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A FORTALEZA DE GELO

A FORTALEZA DE GELO
Ninguém poderá te ouvir quando você gritar por socorro.

Yasu

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A FORTALEZA DE GELO

ÍNDICE
Agradecimentos 3
Prólogo 4
PARTE 1 — O Experimento 9
Capítulo 1 10
Capítulo 2 13
Capítulo 3 16
Capítulo 4 21
Capítulo 5 25
Capítulo 6 28
Capítulo 7 32
Capítulo 8 42
Capítulo 9 49
Capítulo 10 60
PARTE 2 — O Vírus 69
Capítulo 11 70
Capítulo 12 77
Capítulo 13 87
Capítulo 14 100
Capítulo 15 113
Capítulo 16 119
Capítulo 17 128
Capítulo 18 134
Capítulo 19 141
Capítulo 20 152
Epílogo 161
Nota do Escritor 165
168

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A FORTALEZA DE GELO

AGRADECIMENTOS

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A FORTALEZA DE GELO

PRÓLOGO
O oficial Anderson sobrevoava a enorme Estação
Manson, na Antártida. Há aproximadamente sete horas, a
base australiana de resgate havia recebido um pedido de
socorro via rádio vinda do local. A mensagem deixava clara
uma grande urgência, e o Comandante Liam Smith e o
oficial Anderson haviam sido designados para ir até a
estação e trazer os sobreviventes.

Porém, quando já estavam a caminho, a base recebeu


uma nova chamada da estação, com um tom ligeiramente
perturbador. A mensagem foi imediatamente repassada
para o helicóptero de resgate. Eram apenas 14 segundos,
mas havia algo neles que mexia com a cabeça de Anderson.

— Cancelar pedido de resgate! — A pessoa no rádio


respirava pesadamente, evidentemente nervosa. Sua voz
era nada mais que um sussurro, como se não quisesse ser
ouvida por alguém próximo dela. — Repito: cancelar
pedido de resgate! Ninguém pode vir aqui, pelo menos
pelos próximos 30 dias... E depois... Destruam tudo!

Nos últimos vinte minutos, Anderson viu o


Comandante Smith tentando entrar em contato com a
estação várias vezes, sem sucesso. “O que está acontecendo lá
dentro?” pensava o oficial. Já aterrissando em frente ao
complexo, em breve iriam saber.

O único som que podia ser ouvido quando a porta do


helicóptero foi aberta, era o ar gélido em movimento e o
barulho do rotor ainda girando, num silêncio quase
absoluto. O vento logo passou a ser acompanhado do som

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A FORTALEZA DE GELO

das botas imprimindo pegadas na neve densa, até chegar à


entrada da estação.

O tom da primeira mensagem recebida fez com que


eles decidissem levar armas para a missão, as quais eles
estavam portando ao entrar, preparados para usá-las caso
fosse necessário.

O interior da Estação Manson estava completamente


escuro. O Comandante Smith apertou um interruptor na
parede. Sem efeito. Estava sem energia. O enorme salão
estava completamente vazio, ausente qualquer som ou sinal
de vida.

— Olá? — Chamou Anderson após alguns segundos.


Sem resposta. Mais alguns segundos se passaram, até que o
fraco som de algo sendo derrubado pode ser ouvido ao
longe. Ouviram também fogo crepitando em algum
corredor. Parecia que havia um incêndio se iniciando dentro
da estação.

Os dois oficiais trocaram olhares, e Smith correu até o


corredor de onde veio o som, fazendo sinal para que
Anderson o seguisse.

Em meio à escuridão do corredor, iluminada pela luz


do Sol vinda da porta, o Comandante Smith foi
desacelerando ao perceber que havia dois corredores de
onde o som poderia ter vindo. Um à frente e outro à
esquerda.

— Anderson, você segue o caminho da esquerda! —


Sinalizou o comandante. — Eu sigo em frente. Se encontrar

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um sobrevivente, ajude. Mas se houver qualquer ameaça...


Não hesite em atirar!

Anderson assentiu. Aquele tipo de procedimento não


era comum. Eles costumavam apenas resgatar pessoas em
meio a tempestades, no máximo localizar alguém perdido
em uma rota. Mas aquilo parecia completamente surreal.

Acendeu uma lanterna para iluminar o corredor


escuro, vendo que tinha uma porta no final dele. Foi até lá,
percebendo que era possível ouvir o som fraco de gemidos
humanos vindo de dentro.

Tentando abrir a porta, o oficial descobriu que estava


trancada. Ele se afastou alguns passos e tentou arrombar,
sem sucesso. “É uma porta resistente”. Tentou novamente
com mais força, mas não obteve resultados.

Começou a acertar no batente da porta com o seu


corpo, usando todo o seu peso a seu favor e, após várias
batidas, percebeu que estava conseguindo o que queria. O
batente cedeu e finalmente Anderson conseguiu arrombar a
porta.

A sala estava completamente escura. Acendeu uma


lanterna e apontou para as paredes. Ele olhou para os lados,
sem conseguir tirar da cabeça que estava sendo observado
em meio àquele breu.

Do outro lado da porta, havia uma escada descendo


para algum lugar que não era possível enxergar daquela
posição.

Respirando fundo, ele entrou, descendo


cuidadosamente degrau por degrau, enquanto tateava as

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A FORTALEZA DE GELO

paredes em busca por um interruptor. Tentou acender, mas


o botão não respondia. Iluminou o cômodo à sua frente com
a lanterna. Anderson ficou boquiaberto.

No pé da escada, havia uma pessoa com traje de


proteção se arrastando para longe, deixando uma trilha de
sangue para trás. “Meu Deus...”. Anderson correu para
ajudá-la, porém, ao ver o oficial, ela pareceu ficar ainda
mais desesperada.

— Não... — Ela sussurrou com uma voz fraca. — Eu


disse pra vocês não virem... Vocês vieram! Não, não...

— Calma, estou aqui para te ajudar! — Anderson


desceu os últimos degraus, aproximando-se para tentar
ajudar, mas aquela pessoa não parecia querer ser socorrida,
tentando afastar o oficial com um fraco movimento do
braço, aparentemente sem mais forças.

“Está a ponto de morrer! Precisa de ajuda!” Anderson


olhava inconformado.

— Você não entende... Não pode me salvar... Tem que


me deixar. Tem que ir embora!

Anderson balançava a cabeça, sem conseguir


compreender aquilo. Naquele momento os olhos do ferido
se arregalaram, olhando para algo atrás de Anderson. Ele
sentiu um frio subindo a sua espinha, enquanto virava a
cabeça para trás.

Conseguiu se virar bem a tempo de ver o corpo de seu


comandante sendo atirado escada abaixo. Anderson
congelou, tateando na hora pela sua arma, que havia

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A FORTALEZA DE GELO

deixado no chão para ajudar o ferido. Ergueu a FAL com


suas mãos trêmulas, o dedo no gatilho.

Procurava quem estaria lá em cima, no topo da escada,


mas não havia ninguém lá. Anderson apontou para o vazio,
na eminência de alguém aparecer. E apareceu. Naquele
instante, Anderson teve certeza de que não deveria ter
vindo.

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A FORTALEZA DE GELO

PARTE 1
O Experimento

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A FORTALEZA DE GELO

CAPÍTULO 1
Alessandro sorriu. Martha de roupas sociais era
sempre uma bela visão.

Podia ser apenas sua euforia, mas naquele dia ela


estava especialmente mais bonita, com um vestido
vermelho chegando até os joelhos e o cabelo castanho
caindo sobre os ombros.

Alessandro agitou as mãos de entusiasmo, o coração


batia apressado, mal podia acreditar para onde estavam
indo.

— Venha amor! — Chamou Alessandro, em italiano.

— Estou indo! — Disse sua esposa, correndo até a


porta enquanto segurava duas malas.

Alessandro pegou uma das bagagens da mão dela,


sorrindo de empolgação. Ele sentia que sua carreira estava
entrando numa virada, pensou nas coisas que poderia
descobrir, nos avanços que poderia trazer para a ciência.
Talvez pudesse até receber alguma condecoração!

— Vamos! — Disse Alessandro rindo. — A gente vai


chegar atrasado assim.

Ela revirou os olhos, sorrindo.

— Amor... — Ela se aproximou dele e pôs a mão em


seu ombro. — Você acha que o avião vai partir sem você?

Alessandro considerou a ideia.

— Talvez.

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— Não seja bobo! — Ela riu e se afastou, pegou sua


mala e forçou-a para fechá-la. — Você é uma pessoa
importante, eles não vão tirar você da lista sem mais nem
menos, só por causa de um atraso de alguns minutos. — Ela
olhou para a mala e suspirou. — Além disso, foi você quem
insistiu que dava tempo de uma corridinha pelo bairro.

— Sempre dá tempo pra uma corridinha.

Martha olhou o marido de forma irreverente e pegou


sua última mala.

Os dois haviam recebido um convite da Estação


Manson de Pesquisa, para participar de estudos sobre uma
nova descoberta em uma escavação de gelo no local.

Alessandro mal pode acreditar ao ler a carta, tendo


que ler e reler várias vezes para ter certeza que não estava
delirando.

O Doutor Bruzzone havia ouvido falar de tantas


descobertas vindas daquela estação, sendo a mais recente
um pedaço de meteorito que havia caído na Terra há mais
de 100 milhões de anos.

“Será que tem algo a ver com vida alienígena?”,


perguntou-se o geneticista, rejeitando a possibilidade quase
que de imediato. Mesmo assim a curiosidade não diminuía,
e Alessandro Bruzzone havia passado os últimos dias
elaborando hipóteses de qual seria o motivo de os terem
chamado lá.

Alessandro olhou para o seu relógio de pulso. Já eram


10h32min, e a carta havia dito que um avião os esperaria no
aeroporto da cidade às 11h45min. Martha finalmente calçou

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seus sapatos de salto alto, e Alessandro a encarou com um


olhar jovial:

— Pronta? — Sua esposa assentiu com a cabeça. —


Você está linda, sabia? — Eles ficaram olhando um para o
outro com ternura por alguns segundos. — Os pinguins vão
morrer de inveja.

Ele abriu a porta apressadamente, pegando sua esposa


pela mão e correndo com ela escada abaixo.

— Espere! — Ela riu.

Após descer quatro andares e sair do prédio, o casal


encontrou com o táxi que tinham chamado parado logo na
esquina.

Alessandro abriu a porta de trás para sua esposa,


entrando logo em seguida. O taxista se virou, perguntando
para onde desejavam ir.

— Para o aeroporto, rápido!

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CAPÍTULO 2
Nicole Carter encarou o teto do quarto. Aquela noite
simplesmente parecia não ter fim. A garota tentou se virar
de um lado para o outro, mas nada parecia fazer ela se
sentir menos desconfortável.

Ela se esticou para pegar seu celular, que estava na


cabeceira da cama. “Três da manhã”. Ela largou o aparelho e
deixou o corpo cair no colchão. Provavelmente não
dormiria naquela noite.

Ficou pensando no que o Senhor Parsons havia lhe


dito alguns dias atrás: “Você deve ir até lá, registrar tudo o
que puder e voltar”. Parecia tão simples, como todos os
trabalhos que ela teve até o momento. Mas essa missão era
diferente.

Acomodando-se com os braços atrás da cabeça,


relembrou os últimos anos na agência. O STCU (Controle
de Tecnologia Científica dos Estados Unidos da América,
ou, em inglês, Scientific Technology Control of the United
States of America) havia sido seu local de trabalho nos
últimos seis anos, onde havia entrado em contato com
várias informações sigilosas do governo americano,
descobertas científicas pelo mundo todo e as usavam em
desenvolvimento de tecnologias para benefício da nação, a
maioria tecnologia militar.

Nicole trabalhava lá supervisionando várias pesquisas


e descobertas, e relatando tudo nos mínimos detalhes. O
diretor da agência, Elias Parsons, havia lhe dado diversas

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missões nos últimos anos, e Nicole trabalhava com coisas


cada vez mais sigilosas e impressionantes.

Entre elas equipamentos de aviação que podiam


chegar a mais de dez mil quilômetros por hora, tecnologia
de rastreamento de civis pelo celular, campos
eletromagnéticos que tornavam naves invisíveis a radares, e
câmeras de espionagem do tamanho de moscas,
controladas remotamente.

Mas nunca algo a havia deixado tão apreensiva como a


missão que recebera semana passada. Milhares de
perguntas passavam pela sua cabeça. Será que a sociedade
poderia aguentar um impacto dessa magnitude? Quais
seriam os perigos dessa descoberta? E o que o governo fará
com ela?

Nicole suspirou, virando para o outro lado. “E a culpa


será minha.”. Ela sabia que não tinha como recusar a missão.
Essa política de aceitar ou recusar o que iria fazer não
existia dentro do STCU. “Eu não tenho escolha”.

Aceitando que não iria conseguir dormir, ela


finalmente desistiu e se levantou.

A jovem caminhou até o banheiro e acendeu a luz. “Só


preciso lavar o rosto e me sentirei melhor”. Ela jogou um pouco
de água no rosto, sentindo o líquido gelado em contato com
a pele e respirando fundo.

Nicole Carter se encarou no espelho. Seus cabelos


ruivos de tom alaranjado estavam totalmente desajeitados,
olheiras apareciam embaixo de seus olhos azuis, e sua pele
estava mais pálida do que nunca.

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Quantas noites mal dormidas ela havia passado, sua


aparência podia dizer por si só.

Como as coisas tinham mudado de figura para Nicole


nos últimos dias... Antes, uma proeminente jovem de 27
anos, subindo cada vez mais dentro da agência, com um
bom emprego, boas condições, trabalhando com o que
amava: tecnologia, ciência e informação.

Mas agora, era uma jovem de 27 anos com um


perigoso jogo em suas mãos, que poderia afetar a nação
inteira. “E o mundo”.

Ela andou pelo quarto, abrindo a janela e colocando a


cabeça para fora. Trigésimo andar, o vento frio soprava pelo
seu rosto molhado. Dali podia ver a cidade de Washington
inteira: O Capitólio, o obelisco, o centro da cidade, o
memorial...

A cidade era tão bonita à noite, com as milhares de


luzes brilhando em meio à escuridão. Nicole respirou
fundo, tentando se acalmar. Sem sucesso. Ela sabia que logo
iria pegar um avião, sem saber quando ou se iria retornar.

Nicole balançou a cabeça em descrença. Seria melhor


se nunca tivessem escavado aquele gelo.

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A FORTALEZA DE GELO

CAPÍTULO 3
Em um jato no aeroporto de Barcelona, Jean Neville
esperava pela partida do avião, que estava programada
para daqui a quinze minutos.

O biólogo infectologista havia partido da França às


nove da manhã, crente de que logo estaria em seu destino.
Mas ainda havia uma parada na Itália, na qual embarcariam
mais dois cientistas que participariam do projeto. Talvez
não houvesse lido a carta com atenção o bastante.

Já na casa dos sessenta, Jean não conseguia aguentar


tanto tempo dentro de um avião, mesmo que fosse um jato
confortável como aquele. Só queria que os outros colegas
chegassem logo e ele pudesse descer o mais rápido possível
daquela coisa.

Ele ajeitou os cabelos suados e se afundou na cadeira,


sabendo que o dia iria ser longo. Ainda tinham horas de
voo até chegar à Antártida. “Pelo menos eu ainda não
vomitei”, Jean olhou para o saco de vômito vazio na sua
frente, sentindo que iria precisar dele mais cedo ou mais
tarde.

Com um sobressalto, o Doutor Neville viu a porta do


jato se abrir, e por ela entrarem um casal e o piloto. Era uma
mulher morena vestida de forma elegante e um homem de
cabelo preto usando óculos. Ambos por volta dos 35 anos
de idade.

O homem se aproximou de Neville, com um sorriso


enorme em seu rosto. Ele estendeu a mão e disse algo em
italiano.

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— Desculpe, eu não falo italiano — Jean disse em


inglês, cumprimentando-o.

— Oh, desculpe! Meu nome é Alessandro Bruzzone! —


Disse, em inglês.

— Prazer, Jean Neville.

A mulher se aproximou por trás, também apertando a


mão de Jean.

— Martha, Martha Bruzzone.

Jean Neville esboçou um sorriso, tentando não


demonstrar todo o desconforto que sentia, enquanto o casal
se sentava no banco à sua frente. O homem sorria com seus
olhos brilhando como os de uma criança.

— O senhor consegue acreditar nisso? Que estamos


indo para a estação Manson? — Ele riu animado.

— Pois é. — Respondeu Neville, disperso.

Ele podia ver nos olhos de Alessandro a energia que


ele tinha, quase como se os dois fossem opostos. Mas ele
lembrava que um dia tinha sido assim também. Depois de o
casal se sentar, e depois de alguns segundos de silêncio,
Jean perguntou por pura curiosidade:

— E o que senhor faz?

— Ah, claro! Sou geneticista. Trabalho com


decodificação de DNA e RNA. E o senhor?

Neville olhava distraído pela janela. Só queria que


aquele avião levantasse logo voo, mas o chão continuava
parado a poucos metros de distância. Ele encarou

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A FORTALEZA DE GELO

Alessandro Bruzzone, com aquele sorriso exagerado e


aquela animação infantil. Não que isso o irritasse. Na
verdade, ele até invejava.

— Sou infectologista. — Jean olhou para a esposa dele,


que também encarava a janela, sem dizer nada. Ela não
parecia tão inquieta quanto o marido. — E a senhora?

— Biomédica. Na área de desenvolvimento de


equipamento hospitalar. — Ela ergueu o olhar, apreensiva.
— Será que tem como a gente saber quando esse avião vai
decolar? E quando ele vai chegar? — Ela riu. — Desculpe,
não gosto de voar.

Jean Neville sorriu. Pelo jeito, precisariam de mais


sacos. “Essa vai ser uma viagem muito, muito longa”. Ele se
levantou.

— Tem sim, espere um instante que eu vou perguntar


ao piloto.

O infectologista se levantou de seu banco e caminhou


até a cabine. Neville bateu de leve na porta, e o piloto a
abriu.

— Licença, desculpe a intromissão. — O oficial


assentiu, olhando para o doutor. — O senhor sabe dizer
quando iremos partir?

— Sim, logo. Só precisamos verificar algumas coisas


aqui e já decolamos.

— E quanto tempo que é daqui até a base?

O piloto sorriu.

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— Nove horas. Pode dormir tranquilamente, Senhor


Neville, irá demorar. — Jean suspirou, já sentindo o peso
em seus ombros aumentando. — Mais alguma coisa que eu
possa fazer pelo senhor?

— Não, obrigado.

Jean Neville olhou novamente para o banco onde


estava sentado antes, agora em frente a onde Martha e
Alessandro conversavam. Neville lembrou-se da época em
que era entusiasmado assim com o próprio trabalho. Na
verdade, fazia muito tempo. Quando ele ainda acreditava
que toda doença poderia ter uma cura.

Ele lembrou-se de sua ingenuidade, rindo por um


momento. Triste que a realidade fosse tão dura, e no final
das contas, sempre haveriam pessoas morrendo por
doenças sem cura. Por mais que encontrassem a solução
para uma doença, sempre surgiriam muitas outras ainda
piores.

— Voltei! — O senhor sorriu para o jovem casal. — O


piloto disse que infelizmente serão nove horas daqui até a
base.

— Ah não! — Lamentou Martha, revirando os olhos e


deixando o corpo cair sobre os braços. — Como iremos
sobreviver?

Jean riu, sentindo o desconforto antecipado no próprio


corpo. O enjoo retornando ao estômago e subindo pela
garganta. Se já passara mal só no trecho entre a França e a
Itália, que são países vizinhos, nove horas de voo entre

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Turim e a Antártida seria muito pior. O homem se abaixou


para abrir um pequeno bar na parede do avião.

O sujeito pegou a garrafa, sorrindo. “Você vai me ajudar


mais uma vez, amigo.”.

— Isso daqui costuma me ajudar. Depois de alguns


goles, eu já estou dormindo em meu encosto, e só costumo
acordar em meu destino. — Neville encheu o próprio copo.
— Aceitam?

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CAPÍTULO 4
Lee Kickett corria de um lado para o outro na estação.
“Milhares de tarefas a fazer, num tempo tão pequeno!”. Ele olhou
em seu relógio de pulso, constatando que ainda não eram
nem seis da manhã. Parecia muito tempo, mas na verdade
era insuficiente. “Sempre é insuficiente”.

Parou de repente, ao sentir seu Pager vibrar. Era de


seu supervisor, mas isso ele já sabia. Na tela lia-se:
ETIQUETAS AMOSTRAS. Um pequeno texto, mas ele já
sabia o que tinha que fazer.

Seu dia estava tão corrido que mal terminava uma


tarefa e já recebia outra. Antes de ir ver as amostras,
precisava ainda alimentar os cães.

Continuou correndo, virando corredor após corredor,


até chegar à porta dos fundos. Era uma salinha
praticamente do tamanho de um armário, onde havia
alguns equipamentos de neve empilhados de forma
razoavelmente ordenada.

Kickett pegou a sua roupa de frio, vestindo-a em


poucos segundos, pegou uma lata posicionada logo abaixo
de onde seu casaco estava pendurado, e abriu a porta.

De imediato foi atingido por uma rajada de vento,


fechando a porta atrás dele o mais rápido possível.
Cobrindo o rosto com o próprio braço, caminhou até onde
os doze cachorros estavam amarrados.

Os animais o olharam e viram a lata, ficando com os


olhos vidrados no objeto. Seus olhares pareciam

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transparecer o puro instinto, mascarado por detrás da


obediência ensinada a esses cães desde o nascimento.

O homem se aproximou dos cachorros, abrindo a lata.


Peixe. Vários peixes crus. Ao menos o bastante para
alimentar os doze. Lee pegou os peixes um por um,
atirando-os aos cães, que os abocanhavam com a maior
facilidade. Ele não disse nada. Normalmente gostaria de
conversar com os cães, mas hoje fazia em piloto automático,
sem prestar atenção além do necessário. Outros
pensamentos percorriam sua cabeça.

Após esvaziar a lata, ele correu de volta até a porta,


abriu e entrou correndo. Tirou a roupa de frio, toda
molhada pela pequena saída. Pegou a lata e levou-a
consigo, continuando a correr pelos corredores.

Ao chegar à cozinha, deixou a lata em cima da mesa.


“Depois eu encho de novo”.

Ao sair da cozinha, parou e repassou mentalmente o


que tinha que fazer. “Certo”. Ele olhou para os corredores.
Pareciam todos iguais: inteiramente brancos, estreitos, de
menos de um metro de largura e mais ou menos dois e
meio de altura. Porém eram extremamente longos, ao ponto
que você mal podia enxergar o final de um corredor. Até
porque havia várias curvas, bloqueando a sua visão.

Lee voltou a correr, passando por várias portas. Ele


sabia exatamente em qual porta deveria ir. Além de terem
uma identificação composta de quatro números, que diziam
respectivamente o número do andar, o número do corredor,
o número do segmento e o número da sala; tinham uma
placa designando a sua utilidade. Passou por várias salas.

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A FORTALEZA DE GELO

“Laboratório químico”, “Estoque de gases”, “Sala de


controle da tubulação”, “Depósito”, “Acervo”, entre várias
outras.

Algumas salas tinham mais de uma porta de entrada, e


outras estavam interligadas entre si por dentro, tornando o
lugar um labirinto. Ele próprio havia demorado mais de um
ano para se acostumar e, ainda assim, só conhecia os locais
onde estava habituado a trabalhar. A estação era tão grande
que era praticamente impossível conhecê-la por inteiro.

Após virar à direita duas vezes, e depois à esquerda,


Lee chegou a um lance de escadas, descendo um andar.
Ainda correndo por mais alguns segmentos de corredores,
finalmente chegou à sala que procurava. “Laboratório de
Análises Diretas”.

Ele usou sua digital e abriu a porta de metal. Dentro,


havia uma sala pequena e estreita, com duas portas. Kickett
abriu a da parede, dando de cara com um pequeno armário
contendo equipamentos de segurança. Ele pegou e vestiu
uma roupa isolante.

Finalmente abriu a porta no fim do corredor, entrando


no laboratório.

Era uma sala imensa: com diversas bancadas,


equipamentos e compartimentos. Ele caminhou até a
geladeira mais próxima. Era essa geladeira que guardava as
amostras que seriam analisadas no dia seguinte.

Pegou uma máquina etiquetadora na bancada e abriu


a geladeira. Havia apenas cerca de dez amostras para serem

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etiquetadas. Dez tubos de acrílico contendo cilindros de


gelo em seu interior.

Ele fez contato em um com a máquina, que imprimiu


nele um número de série. Fez o mesmo com os outros.
Enquanto fazia isso, lembrou-se de seu superior lhe
dizendo “não se esqueça de usar a roupa de segurança para
manusear essas amostras!”.

Geralmente Kickett não entendia os protocolos de seu


chefe, mas aquele era claramente necessário. Ele se sentia
nervoso, só de estar na mesma sala que aquilo.

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A FORTALEZA DE GELO

CAPÍTULO 5
Dentro de seu carro esporte, Nicole Carter fazia o seu
caminho habitual para o trabalho. Tudo parecia normal,
porém parecia que o tempo passava em câmera lenta. A
estrada sempre vazia transmitia uma sensação muito forte
de solidão, como se ela estivesse completamente sozinha no
mundo. E de certa forma estava mesmo.

Nicole começou a pensar nas pessoas que estavam na


sua vida naquele momento. Seu chefe Elias Parsons era a
única pessoa que realmente estava na sua vida. O seu
trabalho estava mais dentro de sua vida do que ela mesma
estava.

Fazia dois anos que não via seus pais. Passara o último
natal em claro cuidando de pilhas e pilhas de protocolos.
Por vezes ela recebia ligações deles, principalmente de seu
pai, perguntando como estava, e quando seria a próxima
vez que se veriam. Nicole sempre esperava que tivesse mais
tempo no próximo feriado, algo que nunca se concretizava.

Ela também não tinha tempo para ter relacionamentos.


“Afinal, quem aceitaria viver nesse estilo?”. Além de que ela
era proibida de contar para alguém de fora dos projetos
quaisquer informações, ou mesmo o que ela fazia dentro da
STCU. Ou seja, a pessoa ficaria completamente no escuro.

Nicole lembrou-se de seu último relacionamento.


Durou pouco menos de dois anos. Era uma menina doce,
que aparentemente compreendia pelo que Nicole passava.
Apesar de que sempre ficava relutante quando ela viajava a
trabalho ou não passava a noite em casa.

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A FORTALEZA DE GELO

— Por que eu não posso ir com você?

Nicole suspirava. Não havia muito que ela pudesse


dizer. Sua namorada, Ana, olhava para baixo,
decepcionada. Era uma agonia não poder dizer nada.

— Bom... Por que você pelo menos não me conta para


onde vai?

As duas se abraçaram. Não havia o que Nicole


pudesse responder. Ela só esperava que algum dia aquilo
pudesse acabar. As viagens, as noites em claro no escritório,
e ela finalmente pudesse viver a própria vida.

Um dia, um colega de trabalho dela, Robinson, que


também era relator na época, a chamou para tomar um café
depois do trabalho. Ele ficou lá a ouvindo o reclamar sobre
a sua vida e sobre como o tempo parecia estar sempre
contra ela.

Depois de uma torta, um café e dois copos de cerveja,


Robinson ofereceu-se para levá-la para casa. Aquela cena
passava e repassava na cabeça de Nicole mil vezes todos os
dias. Os dois parados na porta do prédio dela. Nicole
apertou a campainha.

— Então, até amanhã — ela sorriu meio envergonhada


por ter contado toda a sua vida para ele e ainda ter ficado
bêbada.

Então seus rostos se aproximaram e logo estavam se


beijando. “Eu queria isso?”, Nicole se perguntava. Ela
gostaria de acreditar que no fim das contas tinha sido um
beijo roubado, que ela não tinha o menor interesse em seu
colega, e que ela havia sido sempre fiel à Ana. Mas a

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A FORTALEZA DE GELO

verdade era que ela queria sim. Estava se sentindo sozinha,


estava carente e ela gostou daquele momento.

Depois de algo que durou entre vinte segundos e um


minuto, tempo que foi difícil de distinguir, a porta do
apartamento se abriu, e só então seus rostos se afastaram.

Parada na porta, boquiaberta, estava Ana.

— Ana, eu...

— Não. — Ela interrompeu. — Não diga nada.

Naquela noite, Ana pegou tudo o que tinha e foi


embora do apartamento. Aquela foi a última vez que as
duas se viram. Nicole tentou ligar para Ana várias vezes,
pedindo desculpas e uma nova chance, carregada de
arrependimento.

Mas a verdade era que Nicole não podia mesmo levar


um relacionamento. Isso foi há três anos. Depois disso, nem
ela mesma se dera outra chance.

Agora, lá estava Nicole, em seu mesmo caminho que


fazia constantemente há seis anos. “Talvez eu realmente queira
que essa seja a minha última viajem”.

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A FORTALEZA DE GELO

CAPÍTULO 6
O avião sobrevoou a estação. Alessandro Bruzzone
estava estarrecido, observando aquela semi esfera
gigantesca abaixo deles. Parecia uma fortaleza de metal,
uma bolha completamente distinta da paisagem estática ao
redor.

Ele olhou para a sua esposa dormindo. Ela era linda.


Seus cabelos castanhos escuros caíam sobre o seu rosto, de
forma que dava apenas para ver seu nariz e parte de seu
rosto.

Quando o avião aterrissou, o comissário veio avisá-los


que haviam chegado. Neville abriu os olhos devagar,
recuperando a consciência aos poucos, e Martha deu um
bocejo que pareceu durar para sempre. O piloto saiu de sua
cabine e deu um sorriso moderado para eles.

— Vocês podem encontrar roupa para o frio no


armário ao lado da porta. É necessário que a vistam antes
de descer. Podem usar o banheiro para se trocar.

Alessandro abriu o armário, encontrando três módulos


de roupas muito grossas. Um casaco e uma calça azuis e um
par de botas. Ele pegou uma roupa para sua esposa, uma
para o senhor atrás deles e outra para si. Em alguns
minutos estavam todos vestidos.

— E agora? — Perguntou Alessandro.

— Esperamos. — Disse Neville, sem desviar o olhar da


janela.

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A FORTALEZA DE GELO

Depois de alguns minutos, a porta do avião foi aberta


e por ela entrou um homem baixo de óculos e cabelos
castanhos bagunçados.

— Bom dia, é um prazer vê-los. — Ele cumprimentou


os três um por um. — Meu nome é Lee Kickett, sou o
diretor técnico da estação, e vou mostrar para os senhores o
lugar. Por favor, me acompanhem. — Os três se
apresentaram de volta e apertaram as mãos de Kickett.

Eles desceram do avião e pisaram na neve fria, um


caminho de cerca de 50 metros até a estação. Kickett abriu a
porta da estação, revelando um grande salão.

Alessandro ficou boquiaberto. Só o salão já mostrava a


magnitude do lugar. O teto deveria ter cerca de 10 metros
de altura, transparente apenas por dentro, permitindo que
pudessem enxergar o céu acima deles. Havia vários sofás
brancos e mesas de vidro, com um tapete branco cobrindo
boa parte do chão. Na parede de trás do salão, havia dois
corredores, um de cada lado.

Ele prestou tanta atenção no lugar que mal reparou nas


três pessoas que estavam conversando ali dentro, e que
agora se voltaram para os recém chegados.

— Esse é o diretor da instalação — Kickett sinalizou


um homem alto de cabelo grisalho com alguns fios pretos,
por volta dos 50 anos.

— Alan Richards, muito prazer.

— Esses são o Doutor Klaus Haussmann, nosso


geólogo, e o Doutor Zhao Cheung, bioquímico perito em
análises laboratoriais.

29
A FORTALEZA DE GELO

Eles se cumprimentaram e em seguida continuaram


andando pelo corredor, atrás de Lee Kickett.

Alessandro tentou assimilar os nomes. Era um nome


alemão e um nome chinês, com Neville, que era francês, e
ele e sua esposa que eram italianos... pessoas ao redor do
mundo inteiro estavam naquela pesquisa!

A instalação era incrivelmente grande e espaçosa, e,


enquanto andavam com o diretor técnico pelos corredores,
parecia que percorriam um labirinto. Alessandro sorria, mal
podendo acreditar no tamanho daquele lugar. Em todos os
seus anos de trabalho, em todos os laboratórios e complexos
que já esteve, nunca viu uma construção daquela
magnitude.

Passaram por várias salas fechadas, até que Lee abriu


uma porta, revelando um quarto com quatro camas.

— Esse é o quarto de vocês. Aqui temos dez quartos


com quatro camas cada, espaço para abrigar até 40
cientistas. Como só estaremos em dez, o Doutor Neville
pode dormir no quarto ao lado. — Kickett sinalizou um
segundo quarto e abriu a porta para o senhor. O casal
entrou e deixou suas malas no canto. — Muito bem, se
quiserem, eu posso mostrar a cozinha, lá deve ter comida
para que vocês possam almoçar.

No final daquele corredor, havia uma sala ampla, com


vários armários e geladeiras, bastante comida armazenada.
Dentro da cozinha havia mais uma cientista, comendo um
prato do que parecia ser miojo com molho de tomate
enlatado.

30
A FORTALEZA DE GELO

— Oi! — Ela se levantou e foi cumprimentá-los. — Sou


Amanda Carvalho. Podem me chamar de Amanda! — Ela
tinha por volta de 40 anos, e uma fisionomia atlética.

— Alessandro Bruzzone, prazer! — Eles apertaram as


mãos.

— Martha.

— Jean Neville. — A senhorita é brasileira, não é? Por


causa do seu sobrenome.

— Sim! — A mulher sorriu, entusiasmada. — Já esteve


no Brasil, doutor Neville?

— Já sim, uma vez, à trabalho. Faz muito tempo.

— Bom... Vou deixar que os senhores se conheçam


melhor, e à tarde chegará a última pessoa que falta nessa
nossa equipe, então o Diretor Richards irá lhes explicar
sobre o que se trata essa pesquisa.

31
A FORTALEZA DE GELO

CAPÍTULO 7
Nicole seguiu Kickett pelo corredor até a sala do
Diretor Richards. Assim que entrou, o diretor levantou os
olhos do papel no qual estava escrevendo e sorriu.

— Você deve ser a senhorita Carter, certo? — Ele se


levantou e foi apertar a mão dela.

— Sim, sou eu. Prazer, senhor Richards.

— Por favor, sente-se. — Ele indicou uma cadeira na


frente de sua mesa.

Nicole sentou, enquanto Kickett esperava atrás dos


dois, próximo à porta. Ela sabia que aquela conversa
deveria ser extremamente confidencial, então se
surpreendia que outra pessoa além dos dois pudesse estar
ali.

— Então, a senhorita foi a última pessoa a chegar.


Agora que todos estão aqui, acho que podemos fazer uma
reunião.

— Nós não precisamos conversar sobre a amostra que


o senhor mandaria para a STCU?

O sorriso do rosto de Richards desapareceu. Ele


suspirou e levantou novamente, andando na direção onde
Nicole estava sentada e posicionando-se na cadeira ao lado
da dela. A garota virou para o lado.

— Bom, a senhorita não é a primeira pessoa que me


pede isso, acredite. Já me pediram antes mesmo de saberem
o que era. E eu já tenho uma decisão tomada. Como
estamos lidando com algo com potencial perigoso, não
32
A FORTALEZA DE GELO

considero prudente distribuir amostras. Pode ser que algo


dê muito errado durante o processo de transporte. E nós
somos muito cuidadosos com essa questão de segurança.
Então é mais seguro que todas as amostras de gelo fiquem
nessa estação, conosco. Claro, qualquer cientista está livre
para vir aqui fazer seus experimentos, afinal a ciência é
democrática. E sempre sob os nossos parâmetros de
segurança. Mas nada sai daqui. — Nicole assentiu. — Tudo
bem para a senhorita?

— Sim, claro. Desculpa, eu não quero quebrar seus


protocolos.

— Não precisa pedir desculpas, está tudo bem. —


Richards olhou para seu assistente. — Kickett irá lhe
mostrar onde a senhorita irá dormir e poderá desfazer suas
malas. Logo todos nós vamos nos reunir e discutir sobre o
que se trata esse experimento. — O homem sorriu. —
Espero que se sinta à vontade.

Nicole sabia que só estava lá por causa da influência


de seu chefe. Ele sabia de tudo, de cada experimento que
era feito, estava em todos os lugares, em cada laboratório,
em cada comitê de discussão científica. E claro, ninguém
poderia recusar um pedido de Elias Parsons, nem mesmo o
diretor da Estação Manson.

Deixando suas malas no quarto, Nicole se jogou na


cama, olhando para o teto. Depois de respirar fundo, ela foi
até sua mala e a abriu. Dentro, havia um compartimento
que funcionava à vácuo, feito para conservar algo com
segurança.

33
A FORTALEZA DE GELO

Ela abriu o compartimento, revelando uma ferramenta


feita para fazer punção. A ruiva suspirou. “Será que eu
deveria fazer isso?”.

Então ela ouviu alguém batendo na porta.


Rapidamente, ela jogou o objeto dentro da mala e a fechou.
Ao atender a porta, Kickett estava do outro lado.

— Senhorita Carter, vamos nos reunir agora para


discutir sobre o experimento. A senhora me acompanha?

— Sim, sim.

Os dois andaram até a sala de reuniões, onde havia


uma mesa ampla, um quadro branco e um projetor.
Richards estava de pé na frente do quadro negro. Assim
que viu Nicole entrar, ele a apresentou para os outros
cientistas.

— Está é a Nicole Carter, nossa relatora, da STCU. —


Em seguida dirigiu-se para um homem ao lado dele. —
Nicole, este é Alessandro Bruzzone, nosso geneticista. —
Nicole sorriu. Alessandro parecia bastante com seu irmão,
exceto pela cor do cabelo. — Esta é Martha Bruzzone,
biomédica. Zhao Cheung, bioquímico. Jean Neville,
infectologista. Klaus Haussmann, geólogo. — Havia depois
uma mulher muito bonita, por volta dos 40 anos. —
Amanda Carvalho, virologista. — O último era a única
pessoa negra da sala. “A ciência é um ambiente machista e
racista. 10 pessoas, 9 brancas, e 7 homens.”. — E esse é Bem
Juma, neurologista e oncologista.

Nicole cumprimentou todos, então se sentou. Ela tinha


facilidade para decorar nomes, mas uma certa dificuldade

34
A FORTALEZA DE GELO

para socializar. Suas relações eram somente científicas, há


muito tempo.

— Acredito que a maioria de vocês não saiba por que


estão aqui. — Ele fez uma pausa. — Há algumas semanas,
encontramos no gelo um grupo de 15 Purgatorius
congelados. Para quem nunca ouviu falar do Purgatorius,
ele é um ancestral dos primatas atuais.

Richards passou uma foto computacional de um


Purgatorius, projetada no quadro branco.

— Nós encontramos um grupo deles congelados no


gelo, a 4km de profundidade. Nós estimamos que os fósseis
tenham cerca de 92 milhões de anos. Pertencem ao estágio
conhecido como Turoniano, do Cretáceo Superior.

Richards fez uma pausa e mudou de slide, mostrando


uma bela floresta.

35
A FORTALEZA DE GELO

— Essa — Richards apontou para a imagem atrás dele.


— É a Antártida há 90 milhões de anos. Houve uma
inversão de polos, e a temperatura aqui podia chegar a 12º
C. Formulamos a questão de por que todos os Purgatorius
haviam morrido juntos. Foi então que, após fazer uma
análise dos ossos, descobrimos que continham traços de um
vírus até então desconhecido.

Richards fez um sinal e Kickett desligou o projetor.

— Nosso objetivo aqui é fazer uma análise detalhada


desse vírus. Como ele se comportava, como ele infectava,
em que condições ele sobrevive, tudo o que pudermos
descobrir sobre o vírus. Para isso, vocês serão divididos em
duas equipes. Pela manhã, trabalharão no laboratório os
Bruzzone e o Juma, e pela tarde, Neville, Cheung,
Haussmann e Carvalho.

Todos se entreolharam. A maioria estava sorrindo, mas


Nicole permanecia séria. Assim como Richards. Ambos
sabiam do perigo que aquele vírus representava.

36
A FORTALEZA DE GELO

— Mais uma coisa. — A expressão no rosto do diretor


era sombria. — O vírus ainda pode estar ativo. Não
sabemos o que aconteceria se ele infectasse alguém. Então
sigam todos os protocolos de segurança.

...

Mais tarde, todos, exceto Richards e Kickett, jantaram


na cozinha da estação. Alessandro estava entusiasmado.

— Pensem nas possibilidades. É uma nova espécie


sendo descoberta! Uma espécie extinta há milhões de anos.

Neville não parecia muito animado.

— É mais um vírus.Isso não representa nada de


positivo.

— Mas ele pode ser útil para alguma coisa. — Sugeriu


Zhao. — Existem vírus que podem combater bactérias,
parasitas, células cancerosas ou até outros vírus. Então a
descoberta pode trazer algo de bom. E mesmo que não
traga, é um avanço científico. Mais uma descoberta, mais
um conhecimento. Uma descoberta não precisa
necessariamente ser útil.

— Sim! — Alessandro concordou de forma


entusiástica. — Temos aqui a chance de colocar nosso nome
na ciência. Imagina o que podemos descobrir de novo! Um
vírus de 92 milhões de anos atrás, outra época, outras
condições!

37
A FORTALEZA DE GELO

Enquanto todos conversavam, Amanda não parava de


encarar Nicole, com um ar de desconfiada. “Será que ela sabe
de algo?”. Nicole virou para ela, depois desviou o olhar.

— Eu acho que certos governos vão querer se


aproveitar disso. — Amanda não tirou os olhos de Nicole.
— Um vírus pode ser uma arma biológica poderosa.

— Com licença. — Nicole se levantou. — Desculpem,


mas acho que vou dormir mais cedo. — Ela empurrou seu
prato de macarrão com frango. — Não estou passando bem.

— Deve ser o fuso horário. — Disse Bem. — Eu


também fiquei assim quando cheguei ontem.

— Espero que você melhore — Alessandro sorriu.

— Obrigada.

Nicole ia se levantando e andando para a porta


quando Amanda se levantou atrás dela.

— Espere, eu te levo até o quarto, querida. — Amanda


sorriu.

As duas foram andando em silêncio até onde ficavam


os quartos, então Amanda parou subitamente e olhou nos
olhos de Nicole.

— Eu sei porque você está aqui. — Nicole arregalou os


olhos. O Richards disse que você é da STCU. Eu conheço
essa agência. O seu governo quer o vírus.

— Como você... — Ela estava visivelmente surpresa.


— Não — Nicole disse, desconcertada. Até hoje, não havia
encontrado ninguém que tivesse sequer ouvido falar da sua
agência. — Não, isso é teoria da conspiração. A STCU me
38
A FORTALEZA DE GELO

enviou aqui apenas para descrever as descobertas


científicas. — Ela olhou para baixo. — Só isso...

Amanda olhou para baixo, como se lembrasse de algo


ruim.

— Sei... descrever. Eu já estive em muitos países. Há


cerca de cinco anos, morei por alguns meses no Irã fazendo
trabalho humanitário. Levando remédios, tratando pessoas.
Eu vi as piores crueldades sendo feitas. Um dia, vi uma
cápsula cair de um avião perto do hospital onde eu
trabalhava. Já tinha visto aviões soltarem cargas de comida
e suprimentos, mas aquele era diferente dos que eu estava
habituada. Depois, muitas pessoas da região vieram ao
hospital com tumores, lesões no sistema respiratório... Na
época eu não sabia o que era.

Nicole estava em negação. Ela sempre pensou, em


algum lugar dentro da sua mente, que as descobertas feitas
pela STCU poderiam ser utilizadas para coisas horríveis.
Mas ela sempre tentou negar essa possibilidade. Sempre
quis acreditar que não. Não... na verdade ela sempre tentou
não pensar nisso.

Mas ao mesmo tempo, quem garantia que aquela


mulher que ela nem conhecia estivesse falando a verdade?
Nicole saberia se aquilo fosse de fato acontecesse. Não. Não
podia ser verdade.

— Lá no Irã eu conheci um sujeito — continuou


Amanda. — Que trabalhou no STCU. Ele tinha pedido
demissão após lidar com coisas que revoltaram ele. Aquelas
bombas continham químicos. Armas de destruição em
massa. Eles estavam matando civis... estavam matando

39
A FORTALEZA DE GELO

crianças. — Amanda sinalizou com os braços, como se


estivesse segurando um bebê. — Eu vi uma criança de
menos de 5 anos morrer nas minhas mãos sem conseguir
respirar, e eu não podia fazer nada. E pior. Eles faziam
experimentos com pessoas. Ele chegou a me contar de bases
de pesquisa que eles tinham em países subdesenvolvidos,
onde podiam oferecer “tratamento médico gratuito”, e
testar drogas nas pessoas carentes. — Amanda fez uma
pausa. — É isso o que sua agência faz.

— Não... — Os olhos de Nicole começaram a


lacrimejar. — Isso não é verdade. — Ela não queria
acreditar. Queria que fosse mentira. Mas no fundo, tinha
medo que fosse verdade. — Eu... Eu saberia se eles fizessem
algo assim.

— O Edwin... — Amanda deu um suspiro e continuou,


como se Nicole não tivesse dito nada. — Ele também não
sabia. Mas quando ele soube, teve que tomar uma decisão.
Ele saiu e tentou fazer algo sobre isso. Passou anos fazendo
trabalho voluntário, e então tentou contar para o mundo...
Mas foi silenciado. Ele sofreu um ataque cardíaco com
apenas 42 anos. — Amanda ficou em silêncio por alguns
segundos. — Você não precisa ir contra eles. Mas você não
pode apoiar isso. Você tem a chance de fazer a diferença
aqui, é uma chance única.

Nicole pensou por um instante, sem saber o que


responder. Apenas olhou para baixo e ficou em silêncio.
Amanda pôs a mão em seu ombro.

— Espero que você tome a decisão certa.

As duas ficaram em silêncio por alguns instantes.

40
A FORTALEZA DE GELO

— Boa noite Nicole. Eu vou voltar para o refeitório.

Nicole ficou sem fala por alguns segundos, refletindo.

— Boa noite.

41
A FORTALEZA DE GELO

CAPÍTULO 8
Bem Juma acordou antes do despertador, pra variar.
Ele abriu os olhos devagar e olhou no relógio. Eram 7h33 da
manhã. Não valia a pena dormir mais. Bem se espreguiçou
e esticou o braço para acender a luz do quarto.

Era um cômodo modesto, mas ele já havia dormido em


lugares piores em viagens anteriores. Era um quarto bem
funcional na verdade. Tinha dois beliches, dois criados
mudos, quatro pequenos armários, e uma luz central com o
botão de liga/desliga entre os dois beliches. Tudo branco, o
que dava uma sensação de que ainda estavam na neve. Era
um lugar interessante, de fato.

Juma sentou na cama, olhando para o retrato que


estava na cabeceira. Ele sorriu, como sempre. A foto era de
sua esposa, com um vestido verde lindo, ele ao lado, sua
filha em seus braços, uma garota de 7 anos, com cabelos
pretos descendo até a altura dos ombros, e um vestido rosa.
Bem passou a mão pelo retrato, como se pudesse tocar na
garota.

Ele se lembrou de alguns dos momentos que passou


com a pequena menina, e então sentiu um saudosismo.
Pegou o celular do seu bolso, checando novamente o
horário. Eram 7h36. Claro, lá não havia sinal de telefone ou
internet. Dava tempo de dar uma olhada nas fotos. Bem
abriu a galeria de seu celular, descendo para um álbum
específico. O título era “Elna”, o nome de sua filha.

A primeira foto era do dia do nascimento da garota,


com a mãe no hospital e ele de toca azul segurando aquele

42
A FORTALEZA DE GELO

pequeno bebê recém-nascido no colo. Depois havia várias


fotos dela crescendo, em estágios intermediários. Fotos dela
correndo no jardim, andando de triciclo, brincando com o
pai... Então Juma chegou na foto na qual os três estavam
sentados numa mureta, perto de casa, tomando sorvete. Ele
hesitou por alguns instantes, depois passou para a próxima
foto.

A próxima, era ela no hospital, com seus amigos a


visitando, com balões de festa pela sua melhora. A essa
altura, dava para ver a ausência do seu cabelo liso que caía
pelos ombros. Depois, outra foto dela já melhor, numa
viagem em família no Cabo da Boa Esperança. Seguiam-se
várias fotos dela com o cabelo crescendo gradativamente. O
pai sorriu, olhando para o cabelo curtinho da menina.

Bem hesitou de novo. Mas passou para a próxima.

Nessa foto, ela estava comemorando 8 anos. Os três


estavam juntos novamente no hospital, Elna com roupa
azul, coberta por um lençol branco, e um bolo de chocolate
com uma vela em seu colo. Seus pais a abraçavam, todos
sorrindo para a selfie. Outra vez, Elna não tinha cabelo, seu
rosto estava mais pálido e magro, e um tubo com soro saia
de seu braço.

Essa era a última foto. Bem sabia que não havia mais.
Ele desligou seu celular e o guardou no bolso, olhando para
o teto. Lembrou-se dos últimos anos de sua carreira, os
experimentos que fez relativos a encontrar uma cura, e
todos levavam à mesma conclusão: a cura seria um vírus.
Simples, mas elaborado.

43
A FORTALEZA DE GELO

Um vírus geneticamente modificado deveria detectar


as células com mutação e eliminá-las. Uma cura rápida,
pouco invasiva, efetiva, e, principalmente: factível.

Finalmente, ele decidiu se levantar, tomando um


banho antes de ir tomar café.

Quando ele chegou na sala de refeições, Nicole Carter


estava lá, com uma tigela vazia e uma xícara de café preto
na sua mão.

— Bom dia Senhorita Carter. — Bem estendeu a mão


para ela. — Está melhor hoje?

— Ah! Bom dia. — Ela se virou, como se tivesse levado


um susto. Então apertou sua mão e assentiu com a cabeça.
— Sim, eu tô melhor, obrigada.

Bem pegou um sanduíche pronto e uma xícara de café


com leite, sentando-se na mesa também.

— Fico feliz. — Ele sorriu, e ela deu um sorriso que


logo desapareceu do rosto quando subiu a xícara para
tomar mais um gole de café.

Enquanto comia, Bem Juma percebeu que havia algo


de errado com Nicole. Ela parecia abatida, como quem não
dorme há dias.

— Está tudo bem? Você parece cansada.

— Ãh?

Ela arregalou os olhos, em seguida assentiu com a


cabeça.

— Sim, sim, tudo bem.

44
A FORTALEZA DE GELO

Nicole bebeu rapidamente o café, então deixou a xícara


no lava louças e foi em direção à porta.

— Eu vou indo. Até mais.

Bem assentiu.

Assim que ele terminou seu sanduíche e seu café,


também colocou tudo no lava louças e foi para a sala de
reuniões. A essa altura, eles já conheciam algo da estação.
Como, por logística, a sala de reuniões, o refeitório, e os
quartos, ficavam próximos uns dos outros, nessas salas não
era tão difícil de se localizar.

Quando ele chegou, Alessandro, Martha e Nicole


estavam na sala, sentados. Bem cumprimentou o casal,
então também se sentou. Mais uma vez conferiu que horas
eram: 8h28. Logo seria o horário da reunião.

Alguns segundos depois, Kickett entrou na sala.

— Bom dia. — Disse de modo formal.

— Bom dia. — Os cientistas responderam em


uníssono.

— O experimento será feito em etapas. Como foi


explicado, vocês foram separados em dois grupos. Pela
manhã, vocês irão realizar os experimentos no laboratório, e
pela tarde, o Cheung, o Haussmann, a Carvalho e o Neville.
A primeira parte do experimento, será descongelar o vírus e
colocá-lo em uma atmosfera simulada semelhante à da
Terra há 90 milhões de anos, a segunda será a de infectar
um rato com o vírus, e a terceira, a de colocar um segundo
rato na câmara.

45
A FORTALEZA DE GELO

— Esse experimento tem algum motivo específico? —


Perguntou Bem. — Temos alguma ideia do potencial desse
vírus?

— Infelizmente ainda não — Kickett sequer mudou a


expressão facial ou o tem de voz. — Sabemos apenas que
foi esse agente que infectou os Purgatorius. — Ele andou
pela sala, olhando individualmente para o rosto dos quatro
presentes. — Provavelmente os senhores sabem dos
potenciais que um vírus pode ter em relação a cura para
doenças.

Nesse momento Kickett olhou especificamente para


Bem Juma. Como ele sabe?

— Hoje nós iremos realizar a primeira etapa do


experimento. Se os senhores puderem me seguir, por favor,
irei lhes mostrar onde fica o laboratório.

O grupo seguiu Kickett pela estação, passando por


diversos corredores e salas, até finalmente chegarem a uma
porta na qual lia-se “Laboratório de Análises Diretas”. O
diretor técnico colocou sua digital em um leitor na porta,
que, em seguida, abriu, e ele sinalizou para que os outros
entrassem, fechando a porta atrás de todos.

A sala onde eles estavam era pequena, com outra porta


na extremidade oposta de onde eles vieram, e um armário
na lateral.

— Antes de entrar, vocês devem fazer exatamente o


que eu instruir. Não sei se algum de vocês já trabalhou com
áreas de segurança nível 4, mas esse é o nível mais alto,
então são necessários vários cuidados.

46
A FORTALEZA DE GELO

Kickett abriu o armário, no qual havia vários trajes de


alta segurança. Ele pegou um e começou a demonstrar
como se colocava e como se utilizava. Tinha botas, máscara,
capuz, o traje completo, todo vedado. Bem começou a sentir
um fio de suor escorrendo pela sua testa. Nunca havia
trabalhado em algo assim, e todo esse preparo causava uma
tensão enorme.

Finalmente, o técnico abriu a outra porta, que também


estava vedada, e eles entraram no laboratório. O lugar era
enorme, com vários equipamentos, câmaras, bancadas, e
havia uma segunda sala, na qual dava para ver vários
armários, cilindros e geladeiras. Juma olhou ao redor.

Alessandro e Martha pareciam maravilhados. O


marido apontava coisas o tempo todo, e conversava em
italiano com a esposa. Já Nicole estava inexpressiva. Não.
Parecia mais como se ela estivesse se sentindo
desconfortável, como ele próprio.

Bem conhecia essa cara inexpressiva, ele mesmo já


teve. Era a cara de alguém que tinha perdido a motivação
na vida. Ele ficou assim por muitos anos após a morte da
sua filha. Como se nada mais tivesse sentido. Até ele
encontrar sua motivação e se reconectar com sua esposa e
consigo mesmo. Eu sei como é isso, pensou, é muito difícil.

Kickett desapareceu na segunda sala, abrindo uma das


geladeiras.

— Podem vir. — Ele gesticulou.

47
A FORTALEZA DE GELO

Bem se aproximou, vendo Kickett tirar de dentro da


geladeira um cilindro de gelo, puncionando-o com uma
ferramenta especial.

— Esse — ele apontou para o conteúdo da ferramenta


de punção. — É o vírus congelado. — Em seguida ele
andou em direção a uma das câmaras e injetou o conteúdo
dela ali dentro, deixando que uma espécie de neve caísse
dentro da incubadora. — É aqui que faremos nosso
experimento.

Em seguida, Kickett andou novamente até a outra sala,


apontando para um dos cilindros, com um código de série
estampado.

— Se um dos senhores puder pegar aquele cilindro, ele


contém gases simulando a atmosfera terrestre Turoniana.
Nós vamos liberar o seu conteúdo na incubadora.

Alessandro pegou o cilindro, seguindo as instruções


de Kickett e ligando-o a um tubo que ia direto para a
incubadora. Em seguida, ele girou um registro, fazendo
com que o gás entrasse ali dentro.

— Parabéns senhores. — Kickett sorriu. —


Terminamos a primeira etapa do nosso experimento.

Nicole sussurrou algo tão baixo que Bem Juma sentiu


que só ele havia ouvido, por estar do lado dela.

— Nós acordamos o vírus.

48
A FORTALEZA DE GELO

CAPÍTULO 9
No almoço, todos se reuniram na sala de refeições para
compartilhar um espaguete com almondegas e peixe feito
por Zhao. Pelo jeito ele se dava bem com a cozinha. O
ânimo dos cientistas estava no alto, todos entusiasmados
com as possibilidades da descoberta e com o auge de suas
carreiras.

Amanda percebeu que Nicole era a única da equipe


que não estava na sala. Isso, claro, excluindo o diretor
Richards e Kickett, que deveriam comer em uma sala
separada. Amanda ficou pensando sobre o porquê da
ausência da jovem. Ela parecia incomodada desde o
momento que chegou.

— Com licença. — Amanda se levantou da mesa,


sorrindo.

— Aonde você vai? — Perguntou Bem Juma. — Está


tudo bem?

— É — Zhao deu uma risada. — Minha comida não


está boa? Admito que o peixe não era dos mais frescos.

Amanda levou um tempo para pensar na resposta.

— Eu só quero checar umas coisas. Teremos muito


trabalho pela frente hoje.

Bem Juma assentiu com a cabeça, quase como se


fizesse uma reverência.

— Fique com Deus.

Amanda sorriu e se encaminhou para os quartos.

49
A FORTALEZA DE GELO

O quarto de Nicole ficava no final do corredor.


Amanda se aproximou da porta, considerando se deveria
ou não falar com a garota. Finalmente se decidiu. Suspirou,
e bateu na porta.

Ela esperou alguns segundos, até ouvir o barulho de


alguém se levantando e caminhando até a porta. Quando
ela se abriu, Nicole estava do outro lado, desmoronada. Sua
pele estava pálida, seu cabelo bagunçado, e seus olhos
estavam vermelhos. Ela olhou inexpressiva para Amanda.

— Oi.

— Oi, Nicole. Eu vim falar com você.

Seguiram-se alguns segundos de silêncio. Por fim,


Nicole suspirou.

— Eu não quero conversar agora. — Ela ia fechando a


porta, quando Amanda pôs o pé no meio do caminho.

— Eu só quero dizer que eu não vim por causa do


experimento. Eu vim por sua causa. — As duas ficaram se
encarando por alguns segundos, sem nenhuma delas dizer
nada ou tomar qualquer atitude.

— Está bem. — A garota ruiva abriu a porta. — Entre.

Depois que Amanda entrou no quarto, Nicole fechou a


porta atrás delas e se sentou na cama. O ambiente estava
uma bagunça. Roupas pelo chão, a porta do banheiro
aberta, o armário vazio. Amanda se sentou ao lado dela, e
Nicole se afastou levemente, olhando para baixo, com um
olhar vago.

50
A FORTALEZA DE GELO

— Quer falar como se sente? Sobre tudo isso? Eu vejo


que você está incomodada. Você não dorme, não come, não
sai do seu quarto.

— Eu não sei. — Nicole fechou os olhos. — É muito...


— Ela suspirou, sem olhar nos olhos de Amanda. — Muito
difícil. — As duas ficaram em silêncio por um longo
instante. Talvez fosse até um minuto. — Eu não sei o que
pensar.

— Olha... Não sei se isso ajuda. Mas eu acredito em


você.

— Sobre o que? — Nicole pela primeira vez se virou


para olhar diretamente para Amanda.

— Sobre você não saber das coisas que a STCU faz.

Nicole fez que não com a cabeça.

— Não. Você está errada.

— Como assim?

Amanda notou que havia na cabeceira da cama de


Nicole um vidro de remédios aberto, caído, com pílulas
brancas espalhadas, e um copo vazio estava logo ao lado.

— Eu sempre soube. — Amanda conseguiu ver seus


olhos marejando, e, quando Nicole percebeu, ela virou o
rosto. — Mesmo antes de você dizer. — A garota respirou
fundo. — Eu tentei negar, tentei acreditar que isso não era
verdade, mas eu sabia que tinha algo sendo feito com toda
essa tecnologia. Eu só... tentei não pensar nisso. Mas como
você disse... tem pessoas, civis inocentes, crianças
morrendo. — Nesse momento ela desabou em lágrimas. —

51
A FORTALEZA DE GELO

E isso é culpa minha. Eu matei essas pessoas. Eu venho


matando nos últimos anos da minha vida. Eu tenho sangue
nas mãos.

— Não veja desse modo. Você não é uma assassina, é


uma vítima deles também. Você não mataria alguém, eu sei.

— Como você sabe? — Nicole de repente levantou a


voz. — Você não me conhece!

Nicole respirava ofegante, sua expressão facial parecia


dizer muitas coisas, vários sentimentos conflitantes ao
mesmo tempo. Amanda se mexeu na cama e sentiu algo
debaixo dela. Quando olhou para ver o que era, percebeu
que era uma máscara de dormir.

— Não preciso. Eu conheço pessoas assim. Pessoas


que trabalham com indústrias pérfidas, sem se questionar o
que estão fazendo lá. Sem questionar a ordem, sem
questionar o sistema. A maioria de nós é assim. A gente
prefere não se questionar sobre a ordem das coisas. Vemos
injustiças sendo feitas, mas não fazemos nada a respeito.

— Você não. Você trabalhou como voluntária por


anos.

— Sim... 8 anos. Mas antes disso, tive uma vida


burocrática, senti que não fazia nada de útil para a
sociedade. Cheguei onde cheguei sem mérito próprio
nenhum. Sempre tive sorte, uma família com dinheiro pra
me ajudar. Por muito tempo eu não me importei com nada.
Mas um dia, eu decidi que podia ser diferente. Eu podia
fazer algo realmente útil. Fiquei 5 anos morando na
Somália, ajudando a comunidade. Em seguida, fui

52
A FORTALEZA DE GELO

designada para o Irã, por mais 3 anos. O ponto é que eu


decidi sair dali uma hora, decidi fazer diferente.

— Exatamente. Você fez alguma coisa. Eu não fiz nada.


Eu fiquei parada diante das injustiças, eu aceitei. Não, mais
do que isso. Eu ajudei que elas acontecessem. Faz seis anos,
seis longos anos, que eu trabalho naquele mesmo lugar.
Sem pensar, sem questionar, sem agir. E não é só isso.
Tem… — A garota hesitou. — Outras coisas.

— Mas isso pode mudar. Você pode escolher não fazer


parte disso.

Novamente, Nicole fez que não com a cabeça.

— Essa é a única vida que eu conheço. No fundo é só


isso que eu sou. “Parte disso”. Qual é a minha identidade?
Eu sou a pessoa que faz os relatórios. Eu cheguei aonde
cheguei por um caminho sem volta. Anos de estudo, noites
perdidas trabalhando, pessoas que eu perdi... Eu não vejo
meus pais há 2 anos, não tenho mais amigos, não tenho
ninguém...

— E você gosta dessa vida?

— Eu odeio, mas... mas é tudo o que eu tenho. Eu


sempre achei que alguma hora iria ficar melhor, mas a
realidade é que as coisas sempre continuam as mesmas. E é
nisso que eu me prendo. Não tenho alternativa a não ser
essa.

— Não precisa ser assim. Essa não precisa ser a sua


vida. No que você se formou?

— Engenharia genética e engenharia aeroespacial.

53
A FORTALEZA DE GELO

— Sabe, são tantas coisas que você pode fazer com


essas suas formações. Você sabe que poderia estar em
algum lugar muito melhor. Alguém que conseguiu entrar
na STCU conseguiria entrar na NASA.

— Não conseguiria.

— Como você sabe?

— Eu tentei. Com 21 anos eu ganhei o prêmio numa


competição de desenvolver o melhor projeto de uma
embalagem de comida que pudesse ser utilizada no vácuo
do espaço. Quando me formei, eu tentei entrar lá, e fui
rejeitada. A STCU soube da minha rejeição e me contratou.
Eles disseram... — Nicole respirou fundo. — Eles disseram
que podiam mudar minha vida.

— Mas você conseguiria trabalhar em tantos outros


lugares. Acredite, você pode ter outro emprego. Você pode
ter outra vida. Afinal... você quer continuar com essa vida
que você não gosta?

Nicole ficou em silêncio por um bom tempo.

— Não.

Amanda pôs a mão no ombro de Nicole, e ela a olhou


surpresa.

— Eu acredito que você consegue sair. Que você


consegue mudar.

— Obrigada. Ninguém nunca confiou em mim dessa


forma. Ninguém nunca falou comigo dessa forma. —
Nicole olhou para Amanda. — Obrigada, de verdade.

54
A FORTALEZA DE GELO

Amanda puxou Nicole para um abraço. As duas


ficaram abraçadas por um longo período. Então, quando
finalmente se afastaram, Nicole estava sorrindo. Amanda
sorriu de volta.

— Vamos fazer esse experimento?

Nicole riu e enxugou as lágrimas.

Quando chegaram na sala de reunião, Jean, Zhao e


Klaus já estavam sentados lá, e Kickett estava esperando, de
pé. Aparentemente, ninguém havia conversado naquele
meio tempo, como se Kickett fosse uma espécie de presença
séria que obrigava todos a se portarem da mesma forma.

— Boa tarde. — Cumprimentou o diretor técnico. —


Por favor, sentem-se.

Assim que elas se sentaram, Kickett olhou para o rosto


de cada um individualmente, em seguida começou a
explicação.

— Hoje nossa tarefa será a seguinte: o vírus já foi


descongelado, e agora iremos observar sua estrutura por
um microscópio eletrônico. — Ele apontou para Nicole. —
A senhorita Carter irá registrar tudo. Em seguida,
introduziremos uma cobaia na câmara: um rato. Ele será
eventualmente infectado, mas poderá demorar um tempo.
Então amanhã o experimento será retomado.

Ele fez uma pausa, para ter certeza se não haviam


perguntas. Então fez um gesto e andou em direção à porta.

— Por favor, podem vir. Vamos começar.

55
A FORTALEZA DE GELO

Amanda já havia estado em laboratórios de alta


periculosidade, então pensou que não seria algo muito
diferente. Quando Kickett inseriu sua mão no leitor de
digitais e a porta se abriu, ela pensou “ok, isso é bem
interessante”. Após colocarem as roupas de segurança e
entrarem no laboratório propriamente dito, Amanda ficou
boquiaberta.

Claro, já não esperava algo pequeno, devido ao


tamanho e complexidade daquela estação. Mas aquele
laboratório era maior do que qualquer outro que já esteve.
Talvez não maior em tamanho, apesar de que era realmente
grande, mas com certeza o maior em termos de quantidade
de equipamento.

Kickett os guiou até uma câmara, ligando um grande


monitor ao lado dela, e acendeu-se uma tela que não
mostrava uma imagem indefinida.

— Essa é a câmara na qual o vírus se encontra


descongelado. Nosso objetivo agora é observá-lo por meio
desse microscópio eletrônico. Creio que o senhor Jean
Neville já saiba utilizá-lo.

O técnico deu um passo para trás e foi até a outra sala,


abrindo espaço para Jean, que andou em direção ao
monitor.

— Claro... vou tentar.

Jean apertou alguns comandos na tela touch, de forma


rápida e mecânica, claramente já tendo decorado os
movimentos necessários. Comandos passavam pela tela, de
forma confusa. Em um dado ponto, apareceu uma série de

56
A FORTALEZA DE GELO

pequenas esferas, e Jean ampliou a imagem várias vezes,


até focar em uma específica.

— Creio que esse seja o vírus. — A imagem era


realmente estranha. Consistia em uma esfera com vários
ramos, pseudópodes, que por sua vez se ramificavam ainda
mais vezes. — Isso é uma coisa muito rara.

— A julgar pelos seus pseudópodes, creio que seja um


vírus que infecte um tipo de célula específico.

Amanda e Jean se encararam, e ambos sabiam que


estavam pensando a mesma coisa.

— Neurônios. — Os dois falaram ao mesmo tempo.

Nicole se aproximou, pronunciando suas primeiras


palavras dentro daquele laboratório.

— O que isso significa exatamente?

— Eu não sei. — Jean balançou a cabeça. — Pode


significar qualquer coisa na verdade. Se fosse para eu
formular alguma hipótese, diria que ele se alimenta dos
neurônios do ser vivo até torná-lo um vegetal. Não, até sua
morte e deterioração.

— Eu creio que não seja só isso. — Zhao olhou


hipnotizado para o monitor. — Essas formações são
claramente revestidas por mielina. Eles não só atacam os
neurônios. Eles se ligam nos neurônios.

Amanda olhou de forma interrogativa para Zhao. A


ideia parecia uma loucura. Jean balançou a cabeça.

— Nunca ouvimos falar de um vírus que faça algo


assim.
57
A FORTALEZA DE GELO

— Isso não significa que seja impossível.

Jean franziu a testa.

— Um vírus assim não poderia ser encaixado em


nenhum ponto da cadeia evolutiva viral que conhecemos.
Seria como se ele não pertencesse à própria época.

— Em outras palavras — Interveio Zhao — uma


descoberta revolucionária.

— E tem algo mais… — Neville aumentou mais a


imagem. — Esse vírus não parece ser feito exatamente de
RNA. É algo ligeiramente diferente. Tem componentes de
enxofre aqui.

— Não basta olharmos, temos que testar para verificar


o comportamento do vírus. — Kickett apareceu com uma
gaiola de um material transparente na mão, dentro da qual
havia um rato branco. — Alguém gostaria de colocar o
animal na estufa?

Zhao pegou a gaiola das mãos de Kickett, andando em


direção à câmara como se estivesse sendo atraído por
alguma energia misteriosa, sem tirar os olhos da gaiola.

— Imaginem as descobertas que poderemos fazer com


um vírus assim. Podemos curar tumor cerebral. Podemos
curar Alzheimer.

— Pode encaixar a gaiola naquele compartimento,


depois aperte o botão preto na lateral da gaiola.

Quando Zhao encaixou a gaiola da câmara e apertou o


botão, uma porta se abriu, e o rato entrou na câmara. Logo
em seguida, a porta se fechou e Zhao retirou a gaiola.

58
A FORTALEZA DE GELO

O pequeno rato começou a cheirar o chão da câmara,


andando pelo ambiente e sentindo seus arredores. Kickett
assentiu.

— Agora esperamos até amanhã.

59
A FORTALEZA DE GELO

CAPÍTULO 10
— Pena que não tem espaço nessa cama pra dois. —
Comentou Martha, em italiano.

— Bom, eu não tenho do que reclamar.

— Claro, você ficou com o andar de cima!

Alessandro ficou em silêncio, provavelmente


pensando numa resposta. A luz estava apagada, então
mesmo que fosse possível para Martha olhar para o beliche
de cima, estava escuro demais para ver qualquer coisa.

— Sabe, se você quiser, pode vir aqui em cima


também. — Alessandro falou sério, e a Martha riu. — É
apertado, mas tem espaço. A gente se encolhe.

— Tá bom, tá bom.

Martha subiu pela escadinha e deitou ao lado de seu


marido. O espaço era realmente apertado, e ela sentiu seu
corpo quase deslizando para fora da cama. Alessandro a
segurou para que ela não caísse.

— Tem razão, é apertado. — Admitiu Alessandro.

— É desconfortável.

— Sabe, eu tive uma ideia.

Os dois desceram do beliche e acenderam as luzes. A


ideia era tirar os dois colchões dos beliches e colocá-los no
chão, assim poderiam deitar juntos. E incrivelmente deu
certo.

60
A FORTALEZA DE GELO

— Sabe, quando uma ideia sua dá certo eu sempre me


surpreendo.

Martha segurou a mão de Alessandro.

— Por que? Só porque eu sou mais devagar?

— Não. Porque você é o mais devagar, o mais


atrapalhado, o mais sem noção...

— Ei, tá pegando pesado. — Os dois riram juntos.

— E o mais divertido.

— É, isso é verdade.

Os dois ficaram em silêncio por um tempo. Martha


não pensava em nada em particular, apenas presente ali no
momento. Mas sabia que provavelmente, ao mesmo tempo,
a mente de Alessandro divagava pelos mais longínquos e
imprevisíveis lugares.

— Sabe — Alessandro começou. — Eu fico pensando


no que a gente vai fazer quando voltar pra Itália. Não digo
só em relação a nossa carreira. — Ele fez uma pausa. — Eu
sei que às vezes parece que sou obcecado com isso. Mas eu
digo em relação a nós.

Martha sorriu, mas não disse nada, esperando que


Alessandro continuasse.

— Eu tenho pensado cada vez mais nisso, e acho que a


gente está pronto. Podemos comprar um apartamento um
pouco maior, vender o nosso. Uma vida nova.

— Tem que ser um apartamento no qual caibam


bastante crianças. Porque eu não quero só uma hehe.

61
A FORTALEZA DE GELO

Alessandro abraçou Martha e passou a mão pelos seus


cabelos.

— Quantas você quer?

— Muitas. De todas as idades. De todos os países.

— A gente vai ter. — Os dois deram um beijo de


alguns segundos, e então Martha repousou a cabeça no
ombro de Alessandro.

— Você sabe que eu te amo.

— Sim, eu sei.

— O rato se alimentou? — Perguntou Alessandro.

O rato de laboratório se encontrava catatônico dentro


da câmara. Ele não se movia senão pra respirar, e, de
qualquer forma, não saia do lugar. Parecia quase que estava
morto ou em coma.

— Não. — Respondeu Kickett. — Não foi dada comida


para ele ainda. Mas essa é uma das coisas que vocês podem
fazer.

Alessandro pegou uma bola de ração, e a introduziu


por uma porta na parte de cima da câmara. Ela caiu em
frente ao ratinho, um pouco à direita. Todos ficaram
olhando vidrados, na expectativa de que o rato se movesse
para comer, mas o rato branco pareceu nem notar.

— Temos como fazer uma ressonância magnética no


rato? — Sugeriu Martha.
62
A FORTALEZA DE GELO

— Temos sim. — Kickett foi até o monitor do


computador que monitorava a câmera, e, após digitar uma
série de comandos, apareceu na tela a imagem da
ressonância de um cérebro, com as ondas coloridas se
movendo constantemente.

Bem Juma se aproximou e ficou analisando a imagem


bem de perto.

— Isso não faz sentido. Apesar de o rato estar parado,


está cheio de atividade cerebral. É quase como se ele fosse
um recém-nascido, e estivesse descobrindo seus processos
nervosos.

— Eu tive uma ideia! — Alessandro se sentiu eufórico.


— Podemos aplicar eletrochoques para ver como o rato iria
reagir!

— É uma ideia interessante. — Comentou Lee Kickett.


— O equipamento de eletrochoque está na outra sala, no
armário de ferramentas, na área de eletrônicos.

Alessandro assentiu e andou em direção à sala,


parando em frente ao armário no qual lia-se “ferramentas”.
Ele respirou fundo, e virou-se para trás. Agora, estava de
frente para uma geladeira. O problema é que haviam três.
“Onde estaria?” Alessandro sabia que teria pouco tempo.

Ele abriu a geladeira. Havia vários frascos, mas não


estava lá. “Droga.” Passou para a próxima, seus olhos
correndo por todos os cilindros de gelo lá dentro, e seu
corpo suando apesar do frio. Finalmente achou.

Pegando o cilindro do vírus em suas mãos, abriu a


calça do traje, e, por baixo, pegou do bolso de sua própria

63
A FORTALEZA DE GELO

calça uma ferramenta de punção e um frasco. Tremendo, ele


conseguiu retirar uma pequena parte do cilindro e
guardá-la num frasco. Seu corpo vibrou de emoção pelo
feito, e seus lábios formaram um sorriso, enquanto seus
olhos brilhavam.

— Senhor Bruzzone? — Kickett o interrompeu de seus


pensamentos e de sua euforia, fazendo-o deslizar a
ferramenta e fazer um pequeno corte no seu traje. “Merda,
merda, merda!!”

— Não acho a ferramenta, o senhor poderia me ajudar


por favor?

Tremendo, Alessandro guardou o cilindro de volta na


geladeira e a ferramenta e o frasco em seu bolso, fechando
de volta o traje. Enquanto ouvia os passos de Kickett, ele
abriu a porta do armário e fingiu estar procurando.

Ele não conseguia parar de pensar no corte que havia


feito no traje. Era um corte muito pequeno, provavelmente
não cortara sua mão, pois não havia sangue e também não
tinha sentido nada, mas mesmo assim, o medo era grande, e
ele ofegava, sua mente latejando enquanto pensava na
possibilidade de ter sido infectado.

Claro, era um risco que ele correu, e ele sabia disso,


mas mesmo assim, ser infectado por algo que nem sabia o
que era, por mais remota que fosse a possibilidade, o
aterrorizava. A solução que havia pensado era pedir, ao sair
do laboratório, para passar por um banho químico. Sim, era
isso que faria.

64
A FORTALEZA DE GELO

Kickett chegou logo em seguida, mas sua mente estava


tão dispersa, que pareceu demorar mais de um minuto. Ele
vasculhou o armário, e logo achou um objeto parecido com
uma vara.

— Aqui está.

Os dois voltaram e Alessandro pegou o aparelho de


eletrochoque. Novamente, pela porta superior, introduziu a
ferramenta, manuseando-a com luvas que estavam na
parede da câmara, presas à parede transparente, de modo
que ele podia interagir com o que estivesse dentro da
câmara sem realmente colocar suas mãos ali dentro.

O rato se contorceu de agonia ao sentir o choque, e


saiu correndo para o canto da câmara, fugindo.

— Ele está se movendo! — Martha sorriu, e olhou para


o seu marido.

Os dois se encararam por menos de um segundo, mas


quando Martha viu a expressão no rosto de Alessandro, seu
sorriso foi substituído por uma expressão de apreensão.

— Acho que podemos partir para a terceira etapa do


experimento. — Kickett se dirigiu à outra sala, logo
retornando com um segundo rato, mas dessa vez, um
acinzentado.

— Eu posso colocá-lo? — Alessandro perguntou,


nervosamente. Tinha que ter o máximo de contato possível
com o vírus que justificasse que pedisse um banho químico.

Kickett o entregou a gaiola, sem dizer uma palavra.


Alessandro a conectou com a câmara e liberou o segundo
rato.
65
A FORTALEZA DE GELO

Os dois roedores cheiraram um ao outro, rondando a


gaiola e se observando, com desconfiança e ao mesmo
tempo com interesse. Até que aconteceu uma coisa
extremamente inusitada.

O rato já infectado correu em direção ao outro, que


tentou fugir, espremendo-se no canto da câmara, mas não
havia para onde ir. O rato branco ficou de pé nas patas
traseiras e se jogou em cima do cinza, então os dois
começaram a brigar. Quando o infectado fez um rasgo com
as suas unhas nas costas do outro, ele parou e perdeu o
interesse, acomodando-se bem no centro da câmara,
enquanto o outro tremia aterrorizado, com sangue
escorrendo por seus pelos.

Os cientistas olharam um para os outros, perplexos


com o que haviam acabado de ver.

— O que foi isso? — Perguntou Alessandro.

— Eu não sei. — Respondeu Martha.

Bem Juma também balançou a cabeça.

Durante a janta, todos discutiam sobre as descobertas


recentes sobre o vírus. A essa altura, as hipóteses corriam
para os lugares mais inimagináveis.

— Vocês já viram o filme “O Paciente Número 0”? —


Zhao estava mais entusiasmado que Alessandro naquela
noite. — Pode ser algo assim! Um vírus que transforma as
pessoas em zumbis!

Todos riram.

66
A FORTALEZA DE GELO

— Para falar a verdade, não acho tão improvável. —


Comentou Bem Juma. — Tendo em vista o que nós vimos.

— Eu também não acho improvável. — Neville


permanecia sério. — Claro que zumbi não é um termo
técnico, mas o vírus pode de alguma forma controlar a
atividade cerebral do infectado. Como se ele não tivesse
mais controle sobre o próprio sistema nervoso. Ainda
assim, nunca vimos algum vírus assim em toda a história
da ciência.

— Assustador. — Comentou Amanda.

Naquela noite, Alessandro permanecia em silêncio.


Em parte, por seu medo de ter sido infectado, em parte pela
seriedade que a situação tinha atingido, e seu estado de
humor sempre no alto havia chegado a um nível mais
introspectivo. O banho químico não foi o suficiente para
tranquilizá-lo.

Alessandro olhou para seu prato, percebendo que


estava vazio. Mas não lembrava de ter comido. Não
lembrava o que tinha comido. Começou a suar frio. Olhou
ao redor, e se sentiu desconexo da conversa. Percebeu que
era um homem quem falava agora, mas não lembrava do
nome dele.

— Temos... amanhã... entende?

Outro homem respondeu.

— Sim... até... porque...

Alessandro percebeu que não sabia onde estava. Não


conseguia mais pensar direito, e viu alguém se levantar e

67
A FORTALEZA DE GELO

aproximar-se dele, mas não conseguia identificar quem era


ou o que dizia. Essa foi a última coisa que viu.

— Alessandro, está tudo bem? — Amanda notou o


olhar vago do cientista, como se não estivesse ali presente, e
se aproximou dele, passando a mão em frente dos seus
olhos. Sem reação.

Subitamente, Alessandro começou a ter um ataque


convulsivo, seus olhos se revirando, saliva escorrendo pela
sua boca, e seu corpo tendo espasmos violentos.

Amanda arregalou os olhos e se afastou. Lágrimas


escorriam de seus olhos, e seu corpo tremia de medo.

Ele havia sido infectado.

68
A FORTALEZA DE GELO

PARTE 2
O Vírus

69
A FORTALEZA DE GELO

CAPÍTULO 11
— Não, não, não! — Martha gritava enquanto lágrimas
escorriam pelo seu rosto. — Não pode ser, por favor,
deixem eu ver meu marido!!

Klaus a segurou por trás, impedindo que se


aproximasse de Alessandro, enquanto ela se debatia com
toda a sua energia.

— A senhora deve entender. — Alan Richards


explicava pacientemente. — Não pode se arriscar a tocar
nele agora. — Ele suspirou. — Não se preocupe, seu marido
ficará bem. Vamos levá-lo para a ala médica.

Richards e Kickett usavam roupas de segurança,


enquanto transportavam o corpo de Alessandro dentro de
uma espécie de casulo transparente, em cima de uma maca.
Martha seguiu os dois pelos corredores. O diretor virou
para trás.

— Será melhor se apenas a senhora Bruzzone vier


conosco. Vocês podem ficar aqui, e não se preocupem. Tudo
vai dar certo.

A caminhada pelos corredores parecia interminável


para Martha. Sentia que seu mundo inteiro estava
desabando de uma vez, esquecendo de sua carreira,
esquecendo do que estava fazendo ali, importando apenas
uma coisa: a vida de Alessandro.

Martha fez uma promessa silenciosa de que se seu


marido sobrevivesse, eles voltariam para casa, deixariam
para trás a amostra do vírus e desistiriam da pesquisa. Ela

70
A FORTALEZA DE GELO

faria qualquer coisa, daria qualquer coisa pra que ele ficasse
bem.

Richards abriu uma porta e rapidamente ele e Kickett


entraram, Martha logo atrás. Era uma sala ampla, dividida
em duas por uma parede de acrílico transparente.

Do lado que eles estavam, havia um monitor e um


armário de remédios, e do outro havia uma cama de
hospital com alguns equipamentos. Martha conhecia bem
aquele tipo de sala. Ela mesma havia projetado. Servia para
monitorar as condições de um paciente em quarentena, de
forma remota.

Richards e Kickett estavam passando pela porta


transparente até o outro lado da sala. Antes que Martha
pudesse entrar também, Richards gesticulou para que
esperasse.

— É melhor você ficar desse lado da sala.

Martha obedeceu.

Eles tiraram Alessandro daquele casulo e o colocaram


na cama, conectando ao corpo dele vários medidores, em
seguida voltando para a sala onde Martha esperava.

Finalmente os dois tiraram suas roupas de proteção, e


as guardaram num armário perto da porta.

— Eu sei que a senhora conhece essa sala. —


Comentou Richards. — Nós pudemos aproveitar muitas
invenções suas aqui. — Alguns segundos de silêncio se
passaram. — Nós vamos cuidar do seu marido.

71
A FORTALEZA DE GELO

Richards sorriu, e Martha se permitiu dar um sorriso


leve também.

— Isso já aconteceu antes?

— Mais do que a senhora imagina.

Kickett passou por trás dos dois e se dirigiu ao


monitor, dando uma série de comandos e observando o que
havia escrito na tela.

— Sabe — Richards continuou. — Ninguém até hoje


sofreu um acidente fatal nessa estação. Ela tem 50 anos. —
Ele olhou diretamente nos olhos de Martha, confortando-a.
— E eu sei que vai continuar assim.

— Obrigada. — Martha se sentia mais calma do que há


momentos atrás, no corredor. Sentia agora que seu marido
estava em boas mãos, com pessoas competentes. Mais do
que isso. Sentia que podia ajudar. — Como ele está? — Ela
perguntou para Kickett, que verificava os dados pelo
monitor.

— Ele está bem. A atividade corporal é mínima, ele


respira, realiza suas funções fundamentais, mas seu corpo
está dormente.

— Ele está em coma?

— Não totalmente. Ele ainda consegue ouvir, sentir,


comunicar-se com o mundo ao redor. É mais como se ele
estivesse dormindo.

Os três ficaram a noite inteira naquela pequena sala,


cada um em uma cadeira. Kickett não tirava os olhos do
monitor. As horas se passaram, e Richards pegou no sono,

72
A FORTALEZA DE GELO

Kickett estava com os olhos semicerrados, mas Martha não


conseguia dormir de maneira alguma. Sua mente vagava
pelas memórias com Alessandro.

Era estranho pensar em como até há pouquíssimo


tempo Alessandro era uma certeza em sua vida, alguém
que sempre estaria ali. E agora ele era a maior incerteza,
alguém que ela tinha medo que não pudesse estar ao lado
dela no dia seguinte.

— Convenção chata essa, não?

Martha lembrou do domingo no qual os dois se


conheceram, há quase seis anos, na convenção anual de
biogenética da Itália. Alessandro estava com 28 anos e
Martha com 29. Ele usava um belo terno preto e os cabelos
castanhos penteados para trás. Mas foi a gravata do Toy
Story que chamou a atenção de Martha.

— Sim. — Ela deu um riso abafado. Os dois ficaram


em silêncio por alguns segundos, apenas sorrindo um para
o outro, e, ao que parecia, ambos buscavam algo para dizer
e quebrar o silêncio. — Por que essa gravata?

— O que tem a minha gravata?

Martha riu.

— Ela é de um desenho infantil!

— Não é qualquer desenho infantil. É um desenho


sobre relação entre pessoas, sobre amizade, sobre filosofia.
É de fato um desenho muito importante. — Martha riu mais
ainda. — E também foi meu pai quem me deu quando eu
tinha oito anos. É uma lembrança querida que eu tenho
dele.
73
A FORTALEZA DE GELO

— Ah desculpa... — Ela ficou vermelha. — Eu não quis


fazer pouco caso, eu...

— Não se preocupa — Alessandro riu e fez um gesto


com a mão, dizendo para ela não se preocupar. — Você não
precisa se desculpar. Meu pai era uma pessoa maravilhosa.
Eu sempre gostei dessa gravata, é algo que eu continuo
usando toda vez que eu quero tirar a seriedade de uma
situação. — Alessandro se virou para o podium, onde
estava de pé o palestrante. — Principalmente uma situação
chata como essa. — A mulher sorriu e concordou. Ele
estendeu a mão. — Sou Alessandro.

— Martha. — Ela sorriu, e apertou a mão dele.

O som de um alarme tirou Martha de seus


pensamentos e despertou Richards.

— O que está acontecendo? — Ela perguntou.

— Alessandro está tendo uma parada cardíaca! —


Respondeu Kickett.

Martha olhou para a sala transparente ao lado, seu


marido convulsionando ali dentro, com espasmos violentos.
Ela começou a entrar em desespero novamente. Os
batimentos subiam em uma velocidade assustadora, e ela
sabia que em menos de 30 segundos seu coração iria parar.

Sem titubear, ela foi até o armário, pegou um frasco de


um medicamento, e colocou a quantidade correta em uma
seringa. Ainda tinha 20 segundos.

— O que a senhora vai fazer? — Os olhos de Richards


se arregalaram.

74
A FORTALEZA DE GELO

Ela não respondeu, apenas andou em direção à porta


do quarto e a abriu. Richards correu na direção dela.

— Não faça isso! Coloque a roupa de segurança!

— Você sabe que não vai dar tempo!

Ela correu em direção à cama de Alessandro, no exato


momento que seu coração parou, e aplicou a injeção em seu
braço. Nada. Com o coração na boca, Martha esperou a
pulsação de Alessandro voltar. E voltou. Seu corpo calmo, e
seu coração batendo no ritmo correto. Martha sorriu e virou
para voltar pela porta.

Alessandro agarrou seu braço e apertou seu pulso.


Martha arregalou os olhos e olhou para trás. Seu marido
estava com os olhos abertos em um olhar vidrado, sua
pupila dilatada, deitado de lado enquanto segurava o braço
de Martha com uma força assustadora. Ela tentou se
desvencilhar, e então ele inclinou a cabeça para frente e um
jorro de sangue saiu pela sua boca, molhando o rosto e a
camisa de Martha. Alessandro a soltou, voltando a deitar na
cama.

Martha correu de volta para a porta, mas Richards


fechou e trancou por fora.

— Não! O que você está fazendo? — Ela chorou e


tentou desesperadamente abrir a porta, ou quebrar a parede
transparente.

— Sinto muito. A senhora pode ter sido contaminada.


Sinto muito mesmo. — Ele virou para Kickett. — Lee, pegue
outra cama. Vamos precisar monitorar os dois.

75
A FORTALEZA DE GELO

Kickett assentiu e saiu da sala, enquanto Richards a


encarava do outro lado da parede.

— Por favor! Por favor!

Richards desviou o olhar e também saiu da sala.

— Socorro!! — Ela gritou o mais alto que podia. —


Socorro!!!

Martha bateu na porta, chutou, tentou forçar para


abri-la, talvez por minutos, até finalmente desistir, sentar no
chão e chorar.

Ela segurou a mão de seu marido com suas duas mãos.

— Eu te amo. Você sabe. Eu sei que você sabe.

Se fosse para morrerem, pelo menos morreriam juntos.

76
A FORTALEZA DE GELO

CAPÍTULO 12
Naquela noite, Alan Richards reuniu os seis cientistas
na sala de refeições. Bem Juma olhava para baixo, Nicole
Carter parecia mais fechada do que de costume, o olhar de
Zhao estava distante.

— Vocês sabem por que eu os reuni aqui. — Começou.


— Ainda não sabemos como Alessandro Bruzzone foi
infectado, pode ter sido por falha nossa, mas o fato é que...
— Richards procurou as palavras certas. — Ele está com o
vírus. Martha Bruzzone também está. Temos duas pessoas
nessa base com uma doença que desconhecemos. Teremos
que trabalhar em uma solução para isso. Temos os ratos,
começaremos a fazer testes sobre uma cura.

Alan pensou sobre as possibilidades. Era


relativamente improvável que pudessem descobrir alguma
forma de eliminar o vírus do organismo antes que
Alessandro e Martha... Richards fechou os olhos e passou a
mão pelo rosto. “É melhor nem pensar nisso”. Tinham que
tentar. Ninguém iria morrer na sua estação.

Já houve contaminações antes, mas não como Alan


dera a entender à Martha. Foram vazamentos químicos, ou
contato com produtos perigosos. Aquilo não tinha
precedentes. Ele respirou fundo. Não desistiria, e nem
deixaria que os outros desistissem.

— Por hora, tentem dormir. Apesar de a situação ser


inusitada, tenho certeza de que vamos contorná-la. — Ele
olhou para cada um dos oito individualmente. — Temos

77
A FORTALEZA DE GELO

aqui uma equipe de elite dos melhores cientistas do mundo.


Vamos conseguir.

Com essas palavras, Alan se virou e saiu com Kickett.


Não dormiria naquela noite, ele sabia. Tinha que pensar no
que iria fazer para lidar com o vírus.

...

Às 5 da manhã, Lee e Alan se reuniram sozinhos no


escritório. Tinham que traçar um plano o quanto antes.

— Eles não vão conseguir descobrir uma cura a tempo,


você sabe que não é possível. — Disse Lee.

— Tem duas questões, nesse caso. A primeira é que é


sim possível. Já foi feito antes, anos atrás, por uma equipe
sueca. Aqui temos provavelmente a melhor equipe do
mundo. A segunda questão é que eu acredito que isso seja o
certo a fazer. Não podemos simplesmente deixá-los morrer.

— Essa equipe sueca que você citou não descobriu a


cura para um vírus. Eles simplesmente trataram um
cientista que foi infectado por um vírus já conhecido. Já
existia um tratamento padrão. Eu não só acho que podemos
deixá-los morrer, como devemos. Temos um vírus aqui,
sobre o qual não sabemos quase nada e que pode se alastrar
como uma epidemia se não o controlarmos.

— Está sugerindo que devemos cometer homicídio?

— Não. Estou sugerindo que devemos sacrificar duas


vidas para evitar a morte de milhões.

Alan balançou a cabeça.


78
A FORTALEZA DE GELO

— Ninguém vai morrer. Não enquanto eu puder


evitar.

Às 6 da manhã, todos estavam na sala de reuniões.

— Enquanto até agora vocês estavam divididos em


equipes, dessa vez, trabalharão todos em conjunto. — Disse
Alan. — Não há tempo a perder, vão começar já. Eu e Lee
Kickett iremos cuidar de Martha e Alessandro Bruzzone.
Vamos salvar as vidas daquelas pessoas.

Alan assentiu e saiu da sala, seguido por Kickett, que


estava com uma expressão fechada.

— Isso é um jogo pra você, não é? — Disse Lee,


rispidamente.

— Como é? — Alan se irritou.

— Sabe do que eu estou falando. Você não faz isso


pelas pessoas, pelos Bruzzone. Não. Você faz isso porque
não quer manchar o nome da estação e porque não quer
ceder. Você acha que pode evitar qualquer mínimo acidente
na sua base. Já te vi fazendo isso antes. Você está fazendo
isso por você. Vocês simplesmente quer ganhar.

Richards parou no caminho e se virou para Kickett,


sem perder a calma.

— Isso não é um jogo. Isso é a coisa certa a se fazer.

79
A FORTALEZA DE GELO

— Não, não é! A coisa certa é o protocolo, e o


protocolo não é esse! Temos que sacrificar os dois, e você
sabe disso.

— Não na minha base. Não enquanto eu estiver aqui.


E eu me recuso a continuar discutindo isso com você.

Lee bufou, mas continuou seguindo Alan.

...

Kickett abriu a porta da sala de quarentena.


Alessandro e Martha estavam de pé e apoiavam suas mãos
na parede de vidro, com um olhar petrificado para o vazio,
seus olhos quase que inteiramente enegrecidos. Lee sentiu
um calafrio percorrer sua espinha. Olhou para trás, e Alan
também estava boquiaberto.

Quando eles entraram na sala, os olhares de


Alessandro e de Martha se viraram para Kickett,
acompanhando seu movimento.

— Pra mim chega. Vou pegar uma arma.

— O que?! — Alan gritou.

— E se eles fugirem? O que você vai fazer? Você sabe


como os ratos se comportaram. E se eles forem agressivos?
E se eles contaminarem as outras pessoas? Isso já foi longe
demais.

Lee foi em direção à porta, mas Alan segurou seu


braço.

— Você não pode matá-los assim.

80
A FORTALEZA DE GELO

— Eu não vou matá-los. Pelo menos não ainda.


Apenas se eles tentarem fugir.

Kickett se desvencilhou e saiu do laboratório. Correu


pelos corredores até a sala de armamento. Abriu o armário
e pegou uma pistola. Colocou 6 balas. Lee correu de volta
para a sala de quarentena, colocando sua mão no leitor de
digitais para abrir a porta.

Alessandro e Martha, ou o que restara deles, estavam


tentando quebrar o acrílico da sala de quarentena. Martha
pegou o monitor da sala e atirou contra o acrílico,
provocando uma rachadura. Kickett empunhou a arma.

Na terceira batida, o acrílico se quebrou em vários


pedaços, e, quando Martha ia tentar passar pelo buraco,
Kickett a atingiu na cabeça com uma bala. A cientista caiu
para trás, o sangue manchando o chão do laboratório.
Alessandro tentou passar pelo buraco também,
arrastando-se pelo meio dos cacos, enquanto cortava sua
própria pele com o movimento, rasgando sua barriga.

Kickett mirou mais uma vez e atirou. O corpo de


Alessandro caiu sem vida, metade para dentro da sala, e
metade para fora. O sangue cobria a sala de quarentena e
parte do laboratório. Richards estava pasmo.

— Que merda você fez? — Ele colocou as mãos na


cabeça, e andou pela sala de forma eufórica. — O que
vamos dizer para todos os outros cientistas?

— A verdade. — Kickett passou a arma de uma mão


para a outra. — Pensando bem, não podemos sair dessa

81
A FORTALEZA DE GELO

sala. E se nós estivermos contaminados? Tem micro


gotículas de sangue por todo o laboratório.

— Sim... — Alan suspirou. — Você está certo. Merda...


Eu não sei o que dizer.

— Vamos fazer o seguinte. Ficaremos alguns dias


isolados dos outros, nas nossas acomodações. Alessandro
está aqui há três dias, demorou menos de 48 horas para
apresentar os primeiros sintomas, desde que ele chegou.
Então ficaremos aqui por 48 horas.

Bem não conseguia se acalmar. Todos estavam na


cozinha, sentados ao redor da mesa sem dizer uma palavra.
Havia muita coisa para pensar. Acima de tudo, sentia medo
de morrer. Não por si mesmo, mas por algo maior que ele.

Sentia que tinha trabalhos não terminados que eram


mais importantes que a sua própria existência. Trabalhos
que poderiam auxiliar milhões de pessoas que padecem de
câncer. E se ele morresse, quem iria continuar seus projetos?
As suas pesquisas morreriam com ele. E Bem não conseguia
imaginar nada pior do que isso.

— Bom dia, colegas. — A voz de Kickett soou pelos


alto falantes. — Acredito ser necessário contar para todos o
que aconteceu hoje. Alessandro Bruzzone e Martha
Bruzzone tentaram fugir da quarentena. Eles ficaram
agressivos, quebraram o vidro, agiram de forma
animalesca. Não estavam mais respondendo por si. Em
nome da segurança de todos nós, tive que atirar neles. Eu e

82
A FORTALEZA DE GELO

Alan Richards podemos ter sido contaminados, então


ficaremos em quarentena por 48 horas. Tendo isso em vista,
os testes foram cancelados, para evitar o contato.
Atualizarei vocês com notícias, enquanto isso tentem fazer
daqui a sua casa. Não permitirei acesso aos laboratórios,
então sua locomoção ficará restrita aos dormitórios, ao
refeitório, e à sala de recreação. Vocês receberão um mapa
do complexo nos seus celulares pela intranet.

— É isso. — Neville se afundou na cadeira. — Vamos


morrer também, é só uma questão de tempo.

— Não seja tão pessimista. Ninguém mais vai morrer.


Estamos conseguindo controlar o vírus. — Disse Bem.

— Não estamos conseguindo controlar. Alessandro e


Martha morreram, logo Kickett e Richards podem pegar
também, nós podemos pegar. Estamos em um ambiente
fechado, não temos para onde fugir. E nem devemos,
porque se tivermos contato com alguém, vamos transmitir
para o mundo inteiro. Uma sentença de morte.

Todos os cientistas ficaram em silêncio. Até que ele foi


quebrado por Zhao colocando macarrão dentro da panela e
ligando o fogão elétrico. De repente, todos estavam olhando
para ele. Quando Zhao percebeu isso, ele olhou ao redor
com um ar sério.

— Eu esquentei só pra mim, vocês todos vão querer


também? — Bem conseguiu sorrir. — Porque eu posso
esquentar mais se quiserem. — Para enfatizar, Zhao pegou
a caixa de macarrão.

83
A FORTALEZA DE GELO

— Eu vou querer! — Disse Klaus, adiantando um


passo. — Mas eu vou ajudar a fazer. Vou fazer ovos
mexidos, que todo mundo sabe que combina com macarrão.
Alguém quer cortar uma cebola aqui?

Bem se levantou para cortar, e logo todos estavam


ajudando a fazer um belo almoço. Neville se levantou e se
prontificou a ajudar.

— Eu faço uma bela vitamina de frutas.

...

Kickett sentava no laboratório, de frente para a tela do


microscópio, enquanto Richards fazia testes nos ratos com
um químico fortalecedor do sistema imunológico.

Lee olhou para trás e viu Alan parado, apenas olhando


fixamente para os ratos.

— Está tudo bem Alan?

Distraído, Richards não respondeu. Suor escorria pelo


seu rosto, e sua respiração soava ofegante.

— Alan?

Richards se virou para olhar para Kickett, e deu um


leve sorriso.

— Sim?

— Chegou a alguma conclusão com as cobaias?

— Isso leva tempo. Eles parecem mais... — Alan


gesticulou no ar à procura de uma palavra adequada. —

84
A FORTALEZA DE GELO

Calmos. — Ele fitou bem os ratos, com um grande interesse


no olhar. — Eles não fazem nada, nada. Absolutamente em
paz.

— Alan, você não está bem.

— Estou, estou sim.

— Não. Você foi infectado. Você está suando, está


lento, cansado. A gente tem que se isolar.

— Mas não temos mais sala de quarentena.

Kickett parou pensativo.

— Tem algo que podemos fazer. O lado do laboratório.


Eu vou usar o computador do outro extremo, você fica aqui.

Sem dizer mais nada, Kickett se levantou e saiu.


Richards nem desviou o olhar.

Depois de algumas horas, Kickett virou para trás e viu


a cadeira de Richards vazia.

— Alan?!! — Kickett chamou. Não era possível que ele


tivesse quebrado a quarentena. — Onde você foi?

Virando o corredor, Richards andava aparentemente


sem rumo, confuso, com um olhar petrificado para o chão.

— O que aconteceu? Por que você saiu da sala?

Richards abriu a boca para responder, mas a voz não


saia, apenas alguns sons fracos e sem sentido. A boca
continuou abrindo, até ficar em uma posição que nenhum

85
A FORTALEZA DE GELO

ser humano normal deixaria, e as mandíbulas estalaram. De


forma meio desajeitada, Richards correu na direção de
Kickett.

Merda!

86
A FORTALEZA DE GELO

CAPÍTULO 13
Kickett correu desvairadamente pelos corredores da
estação. Um grito animalesco ecoava logo atrás dele.
Richards, ou o que quer que aquilo fosse, o perseguia de
forma desajeitada.

Lee se perguntou o que deveria fazer. A única solução


parecia matar Alan, assim como tinha matado Alessandro e
Martha.

Sentiu uma dor no baço, mas continuou correndo.


Percebeu que ele estava ficando mais lento, enquanto Alan
não perdia o ritmo. Ele estava cada vez mais próximo.

Kickett sentiu seu coração acelerando e sua respiração


ficando mais rápida.

Seus olhos se fixaram em um extintor de incêndio em


uma das paredes. Um plano começou a se formar na sua
cabeça. Com as mãos trêmulas, soltou o objeto da parede e
ficou esperando pela criatura.

Assim que Alan chegou, sua boca aberta de forma anti


natural e seus braços pendendo na frente de seu corpo, Lee
pegou o extintor e bateu na cabeça dele com a maior força
que conseguiu.

Richards caiu no chão, tentando se levantar. Antes que


ele conseguisse fazer isso, Kickett pegou o extintor e
continuou atingindo sua cabeça, com vários golpes.

O som do crânio de Richards quebrando ressoou pelos


corredores, e o sangue espirrou em todas as direções.
Inclusive no rosto de Lee.

87
A FORTALEZA DE GELO

Kickett largou o extintor de incêndio no chão e parou


de bater, assim que percebeu que o corpo de Richards já não
lutava mais.

Agora ele precisava tomar um banho químico. Era a


única coisa que restara a fazer.

Amanda jogava cartas com Nicole, Klaus e Zhao na


sala de recreação, enquanto Bem e Neville conversavam
num banco ao lado.

Kickett entrou no salão, ofegante. Todos se levantaram


e olharam pra ele.

— Eu matei o Alan. Ele se tornou alguma coisa que…


— Kickett fez uma pausa. — Eu não sei explicar. Eu não sei
com o que estamos lidando aqui. Mas acho que finalmente
acabou.

— E agora? — Perguntou Zhao. — O que vamos fazer?

— Vocês vão para casa. Amanhã eu chamarei um avião


que levará todos a seus países. A pesquisa acabou.

Os cientistas se entreolharam, enquanto Kickett dava a


meia volta e os deixava a sós.

Amanda não conseguia conceber o quão abruptamente


toda aquela pesquisa havia sido encerrada. Nunca tinha
visto nada assim.

88
A FORTALEZA DE GELO

Bem acordou no meio da noite com um barulho em


seu quarto. Esfregou os olhos enquanto despertava, dando
uma olhada na sala, sem se levantar. Seu coração acelerou
quando viu Lee Kickett parado como um fantasma a alguns
passos da sua cama.

— Kickett? O que…

Antes que Bem pudesse terminar a frase, Lee abriu a


boca, estendeu os braços e correu na direção dele. Os olhos
de Lee estavam vidrados, sem emoção, e o pescoço dele
estava se retorcendo.

Juma pulou da cama, bem na hora em que Kickett


subiu nela, emitindo um grunhido que lembrava a um lobo.

Sangue escorria pela boca da criatura, pingando no


lençol. Bem se afastou, percebendo que aquela coisa estava
prestes a dar o bote.

Lee pulou em cima do cientista, que pegou sua mala


para se defender. Ele empurrou Kickett com a bolsa e deu
um chute com as pernas, fazendo aquilo cair no chão, do
outro lado do quarto.

A criatura caiu de pé como um felino, preparando-se


para correr mais uma vez até Bem.

Juma abriu a porta o mais rápido que pode e correu


para o quarto ao lado. Entrou e fechou a porta. Girou a
chave para impedir que Kickett entrasse.

Ouviu o som da própria respiração, sabendo que


quase havia sido infectado. Ainda não conseguiu entender
o que tinha acabado de acontecer.

89
A FORTALEZA DE GELO

Bem procurou algo ao redor para impedir o


movimento da porta, encontrando uma cadeira. Colocou o
objeto abaixo da maçaneta.

— Quem é? — Era a voz de Amanda. — O que está


acontecendo?

— Fala baixo… — Sussurrou. Bem se aproximou da


mulher. — É o Kickett, ele estava no meu quarto, e ia me
atacar. Parece que ele está contaminado. Estava se
comportando de uma forma que… não parecia humana.

A maçaneta do quarto tentou girar, emperrando na


cadeira. Um rosnado veio do outro lado. Então começaram
diversas batidas contra a porta, o som de um corpo se
chocando contra ela.

Bem se afastou.

— O que a gente faz?? — Perguntou Amanda.

— Eu não sei… acho que não tem muito o que a gente


possa fazer. Você tem uma faca, um objeto pesado, algo que
a gente possa usar como arma?

Amanda fez que não com a cabeça. Subitamente, os


socos contra a porta pararam. Silêncio.

Depois do que pareceram minutos sem que ninguém


se pronunciasse, Amanda disse:

— Temos que avisar todo mundo. Se ele foi até o seu


quarto e até o meu, é provável que ele vá atrás dos outros.

— Merda! Verdade!

90
A FORTALEZA DE GELO

Amanda tirou a cadeira de baixo da maçaneta, e girou


a chave lentamente. Abriu a porta e os dois espiaram os
lados. Vazio. Silêncio.

Mesmo com aquela calma, Bem não conseguia tirar da


cabeça que Kickett ainda estava ali observando.

— Vamos. — Ela murmurou.

Eles foram até o quarto que ficava ao lado. Amanda


acendeu a luz.

— Nicole!

Ela abriu os olhos e se virou.

— O que foi? Aconteceu alguma coisa?

— O Kickett — disse Bem. — Ele apareceu no meu


quarto e tentou me atacar.

Nicole levantou, assustada.

— Ele foi infectado! Ele infectou você também?

— Não, eu consegui fugir antes.

— Vem, Nicole. — Disse Amanda. — Temos que


acordar os outros.

Os três foram até o próximo quarto. Quando abriram a


porta, as luzes já estavam acesas, e Jean Neville estava
sentado na cama, olhando para a parede.

— Jean? — Perguntou Amanda.

Ele se virou para a porta, distraidamente.

— Olá! Está tudo bem?

91
A FORTALEZA DE GELO

Bem franziu a testa. Era um comportamento no


mínimo suspeito. Parecia muito com como Lee estava no
dia anterior. Apático. De qualquer forma, Amanda apenas
disse:

— Não, não está. Precisamos nos reunir no refeitório.

Os seis cientistas foram até a sala de refeições. Eram 3


da madrugada. A porta da sala não tinha chave, diferente
das do quarto, mas Bem conseguiu bloquear a entrada com
uma cadeira debaixo da maçaneta.

— Muito bem… — Disse Jean. — E agora? Qual é o


próximo passo?

— Precisamos de um plano. — Afirmou Klaus. —


Temos que traçar como iremos agir para contornar esse
problema.

— Acho que devemos pedir ajuda pelo rádio. —


Amanda deu de ombros. — Não sabemos com o que
estamos lidando, e nossa melhor saída é um pedido de SOS.
Vamos embora daqui antes que mais algum de nós morra.

— Não é tão simples assim. — Interveio Juma. — O


Kickett foi no meu quarto e tentou me contaminar. Quem
garante que ele não passou no quarto de outro de vocês
antes? Quem garante que um de nós não está infectado?

Os seis trocaram olhares.

— Aquela coisa… — Continuou Bem. — Ela é esperta.


Ela toma controle da mente do hospedeiro e controla o
corpo dele. Se algum de nós estiver infectado, pode muito
bem estar fingindo. Pode ter um intruso entre nós e não

92
A FORTALEZA DE GELO

sabemos quem. Mas não podemos levar isso pra fora da


base. Não podemos contaminar o mundo inteiro.

A mensagem era clara para todos, especialmente para


Juma. A partir de agora, não poderiam confiar em ninguém.

— Temos todos que ir para o laboratório e testar nosso


sangue. — Sugeriu Neville. — Assim saberemos quem está
infectado ou não.

— É uma boa ideia. — Concordou Amanda.

— A questão é como conseguiremos chegar até lá. —


Resmungou Jean. — Não temos autorização, só o Richards e
o Kickett.

— Não só isso — Disse Bem. — Não digo que estamos


exatamente seguros aqui dentro. Mas fora dessas salas, não
conhecemos a estação, e Kickett… — Fez uma pausa. — Ele
pode usar isso como vantagem. Poderemos ser atacados a
qualquer momento.

Zhao respirou fundo.

— Podemos ser atacados aqui dentro, por qualquer


um de nós. E a questão é quem?

Juma olhou severamente para Neville.

— Quando entramos no quarto do Dr. Neville, ele


estava encarando a parede de uma forma peculiar, pra dizer
o mínimo. Eu me lembrei muito do jeito que Kickett estava
ontem. Letárgico, o olhar vidrado.

— O senhor está me acusando? — Jean levantou o tom


da voz.

93
A FORTALEZA DE GELO

— Entenda o meu lado. Como eu vou saber que você


não foi infectado?

— Ora! — Neville bufou. — Eu poderia dizer o mesmo


sobre você!

— Se acalmem! — Gritou Amanda. Todos ficaram


quietos, mas continuaram olhando uns para os outros,
desconfiados. — Pode ser qualquer um de nós, não temos
como saber quem até fazermos os testes.

Bem foi até as gavetas e pegou um facão.

— Se nós formos fazer os testes, vamos ter que


procurar Richards então. Ele está morto, não representa
mais uma ameaça. A única chance que temos é usar as
digitais dele pra passar entre as salas.

— Isso é perigoso. — Afirmou Klaus.

— É, é perigoso. Mas é o único jeito.

Juma tirou a cadeira e abriu a porta do refeitório. Eles


andaram pelo corredor da estação, que estava calmo. O
único som que reverberava era os passos de cada um deles.

No final do corredor, tinha uma porta que dava para a


saída dos aposentos. Bem a abriu. Eles continuaram o
caminho em direção ao laboratório.

O corpo de Alan Richards estava no chão, seu rosto


desfigurado, o crânio completamente quebrado,
distorcendo-se em uma massa disforme sem olhos.

Juma pegou a mão de Richards e o facão. Começou a


cortar. O som dos tendões se rompendo o enojou, mas
continuou.
94
A FORTALEZA DE GELO

Um murmúrio indistinguível veio do início do


corredor. Todos se viraram para trás. Kickett corria de
quatro, de uma forma nada humana. Seus olhos já estavam
inteiramente pretos, o pescoço retorcido em uma posição
estranha e a mandíbula escancarada.

Mas o que mais chamou a atenção de Bem foram seus


olhos. Estavam totalmente pretos, como bolas de carvão.

— Porra! — Bem gritou, pegando a faca e indo na


direção de Lee.

Kickett agarrou Zhao e o derrubou no chão. Bem


correu até ele e lhe estendeu a mão. O cientista chinês
tentou agarrá-lo, mas Lee o puxou com uma força e uma
velocidade descomunais.

Logo Zhao desapareceu no final do corredor.

Bem virou de costas e voltou a cortar a mão de


Richards.

— Nós temos que ajudar o Zhao! — Gritou Amanda.

— Não tem mais o que a gente possa fazer. Se formos


atrás dele, nós não sobreviveremos, temos que pensar nas
nossas vidas também.

Amanda bufou.

— Que se dane essa lógica pragmática. — Ela arrancou


a faca da mão de Bem, sem que ele esperasse. — Você não é
mais importante que ele, e nem eu.

Dizendo isso, ela correu pelos corredores atrás de Lee.

95
A FORTALEZA DE GELO

— Volta aqui! Isso é burrice!! — Gritou Bem,


indignado.

Nicole se moveu para correr atrás de Amanda, mas


Juma a impediu.

— Fiquem aqui, nós já vamos voltar. Se algo acontecer,


corram, mas não se separem. Se não tiver mais pra onde
correr… — Bem pegou um extintor de incêndio do chão e
colocou nas mãos de Nicole. — Usem isso.

Com essas palavras, Juma correu atrás de Amanda.

Ele fez a curva, ficando de frente para um corredor


vazio.

— Amanda? — Ele gritou.

Sem resposta.

Andou em frente, até chegar a um momento em que


havia dois caminhos.

— Amanda! Você me ouve?

— Estou aqui!

Bem virou. A luz se apagou repentinamente,


deixando-o totalmente no escuro. Praguejou. Pegou o
celular do bolso, sua mão tremendo. Deslizou o dedo para
ligar a lanterna, mas o suor da sua palma impedia que o
comando funcionasse.

Sentiu sua respiração acelerando, o medo tomando


conta. Não. Tinha que ser racional. Finalmente conseguiu
ligar a lanterna, iluminando o caminho.

96
A FORTALEZA DE GELO

Continuou andando, iluminando todos os lados, sem


conseguir tirar da cabeça o pensamento de que podia ter
alguém perto dele, em um ponto não iluminado.

Uma mão tocou em seu ombro.

Bem virou de costas e iluminou o que tinha atrás dele,


colocando-se em uma posição defensiva.

— Calma, sou eu. — Sussurrou Amanda. — Kickett


deve estar por aqui.

— E se um de nós for a criatura? — Perguntou Klaus.

— Bom, se realmente for algum de nós, não temos


como saber. — Jean deu de ombros.

Nicolle respirava ofegante. Se um dos dois fosse a


coisa, o que ela faria? Para onde ela correria?

— Será que a criatura saberia das nossas vidas? Das


coisas mais profundas? Será que ela saberia, Doutor
Neville?

Jean suspirou e se pôs a pensar.

— Eu acredito que sim. Se ele tem acesso ao sistema


nervoso, pode acessar as memórias. Mas onde termina o
vírus e onde começa o ser humano? Para além da
necessidade de contaminar os outros, como podemos
diferenciar um saudável de um infectado?

— O senhor se lembra de algo de sua infância, Doutor


Neville?
97
A FORTALEZA DE GELO

— Eu me lembro sim… — Jean permaneceu


inexpressivo. — Eu tinha um ratinho, brincava muito com
ele. E um dia, ele fugiu. Eu procurei por horas, por dias,
mas não o achava de volta. Até que… — Neville engoliu em
seco. — Eu encontrei o seu corpo dias depois, o gato do
vizinho tinha brincado com ele. Dilacerado as vísceras só
por diversão. — Jean se virou para seu colega. — E o
senhor, Doutor Haussmann? Se lembra de algo?

Klaus sorriu.

— Coincidência, eu também tinha um rato. Eu


costumava costurar roupas pra ele. Eu chamava de Fatter,
porque ele era gordinho. Ele morreu de velho, com uns 5
anos.

Depois de um tempo em que todos ficaram em


silêncio, Klaus virou para Nicole e perguntou:

— E a senhorita, Doutora Carter? O que a senhorita se


lembra da sua infância.

Nicole se lembrava de vários momentos felizes com os


seus pais e seu irmão. Deus, como sentia falta deles, de ter
uma vida, de se divertir.

— Não. Eu… — A sua voz falhou. — Eu não quero


falar sobre isso.

Amanda e Bem se locomoveram no escuro, iluminados


pela lanterna do celular do sujeito.

Ouviram passos.
98
A FORTALEZA DE GELO

— Você ouviu isso? — Perguntou Amanda.

— Ouvi. — Sussurrou Bem. — Acho melhor


voltarmos. Se fossem de Zhao e ele ainda não estivesse
infectado, ele estaria correndo, não andando.

Amanda ficou parada, em conflito. O argumento de


Bem fazia sentido. Como encontrariam Zhao a essa altura?

De repente, a lanterna de Bem desligou.

— O que aconteceu?

Agora estavam no escuro.

— Acabou a bateria. — Bem bufou.

Amanda pegou o seu celular do bolso e ligou a


lanterna. Apontou para frente. A coisa estava a poucos
passos deles, aproximando-se furtivamente.

— Corre!! — Gritou Bem.

99
A FORTALEZA DE GELO

CAPÍTULO 14
Bem e Amanda correram pelos corredores, até chegar
a um beco iluminado. Era o mesmo do qual eles tinham
vindo.

Eles deram de cara com Neville, Nicole e Klaus,


parados em frente ao corpo de Richards. Nicole ainda
segurava o extintor.

Bem parou de correr quando chegou novamente o


corpo.

— Agora chega! — Gritou Juma, irritado. — Não


vamos nos separar mais. Nada de correr riscos, mesmo que
sob as melhores intenções.

— Mas Zhao… — Disse Amanda.

— Zhao está morto! Ou infectado! Não podemos mais


salvá-lo, e não podemos nos arriscar mais! — Bem
gesticulou. — Me dê a faca, Amanda.

Ela deu um passo para trás.

— Não vou pedir outra vez.

Amanda não se mexeu. Bem agarrou seu braço e


arrancou a faca de sua mão.

— Ei! — Gritou Neville. — Precisava fazer isso?

— De agora em diante, vocês vão me ouvir! — A voz


de Juma ficou mais intensa. — Vocês vão fazer o que eu
disser, e nós vamos sobreviver.

100
A FORTALEZA DE GELO

— Ah, isso virou uma ditadura agora? — Questionou


o francês.

Bem ignorou e se abaixou novamente ao lado do corpo


de Richards. Pegou a faca e procurou o ponto onde tinha
começado a cortar o pulso. Voltou a roçar o fio da lâmina
sobre os músculos, até chegar nos ossos. O som do rádio
sendo feito em pedaços o deixou desconfortável.

Finalmente o último pedaço de carne cedeu à lâmina


da faca, e Bem pegou a mão solta de Alan. O sangue não
pingava mais, já que o corpo estava morto há horas.

Vasculhou os bolsos do diretor e tirou um notepad.

Depois de alguns segundos, achou registrado no


equipamento algo que poderia ser útil.

— Aqui tem um mapa da instalação. — Pensou por


alguns segundos. — A sala de comunicação, onde têm
rádios pra fazermos um pedido de resgate, fica naquela
direção. — Bem apontou para o fim do corredor, o lado
oposto de onde tinham vindo.

Amanda seguiu Bem junto com os outros cientistas


pelos corredores da estação.

Passaram pelo enorme salão de entrada onde só havia


estado uma vez, no dia em que chegou.

Virando uma porta, atravessaram várias salas com


nomes que se referiam a equipamentos eletrônicos. “Sala do

101
A FORTALEZA DE GELO

Servidor”, “Sala das Câmeras”. Finalmente, Bem parou e


abriu uma porta.

— É aqui. — Disse Bem.

Era a única sala que eles tinham visto com uma janela.
Pelo vidro, dava para ver uma nevasca em meio à
escuridão. A vidraça tremia levemente com o vento.

Logo abaixo, tinha um microfone e uma estação de


sintonização de rádio.

— Certo. — Disse ele. — Fiquem aqui, mandem uma


mensagem de SOS. Eu já volto.

— Espere, onde você vai? — Perguntou Amanda,


suspeitando da atitude. Mas Bem já tinha saído e fechado a
porta.

Amanda Carvalho não confiava em Juma. Não sabia o


que ele havia ido fazer sozinho, sem contar para nenhum
deles. Mas com certeza não seria algo bom.

Aquele tom ditatorial dele, como Neville havia


chamado, com sua lógica excessivamente calculista, como
se a única vida que realmente importasse fosse a dele, tudo
isso a deixava incomodada.

Ela se sentou na cadeira e ligou o rádio. Um chiado se


iniciou.

— Ele estava desligado? — Perguntou Jean.

— Parece que sim. Esses tipos de rádio normalmente


têm uma bateria própria, para o caso de blackout. Por isso
eles ficam desligados, pra poupar a pilha interna.

102
A FORTALEZA DE GELO

Amanda leu uma lista de principais frequências na


mesa ao lado. Havia uma chamada “linha de emergência
australiana”.

A mulher sintonizou com a frequência de 873.5MHz.


Apertou o botão para ligar o microfone.

— Câmbio. Aqui quem fala é Amanda Carvalho.


Estamos com problemas na Estação Mason e precisamos de
resgate urgente. Corremos uma situação de perigo físico
aqui, estamos sendo ameaçados. Têm pelo menos 5
sobreviventes. Por favor, venham rápido! — Desligou.

Ela repousou na cadeira e deu um suspiro.

— Conseguimos. Provavelmente logo vai chegar a


ajuda.

— Agora só nos resta esperar. — Suspirou Neville.

De repente, a porta da sala se abriu, num baque.


Amanda deu um pulo na cadeira.

— Voltei. — Era Bem Juma. — Vamos para o


laboratório.

— Espere! — Amanda segurou seu braço, mas Bem se


desvencilhou. — Você nos deve uma explicação de onde
você estava.

— Eu não devo nada.

Neville se colocou no caminho de Juma.

— Deve sim. Temos o direito de saber, e temos o


direito de não confiar.

103
A FORTALEZA DE GELO

— Eu fui fazer algo que vai ajudar a gente. É tudo o


que posso dizer. Vocês saberão se for necessário. E espero
que não seja.

— Você…

Bem simplesmente empurrou Jean contra a parede,


tirando-o de seu caminho. Passou reto por ele, seguindo
pelo corredor.

Amanda estreitou os olhos, seguindo atrás dele. Tinha


que ter um jeito de pará-lo.

Os cinco percorreram novamente o caminho até


chegarem na sala onde tudo havia começado. Onde
Alessandro foi o primeiro a ser infectado.

Todos estavam sempre alertas, na iminência de, a


qualquer momento, Kickett aparecer outra vez.

Finalmente, chegaram na porta do laboratório. Ao


lado, tinha o leitor de digitais, onde Lee sempre colocava
sua mão para que a porta abrisse para eles. Juma pegou a
mão decepada de Richards e a colocou em cima do leitor.
Uma luz vermelha acendeu e um bipe foi ouvido.

— Não funcionou.

Um grito gutural ecoou pelos corredores, a alguns


metros dali.

— Tenta limpar o sangue, rápido! — Gritou Amanda.

Bem tentou esfregar a palma da mão com a sua


camisa, desesperadamente. O som de passos se
aproximava. Ele inseriu mais uma vez a mão no leitor.
Dessa vez, uma luz verde se acendeu e a porta abriu.
104
A FORTALEZA DE GELO

No fim do corredor, Kickett corria de quatro, com a


cabeça retorcida e os olhos negros.

— Rápido! — Gritou Bem, depois de ter entrado. Os


outros quatro o seguiram, e ele fechou a porta.

Kickett estava chegando.

— Ele tem a digital — lembrou Neville.

— Merda, verdade! — Praguejou Bem.

Amanda olhou para o lado e viu um painel que


controlava a porta. Socou o aparelho com força, quebrando
o vidro e o display. Faíscas saíram de uma fiação na parede,
e o leitor de digitais do outro lado da porta se apagou.

Lee chegou na frente deles. Ele se levantou e caminhou


até a porta. Naquele momento, a criatura fez algo que não
tinha feito até agora. Ela sorriu, exibindo uma boca com
dentes negros, sujos de sangue seco acúmulado, e o líquido
vermelho fresco escorrendo pelos lábios, como se estivesse
salivando. O rosto inexpressivo com os olhos pretos mudou
para uma expressão sádica.

Kickett colocou a mão no leitor de digitais. Nada.


Tentou outra vez. A porta não se mexeu. A coisa gritou de
frustração, sua boca se abrindo e estalando mais uma vez.

Ele se chocou contra a porta, mas o acrílico era


resistente. Continuou tentando por algumas vezes, até que,
por fim, desistiu e virou as costas, voltando a andar de
quatro.

— Conseguimos. — Murmurou Nicole.

105
A FORTALEZA DE GELO

— Todos coloquem as roupas de segurança, por favor.


— Neville gesticulou, apontando para o armário onde havia
exatamente cinco trajes de proteção. Um para cada.

Os cientistas vestiram as roupas e entraram no


laboratório.

Jean foi até a bancada e ligou o microscópio eletrônico.


Os ratos ainda estavam vivos, porém dormindo.

Neville pegou uma seringa e se voltou para os demais.

— Por favor, venham, eu vou testar cada um


individualmente.

— Não. — Disse Bem, bruscamente. — Como eu vou


saber que você não está infectado? Eu e Amanda nos
lembramos de quando entramos no seu quarto e você agiu
de uma forma suspeita.

— Não me envolva nessa discussão! — Protestou


Amanda, indignada.

— E quem me garante que você não está infectado? —


Retrucou Jean. — Você sumiu sem dizer nada quando a
gente chamou socorro pelo rádio. Nenhum de nós sabe o
que você foi fazer. Você se recusa a dizer!

— E se vocês dois estiverem infectados? — Questionou


Klaus.

— Eu posso garantir que não fui infectado. — Juma


afirmou categoricamente.

Bem tentou tomar a seringa da mão de Jean, mas ele a


afastou imediatamente.

106
A FORTALEZA DE GELO

— Sua palavra não é o bastante!

— Eu faço o teste. — Interveio Amanda. — Eu estava


no meu quarto quando o Bem entrou e não o ataquei. Se eu
estivesse contaminada, deveria ter atacado. E também fui
no quarto de cada um de vocês para acordá-los. Acho que
todos sabem que eu estou livre do vírus.

Neville e Bem trocaram olhares. Finalmente,


assentiram. Eles se afastaram e Amanda deu um passo à
frente. Jean lhe estendeu a seringa.

Amanda pegou a ferramenta.

— Certo, Bem, você primeiro.

Bem estendeu a mão e Amanda o encarou de forma


severa. Ele devolveu o olhar na mesma intensidade. Ela
espetou a ponta do dedo indicador do homem. Encheu
poucos mililitros da seringa e pegou uma proveta.
Depositou o conteúdo.

Ela colocou o sangue debaixo do microscópio e todos


olharam. Apenas células sanguíneas comuns. Hemácias,
plaquetas, leucócitos.

— Você está limpo. — Disse ela. Bem assentiu. —


Neville, agora o senhor, por favor.

O francês deu um passo à frente e engoliu em seco.


Estendeu a mão, tremendo. Amanda observou bem. Suor
escorria pela sua testa, seus olhos não conseguiam fitar os
da mulher. Ela tirou alguns mililitros e colocou na proveta.

Os cinco se viraram para o microscópio.

107
A FORTALEZA DE GELO

— Limpo também. — Jean suspirou de alívio. —


Doutor Haussmann, por favor, venha até aqui.

O cientista alemão deu um passo à frente e estendeu o


braço. Amanda ia colocar a seringa no dedo, mas Klaus
agarrou a mão dela e começou a abrir a boca.

— Ahhhh!! — Amanda gritou e deu um chute na


barriga dele com toda a sua força.

Klaus caiu para trás, retorcendo-se no chão, enquanto


sua boca continuava a abrir.

Bem pulou em cima da caixa toráxica do infectado,


quebrando vários ossos. Klaus vomitou muito sangue. Bem
se abaixou para esfaqueá-lo no peito, mas o alemão agarrou
a faca e a fincou no tornozelo de Juma.

O sujeito urrou de dor. Ele se abaixou e arrancou a


faca, sangue pingando da perna. Klaus sorriu e começou a
se levantar. Bem deixou a faca cair perto de seus pés.

Amanda chegou pelas costas de Haussmann e deu


outro chute, na lateral do corpo, fazendo-o cair novamente
no chão.

Em seguida, a cientista pisou várias vezes contra o


crânio da coisa, até ouvir o som de ossos quebrando.

Pedaços do cérebro de Klaus se esparramaram pelo


chão do laboratório.

Amanda ficou parada ao lado do corpo, trêmula.


Tinha acabado de assassinar uma pessoa. E de uma forma
brutal.

Bem mancou, sangue pingando de seu tornozelo.


108
A FORTALEZA DE GELO

— Você pode ter sido infectado! — Acusou Neville.

— Não fui. Por que teria sido?

— O sangue do Haussmann pode ter entrado em


contato com a sua ferida. — Jean apontou para a perna de
Bem.

— Pois bem, vamos resolver isso logo. Amanda, me


teste de novo.

Dessa vez, era Amanda que estava tremendo. O


choque pelo homicídio que tinha acabado de cometer
continuava perturbando-a.

— CCerto… — gaguejou. — Bem, me dê sua mão.

Juma estendeu o braço, confiante. Amanda extraiu


mais sangue.

Apreensivos, todos olharam para o monitor.

— Sem vírus. Está tudo bem. — Disse Amanda.

Ficaram em silêncio.

Amanda percebeu que para a contaminação acontecer,


era necessário uma boa exposição a uma grande quantidade
de sangue do infectado. Não bastava um mero contato.

— Vamos, Amanda. — Apressou Juma. — Pode


continuar a testagem.

Amanda assentiu.

— Nicole, por favor, sua vez.

A jovem assentiu e esticou a mão. Amanda usou a


seringa e colocou o conteúdo no microscópio.

109
A FORTALEZA DE GELO

— Você também está limpa. Agora só resta eu.

Ela pegou uma amostra do seu próprio sangue, de seu


dedo, e colocou na proveta.

— Também está limpo! — Ela sorriu. — Acabou!


Estamos livres!!

— SOCORRO!!

Todos se viraram quando ouviram um grito do lado de


fora do laboratório. Eles se aproximaram da porta e viram
Zhao do outro lado.

Cheung estava suando e respirando de forma


ofegante, visivelmente nervoso.

— Por favor, me ajudem! Me deixem entrar! — Ele


bateu na porta. — O Kickett está vindo! Rápido!! Por favor!

Amanda foi na sua direção, mas Bem a impediu.

— Não! Com toda a certeza ele está infectado! Lee


puxou ele pelos corredores, já passou o vírus pra ele.

— Eu não estou infectado, eu juro! — Zhao chorou. —


Eu consegui fugir logo depois. Fiquei correndo por horas!
Não sei quanto tempo demorei para encontrar vocês!! Por
favor, têm que acreditar em mim.

— Eu acredito. — Amanda inflou os peitos.

Bem se colocou no seu caminho. Ele era pelo menos


uns 20 centímetros maior que ela, além de ser mais forte.

— Eu não posso permitir que arrisque todos nós. —


Suspirou. — Seja racional, qual é a chance de Cheung ainda

110
A FORTALEZA DE GELO

não ter sido infectado? E qual é o custo de confiar nele?


Nossas vidas!

— E a vida dele? E deixar ele morrer não tem


problema?

— Nós podemos testá-lo assim que ele entrar. —


Garantiu Neville. — Demos conta do Klaus, daremos conta
de Zhao se ele estiver infectado também.

— Não. É muito arriscado. Não podemos por em risco


as nossas vidas em nome de uma pessoa, que muito
provavelmente já está perdida.

— Ou arriscamos, ou deixamos um ser humano


morrer. — Disse Amanda.

A mulher desviou de Juma e foi em direção à porta,


mas ele a segurou. Ela tentou se soltar.

— Me solta!!

— Não posso permitir!

Os dois começaram a lutar. Neville interveio e tentou


separar os dois.

Enquanto Bem estava distraído, Nicole foi na direção


da porta. Fez sinal de silêncio para Zhao, que assentiu. Pela
primeira vez em muitos anos, ia fazer a coisa certa. Ia salvar
a vida de alguém, mesmo sabendo dos riscos.

Ela puxou a porta de vidro, abrindo uma fresta para


que ele pudesse entrar.
111
A FORTALEZA DE GELO

— Não! — Gritou Bem, desesperado.

Um estrondo tomou conta do ambiente e Nicole sentiu


uma pontada na sua barriga. Ela levou as mãos ao local da
dor. Estava sangrando. Era um tiro. Bem Juma estava
segurando uma pistola, que ainda estava apontada para ela.

Nicole sentiu suas pernas ficando fracas e caiu no


chão.

112
A FORTALEZA DE GELO

CAPÍTULO 15
Amanda arregalou os olhos ao ver a arma prateada na
mão de Bem. Era isso o que ele tinha ido fazer quando
sumiu.

Raiva tomou conta da sua mente, uma vontade muito


grande de bater naquele homem. Ele tinha atirado em uma
pessoa inocente! Era uma situação claramente injusta.

Mas então Nicole caiu no chão, e outro sentimento


maior veio.

— Nicole!! — Amanda correu na sua direção. Ela


ajoelhou ao seu lado, lágrimas escorreram pelas suas
bochechas. — Vai ficar tudo bem, vai ficar tudo bem.

Seus olhos correram do rosto apreensivo da garota até


o sangramento na sua barriga. Ela não podia morrer.

Amanda se perguntou por que ela estava tão ansiosa


com essa ferida. Ela se importava com Nicole. Mas era mais
do que isso. Esse mero sentimento de se importar era algo
que ela tinha por cada cientista naquela instalação.

Nicole era mais que isso para ela. Amanda então


percebeu que tinha sentimentos maiores do que imaginava
por Nicole Carter.

Zhao conseguiu abrir a porta através da fresta e


entrou. Bem apontou a arma na sua direção.

— Não, por favor, eu…


113
A FORTALEZA DE GELO

Juma acertou um tiro no braço, fazendo com que o


jovem caísse no chão. Depois acertou outro no peito,
matando Cheung. Infectado ou não. A cabeça de Zhao
cedeu para o lado, seus olhos fechados.

Tomado pelo ódio, Neville se jogou em cima de Bem, e


os dois começaram a lutar.

Juma era muito mais forte do que aquele senhor de


sessenta anos. Com os dois já estando no chão, Bem
conseguiu ficar por cima do idoso, suas mãos apertando a
garganta e impedindo a passagem do ar.

Mas Neville não tinha a intenção de vencer uma briga


física. Sabia que não conseguiria. Sentia a falta de oxigênio
causar uma queimação no peito, e sabia que não tinha
muito tempo.

Esticou o braço e no movimento mais rápido que


conseguiu, pegou a faca que estava no chão e cravou na
lateral do pescoço de Bem.

Bem arregalou os olhos e levou a mão ao seu pescoço.


Sua traqueia havia sido rompida, e ele não conseguia falar.

Enquanto o sangue escorria e sua visão ficava


embaçada, Jean pegou a pistola prata de seu bolso e
apontou para ele.

Bem Juma tentou respirar, sentindo a falta de ar em


seus pulmões, como tomar uma bebida por um canudo

114
A FORTALEZA DE GELO

furado. Ele sabia que ia ser morto. Não tinha mais o que
pudesse fazer.

Lembrou-se de sua filha, em seus braços, em seus


últimos momentos. Lembrou-se da promessa que havia
feito a si mesmo de que encontraria uma cura. Percebeu que
tudo aquilo pelo que havia trabalhado nos últimos anos
seria perdido.

Sua vida havia chegado ao fim.

Amanda passou por Neville, que colocou a pistola na


mesa assim que Bem caiu no chão, sem vida.

— Posso ajudar, Amanda?

Ela fez que não com a cabeça.

— Não precisa. Eu tenho que fazer isso. E quero falar


com ela.

Jean assentiu.

Amanda voltou com um kit de primeiros socorros e


tirou o traje de Nicole. Começou removendo a parte da
cabeça, revelando o rosto úmido de Nicole.

— Desculpa… — Sussurrou a Carter.

— Pelo que? — Perguntou Amanda.

— Por não ter conseguido fazer a coisa certa.

115
A FORTALEZA DE GELO

— Nada disso é culpa sua. E você fez a coisa certa sim.


Você se arriscou para salvar outra pessoa. Você teve
coragem.

Carvalho tirou a parte central do traje, mostrando a


camisa ensanguentada da garota.

— Amanda… — Nicole sorriu.

— O que foi?

— Se a gente sobreviver, eu vou procurar uma vida


nova. Você gostaria de sair comigo fora daqui? — Amanda
riu e abraçou a ruiva. — Em um café ou algo do tipo? —
Continuou.

— Sim! — Amanda sorriu. Lágrimas agridoces caíram


de seus olhos. — Sim. Gostaria muito. — Amanda colocou a
mão na bochecha de Nicole. Estava fria. — Agora fica calma
que eu vou cuidar da sua ferida.

A mulher tirou o próprio capuz e beijou a testa de


Nicole. A menina sorriu e também colocou a mão em seu
rosto.

Ela levantou a camisa da moça. Amanda olhou para


baixo, nervosa. Mas deu um suspiro leve de alívio ao ver
que o tiro tinha pego apenas de raspão, arrancando um
pedaço da pele da barriga. Ainda assim, muito sangue
escorria.

— Viu? — Disse Amanda, sorrindo moderadamente.


— Foi só de raspão, você vai ficar bem. — Ela pegou a gaze
e fez um curativo na pele da Carter, estancando o
sangramento. — Pronto!

116
A FORTALEZA DE GELO

As duas continuaram se encarando por alguns


segundos.

Foram interrompidas por um grunhido. Era Kickett.


Ele estava dentro do laboratório.

Neville percebeu que tinham esquecido a porta aberta.


Procurou a arma na mesa, mas ela tinha sumido.

A coisa rastejou na direção deles, enquanto Jean correu


até o corpo de Bem para pegar a faca.

Antes que ele conseguisse, Lee se jogou em cima do


cientista, derrubando-o no chão. Sangue pingou pela boca
de Kickett, gotejando no capuz de Jean, atrapalhando sua
visão.

Ele tentou se arrastar o quanto o peso do monstro


permitia para chegar até o corpo de Juma. Jean se esticou
para tentar alcançar o objeto fincado na lateral do corpo.

Kickett tentou arrancar o capacete de Neville, mas


antes que conseguisse, ele fincou a faca no peito da criatura.

A coisa apenas gritou, sem ceder. Não havia morrido.


Neville ia pegar a faca novamente, mas Kickett agarrou sua
mão, impedindo.

Com a outra mão, a criatura começou a tirar o capuz


do traje de Jean. De repente, outra pessoa apareceu por trás
e arrancou a faca do peito de Kickett, cravando-a no seu
pescoço. Era Amanda, o sangue escorrendo de sua mão.

117
A FORTALEZA DE GELO

Lee Kicket caiu logo ao lado de Jean, morto.

Amanda lhe estendeu a mão, e o francês se levantou,


limpando o sangue de seu capacete com as costas da mão
enluvada.

Olhou ao redor. O corpo de Bem estava no chão, logo


ao lado do de Kickett, e Klaus com o seu crânio destruído
estava a alguns passos dali.

— Acabou? Conseguimos?

Amanda olhou para Nicole, ajudando-a a se levantar, e


servindo de apoio para a colega. As duas sorriam.

— Conseguimos!!

Uma onda de alívio contagiou o cientista.

Porém, Jean percebeu que Nicole examinava o


ambiente, seu olhar apreensivo. O sorriso logo desapareceu
de seu rosto. Os lábios da jovem tremeram enquanto ela
falava:

— Onde… onde está o corpo do Zhao?

118
A FORTALEZA DE GELO

CAPÍTULO 16
Os três começaram a procurar ao redor, e a culpa subiu
na cabeça de Nicole. Ela havia deixado entrar um infectado.
Tinha confiado e sido feita de trouxa.

— Eu estou aqui! — Zhao saiu detrás de uma estante


do laboratório, a pistola prateada em punho, apontando
alternadamente para cada um deles. Um sorriso sádico
estava estampado em seu rosto, e suas pupilas dilatadas.

A culpa logo foi sendo dividida com um sentimento


de revolta. Nicole tinha salvado a vida dele. Ou acreditou
ter salvo. E mesmo fazendo algo que acreditava ser bom,
acabou colocando todos em risco. Fora enganada.

— Eu confiei em você! — Disse Nicole, indignada.

— E fez bem em confiar, Nicole. Fez bem. — Cheung


fez uma pausa. — Vocês humanos não são capazes de
entender ainda, mas isso será bom para vocês também.
Serão mais resistentes, mais inteligentes. Vão viver mais,
sofrer menos. E o progresso vai ficar cada vez mais rápido.

Amanda franziu a testa.

— Quem… quem é você? Você não é o Zhao.

A criatura riu.

— Não, eu não sou Zhao Cheung. Eu tenho um nome,


mas esse corpo rudimentar não seria capaz de pronunciá-lo.

— Você não é um vírus. — Observou Nicole.

— Parabéns, senhorita Carter! Vocês duas são


realmente muito observadoras. De fato eu não sou um
119
A FORTALEZA DE GELO

vírus. Nossa espécie descobriu um jeito de se espalhar por


todos os cantos do Universo. Conseguimos encapsular
nossa consciência e toda a nossa inteligência em apenas um
pequeno, mas poderoso organismo. Durante milênios de
existência, catalogamos cada planeta potencialmente
habitável dentro do Universo observável. Depois vários de
nós foram enviados para uma nobre missão. E eu demorei
mais de 3 milhões de seus anos para chegar aqui.

— Mas por que? — Perguntou Neville. — Qual é o


objetivo disso?

— Tem um jeito melhor de formar uma civilização


forte do que convertendo as tribos ao redor? Espalhar nossa
espécie pelos quatro cantos do cosmos, perpetuar nosso
intelecto, nossos valores. Pelas minhas estimativas, quando
eu conseguir sair daqui, em apenas uma semana inteira,
poderei contaminar todo uma cidade. Dentro de um ano,
todo o planeta irá compartilhar da mesma mente. Cada ser
vivo que possua um sistema nervoso central será apenas
um indivíduo. Eu.— O alienígena andou pela sala. — Estou
certo nas minhas estimativas, Doutor Neville, nosso grande
infectologista?

O biólogo fitou o chão, com um olhar distante.

— Sim. Está. Um ano é uma aproximação realista.

— Mas por que você não fez isso há 92 milhões de


anos atrás? — Questionou Amanda.

— Eu queria poder ter feito. Infelizmente, o animal


que eu infectei apenas conseguiu contagiar os membros do
mesmo grupo, e nenhum deles resistiu a minha presença

120
A FORTALEZA DE GELO

por muito tempo. Sem conseguir me propagar, fiquei


congelado por longos milhões de anos, sem poder fazer
nada. Achei que a missão tinha fracassado, que eu passaria
o resto da minha vida debaixo de quilómetros e quilómetros
de gelo. Mas finalmente, minha segunda chance chegou.

— O que você quer de nós? — Perguntou Nicole.

— Ora, é muito simples. — O sorriso não deixava o


rosto de Zhao. — Vocês têm duas opções. Voluntariamente
se entregam a mim e se permitem ser infectados, ou
simplesmente acabam com isso agora mesmo. A qualquer
momento o helicóptero de socorro vai chegar, e pelo menos
eu vou sair daqui dentro dele. — Todos ficaram em silêncio.
— Vocês ainda vão viver, ainda terão suas memórias, só que
eu estarei com vocês.

— Isso não é vida! — Rugiu Amanda. — Ser


parasitada por outra consciência, sem poder tomar
qualquer decisão, ser prisioneiro do próprio corpo… isso é
pior do que a morte!

— Sinto muito que pense assim, Doutora Carvalho.

Zhao apontou a arma e se preparou para atirar.

— Espere! — Gritou Jean.

O alienígena baixou a pistola alguns centímetros.

— Diga, Neville.

— Pelo menos nos dê um tempo para decidir.

Zhao não disse nada, apenas assentiu e continuou


mirando neles com a arma.

121
A FORTALEZA DE GELO

Jean andou de um lado para o outro, pensativo,


deixando Nicole confusa.

— O que tem pra pensar sobre isso? — A voz de


Amanda estava indignada. — Perder nossa consciência
para sempre não está em questão.

Ignorando o comentário, Neville continuou pensando,


em silêncio. Finalmente, assentiu e deu um passo na direção
de Zhao.

— Eu decidi. Vou me deixar ser contaminado. Como


funciona o processo?

O sorriso da criatura aumentou.

— Tire o capuz, Neville. — Ele obedeceu, removendo o


objeto e expondo seu rosto. — Muito bom. Agora me dê
seus braços.

Jean esticou ambos os braços, e Zhao os agarrou


prontamente, o cano da arma encostando no traje de
Neville. Sua boca começou a se abrir, até a mandíbula
estalar, e sangue se juntava ao redor dos dentes como se
fosse saliva.

Nesse momento, Neville se aproveitou da situação e


deu um chute na barriga de Zhao, fazendo-o cair no chão. O
rosto dele se encheu de raiva, e o sangue jorrou pela boca,
sujando sua roupa.

Neville tentou pegar a arma da mão do alien, pisando


contra os dedos. Cheung urrou de dor, soltando o objeto.
Jean atirou contra a criatura. O clique cego fez a espinha de
todos gelar.

122
A FORTALEZA DE GELO

Zhao riu. A arma prata estava sem o tambor.

Jean chutou a cabeça de Cheung, que não parou de rir.

A criatura agarrou Neville pelos braços,


imobilizando-o. O francês se debateu, tentando se soltar.

— Corram!! — Gritou Jean para Amanda e Nicole.

As duas correram para fora da sala, percorrendo o


caminho que haviam feito até chegar ao salão de entrada da
estação.

Nicole parou, ofegante. Havia um eco muito grande


naquele pátio, e a respiração da menina reverberava pelas
paredes.

— Espera… — Disse Nicole. Amanda ficou ao seu


lado. — E agora? O que a gente faz?

A mulher de cabelos castanhos pensou por um


instante.

— Temos que pegar armas, no mesmo lugar que Bem


pegou.

— Mas nós não temos mais o mapa da estação, ficou


no bolso dele, no laboratório.

— Droga! — Amanda chutou o chão. — Verdade. —


Pensou por uns instantes. — Mas e o mapa que recebemos
nos celulares, pela intranet?

A ruiva fez que não com a cabeça.

123
A FORTALEZA DE GELO

— Esse mapa só tem as instalações dos cientistas. Os


dormitórios, o refeitório, a sala de recriação.

— Mas esse mapa tem que estar armazenado em


algum lugar por aqui, além do notepad do Richards.

Nicole refletiu.

— Quando passamos pelas salas técnicas para chegar


no rádio, eu vi uma que tinha o servidor da estação. Lá
deve ter um arquivo do mapa dela.

— Sim! É uma boa ideia!!

Elas seguiram o percurso até a sala, e as duas entraram


em um quarto onde tinha um computador e uma porção de
CPUs.

Nicole se sentou na frente da tela.

Apareceu no monitor a mensagem: “Digite o seu nome


de usuário ou entre como visitante”. Ela clicou na opção de
visitante.

Passou por uma série de arquivos que estavam


disponíveis publicamente até encontrar o do mapa da
estação. Ela abriu.

Era um labirinto enorme dividido em seções, cada


uma com salas de funcionalidades diferentes.

Nicole pegou seu celular do bolso e tirou uma foto.

— Vamos!

Enquanto estavam indo para a sala de armamentos, a


voz de Zhao saiu de diversos alto falantes espalhados pela
estrutura.
124
A FORTALEZA DE GELO

— Estou vendo vocês três andando pelos corredores


agora mesmo. Sei onde estão, e posso garantir que não é
uma boa ideia.

Nicole tremeu. Se elas estavam sendo vistas, qual


chance tinham de armar um plano? Tentou pensar em
alguma forma de contornar esse imprevisto.

Finalmente chegaram na sala de armas. As duas


pegaram duas pistolas pretas cada, e 4 cartuchos. Seria o
suficiente. Não tinha exatamente um arsenal militar, mas o
necessário para lidar com animais selvagens.

— O alienígena disse que estava vendo nós três. —


Disse Amanda. — Isso significa que Neville está vivo.

— E outra coisa. Significa que Zhao está na sala das


câmeras.

Amanda seguiu Nicole Carter em direção a onde


estaria o extraterrestre.

Olhou para a jovem. Os cabelos ruivos desciam até os


ombros, os olhos azuis mostravam uma determinação que
ela nunca tinha visto antes em Nicole.

Um pensamento subiu à cabeça de Amanda. Que


talvez elas morressem naquele momento e ela nunca tivesse
a chance de ter algo com a garota, nem de demonstrar o
quanto gostava dela. Talvez aquele fosse o último momento
que as duas tivessem. "O que eu devo dizer a ela?".

125
A FORTALEZA DE GELO

Amanda segurou a mão de Nicole, que enrubesceu e


olhou para o lado.

— O que foi?

Carvalho simplesmente aproximou seu rosto do de


Nicole e a beijou. A ruiva fechou os olhos e retribuiu,
passando seus braços por trás de Amanda.

As duas se abraçaram forte e trocaram um beijo que


pareceu durar para sempre. Foi um ato carregado de
emoções, e Amanda sentiu tristeza, medo, felicidade,
paixão, percorrendo seu cérebro e seu corpo rapidamente.

Depois de um intervalo de tempo que não sabia


determinar, afastaram os rostos.

— Sabe… — Amanda não conseguia encontrar as


palavras certas. — Eu quero muito que a gente consiga sair
daqui. Mas se não conseguirmos, eu… saiba que eu gostei
muito de ter te conhecido. De verdade.

Nicole sorriu.

— Ter te conhecido mudou a minha vida. Eu percebi o


que realmente é importante. São as pessoas, estar presente
por elas, todo o resto é secundário. Poder fazer diferença na
vida de cada um que passa pelas nossas vidas, assim como
você fez comigo. Ficar ao lado das pessoas com quem nos
importamos, agindo com empatia. — A garota fez uma
pausa. — Se a gente sobreviver, a minha vida não vai ser
mais como era. E eu vou estar do seu lado sempre.

Amanda riu.

— Sempre?

126
A FORTALEZA DE GELO

— Sim, eu vou com você pro Irã, pro Brasil, pra onde
você for. Vai ser assim. Mas vamos estar lado a lado.

As duas se abraçaram novamente. Então a luz apagou,


e o breu engoliu o ambiente.

127
A FORTALEZA DE GELO

CAPÍTULO 17
Nejahatuh desligou um a um dos disjuntores da
estação, deixando-a inteiramente no escuro. As únicas luzes
que manteve foram as câmeras e seus monitores, além das
geladeiras. Talvez precisasse delas. Alguns equipamentos
com bateria própria continuariam funcionando.

Depois de bilhões de anos de existência e dezenas de


planetas dominados inteiramente, finalmente cumpriria
mais uma missão para a sua raça.

Logo os olhos de Nejahatuh se adaptaram à pouca luz


naquela sala, vinda das telas enegrecidas pela ausência de
imagem.

Sabia que as duas mulheres em breve entrariam


naquela sala em algum momento.

O ser inteligente sorriu, confiante sobre o seu plano.

Tanto Amanda quanto Nicole tinham os celulares em


uma mão, iluminando o caminho com as lanternas, e a
pistola na outra.

— Precisamos de um plano. — Sussurrou Amanda.

— Por que você tá falando baixo?

— Porque ele pode estar nos ouvindo pelas câmeras.

128
A FORTALEZA DE GELO

— Hmm… — Nicole passou a mão pelo queixo. — Eu


acho que ele sabe que estamos indo para a sala de câmeras,
já que ele nos viu. Então não temos o elemento surpresa.

— Vamos fazer assim. Eu vou entrar primeiro. Se for


uma armadilha, só eu vou ser pega. E você foge. Você só
entra quando ou se eu te chamar.

— Não!! — Protestou Nicole. — Isso é muito


arriscado!! Não posso perder você!!

— Não se preocupa, Nicole. Eu estou armada, lembra?


— Amanda mostrou a pistola escura. — Essa é a nossa
melhor opção.

— Então eu vou na frente!

— Você sabe usar uma arma? — A garota ficou em


silêncio. — Você já usou uma arma??

— Não!! — Nicole subiu o volume da voz, mas depois


voltou aos sussurros. — Mas eu posso aprender agora!

— Eu já usei. Eu sei como se faz. É menos arriscado. Se


for uma armadilha, não podemos por em risco as vidas de
nós duas. — Amanda pegou na mão de Nicole, encostando
o celular no seu pulso. — Confie em mim.

Relutante, a jovem assentiu.

As duas chegaram enfim na frente de uma porta na


qual lia-se "Sala de Câmeras".

Nicole beijou Amanda.

— Fique bem…

— Eu vou ficar.
129
A FORTALEZA DE GELO

Amanda sorriu e entrou na sala.

Estava escuro, a não ser pelos monitores na parede.


Mas a iluminação deles era muito fraca, já que as telas
estavam pretas.

Apontou a lanterna para todos os cantos, sem


encontrar nada. "Será que ele não está aqui?".

Sentiu alguma coisa passar por debaixo de seus pés,


fazendo-a cair no chão. Bateu as costas com força no piso e
gritou.

— Amanda!! — Nicole disse do lado de fora.

A cientista tentou se levantar, seus nervos à flor da


pele. O medo tomou conta de seu corpo, sentindo que a
qualquer momento poderia ser contaminada. Engoliu em
seco, com dificuldade para sair do chão. Sentiu algo bater
violentamente contra a sua cabeça. E então, tudo ficou
preto.

Nicole titubeou. "Será que eu devo entrar?". Amanda


havia dito para que ela só entrasse se ela a chamasse. Mas
ao mesmo tempo, ela não queria deixar que a mulher de
quem gostava fosse infectada.

Por fim, tomou sua decisão. Abriu a porta, mas ficou


do lado de fora, apenas olhando.

Moveu a lanterna do celular, tentando ver o que tinha


na sala.

130
A FORTALEZA DE GELO

Foi então que viu Amanda caída no chão, seus olhos


fechados.

Nicole levou a mão à boca, horrorizada.

Correu na direção da mulher. Tentou sentir o seu


pulso. Estava viva. Nicole suspirou de alívio.

Naquele momento, viu um extintor de incêndio vindo


na sua direção. Conseguiu desviar a tempo.

Deu um tiro para o local de onde o objeto veio.

Mirou a luz e não tinha nada. Nicole estava com medo.


Não de morrer, mas de ser infectada e ser forçada a viver
pelo resto de sua vida como uma hospedeira sem sua
consciência.

Mas tinha outro medo maior em mente. Olhou para a


mulher de cabelos castanhos e respirou fundo.

Pegou Amanda e a colocou sobre seus ombros, o peso


da cientista fazendo-a se abaixar. A mulher parecia ter ao
menos 10 quilos a mais que ela.

Nicole sabia que a chance de sobreviver era pouca, e


isso a desesperava. A maior probabilidade era que as duas
fossem contaminadas ali mesmo. Não conseguiria correr
com Amanda nas costas, e também não podia abandoná-la.

Mesmo assim, Nicole fez o esforço de sua vida e


tentou andar com ela nas costas, cambaleando.

Passou pela porta e andou pelo corredor, Amanda


desacordada apoiada atrás dela.

131
A FORTALEZA DE GELO

Algo passou por entre suas pernas e Nicole caiu no


chão, em cima de Amanda.

Ela se levantou e tentou iluminar os arredores, suas


mãos tremendo enquanto apontava a arma para o vazio.

O mesmo extintor de incêndio veio na sua direção,


mas ela usou suas mãos para se defender, tentando
empurrar o objeto. Não conseguiu, e caiu com um baque no
piso frio.

Seu celular deslizou pelas suas mãos e escorregou pelo


chão até alguns metros de distância.

Com o suor escorrendo pela sua testa, a garota correu


até o aparelho, pegando-o prontamente e tentando iluminar
ao redor. O corredor estava vazio. Amanda tinha sumido.

— Amanda!! — Gritou. — Não, não, não…

Os olhos de Nicole começaram a lacrimejar.

— AMANDA!!!

Sem resposta.

Ela desabou no chão e começou a chorar. “Não pode ser


verdade, não pode estar acontecendo”. Simplesmente não
aceitou que pudesse perder Amanda.

Foi a primeira pessoa que acreditou nela em anos, a


primeira pessoa que a ajudou. Depois de anos apenas sendo
usada pelos outros, vista com interesses e segundas
intenções, sem ser próxima de ninguém, sem realmente ter
uma conversa real com outra pessoa.

132
A FORTALEZA DE GELO

Fazia poucos dias que estavam lá, mas Nicole tinha


criado uma conexão com Amanda que nunca tinha sentido
com outra pessoa antes na vida. Quanto estavam juntas,
sentia uma leveza, uma confiança que não sentira antes.

Não podia perdê-la. Tinha que salvá-la.

Dezenas de planos passaram pela sua cabeça, mas


todos eram incertos. Nenhum deles realmente fazia sentido.

Levou a mão à barriga. A ferida tinha voltado a


sangrar, manchando a camisa.

Parecia que a única coisa que podia fazer era procurar


pela sua colega, na expectativa de poder encontrá-la ainda
viva. Tentou manter a esperança, ignorando o pensamento
de que Amanda podia já não ser mais ela mesma.

Inspirou profundamente. Levantou-se e seguiu pelo


corredor, iluminando o caminho com a lanterna do celular.
Não sabia sequer para onde estava indo.

133
A FORTALEZA DE GELO

CAPÍTULO 18
Depois de alguns minutos andando sem rumo, Nicole
ouviu um grito. Era a voz de Amanda.

Imediatamente correu até a direção de onde o som


tinha vindo, um sorriso se esboçando em seu rosto. “Ela não
foi infectada!”

Nicole apontou o celular e viu Jean Neville e Amanda


Carvalho lutando no chão. Primeiro ela estava por cima,
suas mãos no pescoço do francês. Mas depois ele conseguiu
reverter a situação, socando o rosto de Amanda.

— Nicole… — Amanda balbuciou enquanto sua


garganta era apertada com uma mão. Com a outra livre,
Jean pegou uma faca e ergueu. — Me ajude… ele foi
infectado.

— Ela está mentindo! — Neville tentou se defender. —


Ela tentou me infectar, abriu a boca daquela forma
antinatural e se jogou em cima de mim!

Amanda fez uma expressão de indignação.

— Foi ele quem fez isso!!

— P-parem!! — A voz de Nicole tremeu enquanto ela


apontava a arma preta para os dois. — Levantem e se
afastem!

Amanda e Neville pararam de lutar e se distanciaram,


colocando as mãos para cima.

— Nicole, você tem que acreditar em mim! — Amanda


gesticulou enfaticamente. — Ele tá tentando te enganar!

134
A FORTALEZA DE GELO

— Eu?? Foi você quem me atacou!

— Não é verdade!!

— Calma, por favor, calma! Calma!! — Nicole gritou,


sua respiração ofegante, sem saber o que fazer. — Amanda,
me conte o que aconteceu!

A mulher assentiu e olhou de forma reprovativa para


Jean.

— Eu entrei na sala de câmeras e fui atacada, não


consegui ver quem era. Mas me atingiram na cabeça.
Quando eu acordei, estava sendo arrastada pelo Neville
nesse corredor. Eu tentei me soltar e me defender, mas ele
abriu a boca, cheia de sangue, me agarrou e me agrediu.

— Isso não foi…

— Neville — Nicole interrompeu. — Conte como foi


que você fugiu do Zhao e como encontrou a Amanda!

O sujeito franziu a testa.

— Logo depois que vocês fugiram, eu consegui


nocautear Zhao com o cotovelo e saí correndo. Fui até o
meu próprio quarto e me escondi lá por alguns minutos,
sem saber o que fazer ou pra onde ir. Até que ouvi a voz
dele nos alto falantes. Eu concluí que ele estava na sala das
câmeras, lembrei que tínhamos passado por ela e decidi
seguir o mesmo caminho. Peguei essa faca na cozinha e vim
tentar matar ele. Mas no meio do caminho, fui
surpreendido e atacado por ela!! — Jean gesticulou,
apontando para Amanda.

— Isso é mentira!!

135
A FORTALEZA DE GELO

Nicole respirou fundo. As duas histórias eram


verossímeis. “E agora, como saber?”.

— Olha… — começou. — Só tem um jeito de ter


certeza. Voltando para o laboratório e fazendo o teste.

Amanda e Neville trocaram olhares, e por fim,


concordaram com a cabeça.

Nicole continuou apontando a arma enquanto eles


faziam o caminho de volta até o laboratório. O caminho
parecia interminável

A garota não queria ser egoísta, mas torcia com o


fundo do seu coração para que não fosse Amanda quem
estivesse mentindo. A agonia de não saber qual deles estava
infectado a deixou ansiosa.

Chegaram ao local. Os três passaram um a um pela


fresta da porta de acrílico.

A garota andou até onde Amanda havia deixado as


peças ausentes de seu traje e, sem deixar de apontar a arma,
abaixou-se e vestiu a camisa e o capuz. Sentiu-se
minimamente mais segura.

Olhou para Amanda. “Não pode ser ela. Não pode ser, por
favor”.

— Bom… como não tem eletricidade, vamos ter que


usar o microscópio mecânico.

Nicole foi até a bancada pegar a seringa e então


percebeu. Era impossível segurar a arma, o celular e usar a
seringa ao mesmo tempo.

Tentou pensar em alguma solução.


136
A FORTALEZA DE GELO

— Amanda, segure o meu celular, por favor, e ilumine


enquanto eu tiro sangue do Neville.

Amanda deu um sorriso quase imperceptível e


assentiu.

— Eu vou fazer isso sim, Nicole. Obrigada.

A ruiva deu o celular para sua colega. Não sabia


exatamente por que ela tinha agradecido. Talvez por Nicole
ter confiado nela?

Amanda apontou a luz para o braço de Jean.

Nicole segurou a seringa com uma mão enquanto


usava a outra para apontar a arma para Neville. Ele
estendeu o pulso. Ela tentou aplicar a ferramenta no dedo
do cientista, mas era impossível fazer isso com uma mão só.

— Droga, droga!! — Nicole gritou.

— Calma… — Amanda pôs a mão em seu ombro, mas


a moça se afastou.

Sentimentos conflitantes passaram pela sua mente,


com medo de que aquela não fosse de fato Amanda.

— Amanda, você vai testar o Neville. — Nicole lhe


entregou a seringa.

A mulher olhou surpresa, mas pegou a seringa. Ela


deu o celular para Jean, foi até o dedo dele e tirou uma
quantidade razoável de sangue. Ele devolveu o celular à
mulher.

137
A FORTALEZA DE GELO

Amanda foi até Nicole, com o celular em uma mão,


iluminando fracamente o ambiente, e o sangue de Jean na
outra. Então fincou a seringa na barriga da garota.

Nicole arregalou os olhos e olhou para o objeto


espetado no seu traje.

Subitamente, tanto Amanda quanto Neville


começaram a rir, sincronizadamente.

A jovem tirou a seringa de sua barriga, constatando


que ainda havia sangue ali dentro. Não sabia se tinha sido
espetada na sua pele ou não.

Sentiu o coração bater mais rápido, a respiração


acelerar e a sala balançar como um barco.

Cambaleou para trás.

— Adeus Nicole. — Amanda sorriu.

— Amanda… — Murmurou. — Por… por que?

— Ai Nicole, achei que já tinha percebido. Eu não sou


mais a Amanda. Ela está em segundo plano, sem poderes
sobre esse corpo, e eu estou no controle agora. Em breve
você também deixará desaparecerá.

Nicole tropeçou em uma maleta no chão, dando


passos desajeitados para trás. O que antes fora Amanda
debochou com um riso sarcástico.

Sua mente se recusava a acreditar. Olhou para a


mulher de quem gostava, sabendo que não era mais ela,
mas ainda sentindo o afeto dentro de si. Não queria aceitar
que tinha sido enganada e que tinha perdido Amanda para
sempre.
138
A FORTALEZA DE GELO

Logo, um sentimento de revolta se tornou grande


dentro de Nicole.

Tomou fôlego e deu um tiro contra Jean, acertando-o


no peito. Ele caiu com o impacto, mas ainda estava vivo. A
mulher a encarou com raiva, mas Nicole se aproximou mais
e conseguiu acertar Neville no meio da testa.

Caiu de olhos abertos, inexpressivo.

Apontou a arma escura para Amanda, que estava


sorrindo, confiante. Nicole tremeu, sem coragem para atirar.
Não conseguia. Simplesmente não conseguia matá-la. Então
tudo escureceu.

A jovem não conseguia enxergar nada. Naquele


momento se tocou que havia dado seu celular para
Amanda, era ela quem estava iluminando o ambiente até
agora.

Não sabia para onde apontar sua arma.

Sentiu um impacto no braço. Era uma facada. Gritou


de dor e deu um tiro de onde a faca veio. Ouviu um grito
de Amanda.

Nicole se jogou em cima de onde veio a voz e sentiu o


contato com o corpo da mulher. Tateou as mãos dela e
encontrou seu telefone. Com a outra mão, apontou a arma
para a cabeça do alienígena, mas sentiu uma facada nas
costas da mão.

Deixou a arma cair. Tateou pelo objeto. Conseguiu


pegar. Respirou fundo e puxou o gatilho. Sem som.

A criatura riu.

139
A FORTALEZA DE GELO

— Eu tirei o cartucho, sua tola.

Sentindo uma gota de suor descendo pela bochecha,


correu para qualquer direção afastada e ligou a tela.
Procurou desesperadamente a função de lanterna, sabendo
que estava denunciando sua posição com a tela acesa.

Encontrou.

Amanda estava parada no outro extremo da sala,


sorrindo com a faca em punhos.

Nicole ignorou e correu em direção à porta.

— Pode correr, criança. Em breve você vai ser apagada


também.

140
A FORTALEZA DE GELO

CAPÍTULO 19
Nejahatuh olhou para o corpo ao seu lado. As perdas
eram aceitáveis. Aquele velho era fraco mesmo. Percebeu
que precisou de apenas 3 corpos para conseguir entender o
comportamento humano e superar a inteligência fraca
dessa espécie, fingindo com sucesso ser um deles.

O plano de injetar o sangue contaminado em Nicole


ficou ainda mais fácil quando ela lhe deu a seringa sem
nem pensar. Riu enquanto saboreou como os humanos
eram ingênuos e limitados.

Dentro do corpo do homem, olhou as câmeras. Viu


uma luz se movendo por vários lugares, passando de
monitor para monitor. Era Nicole segurando o seu celular.
Perguntou-se para onde ela estaria indo.

Nicole sabia que podia ter pouco tempo de consciência


pela frente, caso tivesse sido infectada. Precisava evitar que
aquela coisa saísse dali.

O plano era cancelar o pedido de resgate. Avisar sobre


o risco de contaminação para a base, assim eles não viriam.
Um ser humano jamais conseguiria sair daquela estação e
andar a pé até qualquer outro lugar longe dali. A Antártida
o mataria.

Chegou na mesa de rádio e sincronizou com os


mesmos 873.5MHz da linha de emergência australiana que
Amanda tinha contatado.

141
A FORTALEZA DE GELO

Uma lágrima desceu pelo seu rosto quando lembrou


do nome da mulher de pele morena.

Afastou o pensamento da sua cabeça e tentou se


concentrar. Ela ia fazer isso. Ia evitar a tragédia. O
alienígena não iria deixar a estação e iria morrer ali. Tudo
isso iria acabar naquele lugar, nas mãos de Nicole.

— Cancelar pedido de resgate! — Sussurrou, para


evitar que o alien pudesse ouví-la pelas câmeras. — Repito:
cancelar pedido de resgate! — Pensou em quanto tempo
levaria para a criatura morrer de fome. Com a quantidade
de comida que tinha armazenada na base, uns 2 anos. Ela
precisava destruir aquilo. Sem comida, um humano poderia
viver apenas por um mês. — Ninguém pode vir aqui, pelo
menos pelos próximos 30 dias... E depois... Destruam tudo!

De repente, um bipe agudo e ensurdecedor invadiu os


ouvidos de Nicole. Levou as mãos às orelhas,
instintivamente. O som cessou.

Continuou a mensagem.

— Fomos acometidos por um vírus altamente


contagioso…

— Nicole, Nicole. — A voz de Zhao a interrompeu,


ressoando pelos microfones. — Eles não podem mais te
ouvir. Eu cortei os microfones.

— Como você fez isso?! — A ruiva gritou. — O rádio


tem uma bateria própria!

— Ah sim, isso é verdade, criança. Eu não posso


desligar o rádio pelos disjuntores. Mas eu posso controlá-lo
à distância, e eu mutei seu microfone. Você perdeu. Acha
142
A FORTALEZA DE GELO

que o resgate vai deixar de vir por causa dessa sua


mensagem genérica? Acha que eles já não estão a caminho?

— Eu acho que consegui passar a mensagem que eu


queria. E acho que você jamais vai conseguir sair daqui.
Acho que é você quem perdeu.

— É o que veremos! — A voz de Amanda sussurrou


praticamente ao seu ouvido.

Nicole se afastou correndo, antes que ela pudesse lhe


atacar.

— Pode correr. Uma hora você vai parar.

Nicole olhou o seu celular para ver qual caminho


deveria seguir até a cozinha. Seus olhos pousaram sobre o
nome de uma das salas. Precisava passar nela. Era onde
ficavam os cachorros. Para um degenerado, cães eram
comida também.

Abriu a porta, saindo do lado de fora. A luz do Sol


invadiu seus olhos. Estava amanhecendo na Antártida.
Demorou para se acostumar com a claridade. Então viu que
tinha 6 cachorros amarrados à uma parede.

Desatou as cordas de cada um deles e os expulsou,


para que se afastassem. Ficou olhando até que estivessem
todos distantes demais. Eles correram pela planície,
desaparecendo atrás das montanhas.

Quando já não conseguia mais ver os animais, voltou


para dentro e apontou a lanterna para o corredor escuro.
Antes de ir para a cozinha, tinha que destruir os corpos que
restaram.

143
A FORTALEZA DE GELO

Voltou para a sala de armas. Queria pegar ferramentas


para se defender e um objeto específico que pudesse usar
para destruir o suprimento de alimentos.

Praguejou quando percebeu que todos os armamentos


de tiro tinham sido removidos. Ao menos não era isso que
ia usar para inutilizar os cadáveres.

Pegou um maçarico e correu até o laboratório, onde


todos os mortos estavam. Próximo dele, no corredor, estava
Richards. Incinerou seu corpo, fazendo com que o corredor
ficasse claro.

Em seguida, entrou na sala de testes. No chão,


estavam Klaus, Juma, Kickett e Neville. Incinerou cada um
dos corpos, até chegar no de Lee. Nos bolsos do homem,
tinha um molho de chaves.

Nicole pegou o pegou e guardou em seu bolso, já que


poderia ser útil futuramente. Foi até os ratos e os incinerou,
sabendo além de serem comestíveis, continham a
consciência do alienígena dentro deles.

Lembrou que também tinha os corpos de Alessandro e


Martha.

Correu até a sala de quarentena, e lá também incinerou


o casal Bruzzone.

Pronto. Agora só restava a cozinha.

144
A FORTALEZA DE GELO

O androminiano olhou confuso enquanto a jovem


queimava um a um os corpos dos mortos, perguntando-se
por que ela estaria fazendo isso.

Então, vendo para onde ela estava indo, percebeu o


que a menina queria fazer.

Tinha que impedir.

Nicole chegou na cozinha e jogou as chamas sobre


todos os lugares. A geladeira, os armários, as frutas, as
latas.

Sua ação foi interrompida quando ouviu passos


vindos do corredor.

Virou de costas bem a tempo de ver Amanda


entrando, uma pistola em suas mãos.

Tentando não pensar demais sobre isso, disparou o


fogo contra a mulher. Tentou ignorar seus sentimentos.
Mesmo sabendo que a pessoa de quem gostava não existia
mais, seu coração doeu e uma culpa tomou conta dela.

Amanda gritou e caiu de lado. Deu um tiro antes de


soltar a arma, acertando a perna de Nicole.

A garota sentiu a bala rasgando um tendão, causando


uma dor lacerante. Perdeu o equilíbrio e caiu.

145
A FORTALEZA DE GELO

O alien sentiu um sofrimento imenso invadindo seu


corpo. Apesar de ter uma resistência muito grande à dor, o
fogo derretendo a pele de suas pernas e de sua cintura era
impossível de aguentar.

Simplesmente se desligou daquele corpo.

Amanda abriu os olhos, sentindo uma dor


insuportável. Gritou com todas as suas forças. Olhou para
baixo e viu que havia chamas sobre suas pernas e sobre sua
barriga. Era horrível. A pior dor que já sentira em toda a
sua vida.

Só lembrava de ter entrado na sala de câmeras e


levado uma pancada na cabeça, não sabia como tinha
acabado naquela situação.

Viu Nicole a seu lado, caída no chão, segurando um


lança chamas.

— Nicole… — Sua voz falhava por causa da agonia


física. — Por favor, me ajude…

Os olhos da ruiva começaram a lacrimejar.

— Eu não vou acreditar mais. Eu sei quem é você. Sei


que não é a Amanda.

A mulher grunhiu com a sensação alucinante de seu


intestino derretendo e se fundindo com seus músculos, sua
pele e sua roupa, formando uma massa avermelhada.

— Por favor… sou eu… sou eu…

— Como eu vou saber?? Como eu vou saber?? — Ela


começou a chorar, desviando o olhar. — Pare! Por favor!!
Pare de falar isso!!
146
A FORTALEZA DE GELO

Em um último esforço, Amanda tentou alcançar a


arma, mas não conseguia mexer o corpo, e seus braços não
podiam tocar o objeto distante.

— Por favor… — Ela apontou para a pistola — Me


mate… Por favor, me mate…

Nicole fez que não com a cabeça, enquanto continuava


chorando.

— Eu imploro, Nicole…

Por fim, pegou a pistola, suas mãos tremendo.

Amanda pronunciou o que acreditava que seriam suas


últimas palavras:

— Eu te amo.

Nicole gritou e deu um tiro.

A ruiva entendeu que tinha acabado de matar


Amanda. Não o alienígena, mas a Amanda de verdade.
Tinha assassinado a pessoa por quem estava apaixonada.

Ficou durante um bom tempo no chão, chorando pelo


que tinha acabado de fazer.

— Droga! Droga! Droga!! — Gritou.

Queria poder de alguma forma desfazer aquilo. Poder


ter Amanda de volta, poder não tê-la matado. O
arrependimento era insuportável.

147
A FORTALEZA DE GELO

Depois de alguns minutos, tentou se levantar. Caiu


logo em seguida. Tentou outras vezes, mas sem sucesso.
Constatou que não conseguia ficar de pé com o tendão
rompido.

Rastejou até o canto da cozinha e pegou uma vassoura


que estava caída no chão. Colocou seu braço ao redor e
usou a haste para se colocar de pé.

Não ia conseguir sair dali com a lanterna em uma mão


e a vassoura e o maçarico em outra. Pegou a arma de
Amanda e a faca em seu bolso, e as colocou no interior de
seu traje, abandonando o lança-chamas.

Mancou pelos corredores, à procura de uma sala onde


pudesse se esconder.

Chegou em uma que estava escrito “materiais de


limpeza”. Procurou a chave do lugar no meio do molho,
cada uma identificada com uma etiqueta. Encontrou e a
destacou.

Nicole apagou a lanterna de seu celular, para que Zhao


não pudesse vê-la pelas câmeras.

A porta estava destrancada. Ela entrou, mas quando


foi passar para dentro, pisou em falso e rolou pelo chão,
percebendo tarde demais que se tratava de uma escada.

Tateou no chão pela vassoura. Havia quebrado.


Rastejou até o topo da escada e tentou fechar a porta.
Apoiou-se na maçaneta e fez um esforço desumano para
conseguir ficar suspensa pelo braço e trancar a porta.

Sentiu seu abdômen queimando pela força física que


estava fazendo.
148
A FORTALEZA DE GELO

Fez questão de quebrar a chave, para que ela não


pudesse sair caso perdesse a sua consciência.

Finalmente, se deixou cair no chão.

Ligou a lanterna do celular e rastejou até o pé da


escada, deixando uma trilha de sangue no chão.

Deitou ali e descansou. Permitiu-se respirar. Talvez


aqueles fossem os últimos momentos de sua vida. Ou talvez
não tivesse sido contaminada. Não havia como saber.

Ou talvez tivesse.

Puxou a camisa de seu traje de segurança para cima,


depois a própria blusa. Procurou por alguma marca de
picada. Tateou mas não conseguiu encontrar nada além do
ferimento causado pelo tiro de raspão.

De qualquer forma, aquilo não era uma certeza. Uma


espetada leve de agulha não deixaria uma marca visível.
Mas talvez uma espetada leve também não fosse o
suficiente para contaminar alguém.

Pegou a arma que estava em seu bolso. Não sabia qual


era a coisa certa a se fazer.

Abriu a boca e a colocou por cima de sua língua,


sentindo o gosto metálico e o frio da pistola.

“Será que vale a pena fazer isso? Será que eu arrisco me


matar sem saber se estou contaminada? Ou arrisco viver sabendo
que posso estar contaminada?”

Concluiu que o risco de viver era maior. Valia mais a


pena arriscar morrer do que iniciar uma contaminação
global.
149
A FORTALEZA DE GELO

Tomou coragem. Atirou. Sem balas!

Bateu com a arma contra a cabeça, frustrada.

Percebeu que aquele era o revólver que Bem tinha


usado, porque era prateado, e não preto como os que ela e
Amanda pegaram.

Abriu o tambor e viu que estava vazio, mas tinha seis


espaços para as balas. Contou quantos tiros havia dado.
Bem tinha atirado uma vez contra ela, duas contra Zhao,
Neville tinha atirado uma vez em Bem, Amanda uma nela e
Nicole tinha dado um tiro Amanda.

“Droga!”, foram seis tiros!

Jogou o objeto para longe.

Restava apenas esperar que os seus diversos


ferimentos a matassem por falta de sangue. Ou então que
perdesse a consciência para o alienígena e morresse de sede
em poucos dias. Talvez dois.

Pensou em tudo o que havia acontecido na sua vida


até ali. A infância feliz com os seus pais e seu irmão,
brincando no litoral de Los Angeles e na fazenda dos avós,
sua adolescência com um grupinho de amigos com quem
tinha ido a vários shows, mas deixara de falar há anos, a
faculdade… Sorriu, pensando que esse último talvez tivesse
sido o melhor tempo de sua vida. Encontrando sua vocação,
conhecendo pessoas parecidas com ela e vivendo aventuras
mais simples. Indo em bares, comendo cachorro quente de
rua, nadando no mar à noite, tudo isso com seus colegas.

150
A FORTALEZA DE GELO

Recusou-se a pensar sobre o tempo trabalhando na


STCU. Não valia a pena. Mas não foi ali que deixou de ser
feliz. Foi antes.

Pensou por alguns segundos no seu irmão, e em como


sentia falta dele. Sorriu com as coisas felizes que lembrou
de ter vivido ao seu lado.

Os dias brincando perto do lago na fazenda, os


momentos em que desabafou com ele sobre
relacionamentos frustrados, e os últimos dias que passaram
juntos, todos em família, realizando o desejo do garoto de ir
para a praia uma última vez.

A areia entre os dedos, a água salgada em sua boca.


Nicole não havia voltado para a praia desde então.

Tinha tido uma boa vida, no final das contas. E apesar


de anos de reclusão, nos últimos dias conseguiu ver o
quanto isso não a definia.

Nicole suspirou.

Então fechou os olhos, aceitando seu destino.

151
A FORTALEZA DE GELO

CAPÍTULO 20
Depois do que pareceram horas, Nicole saiu de seu
transe pelo estrondo de uma porta sendo aberta.

A neve e o vento soaram como uma música, enchendo


o ambiente da Estação Manson.

Algumas vozes vinham do lado de fora da porta. “O


que está acontecendo?”. Não parecia ser Zhao.

Então ela se tocou. Era o socorro da Austrália. Eles


haviam chegado.

Alguém tentou abrir a porta. Nicole arregalou os


olhos. Rezou para que não a encontrassem. Ela não podia
sair dali. Não podia levar o alienígena para fora da Estação.

Uma série de baques ensurdecedores se iniciou contra


a porta, até que ela finalmente cedeu e se abriu.

Um homem uniformizado entrou por ela, segurando


uma lanterna e apontando para Nicole.

Ela fechou os olhos, cega pela claridade. Rastejou até o


canto do cômodo.

O sujeito desceu a escada e se aproximou dela.

— Não... — Nicole sussurrou, quase sem energia. —


Eu disse pra vocês não virem... Vocês vieram! Não, não...

— Calma, estou aqui para te ajudar!

O australiano se ajoelhou ao lado dela e pôs a mão em


seu ferimento na barriga. Nicole tentou impedir que ele
encostasse no sangue, mas estava sem forças para afastá-lo.

152
A FORTALEZA DE GELO

— Você não entende... Não pode me salvar... Tem que


me deixar. Tem que ir embora!

Nicole viu Zhao parado na bairada da porta, seus


olhos totalmente negros e a boca aberta de uma forma
desumana, sangue pingando de seus lábios. Ele segurava o
corpo de outro oficial, que estava com uma marca de tiro no
meio da testa.

O alienígena atirou o morto escada abaixo, seu corpo


quicou pelos degraus.

Amedrontado, o homem tateou o chão pela sua arma,


e a encontrou. Era bem maior que uma pistola, mas Nicole
não sabia dizer o nome.

Zhao tinha sumido da porta.

Os dois ficaram parados, o australiano visivelmente


alerta. Nicole ficou esperando que o alien retornasse a
qualquer momento.

Ele apareceu alguns segundos depois segurando uma


pistola. O australiano pareceu tremer de medo com a visão
do corpo distorcido, mas continuou apontando a arma para
Zhao.

— Largue sua arma e coloque as mãos atrás da cabeça!

O alienígena olhou para o homem, depois para Nicole.


Então apenas correu para longe.

— Fique aqui! — O oficial pegou a sua arma do chão.


— Eu vou voltar.

153
A FORTALEZA DE GELO

O oficial Anderson subiu as escadas até o corredor.


Suas mãos tremiam, não conseguindo tirar da cabeça a
visão do homem com os olhos inteiramente enegrecidos.

Apontou a lanterna por cima da sua arma. Ao chegar


no corredor, mirou a FAL em todas as direções, mas não
havia sinais daquela coisa.

Ouviu algo caindo do teto atrás dele, mas antes que


pudesse se virar, sentiu uma arma apontada para as suas
costas. O metal fez pressão por cima da sua roupa de neve.

— Largue a arma.

Anderson engoliu em seco. Ele não conseguiria se


virar antes de levar um tiro. Não havia como se defender
naquele momento. O mais inteligente seria esperar uma
oportunidade melhor.

Contra a sua vontade, o oficial obedeceu, jogando sua


arma no chão.

— Isso, muito bem. Agora se vire e olhe diretamente


para mim.

Anderson fez o que a criatura pediu. O homem estava


sorrindo, seus olhos refletindo o brilho da lanterna que o
oficial ainda segurava.

— Agora me diga, você veio aqui usando um


helicóptero, certo? — Anderson assentiu. — Ótimo. Agora
você vai fazer o seguinte: você vai andando na minha frente
até a aeronave e vai pilotar ela pra mim. Entendeu?

O oficial apenas fez que sim com a cabeça.


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A FORTALEZA DE GELO

Enquanto tentava elaborar uma forma de reverter a


situação, andou até o lado de fora da estação, seguido por
aquele sujeito.

Quando abriu a porta, a claridade da Antártida


invadiu seus olhos. O sol refletia diretamente na neve,
enchendo o ambiente com uma luz branca que o cegava.

Anderson guardou a lanterna em seu bolso, e guiou a


criatura até o helicóptero.

O oficial abriu a porta e entrou, sentando no banco em


frente ao manche. A coisa entrou logo atrás dele, ainda com
a arma em punho.

— Então, como se pilota essa coisa? Explique.

Nicole ouviu horrorizada a conversa no corredor. O


alienígena não podia ir embora. Aquilo não podia
acontecer. Se ele conseguisse sair dali usando o helicóptero,
o mundo inteiro estaria perdido.

A jovem fez força para se levantar. Apoiou seus braços


nas laterais da escada e usou toda a energia que pode para
se erguer. Sentiu o tendão de sua perna, rompido pelo tiro,
a impedindo de se manter em duas pernas. Nicole caiu no
chão.

Tentou de outra maneira. Agarrou nas laterais da


escada, sem encostar a perna com o tiro no chão. Era
possível.

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A FORTALEZA DE GELO

A garota se abaixou mais uma vez. Ligou a lanterna de


seu celular, foi até o corpo do homem que havia sido
assassinado. Pegou a arma que estava com ele.

Nicole subiu as escadas em uma perna só, apoiando


seus braços nos corrimões, enquanto sentia o sangue
escorrer pela sua barriga, diante do esforço que estava
fazendo.

Finalmente conseguiu chegar no topo da escada.


Deixou seu corpo cair no corredor, deitada no chão.
Respirou ofegante por alguns segundos, até poder
recuperar o fôlego.

Tentou ficar de pé para poder andar até a porta. Nicole


sentiu uma facada na perna que havia levado o tiro. Parecia
que seu tendão estava sendo dilacerado naquele exato
momento. Engoliu a dor.

Sem o tendão, era impossível mexer a perna para


andar. Ela tinha que arrastar a perna pelo chão. A dor
aumentou progressivamente, a ponto de se tornar
insuportável.

A jovem soltou um grito de agonia, e caiu no chão


novamente.

Nicole começou a chorar, em parte pela dor, em parte


pelo que tinha que fazer, e parecia impossível.

Sem conseguir andar, a garota rastejou pelo corredor.


Tinha que chegar até a saída a tempo.

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A FORTALEZA DE GELO

O helicóptero já estava ligado, a hélice girando.


Nejahatuh ouviu as instruções do oficial atentamente, e
sabia que havia entendido tudo.

— Muito agradecido pelos seus serviços. — O


alienígena sorriu.

Nejahatuh se deslocou por cima do oficial e abriu a


porta do helicóptero atrás dele, o vento entrando dentro da
aeronave.

— Agora você não é mais necessário.

Com essas palavras, chutou o homem para fora do


helicóptero. Fechou novamente a porta e sentou no banco
em frente ao manche.

Nejahatuh poderia matá-lo, mas não quis desperdiçar


balas que poderiam ser necessárias quando posasse a
aeronave em algum lugar e precisasse fugir. Além disso, o
continente gélido faria seu trabalho. Não havia mais comida
naquela estação, a própria Carter havia garantido isso.

O alienígena se preparou para a decolagem.

Nicole conseguiu chegar na porta da estação. Largou


seu celular no chão, agora que a lanterna não era mais
necessária.

A ruiva viu o helicóptero com as hélices girando,


começando a levantar voo, já a alguns centímetros do chão.
Seu corpo congelou, e sentiu um arrepio na espinha.

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A FORTALEZA DE GELO

Havia chegado tarde.

“Não. Eu preciso conseguir.”

Na performance da sua vida, Nicole se pôs de pé nas


duas pernas, ignorando a dor lancinante em seu tendão
rompido. Engoliu em seco, sentindo o suor escorrendo pelo
rosto e o sangue pingando em quantidade cada vez maior
pela sua barriga.

A jovem pegou a arma e mirou no veículo. Sabia que


não era boa de tiro. Havia usado uma arma poucas vezes
apenas nos últimos dias. Mas simplesmente tinha que dar
certo.

Nicole respirou fundo e atirou. Ela caiu para trás com


o recuo da arma, sentindo que tinha gasto toda a energia
que possuía.

Com a visão embaçada pelo esforço, a garota tentou


distinguir o que estava acontecendo.

Nejahatuh sentiu um tiro atravessando sua garganta, e


perfurando a sua traquéia.

Levou a mão ao buraco. Não conseguia respirar.


Imediatamente largou o controle da máquina. Caiu no
banco do helicóptero, sentindo a falta de ar lhe consumir.

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A FORTALEZA DE GELO

Anderson viu o helicóptero caindo no chão. Sua base


encostou na neve, e a porta se abriu. A criatura, agora
pálida, rastejou para fora da aeronave, emitindo sons
inteligíveis com a boca.

O oficial olhou para o homem, percebendo o tiro que


havia atravessado seu pescoço.

Anderson se abaixou e pegou a arma que estava na


cintura da criatura. Apontou para a cabeça do sujeito e deu
um tiro de piedade.

Os olhos da coisa congelaram, sem vida.

Anderson foi até o helicóptero, cujas hélices ainda


giravam, e desligou o motor.

Em seguida, deu a volta na aeronave, e viu a jovem


mulher caída na porta da estação, semi consciente.

Nicole sentiu toda a sua energia se esvaindo pelo


esforço que acabara de fazer. Sua dor ficava cada vez mais
fraca, sendo tomada por uma sensação de calma, e sua
visão estava ficando embaçada.

Sentiu o homem pegando ela no colo e a carregando


escada acima. Tentou protestar, tentou falar alguma coisa,
mas a sua voz simplesmente não saia. Nicole não conseguia
mexer.

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A FORTALEZA DE GELO

Seus lábios se moviam para formar a palavra “não”,


mas nenhum som saía deles.

Tudo o que se sucedeu depois foi bastante confuso.


Uma claridade invadiu seus olhos, e logo sentiu seu capuz
sendo removido e uma máscara sendo colocada em seu
rosto.

A última coisa que ouviu foi o som das hélices girando


o helicóptero decolando, finalmente deixando o solo do
continente gélido.

Nicole adormeceu.

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A FORTALEZA DE GELO

EPÍLOGO
Jane Carter dirigiu o carro pelas ruas de Washington,
seu marido no banco ao lado.

Há algumas horas, tinham recebido uma ligação do


hospital municipal dizendo que sua filha estava internada
na UTI, e eles foram indicados com os parentes mais
próximos.

Quando ela perguntou o que havia acontecido, o


hospital disse que ela estava apenas ferida e sem energia,
mas não era nada grave.

Ela e seu marido, John, haviam dirigido por 3 horas


até chegarem na cidade.

Fazia mais de 2 anos que não viam Nicole. A última


vez fora numa festa de ano novo, na qual ela levara sua
namorada. Jane se perguntou se elas ainda estariam juntas,
já que o hospital tinha chamado os pais, e não a parceira.

Apesar da preocupação em relação à saúde da filha, a


idosa estava ansiosa para o reencontro. Seria bom poder dar
um abraço naquela menina e conversar sobre como ela
passou esses dois anos.

— Chegamos! — Ela sorriu para John quando parou o


carro em frente à instituição de saúde.

Os dois desceram e se identificaram na recepção.


Seguiram pelo elevador e pelos corredores até chegarem no
quarto onde Nicole estava internada.

Entraram no cômodo, vendo a jovem com um catéter


de oxigênio no nariz, um acesso no braço esquerdo e
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A FORTALEZA DE GELO

algumas ataduras pelo corpo. Ela lia um livro,


distraidamente, sem perceber a chegada do casal.

— Senhorita Carter — A enfermeira chamou. — Seus


pais estão aqui pra te ver.

Nicole olhou para os idosos e abriu um grande sorriso.


Jane e John sorriam também, sentindo um calor no coração.

— Mãe!! Pai!!

A jovem abriu os braços, e o casal foi até a cama e a


abraçou amorosamente.

Jane pôs a mão na testa da filha, afastando uma mecha


de cabelo que caia por cima dos olhos.

— Vocês não sabem como eu senti falta de vocês


durante todos esses anos!! Eu… — A voz dela falhou. — Eu
fico muito feliz de estarem aqui. E eu prometo que vai ser
diferente a partir de agora. Eu vou sair desse emprego, e a
gente vai poder se ver mais vezes.

— Ai filha… — Jane sorriu. — Eu não te via com essa


expressão de felicidade fazia muito tempo. Espero que seja
uma nova fase pra você. E que você aproveite bem. Você
merece o mundo, menina.

— Obrigada mãe!! — Elas se abraçaram mais uma vez.

— Filha — disse John. — O que importa pra mim é


que você esteja bem com o que está fazendo. E eu sinto que
você está feliz agora.

Nicole se alegrou e afastou uma lágrima dos olhos.

Jane olhou bem para a garota, sorrindo.

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A FORTALEZA DE GELO

Era engraçado.

Os olhos de Nicole eram mais escuros do que ela se


lembrava.

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A FORTALEZA DE GELO

A FORTALEZA DE GELO
Ninguém poderá te ouvir quando você gritar por socorro.

Yasu

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A FORTALEZA DE GELO

NOTA DO ESCRITOR
Comecei a escrever A Fortaleza de Gelo em 2017,
quando ainda estava no ensino médio, na boa e velha
UTFPR.

Na época, meu livro preferido era Ponto de Impacto,


do Dan Brown. Aquela leitura da aventura no ártico me
despertou um interesse muito grande pelo assunto, que se
uniu com outro gosto meu: filmes de terror.

Apesar de que a semelhança é que os dois se passam


em uma estação de pesquisa em um dos dois polos
terrestres. Acaba aí. Mesmo assim, o estilo de escrita do Dan
sempre me inspirou muito.

Escrevi mais ou menos até o trecho onde Alessandro e


Martha chegam na estação, e tive que parar no início de
2018 para me concentrar no vestibular. Desde então, a
faculdade tomou tanto tempo de mim que tive que
engavetar qualquer projeto literário.

Isso mudou quando se iniciou a pandemia de


Covid-19 e o mundo entrou em quarentena em março de
2020. Fiquei muito tempo em casa, e acabei conseguindo me
dedicar a alguns livros que tinha quase esquecido.

Entre 2020 e 2021, terminei meu primeiro livro,


Detetives Paranormais, e continuei esse por um bom tanto,
até o momento em que Kickett descobre que Richards está
infectado. Na época isso deu 83 páginas.

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A FORTALEZA DE GELO

Cheguei a pensar em inscrever o livro para algum


concurso literário, afinal, estávamos em uma época na qual
uma trama em torno de um vírus seria extremamente atual.
Mesmo eu tendo iniciado em 2017. Não consegui, era muito
trabalho para terminar em pouco tempo.

Em meados de 2021, uma amiga me disse “hey, esse


livro que você está escrevendo me lembra a The Thing”, e
eu simplesmente franzi a testa. Nunca tinha ouvido falar
desse filme “Kurt Russell?”, “sim, conheço esse ator”.

Fui assistir o filme e descobri que era


assustadoramente parecida com a ideia que tive anos atrás,
apesar de não conhecê-lo anteriormente.

De qualquer forma, acho praticamente impossível nos


dias de hoje escrever uma história que seja extremamente
diferente de qualquer coisa que já tenha sido feita por
alguém em algum momento.

Assisti The Thing e realmente amei esse filme. É um


clássico, afinal. Usei ele como inspiração e realmente me
ajudou bastante. Inclusive, fiz uma pequena homenagem
citando um filme fictício chamado “The Stuff”. Uma
referência não tão sutil.

Tem outro easteregg. O diretor da STCU se chama


"Elias Parsons", e o da Estação Mason "Alan Richards". No
final das contas, os dois juntos são uma referência a uma
das minhas maiores inspirações musicais, o Alan Parsons.

Bom, acontece que a quarentena acabou e, no final de


2021, tive que retornar presencialmente para a faculdade e

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A FORTALEZA DE GELO

para o estágio. Meu tempo ficou mais escasso e passei por


um forte bloqueio criativo.

Só retomei o livro em junho de 2023. Em cerca de dois


meses, consegui escrever o restante das páginas. Continuei
pesquisando, lendo artigos e livros sobre escrita,
procurando dicas de profissionais e assistindo filmes para
poder me inspirar e pegar referências, tentando evoluir
minha obra.

E esse foi o resultado. Um compilado de 6 anos de


trabalho. E tenho certeza que essa ainda não será a versão
final. Pretendo deixá-lo de lado por uns meses, e então
voltar e lê-lo inteiro novamente, do início ao fim.

Depois pretendo procurar ajuda de alguém que


trabalhe com revisão literária e algum consultor científico
que possa me dar uma luz sobre os devaneios de ficção
científica que escrevi. Será que exagerei na suspensão da
descrença? Vamos descobrir.

De qualquer modo, um dia esse livro verá a luz do dia


e será publicado. Não hoje. Mas veremos em quanto tempo
mais isso aqui ficará pronto.

Obrigado a você que leu até aqui. Significa que você é


uma pessoa especial pra mim, e que me ajudou bastante a
construir o que isso vai se tornar. E eu lhe agradeço
imensamente.

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A FORTALEZA DE GELO

Abraços,

Yasu.

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