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324 Lições de história

Gabriel Monod do forte sentimento nacionalista que o acompanhou ao longo da vida. A


repulsa ao militarismo do império alemão, vitorioso e expansionista com
Teresa Malatian a anexação da Alsácia-Lorena, resultou na escrita do livro Alemães e fran-
ceses. Na denúncia do chauvinismo e na recusa à violência firmava sua
posição pacifista.
A derrota da França na guerra, porém, não abalou sua admiração
pelo desenvolvimento científico e cultural da Alemanha, que tinha como
paradigma. Separava os dois aspectos: a política militarista de Bismarck e
a sedução intelectual pela cultura germânica, partilhada por intelectuais
franceses contemporâneos, postura que lhe valeu ser conhecido como
germanófilo e atraiu-lhe a antipatia do nacionalismo francês extrema-
do, catalisado por Charles Maurras e pelo movimento radical da Action
Française.
Seu brilhantismo crescente resultou na distinção profissional. Tornou-
se diretor de estudos e logo presidente da IV.e section da École Pratique des
Hautes Études, professor da École Normale Supérieure (1880), da Faculdade
“Nosso século é o século da história.” A frase otimista e de efeito inserida
de Letras de Paris (1904) e membro da Academia de Ciências Morais e Po-
no manifesto de fundação da Revue Historique condensa as preocupações
líticas (1897). A máxima consagração veio com o Collège de France (1906),
e o direcionamento da vida desse historiador, considerado um dos marcos
local de enorme prestígio intelectual, ápice de sua carreira, onde ocupou a
da historiografia do século XIX, na proposta de um procedimento meto-
cadeira de história geral e método histórico.
dológico claramente voltado para a inclusão da disciplina no campo cien-
Na École des Chartes, consagrada instituição de exame e leitura crítica
tífico marcado pelo positivismo. Gabriel Monod (1844-1912) lançava-se
de textos antigos, seguiu cursos como ouvinte e ali desenvolveu sociabili-
para a consagração como intelectual ainda muito jovem, aos 32 anos de
dades que teriam um papel preponderante em sua inserção no campo in-
idade, na sequência de um percurso promissor iniciado na École Normale
telectual e político da Terceira República (1870-1940). Sob o selo da École
Supérieure.
publicaram-se importantes estudos históricos, críticas de fontes e resenhas
Nascido em uma família de comerciantes da Normandia, neto de pasto-
de livros (Bibliothèque de l’École des Chartes — BEC). Por esse ambiente de
res protestantes, cresceu em ambiente propício à vida intelectual, prolonga-
estudos também ficaria marcada a formação de Monod.
do pelos estudos em Paris, onde frequentou círculos liberais e protestantes.
Era de fato o século da história, cuja inserção no campo da ciência vi-
Essa formação seria completada com cursos de paleografia seguidos na Ale-
nha sendo almejada por historiadores imbuídos do cientificismo e ampara-
manha, em 1865/1866, onde viveu também a decepção com Berlim e sua
da pela participação do Estado na construção de instituições favoráveis ao
atmosfera intelectual, à qual não conseguiu adaptar-se.
desenvolvimento do ofício do historiador que então se profissionalizava:
Grandes eventos marcaram sua vida, em especial a Guerra Franco-
Prussiana (1870/1871), na qual se engajou como enfermeiro, imbuído
ração de territórios franceses a esse novo Estado. Após a derrota de Sedan, o imperador Napo-
leão III foi feito prisioneiro, gerando-se assim condições para a proclamação da Terceira Repú-

Envolveu a França e os Estados germânicos encabeçados pela Prússia. Ocorreu no contexto blica francesa.
da unificação do império alemão, liderada pelo chanceler Otto von Bismarck e visou à incorpo- 
Monod, 1872.

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bibliotecas, arquivos, museus, patrocínio para publicação de grandes co- atribuir-lhes a responsabilidade pelo essencial da obra historiográfica da
leções. Ampliava-se também um público consumidor de história, no con- França no século XIX. Renan, pelas lições de método crítico; Taine, pela
texto nacionalista e de expansão colonial dominado pela burguesia. Isso foi tentativa filosófica de fazer da história uma ciência; Michelet, por deter
particularmente válido para a Alemanha, onde já se instituíra uma forma- o segredo criador da visão e da ressurreição do passado. Ali claramente
ção específica e especializada do profissional da história e os métodos de expôs uma concepção de história, devedora dos três historiadores. A dis-
investigação estavam adiantados na heurística e publicação de coleções de ciplina teria por objetivos criticar as tradições, os documentos e os fatos;
fontes documentais. desprender a filosofia das ações humanas, descobrindo as leis científicas
A inserção de Monod nesse ambiente favorável aos estudos históricos que as regem; dar vida ao passado. Com isso a perspectiva aberta em 1876
logo daria seus resultados. Em 1876 ele lançou a revista que o consagraria consolidava-se, depurava-se.
como chefe de escola historiográfica. Com um texto-manifesto intitulado Para bem alcançar a objetividade histórica em seu manifesto Monod
Do progresso dos estudos históricos na França desde o século XVI (reproduzido propunha uma revista que deveria colocar-se acima dos partidos políticos,
na íntegra mais adiante, excetuando-se as notas de erudição), inaugurava a publicando estudos históricos sem preconceitos, conciliadores e estrita-
Revue Historique, que se definia tanto pela oposição à já antiga de nove anos mente norteados pelo desejo de conhecimento científico. Neste aspecto,
Revue des Questions Historiques quanto pela afirmação de uma concepção revelava sobretudo seu descontentamento com o enfoque monarquista e
metodológica adequada às pretensões cientificistas da disciplina então em católico da Revue des Questions Historiques, constituída como oponente.
voga: o estudo imparcial e simpático do passado. Portanto, uma revista A primeira característica comum aos membros do grupo reunido por
destinada ao combate pela modernização ou atualização da disciplina aos Monod e tidos como padrinhos da revista era o fato de terem formação e
paradigmas vigentes no campo da ciência positiva. profissão no campo da história, portanto “trabalhadores sérios”, “funcioná-
Ao se posicionar contra a Revue des Questions Historiques, a Revue His- rios de Clio” saídos em grande parte da École Normale Supérieure ou da
torique demarcava para si um território republicano e laico, porém atento École des Chartes. A lista de “fundadores” incluía intelectuais de diversas
à preservação da pesquisa histórica desinteressada e científica. Na impos- tendências e alocações institucionais, entre eles Lavisse, Littré, Renan, Fus-
sibilidade de inaugurar um marco zero, Monod reconheceu ter nela se tel de Coulanges, Rambaud e Vidal de la Blache.
inspirado ao formatar sua revista, imitando-a para melhor conhecê-la. Assim o manifesto anunciava uma nova postura, a pretensão de fun-
Por outro lado, não bastava ser contrário a um campo historiográfico, dar uma revista que veiculasse uma história objetiva, científica, e formasse
era preciso firmar posição por meio de uma proposta efetiva que indivi­ uma escola visando firmar um paradigma para os historiadores e os que
dualizasse e distinguisse o grupo articulado por Monod e Gustave Fagniez. aspiravam a sê-lo. A adesão ao método era fundamental para essa indivi-
Tratava-se de reunir e dar identidade a vozes discordantes, não articuladas duação no campo historiográfico da época. Um método baseado na con-
em torno de um programa, porém inspiradas em Taine e Renan, que fize- cepção da história como ciência positiva, conhecimento fundamentado em
ram trabalhos de crítica histórica e apostaram no papel da dúvida cética documentos a serem criticamente analisados, para que do crivo da crítica
para a eficácia do trabalho do historiador. O papel de seus maîtres à penser, surgisse a verdade sob a forma de fato histórico.
Renan, Taine e Michelet, seria explicitado posteriormente por Monod ao Nos primeiros anos, a Revue Historique foi essencialmente uma arma
de combate, um episódio na longa batalha científica e política na França da
segunda metade do século XIX. Os sentimentos contraditórios em relação

O manifesto foi republicado na íntegra pela revista em 1978 (v. 17, n. 518).

Gustave Fagniez (1842-1927), um dos fundadores da Revue Historique, formou-se na École
des Chartes e seguiu cursos de Monod na École des Hautes Études. Tornou-se especialista em
história medieval e moderna e trabalhou como arquivista. 
Monod, 1895.

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à Alemanha não impediram, antes favoreceram a abertura das portas da formação erudita do historiador. Tais aproximações com outras disciplinas
revista à colaboração de historiadores alemães, cuja atuação acadêmica era — geografia, etnografia e as ciências consideradas “auxiliares” da história
admirada. Motivo a mais para Monod ser acusado de germanofilia, num — foram particularmente sugestivas de abertura para novos campos do co-
difícil percurso que procurava distinguir ciência de política. nhecimento, mas elas não deram ensejo a qualquer tentativa de incorpora-
Carbonell assinala que o intuito era “rebater o desafio alemão. Para ção de seus conceitos e métodos pelos estudos históricos numa perspectiva
isso, era preciso colocar-se na escola da Alemanha, imitar o que ela pos- interdisciplinar. A história metódica permaneceu ocupada com o relato
suía de bom, e assim, graças ao gênio francês mantido intacto, restituir à do único, singular, particular, baseado na crítica das fontes e na erudição
França o lugar que havia sido seu: o primeiro”. A comparação se impôs amparada pelo método crítico das fontes.
como um desafio desde o primeiro número da revista, com o cotejamento Duas décadas depois, os princípios dessa metodologia divulgados
da historiografia da França e de além-Reno. Cinco anos haviam se passado pela revista seriam sistematizados por dois jovens historiadores, Charles-V.
desde a derrota mutiladora do território nacional, e este fato espicaçava Langlois e Charles Seignobos, que publicaram em 1898 a Introdução aos es-
um ajuste de contas, ao menos no plano intelectual. Ranke e Mommsen tudos históricos. Nesse verdadeiro tratado de método, a proposta de Monod
forneciam os métodos a serem utilizados pela historiografia francesa que se foi de fato codificada e operacionalizada num manual para estudantes e
pretendesse científica: crítica interna rigorosa dos textos, reconstituições, profissionais; e, a despeito dos paradoxos decorrentes dos posicionamen-
análises desvinculadas da filosofia e da literatura. A auto-obliteração do tos políticos da revista e de seu fundador, formou gerações de profissionais
historiador era a garantia de uma história confiável e neutra, voltada para de história até mesmo após seu decreto de decrepitude por Simiand em
o estabelecimento do fato. 1903 e pelos Annales nas décadas de 1920-1930 — revista onde se articu-
O olhar retrospectivo lançado à revista permite que se tome uma lou a nova vanguarda de outros combates pela história e pela ocupação de
amostra do território temático por ela visitado. No período de 1876 a postos no establishment universitário francês.
1900, por exemplo, pode-se verificar um quadro variado da distribuição Cabe ainda sublinhar que o comprometimento maior de Monod era
dos temas publicados pelo periódico, ainda que nele predominasse a his- com a religiosidade na época da fundação da revista, e isso fica bastante
tória política: claro na exposição de seu manifesto inaugural. No entanto, aqui também
seu itinerário não deixou de ser acidentado. Formado no protestantismo,
F política interna — 21,3%;
passou à sedução pelo catolicismo, a que se seguiu uma crise de ceticismo
F política externa e história colonial — 15,8%;
para buscar novos horizontes no hinduísmo e no misticismo esotérico de
F história socioeconômica — 12,3%;
Schopenhauer. Ainda que em 1876, ao criar a revista, estivesse próximo do
F história religiosa — 11,4%;
protestantismo liberal, sua posição ecumênica o identificava antes como
F história militar — 9,6%;
historiador vinculado ao cristianismo. Monod viveu uma polêmica que
F outros temas — 9,6%.
dividiu opiniões a respeito das relações entre ciência e política.
Quanto à sua composição, além de resultados de pesquisas e publi- Os posicionamentos políticos de Monod mantiveram-se sempre no
cação crítica de fontes, a revista distinguiu-se pela publicação maciça de campo republicano, enquanto os restauradores formavam no campo opos-
resenhas críticas de alta qualidade e voltadas para temas relevantes para a to fileiras saudosas do Antigo Regime. Mas o republicanismo não o apro-


Den Boer, 1998:334. A respeito do tipo de história divulgada pela Revue Historique, ver tam-

Carbonell, 1978:344. bém Dosse (1992); Bourdé e Martin (1983).

Den Boer, 1998:334. 
Ribérioux, 1992.

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ximou da esquerda, e o espetáculo da Comuna de Paris lhe bastara para Um dos fundadores da Liga dos Direitos do Homem (1898), Monod
que temesse as sublevações populares. No entanto, sua tomada clara de participou do julgamento de Rennes diretamente no exame dos documen-
partido não o impelia à ação na política interna nos anos 1880; somente tos. Pela imprensa, incansável, Monod publicou cartas e artigos, inclusi-
na década seguinte seria solicitado e responderia a um apelo nacional no ve sob o pseudônimo de Pierre Molé (“Uma exposição imparcial do caso
caso Dreyfus. Em questão, a legitimidade do engajamento de intelectuais Dreyfus”). Seu envolvimento com o caso Dreyfus traduz o peso que o méto-
no debate político que polemizou o “imperativo cívico” em torno do caso do histórico crítico de documentos adquiriu na época do longo julgamento
Dreyfus. Dois modelos de eruditos então foram contestados e colocados iniciado em 1894 e encerrado em 1906, com a absolvição do acusado. A
face a face: de um lado, o do “homem completo”, jornalista, ensaísta, cien- École des Chartes, em especial, desempenhou nele um papel fundamental,
tista e ator político, que na tradição iluminista estava encarregado da mis- pois seus historiadores estiveram na linha de frente na batalha de perícias
são de intervir no debate político; de outro, o do “especialista” preocupado destinadas a verificar a confiabilidade dos documentos que sustentaram a
apenas com o conhecimento do real e a busca da verdade. As relações entre condenação de Dreyfus como espião a serviço da Alemanha.
saber e poder cavaram trincheiras e mobilizaram os historiadores.10 Por outro lado, além da validade do método rigoroso de exame
A atuação política de Monod nesse contexto é uma reviravolta. Supe- das provas, estavam em causa a própria autonomia da ciência histórica
rada a grande comoção da derrota na Guerra Franco-Prussiana, 20 anos se diante da política e a legitimidade da intervenção dos historiadores no
passariam antes que um novo evento sacudisse a França inteira e solicitasse debate político. O chamado ao “imperativo cívico” mobilizou tanto os
dos intelectuais um engajamento contra ou a favor do caso Dreyfus.11 que acreditavam na inocência de Dreyfus e consideravam o caso um
Monod foi então levado à primeira linha do combate que mobilizou erro judiciário quanto os situados no campo oposto. O próprio ofício do
o nacionalismo, o antissemitismo e a situação dos direitos humanos na historiador estava em causa, também, com os desdobramentos do deba-
França. Inicialmente descrente da inocência de Dreyfus, em 1895 mudou te sobre a autonomia da disciplina e sua função social. Nesse contexto,
sua posição após ouvir a família do acusado, duvidando da validade de um também a Revue Historique e a IV.e section da École Pratique des Hautes
processo realizado em ambiente antissemita e nacionalista inflamado. Études passaram por forte mobilização dreyfusista. Muitos historiadores
O exame do processo convenceu-o de que este se baseava em provas saíram da posição de reserva, de seus redutos acadêmicos, onde separa-
falsificadas, forjadas para atender a interesses que intitulou de “ódios religio- vam ciência e política, para participar da batalha pela identificação das
sos e raciais, sob a aparência de uma simples questão de justiça a um ato de provas do processo como verdadeiras ou forjadas.
traição à pátria”. Numa França dividida pela enorme repercussão do caso, Olhando o caso da perspectiva de Monod, é de se ressaltar que ele não
em carta publicada no jornal Le Temps em 6 de novembro de 1897, Monod participara da École des Chartes senão como aluno ouvinte, mas ali tecera
assumiu a defesa da inocência do acusado, reclamando a revisão do caso. relações com intelectuais e dela não se afastara após a criação de sua revis-
ta. Paul Meyer, codiretor da Revue, era um dos historiadores chartistas do
círculo de Monod. Além disso, Monod era bem relacionado nos meios po-
10
Ribémont, 2005.
11
O affaire Dreyfus consistiu num erro judiciário que resultou na condenação do capitão Alfred líticos, inclusive tinha contato com o ministro dos Negócios Estrangeiros.
Dreyfus (1859-1935). Em 1894 ele foi acusado de ter agido como espião e entregado documen- Havia fundado em 1880 a Société Historique com a finalidade de promo-
tos secretos do Exército francês aos alemães. Julgado por traição, foi deportado para a ilha do
ver discussões sobre política e filosofia. Cinco anos depois, ela já contava
Diabo, na Guiana Francesa. Em 1898, o escritor Émile Zola assumiu publicamente a defesa de
Dreyfus com a denúncia intitulada J’accuse, que motivou a reabertura do processo. Em Rennes, com 500 membros, entre juízes, advogados, diplomatas, parlamentares e
em 1899, um novo julgamento reafirmou a condenação, desta vez a 10 anos de trabalhos força- intelectuais. Com tal rede de sociabilidade, Monod foi chamado a partici-
dos. Somente em 1906 a inocência de Dreyfus foi reconhecida, motivando sua reabilitação. O
centro do julgamento final foi a prova de perícia do dossiê que o incriminara, e nela foi conclu-
par do esforço de provar a inocência de Dreyfus, sendo para isso colocadas
siva a constatação da falsidade dos documentos por historiadores especialmente convidados. à sua disposição cópias dos documentos fundamentais do processo. Sua

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estatura intelectual e reputação de respeitabilidade acabaram por colocá- jou-se com outros historiadores no combate pela questão do Oriente, que
lo no centro do furacão, servindo de bússola para outros historiadores. avaliava a situação do império otomano na perspectiva já consagrada na
Do ponto de vista historiográfico, o caso Dreyfus tornou-se uma batalha época: a do “grande doente” cuja morte era esperada a qualquer momento
de perícia centrada na necessidade de comprovação da credibilidade dos pelos analistas da política internacional. Monod prefaciou em 1898 a pri-
documentos que instruíram o processo judicial e na legitimidade do en- meira das muitas edições da obra de Édouard Driault, La question d’Orient,
gajamento de historiadores em questão que envolvia razão de Estado. O onde a história diplomática dos anos que antecederam a I Guerra Mundial
método e a competência legítima foram então postos à prova e respaldaram
foi sendo constantemente atualizada nas sucessivas reedições, num claro
os partidários da intervenção dos historiadores na vigilância crítica sobre
exemplo de engajamento de historiadores na história imediata ou do tem-
os direitos humanos. Afinal, as provas apresentadas contra Dreyfus foram
po presente, ou seja, na história contemporânea.12
consideradas frágeis e, decididamente, falsas.
O auge da participação de Monod nesse episódio ocorreu em 1898,
quando a carta de Émile Zola intitulada “J’accuse” foi divulgada, gerando
Do progresso dos estudos históricos na França
a denúncia e o envolvimento do escritor no processo. Até 1906, quando
desde o século XVI13
Dreyfus foi reabilitado, o processo mobilizou a competência profissional
dos historiadores a partir de seus títulos científicos, de seu reconhecimen- No momento de empreender uma publicação que contribuirá, es-
to pelos pares e, sobretudo, do uso do método científico que se supunha peramos, para o progresso dos estudos históricos em nosso país, importa
ser capaz de garantir a autonomia científica, a função cívica e nacional da determinar bem qual meta perseguimos, qual será o caráter dos trabalhos e
história. qual espírito inspirará nossas pesquisas.
Monod, que havia defendido a postura de distanciamento temporal Para precisar esses diversos pontos, nos pareceu que não seria sem
do historiador em relação aos eventos, jogou-se por inteiro na história de utilidade nem sem interesse lançar um olhar rápido sobre o caminho per-
seu tempo, na história do tempo presente, alargando assim o território corrido durante os últimos séculos pelas ciências históricas, a fim de me-
temporal pertinente ao seu ofício. Já não era possível, nesse caso, escapar lhor apreciar o grau de desenvolvimento que elas atingiram hoje, a tarefa
às paixões do presente, mas a confiança na lisura do método amparava a que lhes resta a cumprir e o caminho que elas devem seguir.14
reviravolta que unia ética e política, responsabilidade científica e de cida- A história, quer a consideremos como um ramo da literatura, quer
dania. A ciência histórica recebeu e aceitou a missão de encarregar-se da como uma ciência, data para nós do Renascimento. Sem dúvida, a Idade
Média15 havia tido entre seus cronistas escritores notáveis, tais como Join-
vigilância cívica.
ville, Villani ou Froissart, mas eles não são em sentido exato historiadores;
A grande comoção do caso Dreyfus foi também seguida pela mobili-
têm em vista antes o presente que o passado; querem mais conservar para
zação de intelectuais franceses, notadamente historiadores, a favor de mi-
norias perseguidas e de flagrantes violações dos direitos humanos. A histo-
ricização do caso contribuiu para que historiadores franceses se interessas-
12
Driault, 1898; Ter Minassian, 2008; Andoniam, 1913.
13
Monod, 1876.
sem por outras tragédias recentes. Foi o caso dos massacres de armênios 14
Esta exposição do progresso dos estudos históricos na França é ao mesmo tempo a introdução
no império otomano, prática corrente nas últimas décadas do século XIX, e o programa de nossa revista.
15
Aqui como em outras expressões, foi feita uma atualização da grafia no que diz respeito ao
mas em especial em 1898. Mais uma vez, Monod atendeu ao apelo cívico e uso de maiúsculas/minúsculas, conforme as formas consagradas na atualidade no Brasil. Os
coerente com a postura assumida na Liga dos Direitos do Homem e enga- nomes próprios e toponímicos foram traduzidos sempre que se trata de referências conhecidas,
conservando-se no idioma original as demais. (N. do T.)

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a posteridade a lembrança dos eventos que viram e dos quais tomaram do, reservado durante muito tempo a uma minoria privilegiada, tornou-se
parte do que expor para seus contemporâneos uma imagem fiel dos tempos uma paixão universal, a principal preocupação de quase toda a sociedade.
anteriores. Seu mérito literário consiste sobretudo na vida, no movimen- O humanismo teve uma influência decisiva sobre o desenvolvimento
to, na paixão que animam seus relatos, e não na arte com a qual a obra é da historiografia. Esta influência se exerceu em dois sentidos opostos. En-
composta, na justa proporção de suas partes, na equidade imparcial dos quanto os letrados e oradores, imitando os historiadores da Antiguidade,
julgamentos. substituíam as compilações sem arte da Idade Média por composições lite-
Na parte de suas obras em que eles não foram testemunhas oculares, rárias, nas quais a arte se desenvolvia muitas vezes em prejuízo da verdade,
mas narram os fatos que conheceram pelos escritores anteriores, os cronis- os filólogos, arqueólogos e juristas se aplicavam ao estudo das instituições,
tas da Idade Média são incapazes de representar os eventos e de relatá-los dos costumes e dos monumentos com esta curiosidade ardente sem a qual
de uma maneira original e pessoal; não sabem fazer outra coisa que copiar não existe verdadeira erudição. Foi por amor à Antiguidade que esta curio-
suas fontes, ou compor com seus extratos um mosaico. Aquilo que deno- sidade erudita logo despertou; da Antiguidade ela se estendeu à Idade Mé-
minamos pesquisas históricas, crítica histórica, não podia existir na Idade dia, a qual, à medida que o Renascimento se desenvolvia, tornava-se cada
Média. Não poderia ocorrer ao pensamento de um homem dessa época a vez mais para os homens do século XVI como que uma segunda Antiguida-
ideia de buscar nas diversas obras antigas ensinamentos esparsos sobre este de. Era preciso, de fato, para que o sentido histórico pudesse se desenvol-
ou aquele personagem, sobre este ou aquele fato, sobre esta ou aquela ins- ver, que o passado aparecesse bem claramente distinto do presente, que se
tituição para criar um conjunto novo, um quadro original. A curiosidade pudesse estudá-lo de um ponto de vista objetivo e como que a distância.
histórica, quando a encontramos, não era senão a reunião infantil de ane- Na Itália, foram dois humanistas, Flávio Biondo e Aeneas Sylvius
dotas tomadas de vários lugares, reunidas mais em vista do divertimento Piccolomini, os precursores da erudição histórica. Após eles, Paul Jove e
que da instrução, como a Otia Imperialia de Gervaise de Tilbury ou a Nugae Bembo compuseram obras em que a retórica teve mais espaço que a histó-
Curialium de Gautier Map. Existiram na Idade Média compiladores e cro- ria, mas que, apesar disso, passaram por modelos aos olhos de seus con-
nistas, não historiadores. temporâneos, enquanto eruditos como Albertini, Strada, Onofrio Panvini e
Não foi senão com o Renascimento que começaram de fato os estudos Sigonius inauguraram os estudos de arqueologia, epigrafia e numismática
históricos. A descoberta da imprensa mudou todas as condições do traba- pelo exame atento dos monumentos figurativos.
lho intelectual, facilitando a reunião de um grande número de livros, seu Enquanto na Itália a atenção dos sábios permanecia concentrada na
emprego simultâneo e sua comparação, estabelecendo uma demarcação Antiguidade, que oferecia um campo infinito de descobertas, na Alemanha,
sensível entre as épocas ainda bárbaras, nas quais não havia senão pesados onde os restos da Antiguidade eram pouco numerosos e as tradições e insti-
e grossos volumes escritos em pergaminho, e a era nova em que o pensa- tuições da Idade Média subsistiam mais vivas que em qualquer outro lugar,
mento se difundia facilmente por toda parte, ao mesmo tempo sob uma o estudo da Idade Média andou lado a lado com o da Antiguidade. Acon-
forma manejável e leve, graças a esta descoberta. Ao mesmo tempo que teceu na ciência histórica o mesmo que nas belas-artes. Assim como Albert
mudavam as condições de trabalho, uma revolução lentamente preparada Dürer, Holbein, Pierre Fischer, Lucas Cranach conservaram fortemente a
desde o século XI se fazia no espírito dos homens dos séculos XV e XVI. marca da Idade Média, mesmo que tivessem recebido o impulso vivificante
A Antiguidade, por muito tempo ignorada e desdenhada, foi redescoberta, do Renascimento italiano, C. Peutinger, Tritheim, Aventino, C. Celtes, Cus-
conhecida, admirada em seus monumentos, em suas instituições, em sua piniano, embora humanistas e ardorosos amantes da Antiguidade, tinham
história, sobretudo em suas obras literárias, que a imprensa logo colocou em relação às coisas da Idade Média um interesse que, naquela época, não
em todas as mãos. A cultura eclesiástica da Idade Média deu lugar, mesmo existia em parte alguma no mesmo grau. Desde 1474, publicou-se uma
entre as pessoas da Igreja, a uma cultura profana e laica. O estudo do passa- parte da crônica de Ursperg, que foi impressa completa em 1515 por C.

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Peutinger. Ele editou ao mesmo tempo Jordanis e Paulo Diácono, enquanto como o primeiro escritor francês que procurou substituir a crônica pela
seu amigo Celtes compunha sua Germania illustrata e recuperava as obras história; tanto isso é verdadeiro que é preciso fazer remontar aos humanis-
de Hroswitha e o poema intitulado Ligurinus. Depois do humanismo, a Re- tas a honra desse progresso literário.
forma veio dar novo impulso às pesquisas históricas. Os centuriadores16 de Se a literatura histórica foi lenta a se desenvolver na França, a erudi-
Magdebourg, ao aplicarem à história da Igreja uma crítica com frequência ção não fez progressos mais rápidos, sobretudo no que concerne à história
temerária e apaixonada, mas vigorosa e apoiada sobre vasta erudição, não nacional.
somente criaram uma obra que marcou época na ciência histórica, mas De fato, foi somente na segunda metade do século XVI que a curiosi-
também provocaram a composição do mais belo monumento da erudição dade histórica despertou verdadeiramente na França. As causas deste des-
católica do século XVI, os anais de Baronius. Pode-se considerar a crítica pertar são múltiplas. O movimento da Reforma foi acompanhado de uma
teológica como o ponto de partida e a origem da crítica histórica. Esta in- aceleração da atividade intelectual, de um espírito quase universal de livre
fluência da teologia sobre a história, sensível no século XVI, foi ainda mais pensamento e de investigação científica; as lutas políticas forçavam todos
importante no desenvolvimento da erudição alemã do século XVIII. os que se encontravam nelas envolvidos a procurar armas na história e
A França, cujo desenvolvimento esteve no século XVI tão intimamen- na erudição; os grandes trabalhos de jurisprudência, o desenvolvimento
te ligado ao da Itália, demorou a se interessar pelos estudos históricos. dos estudos jurídicos, aos quais presidiam os homens ao mesmo tempo
Enquanto para os eruditos alemães a Idade Média era a época do poder imbuídos da Antiguidade e versados no conhecimento das leis herdadas da
imperial, herdeira direta do império romano, para os estudiosos franceses Idade Média, os impeliam ao exame das instituições nacionais da França.
a Idade Média não era senão a época da feudalidade e da barbárie; e via-se Também se vê que os eruditos, que estiveram à frente por seus trabalhos
já nascer esse desprezo por nosso passado nacional, que deveria aumentar históricos ao final do século XVI, eram protestantes ou homens que per-
entre os letrados durante os séculos XVII e XVIII, contribuir para com as tenciam ao grupo dos políticos e professavam, se não o ceticismo filosófico,
violências revolucionárias e prejudicar ao mesmo tempo a ciência histórica ao menos as ideias galicanas17 e hostis às tendências ultramontanas; enfim,
e o desenvolvimento político do país. Foi um humanista e italiano, Paolo quase todos eram jurisconsultos, homens de toga, advogados, conselhei-
Emili, de Verona, quem ensinou aos franceses a arte de escrever a história ros, juízes nos parlamentos.
quando compôs, em latim, atendendo ao pedido de Luís XII, seu De rebus As obras desses diversos eruditos testemunham uma prodigiosa ati-
gestis Francorum, onde encontramos todo o aparato retórico à maneira de vidade intelectual. Todos os assuntos eram abordados, empreendimento
Tito Lívio que fez a reputação de Paul Jove e de Bembo. Esta história pa- de uma singular audácia. Enquanto Scaliger estabelecia as bases de uma
receu tão maravilhosa aos contemporâneos que, durante longos anos, nin- cronologia metódica, Etienne Pasquier esboçava a história das instituições,
guém ousou rivalizar com ele; e quando em 1576 du Haillan compôs uma Fauchet submetia pioneiramente as Antiquités gauloises et françoises a uma
nova História da França, não fez senão traduzir Paul-Émile, intercalando crítica imparcial, Bodin e La Popelinière procuravam estabelecer os princí-
ali extratos de crônicas e de considerações políticas geralmente errôneas. pios do método e da crítica histórica.
No entanto, não foi sem motivo que Augustin Thierry assinalou du Haillan

17
O galicanismo constituiu uma tendência da Igreja Católica na França de procurar tornar-se
independente de Roma e do papa. O termo origina-se de Gália, antigo nome da França. No
16
O termo está relacionado à obra Centuries de Magdebourg, a primeira história protestante da contexto do absolutismo, expressou a busca de autonomia do poder real em relação à autori-
Igreja, que utilizou a periodização em séculos como recurso indispensável para situar eventos dade temporal do papado. Em 1692 o rei Luís XIV promoveu uma assembleia do clero francês
no passado. O início desse procedimento metodológico recua a 1559, quando historiadores que afirmou as liberdades religiosas da Igreja em seu território. Opôs-se à autoridade do papa
reunidos em torno de Faccius Illyricus publicaram o primeiro volume das Centuries, nome re- e às teses ultramontanas que defendem a submissão de toda a Igreja à Santa Sé, inclusive em
sumido e consagrado de uma obra dividida em volumes segundo os séculos. (N. do T.) assuntos temporais. (N. do T.)

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Esses esforços, que testemunham uma curiosidade tão inteligente, talhe, ensinar os historiadores a se servirem de documentos. Essa foi a obra
um tão vivo ardor da erudição, eram prematuros. As paixões contempo- dos eruditos do século XVII, continuada durante o século XVIII; obra que,
râneas exerciam um império muito poderoso sobre os homens do sécu- apesar dos progressos alcançados desde então, não está ainda hoje termi-
lo XVI para que eles pudessem julgar com imparcialidade as instituições nada. A pacificação das paixões políticas e das paixões religiosas contribuiu
do passado; eles não amavam suficientemente a Idade Média para poderem poderosamente para dar esta direção nova aos estudos históricos.
compreendê-la bem e, ao mesmo tempo, procuravam demais a justifica- Enquanto no século XVI os historiadores se envolveram nas lutas parti-
ção e a confirmação de suas ideias políticas contemporâneas. Por outro dárias, serviram-se da erudição como arma de combate, professando mesmo
lado, os documentos publicados eram ainda pouco numerosos, as ciências a maioria opiniões, se não heréticas, ao menos audaciosas e um pouco revo-
auxiliares da história pouco desenvolvidas, a crítica muito vacilante para lucionárias, no século XVII, pelo contrário, eles trabalharam com a assistên-
que fosse possível resolver todas as questões que eles abordavam com uma cia e por assim dizer sob a direção da realeza; foram os fiéis servidores dela e
confiança juvenil. Eles queriam construir o edifício antes de colocar seus quase todos tiveram funções e um caráter oficiais.
fundamentos. Pasquier, Bodin e Hotman eram demasiado passionais; Fau- Ao lado dessa influência monárquica e governamental que se exerceu
chet e La Popelinière tinham entre as mãos materiais muito insuficientes pelos grandes ministros do século XVII, uma outra influência agiu tam-
para poder criar obras duradouras. Eles plantaram sementes úteis, abriram bém fortemente sobre a erudição histórica: a influência eclesiástica. Desde
os caminhos para os historiadores futuros, não deixaram nada de defini- que as guerras de religião chegaram ao fim, e que os decretos do Concílio
tivo. Os alemães, bem inferiores nessa época aos franceses do ponto de de Trento19 fizeram na Igreja uma reforma parcial; desde que os perigos
vista da inteligência, da originalidade e da profundidade de visão, prepara- da anarquia democrática dos ligueurs e da anarquia aristocrática dos pro-
vam mais utilmente o terreno para as pesquisas históricas, publicando de testantes foram afastados, a religião na França foi pacificada como tudo
1566 a 1610 oito compilações de historiadores da Idade Média, enquanto a mais. Tendências diversas dividiam sem dúvida o clero, mas sem causar,
França não havia ainda produzido senão as coletâneas de Pithou e de Bon- ao menos até a explosão contra o jansenismo,20 graves dissidências. Todos
gars. Também ocorreu que um erudito dinamarquês publicou em 1616, na os membros do clero secular e do clero regular21 encontravam-se unidos
Holanda, a primeira obra séria sobre as origens da história da França, as no exercício dos deveres de seu estado, no respeito pela autoridade real
Origines francicae de J. Isaac Pontanus. e no zelo comum pelo estudo e pelos trabalhos intelectuais. Sem dúvida
A França não tardou em ir à desforra. Enquanto na Alemanha a Guer- eles não podiam trazer essa audácia para as pesquisas e teorias, essa inde-
ra dos Trinta Anos18 não somente convulsionava o Estado, mas também pendência que torna tão interessantes e simpáticos os eruditos do sécu-
trazia a ruína para o país inteiro e paralisava quase inteiramente o trabalho lo XVI; mas possuíam outras qualidades que faltavam a seus predecessores.
intelectual, a França, pacificada por Henrique IV e Richelieu, entrava num
período de atividade regular e fecunda. Era necessário, porém, que um tra-
balho mais metódico desse à erudição histórica essas bases sólidas, sem as
19
O Concílio de Trento (1545-1563) consistiu num dos momentos fundadores da Igreja Católica.
Foi convocado pelo papa Paulo III para garantir a unidade da fé e da disciplina eclesiástica em
quais todo trabalho de generalização seria prematuro. Era preciso antes de reação à Reforma protestante. Também conhecido como Concílio da Contrarreforma. (N. do T.)
tudo publicar textos, elucidar por uma crítica minuciosa os pontos de de- 20
O jansenismo foi um movimento religioso e político na França e na Bélgica, nos sécu-
los XVII e XVIII, de inspiração calvinista. Expressou uma reação ao absolutismo real e a aspec-
tos da Igreja Católica, sendo seu ponto fundamental a crença de que o pecado original implicou
a corrupção irremediável da natureza humana e a inclinação do homem para o mal. (N. do T.)
18
A Guerra dos Trinta Anos (1618-1648) consistiu em diversos conflitos entre reinos europeus, 21
Os membros do clero regular seguem, como o nome diz, as regras de uma ordem ou congre-
motivados por rivalidades religiosas, dinásticas, territoriais e comerciais. O Sacro Império Romano gação religiosa, vivendo em mosteiros. Já o clero secular vive no “século”, pois está submetido
Germânico e a casa de Habsburgo constituíram seu centro principal, mas também foram envolvi- apenas à autoridade de um bispo, trabalhando a serviço exclusivo de uma diocese. Vive a vida
dos a Suécia, os Países Baixos e a França. Terminou com a Paz de Vestfália (1648). (N. do T.) cotidiana em contato com o mundo dos leigos. (N. do T.)

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Tinham a paciência, o método, o espírito de tradição que permite os vastos maravilhoso conhecimento da literatura hagiográfica, mas também um sen-
e longos empreendimentos, a regularidade e a prudência no trabalho, en- so muito correto, uma liberdade de julgamento e um sábio ceticismo que
fim e sobretudo o amor e a compreensão da Idade Média, que é a grande nem sempre são encontrados no mesmo grau nas obras dos beneditinos.
época da Igreja. O século XVI havia reencontrado a Antiguidade; somente Por mais importante que tenha sido a obra dos jesuítas, dos orato-
no século XVII teve início, na França ao menos, a redescoberta da Idade rianos, do jansenista Tillemont e de alguns membros do clero secular, tais
Média. A história da Idade Média é em grande parte a história da Igreja Ca- como Pierre de Marca ou Longuerue, ela empalidece ao lado dos trabalhos
tólica; não se pode separar uma da outra, e era impossível compreendê-la da ordem ilustre, cujo nome é suficiente para despertar a ideia de uma
sem conhecer o direito canônico, a teologia, a disciplina eclesiástica, numa erudição inesgotável e trabalhos infatigáveis. Uma ciência de beneditino,
palavra, toda a vida da Igreja. Era preciso ser guiado por um verdadeiro um trabalho de beneditino, essas expressões se tornaram proverbiais; e,
amor ao passado para empreender os longos e áridos trabalhos solicitados ainda que uma parte da glória intelectual associada a esse nome deva ser
para o escrutínio dos manuscritos e das cartas legadas pela Idade Média. relacionada aos beneditinos da Idade Média, a maior parte dela recai so-
Onde se poderia encontrar esse conhecimento, essa inteligência, este amor bre a congregação criada em 1627 sob a invocação de Santo Amaro, e que
ao passado senão no clero? No clero regular sobretudo, cuja regra ordenava tinha por sede principal a abadia de Saint-Germain-des-Prés. Não será
os trabalhos do espírito entre os deveres religiosos, cujos conventos con- necessário enumerar os inumeráveis trabalhos históricos devidos aos be-
servavam acumulados há séculos imensas riquezas manuscritas, e onde a neditinos da congregação de Santo Amaro desde meados do século XVII
humildade e a obediência monásticas colocavam o devotamento obscuro até o fim do XVIII. Basta lembrar os nomes de d. Ruinart, de d. Marlot,
de todos a serviço do gênio de alguns. de d. Luc d’Achery, de d. Mabillon, o historiador de sua ordem, o criador
De todos os lados surgiram obras: jesuítas, oratorianos, jansenistas, da ciência diplomática, de d. Montfaucon, que estabeleceu os princípios
beneditinos rivalizaram em ardor e atividade. Os jesuítas foram os primei- da epigrafia grega e mostrou todo o benefício que o historiador pode tirar
ros com Sirmond, que publicou Idace (1611), Flodoard (1619), e a primeira dos monumentos figurativos, de d. Martène e d. Durand, de d. Félibien,
coleção dos Concílios da França (1629). O padre Denis Petau e Philippe de d. Martin, que tentou prematuramente tornar conhecidos os costumes,
Labbe não estiveram abaixo em lançar glórias a sua ordem, o primeiro a história e a religião dos gauleses. Não contentes de publicar as melhores
como cronologista, o segundo como editor de textos. O padre Daniel, cuja edições dos padres que se fizeram até então, e de refundar o glossário de
história da França é superior não somente a todas as que haviam sido com- Du Cange e a diplomática de Mabillon, os beneditinos empreenderam
postas antes dele, mas também à maioria das que foram compostas depois grandes compilações que são ainda hoje a base de todos nossos estudos
dele, era jesuíta. Ao mesmo tempo, às portas da França, em Anvers, os sobre a Idade Média: a Gallia Christiana, a Art de vérifier les dates, a cole-
jesuítas começavam, sob a direção de Jean Bolland, as imensas compilações ção dos historiadores da França, a história literária da França e a coleção
das Acta Sanctorum, cujo plano havia sido feito por Heribert de Roswey e das histórias provinciais. Exceto a Art de vérifier les dates, nenhum desses
que continua até hoje. É muito comum depreciar-se essa compilação com- repertórios pôde ser por eles terminado, mas os beneditinos trabalharam
parando-a à dos beneditinos, e é certo que estes tiveram mais cuidado ao neles com uma atividade prodigiosa que em muito supera a dos eruditos
escolher seus textos, como também mais discrição em seus comentários. de hoje. Não admiramos nelas somente as qualidades intelectuais que
O empreendimento colossal de Bolland e de seus colaboradores não deixa ali foram por eles desenvolvidas, sua erudição e solidez de julgamento,
de ser por isso um monumento de grande valor, não somente pela massa mas também as raras virtudes necessárias ao cumprimento de sua tarefa,
de materiais que eles reuniram, mas também pelos trabalhos de crítica que sua modéstia, sua abnegação e essa mistura de piedade respeitosa e fir-
acompanham os textos. Sua erudição é de costume prolixa e mal ordenada; me independência de espírito que deu a seus trabalhos tanta gravidade e
mas apesar disso encontram-se, nos primeiros volumes, não somente um autoridade.

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Enquanto a ciência eclesiástica se ilustrava assim no século XVIII, a sobre os estudos históricos e abriam-lhes novos horizontes. Buscava-se,
ciência laica não permanecia inativa. Ela tendia mesmo, sob a direção da então pela primeira vez, associar os fatos a ideias gerais; procurava-se com-
realeza que a havia encorajado e sustentado durante o século XVII, a se preender o desenvolvimento da civilização e suas leis. A história universal,
organizar e a associar os esforços dos sábios, tendo em vista grandes empre- que com Bossuet havia permanecido fechada no quadro estreito da teolo-
endimentos análogos aos dos beneditinos. A Academie des Inscriptions et gia, tornou-se para o espírito penetrante de Voltaire, em seu Ensaio sobre
Médailles criada por Colbert e desenvolvida por Luís XIV tornou-se, no sé- os costumes, objeto de considerações apoiadas sobre uma ciência por vezes
culo XVIII, sob o nome de Academie des Inscriptions et Belles-Lettres, uma frágil, mas cujo acerto e profundidade com frequência profética nos surpre-
sociedade que se ocupava sobretudo de pesquisas de filologia, literatura e endem hoje. Ao mesmo tempo, o despertar de discussões políticas deu um
história. Encontramos entre seus membros a maior parte dos eruditos que interesse poderoso às questões relativas à origem das instituições francesas,
marcaram o século XVIII na sociedade histórica. A academia empreendeu e foram transportadas para o passado todas as paixões do presente. Mon-
também grandes coleções, semelhantes às dos beneditinos, mas ela não tesquieu foi, no século XVIII, o representante mais eminente deste espírito
dispunha das mesmas facilidades nem do conjunto de devotamentos que novo ao mesmo tempo filosófico e político aplicado ao estudo da história
tais obras pressupõem. Ela teve, é verdade, Bréquigny, homem de uma in- e das leis. Ele trouxe uma elevação de pensamento e uma penetração su-
teligência e de uma atividade extraordinárias, digno de ser comparado a periores, mas suas obras são mais adequadas a estimular e a fecundar o
du Cange ou a Mabillon, mas que não podia atender às múltiplas tarefas espírito que a esclarecê-lo e guiá-lo com segurança. De todas essas generali-
das quais estava encarregado. Sobre ele quase sozinho repousou todo o zações, de todos esses sistemas históricos, nenhum deveria subsistir em seu
trabalho da coleção das ordenações, da tábua geral das cartas e diplomas, conjunto, mas todas as questões estavam colocadas, ao mesmo tempo com
da compilação dos diplomas, da coleção dos pergaminhos gascões. maior amplitude e precisão. Após os trabalhos dos eruditos e dos filósofos,
Os trabalhos dos beneditinos e os da Academie des Inscriptions et a história aparecia como a base, o centro e o fim de todas as ciências. Todas
Belles-Lettres estão longe de representar todo o movimento histórico do deveriam se servir dela e contribuir para esclarecer aquilo que faz a essên-
século XVIII. Dele constituem a parte mais sólida, porém não a mais bri- cia e o interesse verdadeiro da história: o desenvolvimento da humanidade
lhante. O espírito aventureiro e inovador do século XVI, pacificado e com- e da civilização.
primido no XVII, ressurgiu no XVIII. O libertino22 Saint-Évremond foi o A revolução e o império, que a sucedeu fatalmente, suprimiram qua-
primeiro a fazer da história um objeto de considerações filosóficas e morais se inteiramente os estudos históricos. A revolução, em sua cega aversão
sobre a política, sobre as instituições, sobre o gênio dos diversos povos, contra todas as instituições do passado, destruindo as ordens religiosas
sobre o caráter dos escritores que a relatam. O protestante Louis de Beau- e as academias, paralisou subitamente todos os trabalhos de erudição. A
fort, em suas pesquisas sobre a República romana, misturou a hipóteses compilação de diplomas de Bréquigny, a teoria das leis francesas de Mlle.
arrojadas e a teorias paradoxais visões de gênio nas quais resultados da de Lézardière não puderam sequer ser colocadas à venda. O governo
crítica moderna eram pressentidos e antecipados. O movimento filosófico imperial, que, como herdeiro da Revolução, não permitia que se falasse
e as preocupações políticas que agitavam todos os espíritos agiam também bem do antigo regime, e como protetor do princípio de autoridade, não
permitia também que se dissesse mal dele, não foi mais favorável aos
estudos históricos. De resto, durante esses anos trágicos de lutas intesti-
22
Charles Marguetel de Saint-Denis, senhor de Saint-Évremond (1613-1703), político e escritor
francês, pertenceu ao libertinismo, movimento cultural ocorrido no século XVII e relacionado nas, de início, depois de guerras europeias, nos quais a França não teve
ao conceito de “espírito livre”, sobretudo em reação a crenças estabelecidas, de caráter religioso. paz nem liberdade, não havia lugar algum para os trabalhos pacíficos e
Defendeu os conceitos de liberdade de costumes, vida natural e na natureza como perfeição
desinteressados da erudição, assim como para as vastas concepções da
divina, ausência de restrições aos instintos, busca de prazer físico, sem aceitar a noção de pe-
cado. (N. do T.) filosofia da história.

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O impulso dos estudos históricos só foi mais rápido e enérgico quan- Foi a Alemanha que contribuiu para a maior parte do trabalho histó-
do a Restauração devolveu à França, com uma parte de suas tradições pas- rico de nosso século. Outros países podem citar nomes de historiadores tão
sadas, a liberdade e a paz das quais ela tinha sido privada por tão longo brilhantes quanto os seus; nenhum poderá citá-los em tão grande número;
tempo. O abismo cavado pela revolução e pelo império entre a antiga e a nenhum pode se gabar de ter feito tanto progredir a ciência. Esta superio-
nova França permitia julgar o passado com maior distanciamento, com ridade a Alemanha deve sem dúvida a seu gênio, essencialmente adequado
maior imparcialidade, sob um ângulo mais justo; o esforço para retornar às pesquisas pacientes da erudição; ela a deve também ao pequeno desen-
às tradições da monarquia legítima dava ao mesmo tempo o desejo de se volvimento que a vida pública e a vida industrial tiveram do outro lado do
aproximar do passado e de bem compreendê-lo. De resto, um movimento Reno até uma época recente e à alta estima na qual ela sempre teve os tra-
análogo se produzia em toda a Europa e vinha favorecer a corrente intelec- balhos do espírito; ela a deve, sobretudo, à forte organização de suas uni-
tual que encaminhava os espíritos na França em direção aos estudos histó- versidades. Em lugar de desaparecer lentamente, como na França a partir
ricos. Ao desenvolvimento das ciências positivas, que é o caráter distintivo do século XVI, para não deixar subsistirem senão os colégios de instrução
de nosso século, corresponde, no domínio do que chamamos literário, o secundária, o ensino superior foi, ao contrário, gradualmente modificado
desenvolvimento da história, que tem por objetivo submeter a um conhe- segundo as necessidades do tempo, abandonando as tradições eclesiásti-
cimento científico e mesmo às leis científicas todas as manifestações do cas e teológicas da Idade Média para se abrir ao espírito livre e laico, e
ser humano. As criações originais do espírito se tornaram cada vez menos conservando a alta direção intelectual do país. Os hábitos universitários
numerosas, a contemplação puramente estética das obras intelectuais foi ali se mantiveram e mesmo desenvolveram. Do mesmo modo, enquanto
sempre mais descuidada para dar lugar às pesquisas históricas. História na França o movimento científico e literário foi quase absolutamente es-
das línguas, história das literaturas, história das instituições, história das tranho às universidades e se concentrou na magistratura, no clero e nas
filosofias, história das religiões, todos os estudos que têm o homem e os academias, na Alemanha ele se concentrou nas universidades. A teologia,
fenômenos do espírito humano por objeto assumiram um caráter histórico. longe de ser um obstáculo aos estudos sérios, graças ao espírito de liber-
Nosso século é o século da história. dade que ali reina, tornou-se o domínio onde a crítica se exerce com mais
Graças aos progressos das ciências e dos métodos científicos, a his- minúcia e rigor. Graças às suas grandes corporações de eruditos e profes-
tória possui hoje maravilhosos meios de investigação. Pela filologia com- sores, estabeleceram-se fortes tradições científicas, hábitos universais de
parada, pela antropologia, até pela geologia, ela mergulha seus olhares em método e de crítica. Pela força mesma das coisas e sem acordo prévio, a
épocas para as quais os monumentos fazem falta, assim como os textos exploração dos diversos domínios da história seguiu uma marcha regular
escritos. As ciências acessórias, a numismática, a epigrafia, a paleografia, e sistemática e foi facilitada pelo trabalho em comum, tão fácil de se es-
a diplomática, lhe fornecem documentos de uma autoridade indiscutível. tabelecer entre os professores de uma universidade, secundados por seus
Enfim, a crítica dos textos, estabelecida sobre princípios e classificações alunos. Pode-se sem dúvida censurar mais de um defeito à ciência alemã
verdadeiramente científicos, permitem-lhe reconstituir, se não em sua contemporânea, sua prolixidade, suas minúcias, suas sutilezas, os esforços
pureza primitiva, ao menos sob uma forma tão pouco alterada quanto que ela faz muitas vezes para chegar a resultados mesquinhos, o pouco de
possível todos os escritos históricos, jurídicos, literários que não foram cuidado que ela adota para com a forma literária e que provém metade do
conservados em manuscritos originais e autógrafos. Assim secundada, desdém, metade da impotência. O trabalho que ela realizou neste século
armada de tais instrumentos, a história pode, com um método rigoroso não é menos grandioso. Publicações de textos, crítica de fontes históricas,
e uma crítica prudente, se não descobrir sempre a verdade completa, ao elucidação paciente de todas as partes da história examinadas uma a uma
menos determinar exatamente sobre cada ponto a certeza, o verossímil, e sob todos os seus aspectos, nada foi negligenciado. Basta lembrar os no-
o duvidoso e o falso. mes de Lassen, Boeckh, Niebuhr, Mommsen, Savigny, d’Eicheron, Ranke,

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Waitz, Pertz e Gervinus, ou lembrar as coleções do Corpus Inscriptionum, os trabalhos históricos, nunca exerceu, no entanto, influência sensível so-
dos Monumenta Germaniae, do Jahrbücher des Deutschen Reiches, das Chroni- bre a direção dos estudos. Nós ali ganhamos talvez em originalidade, ao
ken der Deutschen Staedte, as Fontes rerum Austriacarum, os Scriptores rerum menos do ponto de vista da forma literária; ali perdemos do ponto de vista
Prussicarum etc., e as publicações excelentes das inumeráveis sociedades da utilidade científica dos trabalhos de nossos historiadores. Eles são quase
históricas que cobrem a Alemanha. Pode-se comparar a Alemanha a um todos autodidatas; não tiveram mestres e não formaram discípulos. Impuse-
vasto laboratório histórico no qual todos os esforços são concentrados e ram à história a marca de seu temperamento, de sua personalidade. São de
coordenados e onde nenhum esforço é perdido. Para apreciar ali em seu costume, mesmo os mais eruditos, mais literatos que sábios. A prova disso
justo valor o movimento histórico, seria preciso passar em revista todos os é que não se pode vê-los retomando e remanejando as obras para colocá-las
demais ramos de estudos, pois o método histórico é aplicado em toda par- atualizadas em relação aos progressos da ciência. Eles as reeditam com 20
te. Todas as outras ciências, filologia, direito, teologia, filosofia, se servem anos de distância sem nada mudar nelas.23 Sint ut sunt aut non sint.24 O que
da história e são solicitadas por ela a contribuir. Seria ademais bem injusto lhes importa em seus escritos são menos os fatos em si que a forma que
imaginar-se, como se faz por vezes, que a ciência alemã seja desprovida de eles lhes deram.
ideias gerais e se reduza a pesquisas de curiosidade erudita. Ao contrário, A esta falta de tradições científicas e de unidade de direção, aos arre-
as ideias gerais ali são abundantes, somente não são fantasias literárias, batamentos da imaginação vieram se juntar as paixões políticas e religiosas.
inventadas em um momento de capricho e pelo charme da imaginação; Os mais eminentes entre os historiadores deixaram-se influenciar forte-
não são sistemas e teorias destinados a agradar por sua bela aparência e sua mente em suas teorias, em suas apreciações e mesmo em sua crítica dos
estrutura artística; são ideias gerais de um caráter científico, isto é, gene- fatos pelas paixões contemporâneas. Isto é bem verdadeiro para Thierry,
ralizações de fatos lentamente e rigorosamente estabelecidos, ou hipóteses mas também para Guizot, para Michelet como para Thiers. O exemplo e a
destinadas a explicar os fatos já conhecidos e a servir à exploração de fatos lembrança do século XVIII os levou, de resto, a generalizações precipita-
ainda obscuros. É graças a essas ideias gerais que as ciências históricas das, e eles imaginavam que, uma vez terminada a revolução e, sobretudo,
podem merecer realmente o nome de ciências, estabelecer bases sólidas e a carta de 1830 proclamada, teria chegado o momento de escrever de uma
realizar progressos seguros. Nenhum país contribuiu mais que a Alemanha maneira definitiva a história geral da França ou mesmo, como E. Quinet,
para dar aos estudos históricos esse caráter de rigor científico. de traçar em algumas páginas a filosofia da história da França.
O desenvolvimento dos estudos históricos na França está longe de ter Apesar desses defeitos de nossos historiadores mais ilustres, eles nos
alcançado a mesma regularidade. As causas devem ser procuradas, como prestaram imensos serviços. Esse sentimento artístico e literário, essa po-
na Alemanha, no gênio da nação, mais espontâneo, mais impaciente, mais tência de imaginação que os levou excessivamente a substituir com suas
inclinado às seduções da imaginação e da arte; mas também na ausência impressões pessoais a realidade dos fatos permitiu-lhes ao mesmo tempo
de todo ensino superior eficaz, de toda disciplina científica geral, de toda ressuscitar o passado, dar-lhe suas verdadeiras cores, fazê-lo compreender
autoridade diretora, dessas regras de método, desses hábitos de trabalho por assim dizer pelos olhos, dando-lhe um relevo, uma vida extraordinária.
coletivo que toda alta educação universitária proporciona. A Academie des Essas paixões políticas e religiosas, que os conduziram tantas vezes a alterar
Inscriptions, que sucedeu em 1816 aos beneditinos para a realização dos a verdade, lhes permitiram também penetrar mais profundamente que ou-
grandes trabalhos que eles empreenderam — os historiadores da França,
a Gallia Christiana e a história literária; que retomou os trabalhos da antiga
academia — as tábuas cronológicas e a compilação de diplomas e cartas, e Ver Michelet, Guizot e o próprio Auguste Thierry.
23

Diz-se do papa Clemente XIII que, ao ser instado a fazer mudanças drásticas nos estatutos da
24
a compilação das ordenações; que empreendeu mesmo uma coleção nova,
Ordem Jesuíta, teria assim respondido: Sint ut sunt aut non sint (que seja como é, ou não seja de
a dos historiadores das Cruzadas; e que outorgou prêmios numerosos para modo algum). (N. do T.)

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tros o fizeram na alma dos homens do passado, deslindar seus sentimentos nal pela ideias gerais, onde eles não queriam ver senão fantasias ou frases,
íntimos, compreender o lado psicológico e humano da história. Esta ten- e se refugiaram com uma espécie de preconceito em minúcias e detalhes de
dência a filosofar, que engendrou tantas teorias apressadas e falsas, revelou fatos muitas vezes sem interesse. Os homens que verdadeiramente ilustra-
com frequência as relações íntimas e escondidas dos eventos, e a gravidade ram a ciência histórica não a compreendiam assim. Augustin Thierry não
de fatos aparentemente insignificantes. acreditava transgredir seu talento literário quando consagrava seus esforços
Aos historiadores franceses pertence, sobretudo, a glória de terem a classificar os documentos relativos à história do Terceiro Estado;25 Miche-
colocado a vida na história, de terem ali buscado o homem em lugar dos let procurava conter sua imaginação não avançando nada que não pudesse
fatos, e de terem criado uma agitação intelectual fecunda pela quantidade apoiar sobre textos, e considerava os arquivos como o verdadeiro laborató-
de pontos de vista novos, de ideias gerais, prematuras a maioria das vezes, rio do historiador; ninguém fez mais que Guizot pela publicação de textos
mas quase sempre engenhosas e interessantes, que eles divulgaram em seus e documentos históricos. Mas esses homens eminentes não puderam se
escritos. Sua influência foi imensa, e os alemães, cujo método era oposto ao opor às consequências fatais da falta de um ensino superior bem organiza-
seu, foram os primeiros a reconhecê-lo. do, no qual a juventude viesse adquirir ao mesmo tempo uma cultura geral
Chateaubriand renovou a concepção que se fazia da história da França e hábitos de método, de crítica e de severa disciplina intelectual.
em suas Considerações plenas de intuições de gênio; Thierry, cuja vocação Hoje, no entanto, se a França tem a infelicidade de ver desaparece-
histórica foi despertada pela leitura de Chateaubriand, restituiu aos tempos rem, um após outro, sem que sejam substituídos, todos os historiadores
bárbaros e à Idade Média suas verdadeiras cores; Guizot procurou decom- que fizeram sua glória por seu gênio de pensadores e de escritores, temos
por em seus elementos a civilização da Europa e a da França e mostrou na ao menos esta consolação de ver os sadios métodos de trabalho e de crítica
Revolução da Inglaterra o jogo das paixões políticas e religiosas; Michelet se difundirem cada vez mais, o antagonismo entre a literatura e a erudição
melhor que ninguém soube fazer reviver não somente a aparência exterior diminuir, e uma concepção mais justa da ciência histórica aparecer gra-
do passado, mas as paixões, os sentimentos e as ideias que agitaram os dualmente. Aproximam-se as escolas por tanto tempo rivais. Compreen-
homens; enfim, Tocqueville, em seu livro inacabado sobre O Antigo Regime deu-se o perigo das generalizações prematuras, dos vastos sistemas a priori
e a Revolução, apoiando suas ideias gerais sobre um estudo sério dos fatos, que têm a pretensão de tudo abarcar e de tudo explicar. Compreendeu-se
modificou de alto a baixo as ideias recebidas sobre as relações que uniram também o pequeno interesse que oferecem as pesquisas de pura curiosi-
a nova França à antiga, e viu uma continuação lógica lá onde se acreditava dade, que não são guiadas por nenhuma ideia de conjunto, por nenhum
ver uma contradição radical. Ao lado desses Dii Majores da literatura histó- plano traçado com antecedência. Sente-se que a história deve ser objeto
rica na França encontramos admiráveis narradores, como Barante, Thiers e de uma investigação lenta e metódica, em que se avança gradualmente do
Mignet, e um escritor mais poeta que erudito, com espírito vago e aventu- particular ao geral, do detalhe ao conjunto; em que se esclarecem suces-
reiro, mas que, em suas Revoluções da Itália e em seu livro sobre a Revolução sivamente todos os pontos obscuros, a fim de ter quadros completos e de
Francesa, teve verdadeiras adivinhações históricas: Edgar Quinet. poder estabelecer, sobre os grupos de fatos bem constatados, ideias gerais
A maior dificuldade que a ciência histórica teve que enfrentar, na suscetíveis de prova e verificação. É pouco provável que a segunda metade
França, foi a separação ou, melhor dizendo, a espécie de antagonismo que do século veja surgir obras históricas tão deslumbrantes quanto as que ilus-
durante muito tempo pretendeu-se estabelecer entre a literatura e a erudi-
ção. Muitos dos letrados afetaram uma espécie de desprezo pelas pesquisas
de erudição, acreditando que a imaginação, o bom senso, certa dose de 25
Terceiro Estado foi uma classificação da sociedade francesa durante o Antigo Regime, até a Revo-
lução Francesa. Indicava os que não pertenciam ao clero (Primeiro Estado) nem à nobreza (Segun-
espírito filosófico e o estilo bastariam; os eruditos, por seu lado, por vezes
do Estado). Trata-se de uma categoria heterogênea, tanto econômica como socialmente considera-
mostraram um desdém excessivo pela forma literária, uma aversão irracio- da, incluindo a burguesia, os camponeses, artífices e operários de manufaturas. (N.do T.)

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traram a primeira, mas podemos afirmar que a atividade histórica será nela felizes resultados que produziu, o proveito que nós mesmos retiramos de
fecunda. Todos os eruditos estão ao mesmo tempo persuadidos de que o sua leitura foram um estímulo para que a imitássemos. Mas ao mesmo
estilo e a forma literários estão longe de serem ornamentos supérfluos; que tempo ela se afasta muito do ideal que nos propomos, para que sua exis-
eles acompanham quase sempre os trabalhos maduramente elaborados, e tência faça parecer a nossa inútil. Ela não foi fundada simplesmente tendo
que somente eles lhes dão um valor durável. O estilo não consiste em ar- em vista a pesquisa desinteressada e científica, mas para a defesa de cer-
redondar as frases sonoras, mas em revestir o pensamento da forma que tas ideias políticas e religiosas. O sentido no qual as pesquisas históricas
lhe convém; a crítica histórica, assim como a história narrativa comportam devem ser dirigidas é indicado com antecedência por certas ideias gerais
cada qual formas literárias especiais, e o talento de escrever e de compor se que, expressas ou subentendidas, parecem aceitas de antemão por todos os
exerce tanto numa como na outra. A crítica, de resto, não trabalha senão colaboradores.
para preparar as vias da história narrativa e mesmo, em certa medida, da É sobre um princípio totalmente oposto que fundamos a Revue His-
história filosófica. Nesses quadros mais vastos, o talento e o gênio podem torique. Pretendemos permanecer independentes de toda opinião política e
naturalmente se desenvolver mais amplamente. religiosa, e a lista de homens eminentes que aceitaram patrocinar a Revue
Apesar de todos os progressos alcançados, estamos ainda, portanto, prova que eles creem esse programa factível. Estão longe de professar todos
em um período de preparação, de elaboração de materiais que mais tarde as mesmas doutrinas em política e em religião, mas pensam como nós que
servirão à construção de edifícios históricos mais vastos. a história pode ser estudada em si mesma, e sem se preocupar com con-
Os progressos alcançados até agora nada mais fizeram do que iluminar clusões que possam dela ser tiradas a favor ou contra uma ou outra cren-
as condições de uma investigação verdadeiramente científica, e esta investi- ça. Sem dúvida as opiniões particulares influem sempre, em certa medida,
gação está apenas começando. Todos os que se dedicam a ela são solidários sobre a maneira pela qual se estudam, se veem e se julgam os fatos ou os
uns com os outros; trabalham na mesma obra, executam partes diversas do homens. Mas deve-se fazer um esforço para afastar essas causas de preven-
mesmo plano, buscam o mesmo objetivo. É útil, é mesmo indispensável ção e de erro para somente julgar os eventos e os personagens em si mes-
que eles se sintam todos unidos, e que seus esforços sejam coordenados mos. Admitimos, por outro lado, opiniões e apreciações divergentes, sob
para serem mais poderosos. Diversos meios podem contribuir para isso. condição de que sejam apoiadas sobre provas seriamente discutidas e sobre
Um ensino superior bem organizado contribuiria mais que qualquer outra fatos, e que não sejam simples afirmações. Nossa Revue será um repertório
coisa. As sociedades eruditas sérias, como as muitas que possuímos, servem de ciência positiva e de livre discussão, mas ela se limitará ao domínio dos
para isso poderosamente. A Revue Historique, que surge hoje, quer trabalhar fatos e permanecerá fechada às teorias políticas ou filosóficas.
no mesmo objeto. Ela quer não apenas favorecer a publicação de trabalhos Não empunhamos, portanto, nenhuma bandeira; não professaremos
de detalhes originais e sérios, mas também e acima de tudo servir de elo nenhum credo dogmático; não nos envolveremos sob as ordens de nenhum
entre todos os que consagram seus esforços à vasta e múltipla investigação partido; o que não quer dizer que nosssa Revue será uma babel onde todas
da qual a história é o objeto; fazer-lhe sentir sua solidariedade, fornecer-lhe as opiniões virão se manifestar. O ponto de vista estritamente científico
as informações precisas e abundantes sobre tudo o que se realiza atualmen- em que nos colocamos bastará para dar à nossa coleção a unidade de tom
te nos campos variados das ciências históricas. Queríamos contribuir para e de caráter. Todos os que se colocam nesse ponto de vista experimentam
formar pelo exemplo de um bom método os jovens que querem ingressar em relação ao passado um mesmo sentimento: uma simpatia respeitosa,
na carreira histórica, encorajar e manter no bom caminho os que já nele mas independente. O historiador não pode de fato compreender o passado
estão, servir a todos de centro de reunião e informação. sem certa simpatia, sem esquecer seus próprios sentimentos, suas próprias
Há nove anos, uma revista foi fundada com intenções análogas às ideias, para se apropriar por um instante daqueles dos homens do pas-
nossas, a Revue des Questions Historiques. O sucesso que ela alcançou, os sado, sem se colocar em seu lugar, sem julgar os fatos no meio em que

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ocorreram. Ele aborda ao mesmo tempo esse passado com um sentimento a consciência profunda da feliz e necessária solidariedade que as une a
de respeito, porque ele sente melhor que ninguém os mil laços que nos gerações anteriores, mas fazendo ver ao mesmo tempo que essas tradições,
unem aos ancestrais; ele sabe que nossa vida é formada pela deles, nossas que são uma força para caminhar adiante, se tornariam funestas se alguém
virtudes e nossos vícios por suas boas e más ações, que somos solidários pretendesse ali aprisionar-se como em formas imutáveis.
uns aos outros. Há algo de filial no respeito com o qual ele busca penetrar Nossa época, mais que todas as outras, é adequada para esse estudo
em sua alma; ele se considera o depositário das tradições de seu povo e da imparcial e simpático do passado. As revoluções que abalaram e desordena-
humanidade. ram o mundo moderno fizeram desaparecer das almas os respeitos supers-
Ao mesmo tempo, porém, o historiador conserva a perfeita indepen- ticiosos e as venerações cegas, mas elas fizeram também compreender tudo
dência de seu espírito e não abandona nada de seus direitos de crítica e de o que um povo perde de força e vitalidade quando rompe violentamente
julgamento. O tesouro das tradições antigas se compõe de elementos os com o passado. No que concerne especialmente à França, os eventos dolo-
mais diversos, elas são fruto de uma sucessão de períodos diferentes, de rosos, que criaram em nossa pátria os partidos hostis se apegando cada um
revoluções até, as quais, cada uma no seu tempo e por sua vez, tiveram a uma tradição histórica especial, e os que mais recentemente mutilaram a
todas sua legitimidade e sua utilidade relativas. O historiador não é o de- unidade nacional lentamente criada pelos séculos, nos colocam como que
fensor de umas contra as outras; ele não pretende riscar umas da memória um dever de despertar na alma da nação a consciência de si mesma pelo
dos homens para dar às outras um lugar imerecido. Ele se esforça para conhecimento aprofundado de sua história. É por aí somente que todos
encontrar suas causas, definir seu caráter, determinar seus resultados no podem compreender o laço lógico que une todos os períodos do desen-
desenvolvimento geral da história. Ele não faz o processo da monarquia em volvimento de nosso país e mesmo todas as suas revoluções; é por aí que
nome da feudalidade, nem de 1789 em nome da monarquia. Ele mostra os todos se sentirão os rebentos do mesmo solo, os filhos da mesma raça, não
laços necessários que unem a revolução ao Antigo Regime, o Antigo Regi- renegando parte alguma da herança paterna, todos filhos da velha França, e
me à Idade Média, a Idade Média à Antiguidade, observando sem dúvida ao mesmo tempo todos da mesma maneira cidadãos da França moderna.
os erros cometidos e que é bom conhecer para que seu retorno seja evitado, É assim que a história, sem se propor outro objetivo e outra finalidade
mas deve se lembrar sempre que seu papel consiste antes de tudo em com- que o proveito que se tira da verdade,26 trabalha de maneira secreta e segura
preender e explicar, não em louvar ou condenar. para a grandeza da pátria e, ao mesmo tempo, para o progresso do gênero
Bem poucos historiadores se elevam, de fato, a esta imparcialidade humano.
científica. De costume uns se fazem advogados do passado, maldizendo
cada mudança que o progresso dos tempos traz e se consumindo em la-
mentos estéreis sobre o que ele destruiu sem volta; outros, pelo contrário,
se fazem os acusadores do passado, apologistas de todas as revoltas e de
todas as revoluções, incapazes de compreender as grandezas desapare-
cidas em sua impaciência de um ideal sempre por chegar. O verdadeiro
historiador é aquele que, elevando-se acima dessas tomadas de posição
apaixonadas e exclusivas, concilia tudo o que há de legítimo no espírito
conservador com as exigências irresistíveis do movimento e do progresso.
Ele sabe que a vida e a história são uma perpétua mudança; mas que essa
mudança é sempre uma transformação de elementos antigos, jamais uma
criação inteiramente nova. Ele dá às gerações presentes o vivo sentimento, 26
La Popelinière (Premier livre de l’idee de l’histoire accomplie, p. 66).

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