123


Resumo
Embora no Brasil o direito à educação seja reconhecido
desde a Constituição de 1934, foi com a Carta de 1988,
que configurou o Brasil como Estado Democrático de
Direito, que se buscou dar-lhe efetividade, para que esti-
vesse ao alcance de todos. O reconhecimento da educação
como direito de todos e dever do Estado e os princípios
adotados pela Constituição – dignidade humana, promo-
ção do bem de todos, sem preconceitos, prevalência dos
direitos humanos nas relações internacionais – iluminam
a legislação infraconstitucional para que, da forma mais
ampla e inclusiva, assegure esse direito aos brasileiros e
aos que aqui estão: apátridas, migrantes e refugiados.

Palavras-chave
direito à educação; refugiados; acolhida humanitária.

Abstract
Right to education has been recognized in Brazil since the
Constitution of 1934. The Constitution of 1988 established
that Brazil is a Democratic Rule-of-Law State and ruled
that the right to education should be effective for all. Ed-
ucation, therefore, is considered as a right for all and a
State’s duty. Some principles adopted by the Constitution –
human dignity, promotion of the good of all without preju-
dice, prevalence of human rights in international relations
– illuminate the infra-constitutional legislation in order
to guarantee this right not only to Brazilians, but also to
stateless persons, migrants and refugees.

Keywords
right to education; refugees; humanitarian reception.

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1. Brasil como país acolhedor de refugiados
Com a Carta de 1988, foram dados novos fundamentos para o tra-
tamento do tema do instituto do refúgio (PAMPLONA e PIOVESAN,
2015): o princípio da dignidade da pessoa humana (art. 1º, III); a pro-
moção do bem de todos, sem preconceitos de origem (art. 3º, IV); a
prevalência dos direitos humanos nas relações internacionais (art. 4º, II)
e a previsão de igualdade entre os Estados (art. 4º, V). Em harmonia com
a Constituição de 1988, foi aprovada a Lei nº 9.474/1997, que “Define
mecanismos para a implementação do Estatuto dos Refugiados de 1951,
e determina outras providências”.
Esse diploma criou o Comitê Nacional para os Refugiados (CONA-
RE), órgão de deliberação coletiva, no âmbito do Ministério da Justi-
ça (art. 11), integrado, entre outros, por representante do Ministério da
Educação-MEC (art. 14). Sua grande inovação, entretanto, foi reconhe-
cer o instituto do refúgio como medida humanitária, ao adotar o concei-
to de refugiado expandido pela Declaração de Cartagena, de 1984, que
considera nesta condição aqueles que “deixam seu país de nacionalidade
por força de grave e generalizada violação de direitos humanos”. É válido
reconhecer não apenas os refugiados políticos, mas também os refugiados
econômicos, excluídos do exercício de direitos sociais básicos (PAMPLO-
NA e PIOVESAN, 2015)1.
Certa retomada do fluxo migratório para o Brasil se somou às inova-
ções constitucionais e legais para trazer a primeiro plano o tema do refú-
gio entre nós. Conforme salientam Friedrich et al (2021, p.3):
no Brasil o início do século XXI foi marcado pelos processos de
imigração, inicialmente mais modesto, com migrantes advindos
da América do Sul, com ênfase nos refugiados da Colômbia; da
Europa Ocidental, principalmente dos PIIGS (Portugal, Irlanda,
Itália, Grécia e Espanha) a partir de 2008, além de Estados Uni-
dos, China, Coreia do Sul, Japão e Angola.
O maior número de imigrantes ocorreu posteriormente, com a
chegada dos haitianos a partir de 2011, sírios após 2012 e vene-
zuelanos de 2015 em diante.

1 As autoras citadas lamentam que o Conare tenha decidido, em relação aos haitianos que sofre-
ram o impacto do terremoto de 2010, não lhes garantir a condição de refugiados.

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Segundo a mais recente edição do relatório Refúgio em números (SIL-
VA, 2020, p. 15), em 2019 e 2020 (SILVA, 2021, p.10) era o seguinte
o quadro de Solicitações de reconhecimento da condição de refugiado
apreciadas no Brasil, segundo país de nacionalidade ou residência habitu-
al dos solicitantes:
Tabela 1
Solicitações da condição de refugiado, por país – 2019- 2020
País Número de solicitantes
2019 2020
Total 33.453 28.899
Venezuela 28.133 17.385
Senegal 665 209
Cuba 548 1.347
Angola 484 359
Síria 479 129
R. D. Congo 379
Haiti 301 6.613
Nigéria 245 213
Bangladesh 220 329
Guiné Bissau 215
Líbano 145
Gana 140
China 130 568
Paquistão 121
Guiné 101
Colômbia 182
Outros 1.147 1.565

Fonte: Elaborado pelo OBMigra, a partir dos dados da Polícia Federal,


Solicitações de reconhecimento da condição de refugiado - Brasil, 2020 e 2021.

Em relação às faixas etárias correspondentes às etapas e níveis de ensino


para os quais o Plano Nacional de Educação (PNE) propõe metas (0 a 3 –
creches, 4 e 5 – pré-escolas, 6 a 14 – ensino fundamental, 15 a 17 – ensino
médio, 18 a 24 – ensino superior),em especial no que toca à passagem do
ensino fundamental para o ensino médio, tem-se a seguinte situação:

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Tabela 2
Faixa etária dos solicitantes

Principais Países Menor que 15 anos 15 a 24 anos


Venezuela 5.880 4.307
Haiti 344 2.080
Cuba 130 166
China x 119
Angola 65 76
Bangladesh x 106
Nigéria x x
Senegal x 39
Colômbia 40 28
Síria 13 46
Outros países 178 285

Fonte: elaborado pelo OBMigra, a partir dos dados da Polícia Federal,


Solicitações de reconhecimento da condição de refugiado - Brasil, 2021.

Nota-se o grande número de crianças e adolescentes venezuelanos em


idade escolar.
Com a guerra entre Rússia e Ucrânia, o Brasil, que tem cerca de 600
mil descendentes de ucranianos, que para cá vieram principalmente no
fim do século XIX e início do século XX, concentrando-se no estado do
Paraná, já se tornou um local de acolhimento para aqueles que se refugia-
ram. Segundo informou a Polícia Federal ao portal G1, 24 de fevereiro,
quando se iniciou a guerra, até o dia 17 de março o Brasil recebeu 894
ucranianos.
Em âmbito internacional, a Organização das Nações Unidas (ONU)
criou, em 1950, o Alto Comissariado das Nações Unidas para os Refu-
giados – ACNUR2.

2 Inicialmente com um mandato de três anos para reassentar refugiados europeus que estavam
sem lar após a Segunda Guerra Mundial. Em 1967 expandiu-se o mandato do ACNUR para além
das fronteiras europeias e das pessoas afetadas pela Segunda Guerra Mundial. Em 2003, foi aboli-
da a cláusula que obrigava a renovação do mandato do ACNUR a cada três anos (Cf. https://www.
acnur.org/portugues/historico). A ACNUR sucedeu a Organização Internacional de Refugiados
(OIR), que funcionou de 1947 a 1951 e nesse período foi responsável por reassentar, em diferentes
países, mais de 1 milhão de pessoas de seu local de origem com a Segunda Guerra Mundial.

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2. O direito à educação dos refugiados
No plano internacional, a afirmação e internacionalização do direito
do homem à educação começou depois da Segunda Guerra Mundial,
sobretudo com a proclamação da Declaração Universal dos Direitos do
Homem, adotada e proclamada pela Assembleia Geral das Nações Unidas
em 1948 (MONTEIRO,1998).
O direito à educação alcança todas as crianças e jovens, inclusive os
apátridas, migrantes e refugiados, destaque-se, desde a solicitação do re-
fúgio (ACNUR, s/d). Já integrava o constitucionalismo brasileiro desde a
Carta de 1934, sendo reconhecido, também, pela Constituição de 1946.
Recebeu novo conteúdo e instrumentos de sua efetividade na Constitui-
ção Federal de 1988, sendo expressamente reconhecido como um dos
direitos sociais (art. 6º, caput) e qualificado como direito de todos e dever
do Estado e da família pela Constituição Federal (art. 205, CF). A edu-
cação básica é obrigatória e gratuita dos 4 aos 17 anos (art. 208, I, CF),
constituindo seu acesso um direito público subjetivo (art. 208, § 1º, CF).
No sítio institucional do ACNUR/Brasil (https://www.acnur.org )
lê-se:
A educação é um direito humano básico consagrado na Conven-
ção sobre os Direitos da Criança de 1989 e na Convenção relativa
ao Estatuto dos Refugiados de 1951.
A educação protege as crianças e jovens refugiados do recruta-
mento forçado para grupos armados, trabalho infantil, exploração
sexual e casamento infantil. A educação também fortalece a resili-
ência da comunidade.
A educação empodera, dando aos refugiados o conhecimento e
as habilidades para viver vidas produtivas, satisfatórias e indepen-
dentes.
A educação inspira os refugiados, permitindo que eles aprendam
sobre si mesmos e sobre o mundo ao seu redor, enquanto se esfor-
çam para reconstruir suas vidas e comunidades.

A Convenção relativa ao Estatuto dos Refugiados, concluída em Ge-


nebra, em 28 de julho de 1951, e promulgada no Brasil pelo Decreto nº
50.215, de 28 de janeiro de 1961, prevê:

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Art. 22 – Educação pública
1. Os Estados Contratantes darão aos refugiados o mesmo trata-
mento que aos nacionais no que concerne ao ensino primário.
2. Os Estados Contratantes darão aos refugiados um tratamento
tão favorável quanto possível, e em todo caso não menos favorável
do que o que é dado aos estrangeiros em geral, nas mesmas cir-
cunstâncias, quanto aos graus de ensino além do primário e nota-
damente no que concerne ao acesso aos estudos, ao reconhecimen-
to de certificados de estudos, de diplomas e títulos universitários
estrangeiros, à isenção de direitos e taxas e à concessão de bolsas
de estudo.

O acesso à educação é considerado, pela Lei nº 9.474/1997, um ele-


mento relevante para a integração local do refugiado, nos seguintes ter-
mos:
Art. 44. O reconhecimento de certificados e diplomas, os requi-
sitos para a obtenção da condição de residente e o ingresso em
instituições acadêmicas de todos os níveis deverão ser facilitados,
levando-se em consideração a situação desfavorável vivenciada pe-
los refugiados.

Da mesma forma, a educação tem papel para que se concretize o re-


assentamento solidário, instrumento de proteção e compartilhamento de
responsabilidades, proposto pelo Brasil, em 2004, tendo como pano de
fundo a crise na Colômbia, a partir de uma abordagem regional de soli-
dariedade internacional e responsabilidade compartilhada pela proteção
aos refugiados. O Brasil adota como critérios para o reassentamento soli-
dário, além da proteção física e legal, a atenção às mulheres em situação
de risco e a reunião familiar – o que evidentemente coloca a questão da
educação como tema a ser enfrentado.
A Lei de Migração (Lei nº 13.445/2017)3 prevê que a política migra-
tória brasileira se rege, entre outros princípios e diretrizes, pela acolhida

3 A lei atual opõe-se diametralmente ao antigo Estatuto do Estrangeiro (Lei nº 6.815/1980) que dis-
punha (art. 48) sobre a impossibilidade da matrícula ou dever de cancelar o andamento do
curso, em virtude da falta de documentação do aluno estrangeiro, como uma maneira de de-
sestimular os fluxos migratórios não documentados. E as instituições de ensino deveriam enviar
ao Ministério da Justiça documentos de identificação do estrangeiro, bem como informar acerca
do cancelamento/suspensão da matrícula e término do curso. (TONETTO e GOMES, 2021).

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humanitária (art. 3º, VI) e pelo acesso igualitário e livre do migrante a
serviços, programas e benefícios sociais, bens públicos, educação, assis-
tência jurídica integral pública, trabalho, moradia, serviço bancário e se-
guridade social (art. 3º, XI), além de ser assegurado ao imigrante o direito
à educação pública, vedada a discriminação em razão da nacionalidade e
da condição migratória (art. 4º, X).
A Lei nº 13.684/2018, que “Dispõe sobre medidas de assistência
emergencial para acolhimento a pessoas em situação de vulnerabilidade
decorrente de fluxo migratório provocado por crise humanitária; e dá ou-
tras providências” inclui a ampliação das políticas de “oferta de atividades
educacionais” entre os objetivos das medidas de assistência emergencial
para acolhimento a pessoas em situação de vulnerabilidade decorrente de
fluxo migratório provocado por crise humanitária. (art. 5º,III)4.
Como salienta Amorim (2017, p.406):
Ao reconhecer e estabelecer um regime jurídico nacional para a
questão dos refugiados, o Brasil deixou clara sua orientação no
sentido de buscar o construtivismo ao invés do assistencialismo,
assim entendida a posição nacional de garantir, já desde a solicita-
ção de refúgio, os direitos fundamentais (estada, saúde, trabalho,
educação) para que qualquer ser humano possa buscar a recons-
trução de sua vida.

O autor destaca, ainda, que, segundo o próprio CONARE, a integra-


ção local dos refugiados “faz parte da proteção internacional no seu sen-
tido mais amplo, sobretudo no que se refere ao acesso a políticas públicas
de saúde, educação, trabalho e todas aquelas que lhe permitam a prática
da cidadania” (Idem, p. 408).
Para a integração do refugiado ao país acolhedor, para além da conces-
são de um abrigo, é fundamental sua inserção na comunidade local por
meio do reconhecimento de sua cultura e o favorecimento e incentivo ao
diálogo intercultural de forma que o refugiado, por meio de um processo
de troca produtiva – a tradução –, passe a fazer parte de uma cultura hí-
brida. Conforme destacam Batista e outros (BATISTA et al, 2018, p.6)

4 A lei define crise humanitária como a “situação de grave ou iminente instabilidade institucional,
de conflito armado, de calamidade de grande proporção, de desastre ambiental ou de grave e
generalizada violação de direitos humanos ou de direito internacional humanitário que cause
fluxo migratório desordenado em direção a região do território nacional”.

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Diferentemente da assimilação e da homogeneização cultural –
fenômenos da globalização – em que há difusão dos hábitos de
culturas consideradas dominantes, padronizando-os com vistas a
solapar as identidades, a tradução reconhece a diversidade cultural
e dela não se despoja, ao revés, valoriza-a.

Nesse sentido, Friedrich et al (2021, p.7) preconizam pelo direito à


educação linguística como especificidade do direito mais alargado à edu-
cação das populações migrantes:
[...] o direito à educação linguística deverá envolver a dupla héli-
ce de educação na(s) língua(s) de herança, isto é, na(s) língua(s)
que alimenta(m) os seus laços afetivos e identitários com o país de
origem e com as suas trajetórias de vida, e na(s) língua(s) do país
de acolhimento, enquanto via de acesso à integração escolar social
e à participação nas dinâmicas políticas e democráticas no novo
contexto.

Além da barreira linguística e da condição de vulnerabilidade dos re-


fugiados, há, no caso da educação, barreiras burocráticas a enfrentar. No
caso das crianças, exigia-se a certidão de nascimento. No caso dos jovens
e adultos, a dificuldade era o reconhecimento de estudos e a revalidação
de diplomas.
Tonetto e Gomes salientam (2021, p.717):
[...] as crianças refugiadas e solicitantes de refúgio encontram ou-
tros entraves, como dificuldade para obtenção da documentação
necessária, pois durante o andamento do processo de refúgio são
emitidos apenas a Carteira de Trabalho Provisória e o Termo de
Declaração expedido pelo CONARE, o qual, pela legislação vi-
gente, garante o direito à educação. Contudo, devido à falta de
informação ou apego pela burocracia, as secretarias das instituições
não aceitam o referido documento para matrícula ou exigem cer-
tificados que a família não possui, como histórico de frequência a
instituição educativa. A situação fica evidente na matéria publi-
cada pelo Ministério Público Federal, o qual detectou desconhe-
cimento sobre a legislação no momento da matrícula de crianças
venezuelanas no estado de Roraima.

O debate jurídico sobre o direito de registro pelas crianças refugiadas


foi levado ao Superior Tribunal de Justiça (STJ), em casos que discutiam

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[...] se era obrigatória a apresentação de Certidão de Nascimento
de criança refugiada no momento da matrícula escolar. Conside-
rando a omissão legal e a melhor interpretação para defesa dos
direitos básicos desses indivíduos, o Registro Nacional do Estran-
geiro foi equiparado com a certidão (STJ, 2017). [...]. Após essa
decisão do Tribunal, passou-se a equiparar para fins legais o Re-
gistro Nacional de Estrangeiro à Certidão de Nascimento, ante a
ausência de abordagem legislativa do tema, situação que foi ape-
nas mediada pela resolução publicada em 2020. (FLORÊNCIO,
2021, p. 599-600).

Para ajustar as normas educacionais aos princípios constitucionais e


àqueles constantes na Lei nº 9.474/1997, além de trazer mais segurança
jurídica aos refugiados, o Conselho Nacional de Educação (CNE) editou
a Resolução nº 1, de 13 de novembro de 2020, que “Dispõe sobre o direi-
to de matrícula de crianças e adolescentes migrantes, refugiados, apátri-
das e solicitantes de refúgio no sistema público de ensino brasileiro”. Este
diploma prevê que a matrícula de estudantes estrangeiros na condição de
migrantes, refugiados, apátridas e solicitantes de refúgio, uma vez deman-
dada, deve ocorrer sem mecanismos discriminatórios e será imediatamen-
te assegurada na educação básica obrigatória, inclusive na modalidade de
educação de jovens e adultos e, de acordo com a disponibilidade de vagas,
em creches (art. 1º, §§ 1º e 2º).
Dispõe que não consistirão em óbice à matrícula (art. 1º, § 3º,I e II):
- a ausência de tradução juramentada de documentação compro-
batória de escolaridade anterior, de documentação pessoal do país
de origem, de Registro Nacional Migratório (RNM) ou Docu-
mento Provisório de Registro Nacional Migratório (DP-RNM); e
- a situação migratória irregular ou expiração dos prazos de valida-
de dos documentos apresentados.

A Resolução CEB/CNE nº 1/2020 prevê, ainda, que, na ausência de


documentação escolar que comprove escolarização anterior, estudantes
estrangeiros na condição de migrantes, refugiados, apátridas e solicitantes
de refúgio terão direito a processo de avaliação/classificação, permitindo-
-se a matrícula em qualquer ano, série, etapa ou outra forma de organi-
zação da Educação Básica, conforme o seu desenvolvimento e faixa etária
(art. 1º, § 5º). Esse processo é previsto para os educandos partir do segun-

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do ano do ensino fundamental e no ensino médio. A matrícula na etapa
da educação infantil e no primeiro ano do ensino fundamental obedecerá
apenas ao critério da idade da criança (art. 2º).
Esta solução harmoniza-se com o que está disposto na Lei de Diretri-
zes e Bases da Educação Nacional (LDB):
Art. 24. A educação básica, nos níveis fundamental e médio, será
organizada de acordo com as seguintes regras comuns:
......................................
II - a classificação em qualquer série ou etapa, exceto a primeira do
ensino fundamental, pode ser feita:
a) .................................
b) ............................................
c) independentemente de escolarização anterior, mediante avalia-
ção feita pela escola, que defina o grau de desenvolvimento e expe-
riência do candidato e permita sua inscrição na série ou etapa ade-
quada, conforme regulamentação do respectivo sistema de ensino.

Nos termos da Resolução nº 1/2020 (art. 1º, § 6º), e em conformi-


dade com a diretriz segundo a qual ingresso em instituições acadêmicas
de todos os níveis deverá ser facilitado (art. 44, Lei nº 9.474/1997), o
processo de avaliação/classificação deverá ser feito na língua materna do
estudante, cabendo aos sistemas de ensino garantir esse atendimento. A
classificação dar-se-á por equivalência, quando o estudante apresentar do-
cumentação do país de origem, avaliações sistemáticas, reconhecimento
de competências (no ensino médio) e certificação de saberes (por meio do
Exame Nacional para Certificação de Competências de Jovens e Adultos
– ENCCEJA5 ou da rede re-saber6).
Outra preocupação foi em relação ao acolhimento aos refugiados,
sendo a escola, por excelência, o principal local em que se concretiza.
Dispõe a Resolução nº 1/2020 do CNE:
Art. 6º As escolas devem organizar procedimentos para o acolhi-
mento dos estudantes migrantes, com base nas seguintes diretrizes:

5 Cf. Portaria MEC nº 458, de 5 de maio de 2020.


6 Cf. Portaria MEC nº 24, de 19 de janeiro de 2021.

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I - não discriminação;
II - prevenção ao bullying, racismo e xenofobia;
III - não segregação entre alunos brasileiros e não-brasileiros, me-
diante a formação de classes comuns;
IV - capacitação de professores e funcionários sobre práticas de
inclusão de alunos não-brasileiros;
V - prática de atividades que valorizem a cultura dos alunos não-
-brasileiros; e
VI - oferta de ensino de português como língua de acolhimento,
visando a inserção social àqueles que detiverem pouco ou nenhum
conhecimento da língua portuguesa.

Pode-se afirmar que, com essa Resolução do Conselho Nacional de


Educação (CNE), o arcabouço jurídico brasileiro em defesa do direito à
educação preencheu uma importante lacuna assegurando o direito à edu-
cação para os migrantes, refugiados, apátridas e solicitantes de refúgio7

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MIDT, Cristina e BONINI, Luci M.M. A cultura como fator im-

7 Inspirado na resolução do CNE, tramita o PL 1117/2022, que Dispõe sobre o direito à educação de
estudantes estrangeiros na condição de migrantes, solicitantes de refúgio, refugiados e apátridas.
Em sua juatificação a Dep Dorinha Seabra Rezende afirma que o caráter mais frágil de normas
regulamentares justifica que sejam explicitadas algumas garantias em lei

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