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K. Arsenault Rivera

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Copyright © 2023 por Wizards of the Coast

capa e projeto gráfico


Farbo Editora

Imagem de Capa

(Imagem sob licença Creative Commons – Atribuição)

Preparação
RedFox Studio

Tradução
Rissa Rodrigues e MTGLore

Revisão

Impressão

[2023]
Todos os direitos desta edição reservados à
Farbo Digital Ltda.
Avenida Paulista, 1634 – cj 1504
São Paulo – SP – CEP 01310-200 – Brasil
www.farboeditora.com.br

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A todos os jogadores de Magic

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Sumário

EPISÓDIO 01: TRIUNFO DOS DESCARNADOS ..................................... 11


EPISÓDIO 02: PRENDENDO A RESPIRAÇÃO ........................................ 28
EPISÓDIO 03: UMA MÃE, UM FILHO, E UMA HISTÓRIA ..................... 44
EPISÓDIO 04: SOB OLHOS BEM ABERTOS .......................................... 60
EPISÓDIO 5: REUNIÃO CATÁRTICA ..................................................... 76
EPISÓDIO 06: O ÚLTIMO A SAIR ......................................................... 90
EPISÓDIO 07: INTERVENÇÃO DIVINA ............................................... 106
EPISÓDIO 8: WRENN E OITO ............................................................ 120
EPISÓDIO 09: OS ANTIGOS PECADOS DE NOVA PHYREXIA .............. 137
EPISÓDIO 10: OS RITMOS DA VIDA .................................................. 153
HISTÓRIAS PARALELAS ..................................................................... 172
ARCAVIOS: UM CORAÇÃO RADIANTE .............................................. 173
IKORIA: A SOBREVIVÊNCIA DO MAIS FORTE .................................... 194
IXALAN: TREZENTOS DEGRAUS SOB O SOL ...................................... 214
INNISTRAD: FAMILY GAME NIGHT ................................................... 240
ELDRAINE: AS AVENTURAS DE RANKLE, MESTRE DO AMOR ........... 256
RAVNICA: UM E O MESMO............................................................... 272
NOVA CAPENNA: A QUEDA DE PARK HEIGHTS ................................ 288
ZENDIKAR: BATALHAS NO CAMPO E NA MENTE ............................. 309
CONSEQUÊNCIAS.............................................................................. 327
AQUELA QUE QUEBRA O MUNDO ................................................... 328
IRRECUPERÁVEL ............................................................................... 350

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EPISÓDIO 01: TRIUNFO DOS
DESCARNADOS

É muito bom ser phyrexiano.


É muito bom ser Elesh Norn.
Isso sempre foi verdade, mas nunca tanto quanto agora. Três
vermes – Kaya, Kaito e Tyvar, como os outros os chamavam – estão
diante dela implorando por misericórdia. Ah, eles não estão fazendo
isso em voz alta, mas Norn vê. Norn entende. O medo assombra
seus olhos e enrijece seus corpos. Armas tremem nas mãos pálidas.
Como eles estão desorientados. Se eles se submetessem, ela poderia
acabar com todos os seus defeitos, mas ela sabe que eles recusariam
uma oferta tão magnânima, um ato de benevolência. Não valia a
pena perguntar.
Assim como os esforços deles não valem a pena.
Todos serão um. E agora não vai demorar muito.
“Fiquem do nosso lado,” ela diz a eles. “Contemplem a glória de
Nova Phyrexia.”
“Vá para o inferno,” diz o menor deles. O maior se move na
direção dela, mas o outro o puxa de volta. Típico. A discórdia vive
no coração dos incrédulos. Mesmo quando são tão poucos, eles
nunca estão realmente unidos.
Se eles conseguissem enxergar pelo menos isso.
Um mero movimento do pulso de Norn é suficiente para invocar
os portais – tudo neste lugar está ligado à sua vontade. Metal clica e
desliza e se reorganiza em torno deles. Cinco íris se abrem em cinco
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Planos alternativos. Não importa como seus céus começaram –
violeta quente, cinza ardósia ou preto como carvão – agora eles
pulsavam com uma luz vermelha. Símbolos phyrexianos brilhavam
entre as nuvens. É por esses portais que agora ela assiste às invasões.
Os enormes galhos pontiagudos da Destruidora de Reinos
explodem, ancorando-se onde quiserem. Rios de óleo abençoado
deságuam sobre a terra. Cápsulas voam das farpas presas, voando
em todas as direções, porém sempre em perfeita sincronia. Alguns
centuriões e golems procriadores e outros que aguardariam as almas
perdidas que logo chegariam.
Para as três criaturas perdidas diante dela, um nascer do sol é algo
belo. Phyrexia sabe melhor das coisas. Milhares de bocas falando a
uma só voz; milhares de olhos com uma única visão; milhares de
mentes com apenas um pensamento. Isso sim é beleza.
E eles o criaram com suas próprias mãos numerosas.
“Você já conheceu alguma unidade semelhante?” ela pergunta.
A menor abre a boca. Antes que as palavras saiam, outra voz
muito mais agradável a interrompe. “Fizemos como você pediu.”
Lukka – esse é o nome dele, não é? Um dos humanos vomita ao
vê-lo, mas para Phyrexia, ele é um exemplo brilhante do futuro que
os espera. Ah, então ele era um pouco rústico nas extremidades. Eles
suavizariam aquilo em breve. A carne treme ao ver sua própria
destruição; é natural.
Norn se volta para seus evangelistas sagrados. Jace sai de fininho
– ele sabe o que Norn quer, é claro, sabe antes que ela tenha que
dizer alguma coisa. Mais três chegam em sincronia: Lukka, Atraxa e
Ajani. Nahiri segue atrás, a membra mais nova enviada para buscar
seus companheiros. Carregada como uma oferenda amarrada entre
eles está a outrora poderosa Sheoldred. Fora de sua armadura, ela é
patética e pequena – uma salamandra crescida que um dia sonhou
com o pretorado. Toda Phyrexia sabia que ela era apenas uma
pretendente ao título. Agora estava finalmente exposta.
Lukka e Ajani apresentam sua presa. Sheoldred cospe, sua saliva
escura caindo bem longe do alvo. Amarrada como estava, sua
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tendência natural era tentar se desvencilhar. Que satisfação vê-la
reduzida a isso.
“O que faremos com ela?” pergunta Ajani. Seus olhos se voltam
para os prisioneiros. “Ou precisamos lidar primeiro com eles?”
Norn contempla os pequenos vermes, tão amedrontados. Eles já
estavam deslizando para trás. Seus planos são tão óbvios quanto seu
terror: fugir de Nova Phyrexia, contar aos outros, reunir suas
escassas forças e montar um contra-ataque. Era assim que os
esforços costumavam ser com os presos à carne. Aonde toda essa
dificuldade os levou? Aqui no santuário interno, desesperadamente
em menor número, eles ainda acham que há uma saída para isso.
É divertido — da mesma forma que a morte é divertida quando
você a transcende. “Vocês não querem ir embora, não é? Phyrexia
permite. Com uma condição,” ela diz. “Nahiri — algemas.”
Pedra brota do chão, envolvendo os três planeswalkers
imperfeitos. Apenas suas cabeças permanecem livres. Não vai
funcionar para sempre, Norn está bem ciente disse – ela viu a menor
atravessar matéria sólida anteriormente – mas servirá ao seu
propósito. E se eles cuspirem em sua benevolência, então eles
mereceram seus destinos.
“Vocês serão os profetas da nossa chegada,” ela diz. “Vocês
devem contar a seus irmãos incrédulos o que vocês viram: um futuro
unificado.”
“Que piada,” sussurra Sheoldred. Falar força seu peito contra
suas amarras. “Toda essa arrogância não vai mudar a verdade: você
está apenas cuidando de si mesma, Norn. Phyrexia não significa
nada para você, a menos que esteja de acordo com seus delírios
ensandecidos. Você nunca se importou com a unidade, você só se
importa consigo mesma.”
“Então é assim?” Norn repete. Ela bate no braço de seu trono.
“As preocupações de Elesh Norn são as preocupações de Phyrexia.
Os Entalhes do Argento exigem que espalhemos a glória de Nova
Phyrexia, Sheoldred. Há muito tempo você tenta apodrecer nosso
ensinamento sagrado por dentro – mas agora já chega. Nosso futuro
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é brilhante e perfeito, livre de sua mácula. Phyrexia não tem mais
lugar para aqueles que almejam o poder sobre a unidade. Ajani –
execute-a.”

Arte de Joseph Weston

Pela primeira vez, Sheoldred fez algo além do que sussurrar.


Qualquer que fosse seu grito de protesto, ele se perdeu na rápida
descida do machado. A cabeça de Sheoldred quicou até parar a seus
pés, espalhando icor preto no chão de porcelana. Norn presta
apenas um instante de atenção; seus servos removerão o cadáver
para processamento. Não se deve desperdiçar peças perfeitamente
úteis – elas servirão a Phyrexia já que Sheoldred não poderia mais.
Os músculos se contraem contra a pedra quando o maior dos
prisioneiros tenta se libertar. Com tempo suficiente, ele conseguirá.
Elesh Norn conta com a fuga deles. Deve haver aqueles que
espalham o evangelho, afinal, e eles não podem fazê-lo daqui. Assim
que eles entenderem como é inútil lutar contra o inevitável, eles
podem partir.
Porém, novamente ao trabalho, de volta à invasão.
“Alegrem-se, evangelistas sagrados,” ela começa. “Nosso
símbolo brilha através dos planos, nossas palavras sagradas em sua
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sombra. Em breve, despertaremos o Multiverso de seu sono. A
gloriosa luz da completação – de Nova Phyrexia! – está próxima.
Com a barreira de sua pele removida e suas mentes unidos às nossas,
os outros logo conhecerão o êxtase de Phyrexia como vocês
conheceram.”
Uivos agudos ressoam dentro do santuário, vindos das entranhas
de Nova Phyrexia. O quão lindamente eles entoam aquilo não pode
ser colocado em palavras!
Os evangelistas tentam juntar suas vozes às massas — mas são
novos, suas gargantas são muito delicadas. Uma adição sem muito
brilho. Um coro só é um coro se cada voz trabalhar em harmonia
com as outras. A dissonância que eles causam é irritante… e
decepcionante.
“Silêncio na congregação!” ela grita.
E eis que há silêncio.
“Nosso trabalho ainda não terminou. Estamos diante da glória
imaculada da completação eterna; precisamos apenas dar nossos
passos finais na direção dela. Por seu zeloso serviço e devoção,
decidimos conceder a vocês a honra de unificar suas terras natais.
Conte-nos —Nahiri, onde você nasceu?”
A kor ainda tinha muita carne, mas eles se contentaram com o
que puderam fazer com o pouco tempo que tiveram. “Zendikar,”
ela diz. “Muitas vidas atrás, eu nasci em Zendikar.”
Norn acena com a cabeça. “Nissa,” ela chama. “Mostre-nos este
lugar.”
Nissa é o melhor presente que os planeswalkers deram para
Phyrexia. Mesmo estando ao lado de Norn, ela pode atrair a atenção
da Destruidora de Reinos. Isso sem mencionar suas habilidades de
combate. Se as coisas continuassem nesse ritmo, ela poderia
ultrapassar Tamiyo como a nova serva favorita de Norn – mas ainda
há tempo para isso. E, na verdade, todos servem a Phyrexia do seu
jeito.
Os portais mudam, juntando-se em uma longa forma oval.
Imagens díspares ondulam e se transformam em algo novo, algo
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inteiro, algo completo. Diante deles: uma floresta ancestral, as
árvores grossas como torres. O pouco que podia ser visto do céu é
tão verdejante quanto as copas das árvores. Elfos se movem entre
os galhos como formigas em uma colmeia, cada um deles armado,
olhando para cima, esperando por algo.
Eles não percebem em quanto tempo ela os encontrará. Os
galhos que eles percorrem se dobram em formas phyrexianas;
buracos dentro de árvores e pedras anunciam as formas que seus
corpos terão. O portal de Norn está longe de ser o único: os mil
olhos de Phyrexia os encaram enquanto eles olham para cima.
Nahiri rosna para Nissa. “A Mãe das Máquinas não liga para essas
ninharias. Mostre a ela um dos Enclaves Celestes.” Mais uma vez, a
imagem ondula. Desta vez, a copa das árvores emoldura a vista de
uma cidade flutuante. Edros a cercam como as penas de um pássaro
acuado. Totalmente branca contra o céu, suas bordas recortadas e
precisas, Norn a acha imediatamente bonita. Talvez a curto prazo
pudesse ter alguma utilidade, pelo menos.
“Você tem planos para isso?” Norn pergunta.
Nahiri assente. “Sim, Grande Pretora. Esta é uma relíquia do
meu povo – uma arma antiga que usamos uma vez para dominar o
Plano. Posso despertá-la novamente para decretar nossa vontade.”
Um sorriso curvou os lábios de Norn. “Você veste seu novo
propósito tão bem quanto seu traje. Vá até este lugar; nossas forças
a encontrarão lá.”
Nahiri não precisa de mais instruções. Em três etapas, ela
desaparece da existência, o santuário ressoando com um estrondo.
Norn olha para os prisioneiros novamente. Já partiram; eles devem
ter cronometrado sua saída com a de Nahiri para esconder o som.
Que criaturas lamentáveis, afastando-se de tamanha beleza.
“Lukka. Como você levará a glória de Phyrexia para o seu lar?”
O sangue de Sheoldred ainda manchando seu rosto e carapaça.
“Ó Reverenda Mãe, eu vou levar com força total.”
“Especificamente, Lukka,” ela diz. “Que você levará com força
total é um dado.”
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Ele emite um grunhido; ele muda de posição de um lado para o
outro. “Os monstros,” ele responde, finalmente. “Assim que eles se
juntarem ao grupo, os outros se acovardarão diante de nós.”
Ela não gosta dessa resposta – ela implica que os humanos ainda
não se acovardaram diante deles. Ela também não gosta da raiva
latente sob a superfície, raiva que se presta a erros. A sede de sangue
é muito boa em uma besta, mas em um tenente? Os planeswalkers
iriam explorá-la. Armar uma armadilha para ele que ele não poderia
ignorar. Se confrontado com a escolha de ficar para garantir a
completação do Plano ou fugir para resolver uma queixa pessoal,
Lukka sempre escolheria a queixa pessoal.
“Muito bem,” ela disse. “Vá para Ikoria. Adicione esses monstros
às nossas fileiras. Mas entenda qual é o preço do fracasso, Lukka, e
não se esqueça de seu verdadeiro lar. Você foi ungido com o óleo
sagrado de Nova Phyrexia – você não é mais uma criatura de instinto
primitivo, você pertence a um todo maior.”
“Para sempre reinará,” ele diz.
Sua partida é tão rápida quanto a de Nahiri e seus efeitos são
palpáveis. Norn se pergunta o quão rápido tudo isso teria acontecido
se Phyrexia tivesse tido a mesma habilidade.
Não, é bom que Phyrexia tenha tido que esculpir sua vitória da
espinha de um Plano indiferente. Qualquer coisa menos que isso os
teria feito inadequados para o trabalho.
“Grande Pretora,” diz Tamiyo.
Norn é sacudida de seus pensamentos. “Sim?”
“Ele certamente morrerá em Ikoria,” ela diz. “Um homem
teimoso geralmente toma decisões precipitadas – creio que você
pretenda que seja assim?”
“Se ele falhar, ele seguirá o caminho de Sheoldred, e um de vocês
trará o julgamento sobre ele,” responde Norn. “Se ele for bem-
sucedido, o Plano será nosso, e ele cumprirá penitência por
quaisquer erros cometidos para nossa satisfação. De qualquer
maneira, Phyrexia será servida.”

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Tamiyo assente. “Como eu pensei. Bem pensado, como
sempre.”
“A Grande Cenobita não comete erros,” diz Atraxa. Os outros
não estão acostumados com a voz dela – eles a acham áspera e
dolorosa, como um caco de vidro em seus tímpanos delicados. Até
Ajani vacila.
Norn não erra. “De fato. Tamiyo – era Kamigawa que você
chamava de lar?”
“Anteriormente, antes de eu entender a verdade das coisas,” ela
diz.
“Nissa,” Norn ordena. Uma palavra é tudo o que é necessário.
Mais uma vez, os portais ondulam e mudam. O Plano que os recebe
brilha sob o céu noturno. Luzes artificiais iluminam uma cidade
brilhante. A vista se aproxima, como se estivesse na ponta de uma
flecha, e logo eles estão dentro da própria cidade, estruturas em
camadas surgindo perto da costa, alcançando a escuridão acima. As
pessoas que andam pelas ruas são fracas e dóceis.

Arte de Raymond Bonilla

Ela percebe que ninguém está em pânico. Talvez eles tenham


percebido que a completação não é nada a temer – mas é mais
provável que eles não saibam que ela está chegando, apesar dos
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portais acima. Aqui, nos momentos antes das farpas ancorarem,
essas pessoas vivem suas vidas inúteis. Um homem ingerindo algum
tipo de comida. Ele fala com outra pessoa situada em uma pequena
barraca oferecendo mais do mesmo, fazendo-lhe uma pergunta cuja
resposta logo será irrelevante. Uma mulher caminhando com dois
de seus filhos. Eles estão implorando por uma porção extra do doce
em sua mão. Ela arranca pedaços de cada um, ficando sem nada –
um sacrifício do qual ninguém se lembrará diante do que está prestes
a acontecer.
Tamiyo também assiste. Seu aperto aumenta em torno de um
pergaminho enrolado em ferro. Entre os evangelistas ela é a única
que não está coberta de sangue.
“Você amava Kamigawa?” Norn pergunta.
“Amava,” Tamiyo responde. “Uma terra de heróis e bandidos,
traidores e campeões. Parecia haver mil possibilidades de como a
vida poderia mudar no futuro. Eu queria ver todas elas. E queria
descobrir, com minha família, qual era a verdadeira. Agora eu amo
o que ela se tornará.”
“Sua família,” Norn repete. Ajani cruza os braços – ele está
ouvindo atentamente, sabendo que também haverá perguntas para
ele. “Você ainda se preocupa com sua família?”
Tamiyo observa a mulher e sua prole enquanto caminham pela
rua. No alto, os primeiros fragmentos de branco aparecem. A
mulher continua. Ela balança as mãos de seus filhos, ou eles
balançam as dela.
Então, como se lembrasse que havia uma pergunta, ela se vira.
“Quero que eles entendam o que aprendi sobre o mundo – sobre
unidade. Se todos estivermos completados, nunca mais
precisaremos nos separar,” ela diz.
“Você compreende,” Norn diz. “Nossa família é maior do que
qualquer outra que você já conheceu. Receba a velha para a nova de
braços abertos, Tamiyo.”
Não há silêncio completo no coração de metal pulsante de
Phyrexia. Metal desliza sobre metal enquanto seus habitantes
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realizam seu grande trabalho sagrado; pistões animam seres além da
compreensão humana; lâminas cortam o que é impuro. Aqui,
também, eles ainda podem ouvir os sons distantes das contribuições
finais de Sheoldred: o estalo da quitina, o rompimento do tendão.
No entanto, o silêncio que segue as palavras de Norn está lá do
mesmo jeito. Tamiyo observa a tela e não dá nenhum sinal de ter
ouvido a ordem abençoada de Norn.
A Destruidora de Reinos perfura a terra. Prédios escalonados
estremecem e perdem suas camadas – andares inteiros desabam. Ao
redor, os ladrilhos estão caindo como neve de porcelana recortada.
Em apenas um instante, a pequena barraca de comida é esmagada.
Um vermelho se derrama por baixo, juntando-se à água
borbulhante.
A mãe pega os filhos, um na dobra de cada braço, e corre.
“Tamiyo,” Norn repete. Essa hesitação fica entre os dentes
pontiagudos de Norn.
Um homem de preto cruza sua visão. Em uma tempestade de
cortes brilhantes, os ladrilhos que caem são partidos, direcionados
para longe da família.
Eles não veem mais o que acontece – Atraxa levanta vôo,
bloqueando a visão com suas asas. Quando ela fala, sua voz é mais
afiada do que a espada, mais afiada do que as facas invisíveis
trabalhando não muito longe.
“Insolência não é tolerada aqui. Você recebeu uma ordem.”
Tamiyo começa; Ajani se encolhe. Ela se vira, piscando.
“Desculpe, não faço ideia do que deu em mim…”
“Certifique-se de erradicá-lo, seja o que for,” Norn diz. “Não
pode haver espaço para isso. Retorne com Kamigawa sob seu
controle ou seja reciclada em algo mais adequado.”
“Como você quiser,” ela diz. A consciência deve ter voltado para
ela – ela não hesita mais em sair e não olha para a imagem nem uma
vez mais.
Há apenas quatro deles na sala depois que Tamiyo se foi. Nissa,
de pé ao seu lado, com os olhos enevoados de verde. Ajani, que
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assistiu Tamiyo partir, espera por suas próximas ordens. Atraxa
permanece no ar. A cada batida de suas asas, seu entusiasmo é
palpável.
Mas a paciência é uma lição valiosa a ser aprendida.
“Ajani,” ela diz, e ele inclina a cabeça. “O que eu vou te pedir?”
“Para te mostrar o lugar onde nasci,” ele responde.
“Não. Seu destino é maior do que isso. Acreditamos que você
sabe onde ele está.”
Não é o silêncio que se interpõe entre eles, mas a compreensão.
Quando ele se volta para os espelhos, é com confiança. “Você quer
voltar a Theros.”
“Certo.”
O preto cobre a superfície dos espelhos, o preto brilha, o preto
reflete algo novo.
Uma cidade os encara de volta – diferente da anterior. Ondas cor
de vinho batem em praias douradas; casas brancas pontilham uma
paisagem verdejante. Onde Kamigawa estava envolto na noite, este
lugar é brilhante sob a luz do sol. Navios flutuam sob as espadas
estendidas de duas estátuas guardiãs. Em seus conveses, os
pescadores se perguntam por que suas capturas se contorciam de
formas estranhas. Nas encostas, astrônomos debatem o significado
das aparições do portal.
É uma visão tão pacífica quanto qualquer um pode imaginar, se
não olhar de perto.
O coração de Norn transborda de entusiasmo. Eles estão tão
perto da perfeição, tão perto de um profundo entendimento. E ela
sabe que não vai demorar: Theros está entre a primeira onda de
alvos.
E parece que eles teriam uma boa perspectiva das festividades.
Começa da mesma forma que em Kamigawa: grandes galhos
brancos saindo dos portais. Nenhuma árvore pode ser vista aqui,
mas as raízes encontram raízes do mesmo jeito. Os casulos se
desdobram antes que a árvore termine seu trabalho, tão ansiosa está
Phyrexia para reivindicar este lugar. Alguns explodiram no ar, dando
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origem a um enxame de conversores insetoides. O vento carrega a
tempestade de lâminas para o mercado. O metal brilha nos céus
acima, pedaços de porcelana branca caindo na terra, cascos
formando crateras nos prédios em que pousam. Mármore
desmorona como areia; manchas de óleo preto escorrem sobre a
brancura. Os templos trancam suas portas apenas para as máquinas
de guerra de Phyrexia derrubá-las. Construtos alados devoram gado
e humanos do mesmo jeito, alguns descendo nos navios para
encontrar suas refeições. As redes pouco fazem para detê-los; lanças
ricocheteiam em suas orgulhosas carapaças.
Phyrexia está faminta. Elesh Norn está faminta. Cada aperto de
suas mandíbulas traz o gosto de sangue para sua língua – uma oferta
do coro para ela. Ela está com eles, e eles estão com ela, e logo este
lugar será um.
“Parece que nossas forças estão indo bem sem mim,” Ajani diz.
“Ao massacrar os fracos e capturar os úteis,” Norn diz. “Eles
serão muito mais eficientes quando você estiver lá para liderá-los.”
“Você não me enviaria para lá por motivos tão triviais.”
Então ele viu mais do que deveria. Os comandantes são melhores
quando são espertos, mas também quando são mais perigosos. Ser
esperto é ser individual, e em Phyrexia todos são um.
Elesh Norn terá que lembrá-lo disso. Possivelmente com novas
modificações.
“Theros é importante para o futuro de Nova Phyrexia.”
Como se para ajudar a deter mais perguntas, a batalha do outro
lado do portal aumenta. Nissa mudou a visão para alguém parado
na praia. Parcialmente submerso na água está um templo. No topo
desse templo está uma mão envolta na escuridão inconstante do céu
noturno, derramando rios em seus degraus. Somente quando seu
observador invisível olha para cima, a imagem completa se torna
clara: há algo guardando o lugar. Parte mulher e parte outra coisa. O
mais estranho – e tentador – é a maneira como partes dela aparecem
e desaparecem.

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Arte de Johan Grenier

Uma criatura daquele tamanho poderia conquistar planos


inteiros sozinha quando completada. Ainda assim, se o tamanho
fosse a única coisa que interessasse a Phyrexia, Norn teria enviado
alguém mais confiável para Ikoria.
Não, seja lá o que fosse aquilo, é mais do que algo enorme: é algo
que Elesh Norn deseja.
“Aquilo,” ela diz, apontando com um dedo de porcelana. “Você
deve trazer aquilo para dentro do abraço de Phyrexia.”
Ajani estuda a criatura. Assentindo uma vez, ele olha para Norn.
Há algo como um sorriso em seu focinho quando o plano se torna
aparente para ele. “Ah, agora eu entendo, são os deuses que você
procura.”
Aquele é um dos deuses deles? Norn esperava mais de
divindades. Não que haja alguém que possa esperar desafiar
Phyrexia agora que ela tomou seu devido lugar. Embora esta criatura
seja majestosa de certa forma, está longe de ser pura. A mente de
Norn já pensava nas possibilidades.
“Leve sacerdotes com você,” ela diz. “Leve os Entalhes do
Argento. Vamos derrotar esses deuses em todos os campos de
batalha possíveis. Para aqueles sábios o suficiente para perceber a

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verdade do Multiverso, empreste-lhes o poder de iluminar seus
antigos amigos.”
“As gravuras tornarão isso mais fácil. É a crença que cria os
deuses em Theros, e não o contrário,” ele diz. “Assim que as pessoas
entenderem a verdade, os deuses seguirão.” Ele olha mais uma vez
por cima do ombro. A criatura – o deus – conduzia um bidente
através de uma de suas naves de ataque. Na praia, os marinheiros
que restam se abraçam em comemoração. Sorrisos largos irrompiam
em seus rostos, contradizendo o medo que se apegava a seus olhos.
No fundo, eles sabem que não será suficiente.
E isso traz a Norn uma alegria indizível e inefável.
“Vá,” ela ordena.
Ele obedece. Ajani, sempre leal, faz como lhe foi ordenado.
Enquanto ele desaparece, ela se permite um momento de orgulho
por seu recrutamento e criação.
E orgulho também por ele não ter descoberto o verdadeiro
motivo pelo qual ela o enviara para Theros. Aquilo era suficiente.
Mesmo ignorando seu objetivo, ele o cumpriria.
Apenas Atraxa e Nissa permanecem no santuário com ela.
“Mãe das Máquinas, a maior e mais sagrada das autoridades, eu
vivo para servir,” Atraxa se dispõe.
“Você não precisa perder tempo com tais ineficiências,” Norn
diz. “Você está bem ciente de que há uma razão para sua missão ser
a última.”
Uma leve hesitação pela represália, visível apenas para a mulher
que moldou o corpo de Atraxa com as próprias mãos. Os outros
poderiam reivindicar quaisquer partes que desejassem – mas Norn
conhecia melhor Atraxa, e Norn tinha o seu coração. Nada restou
de sua vida anterior, exceto o que a fazia perfeita. “Qualquer coisa
que Nova Phyrexia me pedir será feito.”
“Nissa, anteriormente nossos missionários encalharam em um
lugar chamado Capenna. Mostre-nos o que aconteceu com ele.”
Leva mais tempo para as visões diante deles mudarem.
Frustrante, mas não inesperado; este não era um lugar que Nissa
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conhecia bem. Quando finalmente a imagem entrou em foco, eles
estão olhando para um portão dourado cercado por mármore
branco. Inscrições cercam a borda. Norn não consegue ler o idioma
e não se importa. Não que ela fosse ler, mesmo se estivesse
familiarizada com aquilo: uma névoa dourada brilhante torna todos
os detalhes confusos.
Atraxa não diz nada, mas olha para Norn. Como uma salamandra
escorregadia, recém-nascida.
“Nossos predecessores encontraram este plano por métodos
antigos,” ela diz. “Embora estivesse espesso com um fedor sagrado,
eles viram dentro dele algo valioso – algo que valia o risco que seus
guardiões representavam. Por quase um ano eles vagaram, pegando
o que desejavam, conduzindo pesquisas vitais sobre a população,
espalhando corrupção abençoada onde quer que eles pisassem.”
“Até que algo os selou,” oferece Atraxa. Bom; ela está
começando a entender por que foi escolhida para isso.
“De fato. Anjos. Falsos profetas apedrejados por sua insolência,”
Norn diz. Aquelas palavras deviam ter algum peso para Atraxa. Ela
as deixa ressoar antes de continuar. “Temendo a verdade que
traríamos para seu povo – uma unidade que eles nunca poderiam
prometer – eles ficaram desesperados. Eles desistiram de suas
formas físicas para suprimir a influência de nossa embarcação. Por
anos estivemos aqui, e por anos não conseguimos nada. Isso acaba
agora.”
“Será feito,” diz Atraxa. “Vou libertar a embarcação—”
“A embarcação em si não nos interessa. Se eles tivessem sido
fiéis, teriam triunfado. Se você a descobrir ou sua tripulação, você
deve recuperá-los em busca de peças. A completação é um presente
que eles não merecem mais.””
“Como quiser,” Atraxa diz.
“Nissa, mostre-nos a atrocidade que eles construíram.”
A visão muda para outro céu noturno e para a cidade brilhando
abaixo dele. Não – Norn se recusa a pensar naquilo como uma
cidade. A agulha imponente que alcança as estrelas é uma afronta
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em todos os sentidos. Mesmo sem uma névoa de ouro, fede a
decadência. Onde quer que o olho alcance, há algo que assusta:
conchas douradas montadas em lançadeiras verticais, uma adoração
doentia de pele evidente em seus casacos e roupas, o barulho
desagradável que eles chamavam de música tocada pelos indignos
tubos de carne. Seu ápice é arrogância, e arrogância é o seu ápice.
Tudo isso construído em corpos phyrexianos. Tudo isso para afastá-
los.
“Grave isso em sua memória. Nunca esqueça o que eles fizeram
conosco, o que eles construíram aqui. Os infiéis se consideram
divinos, Atraxa, mas a divindade existe apenas na unidade.”
“Tudo deve ser um,” Atraxa ecoa. Pelo jeito que segura sua arma,
ela tem pouco amor pela vista. “O que você quer que eu faça?”
“Ensine a essas pessoas o preço da insolência. Eles poderiam ter
se juntado às nossas fileiras, anteriormente, mas não encontrarão
mais nossa misericórdia. Você ceifará todos eles.”
“Assim será feito,” diz Atraxa. Com um bater de asas, ela se
aproxima da ponte para a árvore, mas Norn levanta a mão para detê-
la.
“Há uma outra tarefa para você,” ela diz.
Atraxa espera no ar.
Norn aponta. “Os anjos que emprestaram a este lugar sua
proteção ainda o guardam até hoje – mesmo que de uma nova
maneira. A névoa que vemos aqui é o que resta de suas formas
etéreas. Os infiéis o chamam de Halo, e será um anátema para você.
Até que você leve a torre abaixo e acorde os anjos de seu descanso,
você será incapaz de escapar de sua influência. Seu dever mais
sagrado neste plano é encontrar sua fonte e destruí-la.”
O queixo de Atraxa abaixa. Ela olha para os espelhos, depois para
Norn. “Mãe das Máquinas, não cabe a mim questioná-la…”
“É verdade, não é,” Norn diz. “Mas sua pergunta será permitida.
Fale.”

26
Qualquer que fosse a pergunta, Norn responderia. Atraxa já está
ligada à vontade de Nova Phyrexia – em última análise, não importa
qual seja a resposta de Norn, desde que haja uma.
“Se a nave está perdida há anos incontáveis e a atmosfera é
venenosa, por que não deixar este lugar para os centuriões? Por que
estou recebendo a tarefa?”
“As razões são três. Primeiro: é uma tarefa gloriosa, e completá-
la proclama o seu valor para todos. Segundo: sua vida anterior pode
lhe dar alguma proteção a este ‘Halo’.”
Não há verdadeiros silêncios dentro do santuário – mas há algo
parecido enquanto Atraxa espera pelo terceiro item e Norn pensa
em como expressá-lo.
“Terceiro: existe um perigo para Nova Phyrexia. Ao matar Nova
Capenna, nós atingimos seu coração.”
As asas de Atraxa batem uma vez. “Este perigo – é por isso que
você enviou Ajani para Theros também?”
“Astuto da sua parte,” Norn diz. “Sim. Este perigo não pode
triunfar. Você e Ajani selarão nossa vitória.”
“Então tudo é para a glória dos fiéis,” Atraxa diz.
Ela sai, então. Apenas Nissa permanece – mas ela é uma
companhia silenciosa. A tenente de Norn está muito preocupada em
controlar o crescimento da árvore para falar com ela.
O ar não é muito silencioso no santuário.
Norn odeia isso.
Com um gesto, ela chama seus criados. Eles chegam para recitar
seus próprios pensamentos e ensinamentos para ela. Em suas vozes
estridentes, Elesh Norn esquece seus pesadelos – e a mulher que os
espreita, vestida de branco.

27
EPISÓDIO 02: PRENDENDO A
RESPIRAÇÃO

Chandra odeia esperar.


Ela odeia tudo aquilo: o esconderijo onde estão confinadas;
os check-ins diários dos outros planeswalkers esperando para ouvir o
pior; a agonia insuportável de saber que um golpe está vindo, e não
saber quando ou onde ele vai acertar. Desde a semana passada, elas
não estavam vivendo – em nenhum sentido real da palavra.
Elas continuam esperando.
Aquele era o plano, afinal. Durante duas semanas elas esperariam
aqui, em uma das casas de Liliana em Dominária. Embora ela jurasse
que aqueles eram simples espaços substitutos para a logo
reconstruída Mansão Vess, eles estavam cheios de proteções que
fariam um demônio pensar duas vezes. Chandra não fazia ideia de
que Liliana conhecia tantas barreiras de proteção. Ao ser
pressionada, Liliana simplesmente disse que aprendeu a proteger
seus investimentos.
No final dessas duas semanas, se elas não tivessem nenhuma
informação, presumiriam que todos morreram e procederiam de
acordo com isso. Se elas receberem notícias antes disso – bem, elas
agiriam de acordo com as notícias. Se forem boas, elas espalharão a
notícia de que não teriam que se preocupar.
E se não forem boas, eles dirão aos outros para se prepararem
para a guerra.
Alguns aceitam a espera melhor do que outros – melhor do que
ela. Vivien está mais fora do que dentro, o que dá a todos um pouco
de espaço para respirar. As habilidades culinárias dela também são

28
incríveis. Wrenn também costuma sair, mas nunca para muito longe.
Esperar não é um problema para ela, pelo menos é o que ela afirma,
mas Chandra sabe que ela está ficando desatenta. Wrenn pode ser
uma dríade, mas há uma chama dentro dela também, e o fogo está
sempre faminto por mais.
E tem Liliana, que odeia esperar tanto quanto Chandra.
Eles não falam realmente sobre isso, porque falar sobre isso é
como abrir uma ferida, mas é algo que eles sentiram um no outro.
Quando Chandra retorna à tarde após suas conversas com Wrenn,
Liliana sempre tem uma história pronta para ela. Às vezes é uma
companhia silenciosa – ela fica sentada lendo algum livro antigo ou
revisando os planos para a reforma enquanto Chandra espera. Como
ela consegue se concentrar em algo assim nesse exato momento?
Todo mundo está tentando ser normal, mas nada está normal e
ninguém quer falar sobre isso.
Ela nunca pergunta se há novidades. E se chega alguém pedindo
alguma informação, geralmente é Liliana quem atende, poupando
Chandra do trabalho.
Mas a cada dia parece pior. É como se houvesse uma faca contra
sua pele e a cada dia alguém a pressionasse um pouco mais perto.
Cada gota de sangue era algo que ela não falou em voz alta, um
pensamento que ela tinha muito medo de pensar.
Armamento phyrexiano. Óleo preto. Ajani e Tamiyo, perdidos
para sempre, tão diferentes das pessoas que eram apenas alguns
meses atrás. Um Plano cheio de gente assim — gente que faria
aquilo com os outros. Talvez fosse errado pensar neles como
pessoas.
Ela quer contra-atacar. Se ela estivesse no meio de tudo, pelo
menos ela saberia o que estava acontecendo, mesmo que as
respostas não fossem boas. Ultimamente nenhuma das respostas
tem sido boas. Se Nissa fosse…
Mais do que tudo, ela quer que a espera acabe.
Por agora, ela vai passar o tempo com Wrenn.
“Você tem que se concentrar em sua respiração. O fogo precisa
de ar assim como nós,” Chandra diz. Jaya costumava dizer isso a ela
para acalmá-la quando as coisas ficavam ruins: se ela pudesse
controlar sua respiração, ela poderia controlar sua chama, e se ela
controlasse sua chama, tudo ficaria bem.

29
Jaya está morta, Ajani a matou e Chandra não tem certeza se tudo
ficará bem novamente. Mas ela precisa torcer que sim. Wrenn não é
muito boa em respirar. Chandra não usa esse fato contra ela – afinal,
ela é uma dríade. A maioria delas não tem pulmões.
“As comparações com a respiração humana são um pouco
difíceis de entender,” diz Wrenn. Chamas lambem entre sua pele
descascada. Apesar da dor que ela deve estar sentindo, ela parece
alegre.
“Certo,” Chandra diz. Ela coça a nuca. Nissa entendia árvore.
Ela provavelmente tinha centenas de amigos dríades. Ela saberia o
que dizer, mas ela não está aqui. “Pense nisso como… o fogo é algo
que você tem que moldar. Você tem que encontrar as partes dele
que não são úteis e cortá-las.”
“Melhor,” Wrenn diz. O fogo pisca, mas não recua tanto quanto
Chandra queria.
Ela põe a mão no ombro de Wrenn, sentindo que é o que um
mentor deveria fazer, mas sem muita ideia de como mentorar. Jaya
a deixou com tantas lições. Chandra não tem certeza se internalizou
todas eles. Como ela pode passar tudo aquilo para Wrenn? Outra
pessoa seria melhor nisso, alguém mais velho, alguém…
Alguém como Ajani.
Chandra extingue o pensamento.
“Vamos fazer isso juntas,” ela diz. “Eu estarei aqui com você.
Algumas chamas não valem o ar; o truque é saber quais.”
“Certo,” diz Wrenn. “Embora isso pareça terrivelmente rude
com o fogo.”
Chandra fecha os olhos. Ela respira fundo. No fundo de sua
mente, ela pode ouvir a voz firme de Jaya dizendo a ela para se
concentrar na sensação do ar em suas narinas. Ela repete as palavras,
desajeitadas e deselegantes, conforme elas vêm até ela. Você tem que
falar com a chama. Descubra o que ela quer fazer.
E então o estrondo impetuoso da trompa de guerra da chegada
de Tyvar cai como um machado entre elas.
As duas olham para o abrigo a tempo de ver duas figuras
mancando pela porta. A respiração de Chandra para em sua
garganta.
Não há mais palavras entre ela e Wrenn; não há necessidade.
Chandra vai para o abrigo, atirando um sinalizador no céu cinza

30
escuro e esperando que seja o suficiente para chamar a atenção de
Vivien.
E por mais que ela odeie esperar, Chandra se vê hesitando perto
da entrada.
Apenas três deles voltaram. Talvez os três primeiros, talvez não.
Mas quais seriam os três? Ela repassa as possibilidades em sua
cabeça e se odeia por fazer isso. É bom ter notícias, sejam elas quais
forem. Mas quem esperava atrás da porta?
Ela nunca vai descobrir se ficar aqui.
Chandra respira fundo. Ela entra no abrigo com os olhos
fechados.
“Estávamos certos. Eles têm a sua própria árvore. Está
corrompida, distorcida…”
“Eles estavam prontos para nós. Tinham uma resposta para
tudo…”
“Moldando a realidade para o que eles quiserem—”
Três vozes. Nenhuma de Nissa. Mais um corte.
Chandra engole seco. Há outras coisas em que pensar – este
plano é maior do que qualquer um deles como indivíduos. Kaito,
quase inteiro, encosta-se a um busto. Kaya e Tyvar estão caídos em
um sofá quando ela abre os olhos, ambos cobertos de sangue, sujeira
e óleo. Liliana, entre todos, está cuidando dos feridos – há pequenos
frascos de líquido colocados diante dela no chão. Ela derrama um
pouco em um pano antes de enxugá-lo em uma das feridas de Tyvar.
É Liliana quem percebe Chandra entrando. “Não são boas
notícias.”
“Não parece que são,” Chandra diz. “Nunca vi nada mais
imundo,” Tyvar diz. Uma expressão atormentada toma conta dele.
“A essência da Árvore-mundo que eles roubaram de Kaldheim, eles
a usaram para fazer uma monstruosidade. Ela não é nem viva.”
“Eles estão usando-a para invadir os outros Planos.” Kaya não
aguenta mais ficar sentada — ela está de pé e andando. “Movendo
exércitos inteiros. Armas como nunca vimos antes. Não sobrou
quase ninguém em Nova Phyrexia além daqueles pesadelos
mecânicos. Logo eles estarão em toda a parte.”

31
Arte de Liiga Smilshkalne

“Mas ainda temos pessoas para revidar, não é? Podemos pegar


todo mundo dos outros Planos, reuni-los, voltar para Nova Phyrexia
e derrubar Norn,” Chandra está balbuciando, e ela sabe disso, mas
ela não conseguiu parar. Ar, ela pensa, ar — apenas continue
respirando. Tudo isso vale o ar. “Isso não acabou ainda. Não pode
ser.”
Há simpatia nos olhos de Kaya. “Não, não podemos.”
“Talvez devêssemos esperar por Vivien antes de entrarmos
nisso,” interrompe Kaito.
Chandra não gosta nada daquilo. “Já fizemos o suficiente disso.
Como eles estão controlando isso tudo?”
“Só estou dizendo…” Kaya inicia, o mais gentil que ela consegue.
“Kaya. Por favor,” Chandra diz. Ela se surpreende em como ela
soa triste. “Diga-me o que aconteceu.”
Kaya engole seco. “Eles pegaram Nissa.”
E assim, Chandra esquece como respirar. Ela gagueja. Ela sabia.
Em algum lugar ela sabia, quando Nissa não chegou com o grupo,
que…
Antes que ela possa formular algo para dizer, a porta se abre atrás
deles.
“Temos novidades?” Vivien diz atrás deles. “Espere… onde está
Jace?”

32
“Elegantemente atrasado, imagino,” Liliana diz. Ela amarra a
bandagem em volta do peito de Tyvar. “Ele chegará a qualquer
instante agora.”
Kaya fecha os olhos. “Não. Ele não vai.”
O rosto de Liliana, pelo menos, não mostra sinais de angústia.
Sua voz sai afiada e magoada – a mesma dor no peito de Chandra.
“Não seja ridícula.”
“Ele lutou bravamente, mas aquelas feras…” diz Tyvar.
“A bravura não importa muito quando seu oponente nunca se
cansa, nunca erra,” Kaito diz. Ele continua olhando para chão. “Ou
quando você está tão perdido.”
“Isso não faz sentido,” Liliana diz. Ela se levanta, pegando uma
bandeja de frascos para esconder suas mãos trêmulas. “Toda essa
bobagem foi ideia dele. Ele não iria simplesmente falhar. Ele
não faz esse tipo de coisa.”
“No final, acho que ele não era mais ele. Ele se tornou um deles,”
Kaito diz.
Liliana respira fundo, mas não quer que ninguém perceba.
“Como assim?”
“Não temos tempo para nos envolver com detalhes,” Vivien
interrompe. “O que quer que tenha acontecido, Nahiri está indo
para Zendikar, a Errante deve ter fugido, Elspeth já deve ter ido
para Theros—”
“Vimos os phyrexianos tomarem Nahiri também,” Tyvar diz.
“Elspeth não sobreviveu,” Kaito acrescenta. “A Errante
provavelmente está voltando para casa, mas não tem como Elspeth
ter escapado daquilo.”
“Não tem chance de Elspeth Tirel ter morrido em Nova
Phyrexia,” diz Vivien.
As sobrancelhas de Kaya se uniram. Seus olhos se voltam para
Liliana. “Vamos esclarecer logo isso: a última vez que vimos
Elspeth, sua espada estava saindo das costas de Jace.” Ela aperta a
ponta do nariz antes de continuar. “Aquela árvore bagunçada já
estava conectada a pelo menos uma dúzia de Planos. Se ele detonasse
o sílex, poderíamos ter perdido todos eles. A coisa estava se
aproximando do fim dos dias, e não havia mais tempo, então ela…”
Kaya se afasta. Tyvar continua. “Elspeth o atravessou, pegou o
sílex e transplanou para as Eternidades Cegas. Um sacrifício nobre
– ela deve estar festejando com as valquírias agora.”
33
“Ah, cala a boca,” retorna Liliana.
O ar na sala segura esfria. Jace e Nissa se foram. Nahiri também.
Nem Elspeth conseguiu se salvar no final. De todos que enviaram,
apenas quatro retornaram, e dos quatro, apenas três estão aqui.
Tudo o que eles temiam está se tornando realidade: a invasão
phyrexiana está em andamento.
Vivien se acomoda no chão com eles, perdendo o porte
orgulhoso diante da notícia. “Isso é pior do que eu pensava.”
“Essa é a única razão pela qual estamos aqui. Vocês precisam
entender o que estamos enfrentando.” Kaya diz. “Todo o
Multiverso tem que entender. Agora, como eu estava dizendo-”
“Bem, vocês podem continuar sem mim.” É uma interjeição
repentina, com uma quantidade ímpar de força destinada a esconder
a hesitação da falante. Liliana já está indo para a porta. “Vou levar a
informação para Strixhaven.”
“Você deveria ouvir a história…” começa Tyvar, mas Liliana já
está balançando a cabeça.
“Eu tenho uma boa ideia do seu tipo de narração de histórias.
Nobres sacrifícios nunca caem bem para mim.”
Chandra abre a mão, depois a fecha em punho. “E se houver
uma maneira de ajudarmos os outros?”
Chandra já ouviu que Liliana era incisiva e ambiciosa. E era
verdade. Mas também era verdade que, em certos ângulos, ela cedia.
A inclinação da cabeça de Liliana agora era tudo menos incisiva; a
ambição em seus olhos mudou para uma profunda simpatia. “Você
quer mesmo voltar lá, não é?”
Todos os olhos se voltam para Chandra. Ela está bem ciente do
jeito que eles estão olhando para ela – o que eles devem estar
pensando. Claro que sim. Ela é impulsiva. Chandra pode ouvir os
sermões começando e ela já está cansada deles. Ela está cansada de
ficar sentada esperando o mundo acabar.
“Sim. Sim, eu quero,” ela diz. “Deve haver alguma outra maneira
de derrubar a Árvore-mundo. Vocês estão todos agindo como se
tivesse tudo acabado.”
Kaya pressiona a palma da mão contra os olhos. Ela respira
fundo. “Eu não posso deixar você voltar.”
“Deixar?” Chandra diz. Ela dá um passo em sua direção. “Você
não tem que me deixar fazer nada.”

34
“O plano é permitir que os outros saibam o que está
acontecendo,” Vivien diz. Ela é mais legal, mais controlada, mas não
há dúvidas sobre o que ela pensa da ideia de Chandra. “Podemos
reunir nossas forças, descobrir alguma maneira de revidar. Mas não
podemos fazer isso se nos apressarmos.”
“Há muitos de vocês para fazer isso,” Chandra argumenta.
“Muitos de nós. Mas se continuarmos lutando contra o que já existe,
não faremos nenhum progresso. Temos que cortá-los pela raiz ou
eles continuarão vindo.”
Os outros trocam olhares. Pelo menos eles estão pensando sobre
isso. Liliana, apesar de todos os seus protestos anteriores, ainda não
partiu – ela permanece a meio caminho entre Chandra e a porta. Ela
entende, não é? Ela deve entender melhor do que ninguém aqui
como é isso. É Kaya quem fala em seguida. “Chandra, eu entendo
de onde você vem. Sinceramente, eu entendo. Mas você não pode
nem começar a compreender o que aconteceu em Nova Phyrexia.
Isso não é algo que você pode simplesmente explodir e resolver sem
planejar. Nós planejamos isso , e mal conseguimos sair. Sou uma
assassina há anos e quase perdi a cabeça lá. Nahiri lidou com Eldrazi;
nós a perdemos também. Se você for lá, não vai apenas morrer —
você terá seus músculos arrancados, seus ossos moldados em metal,
e sua mente distorcida para a visão de mundo doentia deles. Da
próxima vez que nos virmos, você estará nos contando sobre as
alegrias de ser um com Phyrexia. Vivien está certa – a melhor coisa
que podemos fazer é tentar evitar perder mais alguém. Assim que
terminarmos aqui, você deve voltar para casa em Kaladesh e dizer
às pessoas como se preparar. Isso é o melhor que podemos fazer
por eles.

35
Arte de Jorge Jacinto

A resposta está saindo da boca de Chandra antes que sua mente


tenha a chance de detê-la. “Você está me tratando como uma
criança.”
“Eu não estou tratando você como uma criança. Estou tentando
cuidar de você. Isso não é como foi em Ravnica. Os Eternos não
são nada comparados às legiões descarnadas de Norn. Eu sei que
isso vem de um bom lugar. Você quer ajudar a todos. Você quer
salvar o Multiverso – tudo bem. Mas há maneiras melhores de fazer
isso do que correr precipitadamente para um trabalho que uma
equipe inteira de nós não conseguiu terminar.”
Kaya está dizendo coisas, mas tudo o que Chandra consegue
ouvir é mais do mesmo. Kaya não vê o ponto. Tyvar deve entender,
certo? Ele adora grandes desafios. Mas quando ela chama sua
atenção, ele desvia o olhar.
“A bravura é louvável,” ecoa Tyvar, “mas também é louvável
saber quais batalhas são suas para serem lutadas. Eu e Kaya estamos
aqui apenas para dizer o que aconteceu. Vá para onde você é
necessária, cuide dos seus, e morra no seu lar.”
“Esta é uma batalha de todos,” Chandra diz.
“O que significa que todos podem opinar sobre ela,” diz Vivien.
“E minha opinião é que não desperdicemos mais recursos em algo
que sabemos que não vai funcionar.”

36
“Eu sei como você está se sentindo. Admitir que perdeu não é
fácil,” Kaito diz. “Mas apenas perdemos a luta. Se pudermos manter
nossos lares seguras, venceremos a guerra.”
Chandra respira fundo. Ela sente que vai explodir. Esta é a coisa
mais óbvia do mundo, e eles não podem ou não querem ver isso.
“E as pessoas presas em Nova Phyrexia? Vamos simplesmente
deixá-los lá?”
Ninguém quer responder. Não diretamente. O silêncio que paira
sobre o abrigo não passa de outra forma de espera, e Chandra odeia
isso tanto quanto odeia toda essa situação. Se ela pudesse queimar
tudo agora mesmo, se ela pudesse encontrar um novo começo nas
chamas, ela o faria. Ficar aqui estava fazendo sua alma coçar.
“Digam. Estamos abandonando todos eles?” Respirar estava
ficando mais difícil, ou mais fácil – as respirações eram grandes e
nítidas agora, alimentando o fogo crescente na boca do estômago.
Calor queimava os cantos de seus olhos.
“Chandra,” Liliana diz, suave como sombra na neve, “ela gostaria
que você ficasse segura, não é?”
Por que ela tinha que falar aquilo? Chandra estava tentando tanto
não pensar sobre isso, tentando manter sua imaginação sob
controle, mas Liliana a soltou. É tão fácil imaginar Nissa aqui quanto
invocar fogo. Chandra pode ver isso tão claramente: a determinação
desenhada no rosto de Nissa, seus olhos verdes, o ângulo de suas
orelhas. Ela pode sentir a mão de Nissa em seu ombro, ela pode
sentir o cheiro de musgo e pinho, ela pode ouvir as palavras mesmo
que não queira imaginá-las.
E dói.
Deuses, como dói.
Ela sente que está sangrando na frente de cada um deles e
ninguém está oferecendo a ela qualquer ajuda.
Chandra respira novamente. Ar, ela pensa. Apenas continue
respirando.
“Quando perdemos alguém, temos que honrar sua memória,”
Liliana diz.
“Eu não a perdi,” Chandra dispara de volta.
A exasperação de Kaya aumenta a cada segundo. Ela está exausta,
e isso está em cada linha de seu rosto. “Ela se foi, Chandra.”

37
“Não, ela não se perdeu. Se pararmos os phyrexianos, então
podemos descobrir como parar… como parar o que quer que tenha
acontecido. Como resolver. Você não pode desistir de…”
“Isso é mais do que qualquer pessoa,” interrompe Vivien.
“Estamos cuidando de uma floresta, aqui, não de uma única
árvore…”
“Você acha que eu não sei disso?” ela diz. O brilho fraco na
borda de sua visão diz que ela está explodindo. Ela não pretendia,
mas tudo bem – talvez até melhor assim. Todo esse sentimento tem
que ir para algum lugar. “Você acha que eu não sei quantas vidas
estão em jogo? É por isso que eu quero voltar! Nós nunca vamos
vencer se tudo o que fizermos for fugir deles!”
“Chandra-” começa Kaya, mas era tarde demais. Ela não está
ouvindo mais.
“Estou saindo,” ela diz. “Vocês podem avisar os outros Planos
se quiserem, mas não vou deixar nossos amigos para trás.”
“Você vai sozinha?” Tyvar pergunta.
“Já que nenhum de vocês vem, sim, eu vou sozinha,” ela diz,
recuando em direção à porta. “Mas não estarei sozinha quando
chegar lá.”
“E qual é o seu plano, exatamente?” Kaito pergunta.
Chandra não se vira. “Derrubar a árvore. Descobrir o resto
durante o caminho. Simples e fácil.”
O pântano a espera – com Liliana sendo a última do grupo em
seu caminho. Ainda assim, Liliana não a está bloqueando, apenas
encostada na soleira, observando.
“Você está falando sério,” ela diz.
“Sim. E você está falando sério sobre fugir, não é?”
Há muitas pessoas que matariam pela chance de fazer Liliana
Vess estremecer. Estranhamente, não parece uma vitória para
Chandra. Nada disso importa – e essa é a pior parte.
“É isso que você acha que estou fazendo? Não estou fugindo.
Apenas reconheço os sinos do funeral quando os ouço. Desejo-lhe
boa sorte em sua pequena aventura.”
“Espere,” Chandra diz.
Mas Liliana não espera. Ela mesma caminha para o pântano, mal
olhando para trás. “Ah, não há tempo para esperar. Você mesmo
disse.”

38
Nada está fácil hoje. Chandra abre e fecha a mão novamente. Ela
quer discutir, ou deixar claro o que realmente quis dizer – que Liliana
seria uma grande ajuda se ela viesse, e talvez elas pudessem
encontrar algumas respostas juntos, e talvez seja bom enfrentar seus
medos em vez de fugir deles.
Mas isso seria pedir a Liliana para ser outra pessoa diferente dela
mesma — e as duas sempre entenderam que não deviam pedir isso
uma à outra.
Liliana desaparece em um piscar de vapor escuro.
Chandra Nalaar começa a andar.
As lágrimas são quentes quando saem de seus olhos, mas o ar
frio do pântano ameaça congelá-las contra sua pele. Ela aumenta o
calor para não tremer. Ela não sabe até onde quer ir antes de
transplanar. Na verdade, ela não precisa ir muito longe. Ela poderia
fazer isso daqui se quisesse.
Mas ela quer caminhar um pouco. Sentir o vento, sentir o cheiro
horrível do pântano, olhar para o céu cinza opaco. Quando ela
partir, ela pode não ver o céu novamente por algum tempo. Não é
o azul vibrante de Kaladesh. As nuvens aqui não espiralam. Na
verdade, não há nenhuma nuvem – apenas um pântano cinza em
todas as direções. Ela não sente cheiro de ozônio ou de comida de
rua; ela não consegue ouvir o barulho dos mercados. Este lugar não
é o seu lar. Este não é o lugar que ela vai se lembrar.
Tudo bem. Ela vai voltar. Haverá outros lugares. Ela se
certificará disso, porque quando a Árvore-mundo cair, eles terão
vários outros lugares para onde ir. Vai ficar tudo bem, depois.
Ela para na primeira árvore que vê. Não é uma árvore muito
forte, nem mesmo muito saudável: sua casca escureceu, seus galhos
vazios e retorcidos como garras arranhando o céu. Mas é uma
árvore, e ela acha que provavelmente é boa o suficiente para respirar.
Chandra se senta sob sua sombra inexistente e joga a cabeça para
trás.
Ir para Nova Phyrexia é a coisa certa a fazer.
Mas ela está com medo.
Vai dar tudo certo. Ela só precisa de um segundo para pensar
melhor.
E talvez um segundo para chorar antes de transplanar direto para
a boca de um império do mal defendido por pessoas que já foram
seus amigos mais próximos. Pessoas de quem ela dependia para
39
derrubar aquele império. Eles não conseguiram — e agora ela vai
fazer isso sozinha.
Um frescor repentino e o movimento das folhas dizem a ela que
ela não está sozinha. Fungando, Chandra franze a testa. “Vá
embora.”
“Ah, eu prefiro que não. Eu teria que voltar para os outros.”
Ah, é Wrenn. Pelo menos não é Kaya vindo para tentar dissuadi-
la. Ainda assim, Chandra não consegue pensar em nada para dizer.
Ela tenta não chorar tanto agora que tem companhia – mas ela chora
do mesmo jeito.
“Eu quero ajudar.”
Chandra limpa a ponta do nariz. “Quer?”
“Sim. Que estranho foi ver você falar com os outros. Achei que
você estava fazendo todo o sentido. Se um galho apodreceu, você
tem que cortá-lo antes de poder avaliar como a árvore está.”
Ela não sabia que alívio seria ter alguém que a entendesse. Antes,
parecia que sua raiva estava saindo dela, mas é diferente agora.
Como se estivesse derretendo no chão. Ainda assim, ela precisa ter
certeza de que Wrenn estava falando sério. “Não teremos nenhum
reforço.”
“Não tenha tanta certeza disso,” Wrenn diz. “Temos Sete
conosco – e acho que teremos Teferi também.”
Teferi? Mas ninguém sabia onde ele estava, ou se ainda estava
vivo.
“Você está confusa sobre isso, não é? Eu acho que é confusão
em seu rosto. Às vezes pode ser difícil dizer o que as pessoas estão
pensando, apenas com seus rostos.”
“Você acertou,” diz Chandra. “Você deveria se dar mais crédito.
Se tivéssemos Teferi conosco… Você acha que sabe onde encontrá-
lo?”
“Acho que sim,” Wrenn respondeu. Ela acena com a cabeça,
enquanto Sete assume uma postura pensativa. “Ele se envolveu em
um emaranhado novamente, mas não é nada que não possamos
resolver. Estive estudando isso enquanto ficamos neste lugar, os
caminhos tortuosos que ele percorreu. Eu sei como alcançá-lo, mas
eu não serei capaz de fazer isso por conta própria.”
“Bem, você não estará sozinha,” diz Chandra. O medo também
estava indo embora, pois a esperança começava a surgir. Se ela
conseguir tirar Teferi de onde quer que ele esteja, suas chances
40
aumentam consideravelmente. “Você terá a mim, Sete, e a quem
mais encontrarmos por lá.”
Mas Wrenn desvia o olhar, com a mão apoiada na casca de Sete.
“Sete fez tanto por mim, mas ele não pode fazer isso. Ele não pode
me emprestar um poder que não tem. Deve ser o fogo e deve ser a
Árvore-mundo.”
A coisa mais importante sobre como lidar com o fogo, Jaya
sempre dizia, é saber que ele está lidando com você. Você pode
orientá-lo, pode dar sugestões, pode dar a ele um lugar seguro para
ficar – mas no final ele sempre fará o que quer, e o que quer muda
de segundo para segundo. Você tem que conversar com ele se quiser
chegar a algum lugar e se quiser manter seus amigos seguros. É
exatamente o oposto de lidar com árvores.
Chandra costumava conversar com Nissa sobre isso também.
Nissa costumava dizer a ela que às vezes o crescimento
turbulento, do tipo que acontece de uma só vez, pode ser como o
fogo. A princípio, Chandra não havia acreditado nela. O fogo varre,
a natureza nutre. Mas então ela viu como era o Turbilhão em
Zendikar e começou a fazer sentido – às vezes, era a mesma coisa.
Ela gostava quando a natureza a surpreendia. E, mais do que tudo,
ela gostava de ouvir Nissa falar sobre isso.
Ela tentou ajudar Wrenn a descobrir as coisas do jeito que Nissa
a ajudou, mas ensinar é muito mais difícil do que ouvir, e o fogo de
Wrenn não é uma chama normal. O fato de ela estar lá é uma prova
de sua força. Se ela realmente vai soltá-lo, então a Árvore-mundo
pode ser a única coisa que consegue lidar com ele. “Você tem
certeza?”
“Tenho,” ela diz. “Os outros estavam errados – aquela
árvore está viva. Posso ouvir sua canção daqui. É… distante, mas
dolorosa. Um uivo sem melodia. Ele precisa de ajuda, assim como
Teferi e os outros. Se eu ignorasse isso, que tipo de heroína eu seria?
Meu próprio medo tem pouco a ver com isso.”

41
Arte de Kekai Kotaki

Chandra oferece um pequeno e triste sorriso. “Heroína, hein?


Estou com medo também, mas um pouco menos, agora que tenho
companhia.”
“Você deveria encontrar um amigo como Sete,” diz Wrenn.
“Assim, você nunca estaria sozinha.”
A menos que essa amiga se perdesse em um Plano cheio de
inimigos cruéis, então ela realmente ficaria muito solitária.
O sorriso de Chandra só fica mais triste – mas ela o estica, como
se quisesse escondê-lo. Ela dá um tapinha na casca de Sete. “Vamos
embora.”
Wrenn inclina a cabeça, como se percebesse que talvez tenha dito
algo errado, mas o momento passa sem comentários. Logo elas
deixam a sombra da árvore estéril. Ninguém vem se despedir.
Ninguém que elas possam ver, pelo menos.
Mas há alguém observando a clareira. Há alguém vigiando o
abrigo e as pessoas dentro dela amontoadas em busca de propósito
e direção. Um truque de luz poderia revelá-los, ou não. Um nariz
aguçado poderia notar seu cheiro, ou não. Mas eles estão lá,
observando.
Tudo isso parece familiar para eles, como uma música cuja letra
há muito desapareceu. Repetidas vezes, eles tentam se lembrar e, no
entanto, as palavras fogem. Fica apenas a melodia: um lamento pelo
que está por vir, um hino doloroso.

42
O observador não está sozinho. Existem outros, também,
observando, mas ainda invisíveis. O observador pergunta a um
deles: “O que estamos olhando? Por que estamos aqui?”
A resposta vem como a trombeta dos chifres de guerra: Estamos
aqui para testemunhar o começo do fim.

43
EPISÓDIO 03: UMA MÃE, UM
FILHO, E UMA HISTÓRIA

Há uma história.

Muitas eras atrás havia um grande mago chamado


Urza. Ele era tão sábio que todos os magos do
Multiverso o procuravam em busca de conselhos;
ele era tão poderoso que apenas seu irmão Mishra
era um rival em potencial. Mas Mishra o odiava
amargamente, e logo uma guerra começou.
A guerra durou décadas e tirou incontáveis vidas.
Pior ainda, permitiu que o mal sem comparação
florescesse. Uma terrível aflição se espalhou pelos
exércitos de Mishra – um óleo negro que mudou
tudo em seu caminho.

Tamiyo conhece essa história. É assim que ela começa; mas há


mais, muito mais. Anos atrás, ela memorizou cada palavra.
Posteriormente, assim como o herdeiro metálico de Urza se propôs
a criar um plano, ela se propôs a tarefa de escrevê-la. Como o óleo,
ela descobriu que a história se infiltrara em sua mente, começando
a transformá-la em algo que não gostava. Algo perigoso.
Ela o selou.
Que coisa tola de se fazer.
Pairando sobre os céus neon de Towashi, ela segura o
pergaminho na mão. Óleo escorre de seus dedos para o pergaminho.
Em pouco tempo será impossível ler qualquer um dos caracteres –

44
mas isso não é problema para alguém como ela, alguém que conhece
essas histórias mais do que a si mesma.
Um centurião phyrexiano bate no telhado de um prédio. As
pessoas se espalham como formigas. Não, não como formigas, cujas
carapaças lhes dão força, que agem como uma unidade em tudo.
Pessoas nunca poderiam ser tão confiáveis quando aprisionadas pela
carne e pelo medo mortal. Não, enquanto eles saem do prédio
gritando, é apenas o visceral que os impulsiona, o corpóreo – as
partes mais falsas de sua existência.
Há um anel de ferro prendendo o pergaminho. Tamiyo o retira.
Ele despenca no ar, caindo como tantos outros pedaços de metal na
cabeça de algum desavisado.
A história continua.

O mago Urza cria um herdeiro de metal puro e


simples. Ele o chama de Karn. A mesma faísca da
criação que o gerou arde intensamente em seu
peito. Karn também precisa criar. Como um
escultor lascando mármore, ele molda seu mundo.
Quando está concluído – criaturas nomeadas e
vantagens concedidas, clima cuidadosamente
elaborado, terra moldada e polida – ele nomeia seu
próprio sucessor, Memnarca, para supervisioná-lo.

Os espíritos de Towashi não aceitam bem a intromissão dela,


nem de seus companheiros. Galhos se desdobram, vapor queima os
tendões, folhas cortam como navalhas. Outras histórias servem para
protegê-la. Histórias menores. Histórias sem propósito, histórias
que não exaltam as glórias e virtudes que ela agora vê com tanta
clareza. Toda história, todo conto, toda fábula que existe é a favor
da unidade ou contra ela.
Ela pode largar aquelas histórias que não importam mais. Esta
importa; ela deve conduzi-la à sua conclusão.

45
Arte de Artur Nakhodkin

Enquanto seus olhos examinam o pergaminho, os caracteres se


iluminam – mesmo aqueles agora consumidos pelo óleo preto. Cada
sílaba que ela lê ressoa e reverbera, sacudindo os arranha-céus de
Towashi. Trens saem de seus trilhos em ruínas e mergulham no
chão. A terra se rasga, abrindo fendas na cidade que só tem espaço
para si. Rios são inundados, levando barcos e pescadores com eles.
Manchas pretas colorem a água. Símbolos phyrexianos se gravam
nos anúncios pendurados nos prédios ainda em pé.
Não vai demorar muito agora. A história continua.

Memnarca, o herdeiro do herdeiro, é a cópia de


uma cópia – uma imagem desbotada do próprio
Urza. Ele anseia pelo poder que seu avô exercia tão
facilmente quanto um poeta segura uma pena.
Anseia pela capacidade de criação de seus pais.
Anseia por ver mais. Ao longo dos anos, ele retira a
vida daquele Plano e assim, acomodando-as todas
neste jardim, espera que as flores cheguem. E elas
chegam, mas não são as flores que Memnarca
espera: elas florescem em óleo negro. Suas raízes
sufocantes envolvem aquilo que é vivo e inteiro.
Logo, todo o jardim se afoga sob o óleo. O herdeiro
retorna para descobrir que sua casa foi destruída.

46
Há mais história ainda. Há pessoas sendo expulsas de suas casas
e pisoteadas, suas almas arrancadas de seus corpos, seus corpos
alterados além de qualquer reconhecimento. Uma rainha surgindo
da lama para governar seu povo. Uma unidade gloriosa e sem fim –
uma vida sem guerra ou conflito. O herdeiro olha para tudo isso
com horror.
Quando Tamiyo escreveu a história, ela temia tudo isso. Ela não
entendia a paz que vinha de fazer parte de uma grande família. Não
é assim que ela contaria essa história agora. Mas está quase pronta,
e ela continuará contando.
Boseiju, a árvore que antes mantinha este plano unido, se
despedaça. Como o vinho derramado de um barril, o óleo escorre
por entre as lascas, pingando na terra sedenta. Um guincho profano
perfura os ouvidos de todos que quiserem ouvir: kami, arrancados
de sua casa, espalhados para longe do distrito. Alguns encontram
seus destinos na ponta de uma lança, outros são encontrados
dilacerados por pescadores completados unidos com suas capturas,
mas o resultado é sempre o mesmo: os kami se dissolvem em uma
névoa fina. Gavinhas de fumaça sobem do solo enegrecido, das
pontes se dissolvendo em nada, até que todo o distrito é engolido
pela névoa dos kami mortos.
Há uma parte distante dentro dela que grita ao ver tudo aquilo.
Uma pequena voz ecoando em seu ouvido, um formigamento na
ponta dos dedos. Mas ela não pode dizer que está com medo. Isso
é o certo para Kamigawa. Após séculos de guerra, eles não
conquistaram a paz? Isso não é simplesmente mais um passo para a
unificação?
O próprio pergaminho se torna óleo nas mãos de Tamiyo,
pingando entre seus dedos.
É assim que a história termina, e sempre terminou: com a vitória
de Phyrexia.
Uma ferida se transforma em uma cicatriz quando você cutuca
demais. Uma cicatriz adoece quando não recebe os devidos
cuidados.
Kamigawa está sangrando. Ravnica também. Mas Ravnica tem
muitos planeswalkers para mantê-la segura. Essa é a tarefa de Teyo,
para começar – e Ral está pensando em medidas defensivas há um
bom tempo. Disse que tinha um palpite de que algo grande estava
por vir. Eles podem lidar com as coisas lá por enquanto, no mínimo.
47
Kaya e Vraska deveriam segurar Ravnica enquanto Jace
coordenava com os outros Planos. Isso não iria acontecer mais.
Eles sobreviveriam sem eles. Kaito pediu ajuda para estancar o
sangramento em Kamigawa, e depois do que passaram, ajudar é o
mínimo que ela poderia fazer.
Mesmo que ela tivesse seus próprios ferimentos para se
preocupar.
Kaya não tinha certeza de quanto tempo o dela duraria. Esse é o
tipo de memória que muda quem você é na vida após a morte? Se
assim for, ela está irremediavelmente perdida. Ver Nova Phyrexia já
foi ruim o suficiente. Mas estar no meio de uma invasão – assistir
Nova Phyrexia rasgar um Plano membro por membro? A única
maneira de não traumatizar é deixar-se entorpecer com as visões.
Há muita coisa acontecendo para salvar todo mundo: o chão
treme com as pisadas dos centuriões. Cães de caça rosnadores
vagam pelas ruas, alguns com pessoas presas dentro de suas caixas
torácicas. Séculos de história evaporam em um instante – centenas
de futuros potenciais são eliminados de uma só vez.
Não há tempo para pensar sobre isso, não há tempo para amargar
sobre como tudo isso aconteceu ou por que é ela quem deve reunir
as Sentinelas, não há tempo para se perguntar o que pode dar errado.
Pessoas estão caindo. Também não há tempo para se reconciliar
com a forma como seu estômago se contorce depois de um
transplanar – há apenas movimento, apenas ação.
Ela deve agir.
Kaya corre. Um salto a leva para uma varanda que está se
rachando; outro a coloca num piso cambaleante logo à frente. O
horror se instala um segundo depois: as plantas da casa, as roupas
espalhadas e a cozinha destruída dão fôlego aos seus piores medos.
Este era um edifício residencial. Com sorte, a maioria dos habitantes
escapou. Uma tigela de macarrão pela metade diz que as pessoas
nesta unidade conseguiram. Mas há outros, não é?
Um grito atinge seus ouvidos, abafado pelo caos em curso. Kaya
atravessa a parede cheia de quinquilharias e lembranças, tentando
não pensar em como todas essas coisas se perderão depois de hoje.
Um menino e seu cachorro tremem no canto do outro lado. Vigas
caídas prenderam os dois. Há espaço suficiente para o cachorro se
espremer, mas o menino teria muito mais dificuldade.

48
Kaya não pode deixá-los aqui. Ela não tem uma rota de fuga, não
sabe exatamente como eles vão sair, mas ela pode descobrir ao longo
do caminho. Não deve ser mais difícil do que descobrir o que fazer
com essa invasão.
Passar pelas vigas caídas é bastante fácil. Normalmente, tirar o
menino de sua posição seria difícil, mas é mais fácil quando ele quer
sair tanto quanto ela quer ajudá-lo. Ela lhe oferece uma mão.
Quando ele pega, ela o puxa pela viga caída. O menino sorri – e o
cachorro se espreme atrás deles.
“Como vamos descer?” ele pergunta.
Uma pergunta adequada, dada a visão à sua frente: toda a lateral
do prédio foi arrancada. Towashi – ou o que restava dela – estava
pairando. Pisos e móveis caindo no chão enquanto fumaça subia da
terra, uma fumaça acre e oleosa que Kaya não queria pensar muito
de perto. As ruas estavam lotadas com aqueles que lutavam contra
a invasão e com os que a promoviam. Óleo negro escorria das bocas
e olhos dos atacantes e símbolos phyrexianos imundos brilhavam
em todas as superfícies. Pior – a cada poucos minutos, um barulho
estrondoso sacudia o Plano novamente, anunciando o ataque dos
galhos esqueléticos e brilhantes de Norn.

Arte de Titus Lunter

Se Kaya fosse uma criança assistindo tudo isso, ela faria a mesma
pergunta.

49
Mas ela é uma adulta agora. Seu trabalho é encontrar respostas
onde não havia nenhuma.
“Vamos pular de um lugar para o outro,” ela diz. O menino enfia
o cachorro dentro da camisa. “Você é bom em pular?”
“O melhor,” diz o menino.
Ela espera que sim. Ela pega a mão dele, os dois se aproximam
da beirada do andar restante. Mais à frente, há os restos de uma
sacada – se eles conseguirem chegar lá, talvez possam deslizar por
uma tubulação para um lugar seguro.
“No três,” ela diz. Ele concorda.
Um, dois…
Três!
Os dois pulam ao mesmo tempo, Kaya segurando a mão do
menino. Mas, quando deveriam pousar, a sacada cai.
Kaya, o menino e o cachorro despencam.
Você tem muitos pensamentos quando pensa que vai morrer.
Menos quando você é responsável por salvar outra pessoa. Kaya
pensa rápido. Ela pode salvar o menino se conseguir desacelerar a
queda. Essa deve ser a prioridade. Quando ele começa a gritar, ela o
agarra contra o peito.
Ela fecha os olhos.
O impacto não acontece.
Uma força invisível os empurra de volta, retardando a queda.
Segundos antes de atingirem o solo, eles flutuam acima dele. O que
quer que estivesse prendendo-os não poderia segurar por muito
mais tempo; os dois estão tremendo. Um phyrexiano?
“Tente ser menos imprudente da próxima vez.”
Kaito.
Kaya abre os olhos para vê-lo. Sua telecinésia mal consegue os
segurar; gotas de suor na testa dele. Lidar com um objeto de
tamanho humano, ainda mais três, deve ter levado seus poderes ao
limite. Sangue, óleo e sujeira estão espalhados por sua armadura lisa.
Ele acena com a cabeça.
O menino age primeiro, pulando no chão. Uma mulher perto
grita por ele – ele corre sem olhar para trás. Um latido de sua camisa
diz a ela que o cachorro está bem também.
Kaya se levanta. Ela aperta a ponta do nariz com o polegar.
“Obrigada,” ela diz. “Estaria perdida sem você.”

50
Ele deixa aquela declaração sem correção, o que ela supõe ser
justo.
“Temos que agir rápido. O distrito de Boseiju é o alvo principal.
A coisa toda, a árvore…”.
Kaito divaga, mas Kaya tem as próprias respostas. A árvore sobre
Towashi está dilacerada. Uma cachoeira de podridão jorra de seu
tronco.
“Isso é… isso é horrível,” Kaya diz.
“É,” Kaito acena com a cabeça. “E pior, Tamiyo fez isso. Abriu
um pergaminho. Você consegue vê-la.” Kaito aponta para Tamiyo,
flutuando bem acima da cidade, perto dos galhos de Boseiju. “Ela
ainda está lendo dele. Se ninguém a derrubar, isso só vai piorar.”
Infernos – eles estão falando sobre derrubar amigos agora. Não
que Kaya fosse estranha a assassinatos, mas há algo diferente nisso.
Tamiyo ainda mais. “Nós dois temos habilidades para isso. Devo ir,
ou você quer lidar com ela?”
“É pessoal,” diz Kaito com um aceno de cabeça. “Os kami vão
querer lutar contra isso tanto quanto nós – aqueles que podem lutar.
Veja se você consegue convencê-los a vir.”
“Falando em ajuda, onde está a Errante?”
Kaya não quis dizer isso como um soco, mas Kaito pareceu
entender como um. O canto de seu lábio se contrai.
“Ela está chegando,” Kaito diz.
“Você quer dizer que ela não está aqui?”
“Ela estará aqui,” ele diz. “Apenas tenha um pouco de fé.”
Ao redor deles, Kamigawa está desmoronando. Ele diz para ter
fé. É como uma piada de mau gosto, não é?
Ou uma ferida que eles continuam cutucando.
Tamiyo flutuava acima deles. Ou algo que um dia foi Tamiyo.
Ela não os olha de cima, nem parece se mover, não parece se
importar com o que está fazendo. Nada poderia estar mais longe da
mulher que Kaito conheceu em Otawara.
Ele avalia a casca oleosa da árvore. Não importa o que ele pensou
de Tamiwo antes, isso é muito mais do que apenas ele. Kaito põe o
pé contra a casca. Ele sobe cerca de três degraus antes que alguém
o chame.
“V-você vai até lá para lutar contra ela?”

51
A voz é pequena e tímida. E por mais que ele queira ignorá-la,
ele sabe que não pode. Além disso, se havia uma criança por aí, ela
precisa fugir e rápido. “Vou. Você deveria sair daqui.”
“Não posso,” diz a voz. Quando ele olha para baixo, ele avista o
garoto: um pequeno nezumi em uma armadura de metal multicolor
e um capacete feito em casa, que escondia seu rosto. Ele deveria ter
remendado tudo com sucata. Espere um pouco…
“Aquela lá em cima é a minha mãe.”
“Nashi?” ele pergunta.
Com certeza, ele acena com a cabeça.
Kaito desce da árvore. “Você não quer estar aqui,” ele diz. “As
coisas vão ficar feias.”
“Mas você não vai machucá-la, vai?” Nashi pergunta, agitando as
mãos. “Ela parece diferente, mas ainda é ela. Acho que ela se
esqueceu de si mesma – pensei, talvez se eu falasse com ela…”
Kaito passa a mão pelo cabelo. “Eu não acho que seja tão
simples.”
“Você tem que me deixar tentar,” Nashi responde. Ele se levanta
em toda a sua altura – o que não é muito. “Eu vim até aqui para
ajudar quando soube que as coisas estavam ficando ruins. Mamãe
disse que é isso que os heróis fazem. Se você puder me levar para
algum lugar onde ela possa me ver, então tenho certeza que ela vai
ouvir. Não importa quem ela é, ela sempre vai me amar. Ela
prometeu.”
O peito de Kaito fica apertado. Ele não quer fazer isso. Mas e se
fosse Eiko lá em cima? Kaito não quer pensar nessa possibilidade,
mas sabe que faria qualquer coisa para recuperá-la. Mesmo que
recuperá-la não parecesse uma opção. Tamiyo acabou assim por
causa dele. O mínimo que ele pode fazer é tentar este plano.
“Tudo bem,” Kaito diz. “Você é bom de escalada?”
“Mais ou menos,” Nashi diz. “Não é bom o suficiente com toda
essa… coisa na árvore. Não parece que eu devo tocar nela.”
“Não deve mesmo,” Kaito diz. Ele tira um repulsor do cinto.
Nashi não deve pesar muito, certo? Kaito o prende no cinto de
Nashi e o liga. Um zumbido suave irradia quando ele começa a
flutuar. “Caminhe na direção que você quer ir. É um pouco lento,
mas você será capaz de acompanhar. Se você apertar o botão mais
uma vez, ele te protegerá. Não aperte depois disso, a menos que
você queira cair.”
52
Nashi assente.
Kaito engole seco, afastando a sensação de pavor. Se o pior
acontecesse, ele diria a Nashi para ir embora. Mas talvez ele esteja
certo, talvez haja uma maneira de superar tudo aquilo. Coisas
estranhas aconteceram. Eles precisavam tentar.
Boseiju não era fácil de escalar. Entre as torrentes de óleo que
choviam acima deles e o caos logo atrás, não havia muita facilidade
no caminho. Normalmente haveria galhos mais baixos no chão
sobre os quais alguns dos kami moravam – mas todos eles se
separaram. O primeiro galho que lhes serviriam era muito mais alto
e apenas mais ou menos estável. O ar estava frio e rarefeito quando
eles finalmente pousaram sobre ele; se não fosse por seu
treinamento, Kaito estaria tonto.
Nashi não tem tanta sorte. Quando suas patas encontram a casca,
ele balança de um lado para o outro, segurando o estômago. Kaito
coloca a mão em seu ombro. Ele aponta para frente, para onde
Tamiyo ainda flutua. “Espere um segundo se precisar, mas ela está
lá. Ela também não nos notou.”
Nashi respira fundo duas vezes. Kaito respira junto com ele; às
vezes ajudava ter companhia quando se tratava desse tipo de coisa.
“Certo. Estou pronto,” Nashi diz.
Kaito espera que sim. Para o caso de as coisas darem errado, ele
desembainhar a espada. “Eu te dou cobertura.”
A passos instáveis, Nashi caminha até o final do galho. Kaito
segue um ou dois passos atrás. Seu coração martela em seus ouvidos.
Tinha que ter sobrado algo em Tamiyo. Alguma coisa nela se
lembraria, certo?
“Mãe?”
A cabeça de Tamiyo dá uma volta ao redor de seu pescoço. Os
olhos que os contemplam não são os olhos gentis e inquisitivos que
Kaito conheceu. São algo completamente diferentes – com
contornos pretos, as lágrimas em suas bochechas eram uma prova
do que ela se tornou.
Tamiyo não diz nada. Ao redor dela, os pergaminhos giram; a luz
atinge as bordas afiadas de suas garras.
“Sou eu, Nashi. Você se lembra de mim, certo?” ele pergunta.
“E-eu não acho que você queira fazer nada disso. Eu acho que você
cometeu um erro. Mas eu sei que alguém está te obrigando. Eu só

53
quero que você se lembre. Como nas histórias sobre príncipes
perdidos.” Nashi treme tanto que é difícil para ele falar.
“Nashi,” diz Tamiyo. “O que você está fazendo aqui…?”
Kaito estende a mão para equilibrar o pequeno nezumi.
E é então que o resto do corpo de Tamiyo se vira para se alinhar
com sua cabeça, então seu rosto se transforma em uma expressão
carrancuda. Um fragmento de metal dispara na direção deles,
arremessado da órbita de pergaminhos flutuando ao redor de
Tamiyo. São apenas os instintos aguçados de Kaito que os salvam:
ele desvia os fragmentos com telecinésia da mesma forma que
desviara de todas as pedras que seus instrutores atiraram nele. O
barulho de metal ressoa em seus ouvidos.
“Eu não quero nada além de você se juntar a mim, Nashi,” diz
Tamiyo. Sua voz soa estranha para Kaito – como o grito de uma
cigarra distorcida. “Você só está com medo porque não entende.
Não há nada a temer. À luz de Nova Phyrexia, todos são um.”
Kaito pisa na frente de Nashi. “Volte para a árvore.”
“Eu não posso deixá-la-”
“Esta não é sua mãe,” Kaito retruca. “Agora vá!” Kaito dá a
Nashi um empurrão ainda mais para trás. Já que as coisas vão ficar
violentas, ele não quer que Nashi veja isso de jeito nenhum.
Assim que Kaito empurra Nashi para longe, Tamiyo desce sobre
ele. Tamiyo era alguém que fazia o que podia para apoiar os outros.
Uma contadora de histórias, uma investigadora, uma mulher
dedicada à família. E agora?
Phyrexia a mudou. Transformou aquela curiosa contadora de
histórias em um hierofante cruel. Não havia nada atrás daqueles
olhos cheios de óleo.
As garras de Tamiyo cortaram o ar, seguidas por pergaminhos
armados que agarraram o pescoço e os braços de Kaito, ameaçando
prendê-lo e dominá-lo. Kaito cortava o papel enquanto mantinha o
metal afastado – mas pisar naquele galho escorregadio era algo
muito traiçoeiro. Ele escorrega. As garras de Tamiyo deslizam e
atingem a armadura de Kaito antes que ele consiga se recuperar.
Com o menor deslize de seus pés, aquelas garras se alojariam em seu
pescoço. Ele consegue recuperar o equilíbrio com apenas um talho
em sua armadura para provar.
Kaito segura sua espada diante dele.
Tamiyo olha para ele sem piscar. “Esta é uma luta inútil.”
54
“Talvez para você,” Kaito diz. “Não há nenhuma maneira de
você vencê-la.”
Sem um gesto sequer, Tamiyo lança mais cinco fragmentos
voando na direção dele; Kaito bloqueia quatro. O quinto o corta na
bochecha.
“Tenho pena de você,” Tamiyo diz. “Lutando contra a paz para
manter sua solidão. Você está no caminho de sua própria
iluminação. Como uma criança, você luta contra os pais que só
desejam acolhê-lo.”
Kaito fica de olhos marejados ao ouvi-la falando assim. Kaito
espera que Nashi não consiga ouvi-la. E ele espera, também, que
Nashi não estivesse olhando quando ele lança seu peso em uma
estocada. Tamiyo balança para trás e contra-ataca – um pergaminho
envolve sua perna. Ele tenta se desvencilhar e se soltar.
Tamiyo puxa.
Kaito fica de cabeça para baixo antes de saber o que aconteceu,
balançando bem acima de Towashi. A fumaça da cidade em chamas
arde em seus olhos. De alguma forma, ele mantém sua espada.
“Estou te dando a uma última oportunidade de se render, Kaito.
Phyrexia pode lhe dar a vida que você sempre quis. Venha para casa.
E deixe-me receber minha família.”
O sangue está subindo à cabeça. Pense. Se ele se cortar, ele vai
cair. Talvez ele consiga se segurar em alguma coisa; talvez não. Mas
ele não tem muitas opções melhores.
“Eu gosto da minha vida do jeito que ela é,” ele diz.
Kaito faz o corte.
Ele cai. Não há impacto. Em vez disso, ele sente algo frio e macio
embaixo dele. Algo… familiar. “Já somos três, se você continuar
contando.”
Aquela voz. Um sorriso malicioso surge antes que seus olhos se
abram – é a imperatriz. Ela pousa no topo do galho envolta em um
tecido, sua espada estendida ao seu lado. O que significa que ele
deve ter pousado em Kyodai – o espírito guardião de Kamigawa cuja
alma está ligada à imperatriz.
“Diz isso contando comigo?” A voz de Kaya mostra a Kaito que
ele não está sozinho. Ela está bem ao lado dele, os dois cavalgando
juntos.
“Por enquanto,” Kaito responde. “Eu te disse que ela estaria
aqui.”
55
Kyodai voa de volta para Tamiyo. Eles estão na altura do galho,
agora. Seus olhos estão fixados na imperatriz enquanto ela
confronta Tamiyo. Cada passo é cauteloso e gracioso – a astúcia que
incomodava Kaito não é uma preocupação para a imperatriz. A
jovialidade que havia em sua saudação inicial desapareceu quando
ela se dirigiu à monstruosidade diante dela.
“Este é realmente o lugar para uma luta, Tamiyo?” a imperatriz
questiona.
“Você deveria perguntar isso a si mesma,” Tamiyo responde.
Uma enxurrada de fragmentos voa em sua direção, cada um
dividido em dois por um único corte da lâmina da imperatriz.
Tamiyo recua a cada passo que a imperatriz dá em sua direção –
parando ao lado de um Nashi assustado.
A mão de Tamiyo pousa na cabeça de Nashi.
O estômago de Kaito revira. Ele se questiona se deveria desviar
o olhar. Em vez disso, ele encontra forças para gritar. “Nashi, afaste-
se!”
Tamiyo pega um pergaminho em sua cintura, um que estava
amarrado com uma faixa de ferro. Ela solta a faixa com um dedo.
O papel de seda se desenrola.
“Kyodai!” grita a imperatriz.
O grande kami abaixo deles voa para o lado dela. A imperatriz
aponta a espada para sua companheira e Kyodai bafora sobre ela.
Linhas brancas brilhantes revestem a lâmina; os símbolos flutuam
no ar ao redor dela. O poder de Kyodai flui através da imperatriz.
A boca de Tamiyo começa a se mexer.
Nashi, finalmente compreendendo o que está para acontecer, se
afasta.
Um flash de luz branca, o som de uma lâmina desembainhando,
o assobio de um vendaval distante.

56
Arte de Tran Nguyen

Tamiyo cai.
Kaito fica de pé em um instante. Nashi está sozinho agora – ele
vai precisar de companhia. No momento em que Kaito diminui a
distância, a Errante está lá para encontrá-los. Kaito abraça Nashi
com força.
“Não era ela,” Nashi repete. “Aquilo não era… por que ela estava
assim… por que ela não…?”
Não havia respostas fáceis – certamente nenhuma que Kaito
pudesse usar. Uma pedra em sua garganta o impedia de falar.
A imperatriz inclina a cabeça com tristeza. “Sua mãe viverá em
sua memória e nas histórias que você contar sobre ela.”
Era um conselho sábio, mas não necessariamente reconfortante
para alguém no meio da dor. Os soluços de Nashi só ficam mais
altos. Kaito não pode culpá-lo.
Outra mão pousa em seu ombro, estranhamente leve e fria. Kaya
nunca pareceu do tipo de reuniões chorosas, mas talvez depois do
que eles viram em Nova Phyrexia ela esteja mudando de opinião.
Qualquer conforto era bem-vindo agora. Até Kyodai abraça todos
eles. Por um momento, parece que eles estão tentando manter o
Plano inteiro. Talvez no caso deste menino, eles realmente estejam.
A paz dura até que eles ouvem a mãe de Nashi chamando por
ele.

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A voz de Tamiyo não vem da pilha de metal que a imperatriz
derrubou, mas de dentro deles. Não era o frio sussurro phyrexiano,
mas os tons calorosos e familiares do seu antigo eu.
“Nashi, me desculpe.”
Kaito protege Nashi com seu corpo. Diante deles está um ser
estranho: símbolos flutuantes densamente compactados formando
a silhueta de uma mulher. Eles brilham e escurecem como se
estivessem respirando. Quando eles ouvem a voz de Tamiyo, uma
luz no centro brilha ainda mais forte. Os símbolos surgem,
desaparecem e mudam à medida que ele os observa. Os neons
projetados de Towashi conseguem produzir todos os tipos de
truques, mas isso é algo diferente. A maneira como estavam se
movendo parece intencional demais para ser aleatória, imperfeita
demais para ser artificial. A luz que brilhava dentro lembrava mais
um kami do que qualquer uma das maravilhas técnicas de Towashi.
“Entendo que você pode estar desconfiado de mim, mas não
quero fazer mal a você,” Tamiyo diz.
“O que é você?” Kaito pergunta.
“Não é um fantasma, com certeza,” Kaya responde – ela está na
beirada do galho. “O que você quer?”
A silhueta se vira para cada um deles e acena com a cabeça. “Eu
sou o que resta de Tamiyo – sua história sem fim. Você pode pensar
em mim como sua memória. Muitos anos atrás, ela me criou em
antecipação à sua morte e me selou dentro de um pergaminho até
que eu fosse necessária, presa com um anel de ferro.” A memória
de Tamiyo – sua história – fez uma pausa. “Eu esperava que nunca
fosse necessário.”
“Como sabemos que você não é-” Kaito começa.
Mas Nashi já estava se afastando dele, em direção ao estranho
conglomerado de símbolos. Quando ele os encontra, eles se
aglomeram, acomodando-se em seus braços.
Kaito se move na direção do menino, mas a imperatriz gesticula
para que ele pare. A imperatriz se vira – em direção ao corpo, em
direção a Kamigawa, em direção às ruínas da noite. “Ela está
dizendo a verdade.”
“Como você sabe?” Kaito pergunta. “Como você sabe que este
não é outro esquema phyrexiano?”
“Você estava prestação atenção? Antes de eu atacar, Tamiyo
murmurou alguma coisa.”
58
“Eu vi isso, mas ela poderia estar preparando qualquer coisa.
Achei que ela estava lançando uma maldição.”
“Não estava,” a Errante disse. “Todos os fragmentos que ela
jogou em mim eram muito grandes para causar qualquer tipo de
dano – você não percebeu?” Ela coloca a mão em uma das muitas
máscaras de Kyodai, e o kami toca a dela por sua vez. Um momento
de ternura duramente conquistado em um campo de batalha como
este. “Tamiyo estava fazendo um pedido, da única maneira que
conseguia.”
Kaito olha para trás por cima do ombro. Nashi ainda está cercado
pelos caracteres – pela história sem fim. Não era uma vitória limpa,
nem mesmo muito boa. Kaito olha para a cidade em chamas abaixo
do dossel ferido de Boseiju. Tantos estão mortos, tantos estão
morrendo, tantos mais que vão morrer.
À distância, ele vê formas se movendo em meio à estranha
fumaça — mecas gigantes avançando pesadamente em direção à
farpa de impacto. Forças imperiais se reunindo para combater o
ataque phyrexiano.
O quanto eles podem fazer? Quantos eles podem salvar?
Tamiyo caiu – mas Nashi sobreviveu.
Considerando o trabalho que resta a ser feito, ele aceita essa
vitória.
Há uma história.

Era uma vez um grande mal, que ameaçava engolir


todos os planos do Multiverso. Insensível e
indiferente, infectou os corações daqueles que
encontrou.
Houve alguém que lutou contra aquilo.
Houve uma protetora de branco.

59
EPISÓDIO 04: SOB OLHOS BEM
ABERTOS

Para bravuras e batalhas nasceu, para bravuras e batalhas Tyvar


Kell retornou – com orgulho em seus lábios e notícias impiedosas
em seu coração.
Skemfar recebe seu filho rebelde de braços abertos. Depois do
clima carregado de ozônio em Nova Phyrexia e do abrigo pantanoso
em Dominária, respirar o ar puro da floresta em seus pulmões é uma
grande dádiva.
Mas assim que chega, ele descobre que já é tarde demais. Ele não
retornou para aplausos de boas-vindas, mas para o barulho das
espadas contra o metal, o uivo das flechas voando e os gritos dos
trespassados. Ao longe, um ofidiano sanguíneo do tamanho de uma
montanha estrangula a Árvore-mundo. Uma armadura branca,
espessa como uma geleira, a protege. Casulos caem – as escamas
daquela serpente asquerosa – e o chão treme a cada nova entrada,
cada uma recebida com os martelos de guerra.
Os tambores de guerra batem no ritmo apressado do seu próprio
coração enquanto ele abre caminho para o corpo a corpo. Glória
dirige seu corpo. Ele desvia de um membro semelhante a uma foice
de um dos inimigos, transforma seu próprio braço em metal, e
atravessa a cabeça da coisa. Um instante depois, ele está desviando
de um machado enquanto acerta outro. Uma saudação vinda detrás
dele alegra seu coração – o fim dos dias chegou a Kaldheim, e os
elfos de Skemfar o enfrentam de frente.

60
Tyvar vê seu irmão lutando ao lado de seu povo, cercado por
skalds e estandartes.
“Veio para lutar contra a escória?” Harald questiona. “Haverá
bastante.”
“E mais está chegando,” Tyvar diz. Algo que já foi um gigante
arremessa uma pedra na direção deles; os outros se dispersam, mas
Tyvar firma seus pés no chão. Da terra ele extrai sua força – e com
um único golpe estilhaça a rocha. Ele sorri. “Você deve ter sofrido
antes de eu voltar.”
Harald balança a cabeça. “Já chega disso. Você sabe de alguma
coisa que possa nos ajudar? Quem são essas criaturas?”
“Phyrexianos,” Tyvar responde. Um grito chama sua atenção –
um dos elfos estava preso na barriga de um lobo esquelético gigante.
Tyvar estremece. “Está vendo ali – eles vão banhá-lo em óleo, e
então ele vai ser mais metal do que elfo. Depois disso, as mudanças
começam. Não vai demorar muito para ele arrancar a pele do
próprio pai.”
Uma dúzia de guerreiros alcança o sabujo, dois de cada lado para
flanqueá-lo. Martelos soam contra o aço.
“Eles não vão parar até que tudo em Kaldheim esteja como eles.
Eu estive na casa deles, irmão – é sem vida, sem música.” Ele engole
em seco. A próxima parte não é fácil de dizer, mas deve ser dita:
“Este não é um inimigo que os elfos possam vencer sozinhos.”
O próprio Cosmos reforça o aviso sombrio. O chão ruge e treme
sob seus pés, uma luz branca vazando das fendas que se abrem.
Tyvar se desequilibra contra seu irmão. Harald o estabiliza, então
aponta para a abertura do doomskar. “Parece que não vamos ficar
sozinhos por muito tempo.”
Phyrexianos e elfos mergulham na terra faminta. Luzes em
movimento os transformam em silhuetas enquanto o Cosmos os
reivindica. Insatisfeita, a luz rasteja cada vez mais alto – até que
torrentes de água emergem. Tyvar se movimenta, fixando-se no
chão, criando uma plataforma para ele e seu povo. Seus músculos
se contraem sob a força de sua magia, alternando entre rocha e água,
rocha e água.
Quando ele vê o primeiro dos barcos subindo na água, Tyvar
percebe que vai ficar naquilo por um tempo. Talvez mais do que ele
consegue. Se ele falhar, os elfos certamente serão levados como os
phyrexianos. A vida de seu povo está em suas mãos.
61
Ele não pode falhar.
Tyvar Kell solta um grito de guerra. Enquanto seu corpo luta
contra as marés e as rochas, ele se sente vivo.
E enquanto ele faz as coisas simples, seu irmão cuida das coisas
mais complicadas. Os pressagiadores a bordo dos navios chamam
os elfos encalhados, seu capitão conduzindo: “É o fim de todas as
coisas. Os elfos virão e se juntarão à luta?”
“Os elfos vão liderar!” é a resposta orgulhosa de Harald. “Para
os navios!”
Os ombros de Tyvar tremem com o esforço e ainda assim ele se
apega à terra. Cada par de pés em fuga diminui a plataforma. Cada
vez menor, até que apenas ele e Harald permanecem na rocha.
Ele mal consegue acreditar no que vê quando olha para os navios.
Anões e humanos, heróis fantasmagóricos, guerreiros mortos-
vivos, bárbaros de Karfell, gigantes do fogo vagando pelos mares,
trolls tocando tambores de guerra – todos em Kaldheim se uniram?
Tyvar não se lembra de ter visto tantos rostos diferentes em um só
lugar fora de um campo de batalha.
Nova Phyrexia plantou as sementes da dúvida e do medo
profundamente dentro dele. O óleo e a transformação de seus novos
companheiros o alimentaram. Mas isso? Esta verdadeira unificação?
Isso é uma machadada.
Harald sobe no navio primeiro. Ele estende a mão para Tyvar,
que, em vez disso, pula no navio por conta própria. Abaixo deles, a
plataforma desmorona no novo rio de Skemfar.
“Guerreiros!” Harald grita. Os símbolos e guias ao longo das
laterais do navio começam a brilhar. “Nossos rancores são antigos.
Uma única batalha não apagará a tábua de velhos erros. Quando o
próximo dia chegar, todos seremos inimigos novamente!”
O coração de Tyvar bate no ritmo dos tambores, das trombetas.
Os vavios aumentam a velocidade. Quando Harald falava, até seus
inimigos mais odiados esperavam para ouvir o que ele tinha a dizer.
Ele não sabe para onde estão indo, mas sabe que onde quer que
cheguem, a glória os espera.
O clarão os engole. Por um instante, eles entram no Cosmos,
deslumbrante e infinito. Bestas sobrenaturais galopam ao lado dos
barcos – lobos, corvos, ursos e até um esquilo.
“Mas isso ocorrerá apenas se vivermos para saudar o amanhã,
meus irmãos e irmãs de armas. Hoje, as valquírias escolherão seus
62
heróis; hoje é um dia que os skalds cantarão por séculos. Seus
descendentes o chamarão de herói, ou de covarde?”
Clarão novamente. Tyvar não fecha os olhos, por mais que a luz
queime suas íris.
Quando finalmente a luz recua, eles se encontram acima de um
oceano agitado. De alguma forma, eles estão no ar – ele não tem
tempo para questionar, apenas deixa que aquilo faça seu sangue
vibrar. Valquírias voam ao lado deles em direção às farpas afiadas
da Árvore da Invasão, ainda tentando adentrar seu lar. Flechas
divinas iluminam o céu avermelhado. A Árvore-mundo paira, seu
reflexo imundo descendo, descendo, se aprofundando. De onde
está, ele consegue contar cada protuberância da lombada dela, cada
cápsula aninhada ali dentro.
Deve haver milhares. Dezenas de milhares, talvez, cada uma com
sua própria tripulação de soldados, e cada um desses soldados era
um inimigo temível. Este era um inimigo quase imparável: pior,
aqueles que morrerem em defesa de Kaldheim se levantariam,
corrompidos, para lutar pelos invasores que buscavam destruir a
terra que um dia chamaram de lar.
As chances, ele sabe, não são boas.

Arte de Bryan Sola

“Se Kaldheim sobreviver, que sobreviva porque nós lutamos! Se


morrer, que morra como um guerreiro, machado na mão, orgulho
nos lábios e hidromel na barriga!”
63
Abaixo deles, a água borbulha. Assim como os barcos irrompem
na canção de um guerreiro, os mares também irrompem.
As tatuagens nos ombros de Tyvar formigam. Todos os elfos
cresceram na sombra de Koma. Sempre se transformando, sempre
crescendo, rápida como um raio e além disso, astuta – existe alguma
criatura melhor para imitar do que uma serpente?
Mas essa não é verdade para a serpente que ele vê agora, a criatura
que surge das profundezas do mar. Escamas lustrosas de metal,
ossos afiados ao longo das arestas de sua boca, placas de porcelana
no lugar dos olhos – o que quer que essa criatura tenha sido, agora
é inconfundivelmente uma das criações de Elesh Norn.
A monstruosidade sem olhos já quebrou um dracar entre suas
mandíbulas. Madeira geme e os guerreiros gritam, caindo de grandes
alturas para a morte. Dos outros, uma saraivada de flechas, pedras,
machados arremessados — o que quer que eles consigam alcançar.
Tudo ricocheteia na estranha carapaça da criatura.
Tyvar dá um passo para a amurada do barco. Na luz bruxuleante
do que pode ser a última guerra de Kaldheim, o fio de sua lâmina
brilha.
Abaixo dele, a boca da serpente: dentro dela, Nova Phyrexia, e
todos os seus medos manifestados.
Ele não gosta de ter medo.
Com a fervilhante canção de batalha em suas costas e um grito
em seu peito, Tyvar pula do navio.
Seja como for que termine a história deste dia, as sagas dirão que
ele não era um covarde.
Pia Nalaar passou os últimos dez anos de sua vida lutando por
uma Kaladesh melhor.
A maior parte desse trabalho foi desfeita em um dia.
Não – a verdade é que já faz uma semana, pelo menos. Saheeli a
avisou que algo assim poderia acontecer, que algo iria acontecer. As
nuvens continham a prova, ela disse. No lugar dos redemoinhos que
tantas vezes dominavam os céus de Kaladesh, ela mostrou a Pia a
nova forma que passou a dominá-los.
“Temos que estar prontos para uma invasão,” Saheeli dissera.
“Chandra e os outros vão resolver isso.”
Ela estava tão confiante. Tão segura. Ela não queria acreditar que
seria diferente. Depois de tudo o que aconteceu, depois de todas as
lutas e guerras, as Sentinelas deviam saber o que precisava ser feito.
64
Elas devem ser capazes de lidar com isso. Então, certa manhã, Pia
derramou tinta na mesa. Quando ela pegou um pano para limpar a
bagunça, o símbolo – como um olho escancarado – olhou para ela
em um preto viscoso.
A lembrança já era bem ruim, mas depois do primeiro
derramamento ela viu o símbolo em todos os lugares que olhou: em
pergaminhos enrolados em uma prateleira, em um prato de
macarrão que ela não teve estômago para terminar, em árvores e em
correntes de água.
Todos os dias ela acordava esperando que eles sumissem, que ela
não os visse, que Chandra voltasse para sua casa para o chá mensal
com outra história sobre como eles arrancaram a vitória das garras
da derrota.
Mas no terceiro dia, ela soube que tinha que agir.
Ela e Saheeli se dirigiram ao consulado — mas como poderiam
transmitir a gravidade do que sabiam? Depois que Ghirapur
conquistou sua própria liberdade e segurança? Lidar com essa
ameaça provocaria medo na população, e como elas poderiam ter
certeza do que estava vindo? A Casa do Conhecimento não tinha
registros de nenhum phyrexiano. No entanto, Saheeli e Pia não eram
loucas delirantes, um fato que o consulado conhecia bem. Se Pia
alocasse os recursos para lutar, eles lutariam.
Mesmo que alguns deles não tivessem essa intenção.
No quarto dia, o céu escureceu para um vermelho profundo e
meio enferrujado.
Nos últimos três dias, Saheeli trabalhou em algo que ela chamou
de “Operação Escamas Douradas”, algo que ela disse que manteria
as ruas seguras. A maioria dos cidadãos em Ghirapur foi evacuada,
deixando apenas o pessoal essencial para trás. Aeronaus se armaram
com poderosos armamentos experimentais. As oficinas e fábricas
de Ghirapur nunca trabalharam tanto em tão pouco tempo – mas
era por uma causa necessária.
Afinal, se o inimigo violasse o reservatório do fluxo de éter, não
haveria mais uma Ghirapur para defender.
Então os artesãos não dormiram, e Pia também não. Ela havia
adormecido na entrada de sua própria casa. Ir para a cama era muito
esforço.
Quando finalmente os portais acima se abriram, quando os
grandes espinhos da invasão desceram dos buracos que eles abriram
65
na realidade, quando o éter ao redor deles começou a crepitar
perigosamente contra sua pele – tudo isso foi como deixar escapar
um suspiro.
Estava aqui.
Eles estavam aqui.
O tempo de preparação já havia ficado para trás. Tudo o que
podiam fazer era esperar que tivesse sido o suficiente.
As ruas de Ghirapur estão limpas – ou tão limpas como nunca
mais vão ficar – quando Pia sai de casa. A três prédios de distância,
um casulo destrói a fachada de um prédio. Vidros estilhaçados,
gritos distantes, armas disparando – os sons são próximos, mas
totalmente diferentes dos sons da revolução. Não há cânticos aqui,
não há slogans guturais, nem trombetas orgulhosas ou tambores
retumbantes.
Só medo e desespero.
Aeronaus disparam seus canhões nos galhos invasores e as
explosões pintam o céu vermelho de dourado. Cacos de porcelana
chovem sobre as ruas. Ela procura abrigo sob os braços estendidos
de uma estátua e observa como os estilhaços perfuram seus lados.
Pia olha de volta para o céu – para a nave que tão prontamente
avançou contra o galho explorador. Ela conheceu o capitão dela
dois dias atrás. Ele jurou que faria tudo ao seu alcance para manter
Ghirapur segura. Mil e quinhentos voos, ele disse, sem grandes
perdas para relatar.
Ela assiste o galho envolver a nave, observa suas janelas se
estilhaçarem tão facilmente quanto as da rua, vê o óleo manchar sua
superfície.
Pia fecha os olhos. Seu peito dói. Milhares de pensamentos lutam
para entrar em sua mente, mas ela os afasta. Ela tem um encontro
com Saheeli.
Falando nisso, parece que a operação dela começou bem.
Câmaras de distribuição brotam de escotilhas ao longo da rua, e
dessas câmaras emergem os frutos da Operação Escamas Douradas.
Saheeli deve ter se inspirado em algum tipo fantástico de lagarto:
aquele que se arrasta na frente de Pia é tão grande quanto a casa que
desmoronou momentos atrás. Os dentes brilhantes ao longo de suas
mandíbulas são do tamanho do antebraço de Pia. Quando ele bate
os pés, as pedras abaixo racham. E é apenas um de muitos – ao
longo das ruas outros lagartos de bronze brotam da terra. Alguns
66
são do tamanho de cachorros pequenos, alguns sobem aos céus
como tópteros, mas todos rugem em desafio aos phyrexianos que
se aproximam.
E há phyrexianos para enfrentar, mesmo que a visão dessas
coisas seja quase suficiente para distrair Pia. Da casa quebrada saem
dezenas de soldados de porcelana esguios – alguns carregam gaiolas
tão grandes quanto eles.
As duas forças estão prestes a se chocar.
Pia não quer ficar no meio disso. Ela se abaixa sob os pés do
lagarto de bronze a tempo de um rosto familiar aparecer atrás dos
phyrexianos. Uma nuvem de tópteros voa do veículo de Saheeli.
Enquanto os lagartos atacam os soldados, os tópteros escondem a
fuga de Pia.
“Entre!” Saheeli grita. E ela está certa em ter apressa – os
soldados não encaram suas tarefas levianamente. Em poucos
minutos, eles cercaram o maior dos lagartos e o derrubaram. Óleo
escorre de sua boca aberta. Não demorará muito para que o lagarto
se levante contra elas também.
Pia entra no carro. O pé de Saheeli deve ser tão pesado quanto o
metal que ela tanto gosta; as duas empurram os bancos para trás
quando a velocidade as atinge. O vento assobia nos ouvidos de Pia,
mas elas precisam conversar. “A nau capitânia caiu.”
“Eu sei.” Saheeli responde. Uma explosão à direita as faz desviar;
Saheeli quase não consegue impedi-las de capotar. “As naves
menores estão fazendo o que podem. As gavinhas não conseguem
agarrá-los rápido o suficiente para detê-los. Claro, falta poder de
fogo quando comparados…”
Pia se abaixa quando Saheeli as coloca entre as pernas de um
enorme construto de lagarto phyrexianizado. Metal raspa contra
metal; as laterais do carro amassam e distorcem, apesar dos
melhores esforços de Saheeli. Óleo pinga na tampa do porta-malas.
Pia tenta não se perguntar quanto tempo levará até que o veículo
também seja corrompido.
“Você sabe qual é a situação no reservatório do fluxo de éter?”
Pia pergunta.
“Achamos que os phyrexianos conseguem entender a
importância dele, ou então sentir uma atração pelo éter armazenado
lá,” Saheeli responde. “Se você prestar atenção, estão todos indo
direto para lá.”
67
Arte de Leon Tukker

Eles dobram uma esquina e Pia vê os guardas.


Seu estômago embrulha com o que ela vê. Como uma paródia
sinistra da estética do design de Saheeli, eles são filigranados em
porcelana branca, meio metal e meio carne. Um dos homens ostenta
um grande buraco no centro da cabeça, através do qual Pia pode
enxergar claramente do outro lado. Apenas suas orelhas, couro
cabeludo e queixo permaneceram. Parece que ele é uma agulha
destinada a ser enfiada – e as navalhas que seus braços se tornaram
apenas confirmam a ideia. Apesar dessa alteração hedionda, seu
peito sobe e desce com uma respiração invisível. Sua cabeça, do jeito
que ficou, está virada para o reservatório.
Pia cobre a boca.
“Não podemos fazer nada para salvá-los,” Saheeli diz.
“Tem que haver alguma coisa.”
“Pode até haver, mas seja o que for exigirá estudo,
experimentação, iteração. Assim que a cidade estiver segura,
podemos considerar quais formas aquilo pode assumir – mas não
agora.”
Pia fecha os olhos enquanto o carro dispara sobre os phyrexianos
recém-convertidos. Haverá mais deles para ver quando ela abrir os
olhos novamente. Ela havia os ignorado antes? Há tantos, em tantas
formas diferentes: alguns compartilham o mesmo padrão de
revestimento de porcelana que os tentáculos acima, alguns tiveram
68
seus órgãos substituídos por uma chama alaranjada brilhante. Ela vê
um cachorro de rua com espinhos e tentáculos com o dobro do seu
tamanho. Seria cômico se o Plano não estivesse desmoronando ao
seu redor.
“Você teve notícias dos outros?” ela pergunta, incapaz de se
conter.
Os olhos de Saheeli não saem do reservatório ainda muito à
frente. “Tive. A última vez que eles viram Chandra, ela estava bem.”
Pia esteve perto de políticos há tempo suficiente para saber
quando não está ouvindo a história inteira. “E quando foi isso?”
“Recentemente, bem recentemente,” Saheeli responde. Ela olha
por cima do ombro. “Este talvez não seja o melhor momento.”
“Não há um bom momento quando se trata de más notícias.”
“Há momentos melhores do que este.”
Pia franze a testa. “Por favor, apenas me diga o que está
acontecendo.”
Saheeli olha em volta. “Ela está-”
“Líder dos Renegados! Há quanto tempo!”
Pia se vira. Junto com a voz alegre vem o ronco de um motor.
Pendurado na lateral de um deslizador acima deles está um de seus
antigos contatos renegados, Baji. “Precisa de ajuda aí embaixo?”
“Vamos precisar de toda a ajuda que conseguirmos,” ela diz.
“Estamos indo para o reservatório.”
“Entre, então!” diz o piloto. “Você chegará lá mais rápido nisto.
E também temos um melhor poder de fogo.”
Saheeli olha para cima. “Ele não está brincando. Aquelas armas
não são permitidas por lei.”
Os renegados sempre foram bons em conseguir contrabando.
Pia está no banco do passageiro do carro, uma mão no banco e a
outra na porta. Saheeli não diminui a velocidade – nem mesmo
quando Pia lhe estende a mão.
“Só há espaço para mais um naquele deslizador,” Saheeli diz.
Quando um dos gênios de Kaladesh diz a você o que ela quer
fazer, cabe a você ouvir. Além disso, quando se trata de revoluções
e crises, você deve ser capaz de improvisar. “Certo,” Pia diz. “Nós
cobriremos você.”
Quando Baji abaixa, ele estende a mão para Pia. O deslizador não
é a coisa mais sólida do mundo, nem de longe. Agora que estão nele,
ela se pergunta como aquilo está voando – porcas e parafusos
69
chacoalham ao redor deles, e o assento é pouco mais que uma tira
de couro em metal duro e moldado às pressas. O banco de trás é tão
estreito que as laterais encostam em seus ombros.
Baji inclina a nave para cima, subindo mais alto, Ghirapur
desaparecendo sob as nuvens enquanto eles sobem no céu. Ele
aciona um botão em seu console e uma cúpula de vidro desliza sobre
a cabine aberta. “O capacete está embaixo do seu assento,” Baji diz.
Pia coloca o capacete. Ela não pode deixar de notar as lascas e
fragmentos no vidro da cabine. “Essa coisa é segura?” ela pergunta.
“Vai aguentar,” Baji dise. “Eu mesmo que montei. Usei a melhor
sucata, direto de…”
O que quer que ele quisesse dizer se perde em um gorgolejo
quando um dardo perfura a janela e o empala no peito até seu
assento, a ponta encharcada de sangue parando a apenas um fio de
cabelo de Pia. Voando pelo ar acima deles está algo que um dia
poderia ter sido um pássaro. Agora ele luta por Phyrexia. Então ela
percebe – não era um dardo, é uma pena. Os alarmes soam, abafados
pelo ar gritando pelo buraco na cabine da nave. Lentamente, ela
começa a virar para o lado e, em seguida, torcer primeiro a ponta,
caindo em direção ao solo. O estômago de Pia revira com a mudança
de direção, a repugnante falta de peso. Sem pensar, ela se espreme
no assento do piloto, soltando a pena do couro. O corpo de Baji a
deixou meio presa. Não há espaço para navegar, o console é uma
miscelânea incompreensível de peças soldadas, há dois pássaros
phyrexianos em seus flancos e mais navios ao redor.
Isso não é nada bom.
E isso antes de considerar que Pia Nalaar nunca voou em uma
dessas coisas antes.
Mas ela não está perto de desistir. Não quando se trata de manter
Kaladesh segura, e nem quando se trata de sua filha.
Chandra virá para o chá no mês que vem.
Pia estará lá para encontrá-la.
Se ela conseguir sair disso.
No segundo em que Atraxa chegou, Nova Capenna deslizou suas
unhas por sua carapaça imaculada. Uma cidade construída sempre
para cima, a atmosfera crepitando com uma energia nojenta,
rastejando com uma horrível diversidade de vida. Tudo isso era um
anátema para ela – para Phyrexia.
Que sorte que suas ordens eram para purificá-la.
70
Mas Phyrexia não é uma fera que come por instinto. Em tudo
existe a semente da grandeza, não importa quão básico seja o
material. Ser phyrexiano é se permitir crescer, mudar, se tornar algo
maior do que você já foi. A torre que tanto a incomoda pode ser
despojada de seus apetrechos e restaurada.
Este é um lugar repleto de pecado e sujeira, e Atraxa será sua
salvadora.
A missão por si só é suficiente para enchê-la de êxtase. Ao longo
dos telhados, os orgânicos pegam em armas. Suas armas não
servirão aqui: não há aberturas na armadura de Phyrexia. Nem subir
mais alto os salvará. Um único pensamento de Atraxa convoca
enxames de servos voadores. Por mais minúsculos que sejam, são
animais famintos – logo, aqueles que escalavam não são nada mais
do que ossos caindo na terra. Aqueles que vão para as ruas, por sua
vez, contam com seus músculos e tendões para revidar. Eles
ignoram as fraquezas da carne. As máquinas de guerra atravessam
vitrines após vitrines para cumprir sua vontade. Ao chegarem à rua,
soltam nuvens de gás cáustico. A carne derrete nos ossos.
Ceifem. Um pensamento glorioso, ecoado em mil mentes. Eles
não farão prisioneiros aqui em Nova Capenna; não há gaiolas para
os filhotes. O que as máquinas não conseguem derreter com seus
gases é colocado de volta dentro deles por servos. Apenas essas
partes permanecerão.
Ceifem. Todos eles. Quão alto as palavras ressoam em sua mente!
Os orgânicos tentam enganar os phyrexianos, desaparecendo na
escuridão e reaparecendo atrás deles, mas não adianta. Nada vai
impedir o que está por vir. Nem os feitiços lançados em desespero,
nem as lâminas enfiadas entre as costelas dos centuriões. Phyrexia
nunca pode ser derrotada.
Mas carne… a carne sempre cede, no final.
As ordens de Norn eram claras: tudo o que respira
miseravelmente neste plano deve ser ceifado em busca de
componentes – e assim será. Mas Atraxa vê uma utilidade para eles
antes de separá-los.
Afinal, em algum lugar dessa monstruosidade de Plano estão os
restos mortais de seus predecessores. Encontrá-los faz parte de sua
missão aqui.
As mentes dos recém-chegados se abrem prontamente para ela.
Maestros, eles se autodenominam. A emoção de seus novos corpos
71
ondula por toda a força invasora, dando-lhes força contra aqueles
que resistem tolamente. No entanto, esta não é a resposta que ela
procura, não é a resposta que Phyrexia precisa. Mais profundamente
em suas mentes, ela se aventura.
Dentro deles, Atraxa encontra algo curioso.
Belo.

Arte de Chris Seaman

Mais e mais vezes, aquela palavra. Aquela ideia. Nunca vinha


sozinha – sempre com imagens, sons ou sabores. Pintada em tela.
Moldada em pedra por uma mão estudiosa. Flores desabrochando à
noite. Um rangido agudo de um instrumento de madeira. Essas
coisas, ela supõe, devem ser belas, e o que é belo devia ser importante.
Frequentemente, é o primeiro pensamento que eles têm quando
olham para suas novas formas, a primeira palavra que surge em suas
mentes.
Mas o que é isso? Por que eles estão tão preocupados com isso?
A força de suas convicções se espalhou pelas forças invasoras, cada
mente amplificando a anterior. A palavra soa dentro do crânio de
Atraxa até que ela não consegue mais ignorar.
Norn a avisou sobre isso. Ela disse que havia algo neste lugar que
tentaria infectá-la, algo contra a qual sua vida anterior poderia
oferecer resistência. Há memórias distantes em sua mente sobre
o belo, de uma pálida imitação da completação com a qual ela se
deleitou. Este é o rosto e o nome de seu inimigo – e aqueles que
72
passaram tanto tempo adorando essa falsa divindade devem saber
onde ela mora.
Ao pesquisar suas mentes, elas fornecem outra resposta: museu.
As imagens que aparecem são suficientemente claras.
Examinando a cidade, ela o vê não muito longe de uma das cápsulas
de conversão: um edifício atarracado enfeitado com mármore
moldado de um lado até o outro. Ela olha para ele e se pergunta se
ele é belo. Aqueles que já foram Maestros dizem a ela que sim. As
colunas, as estátuas, a hera cuidadosamente cuidadas rastejando em
sua fachada: como ela poderia pensar que era outra coisa senão belo?
O furor da paixão deles a impulsiona. O que quer que eles
estejam escondendo, ela deve ser capaz de ter uma ideia melhor
disso lá. Enquanto Phyrexia atravessa a resistência, Atraxa pousa
nos degraus do lado de fora do prédio. As portas são pequenas
demais para ela; com um toque, ela corrige suas falhas já aparentes.
Este lugar também deve abraçar Phyrexia.
Dentro há mais obras incompreensíveis. Seres carnais olham
atrás de telas ou painéis de madeira – uma prova da fragilidade dos
materiais naturais. Tão grande é a arrogância dessas criaturas que
moldaram pedra e metal à sua imagem. A miserável inversão irrita
Atraxa. Tudo aquilo a irrita. Por que alguém se incomodaria com
isso? Essas “pinturas” muitas vezes retratavam apenas um único
indivíduo; mesmo aqueles com grupos não retratavam mais de uma
dúzia. Por que exaltar as virtudes de tão poucos quando é por muitas
mãos que grandes obras são feitas? E essas estátuas! Ainda mais
individuais do que as pinturas!
Sua lança faz um trabalho rápido nelas. Os recém-formado
gritam nos recantos da mente phyrexiana, mas apenas por um
instante; aquela parte deles está morrendo e entende que isso é o
melhor. Todos serão um. Essas obras não importam mais.
E, no entanto, algo no fundo dessa mesma mente lhe diz que ela
deve continuar. Há algo aqui. No mínimo, ela pode cuidar de
destruir a heresia ao seu redor.
No fundo, há mais atrocidades. Ainda pior, se é que era possível.
Aqui as obras não representam mais nada: são réplicas nítidas e
geométricas de criaturas orgânicas. Sem armas e nem defesas; ela
não consegue imaginar nenhum propósito para eles. Estas, também,
ela derruba, sua frustração aumentando.
É a última sala que responde às suas perguntas.
73
Aqui não há objetos estranhos, aqui não há tinta, nenhum mortal
anunciando em voz alta seu próprio eu individual. Em vez disso, as
formas que ela vê são pálidas imitações de glória. Um machado torto
na parede, uma falsa carapaça de cão de guerra em um pedestal,
imagens que ocultam a glória da completação… Norn disse a ela
que phyrexianos já estiveram aqui, mas isso fala sobre a crueldade
que os orgânicos pensam deles.
Belo, aquela palavra novamente em sua mente, aquela palavra
horrível, mas não há nada de belo nisso. Essas pessoas adoram o
fracasso? Eles olham para os corpos daqueles que vieram antes e se
maravilham com eles? As memórias dos Maestros são um aríete:
grupos reunidos em torno desses restos, bebendo, comendo e
tagarelando com seus lábios úmidos e línguas brilhantes.
“Você consegue se imaginar sendo o cara balançando essa coisa?”
“Vou te falar uma coisa, eu gostaria de poder contratá-lo para me seguir e
ficar parado assim, parecendo intimidador.”
“Diga, quanto você acha que vale…? Estou pensando em comprá-la para
mim.”
“Ah, fala sério, você não consegue pagar por isso.”
O aperto em sua lança aumenta. Errado, errado, errado. Este
lugar, os phyrexianos que eram muito fracos para cumprir sua
missão, os carnais que zombavam deles. Belo, essa palavra terrível
que eles usam para isso, não pode significar outra coisa senão erro.
Atraxa vai derrubá-lo. Tudo isso, tudo que leva aquele nome,
deve ser destruído. Permitir que ela exista apenas convida a mais
zombaria – e Phyrexia não deve ser ridicularizada.
Enquanto a phyresis rasteja sobre a fachada do prédio, ela destrói
tudo dentro dela. A que propósito servirá não cabe a ela decidir. O
que é útil deles vai perdurar e o que não é será eliminado. Cauda,
garra, lança e grito: suas armas são infalíveis e incansáveis. Sucata e
entulho é tudo o que resta quando ela termina. Os habitantes que
ela encontrou estão soterrados pelas rochas. Em seus últimos
momentos, eles deveriam imaginar que eram belos.
Mas ela nunca queria ouvir a palavra novamente. Se ela pudesse
esvaziá-la da mente de Phyrexia, ela o faria, mas isso é algo que
apenas a Mãe das Máquinas pode decretar.
Ainda assim, Elesh Norn a nomeou para liderar essas forças, o
que significa que ela pode limpar a beleza aqui, se quiser. Atraxa só

74
precisa pensar na ordem para que ela saia. Para sua satisfação, ao
sair do museu, ela ouve armas batendo nas pedras ao redor.
A satisfação não dura muito.
Do outro lado do pátio há anjos olhando para ela — anjos com
rostos de pedra.
Não é uma coisa consciente que acontece em sequência – não é
um pensamento que ela tem, mas um instinto. Imediatamente ela
percebe que os serafins de pedra da catedral são realmente belos e
que ela os odeia mais do que jamais odiou qualquer coisa, mais do
que ela sabia que era possível odiar. O coro das mentes desaparece
com a nota retumbante de raiva martelando por todo o seu ser. Em
um clarão branco, ela golpeia as cabeças das estátuas. Quando eles
desmoronam no chão, ela não para de atacá-las, mas continua
atacando com sua lança, repetidamente, sem se importar com a
energia nebulosa que emerge da rocha. Embora queime sua carapaça
e seus tendões estejam ardendo de agonia, ela não consegue parar
até que nada reste das cabeças exceto um pó fino.
Só então ela para. Só então ela ouve Phyrexia novamente.
Há carnais escalando a torre. O que deve ser feito com eles?
Uma voz fala, depois outra: ceifem, ceifem.
Mas esse vapor nos machuca, e nós sofremos.
Phyrexia não sofre. Ceifem.
Atraxa olha para as figuras sem cabeça. Uma calma profunda
toma conta dela. O belo está morto e ela pode voltar suas atenções
mais uma vez para a frente – para os seres do lado de fora da torre
e o que eles podem estar planejando.
Ela sai da plataforma.
Mas os serafins permanecem, observando-a partir, com o
visitante pairando entre eles em uma névoa colorida.
Eles também falam entre si.
Por que não impedi-la? questiona o visitante.
Ainda não é o momento.
Não parece ser a resposta certa – mas o visitante não pode refutá-
la.
Tenha fé. O fim está próximo. Você saberá o que fazer quando chegarmos
lá.

75
EPISÓDIO 5: REUNIÃO CATÁRTICA

Kaya, Kaito e Tyvar a alertaram sobre as intermináveis e


ondulantes câmaras de tortura de Phyrexia. De acordo com eles,
Nova Phyrexia era mais como estar preso dentro dos órgãos de uma
criatura gigantesca do que um lugar em si. Tubos correndo em todas
as direções formavam suas veias e artérias; os degraus cromados que
levavam à Árvore da Invasão eram suas costelas; a árvore em si era
uma coluna nojenta. A imagem que ela tinha em sua mente era tão
clara quanto horrível.
Mas quando ela chega, ela vê algo diferente. Não há dúvidas de
que eles estão na barriga da besta – só que não era a mesma besta
que os três viram. Este lugar está cheio de luz ofuscante iluminando
as estruturas ossárias ao seu redor. A Árvore da Invasão ainda é a
coluna da criatura, mas é complementada por estruturas brancas
acentuadas. Plataformas, Chandra pensa, cada uma cheia de
phyrexianos cuidando de seus cruéis afazeres. Como formigas ao
longo das folhas, especialmente quando visto de uma distância tão
abaixo.
Chandra não consegue compreender a altura da Árvore da
Invasão. A original em Kaldheim deveria ser enorme, mas isso é
maior do que os Eternos-deuses, maior do que qualquer coisa que
ela já tinha visto. Mesmo inclinando a cabeça a ponto de doer, ela
não consegue ver a copa. Ela esperava que Wrenn dissesse algo, mas
talvez o silêncio de sua companheira sobre o assunto fosse pior.
“Vamos, não é para criar raízes,” é a única coisa que Wrenn diz
antes de começar a se mover. As chamas internas crepitam contra
sua contenção. O fogo está sempre ansioso para mostrar como se
sente.
76
Arte de Grzegorz Rutkowski

Ela está indo em direção a uma estrutura quebrada em forma de


agulha não muito longe da plataforma onde pousaram. Wrenn
notou a mesma coisa que Chandra: há pessoas na base daquela
agulha, pessoas descendo. A armadura dourada os destacavam
contra todo o vermelho e branco ao seu redor – e ainda mais e a
pele por baixo daquela armadura. Chifres e pontas de metal dizem
que não são exatamente humanos, mas também não são
phyrexianos. Cada um se move em seu próprio tempo, e sangue
mancha as roupas de alguns deles.
Os pés de Chandra a levam em direção aos outros, cada passo
pesado com ansiedade. Vir até aqui foi a coisa certa a fazer, ela tinha
certeza disso, e aqui está a evidência: sobreviventes precisando de
ajuda. Teferi sempre disse que tempos difíceis criam rápidos aliados.
“Valeu a pena desmontar aquele embaralhador. Não esperava
ajuda tão cedo,” diz um dos sobreviventes perto da base da agulha.
Para sua surpresa, ele não parece muito feliz em vê-la. Aço sobressai
de sua pele como as escamas na testa de uma serpente, um forte
contraste com a estética phyrexiana. Ele deve ter algum tipo de
parentesco com o material; alguns dos outros sobreviventes flutuam
até a ponte, agarrados às rochas que ele parece controlar. Wrenn é
rápida para ajudar com o alcance elevado de Sete.
“Viemos assim que conseguimos,” ela diz. “Meu nome é
Chandra. Esta é Wrenn.”
77
“Planejavam ficar por aqui?”
“O quê? Claro que sim. Não teríamos vindo senão fosse para
isso,” Chandra diz.
“Isso pode significar que você morrerá aqui.” Ele cruza os
braços, a estuda. Uma das mulheres do grupo suspira. Ao contrário
de qualquer um dos outros agrupados, não há vestígios de metal nela
em qualquer lugar. Contra as linhas duras da paisagem de Nova
Phyrexia, suas feições são suaves.
“Vou arriscar. Há muito em jogo para sentar e não fazer nada,”
diz Chandra.
Eles se encaram por um tempo – ele estreitando os olhos, ela
olhando para ele. Depois do que pareceu muito tempo, dadas as
circunstâncias, ele acena com a cabeça. “Koth,” diz o homem,
apresentando-se. “Essa é Melira. São só vocês dois?”
“Por enquanto,” Chandra diz. “Digo, talvez. Eu não acho…”
Koth apalpa a nuca. Ele parece ponderar. “Duas pessoas.”
Enquanto seu olhar cai no chão, Chandra o acompanha. Há outros
corpos entre os centuriões phyrexianos – humanos. Seu coração
afunda.
Ela não pode deixá-lo ficar nas profundezas. Quando se trata de
guerra, moral é tão importante quanto a tática e suprimentos. “Duas
planeswalkers. E nós somos tudo que você precisa. Wrenn tem um
plano.”
“Ah é?” Koth pergunta. “Um plano. Incrível.”
“Não seja tão severo,” Melira interrompe. “Não podemos
abandonar a esperança agora. Pode ser algo que nós não tentamos.”
“Ela está certa, sabe,” Wrenn diz. “Você não pode ter tentado
isso. Não há nenhuma outra dríade ligada simbioticamente a uma
árvore.”
Chandra não tem certeza se é uma piada – às vezes, com Wrenn,
é difícil dizer. Ela se surpreende rindo assim mesmo. A mulher
também sorri um pouco, e isso parece um próprio tipo de vitória.
Koth permanece cético. “Vamos ouvir essa ideia,” ele diz.
“É simples. Vamos para a árvore. Assim que estivermos lá, vou
me agarrar a elA e tentar guiá-la,” Wrenn responde.
“Ela é boa nisso. Muito boa!” Chandra acrescenta quando Koth
estreita os olhos. “Talvez tenhamos um amigo que também pode
ajudar. Talvez você já tenha ouvido falar de Teferi?”
“Não.”
78
“Bem,” Chandra passa a mão pelo cabelo, “ele é o mago do
tempo mais forte que já existiu, e é isso, e ele é um bom amigo meu,
então ele vai ajudar se pedirmos.”
“E onde está esse Teferi?” pergunta Koth.
Chandra olha para Wrenn, que dá a ela um aceno inexplicável e
misterioso. “Ele está chegando. De qualquer forma, assim que
estivermos na árvore, o resto virá junto. Nós vamos usá-la contra
eles.”
Koth cruza os braços. “E você tem certeza de que pode fazer
isso, Wrenn?”
“Tanto quanto alguém poderia ter.”
Ele faz um som baixo e pensativo. “Certo. Não temos muitas
outras opções. Quando perdemos Karn, eles o levaram dessa forma
também. Norn queria dar a ele especial tratamento. Podemos
também tentar obter o controle da árvore e resgatá-lo ao mesmo
tempo.”
“Teremos que agir rápido,” diz Melira. “Norn provavelmente
não acha que um punhado de rebeldes são uma ameaça. Podemos
usar essa arrogância a nosso favor e atacar antes que ela perceba
como ameaçadores podemos ser.”
“A base da árvore é fortemente protegida. Mais centuriões do
que o necessário. Nós tentamos desse jeito, todo mundo estava
morto antes de começarmos,” Koth chama a atenção deles
novamente. “Você duas estão preparadas para uma viagem difícil?”
“Custe o que custar, estou dentro,” Chandra diz. Wrenn acena
com a cabeça também.
“Ótimo. Porque você não é a única com um amigo poderoso,”
ele começa.
“Quando você disse amigo…”
“Ele é um amigo. Por enquanto. Talvez mais como se ele não
fosse um inimigo. É complicado.”
“Você tem certeza?”
“Tenho.”
Chandra não. Olhando para seu próprio reflexo na carapaça
polida de Urabrask, ela não tem certeza do que pensar. Ele ainda
não atacou, mas talvez estivesse esperando o momento certo. Ele
não a insultou ou falou sobre união, mas talvez isso seja tudo um
disfarce.
Ela cruza os braços.
79
Urabrask solta uma respiração. “Que línguas afiadas,” ele diz. “A
luta interna será a morte de sua espécie.”
Chandra franze a testa. Ele está certo, e ela meio que odeia isso.
Wrenn oferece uma mão consoladora em seu ombro enquanto
Urabrask se vira em direção à borda de sua plataforma.
“Os principais caminhos para a Árvore da Invasão são
protegidos por mais phyrexianos do que a sua mente consegue
imaginar em um mesmo lugar,” ele explica. Ele não precisava
apontá-los com suas garras, mas ele faz. “Se um deles nos vir, Norn
saberá instantaneamente. Koth aprendeu isso anteriormente. Como
demonstração de boa vontade, contei a ele sobre a passagem que
você tomou para chegar a esta plataforma.”
O caminho que eles seguiram estava bem escondido. Naquele
momento, Chandra pensou que Koth o sentira abaixo do solo com
seus poderes. Eles não tinham visto uma única patrulha em seu
caminho através da passagem tortuosa. Também foi uma coisa boa,
considerando o quão estreito alguns dos túneis ficaram.
“Daqui, olhos orgânicos conseguem contemplar a Destruidora
de Reinos sem obstrução. Mais importante, a trajetória é clara e está
dentro dos limites de sua cognição. Sua chance de sucesso ainda é
quase inexistente.”
“Eu vim aqui para ajudar,” retruca Chandra. “Eu não me
importo com o que algum esquisitão phyrexiano pensa de mim, eu
vou fazer o que eu puder aqui. Por que você está nos ajudando,
afinal?”
Fogo ruge nas órbitas da carapaça de Urabrask. “Porque Norn
abafa as chamas da criação com sua pontificação. Phyrexia não pode
prosperar se houver apenas uma Phyrexia.” Magma pinga de suas
mandíbulas, nuvens de fumaça subindo dos buracos que ardem.
“Até uma salamandra sabe. Urabrask não serve a ninguém.” Melira
põe-se entre os dois. “Vamos manter nossos olhos no objetivo. O
plano é fazer com que Koth lance vocês dois sobre o abismo.
“Por que só nós?” Chandra pergunta. Verdade seja dita, ela
estava grata pela pausa.
“O restante dos mirranianos fornecerá uma distração tentadora
para a chamada Mãe das Máquinas. Eles encontrarão uma patrulha
em algum lugar e começarão uma briga. Ela vai se concentrar em
eliminá-los, deixando nosso caminho no ar livre.”

80
Esse… é talvez o plano mais simples que Chandra já ouviu para
lidar com a situação mais precária que ela já encontrou. Arremessá-
los através do abismo? Ela dá um passo na beirada da plataforma.
O abismo que se abre diante dela provavelmente caberia em todos
os prédios mais altos de Ghirapur empilhados juntos. A plataforma
de frente para a árvore está tão distante que ela pode cobri-la com o
polegar.
“Oh. Não gosto de viagens aéreas,” Wrenn diz.
“Não vai durar muito,” Koth diz. “Posso nos lançar daqui.
Urabrask diz que a plataforma é usada principalmente para
manutenção. Norn está ocupada com a elfa fazendo outra coisa
agora, então o caminho deve estar livre.”
A elfa. Apesar de todo o fogo em seu coração, o sangue de
Chandra gela com o pensamento. Eles estão sendo tão casuais sobre
isso. Ela quer brigar com eles novamente, dizer que Nissa é
importante de maneiras que eles não conseguem entender, mas se
ela ceder, eles podem pensar mal dela. Afinal, ela veio aqui para
ajudar o Multiverso. Resgatar Nissa é um detalhe, em comparação.
Mas se essa é a plataforma dela, e se ela estiver lá…
“Vamos,” Chandra disse.
“Que bom que você está de acordo,” Koth disse.
“No momento em que sua dríade fizer contato com a árvore,
Norn saberá. Precisamos agir rapidamente. O mais rápido que sua
carne pode ir sem se desfazer.” Urabrask já se virou na direção da
plataforma. Curiosamente, ele se inclina e começa a esculpir
símbolos no metal abaixo deles.
Este pequeno grupo de pessoas é tudo o que existe entre
Phyrexia e o Multiverso. O peso em seus ombros ameaça esmagá-
la. Chandra anda de um lado para o outro, como se para compensá-
lo em movimento. Wrenn e Sete permanecem parados onde Koth
disse para eles ficarem, olhando para frente, para as forças reunidas.
O ar aqui não é bom para Sete – as pontas de seus galhos ficaram
pretas. O que estará fazendo com o restante deles? Quanto tempo
eles podem ficar aqui antes que eles comecem a mudar, também?
Aquela última porção de Halo não duraria para sempre.
“Está pronta?” Koth pergunta.
Chandra para, uma perna de cada lado de uma runa inscrita. Cada
vez mais, ela abre e fecha as mãos. “Sim.”
“Certamente,” diz Wrenn.
81
Koth assente. “Mirranianos, estamos prontos?”
Chandra não pode chamar os gritos de resposta de calorosos, ou
mesmo de confiantes. Não, ela ouvira aquele tipo de tom antes, e
está mais perto do desespero do que da esperança. Seu peito dói.
Ela conta o número de mirranianos, imaginando quantos terão
desaparecido na próxima vez que ela os vir.
Koth enfia o punho na terra.
As runas sob seus pés ganham vida. Um instante depois elas são
atiradas direto para o ar, tendo apenas a pedra abaixo deles como
âncora. O ar chicoteia em seus rostos; Chandra protege os olhos
para evitar que lacrimejem.

Arte de Cristi Balanescu

Atrás dela, ela pode ouvir o grito de Koth: “Mantenha-se no ar


se for preciso!”
Seria melhor se ela estivesse lá embaixo, com ele?
Não adianta ficar imaginando.
Especialmente quando eles têm companhia no ar.
Chandra não tem certeza de como chamar as feras que as atacam
– elas são um pouco como pássaros, um pouco como morcegos, e
grande parte de seus corpos são feitos de lâminas de metal. O que
importa é que eles estão no caminho, e se eles estão no caminho,
eles vão ser explodidos. O fogo os derrete do mesmo jeito que as
outras coisas, embora ela já esteja começando a sentir oscilações

82
entre os golpes. Na outra plataforma, Wrenn e Sete agarraram um
deles e o usou para forçar os outros a fugirem.
Elas não ficam no ar por muito tempo, mas os morcegos de
lâminas as cercam o tempo todo. Chandra está tão ocupada lutando
contra eles que ela não consegue acompanhar onde estão em relação
à árvore. O impacto a lança em um dos galhos mais baixos da
Árvore da Invasão. Seus ossos estralam enquanto ela é jogada na
superfície branca irregular. Ela tem certeza que uma de suas costelas
quebrou, porque dói respirar, mas ela precisa respirar se quiser
chegar a algum lugar.
Um dos morcegos-lâminas desce sobre ela, suas asas formando
uma broca. Os dentes dela chacoalham com o som. Chandra se
atrapalha, rola para longe da criatura, se empurra para cima em um
afloramento. Os morcegos-lâmina trocaram de armas: agora,
quando ele mergulha nela, ele tenta imobilizá-la na parede. Uma
rápida rajada de fogo o funde em uma bola de metal a seus pés.
Chandra respira dolorosamente. “Quase chegando.”
“Sim, espero que sim,” responde Wrenn. “Que estranho… Está
tão quieto.”
Chandra não sabe se já ouviu Wrenn falar com medo antes.
Mas ela entende o porquê. Esta árvore é enorme – maior do que
qualquer coisa que Wrenn já tentou se vincular, e ainda mais
detestável.
Há uma chance muito real de que esta seja a última árvore na
qual ela se juntará. E embora parte dela queira convencer Wrenn a
desistir, ela não consegue. A coisa toda cheira
a pragmatismo e sacrifício, mas, em última análise, não é sua escolha. É
de Wrenn. E até onde eles sabem, é a melhor chance deles.
As placas ao longo da árvore mudam e se reformam. Chandra
tenta explodi-las, mas ela não é rápida suficiente; eles se
transformam em centuriões antes que ela possa se livrar de todas as
suas partes. Deve ter uma dúzia deles – a maioria armados com
espadas, mas alguns com seus braços transformados em lanças. Um
deles assumiu a forma de um estranho cão metálico.
Ela fica de costas contra Sete.
“Teremos que agir rápido,” Chandra diz. “Pode começar? Eu te
cubro.”
“S-sim, eu posso.”

83
Alguma coisa muda atrás dela. Chandra prepara outra rajada de
fogo. Chamas envolvem o ramo, consumindo dois dos centuriões
agrupados, mas eles não se movem. O tempo todo eles estão
queimando, nenhum deles se move.
“Wrenn, estou com um mau pressentimento…” Ela começa.
Mas as bocas dos centuriões geram sua resposta, pele
escorregadia com óleo preto e corrupção. “Não queremos machucá-
la. Só queremos recebê-la bem no nosso lar.”
Ouvir a voz de uma mulher solitária emergindo de tantas
gargantas, duplicada e duplicada novamente, deixa os dentes de
Chandra no limite. “Eu não me importo. Vamos, Wrenn-”
Duas lanças voam para ela assim que ela olha para trás. Chandra
mal tem tempo de gritar antes de estar presa à árvore de placas
brancas. De alguma forma, suas roupas são as únicas coisas
danificadas – as lanças caíram logo abaixo de suas axilas. Ela é um
alvo parado aqui em cima, mas se Wrenn puder libertá-la, eles ainda
podem ter uma chance.
Mas quando ela começa a gritar, ela vê o que está mantendo
Wrenn ocupada.
Uma figura enfrenta Wrenn. Magia verde crepita em torno de seu
corpo metálico, seus quatro braços agindo como conduítes. Um –
uma lâmina – corta o tronco mais grosso de Sete como se quebrasse
uma vareta. A magia envolve os membros restantes de Wrenn e Sete,
prendendo-os, então levantando-os no ar.
“Podemos aperfeiçoar você do jeito que aperfeiçoamos ela,”
dizem as vozes. “Todos os seus defeitos, suas fraquezas, não
existem mais. Você nunca mais ficará sozinha depois de se tornar
um conosco.”
As palavras não a atingem. Agora não.
Porque ela reconhece aquele rosto. Ela o reconheceria em
qualquer lugar – o jeito que suas bochechas arredondam quando ri,
as orelhas propensas a contrair-se, o nariz pequeno, a boca tantas
vezes curvada em um sorriso secreto. Se todas as memórias da
cabeça de Chandra saíssem dela como metal em um jarro de ferreiro,
esta permaneceria teimosamente alojada dentro dela.
Nissa.
Não pode ser, mas tinha que ser. Mesmo com dois novos braços
enxertados em seu corpo, mesmo com lágrimas negras riscando suas
bochechas, mesmo quando muito dela agora era raiz de cobre e
84
espinheiro – Chandra a reconhece. Até a maneira como ela inclina a
cabeça na direção de Chandra é a mesma. Palavras não ditas pesam
na língua de Chandra; a agonia do reconhecimento dilacera seu
coração. Reconhecê-la… reconhecer Nissa assim dói mais do que
morrer, ela tem quase certeza – o que poderia doer mais do que isso?
Mas então Nissa fala e Chandra tem sua resposta. A voz de Nissa
é a única coisa que eles não mudaram. “Você está com medo, não
é? Minha nova forma deve ser difícil para você entender.”
“Nissa,” Chandra range. É tudo o que ela consegue dizer. Há
muitas outras palavras em sua cabeça agora, lutando para
sair: Você não é isto. Você não tem que trabalhar para ela. Podemos encontrar
uma maneira de consertar isso. Por favor, pare. Sinto muito por termos parado
de nos falar.
Mas tudo o que sai – uma e outra vez – é o nome de Nissa.
Nissa não reage. Não há nenhum pequeno sorriso, nenhum
brilho em seus olhos, nenhuma expressão enquanto ela se vira para
Wrenn e Sete.
Mais duas lanças prendem Chandra. Um acerta sua panturrilha.
Ela grita, pressão forçando seus olhos. Fogo lambe seus dedos. As
respirações que ela tenta fazer não funcionam para acalmá-la.
“Você não tem nada a temer,” Nissa diz. Seu tom é horrível e
monótono. Enquanto Chandra assiste, ela rasga Sete membro a
membro – os membros afiados e a lâmina de seu novo corpo
trabalhando em conjunto com sua magia. Wrenn também está
gritando também, fogo queimando atrás de seus olhos, mas Nissa
ainda não reage. Apenas quando a pequena forma dríade de Wrenn
resta, Nissa deixa ela cair no chão. “Não sinto mais dor.”
“Isso… isso não é sobre…!” Chandra gagueja. Está ficando
difícil pensar, há muita energia se acumulando dentro dela, e nada
disso tem para onde ir.
Nissa se vira para ela. “É sobre o seu plano? Ele já falhou. A Mãe
das Máquinas me enviou para detê-la.”
“Por quê?” sai um grito, uma acusação.
“Porque o que você está fazendo é imediatista. Você sempre foi
imediatista.” Um movimento de sua mão e os centuriões para.
Outro, e eles removem as lanças – até aquela que perfurou a
panturrilha de Chandra. A liberdade não ajuda muito. Com a dor
atravessando sua perna, Chandra não vai correr para lugar nenhum
tão cedo.
85
Se ela quisesse, ela poderia revidar. Cauterizar ferimentos não é
difícil para um mago de fogo. Ela poderia pegar toda essa energia
acumulada dentro de si e liberá-la. Não tem como ninguém
conseguir fugir de um golpe como aquele. Nesse ponto, pode haver
energia acumulada suficiente para causar sérios danos à árvore
também. Não importa as “melhorias” feitas por Norn, nenhum
metal pode suportar o coração de um sol, certo?
“Você queria ser a heroína, não é? Você queria salvar a mim e ao
Multiverso em um ataque. Infelizmente, você entendeu as coisas ao
contrário. Estou aqui para te salvar. Como sempre.”
Seria a coisa mais fácil do mundo liberar aquilo tudo.
Mas se ela o fizer…
A língua de Chandra gruda no céu da boca.
Nissa dá um passo na direção dela. O sorriso que se abre em seu
rosto é largo e cheio de dentes e nada parecido com ela. “De todos
os seus companheiros, apenas você e a dríade escolheram nos
enfrentar. Sua espécie carece de unidade e compreensão.”
“Estão chegando outros,” Chandra diz. Ela fecha os olhos com
força. Se ela não olhar, é mais fácil para manter tudo dentro. Mais
fácil, também, banhar todo esse galho em chamas. Se ela quisesse.
Se ela não olhar nos olhos corrompidos de Nissa, ela não terá que
lembrar de como seu rosto estava enquanto ela —não. Não, ela não
pode. Não é apenas sobre ela, ou sobre Nissa, ou qualquer pessoa.
Há mirranianos morrendo sob seus pés para lhes dar a chance de
estar aqui. Centenas de Planos contam com eles para derrubar esta
árvore. Por mais quente que seja sua chama, Chandra sabe que não
pode derrubar a árvore de uma só vez.
Ela abre os olhos. Lá está Nissa, gesticulando com seu braço-
lâmina, movimentos nítidos e precisos e nada dela. “Olhe ao seu
redor. Não tenha medo, eu esperarei.”
Chandra não consegue evitar – ela olha. Ela preferia não ter feito
aquilo.
Há um exército do outro lado da ponte. Um exército numeroso
e abundante, a luz refletindo em suas formas elegantes e prateadas.
Uma monstruosidade dracônica na vanguarda carrega uma bandeira
azul. Ao lado dele está um ser imponente, que Chandra assume ser
o general deles. Cada batida de seus pés é um trovão, cada arma uma
flecha nas costas de suas esperanças.

86
Ela nem consegue nem ver os mirranianos daqui. Como eles vão
derrubar uma força como aquela?
“Pedi a bênção da Mãe das Máquinas para falar com você no
momento em que soube o que estava planejando. A resistência
nunca teve uma chance. Mas eu sabia que havia uma oportunidade
para você. Eu sei o que você poderia ser, se você se juntasse a nós.”
Norn sabia. O tempo todo que eles estiveram aqui, ela sabia o
que estava acontecendo. A esparsa resistência que encontraram não
foi porque Norn estava ocupada com a invasão, mas era uma
armadilha.
E agora todos vão morrer, ou pior.
A tristeza é um caco de porcelana em sua garganta. Ela tenta
engolir. Tudo o que faz é doer mais.
Chandra dá um passo para trás. Seu calcanhar alcança o terreno
arredondado da plataforma. Mais um passo e ela cairá – uma estrela
ardente, as esperanças frustradas do Multiverso.
Nissa dá mais um passo à frente. Ousada, agora, ela traça uma
garra metálica ao longo da maça do rosto de Chandra – mas ainda
não é Nissa quem está falando. Chandra se sente mal. “Estamos te
oferecendo a mais sagrada das graças: liberdade deste medo. Ao
ingressar em nossa congregação, você nunca mais conhecerá a
solidão. Nós nunca deixaríamos você morrer sozinha.”
“Eu não estou sozinha,” Chandra estala. Ela não está. Wrenn está
deitada no chão, com dor, mas viva. Enquanto Nissa estava falando,
Wrenn se aproximava cada vez mais da árvore.
Por um segundo, há esperança nos olhos de Chandra.
Nissa logo segue o olhar de Chandra para a dríade caída. Uma
risada amarga sai de seus lábios. Galhos de cobre brotam da
superfície da árvore para agarrar Wrenn com força.
Wrenn grita.
“Estamos vendo. Você ainda está viva. Impressionante. Você
será uma ótima guardiã para a Destruidora de Reinos,” Nissa diz.
Após um momento de consideração, a cabeça de Nissa se vira para
Chandra novamente. “Quanto a você, diremos apenas isto: há
muitas maneiras de servir Phyrexia. Quando você se juntar ao
rebanho, descobrirá o que realmente deveria ser.”
A respiração de Chandra está ficando irregular. Sua cabeça está
latejando. Jaya poderia falar com ela sobre isso, mas Jaya está morta;

87
Gideon poderia absorver qualquer coisa que ela jogasse nele, mas
ele também está morto.
E agora há Nissa.
Mas há Wrenn também. E enquanto Nissa avança mais uma vez,
Wrenn chama a atenção de Chandra. Chamas tremeluzem dentro de
seu corpo pálido. O metal ao redor dela começa a brilhar. Com os
centuriões desviando os olhos e Nissa focada em Chandra, Norn
não tem como saber o que está prestes a acontecer.
Respire, ela diz a si mesma. Aguente mais um pouco.
O outro calcanhar de Chandra atinge a beirada. O fogo gira em
torno de seu antebraço. “Eu não estou desistindo.”
As orelhas de Nissa se abaixam, seus lábios se abrem. Uma
suavidade se insinua em torno de suas bochechas oleosas. Quantas
vezes ela já viu esse olhar? Nas horas frias da noite, antes do nascer
do sol, quando conversavam sobre o que lhes vinha à cabeça;
sempre que Chandra aparecia com uma ideia que não fazia muito
sentido e Nissa não tinha certeza de como contar a ela. Quantas
vezes ela viu isso?
Por que dói tanto agora?
“Chandra.”
Essa é a voz dela. A voz de Nissa. Sem nenhuma interferência,
sem a influência de Norn – apenas Nissa.
As chamas de Chandra se apagam.
Nissa estende a mão. “Por favor, venha conosco. Sinto sua falta.”

Arte de Cristi Balanescu


88
Uma vida sem medo. Uma vida sem os outros questionando
todas as decisões que ela já tomou. Uma vida livre de solidão e dor.
Mesmo se elas pararem os phyrexianos aqui, algo mais não tomaria
o seu lugar? Bolas, os Eldrazi, Elesh Norn – sempre houve um
tirano. Mas se ela pegasse essa mão agora, essa história poderia
acabar.
Seria como fugir juntas.
Fugir de seus problemas, de suas responsabilidades e de todos
que sacrificaram tudo para levá-las até aqui.
“Também sinto sua falta,” Chandra diz. Lágrimas queimam seus
olhos. “Sinto tanto a sua falta. Mas não posso. Me desculpe.”
Toda aquela familiaridade, toda aquela suavidade, desaparece em
um instante. O rosto de Nissa se torna uma máscara de raiva no
momento antes da chama.
Chandra se abaixa sob o braço afiado de Nissa e enfia seu punho
de fogo no próprio galho. Um segundo de laranja ofuscante é todo
o aviso que elas tem antes da plataforma abaixo explodir. O impacto
joga ela e Nissa para longe, os centuriões caem como granizo.
Apenas Wrenn está perto o suficiente da árvore para se agarrar a ela.
Ela vai ter que lidar com isso daqui pra frente.

89
EPISÓDIO 06: O ÚLTIMO A SAIR

O medo é a primeira coisa de que ela se lembra.


Em seguida vem o cheiro da coisa: piche queimado, ozônio. Ele
gruda no céu da boca e não há para onde fugir.
Assim que ela ouve o deslizar de suas garras contra a pedra, seus
olhos se abrem e ela alcança sua espada. Lá está: o monstro com
garras tão longas quanto as de um sabujo de caça, centenas de dentes
afiados, órbitas vestigiais cegas. Uma garota se encolhe na frente da
besta, pressionando-se contra a parede de pedra fria. Entre a menina
e o monstro há um corpo enrolado de lado: uma mulher mais velha,
com a garganta cortada. Seu sangue escorre da mandíbula trêmula
do monstro enquanto ele avança para a garota.
O que a impressiona – além do fato de ela ter olhos e poder ver
– é que nada disso é novidade para ela. Ela conhece este lugar. Ela
esteve aqui, antes. Esta masmorra mofada fica a apenas alguns
passos da antiga casa de sua família. Ela sabe que a garota está aqui
há uma semana, talvez mais – que ela está com fome, sede e perdeu
toda a esperança. Ela sabe que a mulher no chão é a mãe da menina.
Desta vez, ela faz o que a garota só poderia sonhar em fazer.
Desta vez, ela tem uma espada. A criatura avança para a garota, mas
ela se coloca entre a fera e a criança. As garras arranham a armadura
conforme ele se aproxima. Assim que ela abre suas mandíbulas para
mordê-la, ela enfia sua espada no céu da boca do monstro. Óleo
preto borbulha da ferida e escorre pelo comprimento de sua lâmina.
Ela puxa a lâmina de volta. A criatura, convulsionando, se enrosca

90
no chão. Mais um corte separa a cabeça do corpo. Ela a chuta para
longe.
Tão fácil. Tinha sido tão fácil. Ela já achou esse tipo de coisa
difícil?
Ela é atingida por suas memórias. A garota precisa ir a algum
lugar. Há outra coisa que ela deveria fazer. A mulher precisa de um
enterro adequado, mas nunca o terá, e é melhor não pensar nisso.
E… não havia outra coisa?
O que ela está esquecendo?
Ela balança a cabeça. A garota jogou os braços em volta dela em
um abraço. Ela bagunça o cabelo da garota. “Você está segura
agora.”
“Obrigada,” responde a garota, numa voz sem qualquer traço de
juventude. “Você fez a coisa certa.”
Ela olha entre o corpo da criatura e a mulher morta. “Meu
trabalho é manter as pessoas seguras.”
“Então é por isso. Mas entenda que você está vendo isso com
novos olhos. Antes, isso era difícil para você.”
Passos pelo corredor – calcanhar, estalido, calcanhar, estalido.
Os olhos da garota começam a brilhar. Ela aponta para a porta.
“Um implantador está chegando.”
A palavra puxa algo em sua mente – a coisa que ela deveria se
lembrar. Ela percebe que deveria achar estranho uma garota com
olhos brilhantes, mas não acha. Há algo familiar nela – então ela se
ajoelha para dar uma olhada melhor.
Duas sobrancelhas grossas e pretas, combinando com o cabelo
brilhante – cabelo que nunca ficava preso em nada além de tranças
fortes. Bochechas redondas que sua mãe costumava beliscar. Uma
cicatriz ao longo de sua mandíbula de uma queda que ela sofreu. O
que foi que sua mãe disse na época? Feridas como aquela pertenciam
apenas à carne; usar uma cicatriz era uma escolha. Na época ela
gostou daquela escolha. Isso a fazia se sentir mais forte, mesmo que
a causa não fosse tão admirável assim.
Uma espada deslizando em uma bainha.
Agora ela entende.
A garota assente.
“Elspeth, é hora de acordar.”
O chão cede sob elas, as paredes voam, o teto mofado é
arremessado para outra dimensão. Ao redor delas as estrelas
91
sussurram seus segredos eternos. O rosto da menina – seu próprio
rosto, porém mais jovem – muda para o de sua mãe. Sangue pinga
da garganta dilacerada em sua capa.
“Você tem uma escolha a fazer.”
Mais uma vez, ela cai.
Ao seu redor, o mundo começa a se alterar. A aldeia em que ela
estava – sua aldeia – está selada sob pedra. Blocos são construídos
sobre ela pouco a pouco, montados como se por alguma criança
invisível brincando, enquanto as árvores frutificavam e murchavam
rapidamente, frutificavam e murchavam. O ar começa a tremer.
“Você se lembra do que está se tornando?”
A sombra de uma jovem. Um rosto em meio ao tremeluzir,
sorrindo para ela. Elspeth olha para as próprias mãos. Elas também
estão opalescentes à luz deste lugar. Uma sensação curiosa formiga
ao longo de suas omoplatas; uma pena brilhante cai do nada e flutua
diante dela. “Exatamente,” diz sua mãe. “Você fez muito bem em
vir até aqui, mas há um último passo a dar. Primeiro você deve
deixar seu antigo eu para trás.”
“É por isso que você me trouxe aqui?” ela pergunta.
“Você veio aqui por sua própria vontade. Quando se deparou
com o impossível, você fez uma escolha que os outros recusaram.
Você reescreveu o destino. Parte de você sabia que era hora de
despertar. As consequências dessa escolha estão se desenrolando –
e nós estamos logo à frente do seu autor, esperando sua chance de
entrar na história.”
Matando a besta phyrexiana? Não… outra lembrança surge: o
sílex, seus amigos discutindo, um caminho que parecia claro e certo,
se não fácil. Ele não explodiu? Talvez ela esteja morta. Talvez tudo
isso seja uma alucinação.
“Não é.”
“Não gosto que leiam meus pensamentos,” Elspeth diz.
“Você pensa alto,” responde a voz.
Ela suspira, ou pensa que sim, neste corpo estranho. Diante dela,
os blocos se empilham cada vez mais alto — uma agulha contra o
céu. Quando atinge o pico, ela começa a reconhecê-la. Nova
Capenna.
“O que eu tenho que fazer?”

92
“Você deve fazer mais uma escolha – e você tem pouco tempo
para fazê-la. Seus desejos e vontades mortais não devem entrar na
equação.”
Parecia bastante simples, mas ela tinha a sensação de que não
seria.
“O que eu tenho que escolher?”
“Todos os Planos estão em chamas. Você viu um pouco do que
aconteceu, mas não tudo. Em breve, você verá o resto. Você deve
escolher onde intervir,” diz a voz.
O que ela quis dizer com…? Ah. Uma cabana, uma velha amiga
em prantos do lado de fora; uma mulher em uma embarcação
balançando inquietamente no céu; um jovem em guerra contra algo
que já foi um dragão. Os fragmentos se juntam em sua mente como
um vitral blasfemo.
Phyrexia.
É sobre Phyrexia.
No momento em que ela pensa, o mundo acima dela se estilhaça.
Os céus de Nova Capenna ficam vermelhos como uma romã; uma
enorme estrutura branca perfura as nuvens. A estrutura – algo como
o tentáculo de um deus – envolve a cidade. Janelas estilhaçam,
monumentos tombam, vigas estalam. Rachaduras correm pela
lateral da torre. Óleo derrama do tentáculo, cobrindo a superfície
com um preto brilhante. Cápsulas descem sobre a cidade como
insetos carniceiros.
Mas Nova Capenna não está morta. Ainda não. Não pode ser –
a cidade inteira está fortificada contra ataques. Ela mesma viu isso.
Elspeth quer ver mais. Logo ela está cercada por fogo e
escombros. Sangue chega aos tornozelos nas ruas de Nova
Capenna. Leva um momento para ela perceber que as pilhas de
couro ao longo do meio-fio são as peles arrancadas dos cidadãos
mais lentos. Há mais phyrexianos do que pessoas ao redor dela.
E pior: flutuando acima de todos eles está algo que já foi um anjo.
A visão a deixa enojada de maneiras que ela não consegue expressar.

93
Arte de Gabolpes

“Eles a chamam de Atraxa.” A voz está diferente, agora, mas não


é desconhecida. Sua mãe. Não é uma imitação convincente – mas,
ainda assim, o som gera algum calor no coração de Elspeth. “Um
anjo corrompido pelas mãos de quatro pretores. Um de seus
generais mais fanáticos.”
Um assobio no ar. Algo explode contra o elmo de Atraxa, mas
em seu rastro… nada. Nem uma rachadura. Ela passa sua foice por
um grupo de sobreviventes com a mesma facilidade que um
fazendeiro colhe trigo.
Elspeth já viu a guerra antes. É familiar para ela, embora nunca
fosse confortável, estar no meio da confusão. Em Alara, Theros e
Mirrodin, ela levantou sua espada para proteger os inocentes, para
encontrar a paz.
Mas este lugar é diferente. Não há nada que ela possa fazer. A
ponteira de uma besta phyrexiana atravessa seu corpo. Um leve
formigamento é tudo o que ela sente, mas atrás dela, sua presa
afunda morta no chão. Uma criatura com asas de morcego que
talvez tenha sido um Maestro desce sobre um homem em fuga. Ela
tenta salvar o homem apenas para ver suas mãos desaparecerem
através dele.
“Lembre-se do que lhe foi dito, El,” diz sua mãe. “Você tem que
escolher onde ajudar.”

94
Elspeth engole em seco. Quando olha para cima, Atraxa varre a
praça mais novamente. Cabeças e torsos caem no chão sob o olhar
atento dos serafins.
“Aqui era o meu lar. Nunca imaginei que fosse crescer tanto,
claro, mas, ainda assim, era um lar,” diz sua mãe. “O povo
capennano nos recebeu de braços abertos. Décadas depois, eles
receberam você novamente.”
Atraxa solta um grito horrível. Nos céus, as criaturas aladas se
organizam em uma rede.
“A invasora recebeu ordens estritas. Não deve haver
sobreviventes em Nova Capenna. Apenas nossos órgãos e ossos
sobreviverão.”
Como flechas, as bestas aladas descem sobre os níveis superiores
do Parque Alto.
E parece que elas têm motivos para isso.
Rebiteiros balançam precariamente de qualquer suporte que
conseguem encontrar, segurando ferramentas em brasa nas mãos.
Parafusos e porcas caem da superfície como pétalas.
“Há alguns que lutam,” diz sua mãe. “Há outros ainda que se
entregaram à corrupção. A voz do poder está aumentando, não é?
Mas sempre há alguns que lutam contra probabilidades impossíveis.
Pessoas que precisam de ajuda. De inspiração.”
Mais perto um pouco. Dentro do Parque Alto, as ordens são
gritadas para lá e para cá, uma cacofonia. Jatos de vapor derretem a
armadura dos invasores enquanto eles vão na direção dos que estão
dentro. No entanto, eles não conseguem proteger a todos – para
cada Rebiteiro que é salvo, mais dois são levados entre mandíbulas
de metal.
Eles não têm muito tempo.
“Você poderia ser a salvação para eles. Esta já foi a nossa casa.
Você poderia salvá-los com suas próprias mãos. Construir algo
novo.”
Poderia? Embora ela tivesse conhecido pessoas gentis que a
acolheram, havia aqueles que aceitariam qualquer desculpa para vê-
la cair. Ela poderia passar o resto dos seus dias aqui?
As palavras da mulher ecoavam em sua mente: ela deve fazer a
escolha certa. Ela deve fazer o que é necessário. Elspeth se vira. Ela
avista os serafins mais uma vez e acena para eles.

95
Por mais terríveis que as coisas pareçam, Nova Capenna tinha
seus defensores.
“Este não é o lugar,” ela diz.
Um som trovejante. As paredes voam novamente, tornando-se
planas como telas antes de desaparecer na escuridão. Quanto mais
ela cai, mais deles ela vê. Alunos se esgueirando pelos corredores,
longe de seus professores transformados; uma mulher em um
vestido de noiva preto cantando acima de uma horda de zumbis; kor
voando em arraias em direção a uma grande estrutura branca.
Ela para entre um céu vermelho e um mar vermelho. No alto, o
tecido fino de estrelas ondula. O ar tem gosto de sal.
Theros.
“Bem-vinda ao lar.”
A boca de Elspeth se abre. Imediatamente ela está girando no
vazio, procurando pelo orador. “Daxos?”
“Então você não me esqueceu, mesmo com o novo posto,” ele
diz. Sua voz é quente e doce como o mel. Ouvi-la é o suficiente para
aliviar a tensão em sua alma. “Vou levar isso como um elogio.”
“Não seja ridículo,” ela diz. “Eu não poderia te esquecer, nem se
eu tentasse.” No entanto, também sente um aperto no peito quando
ela percebe que não pode vê-lo.
E quando seus olhos pousam em Meletis.
Aqui também há fogo; aqui também há escombros e ruínas. As
casas em que ela havia tomado chá foram destruídas. O mercado é
pouco mais do que uma pilha fumegante.
“É o nosso tempo de necessidade,” ele diz. “E é o tempo de
necessidade dele.”
A visão ao redor deles muda novamente – embora desta vez sem
a permissão de Elspeth. Eles deixaram Meletis em favor do centro
de um templo. Estátuas brancas brilhantes agora estão escorregadias
de óleo, seus rostos pintados com máscaras phyrexianas. Fumaça
espessa e escura sufoca a câmara interna. Lá dentro, as pessoas estão
tão apertadas que ninguém consegue se mexer. Máscaras de
porcelana e saliências ósseas falam sobre seu estado.
Um leonino está no topo do altar.
“Os deuses de Theros existem porque desejamos que fosse
assim. Eles servem a nosso comando. Agora vocês conhecem a
glória de Phyrexia, a glória da verdadeira unidade – um vínculo

96
interminável entre tudo o que é vivo. Isso não é uma divindade
maior?”
“Persuasivo como sempre, não é?” Daxos diz.
A garganta de Elspeth ameaça fechar.
“Está vendo a tigela em suas mãos? Está cheia de óleo. E a
mulher ali, ajoelhada ao lado dele?”
A visão de Ajani a perturbou tanto que ela não se atentou à
mulher. Pelo tecido macio que está usando e pelas joias de ouro que
o adornam, ela deve ser uma sacerdotisa.

Arte de Konstantin Porubov

A compreensão dos fatos é como uma facada nas costas. “Ele


está tentando converter os deuses?”
“Tentando é um eufemismo. Ele já converteu três deles. Nem
precisou tentar. Os phyrexianos são tão fervorosos em suas crenças
que os deuses têm pouca esperança de revidar,” respondeu Daxos.
“Deuses phyrexianos,” ela repete. “Com esse tipo de poder, seria
fácil…”
“Não haveria muitos lugares para se esconder,” concorda Daxos.
“Mas você sabe onde estamos? De quem é este templo? Olhe com
atenção.”
A cabeça decepada de uma estátua entre os destroços. No
momento em que ela presta atenção, ela se sente uma tola. Heliode.
Claro. Isso foi feito para ser um teste – e que maneira melhor de
testá-la do que esses dois? Em Theros, Elspeth encontrou uma nova
97
luz para guiá-la. Eles se separaram em maus termos – mas ela
conseguiria ficar e assistir Ajani ungir o Plano com aquele óleo
imundo?
O assobio de uma flecha mata seus pensamentos. A tigela na mão
de Ajani se estilhaça; cacos caindo cortam o rosto da sacerdotisa.
Enquanto Ajani se volta para o atirador, a sacerdotisa tenta fugir.
Dois na multidão a seguram no alto.
Outra flecha acerta o ombro de Ajani. Ele a arranca, quebrando-
a em desconforto. “Encontrem-nos!”
“Então, ainda existem heróis em Theros,” observa Elspeth.
De alguma forma, ela sente a mão de Daxos em seu ombro.
“Continue assistindo.”
A escuridão os engole por um instante, apenas para devolvê-los
a uma parte ligeiramente diferente do templo. Caçadores perseguem
um jovem por um dos corredores. O líder – com várias cabeças
metálicas – lança uma rede sobre o jovem. Um dos outros leva o
jovem capturado de volta ao altar. Ajani ergue a rede com uma única
mão.
“Eis aquele que se afasta do bando! Aquele que trama contra
nós!” O jovem está gritando. Ajani o solta, apenas para pegá-lo pelos
cabelos. “Qual é a utilidade de uma mente que planeja semear a
discórdia?”
Elspeth não suporta olhar. Ela se vira – mas não há como escapar
do som do osso esmagado ou dos aplausos que se seguem. Como
aquilo pode ser Ajani? Como ele pôde fazer uma coisa dessas?
“Ele foi forçado,” Daxos diz. “Você poderia salvá-lo disso. Se
ele estivesse aqui – o verdadeiro – ele gostaria de ser libertado.”
“Não tenho certeza se é tão simples.”
Ela se obriga a olhar mais uma vez. A sacerdotisa está ajoelhada,
novamente, e ele a está forçando a beber o óleo.
Uma luz está chegando ao templo.
Mas não é o amanhecer rosado, nem o crepúsculo violeta – é a
luz branca escaldante da forja. O sol ardente. Apesar da coroa de
fogo no templo, os fiéis não desviam o olhar. Nuvens de fumaça
sobem do que resta de sua carne sem pele.
“Você é a mulher mais corajosa que já conheci e sempre tentou
fazer a coisa certa. Se eu fosse confiar em alguém para salvar Theros,
seria você.”

98
Ela se vira novamente. Seus pensamentos correm. Se ela escolher
Theros, ela deve lutar contra Ajani. Se ela lutar contra ele,
provavelmente não há mais como salvá-lo. Quando a corrupção se
enraíza assim, há pouco a ser feito. Sim, ela matou deuses. Sim, ela
amou este lugar, o chamou de lar.
E sim, ela deseja ver Daxos novamente.
Mas isso não pode ser sobre seus próprios desejos e
necessidades. De que adianta salvar Theros? O pensamento deveria
machucá-la, mas não dói. O que isso faria de bom? Se Ajani cair
aqui, as invasões continuarão. Os deuses phyrexianos causarão
estragos em Theros – mas as pessoas aqui são mais dignas de
salvação do que as pessoas de Nova Capenna?
Sua mente está dividida. De um lado, suas emoções se enfurecem
como os mares fora do templo. Do outro, apenas as águas calmas.
Os braços de Daxos envolvem sua cintura. “Eu acho que você
sabe o que tem que fazer.”
“Não me faça dizer isso,” ela diz, recostando-se contra ele.
Mas não há ninguém mais lá.
O mundo cai novamente.
Ela cai em uma paisagem onde um lagarto do tamanho de uma
montanha luta contra sua contraparte prateada. O óleo e o sangue
de suas feridas formam rios ao longo da exuberante terra verde.
Ela cai em um castelo, outrora brilhante, agora reduzido a
escombros. Um jovem vasculha os restos quebrados de um arsenal.
A armadura que o cobre está remendada com esses restos e já
esburacada de preto. Quando ele encontra um selo entre os
destroços, ele exclama alegremente. Agora, ele pensa, poderá
defender sua família. Mas ele não havia protegido aquela armadura
adequadamente, e sua espada é de tamanho inadequado para seu
corpo; ele vai cair. Ela tenta falar para ele tentar encontrar um
cavaleiro adequado, mas ele não a ouve, pois ela já começou a cair
novamente.
Através de fileiras de cavaleiros tocando tambores de guerra, seus
cães caçando inimigos phyrexianos; através de uma cidade neon
protegida por imponentes guardiões mecânicos; através de pântanos
estranhos e colinas retorcidas, ela cai e cai.
Até que ela pousa em um lugar que esperava nunca mais ver.
A Árvore da Invasão é um testemunho orgulhoso dos triunfos
infindáveis de Elesh Norn. O vermelho pulsa por baixo de suas
99
placas brancas limpas enquanto alcança os céus – e, de fato, as
perfura. Um exército ondulante ocupa uma das pontes à sua frente.
Seu estandarte e suas formas – estranhamente curvadas, repletos de
tubos e tonéis – os sinalizam como criações de Jin-Gitaxias. Devia
haver milhares deles. Quantos eram recém-formados? Quantos
vieram dos lugares que ela acabou de ver?
“Você tem uma escolha a fazer.”
O desespero a leva para mais perto da base da árvore. Ela partiu,
mas os outros devem ter ficado. Eles não abandonariam uma luta
tão importante. Certamente haveria alguém.
Mas quando chega na base da árvore, Elesh Norn é a primeira
criatura que ela vê. Sentada em um trono de porcelana, com as
laterais desconfortavelmente próximas a espinhos, ela examina sua
criação. Diante dela, Urabrask está amarrado a uma máquina. Dois
centuriões de cada lado giram rodas quase tão grandes quanto eles.
A cada giro da roda, os membros de Urabrask são afastados de seu
corpo. Agora, ele é pouco mais que uma pilha uivante de tendões.
Flanqueando Norn estão dois coros improvisados –
instrumentos vivos que cantam as glórias de Phyrexia. Ainda assim,
o que emerge de suas gargantas profanas dificilmente pode ser
chamado de música: eles gritam, gritam, dobram suas vozes. Nem
uma vez eles se aproximam de algo como uma melodia. Os gritos
de morte de Urabrask fazem pouco para adicionar harmonia.
“Não há espaço para erros.”
Norn estala os dedos. O coro para. Com outro estalo, ela
dispensa Urabrask – os centuriões o cortam em pedaços e o levam
embora. Com um terceiro, ela convoca um grupo de criaturas
voadoras carregando uma grande carga entre eles. Não precisou que
elas pousassem para Elspeth reconhecer o corpo devastado de
Karn. De alguma forma, seus olhos ainda mostravam sinais de vida,
mas a dor dentro deles era muito mais forte.

100
Arte de Artur Nakhodkin

Ainda mais quando ele, assim como Elspeth, vê o que Norn está
celebrando.
Tão pequenos são os mortais diante dela que Elspeth não os
notou a princípio: mirranianos, algemados juntos, suas cabeças
inclinadas. Sangue escorrendo dos rostos de muitos. Alguns já
perderam membros. Implantadores os atendem, enxertando
membros indesejados em destinatários relutantes. Elspeth os
conhece. Ela lutou lado a lado com eles. Ninguém merece um
destino como este.
“Entendemos que suas mentes não podem compreender a glória
que espera por vocês,” Norn fala, “e por isso oferecemos nossa
eterna piedade. Vocês tem a traição de sua pele para culpar. Sem ela,
vocês se encontrarão livre de todos os fardos.”
Elspeth pega sua espada.
“Pense no que está fazendo. Você só tem uma oportunidade para
escolher.” É a voz da mulher novamente. “Escolha erroneamente e
tudo acaba aqui.”
“Norn tem que morrer,” Elspeth responde.
“Uma vez, há muito tempo, houve uma mulher benevolente de
branco que criou um mundo só dela,” começa a voz. Ela se lembra
agora. Havia um deus, não havia? Um cujo nome foi proibido
dentro da masmorra. Um a quem ela rezava, quando criança. “Um
lugar lindo – brilhante, pacífico. Um lugar onde os anjos habitavam.
Ela o tornou tão agradável que nunca pensou em sair ou olhar além
101
dele. Anos se passaram e um mago veio até ela em busca de ajuda.
Ela nunca imaginou o tipo de ameaça que seguiria em seu rastro.”
Ela gesticula ao redor deles. “Esta ameaça. E não é levada apenas
por Norn. Ela acredita ser o começo e o fim de Phyrexia, mas ela
está errada. Matá-la não vai acabar com isso.”
Centuriões trazem mais três prisioneiros para Elesh Norn. Eles
são jogados no chão. Dois não podem ficar de pé por conta própria,
nem mesmo se ajoelhar. O estômago de Elspeth afunda quando ela
os reconhece: um Koth derrotado; a dríade Wrenn, arrancada de sua
árvore; e uma ensanguentada Chandra Nalaar.
“Eis os traidores,” fala um dos centuriões – e é então que Elspeth
a reconhece como Nissa. Ou, pelo menos, alguém que já foi Nissa
Revane. Partes de seu novo corpo derreteram em escória. “Mãe das
Máquinas, aguardamos seu justo julgamento sobre eles.”
“Aplaudimos seu trabalho em apreendê-los, Nissa,” Norn fala.
“As provações e tribulações que você enfrentou serviram apenas
para varrer todos os vestígios de sua antiga vida. Quando você olha
para eles agora, o que você sente?”
“Desprezo. Pena.”
“Como deveria ser. Mas você não precisa ter pena deles por
muito tempo. Logo eles serão remodelados e curados. O êxtase da
completação os purificará como aconteceu com você.”
Pairando atrás deles, Karn geme.
A mão de Elspeth se contorce ao redor do pomo de sua lâmina.
“Permita que nosso abraço a esses rebeldes prove a toda Phyrexia
que temos piedade dos seres inferiores.” O sorriso de Norn era todo
dentes afiados. “Jin-Gitaxias. Venha colher o que resta da pequena
rebelião de Koth. Você será o arquiteto da perfeição deles.”
O exército se separa. Uma figura desliza entre eles, tubos
balançando de sua mandíbula. Jin-Gitaxias logo estará ao lado de
Norn. Ele se curva. “Como a Grande Pretora ordena, essa é a
vontade de Phyrexia.”
Ele dá um passo em direção ao grupo – e para.
Tudo para. Os rebeldes estão congelados no meio da respiração;
o exército não se move mais. O tempo para. Parte dela se pergunta
se não é obra de Teferi — se ela o verá no topo da árvore, com o
cajado na mão. Quando se trata de Phyrexia, Elspeth sabe que não
deve alimentar tais esperanças.
“Por que paramos?”
102
“Chegou a hora,” diz a mulher. Uma forma brilhante se aglutina
entre Jin-Gitaxias e Koth, seu primeiro alvo. Ela é uma mulher de
aparência serena, com feições amáveis. Ainda assim, há uma certa
tristeza pesando em seus ombros. “Eu preciso ouvir sua decisão.”
“Quem é você?” Ela solta sem pensar.
“Meu nome não importa mais, mas você já o conheceu,” ela diz.
Ela caminha entre os prisioneiros, parando agora em Chandra. A
Piromante não pode nem mesmo se ajoelhar sozinha – a mulher a
equilibra. “Pense bem. Você ainda acha que Norn deve ser morta?”
Por mais que tente, Elspeth não consegue imaginar o Multiverso
em paz enquanto Norn viver. “Quando um galho apodrece, você
tem que cortá-lo,” ela diz.
“Estranho. Nós ouvimos algo parecido, não é?” a mulher diz. Ela
se move para Wrenn – se ajoelha para sustentá-la. A dríade está
olhando para a Árvore de Invasão. “Você se lembra, Elspeth?”
Agora que ela mencionou, era familiar. Onde ela tinha ouvido
aquilo antes? Ela vasculha a memória, escavando tudo o que viu, até
que finalmente a voz volta para ela. Quando um galho apodrece…
Wrenn. Elas disseram a mesma coisa, as duas, separados por
tempo e lugar. Assim como Elspeth sabia o que tinha que ser feito,
Wrenn também sabia. Deve ter sido por isso que ela veio aqui. E se
ela está olhando para a árvore…
Alguma coisa muda. Quando ela olha para a cena, Norn fica
translúcida, como um espírito. Assim como Jin-Gitaxias. Quanto
mais ela olha em volta mais fantasmas ela vê. Apenas Nissa e Wrenn
permanecem elas mesmos. Elas eram as peças-chave? Wrenn devia
estar ligada à sua revelação anterior – mas por que Nissa? Além de
sua excursão para Nova Phyrexia, Elspeth não tinha falado muito
com ela. Quando Elspeth chegou, Nissa já havia se perdido.
“Não podemos ficar aqui para sempre,” ela diz. “Você deve
responder.”
“Eu sei,” Elspeth diz. “É só… me dê um momento para pensar.”
Por quê Nissa?
Se era alguém que já estava perdido, por que não Ajani? Por que
não recompensar seu antigo mentor por tudo que ele fez por ela?
Talvez ainda houvesse uma maneira de salvá-lo.
E por falar nisso, por que não entrar em campo em Nova
Capenna? Se ela derrubasse Atraxa, talvez os anjos de lá pudessem
retornar — e talvez o retorno deles pudesse limpar o plano.
103
Por mais que ela não quisesse lê-las, as respostas estavam claras
em seu coração: se ela salvar Ajani, estará salvando apenas uma
pessoa. Sozinho ele não é suficiente para virar o jogo. Nova
Capenna pode se salvar. O que deixa Wrenn, Nissa e o fio brilhante
que as amarrava.
Sim – ela compreende.
A decisão não é salvar Nissa ou salvar Wrenn.
É para manter Nissa ocupada tempo suficiente para Wrenn
alcançar a árvore.
“Você tem certeza?” a mulher pergunta.
Elspeth assente. Seu corpo parece estranho, como se todos os
nervos estivessem ligados ao mesmo tempo. “Esta é a coisa certa a
fazer.”
“Certo. Eu não posso lutar contra esta ameaça ao seu lado, tanto
quanto eu gostaria. Mas posso moldá-la para o que você estava
destinada a ser.”
Elspeth olha para sua mão, formando-se novamente a partir do
éter deste lugar. Suas unhas, seus calos, as linhas da palma de sua
mão. Videntes disseram que podiam ler o destino naquelas linhas.
Ela se pergunta se algum deles sabia onde ela iria chegar. “Estou
com medo,” Elspeth diz. Novamente, simplesmente escapa dela.
Ela nem sabia que estava com medo até falar – mas está. Há uma
dormência rastejando no fundo de sua mente. Ela pensa em Daxos,
em Theros, na casa que um dia imaginou. Tudo parece um sonho
agradável.
A mulher a abraça.
“O medo é sempre a última coisa a sair,” a mulher diz. “Você o
derrotou outras vezes. Não hesite agora, Elspeth.”
É a última coisa que ela ouve antes de Serra desaparecer.
Que sensação estranha é renascer – sentir-se sendo despojada e
mudada. As asas em suas costas são pesadas como uma cota de
malha, mas ela não consegue se lembrar de uma vez que esteve sem
elas. Este corpo é diferente – e ainda assim é como sempre foi. Ela
é Elspeth, e não é.
Não há mais espaço para indecisão. O Multiverso está na balança.

104
Arte de Rovina Cai

Toda a sua vida ela esteve adormecida. É hora de acordar, hora


de se tornar o que ela estava destinada a ser.
Jin-Gitaxias levanta suas garras.
A espada de Elspeth está lá para enfrentá-las.

105
EPISÓDIO 07: INTERVENÇÃO
DIVINA

Diga a ela para não me seguir. Nenhum de vocês. Nunca.


A primeira vez que Karn tentou resolver o problema phyrexiano
de Mirrodin, ele deixou um recado para não ser procurado. Foi uma
decisão consciente. A corrupção estava tomando conta dele.
Mirrodin caiu por causa de Karn. Em sua arrogância, ele moldou o
Plano; em sua soberba, ele deixou uma de suas próprias criações no
comando; em sua ignorância, ele rastreou o óleo phyrexiano por
todo o plano. Se ele estivesse mais presente, poderia ter percebido
que Memnarca havia se perdido. Se tivesse prestado atenção,
poderia ter visto o óleo pingando em seu rastro. Mas ele não estava
presente e não estava prestando atenção, e a queda de Mirrodin
esmagou qualquer um que vivesse nele. Não me sigam, ele disse aos
outros, porque tudo isso era problema dele, e resolvê-lo iria matá-
lo.
E ele estava certo. Se não fosse por Venser sacrificar sua
centelha, Karn estaria morto. Um inventor brilhante, contador de
piadas horríveis e uma pedra no sapato para a maioria dos que o
conhecia, Venser fazia parte do grupo que veio encontrar Karn
quando ele estava no auge da phyresis. Koth e Elspeth repeliram as
legiões inimigas por tempo suficiente para ganhar tempo até Venser
encontrá-lo nas profundezas do núcleo de Mirrodin. Melira tornou
Venser imune à corrupção, e Venser…

106
Mais de uma vez Karn jurou que honraria a memória de Venser.
Venser tinha visto algo nele, algo pelo qual valia a pena morrer. Se
Karn se deixasse morrer, estaria traindo aquela esperança.
O que tornava sua situação atual ainda mais dolorosa. Amarrado
a um pedaço flutuante de escória erguido pelo coro de Norn, feito
do mesmo material que o impediu de transplanar nas Cavernas de
Koilos, o que parecia anos atrás, ele tem a visão perfeita do fim do
Multiverso. A maior parte do seu corpo foi levada para ser usada
como sucata. Karn costumava se perguntar por que ele podia sentir
dor. “As pessoas são menos propensas a machucar algo que grita,”
Urza disse. Que pena que phyrexianos não são pessoas. Karn está
em agonia. Ele não tem escolha a não ser abraçá-la, remodelá-la,
torná-la algo útil: uma âncora que o manterá preso ao que resta deste
corpo. Enquanto puder sentir essa dor, ele é ele mesmo.
E cercado pelo triunfo de seus fracassos, parece apropriado.
Este é o fim – de suas criações, do Multiverso, dele.
Conhecendo Norn, não será rápido. Entre as provocações
intermináveis de Vorinclex e as cutucadas de Jin-Gitaxias, Karn não
tem ilusões sobre o que será feito com ele. O que está sendo feito
com ele. Os phyrexianos o desmontaram, peça por peça, e
reaproveitaram seu corpo prateado. Vorinclex e Jin-Gitaxias têm
ideias diferentes sobre a melhor forma de fazer isso, mas a ideia
principal é a mesma.
E Norn?
Norn quer que ele sofra. Ele vê isso em seu sorriso cheio de
presas.
“Falso Patriarca,” ela diz a Karn, “não é uma visão abençoada?
Depois de todos os seus anos de tropeços, ver as alturas que
escalamos sem você.”
Karn não olha para ela. Não pode. Ele tem pouco poder precioso
dentro dele. Com o que resta, ele quer se lembrar de seus amigos. É
o mínimo que ele pode fazer por eles. Koth senta-se com as costas
retas enquanto Jin-Gitaxias avança em sua direção. Dos cativos, ele
é o único a encontrar os olhos de Karn. Todos os outros têm suas
razões. Chandra está muito machucada para se ajoelhar. E Melira?
Melira também não suporta olhar.
Embora seu coração doa, ele entende. Depois de tudo pelo que
trabalharam, todo o tempo lutando contra o impossível, os
sacrifícios e os sonhos, todos vão morrer aqui. Por causa de seus
107
erros cometidos tanto tempo atrás. Se ele estivesse no lugar dela,
também não iria querer olhar.
Seus pretensos salvadores mirranianos já perderam seus
membros; alguns já estão sendo implantados e se tornando novas
monstruosidades. Quando chegaram, havia dezenas deles. Agora
resta apenas um punhado – Koth, Melira, Wrenn, Chandra e talvez
dez ou vinte sobreviventes. Um por um, os outros foram arrastados
para experimentos. Aqueles que continuam aqui estão por razões
especiais de Norn.
Uma das membras do coro se estende, sua coluna se
desdobrando como um acordeão para acomodar seu novo
incremento. Ela pega a cabeça de Karn na mão e a segura – força-a
a confrontar o rosto de Norn.
“Phyrexia te fez uma pergunta. Você deve respondê-la. Não é de
admirar que você tenha falhado em nos liderar se não pode fazer
nem isso.”
Karn está cansado. Ele não consegue pensar em algo para dizer.
No final das contas, ele nem precisa.
Jin-Gitaxias levanta um braço para atacar. No brilho de suas
garras perversas, Karn vê os fantasmas de seu passado. Quem
melhor para oferecer conforto a ele em um momento como este?
Em breve ele estará entre eles, aonde quer que tenham ido.
Vai doer?
Será como adormecer? Ele sempre teve inveja do sono.
Hora de descansar.
Ele fecha os olhos – para um flash de ouro brilhar em suas
pálpebras.
Um toque de clarim despedaça o chiado-trote da grande máquina
de Phyrexia. As forças agrupadas têm apenas um aviso instantâneo
do que está por vir – e nenhuma ideia do que pode ser. Enquanto a
luz dourada engole os espectadores, Karn ouve o choque de metal.
E por ter sido construído para funcionar nos ambientes mais
inóspitos, ele pode ver o que apareceu no centro da onda de choque
que agora balança a ponte.
Um anjo em armadura brilhante, uma lâmina dourada agora
levantada para conter o ataque de Jin-Gitaxias. Ela desce do alto
como a lança de um deus furioso na direção deles – e quando ela
pousa, ela abre crateras no metal abaixo dela. Seu impacto joga
dezenas das legiões de Jin-Gitaxias para o abismo. Os corpos
108
delicados do coro também não foram feitos para um impacto como
esse. Logo eles também mergulham no escuro, derrubando o
pedaço de escória de Karn no chão.
Ainda assim, ele observa.
“Você não vai derrubar este homem,” diz o anjo.
Espere. Ele não…? Aquela voz…
Karn não é o único a reconhecê-la. A apenas um braço de
distância, Elesh Norn solta um guincho agudo. “Você?!”

Arte de Denys Tsiperko

Quando a luz desaparece, Elspeth Tirel está no centro da cratera.


No entanto, esta é Elspeth como Karn nunca a viu: flanqueada por
radiantes asas douradas. As muitas feridas de seu passado não
marcam mais seu rosto sereno.
Jin-Gitaxias recua, seus servos cerrando fileiras para proteger sua
fuga. Elspeth o deixa ir. Ela está ocupada em outro lugar, colocando
a mão no rosto inchado de Chandra. A luz da cura flui dela para a
piromante. A carne se cicatriza novamente.
Norn já se levantou de seu trono; em sua raiva, ela o derrubou.
Dois do seu coro são esmagados sob seu peso. Aos olhos de Karn,
suas mortes não parecem tê-la incomodado. “Você! Você não
deveria mais nos incomodar!”
Elspeth não se digna a dar uma resposta, nem olha para ela; ela
mantém sua atenção em Chandra, depois em Koth. O choque em
seu rosto é claro – mas também há esperança. Isso, por sua vez,
109
acende alguma esperança dentro de Karn. Quando foi a última vez
que ele viu isso naqueles olhos?
“Nós, o poder e o coração de Phyrexia, nos dirigimos a você!”
Norn arremessa um pedaço do seu trono em Elspeth. Karn se
prepara para a queda de Elspeth – mas ela não parece nenhum
pouco incomodada quando a rocha se quebra contra sua asa.
Algo ondula pelas fileiras reunidas de Phyrexia, algo como medo,
algo como choque. Seja o que for, eles não gostam. Como animais
diante do fogo, eles começam a recuar, a se espalhar. Os mirranianos
veem sua chance. No momento em que Koth está curado, ele enfia
o punho no chão. Magma dispara de uma rachadura laranja na
ponte, correndo até a base da Árvore de Invasão. “Mirrodin!” diz
Koth. “Comigo!”
Mas Norn parece não ouvi-los. Ao que parece, tudo o que ela
consegue pegar serve como arma: mais pedaços de seu trono, um
chifre que ela quebra de um Vorinclex uivante, a cabeça decepada
de um infeliz membro do coro. Ela os arremessa tudo em Elspeth.
Elspeth se esquiva, corta e defende – nenhum dos golpes acerta.
Norn grita novamente.
Jin-Gitaxias rasteja até o lado de Norn. “Os prisioneiros-”
“Você e Nissa lidam com eles,” Norn retruca. “Temos algo mais
importante para lidar.”
“Aquele anjo?” Jin-Gitaxias pergunta. “Absurdo. Ela é apenas
um entre tantos. Minhas legiões podem lidar com eles, e Vorinclex
comerá tudo o que deixarmos para trás. Seria mais sábio você recuar
e deixar o assunto…”
Norn o agarra pela garganta. “A dissidência é uma
blasfêmia, pretor. Ela não mancha a língua dos fiéis. Nossa vontade
é a vontade de Phyrexia. Cuidem disso.”
É ridículo que eles estejam tendo essa conversa. Norn deve estar
perdendo o controle.
Especialmente se ela não notar Melira correndo para a
plataforma de Karn. Um simples aceno para Koth e, de repente,
Karn está no ar novamente. “Você vai ficar bem,” Melira diz.
Muito disso é difícil de acreditar.
Uma vez, há muito tempo, ele quase morreu em Nova Phyrexia.
Foi a intervenção de seus amigos – Venser, Koth, Elspeth e Melira
– que o salvou.

110
Agora quase todos eles estão aqui para salvá-lo novamente, e a
centelha de Venser lhe dá força.
Não me sigam, ele disse certa vez a Venser.
Mas a centelha de Venser ainda estava nele e o seguiu até aqui.
Ele não podia desistir. Ainda não.
Wrenn não podia desistir. Ainda não.
Embora não haja muito de Wrenn sobrando, embora toda a sua
força de combate tenha sido reduzida a apenas alguns sobreviventes
quebrados, ela não pode desistir. O que importa se ela não tem mais
pernas? O peso do mundo ainda está sobre seus ombros.
A chegada do anjo não é uma surpresa para ela, mas uma
confirmação. Qualquer outra coisa teria sido inaceitável porque
significaria que todos poderiam morrer. Alguém veio para salvá-los,
e foi Elspeth em suas novas cores de outono, é claro. Ela está
esplêndida, embora não houvesse tempo para apreciá-la.
Os humanos costumam se distrair com coisas brilhantes e
reluzentes. Ela espera que os phyrexianos também.
“Chandra,” ela murmura. “Chandra, precisamos ir.”
O ouro dança nos olhos da piromante – ela está tão distraída com
os acontecimentos quanto os outros. Até Wrenn morder a manga
da roupa de Chandra e puxá-la para ela olhar para baixo.
“Não consigo mais andar. Preciso da sua ajuda,” diz Wrenn.
É toda a explicação que Chandra precisa. A realidade parece se
estabelecer para ela novamente. Ela pega Wrenn. “Certo. Vamos.”
Juntas, elas saem. Os mirranianos seguem, olhando para trás a
cada passo em direção à mulher que salvou todos eles – e ao exército
do qual eles tinham que fugir.
Pelo menos, era isso que Wrenn achava que eles estavam
admirando. “Karn!” grita Melira. “Temos que salvá-lo também.”
“Certo!” diz Koth. A placa em que Karn está é de pedra como
qualquer outra – responde ao chamado dele da mesma forma que a
madeira atende ao dela. A placa de Karn voa para encontrá-los. Uma
enxurrada de flechas e lanças rebate na parte de trás da placa de
pedra. Isso também é trabalho de Koth: ele a está usando para
proteger a retirada deles.
Wrenn franze a testa. As armas não estavam realmente
machucando Karn, mas isso ainda parecia uma coisa cruel. Há
quanto tempo eles lutam para tomar decisões como essa?
Eles merecem paz.
111
Wrenn quer levar a paz para eles, mas não será capaz de fazer
isso sozinha. Teferi saberá o que fazer, se ela conseguir alcançá-lo.
E ele foi para algum lugar que ela não conseguirá chegar sem a ajuda
da Árvore de Invasão. Ela não pode chegar lá sem Chandra, e
Chandra…
“Largue a dríade e ainda haverá esperança para você, Chandra.
Você é inteligente o suficiente para saber que eu vou te matar, caso
contrário.”
Chandra tinha Nissa para lidar.
Todos eles. Não importa o quão rápido eles corram, nada disso
vai significar alguma coisa se Nissa os pegar. E ela pretende pegá-
los. A elfa está arremessando os corpos dos caídos de volta para eles,
seus passos certos e inevitáveis. Wrenn gostaria de não ter se virado
para olhar. Não há compaixão naqueles olhos, nem piedade, nem
vestígio da mulher que um dia esteve ali.
Koth está ocupado evitando que os outros se machuquem. Karn
está tão dilacerado quanto ela. A resistência em fuga – eles estão
fazendo o que podem, mas o que podem fazer a uma planeswalker
élfica phyrexianizado não é muita coisa. Elspeth está distraindo
Norn. E Chandra? Chandra não consegue machucar Nissa. Wrenn
sabe disso sem precisar perguntar.
Elas precisam chegar à árvore. E elas vão. Wrenn tem certeza
disso, porque se não o fizerem, todos morrerão, e isso não pode
acontecer.
O que ela não consegue ver daqui é como.
Tudo o que ela tem é fé.
Phyrexia se enfurece, mas não pode quebrar a paz de Elspeth
Tirel. É uma paz tão certa e sólida quanto sua armadura dourada,
tão arduamente conquistada quanto suas cicatrizes de batalha. Um
atrás do outro, blocos de porcelana vem voando sobre ela; ela não
se mexe. Essas são as ações desesperadas de uma pessoa que sabe
que vai perder.
Elspeth está acima de tudo isso agora.
Houve um tempo em que ela achava Norn assustadora. Um
tempo que aqueles dentes em forma de agulha a assombraram. A
voz misteriosa de Norn narrou seus pesadelos com a bravata de um
falso deus. Lembre-se sempre de sua humildade, pois foi Phyrexia
que te derrotou.

112
Elspeth não a acha mais assustadora. Ela não está mais derrotada.
Na verdade, com um único bater de asas, Elspeth consegue voar
acima dela. Daqui, Norn é mais uma boneca enorme do que uma
ameaça ao Multiverso. Tudo parece menor agora. Mais longe. Toda
a impureza da vida de Elspeth foi eliminada, deixando apenas a
verdade.

Arte de Angela Wang

E a verdade é que Phyrexia não vencerá hoje.


Abaixo dela, os mirranianos fogem em direção à árvore. Koth
cobre a retirada com Chandra na vanguarda, Wrenn em seus braços.
Amarrado a um pedaço de escória está Karn – que a observa com
pura admiração. Embora ele esteja em um estado lamentável, ela se
vê sorrindo para ele. Depois de todos esses anos, eles finalmente
vão consertar tudo.
Desde que Elspeth consiga garantir a segurança deles até lá. Ela
tem que parar Nissa. Wrenn tem que alcançar aquela árvore.
Mas há um assunto mais urgente para atender – alguém que não
quer que ela fuja.
Furiosa, Norn avança para Elspeth, com as garras estendidas. Ela
puxa Elspeth do ar por uma perna pendurada e a joga contra o chão.
“Você não vai estragar nosso momento de triunfo!”
Os ouvidos de Elspeth zumbiram; sua visão ficou embaçada. Ela
pisca. Norn se eleva acima dela mais uma vez.

113
“Nós nos dedicamos a esta causa incondicionalmente. A salvação
do Multiverso é nossa vocação honrada. Como você ousa se opor a
isso?”
“Eu tenho minha própria vocação,” Elspeth responde. Ela se
levanta, poeira caindo de sua capa. “E você não vai me impedir.”
A risada de Norn é suficiente para gelar o sangue. “Sua vocação
é falsa,” ela começa. Enquanto ela fala, os corpos dos phyrexianos
caídos se levantam e se aglomeram ao redor dela. Pedaços voam de
suas formas flácidas: cacos de metal, cacos de osso; lâminas e
navalhas; dentes e tubos. Deformando-se pela união das partes,
Norn tece para si uma nova armadura hedionda. “Em todos os
Planos, há apenas uma verdade eterna e imaculada: todos serão um.
Qualquer um que se interponha no caminho da unidade estará no
caminho de um futuro perfeito.”
Elspeth olha por cima do ombro. Os outros estão fugindo, e
Nissa parou para espreitar na direção deles. Ela não pode se dar ao
luxo de ficar aqui e ouvir o discurso de Norn. Elspeth concentra-se
em sua lâmina: a dourada e crepitante Mensageira dos Deuses. Esta
é apenas uma cópia da espada verdadeira – mas é a cópia dela. Ela
sabe que vai funcionar com ela. Um pouco de foco é tudo o que é
necessário para lançar um raio de luz sobre Norn. Pedaços da
armadura caem, incinerados pelos raios purificadores da espada. Um
buraco fumegante se abre no ombro da pretora. Desta vez, Norn
não grita. Em vez disso, ela levanta uma mão com garras. Os corpos
dos soldados caídos ao redor delas – aqueles já despojados de suas
partes úteis – erguem-se novamente para cercar as duas lutadoras.
“Phyrexia nunca cairá,” Norn diz. “Olhe ao seu redor. Não há
morte, Elspeth Tirel, apenas Phyrexia.”
Ela não terá muito tempo para agir. Antes que as fileiras erguidas
possam prendê-la, Elspeth levanta voo mais uma vez. No entanto,
quando ela se volta para os mirranianos em fuga, paredes se erguem
do chão para bloquear seu caminho – paredes que se elevam até as
alturas infinitas do teto do santuário.
“Você não pode fugir de nós,” Norn diz. “Nós somos o chão
sob seus pés, o ar em seus pulmões. Tudo o que você vê é Phyrexia,
e Phyrexia somos nós. Somos inteiros.”
Elspeth ataca a parede. Faíscas são o único sinal de progresso: o
revestimento de porcelana não cede à sua lâmina. À frente, Nissa
está se aproximando dos mirranianos. Chandra está com eles – as
114
duas eram próximas, não eram? Chandra seria capaz de derrotá-la?
Elspeth hesita. Se Chandra vacilar, Nissa irá detê-los.
Eles precisam de Elspeth. Esta luta é uma distração. Ela precisa
passar por aquela parede. Se os outros aguentarem apenas alguns
segundos…
Mais uma vez ela se concentra na lâmina, cada respiração
deixando-a mais brilhante. Uma aurora brilha em sua armadura.
Atrás e abaixo dela, as legiões ressuscitadas de Vorinclex e Jin-
Gitaxias estão atacando. Correntes circulam suas asas. Ao mesmo
tempo, elas se fecham. Seus músculos se esticam sob a pressão.
“Por que você resiste tanto?” Norn pergunta. “Você sempre
lutou contra nós. O que deseja? Se você anseia por um lar, encontre
um conosco. Se precisa de amigos ou amantes, há incontáveis
legiões deles entre nossas fileiras. Ainda pode ser juntar a nós, se
você se submeter.”
Elspeth olha por cima do ombro. Norn estava mais alta do que
nunca, as placas adicionadas da ponte e dos caídos serviram para
esticá-la ainda mais. Vísceras brilhantes brilhavam sob a superfície:
a carne esfolada da qual ela tanto se orgulhava. Pelo tamanho dela,
pelas formas cruéis de sua armadura e a grande semelhante de sua
nova carapaça a um casco, ela não se parece em nada com um lar.
Elesh Norn é guerra e morte.
Um segundo conjunto de correntes dispara da mão estendida de
Norn. Elspeth não tem outra escolha: se ela quiser ficar no ar, ela
terá que passar por Norn. Um único golpe de sua lâmina corta os
dois conjuntos de correntes; o impulso derruba os gitaxianos de
costas.
Elspeth voa em direção a Norn. “Você não me entende.”
Outro corte vem em sua direção; ela se esquiva e retribui Norn
com um corte no braço. Fumaça sobe da ferida. O cheiro de carne
queimada gruda no céu da boca de Elspeth. “Eu não sou nada como
você.”
Norn agarra uma das asas de Elspeth. Em uma paródia imunda
de uma criança segurando um pássaro, ela pendura Elspeth no alto.
“Você ansiava por um propósito – por algo maior do que você
mesma. O desejo do seu coração é um lugar ao qual você possa
pertencer, um lugar de paz sem fim, onde aqueles que você valoriza
nunca estão longe. Um futuro brilhante. Um futuro phyrexiano.”

115
A voz de Norn é alegremente doentia e doentiamente alegre.
Elspeth corta os dedos de Norn, mas embora ela tire sangue, a
pretora não solta.
“O que esta forma oferece a você que Phyrexia não pode? O que
você ganhou é uma pálida imitação do que nós aperfeiçoamos. Olhe
ao seu redor!”
Ela olha.
E embora ela relute em admitir, há verdade no que Norn está
dizendo. Os olhos que a encaram das fileiras do exército são todos
iguais. Aqueles que respiram o fazem em uníssono – e com essas
respirações, o santuário estala e zumbe, uma máquina ligada à vida
de seus habitantes. Nissa, Nahiri, Ajani… nenhum deles parecia
chateado com seus novos estados. Em cada um deles ela não viu
nada além de êxtase.
O lar pode ser o que você fez e com quem você o fez. Se ela se
juntasse, não faltariam amigos. Ela e Ajani poderiam forjar Theros
em sua melhor forma possível. Até Daxos poderia se juntar a eles.
Imortal, sem idade, todos apenas um – para sempre.
“Os anjos são uma pálida sombra da divindade. Nós somos sua
verdadeira luz. Das alturas deste santuário, vemos todas as coisas
exatamente como elas são. Após esta batalha, você não existirá mais
como você mesma – você se tornará um deles. Todos esses anos
você olhou com horror para a phyresis, e aqui está você, abraçando-
a com outro nome.”
“Não é a mesma coisa!” Elspeth responde.
Norn segura Elspeth de cabeça para baixo na frente dela. São
olhos de porcelana, Elspeth balançando metros acima do solo. Os
dentes de Norn brilham com a luz refratada da lâmina de Elspeth.
“Então cite uma única diferença.”
“Meu propósito é divino.”
“Meus evangelistas agem como as espadas de nossa divindade.
Tente novamente.”
“Essa transformação não mudou nada em mim.” A mentira
mancha sua língua no segundo em que ela a conta.
“Essas suas novas asas contam uma verdade diferente. É tão
difícil assim para você entender?”
“Eu…” Elspeth começa.

116
Outra voz por trás – uma voz familiar. Jin-Gitaxias chama sua
soberana. “Não passamos tempo suficiente nisso? Complete-a e
vamos embora.”
“Quieto!” Norn grita. Imediatamente seu humor muda para uma
fúria violenta. Ela se vira para Jin-Gitaxias. Uma colisão metálica, o
som de carne rasgando. Jin-Gitaxias gorgoleja atrás de Elspeth. Ela
percebe que ele estava certo: eles passaram muito tempo brigando
como crianças. Seu propósito é maior do que isso. E a reação de
Norn à insubordinação diz a Elspeth tudo o que ela precisa saber
sobre suas diferenças.
Ela enfia sua espada no ombro ferido de Norn – o único lugar
que ela consegue alcançar daqui. Um jorro de sangue mancha a
armadura de Elspeth quando Norn, finalmente, a solta. Elspeth
levanta voo novamente. O braço de Jin-Gitaxias está em uma poça
de óleo não muito longe de Norn. Se ela não tivesse escapado,
poderia ter sido o dela. Elspeth concentra seu poder em sua espada.
Uma luz dourada inunda a plataforma.

Arte de Livia Prima

“Você está certa, Norn,” ela diz. “Não somos tão diferentes
assim. Discutimos. Cometemos erros. Temos nossas próprias
vontades, sonhos e desejos.”
A boca de Norn se contorce em confusão e desgosto. “Que
blasfêmia é essa? Nós declaramos apenas a vontade de Phyrexia…”

117
Norn ataca, mas Elspeth desvia do caminho. “Você discordou
de Jin-Gitaxias, não foi? Phyrexia quer que você me ignore,
mas você quer algo diferente.”
Um grito sai da garganta de Norn. Fragmentos de soldados
caídos cortam o ar, lâminas dos mortos, cada uma apontada para
Elspeth. “Você! Você não entende nada de Phyrexia!”
“Não, o problema é que eu entendo você muito bem,” diz
Elspeth. A lâmina zumbe com poder. Ela a levanta bem alto. É isso.
Depois de todos esses anos e todos esses mortos – finalmente é hora
de derrubar Elesh Norn. Jin-Gitaxias não fará nada para ajudá-la.
Suas legiões já estão atacando…
Na direção da árvore. Milhares deles para apenas um punhado de
mirranianos. Lanças caem como granizo na superfície da ponte.
Aquela pessoa caindo no chão – é Melira? Nascida sem vestígios de
metal em seu corpo, imune aos horrores da phyresis, a garota já
representou a esperança para todo o Plano. É ela caindo no chão?
O grito de Koth confirma isso.
Não é certo demorar.
Elspeth olha para a pretora diante dela. Uma tempestade de
lâminas gira em torno de Norn como as pétalas de uma flor de
porcelana. “Estamos além da sua compreensão, além do seu alcance!
Quando tivermos conquistado o Multiverso que você tanto preza,
você se ajoelhará aos nossos pés e se deliciará com a glória da nossa
criação! Você não arruinará tudo o que conquistamos. Séculos
depois você será esquecida e nós continuaremos sendo o eterno
hierofante, Elesh Norn!”
“Isso é exatamente o que quero dizer. Você quer que as pessoas
adorem Elesh Norn, não é? Phyrexia não importa para você. Nunca
importou. O poder é a única coisa com a qual você se importa.”
As espadas ao redor de Elesh Norn permanecem imóveis e
silenciosas. Um brilho sanguíneo de raiva cresce atrás deles.
“Você… eu odeio você!” Como as flechas de um exército, as
espadas voam em sua direção – pedaços puxados agora da ponte,
das paredes, do próprio corpo de Phyrexia.
Então ela finalmente aprendeu a falar por si mesma, não é? Bem,
isso não é mais preocupação de Elspeth. As espadas, no entanto…
Apenas uma chance. Se Elspeth alinhar tudo direitinho…
Ela voa direto para a parede. No último instante ela se afasta. O
impulso revira seu estômago, mas ela consegue virar para cima e
118
para longe. As lâminas não têm espaço. Com todos os seus
problemas concentrados em um só lugar, Elspeth finalmente libera
um raio de luz.
Quando a luz diminui, ela já está na metade da ponte, em direção
à árvore. As esperanças do Multiverso repousam em seus ombros
emplumados.
Ela não ouve Jin-Gitaxias se levantar, mas ouve o grito de Norn.
“Volte aqui! Eu não terminei com você!”
Ela demorou demais. É hora de fazer a coisa certa.
Wrenn e Chandra estão quase na árvore. Elspeth tem que
garantir que elas consigam.

119
EPISÓDIO 8: WRENN E OITO

Wrenn costumava pensar que não importava onde ela fosse, ela
sempre estaria em casa. Era difícil argumentar o contrário com
dríades. Muitas vezes, o lar significava uma árvore da qual elas nunca
sairiam. Para ela, as coisas são um pouco mais complicadas: as
árvores com as quais ela está ligada não podem sobreviver ao
processo por muito tempo, e ela mesma tem assuntos a tratar em
todo o Multiverso. Mas ela permaneceu convencida de que – não
importava em que lugar do Multiverso ela acabasse – ela nunca
estaria longe de outro lugar para morar.
Até que ela chegou em Nova Phyrexia. Em todos os seus dias,
ela nunca poderia ter imaginado um lugar como este, despojado de
toda a vida natural; ao mesmo tempo mortalmente quieto e cheio
do ruído artificial das máquinas. Se você pedisse a qualquer dríade
para imaginar seu pior pesadelo, eles falariam de um lugar como
este. Wrenn odeia isso aqui.
E, acima de tudo, ela odeia que seja aqui que ela vai morrer.
Não é morrer que a assusta. Diferente de Chandra, que carrega a
cabeça e o torso frágeis de Wrenn em direção à Árvore da Invasão,
Wrenn não tem medo das lanças e farpas que os phyrexianos lançam
na direção delas. As gotas de fogo e minério derretido que queimam
sobre seu ombro – algumas de Chandra, algumas de Koth – também
não a assustam. Na verdade, ela deseja poder se juntar a eles, mas
praticamente não tem forças para manter o fogo dentro de si sob
controle. Usá-lo contra outros colocaria em risco tudo o que eles
vieram fazer aqui.

120
Isso é o que realmente assusta Wrenn: a possibilidade de que ela
não seja capaz de fazer o que todos esperam que ela faça. A Árvore
da Invasão não canta para ela mais. Não disse uma palavra durante
todo o tempo em que ela esteve aqui, nem mesmo antes, quando ela
quase conseguiu se enxertar nela. Se ela a rejeitar, eles não têm como
controlá-la, não há como alcançar Teferi, não há como impedir esse
ataque violento.
E eles precisarão de Teferi se quiserem impedir isso. Disso,
Wrenn tem certeza.
Daqui, empurrando-se a cada passo, ela pode ver o ataque que se
aproxima: milhares de phyrexianos, com outros milhares sendo
reunidos no local. Metal brilha em cada um – não na forma da
armadura galante de um cavaleiro, mas como forjas agitadas e
agulhas brilhantes. E embora haja mais olhos olhando para ela do
que folhas em uma floresta, ela não vê vida em nenhum deles.
“Este lugar não deveria existir,” ela diz.
“Nem me fale,” Chandra incinera uma lança antes que ela possa
atingi-los. “Só temos que aguentar mais um pouco.” Sua respiração
é irregular, seus passos desnivelados; ela está lutando para segurar
Wrenn. Wrenn não tinha certeza se Chandra voltaria a andar depois
da queda que sofreram. Corpos humanos são coisas delicadas. As
vinhas de Nissa as pegaram antes que elas se espalhassem contra o
chão – mas às vezes a própria queda era ruim, não importa como
você caísse. No entanto, Chandra suporta e luta, não importa quanta
dor ela esteja sentindo.
“Você está precisando de algum curativo?” Wrenn pergunta.
“Estou bem,” é a resposta afiada da piromante.
Uma chuva de agulhas vem em sua direção – Koth levita o metal
sob seus pés para formar um escudo sobre suas cabeças. Agulhas
faíscam ao ricochetear em sua superfície, algumas se alojam nas
costas dos mirranianos que Koth não conseguiu cobrir. Ele xinga, o
som era como arrefecer uma lâmina. “Não posso continuar assim
para sempre!”
“Não é para sempre,” Chandra diz. “Assim que Wrenn estiver na
árvore, tudo ficará bem.”
Só que levará tempo para ela se enxertar na árvore, falar com ela,
procurar sua velha amiga. E isso supondo que ela seria capaz de
fazer tudo isso. Será que esse corpo vai aguentar o tempo suficiente?
Resta tão pouco dela. Chandra está agarrada a ela como um animal
121
de estimação rebelde. Diante da forma poderosa da Árvore de
Invasão, ela é menos que uma noz. Se houvesse outros, se ela tivesse
suas irmãs, talvez…
Um grito a arranca de seus pensamentos. Wrenn volta à realidade
e vê uma gavinha afiada disparar no ar por cima do ombro de
Chandra. O grito está vindo de cima — a outra ponta da gavinha
atravessou o estômago de Melira.
“Você deveria ter aceitado nossa oferta,” diz uma voz familiar.
Nissa. Uma vinha farpada corta direto na direção deles.
Chandra fica apreensiva. A bola de fogo que ela envia na direção
de Nissa pisca e desaparece no meio do caminho. Ela xinga e, em
um ato de desespero, rola para evitar o impacto. As farpas perfuram
o chão como lanças – tão altas quanto qualquer um dos guerreiros.
Se uma deles tivesse perfurado eles…
“Te dou cobertura!” Koth grita. Ele arremessa uma pedra
escarpada em Nissa. Uma de suas vinhas cortantes a divide em duas,
então joga as duas metades de volta nos rebeldes.
Chandra queima uma no ar, gemendo com o esforço. Sua
respiração instável está se tornando um ruído. Wrenn gostaria que
houvesse mais que ela pudesse fazer para ajudar – mas ficar
acordada e se manter viva terá que bastar.
Algumas dezenas de mirranianos são tudo o que resta da força
de combate, e os únicos no caminho do ataque imparável de Nissa.
Enquanto Chandra foge para a árvore, Koth, Melira e os outros
cobrem sua fuga. Era bastante difícil quando os inimigos eram
apenas soldados phyrexianos – quase impossível diante de uma
máquina de matar como Nissa. Vinhas e lâminas cortavam a carne
tão facilmente quanto papel.
“Koth!” grita Melira. Sangue derrama como seiva na mão que ela
está usando para cobrir seu ferimento. “Koth, precisamos de uma
barricada!”
Ele olha para ela. Até Wrenn consegue ler a preocupação no
rosto dele. “Está chegando. Chandra, você vai ter que fugir.”
“Entendi!”
Koth dá um soco na plataforma. Chamas alaranjadas se acendem
em todas partes do seu corpo. Metal range e cresce, formando uma
barreira para impedir a aproximação de Nissa.
Mas ainda não acabou de crescer, e Nissa não vai tratar aquilo
tão calmamente.
122
Ela caminha na direção deles, erguida bem acima da superfície da
ponte em um emaranhado de raízes semelhantes a cabos. Galhos de
cobre perfuram os corpos daqueles que estão diante dela –
phyrexianos e mirranianos. Um de seus passos é três de qualquer
outra pessoa. Embora Chandra esteja correndo o mais rápido que
pode, não há como ela escapar de todos os ataques de Nissa.
Se Chandra quisesse, ela poderia derreter aquelas raízes. Deixá-
las enrugadas no chão. Mas Chandra nem olhou por cima do ombro
desde que Nissa apareceu.
“Você não quer machucá-la, não é?” Wrenn pergunta.
Chandra não diz nada.
“Eu entendo. É difícil, quando é com amigos. Mas você não está
machucando ela de verdade. Tenho certeza que ela nunca ia querer
te machucar – então não está impedindo ela de fazer exatamente o
que ela gostaria que você fizesse?”
Chandra aperta a mandíbula. “Wrenn.”
“Sim?”
“Não é assim-”
Antes que Chandra possa terminar, ela é jogada para trás. Wrenn
cai de suas mãos, aterrissando na ponte de metal frio a tempo de ver
Chandra balançando lá no alto, Nissa levantando-a pelo tornozelo
com uma longa raiz de metal. Um dos mirranianos pega Wrenn e
continua correndo.
“Leve-a para a árvore. Mantenha-a em movimento!” Koth grita.
Ele também voltou sua atenção para lutar contra Nissa.
Este mirraniano dá apenas alguns passos adiante antes que uma
das lanças de Nissa as prenda. Eles jogam Wrenn para o ar. Dois
dos seus companheiros olham horrorizados – mas um terceiro tem
a presença de espírito para pegar Wrenn e mantê-la em movimento.
Ela passa de mão em mão, jogada no ar para mantê-la fora das
garras phyrexianas. Os phyrexianos acham que os humanos
entendem pouco sobre união – mas Wrenn conhece o contrário.

123
Arte de Jason Rainville

No momento em que ela chega aos braços de Melira, Wrenn está


quase na Árvore da Invasão.
E Chandra ainda está no ar.
“Está com a gente ainda?” Melira resmunga.
“Estou, mas…” Wrenn responde. “Não posso… não consigo
fazer isso sozinha, preciso da ajuda de Chandra…”
“Sinto muito, mas acho que você não vai conseguir isso,” diz
Melira. Como ela está conseguindo correr, ferida daquele jeito? Uma
pontada de culpa percorre a dríade. Há muita coisa dependendo
disso para ela parar, mas…
“Nós te avisamos,” diz Nissa. Sua voz estrondosa percorre toda a
plataforma. “Nós avisamos que isso nunca funcionaria!”
Vinhas envolvem a garganta de Chandra. Wrenn também as
sente, enquanto Melira a ajuda a subir na plataforma de observação.
Chandra sobe cada vez mais alto, lutando e se contorcendo, seu
corpo balançando. Quanto tempo os humanos conseguem ficar sem
respirar?
“Como eu te ajeito na árvore?” Melira pergunta.
Abaixo delas, Koth e dezenas de mirranianos seguram o resto do
exército phyrexiano nas barricadas. Nissa conseguiria passar por
cima dela, mas os outros teriam que seguir o caminho mais difícil.
Soldados sobem até o topo da barricada e arremessam lanças de
volta ao fervilhante exército phyrexiano. Alguns eram arrancados de

124
suas posições, levados aos gritos para a massa de metal e óleo do
outro lado da barricada.
Ainda assim, eles lutavam.
A língua de Wrenn gruda no céu da boca. “Apenas me deixe aqui,
mas preciso de ajuda com o fogo…”
“Sinto muito, isso é mais do que eu posso fazer,” diz Melira. Ela
pega Wrenn e coloca as raízes retorcidas de sua cintura contra a
árvore. “Mas eu posso te ajudar com isso, pelo menos um pouco.”
Antes que Wrenn possa perguntar o que ela quer dizer, magia se
esvai da mão de Melira, brilhando em um branco fraco. Uma força
se infiltra na casca de Wrenn conforme o brilho desaparece – mas
não apenas força. Algo naquilo é tão fresco quanto a chuva, tão vital
quanto o sol.
Melira fica tonta. O que ela fez parece ter exigido muito dela. Ela
cai de joelhos, depois se senta, com as costas apoiadas na estrutura
branca da Destruidora de Reinos. “Deve… deve ajudar, um
pouco…”
Wrenn quer perguntar a Koth se ele salvará Chandra. Ela quer se
unir a qualquer árvore, menos esta, quer se manter sendo si mesma
um pouco mais. Ela quer ajudar Melira, embora nem saiba como
começar.
Mas em momentos como este, é difícil conseguir o que você
quer.
Ela fecha os olhos enquanto suas raízes se fundem à Árvore da
Invasão. Não, ela tem outro nome, um que ela prefere, e seria rude
da parte dela não usá-la. Destruidora de Reinos. Um mal-estar
inunda seus sentidos. Óleo passa por cima das suas raízes, agitando-
se com o mal. Nenhuma canção a preenche, nenhum chamado da
floresta, apenas uma voz insistente de que Wrenn não pertence a
ela.
E não pertence mesmo. Mas não importa o que a Destruidora de
Reinos diga, ela vai ficar.
No fundo do recesso silvestre de seu coração, Wrenn começa a
cantar. Sobre os carvalhos célebres de Innistrad, os pinheiros
flutuantes de Zendikar, do bordo, do teixo e da faia ela canta. O
canto escalonado da Destruidora de Reinos fica cada vez mais
alto: você não pertence. Algo dentro se retorce e começa a puxar.
Wrenn grita. Ela passa os dedos pelas placas, sem vontade de
ceder, não agora. Uma pressão está crescendo dentro do vazio de
125
seu peito – o fogo está muito ansioso para lutar contra as más
intenções da árvore. Está queimando o interior de sua garganta. Se
ela ceder, o fogo pode muito bem lhe dar tempo suficiente para se
fundir totalmente com a árvore – se não a consumir primeiro.
Mas isso não vai funcionar. Há muita fome. O fogo, a
Destruidora de Reinos – há fome em ambos os lados, e ela balança
entre os dois predadores.
Tudo isso está começando a doer.
Chandra saberia o que fazer. Ela podia falar a língua do fogo.
Acalmá-lo, direcioná-lo, dizer aonde ele precisa ir, evitar que ele
queime Wrenn como queimou a Destruidora de Reinos.
Mas Chandra está pendurada acima da ponte, e ela também está
prestes a morrer aqui, e não haverá mais ninguém para ajudar.
Wrenn aperta a mandíbula com força. Você pode queimar, mas só as
coisas que não são minhas, ela pensa. Chandra disse que pensar nisso
pode ajudar.
Uma chama dentro de sua barriga, o cheiro de carvalho
queimado. As mil vozes dentro da Destruidora de Reinos gritam ao
mesmo tempo – mas Wrenn também. Como o fogo vai diferenciar
os dois? Elas são a mesma, agora. Os pensamentos mais sujos de
Destruidora de Reinos já ecoam em sua própria mente: eles devem
se espalhar, devem tomar o que já foi reivindicado, devem despertar
o Plano para as glórias de Nova Phyrexia. Como um fungo
enlouquecido, elas continuam gritando mesmo quando o fogo as
consome.
Mesmo enquanto a consome.
Chamas lambem seus olhos.
Wrenn os abre.
Há algo atrás de Nissa. Algo branco.
Uma luz dourada pisca em sua visão, tão brilhante que ela
inicialmente a confunde com fogo – mas logo desaparece. Nissa está
no centro. A luz está explodindo de sua boca e olhos, as raízes de
metal que a protegem ficaram incandescentes. O golpe a cambaleia
– ela derruba Chandra.
O que era…? Ah, agora ela vê – o anjo pega Chandra e a coloca
na plataforma.
“Wrenn!” grita Chandra, engasgando e respirando pesadamente.
“Você ainda está aí?”

126
“E-eu estou,” Wrenn diz. Destruidora de Reinos está tentando
convencê-la que Wrenn não existe – mas ela sabe que é mentira.
Enquanto o Multiverso ainda estiver em perigo, ainda haverá uma
Wrenn.
Chandra engasga e tosse – mas ela coloca a mão no ombro de
Wrenn do mesmo jeito. Wrenn pode ouvir sua respiração, mesmo
que sua visão esteja começando a desaparecer. “Você está fazendo
um ótimo trabalho, Wrenn.”
Está? Partes dela estão começando a virar cinzas.
“Você se lembra do que conversamos em Dominária?”
A voz de Chandra ecoa na cabeça de Wrenn. Tudo fica nebuloso
ao redor delas, girando como uma folha ao vento. As pessoas estão
gritando. Alguém está ferido. Há uma guerra acontecendo a apenas
alguns metros de distância, e… o que foi que Chandra disse naquela
época?
“Como… respirar…?”
Atrás de seus olhos cerrados, as cores começam a girar: dourado,
vermelho, verde.
“Isso não é útil agora,” Chandra diz. Ela coloca a mão no ombro
de Wrenn. O calor floresce na mente de Wrenn. Em vez de
permanecer dentro dela, as chamas agora fluem da Destruidora de
Reinos para Chandra, parando apenas brevemente no meio. “O
fogo vai queimar, não importa o que você faça, mas você pode
moldá-lo se tentar.”
É mais fácil pensar sem o fogo atrapalhando. Wrenn pode se
concentrar em algo além da dor. Ela deve moldar o fogo. É uma coisa
viva, assim como suas raízes. Como qualquer muda em crescimento,
ela precisa de orientação.
A paisagem em sua mente muda. As cores assumem uma forma:
uma árvore retorcida brota do vermelho e dourado, seus galhos são
de cobre polido. Um vento invisível agita suas folhas. Lentamente,
elas estão caindo, desaparecendo enquanto espiralam. Um lago
infinito de óleo preto cerca a árvore brilhante. Bolhas sobem e
explodem em sua superfície, cada uma tem uma voz, cada uma
implora para que Wrenn se junte a elas.
Mas ela não vai. Ainda não.
Dentro dos galhos de sua árvore imaginária está uma garota.
Quando ela começa a cantar, o fogo flui de seus lábios, derramando-
se no vazio negro em busca de alguém que a ouça. Pelo que parece
127
uma eternidade, a música flutua no escuro até que – finalmente,
impossivelmente – ela ouve alguma coisa.
Wrenn ouve alguma coisa.
Fraco, desaparecendo, o mais leve sussurro esverdeado contra a
escuridão – mas está lá.
“Você consegue fazer isso…” A voz de Chandra ecoa.
A batalha também ecoa. O triturar do metal contra osso; as
ordens gritadas de Koth; o impacto estrondoso de algumas bombas
invisíveis.
Ela deve se concentrar – para sintonizar tudo.
Wrenn envia suas chamas. Normalmente, ela deixaria uma muda
tão tímida demorar um pouco mais. Árvores precisavam do seu
próprio tempo. O trabalho de uma dríade era se atentar a esse
processo, torná-lo o melhor possível. Encontrar essa pobre alma
agora – enxertar-se nela – vai contra tudo o que ela sabe.
Wrenn espera que ela entenda.

Arte de Viko Menezes

As chamas avançam, sempre em busca daquele traço verde


furtivo. O preto invade as raízes da árvore – mas a menina ainda
canta, ainda procura, ainda espera que a distante canção retorne.
Ali está: uma muda do tamanho de sua mão, lutando contra a
escuridão.
Quão solitária esta delicada criação! Há quanto tempo ela está
aqui no escuro? Pontos amaldiçoados marcam suas bordas; o que
128
resta de verde é pálido como a espuma do mar. Este não é um lugar
destinado aos vivos.
À medida que sua mente a alcança – enquanto sua música enche
seus ouvidos – ela molda o fogo mais uma vez. Uma floresta
incandescente surge do óleo, o caminho incandescente levando
direto para a muda. Ao redor delas, o óleo começa a borbulhar, a se
agitar.
Junte-se a nós. Casca que nunca se quebra, folhas que nunca caem, um fogo
que nunca se extingue – junte-se a nós e você será eterna.
Mas Wrenn não quer. E a muda também não, a música dela
ficando estridente pelo medo.
Chandra disse que o truque era moldar o fogo. Muito bem,
Wrenn seguirá a sugestão dos mirranianos lá fora. Assim como eles
a protegem, ela protegerá esta muda até que possa cantar para ela
totalmente crescida.
Árvores flamejantes crescem até o tamanho de montanhas, seus
galhos se entrelaçando como os escudos dos construtos de Koth.
Ondas de óleo preto batem contra elas – mas as árvores brilham e
o óleo escorre de sua superfície crepitante. O tempo todo as chamas
de Wrenn dançam sobre a muda, o tempo todo ela canta com sua
voz vacilante.
Cresça, ela deseja. Por todos nós.
E embora a mudinha fosse tímida, agora ela sabe – cercada por
suas companheiras maiores – que está segura. A canção de Wrenn é
um tronco seco na fogueira: ele cresce alta, alta, impossivelmente
alta; sua canção torna-se um canto estrondoso, um canto de
guerreiro; seus galhos grossos como pedras.
Como ela ficou bonita. A felicidade brota dentro dela. Ela se
sente sorrindo, embora não tenha certeza de como; seu corpo está
distante e frio. Apenas os fogos aqui dão a ela algum calor. Mas o
que elas farão quando esses fogos se extinguirem? Wrenn não sabe.
Mas ela sabe que tem uma ótima nova parceira.
Olá, Oito, ela diz. Vou te apresentar a Teferi.
Oito sabe que não tem muito tempo. O mesmo fogo que a
protege logo engolfará as duas. Com seus outros hospedeiros, ela
aprendera todo tipo de coisa sobre eles — quais águas preferiam,
como era a sensação do sol em suas folhas —, mas com Oito só há
espaço para uma coisa.
Deixar ele crescer.
129
Empoleirada em seus galhos, Wrenn aponta no escuro como
uma estrela em um céu sem lua. Uma centena de anos de
crescimento, duas, três, acontecem em segundos. Se ela tivesse
estômago, estaria perdido em algum lugar nas marés crescentes de
óleo negro abaixo deles. Quanto mais alto eles sobem, pior a dor
que ela sente – mas ela segura firme, mesmo assim.
Os outros falaram que Oito era o tipo de árvore que conectava
todos os Planos. A princípio, Wrenn não tinha certeza de como ela
a guiaria sozinha. Agora ela vê que não havia necessidade de se
preocupar. Ela quer crescer. Tudo o que ela precisa é do poder que
ela lhe empresta.
Com chamas queimando em seu ventre, Oito busca novos
Planos. Seus galhos crescem, dividindo-se aqui e ali, cada um em seu
próprio caminho. Algo no escuro cede, e logo ele abre buracos ao
redor deles. Wrenn não consegue contar todos eles – é como se ela
tivesse entrado no olho de um inseto. Onde antes havia escuridão,
agora há um caleidoscópio de luz.
Onde quer que seu olhar pouse, há algo para atormentá-lo: um
castelo cercado de todos os lados por carvalhos dourados; uma
cidade de cromo imponente e reluzente à beira do colapso; um
Plano onde árvores, rochas e rios explodem com a bela e brutal
energia da vida. Ela vê um templo em chamas, um sol que consome
tudo o que toca, um rio que corre vermelho-sangue com o óleo de
seus marinheiros. Ainda assim, em todos esses Planos díspares,
existe alguma unidade: céus carmesins, símbolos phyrexianos, a
natureza se contorcendo contra si mesma. As pessoas que ela
consegue ver estão sempre no meio de alguma luta. Crânios se
desfazem sob pernas mecânicas. Soldados têm suas cabeças
mergulhadas em tonéis de óleo negro. Sangue escorre da boca
daqueles que preferem pegar em armas a entregar suas casas.
Chandra disse que isso afetou todos os Planos – mas ver assim,
tudo exposto diante dos olhos de Wrenn, é uma história diferente.
Eles precisam da nossa ajuda, Oito diz.
Temos que encontrar o que eles não encontraram, Wrenn responde.
Eu só conheço os lugares que eles viram. Os lugares que eles me fizeram ir.
Eu conheço um lugar escondido. Mas para encontrá-lo, temos que nos perder
um pouco.

130
Oito fica nervosa embaixo dela. Wrenn passa a mão sobre a casca
dela, as brasas se arrastando na ponta dos dedos. Não se preocupe.
Estaremos juntas.
Aqueles olhos não são olhos; esse corpo não é um corpo. Ela
pode se desprender deles se desejar, se eles a atrasarem – e é o que
ela faz. Visão não ajudará quando se trata de se perder; só vai
atrapalhar. Os emaranhados da magia de Teferi não são visíveis a
olho nu. Você deve senti-los – sentir seu crescimento engasgando
ou disparando mais rápido, suas folhas parando, suas chamas
finalmente mantidas no mesmo lugar. A luz de milhares de Planos
paira sobre Wrenn, mas ela não lhes dá atenção, guiando Oito
sempre para cima, sempre procurando. Como um tecelão diante de
um tear, ela guia seus muitos ramos: uma subida aqui, ali uma queda;
aqui uma volta, ali um fechamento. Pensar em qualquer uma dessas
coisas vai deixar tudo errado. Há um lugar escondido aqui. Há um
lugar que o tempo não pode tocar. Há um lugar que ninguém jamais
pensaria em procurar, um lugar encontrado apenas se ela pudesse
rastrear a trilha desajeitada de um amigo…
Ali.
A visão retorna enquanto as chamas rugem dentro dela. Eles
encontraram o lugar certo: o céu é azul como o sonho de uma muda;
o povo, embora usasse armadura, não mostra sinais de medo; os rios
correm verdes; as árvores dão os frutos do tratamento gentil. Sob
uma dessas árvores, ela vê uma multidão reunida de pessoas. Eles se
sentam em pedras delicadamente moldadas, as roupas cobrindo suas
formas brilhantes como joias, sua pele aquecida pelo sol. Entre eles
estão magos, guerreiros, estudiosos e diplomatas, uma rainha e meia
dúzia de fazendeiros. Com suas vozes fortes, eles agradecem a tudo
o que se apresentava diante deles – aos mares, ao céu e à grande
árvore que resistiu tanto.
Entre eles – ao lado da rainha – estava Teferi. Há uma
tranquilidade nele que ela nunca viu antes, uma calma que o
dominava. Wrenn odeia arruinar a felicidade de seu amigo, mas isso
não pode esperar. Ele vai entender.
Com um pensamento, ela chama Oito, e Oito é rápido em
responder. Um galho questionador abre um rasgo neste arbusto
emaranhado. Rápido como seu criador, o rasgo se transforma em
algo maior: um portal grande o suficiente para alguém passar.

131
Arte de Liiga Smilshkalne

Wrenn não consegue andar. Ela não tem pernas nesta forma de
chama efêmera ou na forma física, enxertada na Destruidora de
Reinos em Nova Phyrexia. Oito não pode andar. Afinal, ele é a alma
da árvore; se ele for embora, tudo desmorona. Sua única esperança
é gritar e torcer para que os outros percebam o que aconteceu.
“Teferi!”
O barulho de armas levantadas, o zumbido de feitiços, o sussurro
de sandálias contra a terra. Eles perceberam. A fascinação domina
os observadores – com pitadas de cautela e bravura. Todos os rostos
se voltam para a rainha e o homem ao seu lado. Ela, por sua vez,
erra por excesso de cautela. “Quem é você, efrite?”
Mas Teferi coloca uma mão reconfortante no ombro da rainha.
“É uma amiga minha.” Ele desce os degraus, parando no final para
olhar para a rainha. “Podemos não ter muito tempo para terminar
os preparativos.”
“É ousado da sua parte presumir que existe uma ameaça que não
podemos enfrentar,” responde a rainha. Sua expressão fica calorosa.
Wrenn sente uma pontada de culpa. A rainha não tem como saber
o que eles estão enfrentando, mas Wrenn deve esperar que sua ajuda
seja suficiente.
“Wrenn, você me encontrou,” Teferi diz ao se aproximar do
portal. A gentileza e o charme que ele usava com seus companheiros
desaparecem um pouco. Wrenn não é boa com rostos, mas até ela

132
reconhece a preocupação quando a vê. “Acho que não temos tempo
para recordações, não é?”
Algo em seu peito fica apertado. É tão óbvio? Ela balança a
cabeça. “Não. Sinto muito, não sabemos. Foi… Encontrar você
foi…”
“Você não precisa explicar,” Teferi diz. “Apenas me diga o que
posso fazer para ajudar.”
Por um segundo, ela não está mais lá – ela está em algum lugar
frio, escuro e vazio. Quando ela volta, seu peito parece ainda mais
apertado. “Precisamos de você em Nova Phyrexia. Todo mundo
está lutando, mas há tantos deles e tão poucos de nós. A qualquer
segundo eles vão nos ultrapassar. Precisamos de um grande herói.”
Ela pode se ver refletida nos olhos de Teferi – completamente
em chamas, nenhum corpo real. Assusta-a pensar que agora ela não
tem corpo, nem solidez, mas muitas coisas a assustam, e isso ainda
não acabou.
“Um grande herói? Acontece que estou olhando para uma,” ele
diz. “Levei décadas para encontrar este lugar, e você fez isso em
pouco tempo.”
“Por favor,” Wrenn range. Essas palavras não parecem
adequadas para ela. “Teferi, não há tempo.”
Ele acena em compreensão. Ele estende a mão para o ombro
dela, e logo puxa para trás quando se lembra que há apenas chamas
para encontrá-lo. Ele se vira para os outros-
Mais uma vez, ela desaparece da existência, novamente está frio
e escuro e…
Mil bainhas amarradas a mil cinturas, mil lanças chocalhando
com o movimento, botas na terra exuberante, cânticos de guerra no
ar… O aperto sobe até sua garganta. Um exército inteiro havia se
reunido durante aquele tempo. Milhares deles. Ela tinha acabado de
falar com Teferi, e… quando todas essas pessoas chegaram?
Quanto tempo ela ainda tem?
Não o suficiente. Não é tempo suficiente.
Wrenn aperta os olhos fechados. Pense. Se não há muito dela
para se juntar fisicamente à luta, ela deve fazer o que puder para
ajudar. E se os phyrexianos trouxeram exércitos – bem, havia
exércitos aqui. Não tantos quanto o inimigo, mas sua bravura
brilhava tanto quanto sua armadura. O pessoal de Teferi poderia
ajudar. Se ela pudesse levá-los para a luta, claro.
133
Mas isso seria uma bagunça. Este lugar está escondido dentro
dos galhos da própria árvore. Deixar Teferi escapar é bastante fácil
– ele era apenas uma única folha. O resto do exército seria uma
confusão de trepadeiras brotando, emaranhando-se entre todos os
planos díspares que ela tinha visto.
Então, quando Teferi se vira para ela, ela sabe exatamente o que
deve ser feito.
Você desfaz um emaranhado passando através dele. Ela e Oito
poderiam fazer o mesmo aqui – se tentassem, poderiam empurrar
os Planos um contra o outro até que Nova Phyrexia cedesse, e então
deixar este em seu lugar. Wrenn não sabe para onde ele vai. Oito
também não parece saber – tudo o que ele oferece é que é algum
lugar escuro, algum lugar que não é um lugar.
E os dois não terão muito tempo depois.
Eu estou bem com isso, Wrenn diz. Pelo menos teremos um ao outro.
Um carinho de Oito. Ela está bem com isso também.
Teferi dá um passo em direção a elas – em direção ao portal.
“Espere,” ela diz. “Não venha sozinho. Traga seus amigos.”
“Wrenn, o esforço que seria necessário para fazer isso…” ele
começa, mas ela não conseguirá fazer isso se alguém disser para ela
parar.
“Eu sei. Mas eu quero fazer. Por favor, traga o máximo que
puder. Vou encontrar outra maneira de viver.”
Teferi não responde, mas seus amigos sim. Os guerreiros cerram
fileiras atrás dele como pétalas, seus escudos se sobrepondo. Magos
preenchem os espaços atrás e-
Frio, escuro, um lugar que não é um lugar-
Mais demorado esta vez. Bastante demorado. Esta vai ser a
última vez, não é?
Teferi fez o chamado. Milhares responderam, prontos para
correr para Nova Phyrexia enquanto os dois compartilham espaço.
Tudo porque ela estendeu a mão para ele novamente. Não importa
o que mais sua vida tenha sido – ela se orgulha disso.
“Foi tão bom te conhecer, Teferi. Espero que o que restar de
mim se lembre,” ela diz.
O sorriso de Teferi só piora a dor. “O que quer que reste de mim
sempre se lembrará da minha amiga, Wrenn,” ele diz. “Uma heroína
cujo nome a precede.”

134
Frio nas bordas de sua visão, escuridão se aproximando de seus
galhos. Pelo menos não será Nova Phyrexia. Ela está mais feliz
morrendo aqui, com um galho em Zhalfir.
Wrenn fecha os olhos e faz o que faz de melhor: ela cresce.

Arte de Cristi Balanescu

O portal que se abre diante dos guerreiros agrupados de Zhalfir


envergonharia uma montanha. Envolto em chamas, mas suave
como a superfície de um lago, é algo belo – mas as imagens refletidas
em seu interior são tudo menos isso. Do outro lado há somente
metal, apenas sangue, apenas o óleo preto e escorregadio de Nova
Phyrexia. Restam apenas um punhado de pessoas atrás de uma
barricada improvisada: um homem nos portões, lutando contra um
exército incontável com tudo o que pode encontrar, uma mulher
caída perto de uma árvore e uma piromante ao seu lado, lutadores
atirando pedras por falta de armas melhores. Um anjo dourado
revidando contra a Grande Pretora – mas até sua lâmina celestial se
exauriu.
Uma máquina de guerra rola para as paredes. Um único ataque a
derrubará.
Na verdade, eles nem precisam dar o golpe. A monstruosidade
arremessa o anjo através do portão – e a força disso por si só é
suficiente para quebrá-las.
Os exércitos reunidos de Nova Phyrexia atravessam o portão e
congelam, em confusão e horror. À frente deles está um portal para
135
um lugar exuberante e verdejante, cultivado por mãos cuidadosas e
corações atentos. É uma coisa que os horroriza. O mesmo acontece
com os guerreiros que cruzam o portal e o mago que fica na
vanguarda.
Já se passaram muitos anos desde que foram chamados para a
guerra – mas Zhalfir está pronta.

136
EPISÓDIO 09: OS ANTIGOS
PECADOS DE NOVA PHYREXIA

Séculos atrás, os anjos afastaram o óleo da morte-vida de Nova


Capenna. Por séculos, as pessoas em Nova Capenna estiveram a
salvo da invasão do inimigo. Eles emprestaram esse conhecimento
sobre o inimigo para suas irmãs em outros planos – assim, o
Multiverso permaneceu vigilante sobre a ameaça que se aproximava.
Foi bom.
Já não é o suficiente. Suas proteções falharam.
Agora, o Multiverso clama por ajuda.
Outro anjo – corrompido e sombrio – chegou a Nova Capenna
para ceifar os frutos semeados pelo pecado de seu povo. Ela abre
caminho pelas defesas da cidade como uma lavradora debulhando
trigo. Prédios que permaneceram por gerações desabaram em
instantes; vidro e sangue encheram as calhas; máquinas de guerra
roncam pelas ruas que antes eram cheias de carros.
Pedra ganha vida. Anjos que esperaram séculos para servir
novamente ouvem o chamado do clarim para a batalha. O que eles
esperaram, senão isso? Armas radiantes cortam as carapaças de
monstruosidades imponentes. Asas protegem aqueles que fogem do
ataque de porcelana do inimigo. Por horas eles empregam sua força.
Aqueles que são despedaçados pelo armamento phyrexiano se
desmaterializam no final – como Halo, aquela essência angelical
brilhante, eles ainda conseguem servir.
Mas os exércitos de Phyrexia são dez mil, e há muito menos anjos
em Nova Capenna do que antes.

137
Sorte que eles não são formados apenas por protetores.
Onde os anjos repelem o inimigo e protegem as forças
capenenses, aparecem demônios e diabos para tomar a ofensiva.
Aqui um serafim infunde uma torre com Halo; ali, um demônio
decepa as cabeças de quem a escala. Poucas coisas são mais
repugnantes do que demônios, e haverá um preço para tudo isso
mais tarde, mas é um preço que os anjos de Nova Capenna estão
dispostos a pagar se isso mantiver seus pupilos seguros.
A mais jovem entre esses anjos, Giada, quer ajudar. Mas ela é
muito pequena para se juntar ao corpo a corpo, muito recém-
formada para a frente de batalha. Tudo o que ela pode fazer é
observar das torres e gritar para os outros onde eles são mais
necessários. Apesar disso, ela não pode deixar de sentir que está
perdendo algo.
Ela tem certeza de que saberá quando enxergar. Anjos têm tudo
a ver com segurança, disseram seus irmãos mais velhos.
Atraxa vai mais fundo na cidade, seu exército em seu rastro. Os
intrincados mecanismos de Parque Alto não impedem o girar de sua
foice.
Rebiteiros cobertos de suor se escondem em qualquer viga que
possam encontrar. Suas mãos rápidas desmontam o trabalho de seus
antepassados. Ferramentas usadas para levantar conexões agora são
usadas para cortá-las violentamente em jatos de fogo.
O anjo corrompido não os vê neste trabalho – eles são muito
pequenos, muitos, muito desiguais. Eles são indignos de sua
atenção.
No final, essa é a sua perdição.
Uma explosão abre as estruturas da cidade. Ela está no fundo da
estrutura do Mezzio, e não percebe que ele começou a cair até que
já fosse tarde demais. Afinal, não é o escudo dos anjos que a mata,
nem as maquinações dos demônios: é a própria cidade. A brilhante
torre de vidro e aço de Nova Capenna desmorona sobre ela, livre de
seus poderosos pilares e sistemas de suspensão. De seu poleiro, os
anjos assistem séculos de trabalho mortal cair no solo.
A essência de Giada ferve de excitação, mas ainda não é certo
que ela intervenha. Há alguém que ela está esperando ouvir.
Os outros não perdem tempo. As defesas de Nova Capenna não
devem se limitar apenas à cidade. Para que o Multiverso sobreviva,
os anjos devem vigiá-lo e lutar contra Phyrexia com tudo o que têm.
138
A morte de Atraxa mudou Nova Phyrexia – e a Árvore de
Invasão está mudando com isso. Os anjos sentem isso como os
mortais podem sentir a terra tremendo sob seus pés. As farpas estão
se retraindo de volta para sua casa, deixando o caminho aberto para
o ataque.
O campo de visão de Nova Phyrexia pelos portais muda para a
imagem de outro lugar – um lugar com um mar cor de vinho, um
lugar onde o céu brilha com as crenças de seu povo. E embora não
haja anjos em Theros, eles não podem negar que ele precisa
desesperadamente de ajuda. Fazer o que é justo sem se preocupar
com sua própria segurança, enxergar além das necessidades de
poucos: isso é o que significa proteger o Multiverso.
Giada sorri. Este é o começo das coisas – o começo do que ela
estava esperando. Ela grita apressadamente para os outros: é ali onde
somos necessários, é para lá que temos que ir! Ajudem se puder!
Anjos atravessam o ar, voando a uma velocidade inimaginável
em direção ao portal. Do outro lado, eles irrompem bem acima do
mar. Os anjos deslocados dessa maneira não sentem medo, nem
hesitação, nem remorso — eles simplesmente fazem o que sempre
fizeram.
Eles protegem.
Como grãos de poeira, eles viajam pelos ventos em direção ao
seu destino. Alguns envolvem a garganta de um monstro marinho,
prendendo-o por tempo suficiente para uma tripulação de
marinheiros cortar suas cabeças. Outros dirigem-se aos templos. Os
deuses que os chamam de lar não importam; os suplicantes que
precisam de proteção logo a encontram. O óleo preto espalhado no
braço de uma mulher correndo escorre milagrosamente para longe
de seus ferimentos; um lançador de azagaias se vira um segundo
antes de ser espetado.

139
Arte de Dominik Mayer

Há um deus que percebe a chegada dos anjos. Brilhante como o


sol da manhã, o conspurcado Heliode brilha, os anjos etéreos quase
se queimam ao vê-lo. No entanto, eles se aventuram cada vez mais
perto, pois subindo atrás dele está uma mulher que precisa de ajuda
tanto quanto odeia pedir por ela. O deus está tão distraído que não
percebe a forma envolta em violeta de Kaya sobre sua carapaça
corrompida. Quando finalmente ela enfia uma adaga em sua
garganta – bem, os anjos garantem que o esguicho de óleo preto
nunca a toque. Enquanto o deus desaparece, a mulher pousa mais
uma vez no templo. Ajani está lá para encontrá-la – mas o que um
matador de deuses tem a temer de uma mera mortal?
O coração amorfo de Giada bate mais rápido. Cada passo é um
passo mais perto de sua velha amiga.
Mais uma vez, os portais de Nova Capenna mudam, desta vez
para uma miríade de Planos, alguns novos para os anjos, alguns
familiares – todos no meio de uma luta desesperada que não podem
vencer sozinhos. Ainda bem que eles não estão mais sozinhos.
“Ataquem!” Giada convoca.
Trompas de guerra ecoam por toda a Nova Capenna, e os anjos
se espalham onde são mais necessários. Em Planos onde são
adorados, em Planos onde são odiados, em Planos onde são
completamente desconhecidos – eles fazem o que sempre fizeram.

140
Quando finalmente os portais se voltam para Nova Phyrexia,
Giada sabe exatamente o que fazer. O momento finalmente chegou.
Lá, à vista de todos, está Elspeth Tirel.
Estou tão feliz em te ver, ela diz.
Elspeth Tirel está muito ocupada para fazer mais do que olhar
para o portal: há milhares de phyrexianos atacando a plataforma
diante dela. Lutar toma a maior parte de sua atenção. Mesmo assim,
quando seu olhar desliza em direção à superfície, há um pequeno
sorriso em seus lábios. Giada. Estou feliz em ver você também.
Ela aprendeu até a falar do jeito certo, é isso mesmo? Aquece o
espírito de Giada ver Elspeth brilhando tanto. Você se saiu tão bem.
Obrigada, Elspeth responde. Ela dirige sua espada através de uma
serpente-lâmina alada, dividindo-a no centro. Mas ainda há trabalho a
ser feito.
É exatamente isso o que eu quero te dizer. Alguns de nós estão vindo para
ajudar.
A serpente cai no chão, mas Elspeth continua seu voo. Uma
videira de cobre envolve o braço em que está sua espada. Ela a corta
com um golpe pesado. Aceitarei com prazer qualquer ajuda que você puder
enviar.
Giada se lembra como é sorrir. Embora ela não consiga nesta
forma, ela sente em seu espírito.
Ela prepara outra convocação.
Aqueles que vão para Nova Phyrexia não retornarão. É um
pequeno preço a pagar. Alguém deve cuidar deles – alguém deve
estancar o sangramento.
“Ataquem!”
Em Dominária costumava-se dizer que os zhalfirianos não
conheciam o medo, mas os zhalfirianos diziam o contrário. No que
lhes dizia respeito, eles conheciam o medo melhor do que ninguém.
Você pode encontrar o medo sentado perto do fogo, ao anoitecer.
Todo pai que mandava um filho para a guerra conversava com o
medo pela manhã e à noite. O medo estava com você quando você
observou os campos e se perguntou se haveria o suficiente para a
próxima temporada. A verdade é esta: quando você conhece o medo
e convida o medo para dentro de sua casa, quando você trata o medo
como trataria qualquer outra pessoa, o medo não pode mais
amedrontá-lo. Sua comunidade cuidará de seus medos e você
cuidará dos deles.
141
O Multiverso tem medo de Nova Phyrexia.
Muito bem. Deixe Zhalfir cuidar disso.

Arte de Chris Rallis

Armados até os dentes, sorridentes e ansiosos para enfrentar o


inimigo – os clãs de guerra estão muito felizes em conhecer os
phyrexianos. Enquanto a barricada de Koth desmorona, os
zhalfirianos avançam. Teferi observa Koth olhando para eles
confuso. “Espere, de onde você veio? O que está acontecendo?”
Teferi sorri para ele. Orgulho incha em seu peito. “Zhalfir.
Wrenn nos encontrou. Estamos aqui para ajudar.” Ao redor deles,
o teto começa a desmoronar, o chão treme. Teferi não se incomoda.
“Os dois Planos estão trocando de lugar – Nova Phyrexia está sendo
lançada no abismo, e Zhalfir está… finalmente voltando para casa.
Ela receberá você e os seus, se você permitir.”
Koth olha para as forças agrupadas. A expressão dele é difícil de
ler – determinação, alívio e tristeza, todas esculpindo suas marcas
em ferro. “Então vamos garantir que Phyrexia nunca se esqueça de
nós. Mirranianos, deixem sua marca!”
Não restam muitos mirranianos, mas aqueles que podem lutar
ficam muito felizes em se juntar ao ataque.
Um véu de luz multicolorida paira sobre as vestes vibrantes do
exército como a bênção de um deus distante. Uma energia formiga
na extensão de suas peles. Eles sabem o perigo que o óleo negro
representa para eles. Eles sabem como combatê-lo. Lanças
142
perfuram serpentes phyrexianas e as pregam na superfície da
plataforma; pedras arremessadas os esmagam sob os pés. Chuvas de
fogo derretem o inimigo; sopros de gelo os tornam quebradiços; o
golpe de um grande martelo os estilhaça em centenas de pedaços.
Por anos, Zhalfir esperou a chance de provar sua coragem contra
essas escórias de prata. Agora que eles estão no meio da luta, há uma
alegria orgulhosa no ar. Sidars começam seus cânticos, chamadas-e-
respostas ecoando das bocas de Askari, Akinji e Altali:
“Você não pode quebrar—”
“—o que é criado junto!”
A bravura é potente quanto qualquer armadura. Apenas alguns
minutos no campo, os zhalfirianos abriram caminho contra as
forças do exército phyrexiano, enquanto seus curandeiros cuidavam
dos mirranianos feridos na plataforma. Teferi cavalga na vanguarda,
seu cajado brilhando, magia girando ao seu redor. As lanças que
voam, os enxames de insetos com lâminas, os fragmentos dos
mortos explodidos em pedaços – tudo fica lento ao se aproximar
dele. Seus companheiros pegam armas no ar e as jogam de volta a
seus donos. E embora Teferi raramente conheça esse tipo de
exaustão, ele a enfrenta com um coração alegre e séculos de
habilidade.
Correndo para alcançá-lo estão os outros mirranianos – aqueles
que ainda podem lutar. Chandra o aponta para Koth. “Viu? É ele!
Esse é Teferi! Eu disse que ele era…”
Ela é interrompida quando o Pretor Vorinclex salta em direção à
vanguarda de Teferi. Um momento de hesitação para a respiração
de Chandra, mas Vorinclex não vai muito longe antes de atingir a
parede da magia de Teferi. Todos – não importa o quão assustadores
– parecem tolos se movendo em câmera lenta.
Até mesmo Koth abre um sorriso ao ver a situação. “Tudo bem.
Talvez você tenha descoberto alguma coisa.” Mas ele também está
ocupado. Koth acerta os dois punhos no chão. Duas rachaduras se
espalharam em direção aos zhalfirianos, uma de cada lado. “Me dê
uma mão aqui.”
Chandra não sabe exatamente o que ele quer, mas ela presume
que ele precisa de fogo. Ela envia alguns jatos em cada uma das
rachaduras. Chamas se erguem para afastar os golpes do exército
phyrexiano — e transformam o armamento flamejante do Askari
em lâminas infernais. Apenas alguns segundos depois, Koth levanta
143
os braços. Fragmentos de metal incandescente caem como a
condenação do Multiverso nas costas do exército phyrexiano.
No entanto, nem todos encontram seu destino tão facilmente.
Até mesmo a concentração de Teferi pode oscilar. A luta de
Vorinclex contra ele finalmente encontra recompensa; ele arranca as
mandíbulas da montaria de Teferi e o joga no chão. Em nenhum
momento o pretor está em cima de sua presa.
O rugido de Vorinclex anunciou a morte de muitos guerreiros,
mas o medo é um velho amigo de Teferi, e ele não sente sua atração
agora.
“Olhe atrás de você.”
O pretor se vira, rosnando.
Uma espada flamejante separa a cabeça de Vorinclex de seu
corpo. Uma dos Askari – uma mulher chamada Shella, que
frequentemente bebia até cair com seus camaradas – oferece a Teferi
uma mão para cima. Ele pega, agradece e ela some. Em um campo
de batalha, sempre há mais trabalho a ser feito.
É então que ele vê o anjo, pairando apenas um pouco acima. A
serenidade de sua expressão esconde a preocupação em seus olhos.
“Você precisa ter mais cuidado.”
“Elspeth…?” ele pergunta. Mas a confusão em seu rosto muda
para aceitação, e ele oferece a ela um sorriso no meio do campo de
batalha. “Estou feliz que você esteja aqui.”
Há algo estranho na maneira como ela olha para ele, como se ela
não soubesse totalmente como deveria responder. No fim das
contas, ela realmente não sabe.
Teferi compreende. Às vezes as pessoas mudam. Ela ainda é sua
amiga e uma soldada habilidosa. “Algum conselho tático?”
Uma raiz de cobre voa em direção a Elspeth; ela a corta com um
único corte. Ela nem olha para Teferi. “Deixe Nissa comigo. Suas
forças precisarão conter Jin-Gitaxias e Norn. Minhas irmãs nos
deram um presente. A infecção não pode durar muito tempo
enquanto elas estiverem conosco. Não desperdice.”
Elspeth fala com uma voz impressionantemente normal, como
se estivesse discutindo o que vestir em um passeio, em vez de planos
vitais para a sobrevivência da vida em todos os Planos.
“Entendido,” ele diz, mas a essa altura ela já foi embora.
Acima deles, o teto do santuário racha. Wrenn, aposta Teferi:
enquanto Zhalfir se move para ocupar o lugar de Nova Phyrexia no
144
Multiverso, Nova Phyrexia está cedendo sob a pressão. Estruturas
se rasgam e quebram. Placas de metal despencam. Os magos
zhalfirianos conjuram os ventos para redirecionar as pedras para o
inimigo. Nenhuma armadura phyrexiana pode proteger contra as
forças da massa e da gravidade – manchas de óleo negro são tudo o
que resta dos que foram esmagados. Torres distantes tombam,
monumentos se quebram, tonéis racham e manchas de óleo
espalham-se pela passarela. O chão treme sob os pés de Teferi.
Estes são os espasmos da morte de Phyrexia.
E então o profundo lamento da morte: arremessando soldados
para o lado com facilidade, relegando-os ao abismo, está Elesh
Norn. Sua armadura de porcelana está esburacada em alguns lugares
e aberta em outros, revelando seus tendões fracos e rasgados por
baixo. Elevando-se sobre o exército – até mesmo as máquinas de
guerra – ela ataca Teferi como um leão com uma ferida aberta.
“O que fizemos… o que eu construí durará para sempre!” ela
grita. “Phyrexia nunca morrerá. Você está apenas atrasando o
inevitável. Por que você não consegue entender isso? Por que você
não aceita seu destino?!”
Teferi envia uma mensagem através das fileiras para
concentraram o ataque na pretora gigante. Uma saraivada de magia
– relâmpago, gelo, fogo, raios de energia verdejante, escuridão
enfraquecedora – a atingiu em resposta. Norn cambaleia,
balançando em seus pés. A boca manchada de óleo de Norn fica
aberta em estado de choque; ela coloca uma garra sobre o conjunto
de feridas em seu peito. Quando examina o exército mais uma vez,
ela grita novamente.
“Por que nenhum de vocês está me protegendo!?
Eu sou Phyrexia!”
O exército a ouve e para – mas apenas o tempo suficiente para
que seu próprio general fale. Jin-Gitaxias monta uma enorme
máquina de guerra. Longo e estreito, ele está adornado com todo
tipo de armamento: lâminas, estacas, um grande aríete em sua
cabeça. Tudo isso para proteger sua preciosa carga: um tonel cheio
de sua própria progênie. Criaturas parecidas com salamandras se
contorcendo, quase prontas para nascer, pressionam seus rostos
inexpressivos contra o vidro. Quando ele fala, a cuba pisca com luz.
“Seu ego é um tumor em qualquer talento que você possa ter. Nova

145
Phyrexia evoluiu além de você. Mas seus restos podem ter alguma
utilidade.”
Vê-los se virarem um contra o outro surpreende e alivia Teferi.
Assim como o estrondo familiar da chegada de um planeswalker
– até que ele vê Ajani, gravemente ferido, entrando na briga.
“Você?” Jin-Gitaxias zomba. “Saia do caminho. Aquela coisa atrás
de você é o verdadeiro inimigo de Phyrexia.”
“Não,” Ajani. “Phyrexia permanece unida, ou não.”
Teferi não teve tempo de decidir o que fazer antes que as legiões
de Jin-Gitaxias atacassem Norn e Ajani.
Centuriões cortam a armadura dela, arrancando os tecidos em
pedaços, enquanto ela esmaga o máximo que consegue. É como se
ela estivesse sendo atacada por um enorme enxame de besouros –
todos com dentes afiados e armas ainda mais afiadas. Ajani os rasga
e corta, primeiro com seu machado e depois, quando é arrancado de
suas mãos, com suas garras e dentes.
Ele não consegue parar todos eles. Não pode deixá-los
enfraquecer Norn.
Ajani pula na frente dela para absorver uma explosão
desorientadora de magia que o deixa de costas. Cordas e redes são
lançadas sobre ele, e os guerreiros zhalfirianos avançam com lanças.
Em um instinto que ele não consegue nomear, Teferi grita “Espere!
Capturem ele vivo!”
Ajani se debate contra suas amarras, vazando sangue e óleo nas
cordas, até que outro feitiço o congela. Obedientemente, os
guerreiros arrastam o leonino subjugado para fora da luta.
Nesse ínterim, Jin-Gitaxias deu tanta atenção a Norn que se
deixou com a guarda baixa. Zhalfirianos compreendiam os perigos
das lutas internas como poucos. Isso os deixou em uma posição
única para capitalizar as falhas de seus inimigos – e salvar o que
pudessem de seus amigos.
Enquanto Jin-Gitaxias supervisionava o ataque de seu exército a
Elesh Norn, Teferi e a vanguarda foram direto para ele. Garras
rasgaram aço e ferro; espadas e machados racharam o crânio e o
esterno. Os cantos de guerra e tambores zhalfirianos lhes davam
vigor o tempo todo. Enquanto Phyrexia morria ao redor deles, os
zhalfirianos estavam mais vivos do que nunca.
Quando o pretor se volta para contemplar o esplendor da
coragem deles, ele ri, pois não conhece o medo. “Isso é o melhor
146
que você pode reunir? Orgânicos?” Ele gesticula com a garra.
Espinhos disparam dos flancos de sua máquina de guerra,
empalando as feras que se esforçavam para quebrá-la. Sangue jorra
no vidro enquanto os animais uivam.
“Olhe em volta,” Teferi diz. “Ao que parece, Nova Phyrexia está
ficando para trás.”

Arte de Chris Rallis

Jin-Gitaxias gesticula mais uma vez. Lâminas emergem das juntas


da máquina de guerra. Outro gesto e elas começam a girar. O
coração de Teferi fica pesado. Muitas de suas montarias não vão
sobreviver a isso. Mas valerá a pena se o resto puder sobreviver –
haverá tempo para lamentar seus velhos amigos mais tarde.
Teferi desvia do golpe de um centurião que se aproxima.
Lâminas, tentáculos e farpas ficam lentos enquanto ele abre
caminho através do corpo a corpo em direção à máquina de guerra.
Embora a destreza de Zhalfir seja lendária, isso é algo que só ele
pode fazer. Respirando fundo, ele coloca a mão na parte plana das
lâminas giratórias.
Por um precioso segundo elas param.
É o suficiente.
“Você não vai ferir Teferi!” uma mulher grita. Teferi olha para
cima para vê-la: uma dos membros do próprio clã de guerra, um
enorme martelo de guerra erguido bem alto sobre sua cabeça
enquanto ela voa na direção de Jin-Gitaxias. Quando ela o abaixa, o
147
vidro da máquina de guerra se quebra. Líquido fedorento jorra,
banhando Teferi com sua imundície. Novas roupas serão um
pequeno preço a pagar para ver Jin-Gitaxias cair por sua própria
criação. Ainda menor quando suas próprias criações começam a
comê-lo.
Teferi limpa o rosto.
Ele olha para trás em direção à Árvore de Invasão. Koth está
supervisionando o portal. A maioria deles já cruzou para Zhalfir –
mas alguns persistem. Koth, Chandra e Karn permanecem. E a
julgar pelas bordas irregulares do portal, não restará muito tempo
para retornar.
É hora de chamar a retirada; os clãs de guerra já fizeram o
suficiente aqui. Teferi sinaliza para os bateristas. O ritmo vital sob
os pés deles muda para algo muito mais austero.
Zhalfir sabe o que isso significa. Para que o todo prospere, os
indivíduos devem ser mantidos seguros. Nova Phyrexia está
desaparecendo, mas isso não significa que os mirranianos devam
desaparecer junto com ela. Enquanto viverem, podem forjar um
novo lar.
“Abram caminho para os mirranianos!” vem o grito do líder
guerreiro.
Phyrexia não os deixa sair facilmente. Os zhalfirianos na frente
rebatem todos os golpes que podem enquanto a retaguarda do
exército recua pelo portal. A cada passo que dão, eles deixam
dezenas de phyrexianos mortos para trás. Há zhalfirianos entre os
mortos, mas eles são tratados com reverência. Há aqueles entre o
exército cujo único trabalho é fazer com que esses corpos voltem
para casa – os ligeiros Altali que ziguezagueiam entre os
emaranhados na confusão, vestidos de branco brilhante. Os
zhalfirianos se separam ao ver seus uniformes para permitir que eles
passem.
No momento em que Teferi volta para a plataforma, quase todos
já se adiantaram. Ele pode ver sua casa esperando para recebê-lo do
outro lado – e ele também consegue ver Wrenn, projetando-se da
superfície da árvore. Sua velha amiga tornou-se uma delicada estátua
de cinzas. Muito pouco de sua casca permanece intacta. Teferi
engole em seco ao vê-lo. Quando ele olha para os exércitos mais
uma vez, o pensamento está alto em sua mente: nada disso teria

148
acontecido sem a intervenção dela. Deve haver algo que ele possa
fazer para ajudar.
E ali, enquanto a estuda, ele pode ver: uma semente escondida
nas cinzas.
Vai crescer forte como ela fez em Zhalfir.
Enquanto ele a pega das cinzas cuidadosamente, Koth grita atrás
dele. “Eu começaria a sair, se fosse você.”
Teferi embolsa a semente e se vira. Ele balança a cabeça. “Eu
corri uma vez antes que meu Plano estivesse seguro. Nunca mais.”
Seus olhos caem sobre seu velho amigo, Karn – ainda vivo, embora
dilacerado pela experimentação phyrexiana. Teferi coloca a mão no
ombro de Karn enquanto olha para Koth. “Vá em frente.”
Mas o jovem é tão teimoso quanto o metal que pontilha sua pele.
Ele não vai a lugar nenhum. E talvez seja melhor assim: quando uma
lança de cobre dispara em direção a Chandra, é Koth quem levanta
um escudo para protegê-los. Estranho. Não é típico de Chandra
deixar algo assim acontecer. Ela usava qualquer desculpa que podia
para derreter as coisas. Quando o escudo afunda de volta ao chão, a
imagem fica mais clara.
Nissa está do outro lado. “Você arruinou tudo.”
“Você está fora de si…” Chandra começa.
“Não há tempo,” Koth diz. “Atravesse o portal.”
“Não. Eu não vou embora sem ela. Ela ainda está lá, eu sei que
ela está.” Nissa arremessa outra pedra contra eles, forçando Chandra
a explodi-la. Ela dá um passo à frente de Koth e abre os braços para
Nissa. “Se você quiser me matar, estou aqui. Mas eu sei que você
não vai.”
Teferi morde o lábio. O otimismo de Chandra não conhece
limites – mas pode matá-la aqui.
“Ela vai ficar bem.” É Karn quem fala do lado de Teferi.
“Elspeth está cuidando deles. Posso pedir um favor, Teferi?”
Como que para pontuar o ponto, um flash de luz anuncia a
chegada de Elspeth. Um segundo depois, ela enfia o pomo de sua
espada dourada na nuca de Nissa. A elfa cai como uma pedra de sua
armadura e do céu.
E Chandra, claro, está lá para pegá-la.
“Claro, velho amigo,” Teferi diz. “O que posso fazer?”

149
“Me dê mais um momento,” Karn diz. Há um tom vacilante em
sua voz, um que Teferi nunca ouviu antes. “Eu quero sair deste lugar
com minhas próprias forças.”
Teferi dificilmente negaria isso a ele. Enquanto assiste, Karn
forma para si um novo corpo, construindo-o camada por camada.
No horizonte, Norn está dilacerada pela maior parte de seu
próprio exército. Ela não está mais alta e orgulhosa acima dos outros
novos phyrexianos, pois eles arrancaram suas pernas. Uma
abominação sem pele está rastejando na direção deles. Até mesmo
seu capacete foi quebrado, mas ela ainda se força para frente.
Arranhando pelos campos de mortos, ela tenta alcançar o portal.
“Não temos muito tempo,” diz Teferi.
“Não, não temos,” concorda Karn. Ele flexiona sua nova mão –
uma coisa grosseiramente esculpida sem nenhum de seus talentos
artísticos habituais. “Você deveria ir embora.”
“E você?”
Karn olha para Norn. “Há algo que precisa ser feito. Vá. Diga
aos outros que não vamos demorar.”
Karn se sente pesado.
Não é um sentimento novo. No sentido mais objetivo, como um
golem, ele sempre foi mais pesado do que qualquer coisa ao seu
redor. Nos subjetivos, muitas vezes as coisas não têm sido muito
melhores. Desde a morte de Urza, Karn sentiu-se pesado todos os
dias de uma forma ou de outra. Alguns dias, o peso do Multiverso
empalidecia em comparação com o que ele sentia. E alguns dias o
que ele sente é o peso do Multiverso.
Este é um destes dias. Observando Elesh Norn rastejar em
direção à plataforma, ele está mais consciente do que nunca dos
fardos que escolheu carregar. Mirrodin foi sua criação. Tudo o que
aconteceu é culpa dele. O que começou como simples ignorância de
sua própria composição – trazendo óleo brilhante para Mirrodin –
evoluiu para uma ignorância deliberada de seus fracassos. Por muito
tempo, ele condenou este lugar ao esquecimento. Depois que
Venser deu sua vida para salvar a de Karn, a melhor coisa a fazer
parecia ser vivê-la em expiação. Naquela época, ele pensou que
deveria haver alguma maneira de consertar Mirrodin – alguma
maneira de desfazer todos os seus erros.
Ele entende de forma diferente agora.

150
Karn olha para Teferi. O mago está radiante com a magia,
esforçando-se para manter o portal aberto. Depois de séculos de
luta, Teferi finalmente corrigiu os erros de sua juventude.
O mesmo para Elspeth. Todo aquele tempo fugindo de Phyrexia,
todo aquele tempo tentando encontrar um novo lar em outro lugar,
e aqui estava ela há apenas alguns momentos resplandecente na
retidão de seu novo caminho.
Você não pode fugir de seus erros. Você tem que corrigi-los. Isso
começa com o confronto com seus erros.
Karn dá um passo à frente. Na dilatação da bolha do tempo de
Teferi, o guincho de Norn é o zurro estrondoso de um chifre de
guerra invisível. O que resta dela é lamentável e pequeno. Se ele for
embora agora, ela pode muito bem morrer devido aos ferimentos.
Mas ele não poderia ter certeza disso. E se Norn viver, sua
ambição também viverá.
Muitos anos atrás, Karn jurou nunca prejudicar os vivos. Ele
tinha visto os horrores da guerra e não queria fazer parte deles. A
primeira invasão phyrexiana mudou isso, mas essas decisões nunca
se encaixaram bem em seu núcleo. Que direito ele tinha de acabar
com a vida de outra pessoa? Ele, cuja vida era tão artificial? Ele
detestava isso. Ele sempre detestou. Sempre que possível ele tentou
encontrar outras soluções.
Não há outras soluções para um mal tão pernicioso como este.
Para salvar a vida de muitos, deve ser completamente
exterminado.
Quão pesada é essa consciência.
Karn põe a mão no que resta da cabeça de Norn.
Formar algo é uma satisfação – um quebra-cabeça que o agrada
como poucas coisas. A interação de engrenagens e eixos conectados
é tão requintada para ele quanto qualquer música. A música, ele
descobriu, é como construir uma máquina: cada peça de uma
orquestra deve funcionar em relação e em conjunto com seus
companheiros. Um maestro supervisiona os processos tanto quanto
um engenheiro supervisiona sua criação. Na música e na criação há
unidade.
Na destruição só pode haver solidão.
Ele detesta isso. Enquanto sua magia atua no corpo de Norn,
arrancando a porcelana do arame, ele sente uma aversão bestial. Ele
quer desviar o olhar. Ele quer parar.
151
A violência, mesmo a serviço do bem maior, nunca deve ser
praticada facilmente.

Arte de Scott Murphy

Ele se obriga a olhar. A assistir o metal se desintegrar. Ele grava


a visão do cadáver de Norn em sua memória.
Ele poderia ter pedido a Teferi. Ele poderia ter pedido a Koth.
Certamente, ele poderia ter pedido a Elspeth. Mas ele está cansado
de ver os outros resolvendo seus problemas para ele, e pedir a eles
que o fizessem seria o mesmo que ela se matasse no final. Esta é a
menor maneira que ele pode assumir a responsabilidade.
Quando acaba – quando Elesh Norn é uma mancha vermelha
contra a plataforma branca – Karn caminha até o portão.
Teferi recua e o tempo recomeça. Preocupação obscurece sua
expressão quando ele vê a carnificina.
“Vamos,” Karn diz.
É outro peso para suportar, outro peso sobre ele.
Mas é o primeiro passo para um futuro mais leve.
Zhalfir dá-lhe as boas vindas.

152
EPISÓDIO 10: OS RITMOS DA VIDA

Em Kamigawa, um menino volta para casa coberto pela poeira


dos destroços de uma cidade. Quando chega, ele se comporta de
maneira diferente – não tinha mais a inocência de olhos arregalados
de uma criança. As coisas mudaram.
Sua mãe mudou.
O pai do menino sabe disso no momento em que ouve a voz
dela, no momento em que a vê. Seu corpo se foi, substituído por
uma série de caracteres que brilham no tempo com uma respiração
ilusória. Um espírito que paira diante dele, segurando a mão do seu
filho.
E, no entanto, é inconfundivelmente ela.
Um pai pode desejar muitas coisas. Um menino também. Mas o
único desejo que eles compartilham é que sua família possa
permanecer unida.
O destino tirou muito deles – mas não tirou esse desejo.
O pai abraça sua família. A mãe volta para casa. E o menino fica
cansado, mas feliz, no meio de tudo aquilo.
Em Kaldheim, um elfo está na amurada de um navio confiscado.
Ele observa o mar agitado diante dele e conta os minutos. Quanto
tempo se passou desde que ele viu seu irmão?
Ele conta até cem. Até duzentos.
Quanto tempo se passou desde que a serpente o arrastou para
baixo?
Duzentos e cinquenta.
A luta ao redor deles chegou a uma parada milagrosa. Em todos
os lugares há aplausos estridentes, em todos os lugares há música,

153
em todos os lugares seus companheiros celebram uma batalha
duramente vencida.
No entanto, Harald só tem ouvidos para o mar.
Trezentos.
Quanto tempo vai demorar até que ele desista?
Quanto tempo levaria até que Tyvar desistisse dele?
Harald nunca precisa responder à pergunta. Na contagem de
trezentos e treze, Tyvar Kell irrompe da água agarrando-se à cabeça
inchada da serpente. Sorrindo como sempre, ele bate em sua
superfície. “Está vendo, irmão? Você nunca vai superar isso!”
Harald não costuma vibrar quando se depara com uma
ostentação que ele não consegue igualar – mas hoje ele abrirá uma
exceção.
Em Kaladesh, uma mãe se prepara para a morte. Que esperança
ela tem de qualquer outra coisa acontecer? Sua única arma é um
pedaço de metal afiado que ela recuperou dos destroços em seu
avião. Cercada por soldados phyrexianos em uma plataforma acima
do reservatório do fluxo de éter, ela não tem para onde ir. O
zumbido de uma lâmina de metal anuncia seu fim – mas se ela
conseguir pelo menos empurrá-los para fora da plataforma
enquanto cai, talvez fique segura por mais algum tempo.
Ela respira fundo. Dá um passo. Prepara-se para a dor do
impacto – até que o zumbido para.
Soldados desmoronam como pilhas de galhos, seus membros de
metal caindo da plataforma.
A esperança floresce no peito de Pia. Por toda Ghirapur ocorre
a mesma coisa: os phyrexianos estão caindo. Alguns paralisam,
alguns desmoronam. Os já completados caem no chão como se
estivessem em um sono profundo. À distância, o navio de guerra
deles está caindo do céu.
Eles venceram.
Pia Nalaar não tem certeza do mecanismo daquilo. Ela não sabe
como tudo isso está acontecendo, embora suspeite que Saheeli a
contará mais tarde. O que ela sabe — e o que sempre soube — é
que pode confiar na filha para fazer as coisas.
Naquela plataforma acima do reservatório, Pia murmura um
agradecimento a Chandra.
Você pode dizer muito com um tambor. Um ritmo conta a
história das últimas novidades do mercado; outro a chegada de um
154
novo membro da família; um terceiro anuncia o falecimento de um
ancião. Quando você se comunica dessa maneira, ele se propaga a
uma grande distância. O tamboreiro de outra comunidade pode
ouvi-lo e levar a notícia ao seu próprio povo, com um floreio para
dizer de onde veio. Por séculos, os zhalfirianos sabem disso: tudo o
que eles falam com as palmas das mãos contra o couro esticado logo
ressoará pelo Plano.
E neste dia a mensagem é simples: Alegrem-se.
Em todos os lugares, os tambores chamam; em todos os lugares,
o ritmo enche o peito dos zhalfirianos e conta a eles o motivo de
sua alegria. Phyrexia está quebrada e derrotada além do alcance do
tempo. O próprio Zhalfir encontrou um novo lar entre os planos,
um lugar onde eles podem mais uma vez entreter os visitantes.
Visitantes como seu próprio filho errante, Teferi.
Teferi também pode ouvir os tambores. É difícil não sorrir
quando ele sorri. Para ele, já se passaram centenas de anos –
centenas de anos em que ele poderia ter esquecido a linguagem
rítmica de casa. Que alívio estar em uma colina gramada e entendê-
la perfeitamente. Cada batida o diz que ele pertence a este lugar.
E, nos outros dias, ele pode sentir que essa é verdade. Na maioria
dos dias.
Hoje a história é mais complicada. Pois enquanto o povo de
Zhalfir celebra sua vitória, Teferi lamenta suas perdas.
Demorou quase dois dias para encontrar o local perfeito para
Wrenn. Enquanto procurava, tentou imaginar que tipo de coisas ela
gostaria. Ela preferiria crescer entre os antigos baobás, protegida por
esses gigantescos caramanchões? Que tal afiya – seriam elas mais
falantes, já que eram tantas? Ela admirava a natureza ereta e
inabalável da amarula ou estava mais interessada no flexível e
místico teixo? Zhalfir tinha tudo isso e muito mais. Qual é a
homenagem mais adequada para a mulher que salvou o Multiverso?
No meio do segundo dia, ele percebeu que tinha feito tudo da
maneira errada. O truque era não se perguntar sobre os detalhes da
coisa.
Com a semente na mão, ele pensou em sua amiga e caminhou até
sentir que estava certo.
Então, ele acabou aqui nesta colina gramada com vista para a
cidade. Alguns carvalhos estão próximos, ele pensa, e daqui ela

155
poderá ver todo tipo de coisas na aldeia. E, quando crescer, pode
optar por se mudar para onde quiser. Zhalfir irá recebê-la.
Teferi cava. A terra é quente, o solo escuro e rico. Ele coloca a
semente na pequena clareira que fez e depois a preenche. Ele oferece
água de sua própria cabaça. Ele se senta ao lado do pequeno monte
e suspira.

Arte de Gaboleps

“Eu acho que você gostaria disso,” ele diz. “Digo, da música.”
O monte não diz nada.
“Eu deveria me juntar a eles. Você está certa. Mas eu queria ter
certeza de que você estava bem primeiro.”
Na aldeia, surgiram os flautistas. Eles também começam a dançar
em volta das fogueiras. Ele os observa por um momento: os jovens
com mais vigor do que habilidade, os casais que se agarram um ao
outro com graça fácil, os mirranianos que não conhecem os passos
e as crianças que os ensinam. Considerando tudo, é uma bela vista.
“Eu esperei algumas centenas de anos. Mais alguns minutos não
farão mal a ninguém. E eu queria te agradecer, mais uma vez, por
tudo que você fez. É…” Ele passa a mão pela nuca. “Por favor, não
entenda mal, eu sou grato, mais grato do que nunca. Mas é difícil
perder outro amigo.”
Quando ele procura os rostos ao redor do fogo, muitos deles são
familiares. Durante um tempo, ele conheceu todos nesta aldeia: suas

156
mães, seus pais, quem fazia a melhor comida e quais comidas eram
melhor serem servidas às escondidas para o gado.
Ele viveu por anos sem eles. Séculos. No entanto, para eles, ele
se foi há pouco tempo. Existem pontes que seus compatriotas nunca
poderão cruzar com ele, coisas que eles nunca poderão entender.
Mas a família raramente se entende completamente.
Este lugar – é um lar, e não é. É uma casa que ele precisa
conhecer novamente.
Eles são amigos que ele precisa fazer novamente.
Após a guerra contra Phyrexia, isso parece uma tarefa impossível.
Teferi joga a cabeça para trás. “Eu sei que os outros estão aqui,”
ele diz. “E… eu sei, eu deveria ir falar com eles. Ver como eles
estão.”
Apenas os tambores respondem. Ele fecha os olhos. Por um
longo tempo ele não os abre. Em vez disso, ele coloca a palma da
mão contra a terra e deseja realmente senti-la. Perceber como ainda
está um pouco úmida, como ela se sente quando alguém escava, a
elasticidade macia da terra embaixo. Ao longe, ele pode ouvir
risadas. Alguém, provavelmente um dos mirranianos, está
perguntando como se toca flauta. Segundos depois, uma nota
estridente sacode a todos – mais risadas se seguem. O crepitar de
um fogo, o vento contra sua pele, o ar fresco do luar como beber
água fresca… todos os seus erros corrigidos.
Há uma pontada de dor nos cantos de seus olhos, uma pressão.
Por um momento, ele se permite chorar. Lágrimas por ele e seus
anos perdidos, lágrimas por Karn e seu passado perdido, por Nissa
e Ajani e todos os outros que podem nunca mais acordar agora que
Phyrexia caiu.
E, acima de tudo, há lágrimas por aqueles que não podem se
juntar à dança junto ao fogo.
Quando ele termina, é a calada da noite. A lua paira bem alto. A
dança deu lugar à troca de histórias, algo que ele não consegue mais
ouvir de onde está. Os zhalfirianos ouvem enquanto um dos
mirranianos fala. O fogo pinta sua pele esverdeada de ouro, mas o
olhar em seus olhos é distante e dolorido. Eles o chamavam de
Thrun. Ele pergunta por Melira todos os dias desde o fim da guerra.
Todos eles pagarão o preço por sua liberdade nos próximos anos.
Teferi incluído. Ele tem que ir ver os outros.

157
Ele dá outro tapinha reverente no monte de terra. “Obrigado
pela companhia,” ele diz. “Da próxima vez, vou trazer o resto dos
nossos amigos.”
Assim que ele se levanta, não demora muito para chegar ao seu
destino. Aqui na ala dos curandeiros não há dança. Não tem como
haver. Em todos os seus dias de menino, a enfermaria nunca esteve
tão cheia como agora. Camas se espalham pelos arredores, galhos
moldados para segurar os enfermos. Curandeiros se movem de um
lado para o outro como abelhas dentro de uma colmeia. Aqui, os
lamentos dos moribundos fornecem um canto fúnebre para
contrariar o ritmo alegre.
Teferi não desvia o olhar de nada disso. Os resultados desta
guerra demoraram a chegar. Se ele os ignorar agora, prestará um
desserviço a todos aqueles que fizeram dela uma guerra que
poderiam vencer. Enquanto procura por seus amigos, ele reserva
um tempo para visitar alguns dos feridos e desejar-lhes boa sorte.
Aqui e ali, quando sabe de algo que possa ajudar, ele auxilia os
curandeiros em seus deveres.
Eventualmente, ele abre caminho para a própria estrutura
principal. Karn, Koth e os outros são fáceis de localizar ali dentro:
eles estão isolados em sua própria seção. Hoje à noite, seus novos
sóis brilham sobre eles, mas pela manhã o toldo acima será fechado
e eles estarão na sombra fresca. Ele se pergunta como Karn se sente
sobre esse tipo de coisa, se faz alguma diferença para ele de qualquer
maneira.
“…não é um conto de fadas. Você tem que parar de resistir.”
Ah… aquela voz. Kaya. Ela deve ter chegado enquanto ele estava
fora. Ao virar a esquina para entrar no recinto, ele se prepara para o
pior.
“Tem um jeito. Eu só sei que tem. Tudo o que temos a fazer é
encontrá-lo, certo? E ela não está piorando, então não vejo
problema.”
“E se ela acordar?”
O ar na sala está tenso como a corda de um arco quando Teferi
entra. De repente, ele pode sentir os olhos deles sobre ele: Karn,
Koth, Chandra e agora Kaya. Mas há outros na sala também. Nissa
e Ajani estão deitados em suas próprias camas. Chandra está
segurando a mão de Nissa — ela não se moveu desde que eles
voltaram de Nova Phyrexia. Koth e Karn trabalharam com os
158
curandeiros para remover o máximo possível de metal phyrexiano
dela — mas pelo jeito ela estava resistindo um pouco. Ajani, ao lado
dela, é uma visão mais recente. Eles ainda não tiraram nada dele.
Além de sua respiração e o tremor ocasional de seus olhos, eles
estão imóveis. Entre eles – e com alguma ajuda de Saheeli, durante
sua breve visita – eles acham que entendem o porquê. Wrenn trocou
os lugares de Nova Phyrexia e Zhalfir no Multiverso. Isso significa
que Nova Phyrexia está em algum lugar que nada pode alcançar.

Arte de Anato Finnstark

“Suponha que você seja Nova Phyrexia. Você planeja completar


milhares de pessoas em pouco tempo. Qual é a melhor maneira de
manter contato com eles?” Saheeli havia perguntado a eles.
“Algum tipo de sinal,” respondeu Kaya. “Um chamado que só
eles podem ouvir.”
Saheeli assentiu. “Exatamente. Mas o que você usará para
carregar seu sinal? O que unifica todos os phyrexianos?”
“Óleo?” arriscou Chandra.
“Isso mesmo. Talvez seja por isso que eles são tão empenhados
em espalhá-lo – para amplificar qualquer sinal que eles estavam
espalhando. Agora que Phyrexia deixou o Multiverso, eles saíram do
alcance. O óleo continua ouvindo novas ordens mas não está
recebendo nenhuma. Por quê? Bem, há uma série de respostas
possíveis, todas dignas de estudo. No entanto, na minha opinião de
especialista, acho que tudo estava ligado a Norn. Uma
159
megalomaníaca daquela escala não ia querer que qualquer pessoa
tivesse controle sobre seu exército. Imagino que ela seja a única que
conseguia enviar ordens – e, ainda mais, que o óleo ficaria inerte
sem ela. Não gostaria que um rival assumisse o controle quando
você perdesse o contato, certo? Então, sem ela…”
“Eles podem ficar dormindo para sempre,” disse Koth.
“Ou eles podem acordar,” disse Chandra, que parecia tentar
convencer a si mesma antes de mais nada. “O melhor a fazer é
esperar.”
Isso foi dias atrás. Saheeli havia partido há muito tempo para
Kaladesh novamente. O resto deles? Eles continuaram a esperar.
Claro, nem todo mundo teve a sorte de escapar com vida em
animação suspensa. Melira também está aqui. Teferi acena para ela
ao entrar, mas ela mal tem forças para cumprimentá-lo. Os
curandeiros fizeram o possível para esconder o cheiro de podridão,
mas não há como errar. A ferida no peito dela piorou. E, a julgar
pela viscosidade de sua pele e pelo olhar vítreo em seus olhos, ela
não tem muito tempo. Koth está ao lado dela.
Teferi sente uma pontada de raiva de todos eles, discutindo sobre
algo que pode esperar quando Melira está neste estado. Felizmente,
eles pararam quando ele entrou. “Podemos discutir isso mais tarde,
Kaya,” ele diz. Ele pega uma tigela pequena e serve água fresca para
Melira. Isso ele entrega a Koth, que a ajuda a beber. “Por esta noite,
vamos ser gratos por estarmos todos aqui inteiros.”
“Certo,” diz Kaya. “Desculpe.”
“A guerra deixou todos nós nervosos,” diz Koth. “E eu não
posso dizer que você está errado, nós temos que decidir o que fazer
com eles. Mas talvez… talvez não esta noite.”
“Você tem alguma boa notícia?” Chandra pergunta. Tão típico
dela – rápida para se enfurecer, mas tão rápida para perdoar e
esquecer.
“Algumas,” Kaya diz. “As coisas estão começando a se
estabilizar. Em todos os lugares que estive, as pessoas estão
começando a recuperar o fôlego. Liliana está bem. Vivien também.
Tyvar vai se gabar de ter matado uma serpente marinha phyrexiana
muito tempo após todos nós estarmos mortos. Kaito está ajudando
a Errante com esforços para a reconstrução de Kamigawa. Ainda
nenhum sinal de Jace, ou Vraska, mas não conto com nada em
nenhum desses casos.”
160
A conversa deles começa a partir daí. Chandra tem cerca de mil
perguntas a fazer e apenas espaço para dez; Kaya está feliz o
suficiente para responder a qualquer coisa que surja como uma
oferta de paz.
Mas essa é a conversa deles. Notícias de Planos distantes
provavelmente significam pouco para Melira, que passou toda a sua
vida confinada em Nova Phyrexia. “Existe alguma coisa que eu
possa pegar para você?” ele pergunta a ela.
Para sua surpresa, ela oferece um sorriso fraco. “Sabe, é
engraçado.”
“Já me disseram que sou muito engraçado,” ele responde. Koth
está o encarando por isso, mas Teferi sabe como o sorriso é
importante para os doentes — e ela ri um pouco.
“Mais ou menos, de um certo jeito,” diz Melira. “Eu estava
esperando que você viesse. Eu tenho um pedido.”
Teferi pega a mão dela. “O que quer que eu possa fazer para
ajudar, basta dizer.”
Melira vira a cabeça, movendo-se tão lentamente quanto um
cata-vento emperrado. Seus olhos vidrados pousam em Karn.
“Você poderia chamá-lo também?”
Não há necessidade. Karn pode ouvi-los bem o suficiente e ele
avança pesadamente. Ocorre a Teferi que eles podem ser as pessoas
mais infelizes de Zhalfir no momento. Uma espessa nuvem de culpa
fecha suas gargantas e queima seus olhos. Tudo o que eles podem
fazer é oferecer companhia um ao outro.
Pelo menos até Melira quebrar o silêncio. Embora faladas em voz
baixa, as palavras são brilhantes e claras como um raio. “Acho…
acho que tenho uma ideia para consertar os dois.”
Koth franze a testa. “Eles se foram, Melira.”
“Não totalmente. Se seus corações estiverem intocados, eu posso
conseguir alguma coisa. O sinal está morto, certo? Então, se
pudermos limpar seus corpos, eles devem ficar bem.” “Em teoria,”
Karn diz. Teferi sempre admirou como alguém tão grande quanto
seu velho amigo podia falar em voz baixa. “Embora os meios de
fazer isso tenham escapado de nós.”
“É exatamente isso,” ela diz. “Temos as peças bem aqui, elas
estão todas juntas.” Ela faz uma pausa. Teferi não tem certeza se é
porque ela está refletindo sobre sua proposta ou porque está cansada
demais para continuar falando. Antes que ele possa oferecer a ela
161
um pouco de paz para pensar sobre as coisas, ela continua. “Se
vamos fazer isso, temos que fazer logo. Acho que não tenho muito
mais tempo. Não vai ser fácil, e haverá um preço. Mas… eu quero
que as pessoas tenham esperança de que isso pode acontecer. E
talvez daqui a alguns anos alguém descubra uma maneira mais fácil
de fazer isso. Uma que não vai precisar de mim, ou de Karn. As
pessoas precisam dessa esperança.”
Teferi abaixa a cabeça. À distância, ele pode ouvir os tambores,
anunciando a todos que quiserem ouvir que Zhalfir os receberá.
Alegrem-se, eles dizem. Comemore que você sobreviveu.
Nem todos eles. Melira não sobreviverá à noite.
Mas se eles puderem salvar Nissa e Ajani… talvez valha a pena
tentar. Talvez eles possam apagar um pouco dessa doença.
“Vamos ouvir o plano,” Teferi diz.
“Aí está você. Você tem tempo para conversar?”
Koth não está acostumado com a forma celestial de Elspeth, mas
tem um pouco de fé que a mulher por dentro seja a mesma. Só um
pouco. Uma mulher em pé no topo de uma árvore, equilibrada em
um único pé, observando seus arredores em perfeita imobilidade,
dificilmente pode ser considerada humana. Elspeth Tirel nunca
olhou para ele com olhos tão claros antes.
“Koth. É bom te ver,” ela diz. Embora ela esteja no topo da
árvore e ele na base, ele a ouve perfeitamente. “Sempre há tempo
para conversar, se falar é o que é necessário. Dê-me um momento.”
Ela desce da árvore, flutuando como uma pena na frente dele.
Enquanto os tambores continuam, eles se dirigem para uma área
gramada. Koth não consegue se lembrar da última vez que viu tantas
plantas em um só lugar. Talvez nunca. Tudo aqui parece macio e
delicado, como se estivesse sob a ameaça de seus pés, mas ele tenta
não pensar nisso. Este lugar não é Mirrodin. Nunca pode ser
Mirrodin. O Mirrodin pelo qual ele lutou está tão morto quanto
Elesh Norn.
Mas isso é parte do que ele quer falar com Elspeth. Assim que
eles estão fora do alcance, ele respira fundo. Onde começar? Ele
poderia perguntar como ela se tornou… isso. Agradecer a ela por
voltar a um lugar como Mirrodin sabendo que poderia matá-la. Eles
podem falar sobre o que aconteceu lá, naqueles momentos finais, ou
podem falar sobre o que está acontecendo na ala dos curandeiros

162
agora. Normalmente ele saberia exatamente por onde começar –
mas aqui, é coisa demais.
“Você quer um conselho,” Elspeth diz.
Ele sente um sorriso puxando seus lábios. “Não esperava que
você começasse deses jeito. Sim. Preciso de um conselho.”
Ela não sorri de volta, embora haja uma certa suavidade em suas
feições. “Esta forma tem suas bênçãos. O que está incomodando
você?”
“Você sabe sobre o plano de Melira?” Ele pergunta. Ele não tem
certeza de até onde essas novas bênçãos se estendem.
“Não. Mas sei que ela não vai ficar conosco por muito mais
tempo,” ela diz. Elspeth olha para os sóis acima deles. “Eu vou
sentir muito a perda dela.”
Estranho – a tristeza toca sua voz, mas apenas ligeiramente, e
nunca atinge seu rosto. Quando ele conheceu Elspeth, ela chorava
com frequência. Vê-la tão serena agora… Koth está orgulhoso, mas
parte dele se preocupa com ela. Quando tudo isso acabar, o que
restará daqueles que lutaram por Mirrodin? Elspeth é um anjo agora,
a resistência sobrevive ensanguentada e quebrada, Melira está
prestes a morrer e Karn…
O que eles farão com Melira, depois? Ela será a primeira deles a
morrer aqui. Entre os vulshok, os corpos eram queimados e as
cinzas espalhadas. Mas quais eram as tradições daqui? Os
zhalfirianos iriam querer que ela fosse enterrada sob esta terra macia,
para que as raízes pudessem reivindicar seus ossos e os vermes se
alimentarem da sua carne? Eles podem dizer que é uma honra voltar
à natureza, mas Koth pensa o contrário.
Melira é de Mirrodin. Eles vão dar a ela uma despedida adequada.
Quando chegar a hora.
Ele aperta os olhos fechados. “Ela quer tentar curar os outros.
Ajani e a elfa.”
“Devo a Ajani minha vida e muito mais,” Elspeth diz com um
aceno de cabeça.
“Fazer isso vai matá-la,” Koth diz. “E também Karn vai queimar
o que sobrou da centelha de Venser. Eles planejaram tudo.”
Ele não se importa em discutir se Ajani merece redenção;
Phyrexia distorce aqueles que toca. Mas há uma amargura em seu
coração quando ele considera que Ajani pode sair dessa situação
com a oportunidade de considerar suas ações. Tantos mirranianos
163
não terão a mesma oportunidade. E ninguém lutou para trazer de
volta os corpos de seus irmãos completados – apenas os corpos dos
mortos. Por que Ajani e Nissa estão tendo uma segunda chance na
vida quando tantos de seus companheiros não tiveram?
É uma coisa difícil de engolir. Ainda mais quando os zhalfirianos
foram sempre gentis com eles. Refeições frescas cozidas todas as
noites; casas novas e coloridas para cada um deles, e muitas visitas
para evitar o silêncio; roupas novas e novos amigos. Difícil pedir
algo mais do que isso. Mirrodin está morto, mas os mirranianos
podem viver, graças a Zhalfir e seu povo. Ele é grato a eles – mais
grato do que ele se lembra em qualquer momento da sua vida.
Mas Ajani e Nissa merecem essa mesma misericórdia?
As sobrancelhas de Elspeth se aproximam uma da outra. “Hmm.
Como isso vai funcionar?”
O fato de ela não perguntar sobre Melira ou Karn o perturba. Ele
não consegue manter o tom de sua voz quando responde.
“Primeiro, ela vai vacinar seus corpos contra novas infecções. Isso
é padrão. Mas então Karn vai puxar suas centelhas. E usar a centelha
de Venser para… filtrá-las de alguma forma. Alguma teoria que
Venser tinha antes de tudo acontecer. Quando ele as puxar para
fora, Melira limpará as centelhas, e então Karn irá colocá-las de
volta.”
A coisa toda parece arriscada – ainda mais quando Elspeth não
responde imediatamente. O silêncio apenas o deixa contemplar
todas as maneiras pelas quais as coisas podem dar errado. Ele passa
a mão na nuca, o metal áspero é uma âncora bem-vinda para a
realidade. O resto aqui era muito macio, muito suave, até mesmo o
tecido da roupa que eles lhe emprestaram. As pessoas aqui eram
gentis, valentes e atenciosas – mas nunca conheceriam o sofrimento
do mesmo jeito que ele. Que essa aspereza sempre o lembre disso.
“Você está com medo,” Elspeth diz.
Parte dele quer discutir o ponto – uma grande parte, berrando
dentro de seu peito. Mas ele sabe que ela está certa. “Você não?”
Ela olha para os sóis novamente. “Não.”
“Ela vai morrer.”
“De uma maneira que ela mesma escolheu,” Elspeth responde.
“Uma vez, você me disse que lutaria por Mirrodin mesmo que não
restasse nenhum Mirrodin. Você ficou, sabendo que poderia
morrer, e não me deixou escolha. Você era meu amigo, e eu deixei
164
Mirrodin pensando que você havia sido dilacerado por phyrexianos.
Por anos esse pensamento me doeu.”
Koth olha para baixo.
“Eu não sinto mais aquela dor. Mas a lição permaneceu: todos
nós escolhemos como enfrentar nosso fim, e algumas causas valem
o preço de uma vida. Melira está disposta a pagar esse preço em
nome de outros. Há grande coragem nisso,” ela diz. Elspeth põe as
mãos nos ombros dele. “Ela mesma está fazendo essa escolha – e
para o benefício dos outros. Ela estará entre amigos.”
“Mas o que fazemos depois?” Koth diz. Por fim, parece que ele
chegou à verdade. “O que vamos fazer aqui?”
Elspeth permanece serena – mas ela oferece a ele um sorriso.
“Você vai tentar fazer deste lugar um lar. Ele irá recebê-lo, se você
permitir.”
“Não tenho mais certeza se sei como fazer isso,” ele diz. “E eu
não acho que seja tão simples.”
“Muitas coisas não são. Mas isso não significa que não vale a pena
tentar.”
Ela o puxa para um abraço – e ele se vê caindo contra ela,
tentando entender a cacofonia em sua cabeça. Elspeth pode ser
difícil às vezes, mas isso é algo totalmente novo. Ele não tem certeza
do quanto ela o está ouvindo. Este lugar não é a casa dele. Sua casa
se foi, para sempre, e ela é apenas…
Ele odeia o quanto o abraço ajuda. Palavras não significam
muito, mas, pelo menos, ela sabe quando alguém precisa ser
abraçado. “Você… Você mudou, não é?” ele murmura.
“Sim,” vem a resposta simples. “Mas sempre serei sua amiga,
Koth. Se precisar de mim, tudo o que precisa fazer é rezar.” Ele a
sente apertando-o com mais força e ouve o bater de suas asas. Ela
está o levando para algum lugar. A ironia o atinge como um martelo
no peito. Anos atrás, ele a enterrou no chão para mandá-la para
outro lugar. Ele não queria que ela tivesse escolha. Hoje à noite, ela
o levanta no ar para fazer a escolha por ele.
O vento açoita sua pele. “Isso não é um adeus.”
“Não, não comigo,” diz ela. “Mas você deve um adeus a alguém.”
Seus pés tocam o chão novamente. Ela o deixou na frente da ala
dos curandeiros. A terra traz consigo o peso do que acontecerá em
breve.

165
Não é a terra dele. A terra aqui é macia e elástica, cedendo
facilmente a ele. Nada aqui é metal, exceto as coisas que os próprios
zhalfirianos fizeram – e mesmo assim, eles preferem osso e vidro
onde os vulshoks usariam aço.
Nada neste lugar é como seu lar. Ele não enxerga como poderia
ser. Talvez Elspeth possa, de sua posição aclamada, mas aqui no
chão…
“Obrigado,” ele grita para Elspeth. Por mais que sua mente ainda
fosse uma avalanche, ela, pelo menos, tentou ajudar.
“Sempre,” ela diz.
Sempre. Tão fácil para ela dizer. Ela pode ser imortal agora – ela
tem toda a eternidade para se sentir em casa. Mas ele?
Koth cruza os braços. Ele observa Elspeth alçar voo sob os sóis
de Mirrodin. Ele também observa os sóis, enquanto eles se movem
através de um novo firmamento. Saheeli, a cientista, disse que
provavelmente foi uma consequência não intencional da
sobreposição dos Planos.
Uma consequência não intencional, assim como ele e os outros
mirranianos.
Ele respira fundo. Isso não será fácil. Mas enquanto esses sóis
estiverem no céu, ele pode enfrentar.
Este lugar não é minha casa. Mas há um pouco de casa nele.
“Vamos fazer isso lá fora. Eu quero… eu quero estar lá fora,
quando isso acontecer.”
Diante de tudo o que estão prestes a fazer, o pedido de Melira é
simples. Teferi e os outros prometeram honrá-lo.
Foram para fora: Teferi, Karn, Koth, Chandra, Kaya e Melira. As
noites aqui são mais quentes do que os dias em alguns outros Planos,
mas não é um tipo de calor desagradável. Não, quando eles saem
para a grama balançando, cada um deles curiosamente sente como
se estivesse entrando na casa de alguém.
A primeira ordem do dia é espalhar cobertores para Nissa e Ajani
se deitarem. Em seguida, colocá-los no chão. A luz do sol empresta
a seus implantes phyrexianos um brilho dourado.
“Você tem certeza que isso vai funcionar?” Kaya pergunta.
“Não saberemos até tentarmos,” diz Chandra, afastando as
mechas de cabelo do rosto de Nissa. “E vale a pena tentar.”
O silêncio, então, que preocupa Teferi se tornará outra discussão.

166
No final, Kaya acena com a cabeça. “Certo. Bem… ajudarei no
que puder.”
Ele está grato por ela não iluminar todas as maneiras pelas quais
aquilo pode dar errado. São muitos, e há muitas coisas a fazer. Para
que isso funcione, todos devem trabalhar em harmonia – assim
como os tambores das diferentes comunidades.
Seu trabalho é, em certo sentido, o mais fácil, e ele perderá o
mínimo nesse processo. Parte dele quase se ressente disso. Não, esse
é o pensamento de um imaturo, além de bastante egoísta. Ele fará o
bem fazendo o certo.
No momento, fazer o bem significa formar uma pequena bolha
ao redor deles. Não vai durar muito. Olhando para os outros, ele
pergunta se eles estão prontos.
Koth coloca Melira entre Ajani e Nissa. Com os olhos fechados,
ela assente.
Karn assume seu lugar sendo o mais alto de todos. Seus ombros
sobem e descem com a respiração desnecessária. É difícil não sorrir
um pouco por ele assumir tais características humanas – mas este
não é o momento para sorrir. Karn perderá quase tanto quanto
Melira naquilo. Se ele está nervoso, é natural. “Estou disposto a
tentar.”
“Tudo certo,” diz Teferi. “Eu não vou ser capaz de manter isso
por muito tempo.”
Ele inspira. A vibração suave dos tambores enche seus pulmões
tanto quanto o ar. A magia zumbe dentro dele. Seu corpo ainda dói
devido aos esforços da guerra, mas ele não vacilará quando seus
amigos precisarem dele. Nunca mais.
De repente, o ar se distorce ao redor deles. A grama chicoteante
desacelera até quase parar. Além da esfera invisível de poder, o
mundo exterior continua – mas aqui dentro eles têm apenas o
espaço entre duas batidas de tambor para salvar seus amigos.
Karn age primeiro. Dirigindo sua mão para as porções de metal
de seus corpos, ele puxa alguma coisa, algo brilhante e intenso. Os
ouvidos de Teferi zumbiam enquanto a magia de Karn crescia
dentro dele, como um motor ganhando força. Ou seria hesitação?
O que ele está prestes a fazer o mudará para sempre. De certa forma,
ele está se despedindo de um velho amigo para salvar dois novos.
Não é de admirar que haja tanta angústia nele.

167
Teferi luta contra as ondas do tempo. Karn fará a escolha certa
aqui, ele sabe disso.
Luz irradia de dentro das placas do golem de prata, uma luz tão
pálida e brilhante quanto a da lua. Karn fecha os olhos. “Juntos,
Venser,” ele diz, quieto de uma forma que só ele consegue ser.
Um estrondo trovejante ameaça atrapalhar a concentração de
Teferi, mas ele se mantém firme. Ele passa e os dois orbes que Karn
estava segurando se foram. Melira toma as mãos de seus
companheiros. Ela também começa a brilhar – um brilho que se
espalha por Nissa e Ajani. Seu rosto se contrai em concentração.
Primeiro, o leonino.
Cada segundo que não passa é um gancho na alma de Teferi. Ele
resmunga enquanto se esforça para manter o tempo parado por
tempo suficiente para Melira concluir seu trabalho. Enquanto ele
observa, o brilho ondula por Ajani. Onde passa, ele deixa a pele mais
brilhante e remove o brilho sinistro que Phyrexia imprimiu neles. O
metal que resta é quase tão puro quanto a prata lunar.
Mas isso é apenas metade do trabalho.
Outro estrondo leva os dois orbes de volta às mãos de Karn –
um inteiro e puro, o outro se desintegrando.
Enquanto Melira volta sua atenção para o orbe de Nissa, o
coração de Teferi fica pesado. Está piscando. Pior do que isso são
as partículas de energia semelhantes a cinzas caindo dele. Teferi está
acostumado a ver as coisas acontecerem em câmera lenta; é como
observar uma folha apodrecendo bem diante de seus olhos. Os
buracos da malha se mostram à medida que a luz passa por eles.
“Eu não consigo retardar isso!” Teferi grita.
“Rápido!” diz Melira.
Kaya ajuda Melira a se levantar, para que ela alcance os orbes.
Com um único toque, um halo de luz ondula deles.
Está quase na hora, quase.
Energia violeta envolve Kaya. Ela também dirige suas mãos para
as esferas de luz. Acompanhada de Karn, eles os enviam de volta
para seus respectivos anfitriões.
Teferi desfaz seu feitiço — e cai de joelhos. Suor escorre de sua
testa. Os tambores voltam trazendo notícias que ele está cansado
demais para acompanhar. Tudo o que ele pode fazer é voltar sua
atenção para os outros e esperar que os sacrifícios que fizeram
tenham valido a pena.
168
Sua resposta vem quando o olho bom de Ajani se abre, quando
a respiração retorna ao peito cheio de cicatrizes. Apesar de seus
ferimentos, ele se força a se sentar. “O que… Onde estou?”

Arte de Viko Menezes

“Zhalfir,” diz Kaya.


“Zhalfir? Isso é impossível,” ele diz – mas quanto mais ele olha
em volta, mais ele parece perceber que é a verdade. Mas o cansaço
também o domina. Ele cai de volta no chão. “Teferi… Vou
parabenizá-lo depois. Acho que meu corpo precisa descansar.”
Ele está dormindo antes que Teferi possa dizer muito mais – e é
melhor. Deixe-o ter alguns momentos de paz antes que o horror do
que ele fez caia sobre ele.
Karn cai, uma mão em seu grande peito. As luzes dentro dele
diminuíram; apenas o fantasma delas permanece, uma imagem
residual vermelha e violeta.
“Você está bem?” Teferi pergunta.
“É… eu me sinto mais sozinho,” diz Karn. “Vou sentir falta dele,
mas vou ficar bem.”
Koth tem menos certeza. Ele se ajoelha ao lado de Melira e a
puxa para seu colo. Ela caiu tão rápido quanto Teferi. A
preocupação em sua testa é fácil de ler, assim como a tristeza que o
obriga a fechar os olhos. “Ela se foi.”
Kaya põe a mão em seu ombro.

169
Lágrimas correm por seu rosto, mas Koth não as esconde, nem
esconde quanta dor ele está sentindo. Teferi sabe exatamente o tipo
de dor que o está guiando agora. Não é apenas a morte de Melira. É
de todos, sentida ao mesmo tempo – todos os seus amigos,
companheiros… quase todo mundo que ele conheceu. Se foi.
Teferi se levanta. Ele e Karn jogam um braço em volta de Koth
enquanto as lágrimas tomam conta. Não há palavras suficientes em
momentos como estes. O único consolo deles é que o ferimento de
Melira não a incomoda mais – que ela não deve mais viver com
medo. Mas dizer isso seria pouco consolo para Koth, então Teferi
morde a língua. A companhia terá que servir. O luto é um fardo
terrível para carregar sozinho.
No entanto, o ar está carregado de tristeza. Ao lado deles,
Chandra sacode Nissa, a ansiedade queimando mais quente a cada
segundo.
“O que aconteceu? Por que ela ainda não acordou? O
tremeluzir…”
“Alguma coisa deu errado,” Teferi diz. Ele engole em seco. “Não
tenho certeza se ela está…”
Talvez fosse esperar demais. Trazer alguém de volta da
phyresis… nem mesmo Urza tinha descoberto isso. Quem eram eles
para tentar? Não ter outras opções não significava que eles teriam
sucesso. Você pode dedicar toda a sua vida a um ofício e nunca ser
reconhecido por isso. Você pode passar cada minuto trabalhando
para promover uma causa e nunca vê-la se concretizar. Querer tanto
algo que chega até a te fazer mal, não significa que você tenha direito
a ele.
Mas às vezes…
“Chandra…?”
Às vezes, vai valer a pena.
Vale a pena estar vivo aqui em Zhalfir. Vale a pena estar cercado
por velhos amigos e pela comunidade mais antiga – famílias antigas
e novas.
Vale a pena deixar o passado, enfim, para trás. Para construir um
novo futuro.
E vale a pena ver isso acontecer para os outros.
Ver a tensão no rosto de Chandra se desmanchar em pura
felicidade, vê-la puxar Nissa para perto e ver Nissa agarrá-la, ouvir
os soluços felizes junto com os de desespero…
170
Isto é a vida. É por isso que todos eles lutaram. Pelo que Melira
morreu, por que Karn desistiu de sua centelha, por que Teferi
passou centenas de anos tentando restaurar seu lar.
Por isto.
“Estou aqui,” Chandra diz. Ela pressiona seus lábios nos de
Nissa. “Estou aqui e não vou a lugar nenhum.”
Ótimo, pensa Teferi.
Ele também não vai a lugar nenhum por um tempo.

171
HISTÓRIAS PARALELAS

172
ARCAVIOS: UM CORAÇÃO
RADIANTE
Evelyn Teng

Nos túneis abaixo de Strixhaven, onde residiam as relíquias de


eras passadas, Quintorius disse: "Acredito que estamos perdidos."
Groans atendeu ao seu anúncio.
"É a nossa própria escola", rosnou Rootha, "não podemos nos
perder . Deve ser um tiro certeiro dos dormitórios até o Biblioplex!"
"Pense nisso como uma prática para quando estivermos no
Biblioplex e procurando a Invocação dos Fundadores", disse Dina.
"Lembre-me, quantas expedições foram formadas para resgatar
alunos perdidos? Cerca de cem?" As pragas em sua bolsa de ombro
guincharam e se contorceram, e ela deu um tapa na lateral para
silenciá-las.
Da parte de trás do grupo, Zimone disse: “Eu me pergunto se a
invocação realmente retardará a invasão phyrexiana, como o
professor Vess disse.”
A cabeça de Killian estalou para cima. "Melhor achar tarde do
que nunca. Meu pai pode ajudar. Ele estava no Biblioplex quando a
invasão começou."
Quint abanou as orelhas, mas segurou a língua. Ele queria
desesperadamente acreditar que outros professores além de Liliana
haviam escapado do estrangulamento phyrexiano - que havia outros
que não haviam sido ultrapassados e forjados na inteligência
phyrexiana - mas na escuridão empoeirada e iluminada por
lanternas, com tendões vermelhos serpenteando pelas paredes e
sombras fedendo a óleo preto, a esperança era tênue. A invasão
queimou as defesas de Strixhaven. Com seus professores capturados
e finalizados, era difícil acreditar que a escola pudesse repelir seu
ataque. Os dormitórios ainda estavam de pé, os alunos protegidos
173
pelo professor Vess e um exército de mortos-vivos – mas ela não
poderia durar para sempre.

Arte por Alexey Kruglov


Mas Quint respirou fundo e disse: "Killian está correto. Há
pouco a ganhar com o desespero." Com a lanterna erguida, ele
liderou o caminho pelo túnel. Na verdade, não era muito diferente
de explorar quaisquer outras ruínas, embora as expedições
anteriores não tivessem trazido a ameaça de captura e conclusão.
Foi difícil ir. A devastação causada quando os portais
Phyrexianos romperam o céu e os galhos da Árvore de Invasão
cravados na terra desmoronaram em muitos túneis subterrâneos.
Em alguns lugares, o teto desabou. Os alunos foram forçados a
afastar os escombros para continuar ou voltar atrás e encontrar
novos caminhos.
Descansando ao lado de um galho da Árvore da Invasão depois
de romper um bloqueio particularmente desagradável, Quint avistou
uma estátua atrás de um bloco em ruínas.
"Ah!" Quint disse. "Eu deveria ter considerado isso antes."
"Considerado o quê?" Killian perguntou.
Quint se agachou ao lado da estátua e traçou sigilos de ouro
branco no ar, para conjurar, invocar e regenerar. “Quem melhor
para nos guiar do que os primeiros professores de Strixhaven?
Os sigilos tremeram quando o feitiço de Quint pegou. Poeira e
seixos giravam em torno da figura de pedra, um redemoinho em
miniatura que se tornava cada vez mais sólido. Pedra branca
brilhante acrescida de poeira. Membros esticados através do
174
redemoinho; olhos luminosos piscaram enquanto o espírito do
professor se incorporava à sua estátua.
O espírito olhou em volta, fez uma careta e disse: "Strixhaven
está em declínio desde a minha época."
"Quase como se estivéssemos sendo invadidos ativamente",
disse Dina.
O espírito do professor olhou para ela. Antes que pudesse
expressar desagrado, Quint disse: "Sinto muito pela inconveniência,
professor..."
" Dean , obrigado. Dean Herrian Segundo de..."
"Por favor," Quint interrompeu com uma exclamação de
desaprovação, "estamos com pressa. Você sabe o caminho para o
Biblioplex? Estamos um tanto... hum..."
"Perdido", disse Rootha.
"Perdido!" Dean Herrian gritou. "Como você pode estar perdido
?" Carrancudo, Killian retrucou: "É uma longa história e não temos
tempo para explicar."
"Eu deveria dizer que não! Como você pode se perder quando
está sob o Biblioplex?" Os olhos de Quint se arregalaram. Então, em
uníssono, os alunos olharam para o galho da Árvore da Invasão,
revestido na carapaça e pulsando com um calor nauseante, e o
buraco por onde havia mergulhado.
“Eu preferiria que estivéssemos perdidos de novo,” Zimone
murmurou.
E Dina, sorrindo, perguntou: "Quem vai primeiro?"

Nunca mais escalarei uma estrutura sem equipamento expedicionário ,


pensou Quint enquanto subia. Quatro pares de mãos agarraram seu
casaco; quatro costas se curvaram e o ergueram para fora do buraco
no chão do Biblioplex. Ele não era o único cansado de perder o
controle e escorregar.
Um olhar, e ele desejou poder afundar de volta.
Seu adorável e luminoso centro de aprendizado se foi. Portais de
bordas vermelhas se contorciam acima e sangravam luz vermelha e
sem vida. Os galhos da Árvore de Invasão cortam o ar e as paredes,
interrompendo as estruturas existentes. E aqui havia mais tendões
vermelhos, invadindo os móveis em colunas nodosas, de mãos
dadas com pratos de porcelana segmentados como colunas
vertebrais. Parecia alimentar-se das próprias paredes, entorpecendo-
175
as, absorvendo tudo o que dava brilho ao Biblioplex e cuspindo óleo
negro e mais gavinhas de si mesmo.
Nenhum deles falou. O ar parecia tão denso que sufocava as
palavras em suas gargantas. E ainda assim a luz dançava por perto,
de alguma forma, não a vermelhidão de Phyrexia, mas partículas
como poeira através de um raio de sol, azul pálido e frágil. Sem
pensar, Quint pegou um mote. . .e seus olhos se arregalaram quando
o cisco pareceu derreter em sua pele. Uma sensação de quietude e
descoberta nascente paira sobre ele.
A invocação deve parecer nova , disse a professora Liliana. Deve emitir
traços de si mesmo. . .que tipo, eu não sei. Mas Strixhaven se originou com a
Invocação dos Fundadores, e o feitiço buscará se opor a qualquer invasão.
Encontre-o. Lance-o. Ajude-o a expulsar Phyrexia de nossa escola.
Quint olhou para seus colegas. Mais ciscos flutuaram ao redor
deles, e suas expressões também brilharam com a mesma
compreensão. Esses eram vestígios da invocação, despertados e
lutando contra a escuridão phyrexiana.
Avante , pensou Quint, e seguiu as luzes dançantes.
Embora o Biblioplex parecesse deserto, a presença dos portais
sufocava o desejo de Quint de falar e tornava seus pensamentos
cinzentos de incerteza. O que era estranho, ele pensou enquanto
avançava lentamente por um corredor forrado de livros e cheio de
músculos. Os próprios galhos da Árvore da Invasão zumbiam; o ar
pulsava com o pulsar do coração da expansão maligna. No entanto,
o Biblioplex iluminado de vermelho lembrava a Quint um sepulcro.
Mesmo as ruínas que ele estudou pareciam mais vivas.
Então, rastejando nos calcanhares de Rootha, com Dina, Zimone
e Killian atrás, Quint olhou para cima — e quase pulou. Outro
aluno, um anão de cabelos escuros em Lorehold vermelho e branco,
olhou para eles de cima de uma estante, com os olhos arregalados e
ainda muito incompleto. A respiração deles estremeceu nos lábios
exangues de pavor, mal ondulando o ranço.
O aluno capturou o olhar de Quint, e seus olhos se encheram de
alívio. "Ajude-me", eles sussurraram.
Como se a voz do aluno fosse uma pedra atirada e o Biblioplex
um lago, o tendão vermelho ondulava .
Algo se enrolou na estante e prendeu a perna do aluno. Eles
tiveram tempo para um grito aterrorizado antes que a coisa os
chicoteasse por uma passagem escura - e Quint vislumbrou uma
176
figura coberta por penas brilhantes como aço e garras afiadas. Onde
deveriam estar a língua e o bico, havia uma teia de filamentos de
metal que se espalhava.
"Não!" Quint gritou, incapaz de se conter.
Imediatamente Killian agarrou seu ombro em advertência e
Rootha colocou a mão sobre sua boca, mas seu grito correu pelo
tendão vermelho com a mesma ondulação terrível e crescente. A
cabeça de Dean Shaile girou abruptamente.
Eles nem falaram. Eles apenas correram.
O Biblioplex uivou ao redor deles com uma voz que fez Quint
querer arrancar suas orelhas. As próprias sombras pareciam agarrá-
lo com dedos vermelho-sangue. Descendo os caminhos labirínticos
- passando por prateleiras monstruosas com carapaça e quitina -
sobre fossos escuros, fedorentos, com veios de óleo preto - não mais
silenciosos, pois o silêncio se foi, e o que os perseguia agora era
medo e fúria. As bordas da visão de Quint deslizaram com muitos
membros e proporções muito distorcidas para serem reconhecidas.
A magia brilhou: rajadas verde-escuras quando Dina arrancou a vida
das pragas em sua bolsa e arremessou trechos traiçoeiros e
escorregadios de musgo para trás; Os cílios de tinta de Killian que
prenderam os membros de seus perseguidores; Rootha girando para
lançar pontas de gelo afiadas como agulhas ou rajadas de fogo.
Zimone ofegou enquanto tentava acompanhá-la, e Quint a puxou o
mais gentilmente possível. Eles correram,
"Eles estão diminuindo a velocidade", ofegou Rootha, e a
esperança tomou conta de Quint. Eles estavam quase em um átrio,
onde poderiam mergulhar em uma das dezenas de salões
ramificados e perder a perseguição...
Pena, metal e boca de teia flutuavam acima. Antes que Quint
pudesse reagir, Dean Shaile mergulhou. Suas garras engancharam no
colarinho de Killian, e então ela estava saindo do mergulho, Killian
se debatendo em seu aperto e Dina e Zimone agarrando seus pés,
tentando puxá-lo de volta. Dean Shaile simplesmente bateu as asas
e subiu mais alto. A teia de sua boca se enroscou no crânio de Killian
e tentou rastejar sob suas pálpebras, fechadas de horror.
"Onde está seu pai?" Dean Shaile perguntou, e a teia pulsou
suavemente, quase amorosamente, ao redor da cabeça de Killian.
Branco e preto brilharam ao longo de suas mãos, mas quaisquer que

177
fossem os feitiços que ele estava tentando lançar, fracassaram a
centímetros de seus dedos.
Quint tremeu. Ele viu muito claramente o destino que aguardava
Killian, fétido com metal e óleo. Ele não podia deixar isso acontecer.
Com a voz alta e rachada, ele resmungou: "Não sabemos. E como
é Dean Lu que você quer, não deveria perder seu tempo com Killian.
Você não precisa dele. Ele não será benéfico para você. Para —para
Phyrexia."
A boca de teia de Dean Shaile se abriu por um segundo,
mostrando o rosto pálido e apavorado de Killian, depois se fechou
novamente. "Embora eu preferisse o ancião Lu em vez de sua
progênie inferior, você está enganado. Killian não está
desperdiçando meu tempo. Todos são bem-vindos no melhor e
puro Multiverso de Phyrexia."
Quint gritou e estendeu a mão para Killian, fútil, distante, mesmo
quando Dean Shaile gritou em triunfo e mais professores
Phyrexianizados rolaram em direção a eles em uma terrível maré
brilhante—
Então alguém sussurrou: " Você se deixou vulnerável ", e Quint
cambaleou quando, em um turbilhão de ondas negras como tinta,
Dean Embrose Lu pousou ao lado deles. A boca de teia de Dean
Shaile se contorceu ; ela cuspiu Killian no chão e se lançou contra
Embrose enquanto os outros professores saltavam - e o turbilhão
explodiu para fora, passando por cima de Quint e seus colegas com
a leveza de pedaços de seda - mas onde eles tocaram os professores,
a carne borbulhou e o metal rachou ou derreteu .
Os gritos de raiva e dor dos professores ecoaram pelo Biblioplex
enquanto a tinta os envolvia.
" Pai, atrás de você! " Killian gritou. Ele cambaleou ereto, tinta
derramando de suas mãos e avançando em direção a Dean Shaile,
que disparou uma flecha nas costas de Embrose.
Em seguida, outra curva de preto derrubou Killian de lado - e um
segundo depois, um membro de foice perfurou a tempestade,
cortando onde a cabeça de Killian estava apenas um momento atrás.
" Você é muito mais fraco do que imagina ", cuspiu Embrose. As
estantes balançaram para trás, os livros se abriram enquanto as
palavras e a sabedoria de cem mil escritores se soltavam e voavam
ao comando de Embrose. Flechas e dardos perfuraram alguns dos
professores atacantes; mortalhas do material enxameavam sobre
178
outras, sufocando-as; ainda mais tinta brilhou para cima para rasgar
os filamentos da boca de Dean Shaile. O antigo corujal caiu—
Um pedaço de escuridão bateu na boca de Killian enquanto ele
invocava outra barra de tinta. Enquanto o agarrava, Embrose disse:
"Corra, Killian."
Os olhos de Killian brilharam; ele rasgou a tinta de lado. "Eu
posso ajudar!"
"Sim. Você também me distrairia."
Dina retrucou, "Se você não conseguiu parar Phyrexia antes, o
que te faz pensar que pode derrotá-los agora?"
O olhar de Embrose se voltou para Killian - e para a surpresa de
Quint, ele captou uma leve hesitação na expressão normalmente
estóica do reitor.
"Não preciso me explicar", disse Embrose. "Agora vá ."
E sem aviso, cílios pretos chicotearam os torsos dos alunos e os
lançaram por um buraco em uma fração de segundo na terrível
tempestade de tinta. Dean Shaile girou em direção a eles, mas outra
rajada de tinta rasgou suas asas, e com um grito ela voltou a se
concentrar em Embrose, uma sombra esculpida em forma humana.
A tinta os despejou sem cerimônia várias fileiras de distância.
Quint ficou de pé quando Killian saltou, com fogo em seus olhos -
e Dina agarrou seu braço.
"Solte!"
"Você vai morrer", ela disse categoricamente, e as pragas em sua
bolsa trinaram como se concordassem.
Os olhos de Killian se estreitaram. "Eu não posso deixar meu pai
ser levado por Phyrexia."
"Certo, desculpe, você não vai morrer. Você só vai desejar ter
morrido." Então, enquanto Killian respirava fundo, Dina
acrescentou: "O que é mais importante, jogar sua vida fora aqui ou
encontrar a invocação?"
Quint pensou na tinta de amarração. Embora soubesse que isso
machucaria Killian, ele disse: "Dina está certa".
"Meu pai poderia ajudar!"
Zimone pegou a mão de Killian, então recuou, como se tivesse
medo de tocá-lo. "Dean Embrose está ajudando."
"Fazendo-se de isca ?"

179
"Dando-nos o tempo e o espaço necessários para encontrar a
invocação. Você saberia melhor, mas... ele se sacrificaria se não
acreditasse que você teria sucesso?"
A mandíbula de Killian se apertou, e Quint viu Rootha ficar
tenso, pronto para contê-lo — então ele assentiu, apenas uma vez.
Mas enquanto eles avançavam, Quint captou flashes de magia
branca – palavras para fortalecer e apoiar – voando das pontas dos
dedos de Killian na direção de seu pai.

Os sons da batalha diminuíram conforme eles avançavam pelo


Biblioplex. Para Quint, o silêncio parecia mais denso agora, como
se os punisse por falarem, mesmo que brevemente. Mesmo as luzes
flutuantes da invocação enfraqueceram às vezes, forçando-os a
procurar até encontrarem outro amontoado de ciscos. O único
consolo, se assim se pode chamar, era que Embrose atraíra a atenção
dos professores. Os corredores agora estavam limpos - principalmente
limpos.
Quint parou no meio do caminho. Uma forma metálica pendia
do arco no final do corredor. Os cinco alunos trocaram olhares.
Então, sem falar, eles escolheram outro caminho.
Infelizmente, ficou claro que o professor de cabeça para baixo
não foi o único a se abster de lutar contra Embrose. O Biblioplex
sussurrou com deslizar e estalou com metal contra pisos de pedra.
Duas vezes - três vezes - quatro - mais vezes do que Quint poderia
contar - eles se arrastaram atrás de estantes ou se enfiaram em
alcovas enquanto os professores passavam, os olhos varrendo as
sombras e prateleiras. Formas estranhas, membros quebrando e
dobrando de maneiras que deveriam incapacitar, mas de alguma
forma não o fizeram. Quint sabia que essas aparições o perseguiriam
para sempre.
Quanto do Biblioplex já pesquisamos? Quint se perguntou, tentando
se lembrar do layout enquanto se espremia atrás de uma coluna de
tendão vermelho. O Biblioplex era vasto e complicado. Mesmo o
professor Vess, planinauta e estudioso, ainda não havia explorado
toda a sua extensão. Ainda assim, pensar nos caminhos labirínticos
era melhor do que ouvir o professor se arrastando por perto. O som
de seus pés - não importava quantos agora havia - raspou
diretamente no cérebro de Quint. . .

180
Arte por Dmitry Burmak
O arrastar de pés desapareceu quando o professor se afastou. Do
outro lado do corredor, Quint chamou a atenção de Dina, e ela
assentiu. Era seguro mover-se novamente.
Eles estavam em uma parte totalmente desconhecida do
Biblioplex agora, com poeira espessa em estátuas e livros, e teias de
aranha oleosas entrelaçadas com delicados fios de tendões. Os
alunos tiveram que se dividir para passar pelos caminhos mais
estreitos. Eles se reagruparam - o silêncio vermelho e respiratório
tornava a solidão repugnante - apenas para serem forçados pelos
corredores a divergir mais uma vez. Quint se apegava a esses
momentos juntos, por mais breves que fossem, enquanto as
sombras avermelhadas se aproximavam deles.
Então, quando ele escorregou com Dina entre duas estantes, a
estante à sua direita tremeu, e ele viu longos dedos em forma de
agulha curvando-se por cima. Ele congelou. Um professor
pendurado no lado oposto, esperando – observando. Quint trocou
um olhar com Dina. Ele os localizaria no instante em que
emergissem.
Então ele ouviu um suspiro, em algum lugar à sua direita.
Zimone.
A estante rangeu quando o professor girou...
Quint tropeçou até o final de seu corredor e viu os olhos
aterrorizados de Zimone mal espiando por trás de uma estante na
altura da cintura, e as mãos de Rootha e Killian em seus ombros
puxando-a para trás - viu, em toda a sua glória bizarra e distorcida,
181
o membro em foice professor se esgueirando em sua direção - mas
ele também viu a estátua contra uma parede distante, envolta em
tendões vermelhos. Seus dedos voaram através dos movimentos,
derramando em um segundo um feitiço que normalmente levava
trinta. O espírito da estátua se fundiu em uma nuvem de poeira e
pedra. Lançou a Quint um breve e feroz sorriso, ergueu as mãos
brilhantes e gritou: "Não fale na biblioteca!"
Um grito explodiu no ar.
Com um estrondo rígido e arrebatador, o professor girou e
deslizou em direção à estátua, agora alegremente quebrando todas
as placas da carapaça e despedaçando cada novelo de tendão
vermelho ao seu alcance. Mesmo mortos, ao que parecia, os ex-
professores de Strixhaven não suportaram a intrusão phyrexiana.
Os alunos trocaram o mais breve dos olhares – alívio, terror e
surpresa juntos – então passaram voando pelas costas do professor
phyrexianizado, seus passos obscurecidos pelo fole desafiador da
estátua.
Mais fundo eles cavaram no Biblioplex, sempre mais fundo,
perseguindo os sopros de luz, mas eles não duraram. Quint podia
ver todos vacilando sob o pavor brutal e incessante. Killian
continuou lançando coragem e esperança para os outros, as palavras
brilhando nos olhos de Quint, mas a vermelhidão dos portais de
invasão enfraqueceu a magia branca. Ele tropeçou e mal conseguiu
evitar tropeçar em uma cadeira. Eles estavam no caminho certo - as
partículas pálidas e felpudas brilhavam com mais intensidade - mas
até onde teriam que ir, ele não sabia e não queria imaginar...
Então seus passos vacilaram; os outros alunos diminuíram a
velocidade também. O medo e a fadiga pareciam se desprender dele
como velhas ataduras.
A luz era mais forte aqui: não apenas suportando debilmente a
pesada escuridão phyrexiana, mas jogando-a completamente em
alguns pontos. Bolsões de brilho pendiam entre as estantes e,
quando Quint passava por uma, o frescor do próprio ar era quase
eufórico depois de tanto tempo se arrastando pela escuridão e pela
angústia.
Quase lá.
Revitalizados, eles tiveram que se conter para não correrem
precipitadamente. Eles se moveram de trecho em trecho iluminado,
cada trecho se tornando mais forte, mais amplo, mais brilhante. Para
182
Quint, parecia a luz do sol em ruínas desenterradas ou palavras
antigas copiadas em papel limpo—
Os corredores se abriram, revelando uma plataforma circular
cercada por um fosso. Balançando no centro da plataforma havia
um emaranhado de luz como nenhum feitiço que Quint já tinha
visto - e nenhum tendão vermelho , Quint percebeu com uma emoção.
A plataforma estava limpa. Tinha que ser a invocação. Nenhum
outro feitiço que ele conhecesse poderia desafiar o alcance de
Phyrexia.
Com um movimento de seus braços, Rootha cristalizou a água
em uma ponte gelada instantânea. Eles correram, sem um professor
à vista.
O que era bom, porque conforme Quint se aproximava da
invocação, seu brilho o envolvia em um cobertor macio e
reconfortante, e ele não conseguia pensar em quase nada mais.
O emaranhado não era apenas leve, mas uma confusão
prismática de letras tão deslumbrantes que afastavam totalmente a
penumbra vermelha. As sentenças se repetiam, afundavam e eram
reformadas com novas cláusulas e frases. Palavras isoladas estouram
como bolhas na superfície. Quint se inclinou para a frente,
apertando os olhos para tentar distinguir palavras individuais – e
uma mecha brilhante enrolada em seu pulso. Ele quase pulou de
choque. Ele pensou que as palavras seriam construções intangíveis
de pura magia, mas elas pareciam fios de seda quentes contra sua
pele.
"Está vivo", sussurrou Quint. A invocação pulsou fracamente.
Seus olhos se arregalaram. "Você viu-"
"Ele está respondendo a nós?" Rootha perguntou, e a invocação
pulsou novamente.
"Não apenas respondendo, eu acho." Zimone andou em um
círculo lento ao redor do emaranhado. Pulso, pulso, pulso , foi, no
ritmo de sua fala. "Você ouviu isso?"
Rootha olhou em volta. "Ouvir o que?"
"Exatamente. Nada ."
Nada. Sem gritos, sem guinchos, sem corridas, membros
estalando.
Killian soltou um suspiro lento. "Está nos protegendo da atenção
phyrexiana."

183
Eles ficaram em silêncio. Um pequeno arrepio percorreu Quint.
Assombro ou medo, ele não sabia dizer. A invocação, dissera o
professor Vess, continha o poder dos cinco dragões anciões de
Strixhaven, todos entrelaçados e fundidos para construir a escola e
protegê-la de danos. Até agora, porém, ele não havia percebido que,
para fazer isso, havia se tornado parcialmente vivo .
"Como começamos?" ele perguntou, meio para si mesmo. Era
mais fácil imaginar erguer uma montanha do que lançar o feitiço que
havia construído o próprio Strixhaven.
"Talvez..." Dina começou, mas antes mesmo de terminar, a
invocação se desfez, reorganizando-se em segmentos organizados.
Não um emaranhado, percebeu Quint, mas uma flor de cinco
pétalas, cada pétala uma mistura perfeita de duas cores. As palavras
confusas se transformaram em frases reconhecíveis.
"Cinco dragões anciãos", disse Rootha, tocando uma pétala azul
e vermelha. "Cinco partes do feitiço. Tenho um palpite de que
precisamos seguir o exemplo dos dragões anciões e ler todas as
cinco partes juntas."
Zimone ficou na ponta dos pés para examinar o cerne da
invocação. "Fora também. Você vê essa condicional? Temos que ser
capazes de ver o que estamos afetando."
“Provavelmente não podemos voltar pelo caminho que
entramos”, disse Quint. Até mesmo a ideia de rastejar entre as pilhas
cheias de tendões novamente o fez estremecer.
Os olhos de Dina brilharam. "Há mais de uma maneira de pegar
um pouco de ar fresco. Sempre podemos culpar os phyrexianos."
"Oh, não. Você está planejando algo destrutivo," disse Killian,
então acrescentou, com terrível ênfase, " de novo ."
“Depende da sua definição de 'destrutivo'. Me dê cobertura."
Agachada, Dina puxou pequenos potes de gosma não identificável
de sua bolsa e começou a rabiscar símbolos na plataforma.
Zimone ajoelhou-se ao lado dela. " Entendo . Como você está
alimentando isso?"
"Com minhas pragas."
"Isso não fornecerá energia suficiente."
"A menos que você esteja se voluntariando..."
"Deixe-me acrescentar aos fatores de crescimento." Os dedos de
Zimone, deixando rastros de luz azulada, deslizaram pelos rabiscos
de Dina, salpicando os sigilos verde-lama com manchas de brilho.
184
"Os espaços imaginários entre características físicas discretas
teoricamente se estendem para sempre, da mesma forma que existe
uma infinidade de números entre dígitos discretos. Se aplicarmos a
hipótese de expansão de Thale para transformar o imaginário em real.
. ."
O ar acima do ritual em rápida expansão de Dina e Zimone
cintilou, azul-esverdeado se misturando de uma forma que deveria
ser lamacenta, mas ao invés disso parecia animada. Padrões como
escadas retorcidas entrelaçadas entre símbolos retorcidos como
raízes de salgueiro. A sensação de energia presa e esperando
redobrou.
Então Quint ouviu um movimento .
Ele girou e estendeu a mão, símbolos de um branco quente
atingindo as estátuas e pergaminhos próximos, mas mesmo quando
sete estátuas espirituais se arranharam, o professor saltou das
sombras. Suas garras se estenderam para Quint; seus lados de metal se
abriram, e no centro das costelas escancaradas uma coisa vermelha pulsante
brilhou—
Uma agulha escura passou por Quint e atravessou a coisa de
olhos vermelhos. O professor recuou, as costelas estremecendo, e
uma ponta de gelo gritou do fosso, perfurando sua perna com um
estalo tremendo. Os espíritos de Quint carregaram o professor em
um estrondo de pedra; o professor cambaleou sob o ataque. O
coração de Quint disparou. Eles só tiveram que durar até que
Zimone e Dina completassem seu ritual.
Então as costelas do professor se abriram novamente. Com
outro silvo, Killian jogou tinta no professor - tarde demais. As
costelas cresceram em tiras, rápidas como o pensamento, e cortaram
o espírito de Quint. Três deles se dissolveram; os outros quatro
cambalearam para trás, quase reduzidos a nada.
O fogo trovejou de Rootha quando Quint agarrou a invocação e
implorou para que ela se condensasse. Um único pensamento
passou por sua cabeça: acima de tudo, Phyrexia não deve tomar o coração
de Strixhaven . Ao redor dele ferviam dardos de tinta e gelo crepitante
- nos cantos de seus olhos brilhava o branco do encorajamento e a
chama do fogo - enquanto a invocação enrolava suas pétalas e atava
no diâmetro de uma terrina de sopa, um prato de jantar, uma xícara
de chá, e ele o agarrou e o enfiou no bolso, fora de vista...

185
Então, "Feito!" Diná chorou. Ela virou seu saco de pragas - e o
professor passou por Rootha e Killian, varrendo as pragas para o
lado enquanto avançava para Dina e Zimone. Mas seu pé pousou
no círculo ritual. Um grito rasgou de suas costelas, mas poderia
muito bem ter tentado gritar os sóis do céu. Sua carne estava
derretendo , murchando até virar couro no osso, e o coração de olhos
vermelhos queimava quando o ritual absorvia sua energia vital.
Então Dina gritou.
É muita energia! Quint percebeu quando Killian se arrastou para o
lado dela. Ela se contorceu, o corpo queimando com um fogo verde-
escuro, que irrompeu de seus poros e espirrou todas as estantes
próximas.
A Quint nunca imaginou que o crescimento poderia soar como
a encarnação da violência.
Tábuas polidas se estilhaçaram em galhos afiados como navalhas,
alongando-se tão rapidamente que cortaram os restos do professor
ao meio. Folhas irromperam com sons como lâminas sendo
desembainhadas. Em um piscar de olhos, raízes mais grossas que o
corpo de Quint transformaram o chão em pedrinhas. O trovão da
vida livre afogou os sentidos de Quint quando as estantes
explodiram e se enredaram em uma única árvore acima da
plataforma de invocação - e continuaram crescendo , galhos formando
uma hélice perfeita de degraus e folhas se diluindo no infinito. A
copa da árvore empurrou contra o teto do Biblioplex, parou - e
quebrou. Luz, ar e alvenaria inundaram a plataforma.
A boca de Quint caiu aberta.
Então Dina desabou.
"Nada mal para sobrecarregar, hein, Zimone?" ela ofegou
enquanto Killian e Rootha a ajudavam com expressões
maravilhadas.
O sorriso de Zimone era quieto, mas feroz. "Nada mal. Mas tome
cuidado para não se afastar muito do tronco principal. Teoricamente ,
os galhos se converteram do espaço imaginário para o físico - mas
depois de um certo comprimento, eles se tornam mais imaginários
do que reais."
Dina riu sem fôlego. "E não olhe para baixo."

Finalmente no telhado e desejando não ter olhado para baixo,


Quint apoiou as mãos nos joelhos, resfolegou em seu tronco e
186
pensou: Desta vez - quero dizer - nunca mais escalarei nada sem equipamento
expedicionário . Depois de alguns momentos, ele recuperou o fôlego
para se endireitar e tirar a Invocação dos Fundadores do bolso. Ao
ar livre, suas pétalas se desdobraram, brilharam, cresceram. Atrás
dele veio um som como de cartas embaralhadas quando Zimone
soltou os galhos imaginários e a árvore encolheu para uma altura
plausível.
Killian, ainda apoiando Dina, olhou para a invocação. "Não
podemos ser interrompidos durante o lançamento. Isso pode levar
a qualquer tipo de resultado não intencional. A invocação
provavelmente não criará uma enorme criatura do pântano se isso
acontecer, mas..."
"Sem garantias", Dina cacarejou fracamente.
"Sem interrupções", disse Rootha, "entendeu", e ela contornou a
beirada do telhado. O gelo explodiu em seu rastro, envolvendo o
telhado e umedecendo o céu vermelho e rompido com sua pureza
fria.
Então, com apenas uma leve hesitação, cada um pegou uma
pétala e começou a ler.

Arte por Dmitry Burmak


O choque percorreu Quint. As palavras eram tão prosaicas . A
invocação simplesmente descrevia Strixhaven. Aqui, afirmava a
invocação, o terreno tinha esta consistência; ele se inclinava dessa
maneira e continha esses tipos de pedras. O céu estremeceu
enquanto Zimone definia a maneira como as nuvens se moviam e o
ar vazava ao redor da escola. Rootha contou ao sol como ele aquecia
187
os telhados e gramados da escola e os aquíferos e nascentes para
onde fluir. Dina sorriu enquanto narrava a flora: onde cresceram,
como morreram, a nova vida que alimentaram. Através de tudo isso,
a porção de Killian se enroscou, persuadindo as partes separadas
juntas enquanto suas palavras se elevavam em pilares de luz. Eles
contaram a Strixhaven o que era, e ao contar, não havia espaço para
Phyrexia.
E Strixhaven ouviu. Mesmo esperando, a visão quase fez Quint
gaguejar. Os portais acima se enrugaram enquanto lutavam para
serem descritos fora da realidade, mas eles não podiam resistir mais
do que a água, o vento, o fogo, a terra e a luz. Cinco vozes se
ergueram quando a invocação se aproximava da conclusão, e os
pilares brilharam com mais intensidade—
A parede glacial se despedaçou.
A explosão derrubou Quint de joelhos, e Zimone, Dina e Killian
se jogaram contra o telhado, as mãos ainda segurando suas pétalas,
bocas ainda recitando. Mas Rootha encarou a pessoa parada na beira
do telhado, uma figura elegante, apesar de seu corpo parecer um
coração mecânico gigante.
"Rootha", a figura suspirou. "Você sempre encontrou falhas em
seu trabalho que ninguém mais poderia ver. . .mas de alguma forma,
você perdeu a fraqueza em seu gelo. Estou desapontado."
Não! Quint tentou dizer; mas ele não conseguia emitir um som
sem interromper a invocação.
A voz de Rootha vacilou. "Reitor Nassari?"
Sua pétala escureceu.
Os outros alunos leram freneticamente, tentando compensar
Rootha enquanto ela lançava sinalizador após sinalizador, pico após
pico de gelo, mas Nassari evitou tudo. Palavras duras deslizavam de
seus lábios — crítica sem crítica — e Rootha se encolhia e
empalidecia a cada farpa. A luz no alto diminuiu. A invocação estava
falhando—
Mas Quint sorriu.
Estranho, como ele se sentia animado. Quase como quando
encontrou a cidade perdida de Zantafar. Havia a mesma sensação
de unir o conhecimento perdido do passado com os estudiosos do
futuro.
Nesse caso, ele estava garantindo que Strixhaven tivesse um
futuro.
188
Quint levou um único momento para aproveitar esta escola e a
glória de sua existência. Então ele estendeu a mão e agarrou a pétala
de Rootha.
Os olhos dos outros se arregalaram, mas ele não podia pensar
neles, porque cada fragmento dele estava focado na invocação. Era
impossível falar duas partes ao mesmo tempo. Em vez disso, ele
derramou magia diretamente na pétala de Rootha. A terra era sua
voz; os mares e sóis eram seus ossos; ele alimentou a invocação
apenas com sua vida. Os pilares de luz brilharam mais do que nunca.
Mesmo enquanto sua vida se esvaía na invocação, ele pensou, nunca
vi nada tão magnífico.
Um choque rasgou seu núcleo.
Quint engasgou. A invocação. . .? Não. Esta luz brilhou de dentro
. Quint gritou quando rasgou músculos e ossos em espirais
selvagens. Ele tentou alcançar seus colegas - seus amigos - mas a
invocação rugiu em resposta. As luzes gêmeas chicotearam em uma
dança fervorosa, cortando pedra e aço. Dean Nassari foi
arremessado do telhado; o Biblioplex entortou e quebrou,
desabando enquanto a luz mantinha Quint cativo no ar; as pedras
dos prédios periféricos de Strixhaven se desfizeram como cubos de
açúcar no chá; os portais amassados; os galhos da Árvore da Invasão
se agitaram enquanto o céu tentava se fechar sobre si mesmo. E por
tudo isso, Quint queimou -
Em meio à conflagração, os pensamentos de Quint correram
para Will e Rowan. Seus amigos também. Ele não os via desde o
início da invasão. À medida que a queimação se tornava
insuportável, ele só podia esperar que estivessem bem.

189
Arte por Eelis Kyttanen

A luz engoliu Quint inteiro.

Os alunos de Strixhaven saíram do dormitório para encontrar


não um cerco - não seus ex-professores, prontos para levá-los ao
fim - mas a ruína. Alguns choraram, mas não por muito tempo,
porque o céu ainda estava cheio de portais de invasão tentando
forçar a passagem, e figuras metálicas ainda brilhavam à distância.
Sob as instruções de Liliana, eles construíram todas as defesas que
puderam, cavaram nos escombros, retiraram os sobreviventes e
tentaram identificar quaisquer professores que descobrissem,
enquanto os alunos de Witherbloom cuidavam dos feridos.
"Um esforço pobre, Merrow", disse Liliana, examinando o
conteúdo de um caldeirão. — A poção de restauração do sangue
requer cápsulas de crista negra em pó . Você nem mesmo colheu as
cascas. Está se concentrando demais nos ferimentos óbvios, Frena.
O que é isso? O teorema de Sorlian ? Sério, Rinne? Ela é uma coruja,
não um loxodonte, o teorema de Sorlian dificilmente é aplicável. . ."
Houve um estrondo; então várias vozes gritaram: "Eles estão
aqui embaixo!" Liliana teve que se esforçar para não correr. Foi ela
quem os enviou para encontrar a invocação; ela era a razão pela qual
eles agora estavam feridos, possivelmente mortos. Eles concederam
a Strixhaven esse indulto, ainda que breve. Ela lhes devia sua atenção
e muito mais além. . .

190
Quando ela alcançou os restos do Biblioplex, os alunos que
trabalhavam lá haviam desenterrado os feridos. Apesar de sua
fachada severa, o coração de Liliana batia rápido como um tambor
enquanto ela olhava para Dina, Killian, Zimone e Rootha. Ossos
quebrados, contusões, ferimentos abertos, sem dúvida uma miríade
de infecções interessantes — seria mais rápido considerar os
ferimentos que eles não tinham.
E ela ficou impressionada. Mesmo sangrando de vários cortes,
Killian cambaleava pelos escombros. A tinta rosnou ao redor dele
enquanto ele rasgava a pedra e a carapaça.
Acredite que o filho de Embrose é um estorvo. "Sedate-o", disse
Liliana, e um aluno de Witherbloom desceu com uma poção
ameaçadoramente fumegante.
Mas antes que o aluno pudesse se aproximar da alimentação
forçada, Killian gritou: " Pai! "
Liliana respirou fundo e olhou para o buraco que Killian havia
escavado. Lá estava Embrose, empoeirado e desgrenhado,
ensanguentado e manchado, cercado pelos restos de vários
professores Phyrexianizados – mas vivo, e ele mesmo.
"Bem, Lu", disse Liliana.
"Bem, Vess", ele respondeu, seco e digno como sempre. Sua
atenção se voltou para Killian, parado atordoado na beira do buraco.
"Me ajude."
Liliana chamou outro aluno. "Dar uma mão para-"
"Eu não preciso de ajuda," Embrose interrompeu, mas quando
Killian se abaixou, seu pai agarrou sua mão.
Liliana virou de lado, seu próprio coração torcendo
desconfortavelmente com o olhar no rosto de Killian. Os outros
ainda precisavam de sua atenção, de qualquer maneira. Zimone,
sensatamente, não tentou se levantar, com a perna quebrada e os
olhos vidrados pela sedação. Ainda assim, ela agarrou o braço de
Liliana e resmungou: "Nimiroti. . .você tem que salvá-la. . ."
Com a maior delicadeza possível, Liliana soltou a mão de
Zimone. Ela não podia dispensar ninguém para verificar a avó de
Zimone. E Rootha - um olhar lhe disse mais do que suficiente. A
garota nem estava tentando se mover. Ela simplesmente deitou em
sua maca, quebrada como uma boneca de criança, e olhou fixamente
para o céu.
"Nada mal para os alunos, certo?" Dina resmungou.
191
Liliana olhou para a quarta maca. "Eu sugeriria que você não
poderia ter feito pior ."
Dina deu de ombros, depois estremeceu. Os poucos pedaços de
pele que permaneceram sem sangue apresentavam hematomas
grandes e de aparência dolorosa. "Agora temos muito espaço para
remodelar."
Liliana balançou a cabeça - então se endireitou, olhos arregalados.
"Onde está Quint?"
Uma nuvem passou pelo rosto de Dina. "Não sabemos. Houve
uma explosão de luz e ele simplesmente... desapareceu."
Morto , pensou Liliana; então ela franziu a testa quando as
palavras de Dina ecoaram em sua mente. Morto. . .ou uma faísca?
Kasmina sugeriu que havia uma brasa entre eles, e claramente não é um desses
quatro. Se a faísca de Quint acender, ele ainda pode estar vivo. . .
Dina estava dizendo alguma coisa. Liliana balançou a cabeça. "O
que é que foi isso?"
"Devemos expandir o pântano. Sempre achei que precisava ser
maior."
Liliana olhou para cima. Ela olhou para o céu, o brilho
guerreando com o vermelho sombrio e as cicatrizes pulsantes e
contorcidas de bordas negras que costumavam ser portais de
invasão. Ela olhou para os galhos perfurando o chão, dobrados e
danificados, mas ainda de pé. Ela olhou para os corpos de seus
colegas, alguns esmagados por prédios em colapso, outros com suas
partes de metal arrancadas pela invocação incompleta, e soube que
mais ainda estavam vivos e nunca parariam. Ela olhou para as ruínas
de sua casa, seu santuário, sua pausa interrompida por Phyrexia.
Então ela olhou para os portais como feridas abertas, com os
vermes dos galhos da Árvore da Invasão já rompendo o banimento
incompleto da invocação.
As mãos de Liliana caíram para os lados. Seus dedos se abriram.
A luz se derramou de suas palmas: não a cor de sangue turva se
debatendo acima, ou mesmo o claro brilho que lutou contra ela.
Esta era sua luz, fraca e sombria. Afundou como água no solo. Muito
abaixo, nas ruínas da escola repletas de cadáveres - nas catacumbas
onde os antigos professores apodreceram - abaixo mesmo disso,
onde os ossos de milhares desconhecidos e sem nome vazaram para
o leito rochoso - sua magia encontrou corpos e deu-lhes uma nova
vida.
192
Esqueletos e zumbis irromperam do chão, e os alunos gritaram
e lutaram para sair do caminho. Soquetes vazios arderam com fogo
roxo enquanto o exército de Lilliana se organizava ao redor dos
escombros de Strixhaven em obediência ao seu comando silencioso,
formando uma barreira para conter Phyrexia. Ficaria de pé enquanto
ela tivesse fôlego em seu corpo.
"A remodelação terá que esperar", disse Liliana.

193
IKORIA: A SOBREVIVÊNCIA DO
MAIS FORTE
Roy Graham

Tinha sido um dia difícil. Sua coluna - um nome tão formal para
uma linha de homens, mulheres e crianças imundos e exaustos -
serpenteava entre os pináculos de rocha irregular quebrando a linha
do horizonte, monólitos moldados pelos incêndios e terremotos que
varreram regularmente a superfície de Raugrin até apenas as
criaturas mais resistentes sobreviveram.
Mas eles sobrevivem, pensou Jirina Kudro, caminhando ao lado de
uma das carroças cheias de relíquias de sua vida em Drannith. Antes
da chegada dos invasores. Assim como nós. Como devemos.
Sua própria montaria havia caído quilômetros atrás, com a boca
espumando com uma espuma vermelha, e ela se recusou a pegar
outra. O vidro vulcânico esmagado que revestia o caminho não era
mais bom para as botas de couro do que para os cascos, mas ainda
assim ela andaria. Ela havia pedido muito de seu povo, o povo de
Drannith; se eles pudessem atravessar esta maldita paisagem infernal
a pé, ela também o faria. Jal Korcha, eles chamavam isso. A estrada
do terror.
Era um lugar difícil, e tinha sido um dia difícil, mas em algum
lugar à frente esperavam as paredes grossas e as lanças eriçadas de
Lavabrink, e outra chance para eles. Outra chance de segurar os
portões. Em sobreviver.
Mais adiante na linha, ela avistou o coronel Bryd cavalgando em
direção a ela a trote, fazendo caretas e resmungando a cada salto da
sela.
"Notícias?" disse Jirina, dispensando as formalidades típicas. Ela
não tinha energia.
"General Kudro", disse Bryd, fazendo uma saudação inteligente
que, no entanto, parecia de alguma forma petulante. "De acordo
194
com os relatos de nossos batedores, Lavabrink ainda está a meio dia
de marcha. Estaremos lá ao anoitecer."
Meio dia de marcha. Parecia tão fácil, quando se dizia assim. Se
ela pudesse manter seu povo unido por mais algumas horas, eles
estariam seguros. Ou, pelo menos, eles teriam outra chance de
segurança.
"General", disse Bryd. "Se você me permitir falar o que penso
com mais franqueza do que minha posição poderia..."
"Apenas diga, Bryd. Posso andar por mais algumas horas, mas
você vai me levar ao limite da minha resistência se continuar assim."
Ele se irritou. "Muito bem. Há muitos feridos em nossa coluna,
e muitos doentes. Ambos estão nos atrasando. Talvez seja sensato
enviar um destacamento de soldados à frente, para preparar
Lavabrink para nossa chegada."
"Precisamos de todos os lutadores que pudermos reunir aqui",
disse Jirina. "Os feridos e doentes que você mencionou não serão
capazes de se defender de um ataque por conta própria."
O cavalo de Bryd se arrastou um pouco no lugar. "Desculpe-me,
General, mas se aquela coisa nos alcançar, não haverá luta. Só
matança."
Seus pés doíam. Seus ombros queimavam sob o peso de sua
armadura. "Então é melhor esperarmos que Vivien e seus novos
amigos tenham sucesso em sua caçada."
"Como você pode confiar nela?" Bryd sibilou. "Ela não sabe
nada sobre nosso povo, nada sobre o que sacrificamos ... "
"Suficiente!" cuspiu Jirina, sua paciência no fim. "Já temos
poucos aliados suficientes. Não permitirei que você descarte um dos
nossos mais fortes por causa de uma paranóia infundada!"
Os lábios de Bryd se curvaram. Depois de um longo momento,
ele se virou e agarrou as rédeas, mas antes que pudesse partir, um
grito surgiu de algum lugar atrás deles. O pânico começou a rolar
pela caravana em ondas quando outro som se seguiu: um uivo
terrível e reverberante, como chapa de metal e besta ao mesmo
tempo. Jirina arrancou a espada de sua bainha.
"Casacos de cobre!" ela chamou. "Às armas!"
Para a guerra. Para abate. Para a morte sem fim, sem fim.
Vivien pressionou o ouvido contra o chão e fechou os olhos,
sentindo o cheiro de enxofre, terra, o cheiro de ferro da terra
vulcânica.
195
Lá: impacto, em algum lugar próximo. E então, um longo suspiro
depois, novamente: Thoom. Thom. Como um trovão rastejando sobre
as planícies.
Ela se endireitou e enxugou a bochecha.
Atrás dela, homens e mulheres se destacavam da pouca cobertura
que o capim oferecia no topo de sua pequena colina. Óculos,
máscaras e capuzes os tornavam inexpressivos. A maioria carregava
longas lanças com uma ponta farpada perversa. Alguns tinham arcos
pendurados nos ombros e pequenos frascos de todos os venenos
imagináveis pendurados em bandoleiras. Quando chegasse a hora,
cada flecha seria mergulhada em três agentes separados antes de
embarcar em seu vôo letal. Eles eram assassinos de um, pessoas que
ganhavam a vida indo para a selva e selecionando qualquer coisa que
pudesse ser considerada uma ameaça à humanidade. Não caçadores,
mas exterminadores, e em circunstâncias normais Vivien teria sido
seu inimigo jurado.
Mas agora, eles são apenas mais uma flecha na minha aljava.
"Ele está perto. Dentro de uma milha. Tomem suas posições."
Sem uma palavra, eles se espalharam em um agachamento
cuidadoso, mal fazendo um som, exceto pelo sussurro da grama
contra as roupas escuras. Em um minuto eles se foram, deixando-a
sozinha com o homem que chamavam de líder.
O caçador de monstros mais talentoso de Ikoria não era um
homem particularmente alto, mas seus ombros eram largos e cheios
de músculos. Seu cabelo estava preso atrás de uma testa alta. Aquele
bigode ridículo dele parecia acentuar ainda mais seu sorriso feio.
"Ouça você. Dando ordens como um alto comandante de Drannith.
Você sabe que eles só obedecem porque eu mando, certo?"
Ela o ignorou, os olhos fixos na boca do desfiladeiro adiante.
Daquela distância ela não conseguia perceber as diferenças sutis na
cor da terra, onde eles enterravam suas pequenas surpresas. Isso foi
bom.
Em algum lugar a leste, Jirina e os outros inocentes de Drannith
rastejaram lentamente em direção ao abrigo. Lukka viria buscá-los.
Não importa o quão pouco ela gostasse deste homem, ela e Chevill
eram a única coisa entre aquelas pessoas e sua destruição.
Thom. Lá estava de novo.
Thom.
Thom.
196
"O que há de errado, amante da fera?" zombou Chevill. "Wingcat
comeu sua língua? Ou talvez seja o terror que tomou conta de seu
coração. Não tema, pois o grande Chevill está aqui, e se há uma coisa
que sei fazer é matar monstros."
Ela mal podia ouvi-lo. Toda a sua atenção agora estava voltada
para o desfiladeiro, onde uma dispersão de camundongos-lagartos
emergia, correndo em ziguezagues e zags quase rastreáveis, os
movimentos erráticos e irracionais de uma presa fugindo de um
predador.
Thom.
Logo atrás das criaturinhas vinha um raptor, depois outro, e
outro depois disso, todos correndo perto do chão, com as caudas
esticadas para trás para manter o equilíbrio, movendo-se em linhas
sinuosas e seguras. Alguém poderia pensar que eles estavam
assistindo a uma caçada, se os raptores não tivessem diminuído a
distância e ignorado totalmente os ratos-lagartos. Eles estavam
tentando apenas fugir do cânion. De algum lugar atrás deles veio um
latido profundo e gutural.
Thom.
Da boca do desfiladeiro saiu agora um vantasauro, trinta
toneladas de animal em disparada, uma massa inacreditável de
músculos e vontade de escapar. Na pressa da besta, porém, ela
calculou mal o seu pé; Vivien observou como uma perna colossal
escorregou, perdendo milhares de libras, desequilibrando a
cuidadosa arquitetura do galope do dinossauro. Quase em câmera
lenta, caiu - apenas por um momento. Mas um momento foi longo
o suficiente.
Enquanto o vantasauro lutava para ficar de pé, seu corpo
repentinamente foi jogado para trás. Ele berrou novamente,
gritando, antes que todas as trinta toneladas fossem arrastadas
violentamente para trás, fora de vista.
"O que diabos?" sibilou Chevill, até mesmo sua arrogância parou.
A criatura continuou latindo, os gritos desesperados e
apavorados, até que - com um estalo distante e úmido - eles pararam
abruptamente.
Mais sons se seguiram. Terríveis, impossíveis de localizar -
rasgando, estalando, os sons de comer e de coisas para as quais
Vivien não tinha palavras.

197
"Devíamos estar caçando o Coppercoat. O exílio!" disse Chevill,
não ousando mais falar acima de um sussurro.
Vivien apenas acenou com a cabeça em direção ao desfiladeiro.
"Nós somos."
Em Ikoria, eles chamavam qualquer coisa de monstro. O medo
conduziu esse rótulo; uma civilização criada para odiar e desprezar
as criaturas com quem compartilhavam seu plano. Os animais de
Ikoria eram poderosos e perigosos, ferozes e orgulhosos, mas
Vivien não os chamaria de monstros. Eles não eram nada parecidos
com o que saiu daquele desfiladeiro, sacudindo a terra a cada passo
estrondoso.
Tinha, em sentido amplo, a forma de um homem: dois braços,
embora mais longos e mais finos do que os de um ser humano; duas
pernas, feitas mais grossas para suportar o grande peso de seu vasto
corpo semelhante a uma carcaça. Em seu centro se projetava - não
mais um homem, não exatamente, mas Lukka.
Ela ainda se lembrava da última vez que eles se falaram – foi
Vivien quem o convenceu a ir para Nova Phyrexia com a equipe de
ataque. Ele queria mais do que qualquer coisa voltar para casa como
um herói, ao invés de um traidor, mas ele só teve metade desse
desejo concedido. Lukka pendia de uma teia de carne no centro do
titã, aninhado em seu torso como um coração exposto. A metade
superior de seu corpo que Vivien quase reconheceu, embora
estivesse mutilada por plugues e tomadas e ligada agora com cobre
que se tornara um verde doentio com azinhavre. Abaixo da cintura,
porém, ele estava preso a alguma criatura de metal iridescente,
transformando-o em um horrível centauro.
Sua infinita massa ondulante tinha cem cores; incontáveis
permutações cruzaram sua pele, espinhos afiados e escamas
endurecidas para pêlos eriçados para grandes lavagens de carne nua
rosa e marrom. Na laje elefantina que compunha a perna esquerda
da abominação, ela viu o rosto imóvel e de olhos vidrados do
vantasauro. Vivien assistiu com horror mudo enquanto ele afundava
para trás, deslizando para dentro da carne como um navio sob as
ondas. Ele já tomou Drannith . O lembrete veio a ela e dobrou de volta
seu significado com novo horror. Este era seu eludha agora, sua
ligação, através das lentes distorcidas de Phyrexia.
Ao entrar no vale, a primeira das minas explodiu abaixo da coisa.
Os ratos-lagartos e raptores eram muito leves; os explosivos,
198
plantados uma hora antes, enterrados fundo demais. O vantasaur
pode ter feito isso, pensou Vivien, mas o vantasaur... bem.
A coisa Lukka não fez nenhum som de angústia; não tinha boca
para gritar. Ele caiu para a frente, porém, estendendo um braço para
se segurar. Acertou outra mina. Uma cascata de explosões avançou,
lançando plumas de terra preta no ar.
Ele recuou agora, longe das explosões, e uma rachadura
estrondosa apareceu na planície de inundação em que estava. A
abominação deu um passo à frente - e aquela perna carnuda e
titânica mergulhou, passando pela crosta endurecida, no coração
vulcânico pulsante de Raugrin.
Mesmo daqui, Vivien podia sentir o calor em seu rosto enquanto
o magma borbulhava ao redor da perna da coisa Lukka. As chamas
irromperam mais acima no tronco e a fumaça começou a se espalhar
pelo fundo do vale. O cheiro era horrível além da descrição. Ela
ficou encantada com a visão, o horror e a escala disso, como um
vislumbre do nascimento primordial do avião. Ela quase perdeu
Chevill subindo ao lado dela, colocando as mãos em concha para
gritar "Agora! Nós o pegamos!"
Dos cachos de capim vermelho ao redor da abertura do
desfiladeiro surgiram os caçadores vestidos de preto de Chevill. Eles
dispararam uma nuvem pungente de flechas, salpicando o flanco da
coisa Lukka, as flechas mais próximas da lava explodindo em
pequenas chamas multicoloridas enquanto os venenos queimavam.
De cada lado da monstruosidade, outros arremessaram lanças
farpadas presas a cordas, cravando duas dúzias na carne da terrível
couraça de Lukka. Os caçadores puxavam cada linha ensinada e
então, com movimentos treinados, soltavam longos martelos para
cravar estacas no chão como âncoras.
"Tente a chance!" latiu Chevill.
Vivien já estava puxando a corda do arco. Seu cotovelo subiu, os
músculos poderosos em suas costas e ombros enrijeceram em
movimentos praticados, uma flecha de luz verde translúcida se
formando entre seus dedos indicador e médio. Era um tiro no
escuro, mas ela tinha feito mais.
Vivien soltou. A flecha voou à frente, pura magia, livre do toque
da gravidade. Atravessou o espaço entre ela e a coisa Lukka em um
instante. Pouco antes de pousar no corpo real de Lukka, o
Phyrexiano implantou no centro dessa terrível construção de carne,
199
uma ponta de osso se projetando repentinamente da carne ao seu
redor, pegando o tiro inofensivamente.
Chevill latiu um palavrão. Vivien preparou outro tiro, mas a coisa
já estava se inclinando para a frente, escondendo seu coração de
piloto. Lentamente, então, como um animal despertando do sono,
ele avançou. As dezenas de cordas na lateral da coisa se esticaram,
depois começaram a ceder. Alguns estouraram; para outros, as
lanças rasgaram desordenadamente a carne manchada. Vivien podia
ouvir gritos de pânico dos caçadores no chão. Alguns já estavam se
virando para correr. Outros prepararam segundas farpas, erguendo-
as para outro lançamento. Estes pagaram por sua bravura; com um
movimento de um braço disforme, o gigante os limpou do matagal.
Os que não foram jogados fora como bonecas foram embutidos,
Vivien podia ver, no braço da coisa. Eles gritaram e acenaram
impotentes enquanto afundavam cada vez mais fundo na carne
antes de finalmente desaparecerem.

Arte por Anastasia Balakchina


"Fiquem de pé! Fiquem de pé e lutem, seus bastardos!" Chevill
berrava, mas não adiantava. Os caçadores, se é que podiam ouvi-lo,
estavam loucos de medo agora, correndo sem aparência de
organização, sem pensar em colocar distância entre eles e o monstro
atrás deles. Um tropeçou e se esparramou para a frente,
aparentemente forte o suficiente para acionar um de seus explosivos
enterrados. Ele desapareceu em uma nuvem repentina de fumaça
preta.

200
O ombro de Vivien doía; ainda assim, ela segurou a corda
esticada, esperando por uma abertura. Nenhum veio. Sem se
endireitar de seu palpite, a coisa Lukka começou a se libertar do
poço de lava onde ainda queimava. Se ela se libertasse, eles nunca
teriam outra chance.
Ela respirou fundo e fechou os olhos, abrindo sua mente para os
espíritos dentro do arco. Eles estalaram, berraram e rugiram dentro
da arma, como se estivessem tão desesperados quanto ela para
destruir a abominação. Ela disparou, a corda estalando para frente,
a flecha espectral voando em direção ao seu alvo. Desta vez, a
energia viridiana desenrolou-se, crescendo à medida que se elevava
em direção à coisa Lukka, mudando e multiplicando-se de tamanho.
Uma perna translúcida e fortemente musculosa tocou a terra no
meio da corrida, sem perder nada do impulso da flecha; uma
mandíbula verde fantasmagórica se materializou, já aberta em um
rugido desafiador. O dreadmaw espectral, tão predador na morte
quanto em vida, colidiu com a coisa Lukka com uma força
tremenda.
Por um momento, a abominação pareceu superada. Era maior
que o dreadmaw, mas desajeitado, apenas carne sem nenhum dos
instintos assassinos. A besta meio sólida rosnava, mordia e se
debatia, arrancando grandes pedaços de carne morta. Enquanto
isso, a coisa Lukka agarrou, puxou e abraçou o espírito - tentando,
talvez, absorvê-lo como tinha feito com o vantasauro - mas sem
efeito. Ainda assim, a lava fervia abaixo dela, enviando nuvens
negras pesadas com o fedor de cadáveres queimados. Por um
momento, parecia que eles tinham uma chance.
Então a coisa Lukka balançou o braço de uma forma que
nenhum animal deveria ser capaz. Foi um golpe desossado, um soco
de chicote que o dreadmaw não poderia antecipar. O impacto
pareceu ondular através da forma do espírito, atordoando-o por um
momento. Parecia estar reconstituindo seu corpo espectral quando
a coisa caiu com os dois braços sobre o dinossauro fantasmagórico
em um golpe brutal e feio, deixando para trás todo o seu peso
montanhoso. O dreadmaw simplesmente se dissolveu, a energia
esmeralda desaparecendo e se misturando com o tapete de fumaça
gordurosa.
Vivien assistiu, impotente, enquanto a coisa-Lukka saía da fissura
vulcânica, suas pernas revestidas com pedra preta fumegante onde
201
a lava estava endurecendo. Encontrando seu passo novamente, a
abominação marchou como se nada tivesse estado em seu caminho.
"Ele está indo para a estrada do terror." Para Jirina e os
sobreviventes de Drannith. "Eles não devem ter chegado a
Lavabrink ainda. Temos que nos apressar", disse ela, já atirando o
arco sobre o ombro. Mas ela se virou para encontrar Chevill
observando-a do cume, uma expressão indecifrável em seu rosto.
"Correr para onde? Para fazer o quê?"
"Atrase-o. Surpreenda-o. Talvez ele esteja ferido." Era uma
esperança fraca, mas esse era o único tipo disponível naquele
momento.
Chevill cuspiu na terra negra. "Meus caçadores estão mortos ou
dispersos. Nós perdemos, amante das feras."
" Você está vivo. Você é o grande caçador Chevill, ou isso foi
tudo barulho de fogueira?"
Ele soltou uma risada curta e maldosa, mas naquele momento
Vivien viu o que ele estava tentando tanto esconder: medo.
"Sim, eu sou ele. Você sabe o que separa um bom caçador de um
grande? Saber o que você pode matar e o que não pode. E eu diria
que aprendi exatamente em qual dessas categorias o Coppercoat
agora cai. Não há mais nada que possamos fazer, a menos que seu
pequeno arco mágico tenha um monstro ainda pior preso lá dentro."
Vivien deu um passo mais perto do homem. Ela era mais alta do
que ele e pairava sobre ele agora. — Não posso deixar você partir,
Chevill. Preciso de você. Você conhece esta terra e eu não.
"É por isso que você deve seguir meu conselho e correr." Ele se
virou para olhar para a forma pesada da coisa-Lukka, recuando
agora lentamente para fora de sua vista - ou ele estava olhando além
dela, para onde aqueles passos trovejantes estavam levando a
abominação?
Como se ouvisse seus pensamentos, Chevill disse: "Existem
coisas naquelas montanhas que fazem a morte parecer uma
bondade. Se você deve me matar, garota, então faça isso. Pelo
menos as pessoas vão colocar flores no meu túmulo, em vez de
nunca saberem disso. o grande caçador Chevill existiu."
Rápida e afiada, Vivien tirou o arco de seu ombro e puxou a
corda para trás, uma flecha verde fantasmagórica aparecendo. Ela o
segurou, apontou para Chevill, que cheirou e olhou para a boca do
desfiladeiro. Ela o segurou lá por mais um momento, a luz verde
202
jogando em seu rosto, antes de torcer o corpo e atirá-lo direto para
o céu.
A criatura que mata os Coppercoats de Jirina pode ter sido um
dos grandes felinos das planícies de Savai; o revestimento metálico
que agora cobria seu rosto, acobreado e manchado com óxido verde
e sangue vermelho, tornava difícil ter certeza. Sob uma pata do
tamanho de uma cabeça humana, segurava um soldado preso contra
o chão, que lutava fracamente contra as garras cravadas em seu
peito. Sem pensar - porque se ela se permitisse pensar, temer, ela
poderia correr - Jirina avançou, golpeando o rosto da besta com sua
espada. Ele caiu do revestimento, enviando um choque terrível
através de seu braço, mas a criatura se afastou do soldado e se lançou
para ela em vez disso.
Ela se arrastou para trás, aquelas horas incontáveis no pátio de
treinamento tudo o que a impedia de tropeçar nos próprios pés em
pânico. Bryd cavalgou à sua esquerda; a um rosnado do phyrexiano,
sua montaria recuou e o jogou no chão. Jirina viu as bandas de
músculos crus e nus no pescoço da criatura tensos com instinto
predatório, estranhamente como tantos dos animais de Ikoria.
Naquela distração momentânea, ela enfiou a espada naqueles cabos
de carne, então torceu o braço para baixo, quase cortando a cabeça
inteiramente. Mesmo assim, a fera se debatia e se contorcia
violentamente no chão enquanto Coppercoats armados com
martelos de guerra corriam para espancar a criatura.
Jirina limpou cuidadosamente o sangue e o óleo da ponta de sua
lâmina, desejando que os tremores em suas mãos cessassem. Ela
apenas registrou vagamente o som do movimento atrás dela antes
que o segundo felino Phyrexiano a acertasse, arranhando sua
armadura com suas garras e rasgando a parte de trás de seu peitoral
como uma lata.
A força sozinha derrubou Jirina no chão, sua espada batendo nas
pedras e fora de alcance. Ela rolou bem a tempo de a frente de seu
peitoral pegar uma segunda garra; metal amassado e dobrado. Ela
sentiu as pontas pressionarem seu peito enquanto o monstro
rosnava para ela. Um filete de baba quente pousou em sua bochecha
e começou a chiar e queimar terrivelmente. Nenhuma palavra veio
a ela no que ela tinha certeza de que eram seus momentos finais; ela
apenas abriu a boca para rosnar de volta.

203
De repente, a pressão em seu peito diminuiu. Jirina podia respirar
novamente. Acima dela, a besta rosnando começou a uivar, um som
horrível de aço rangendo e dobrando, quando foi puxado para longe
dela. O monstro se contorcendo foi erguido no ar e debaixo dele ela
viu seu salvador: um tigrerila, enorme até para a espécie, erguendo
o Phyrexiano como um troféu já conquistado. Com uma incrível
demonstração de força, o tigrerila jogou o phyrexiano no chão. Jirina
ouviu ossos quebrando - a coisa ainda tinha ossos, aparentemente.
Ainda assim, tentou subir, até que um homem com uma clava de
pedra arredondada martelou um entalhe no rosto da criatura e a
derrubou novamente. Um cão estranho e brilhante saltou sobre ele
então, rasgando os cabos que corriam ao longo de suas costas,
soltando tudo o que podia. Mais soldados apareceram, enfiando
lanças no gato,
Petróleo , Jirina lembrou-se vagamente. Vivien a avisara sobre o
óleo. Ela já podia ver manchas pretas em cristais laranja projetando-
se dos ombros do tigrerila. "Mantenha distância", ela gritou,
apoiando-se em um cotovelo. "Não toque nisso!"
"Você está ferido, General Kudro?" disse o homem com o
porrete, estendendo a mão para ela. Um dos vinculadores, ela se
lembrava agora. Haldan, ela pensou. Ele e seu pessoal estavam
vigiando o flanco oriental.
"Eu vou ficar bem," ela murmurou, pegando a mão dele e se
levantando. "O tigre-"
Quando ela disse isso, porém, os cristais começaram a brilhar
com uma luz suave, e o óleo phyrexiano borbulhou e sibilou,
transformando-se em uma fumaça preta doentia. Em instantes, era
como se a mancha nunca tivesse existido.
Haldan seguiu seu olhar. "Sim. Eu também não entendo, na
verdade. Esses novos cristais cresceram em muitos deles - algum
tipo de defesa natural."

204
Arte por Sam Burley
"Acho que não devemos nos surpreender", disse Jirina. "Os
monstros deste plano sempre estiveram um passo à nossa frente."
Um suspiro surgiu na multidão atrás dela, e Jirina girou, a mão
indo para o cinto da espada - ainda vazia. Não foi outro ataque, no
entanto. No céu a oeste, uma fina luz verde formava um arco logo
abaixo das nuvens. Vivien e aquele fanfarrão do Chevill. Jirina
prendeu a respiração, esperando, observando. Boas notícias. Dê-me
boas notícias pelo menos uma vez, caramba. Devemos alguns.
Um momento se passou, agonizantemente longo - e então outra
luz verde se projetou no céu. Jirina sentiu toda a esperança se
esgotar, borbulhando como o óleo.
Esse era o sinal. Eles falharam. Lukka ainda estava vindo.
"General! General Kudro, você está bem?" Bryd correu, jogando
de lado uma lança ensanguentada.
"Tudo bem", disse ela, apenas um sussurro. Lukka estava
chegando. Ele os encontraria antes que chegassem a Lavabrink. E
então-
"General, a coluna está esperando. Devemos avançar?" disse
Bryd.
Ela não queria fazer essa escolha. De todas as coisas naquele
momento, ela pensou em seu pai. Ele tinha sido um homem cruel
no final, um vilão de muitas maneiras. Mas talvez em sua posição,
não havia como se tornar outra coisa.
"Estes eram batedores", disse ela. "Precisamos mudar de rumo,
há um atalho talvez um quilômetro e meio adiante, um caminho que
205
leva ao leste. Será mais difícil ir para os feridos e idosos, mas não
temos opções."
Bryd saudou vivamente e correu para encontrar sua montaria.
Jirina se virou para encontrar Haldan observando-a incerto. "Eu
cresci em Raugrin", disse ele calmamente. "Já peguei Jar Korcha
muitas vezes. Esse caminho não leva a Lavabrink."
Ele olhou por cima do ombro, em direção ao céu, como se de
repente estivesse preocupado que pudesse ser levado, mas não havia
nada, exceto aqueles portais vermelhos escancarados ao norte, quase
fora de vista. "Estamos no território de..."
Calma, general. Jirina o encarou, desejando que seu rosto ficasse
quieto. "Se você quiser chegar vivo ao anoitecer, não diga nada."
"Isso é uma ameaça?"
"É a verdade. Isso é tudo."
Jirina não esperou por uma resposta. Ela recuperou sua espada
de onde estava no chão a alguns metros de distância, olhando para
seu reflexo no aço por apenas um momento antes de colocá-la de
volta em sua bainha.
A passagem pela qual Jirina os conduziu era estreita e irregular
como os picos que subiam de cada lado deles. Mais difícil de ter
certeza; as pedras pontiagudas e irregulares que cobriam a trilha
arrancavam as rodas das carroças e perfuravam as solas das botas.
Itens antes considerados insubstituíveis, retirados de Drannith
quando ela caiu, agora se espalhavam pelo chão por onde passavam.
Talheres, roupas, móveis, heranças de família que haviam
sobrevivido a inúmeras calamidades agora eram descartados como
lixo. O tempo todo, os refugiados mantinham os olhos atentos aos
afloramentos de rocha vulcânica de ambos os lados, esperando o
próximo ataque.
Tudo o que as pessoas falavam agora, quando falavam, era
Lavabrink. Haveria leitos suficientes? As camadas de lava que
ondulam sobre as paredes externas da cidade seriam suficientes para
deter os phyrexianos? Quanto faltava agora? Não muito longe agora,
alguém sempre os assegurava.
O sol estava baixo, tornado de um laranja sangrento pela névoa
gasosa que envolvia Raugrin, quando a coluna emergiu da estreita
passagem da montanha em uma bacia de vidro preto liso. Botas e
bengalas estalavam quase melodicamente; a luz refletida contra sua
superfície parecia mostrar um mundo espelhado, todos eles
206
transformados em silhuetas escuras e inexpressivas. Perto do centro
da bacia havia estranhas formas ovais, aparentemente feitas do
mesmo vidro vulcânico. Era um terreno estranho, mas a princípio
os refugiados ficaram simplesmente aliviados pelo fim da
proximidade da passagem. Só quando eles procuraram o horizonte
é que uma inquietação começou a se instalar. Em todos os lados da
bacia havia encostas suaves e íngremes; parecia não haver outra
estrada ou desmaiar.
Onde o general nos trouxe?
Aqui não é Lavabrink.
Temos que voltar atrás!
Jirina sentiu a multidão fervendo, um rebanho prestes a entrar
em pânico. Ela sabia que era sua responsabilidade dizer alguma
coisa, mas naquele momento nenhuma palavra veio a ela.
Alguém agarrou seu braço. Era o vinculador de antes - Haldan.
"Temos que deixar este lugar. Essas pessoas não podem estar aqui.
Nenhum de nós pode. Isso é..."
Ele foi interrompido por um grito. Todos, agora, apontavam
para a encosta oposta, onde algo muito parecido com uma mão
humana - embora muito fora de escala, artificial e enorme - agarrou
a borda da bacia vulcânica. O murmúrio de medo ao redor de Jirina
ficou repentinamente, terrivelmente quieto.
Em movimentos pendulares e desajeitados, o monstro de carne
roubada saltou sobre as rochas. Lukka estava mais grandioso e
horrível do que quando Jirina o vira em Drannith, seu traje de carne
facilmente três vezes maior. Escamas e penas manchavam a vasta
tela de sua pele, e as pernas parecidas com troncos estavam cobertas
por pedaços de pedra negra fundida e queimaduras horríveis e
brilhantes.
Começou a rastejar encosta abaixo, como uma aranha, dobrando
sua anatomia impossível como argila, e isso quebrou o silêncio. De
repente, o ar ao redor de Jirina se encheu de pânico - gritos, choro
e gritos raivosos encheram o ar. A multidão havia começado a recuar
em direção ao desfiladeiro estreito, mas havia muitos deles, a rota
de fuga era muito pequena. Eles vão se atropelar , pensou Jirina. Ela
tentou gritar acima da cacofonia enlouquecedora, ordenando-lhes
que se mantivessem firmes. Ninguém ouviu; não estava claro que
alguém a tivesse ouvido.

207
A coisa havia atingido o fundo da bacia agora. Lentamente, ele
se ergueu sobre suas pernas grossas e mutiladas, e lá, no centro de
seu peito, ela podia distingui-lo vagamente. Lucas. Meu noivo .
Através da superfície do horror imponente, a carne ondulava e
se dividia, deixando marcas de bexigas - não, não marcas de bexigas ,
pensou Jirina. Bocas.
"QUIETO!"
Mil vozes gritaram em uníssono e a bacia ficou em silêncio. A
multidão atrás dela se acalmou, com muito medo naquele momento
para continuar sua corrida enlouquecida para a segurança.
"DRANNITH! CIDADE TRAIDORA! SEU FILHO
PRÓDIGO VOLTOU PARA VOCÊ."
As vozes combinavam, mas não estavam perfeitamente
sincronizadas, fazendo ecos sinistros umas das outras enquanto
Lukka transmitia sua mensagem.
"EU PERDOO SEUS CRIMES CONTRA MIM. TRAGO UM
GRANDE PRESENTE. EM PHYREXIA VOCÊ
ENCONTRARÁ FORÇA DIFERENTE DE TUDO QUE JÁ
CONHECIA. EM MIM, VOCÊ ENCONTRARÁ A
VERDADEIRA UNIDADE E PROPÓSITO."
A coisa Lukka deu um passo à frente, enviando um tremor pela
terra. Em algum lugar atrás de Jirina, uma criança começou a chorar.
Mão após mão, Vivien subiu. Ela estava coberta com mil cortes
e contusões. A rocha vítrea endurecida cortou suas palmas, virou
seus pés de modo que ela quase tropeçou e caiu uma dúzia de vezes.
Nada disso importava - ela continuou. Vivien estava no meio da
encosta quando ouviu as vozes, todas falando juntas como um
terrível coro. Ele os havia encontrado. Ela engoliu suas
intermináveis dores e dores e continuou subindo.
Finalmente, ela pulou a borda do penhasco que a coisa Lukka
havia escalado. Ela o viu ali, desenhado em toda a sua terrível
grandeza - e do outro lado, o que restava de Drannith, e Jirina em
algum lugar entre eles.
Por um instante a bacia escureceu quando algo passou na frente
do sol. Uma forma, movendo-se rapidamente pelo céu, chamou a
atenção de Vivien. Uma águia? Não, o formato da asa estava
totalmente errado para isso, mais próximo das curvas de couro de
um dragão. Isso, e era muito grande.

208
Um grito cortou o ar, e nele Vivien ouviu orgulho, fome e pura
fúria territorial. Algo desceu através das nuvens, e ela o viu
claramente agora: Vadrok, o monstro ápice de Raugrin.
Oh meu Deus , ela percebeu. Estamos em seu ninho.
Ele mergulhou em direção à maior ameaça espalhada pela bacia
- o titã Phyrexiano. Lukka estendeu um braço, agarrando o dragão
felino em resposta. No último instante, Vadrok desviou para um
lado, mudando o impulso de todo aquele músculo para que ele
apenas desviasse. Por onde passou, um corte profundo foi deixado
no braço da coisa Lukka da mão ao ombro, a carne flácida aberta,
fluidos inomináveis se espalhando pelo chão bem abaixo.
Vadrok girou de volta, passando a poucos metros de onde Vivien
estava agachada no topo das rochas; um rugido de vento varreu
depois, quase jogando-a de volta no penhasco. Desta vez, a coisa
Lukka levantou os dois braços, segurando-os como um lutador.
Pouco antes do monstro do ápice alcançá-lo, aqueles braços se
dividiram ao meio; incontáveis tentáculos de carne agarraram
Vadrok. Aqueles que ele arrancou com garras e dentes aterrissaram
com batidas pesadas e repugnantes contra a pedra lisa abaixo.
Alguns, porém, encontraram compra; Vivien observou enquanto
Vadrok batia suas asas impotente, incapaz de erguer seu próprio
volume e a terrível massa do phyrexiano presa a ele. Possuindo carne
enrolada na perna de Vadrok, avançando para a frente quase como
um líquido; logo cobriu completamente as garras.
Nem ele pode vencer , pensou Vivien. Mesmo uma besta assim.
Ela soltou o arco com um movimento do braço e encaixou uma
flecha, puxando-a para trás. Se ela pudesse distraí-lo, talvez pudesse
dar a Vadrok a vantagem de que precisava. O monstro estava
lutando com o phyrexiano agora, lentamente sendo puxado
centímetro a centímetro para dentro dele; ela procurou por um alvo,
mas o próprio Lukka foi bloqueado pelo predador que se debatia.

209
Arte por Guy Koroglu
Então, na luz fraca, ela notou um estranho brilho azul saindo da
boca do monstro ápice.
Vadrok rugiu novamente - aquele chamado animal cruel - e as
chamas eram tão azuis que eram quase brancas sobre o braço da
coisa Lukka. Qualquer coisa que as chamas tocassem era consumida
em um instante, não tanto queimada quanto apagada. Todas as
bocas que ainda pontilhavam a superfície da coisa Lukka
começaram a gritar. Esse, Vivien tinha certeza, era um som que
nunca a deixaria - mil vozes gritando em agonia idêntica. De repente,
era como se a maior parte do braço do titã de carne nunca tivesse
existido.
Mais chamas azuis reluzentes saíram da boca de Vadrok,
varrendo o flanco direito da coisa de pesadelo; levantou um braço
para se proteger, mas as chamas devoraram avidamente tudo o que
lhes foi dado. O titã phyrexiano cambaleou para o lado, liberando
seu domínio sobre Vadrok em favor da retirada — mas o predador
ikoriano foi mais rápido. Ele lançou a cabeça para a frente,
empurrando agora sem medo para o centro da abominação, e
arrancou um pedaço de... não, não de carne, percebeu Vivien.
Lutando agora nas mandíbulas de Vadrok estava Lukka . O
verdadeiro Lukka, ou pelo menos a coisa que Nova Phyrexia fez
dele.
Sem seu piloto, o gigante de carne e osso colhidos oscilou para o
lado e caiu no chão com força suficiente para ecoar pelos picos
próximos. Vadrok bateu suas grandes asas duas vezes e ergueu-se
210
na mesma borda do penhasco em que Vivien estava empoleirado.
Ela não estava a mais de cem metros da besta - da coisa que se
contorcia e gritava em sua boca.
Em Drannith , pensou Vivien, pelo menos teriam lhe dado as últimas
palavras.
Ela puxou mais uma flecha espectral e a colocou no centro do
peito dele. Depois outro, e outro.
Drannith tinha ido embora. Eles estavam na selva agora e
mantinham apenas uma lei: a sobrevivência.
Ombro a ombro com os outros sobreviventes, Jirina observou
enquanto Vadrok jogava o cadáver de Lukka ladeira abaixo. Assim
passa o capitão dos Especiais , ela pensou, e não sentiu nada além de um
estranho vazio onde poderia ter encontrado tristeza ou
arrependimento. A grande besta de Raugrin ergueu-se do cume e
pousou ao lado da massa flácida de carne restante, limpando-a com
mais uma gota de chamas. Tão quentes que podem queimar a própria
memória de algo , Jirina lembrou-se de Lukka uma vez dizendo a ela.
Nesse caso, ela esperava que fosse verdade.
Vadrok virou-se para a multidão reunida - tudo o que restava de
Drannith. Eles haviam esquecido brevemente seu terror assistindo
a batalha dos monstros. Agora, olhando nos olhos amarelos de
Vadrok, eles encontraram mais uma vez. Sussurros, suspiros e
gemidos se espalharam por Jirina, embora ninguém tenha fugido
ainda. Eles pareciam, como povo, prender a respiração.
Mais uma vez, aquele brilho azul subiu no fundo da garganta da
criatura.
Então, agitando os braços, correndo na frente de todos eles,
estava Vivien. "Espere", disse ela, sem fôlego. Falando, Jirina
percebeu, para o próprio monstro do ápice. "Espere!"
O olhar de Vadrok passou por ela. Flicked, Jirina pensou, para o
arco ainda seguro em uma mão. Então ele estava no ar novamente,
o vento daquelas grandes asas farfalhando em suas roupas enquanto
voava para longe.
Jirina quase caiu de joelhos. Eles viveriam. Pelo menos por mais
algum tempo, todos viveriam.
"Você nos usou como isca", disse alguém. Haldan, ela descobriu,
virando-se para encará-lo. "Você sabia que estaríamos presos aqui.
Os feridos. As crianças."
"Sim", disse Jirina. "Eu fiz."
211
"Nós poderíamos ter sido devorados por aquela coisa. Ou pior",
disse ele, levantando a voz. "Poderíamos ter perecido nos mesmos
incêndios!" Sua fúria atingiu suas bochechas agora, deixando-as
vermelhas.
"Mas você não estava."
"Você não tinha ideia do que aquele monstro faria!"
"Na guerra, não há certezas", disse Jirina, sentindo-se muito
cansada agora. Não é suficiente ter vencido? Para tê-los colocado em
segurança? "Temos que nos adaptar se quisermos sobreviver. Assim
como os monstros."
"Você deveria ter nos contado!" Alguém na multidão disse.
"Que tipo de líder coloca seu povo na frente de um monstro
como esse?" disse outro.
Era a única maneira , ela pensou. Eles não podiam ver isso? Era a
unica maneira.
Não foi?
"Escute-me!" Era Vivien, falando agora. "Lavabrink ainda está a
meio dia de marcha. Você terá que caminhar durante a primeira
parte da noite. O que quer que ela tenha feito, Jirina comprou esse
tempo para você."
"Com respeito pelo que você fez", disse Haldan. "Você não é um
de nós. E todo o perigo que você enfrentou hoje, você fez por sua
própria vontade. Eu não sou um soldado, caramba!"
"Eu não sou um de vocês", disse Vivien. Só agora Jirina podia
ver como a mulher parecia maltratada e machucada. Isso não
pareceu atrasá-la. "E eu não posso reivindicar o direito de dizer a
você como tratá-la. É o seu avião, seu povo. Você pode destroná-la
ou expulsá-la. Mas faça isso depois de sobreviver ao que está por vir
."
Haldan olhou para os horríveis restos da criação de Lukka, ainda
ardendo em chamas azuis. "O que está por vir ?"
Só então, uma onda de trovão rolou pelo céu. Atrás das
montanhas: outro buraco no céu. Era exatamente como os que se
abriram sobre Drannith. Dela - quase cutucando, como um dedo
esquelético - saiu uma gavinha branca de metal de tamanho
impossível. Um galho, Vivien os chamou, embora Jirina não
pudesse imaginar a que árvore eles pertenciam.
"Isso está longe de terminar", disse Vivien. "Ainda há um dia
difícil pela frente."
212
Por um momento, ela não sabia para que lado a multidão iria.
Mas eles não tinham energia para separá-la naquele momento. Ao
redor de Jirina, as pessoas começaram a pegar suas coisas, virar seus
animais de carga e carroças, ajudando uns aos outros enquanto
avançavam. Ela os observou se prepararem para o que viesse pela
frente. Isso é o que eles ganharam, com sua luta hoje: sobrevivência.
Mais um dia, mais uma hora, mais um minuto.
Haveria um ajuste de contas, Jirina sabia. Um preço a pagar. Jirina
levantou sua própria bolsa. Quando esse dia chegasse, ela ficaria
mais do que feliz em pagá-lo.

213
IXALAN: TREZENTOS DEGRAUS
SOB O SOL
Miguel Lopez

Agora
As selvas ao redor de Orazca queimavam, um anel de fogo tão
quente que as bordas douradas da cidade borbulhavam e derretiam,
afundando em suas fundações, fluindo para a terra arrasada. A
escuridão iluminou o rubi das videiras mecânicas titânicas e sinuosas
que mergulharam de algum lugar acima das nuvens acre. Relâmpago
carmesim riscou o céu, perseguido segundos depois por um trovão
estrondoso. O dossel balançou e balançou, tremendo com o vento
quente. Árvores, apodrecidas de dentro para fora, explodiram
quando as chamas as atingiram.
Huatli, sozinha, estava no topo do Templo Alado de Orazca,
com as mãos pressionadas contra o peito, ofegante, esperando. Uma
espera terrível e agonizante, bile e estrangulamento subindo em sua
garganta. Esperando.
Inti... ele estava vivo? A companhia dela e os auxiliares seguraram
as etapas? Ela não podia olhar para baixo, ela só podia manter os
olhos no horizonte, esperando. Era impossível ouvir qualquer coisa
além de seu próprio batimento cardíaco, sua própria respiração e o
rugido do fogo.
Ao seu redor, em todos os pontos da bússola, a escuridão pairava
pesadamente sobre o avião. A única luz era o fogo. As selvas ao
redor de Orazca queimaram.
Ixalan queimou.
Horas antes
As portas eram robustas, construídas há milênios para defender
este santuário sagrado. Barricados, eles não quebrariam.
Tosse. Soldados murmuradores. Oração. O cheiro fétido de suor,
lixo, madeira queimada, carne queimada, metal queimado. O ar dói
para respirar. Alguém encontrou e acendeu uma tocha enquanto

214
outros se atrapalhavam com suas luzes, sussurrando as orações
necessárias para Kinjalli acendê-los à vida.
A luz inundou o corredor escuro, revelando uma longa câmara
colunar esculpida em murais. O ouro embelezava cada superfície,
polido e brilhante. Quase uma centena de soldados - a maioria do
Império do Sol junto com um punhado de auxiliares da Costa
Corsair, Torrezon e arquipélagos entre eles - lotaram o espaço.
Exaustos, eles atenderam às tarefas urgentes - substituir as armas
usadas em batalha, retirar armaduras inúteis, limpar-se de fuligem,
sangue e óleo. Um padre ungiu uma fileira de soldados silenciosos e
grisalhos, ordenando-lhes que voltassem para o abraço de Ixalli.
Guerreiros de rostos sombrios seguiram o sacerdote, macahuitls
prontos para o caso de algum dos moribundos se transformar.
Sangue seco manchava as mãos de Huatli e ela não conseguia
evitar que tremessem. Ela precisava de água. Ela precisava estar
limpa. Ela tinha uma cantina. Ela estendeu a mão para ele,
encontrou-o vazio.
Uma comoção. Gritando da porta barricada. Um rugido lá fora,
alto como uma erupção vulcânica, e então um estrondo que sacudiu
o salão. Poeira e lascas de gesso caíram do teto, atingindo a armadura
de Huatli como granizo. Ao redor dela, os soldados riam,
praguejavam e murmuravam.
"Devemos ir", disse Inti. Ele se agachou ao lado de Huatli,
coberto de fuligem, a cabeça enfaixada e ensanguentada. "Não estou
confiante de que a barricada ou este corredor vão aguentar. E você
deixou cair isso." Ele pressionou o elmo de Huatli nas mãos dela. O
elmo do poeta-guerreiro. O único em toda Ixalan.
"Onde está o seu?" Huatli perguntou, indicando a cabeça
enfaixada de seu primo.
"Na garganta de algum invasor morto", Inti deu de ombros. "Fez
o seu trabalho." Ele ofereceu uma mão a Huatli. "Vamos."
Huatli estendeu a mão, pegou a mão de Inti e se levantou.
"Com certeza vamos superar isso", disse Inti. "Você contará esta
história ao império quando o sol nascer."
Huatli olhou para sua prima. Seu sorriso era largo e caloroso,
genuíno, apesar do peso da fadiga ao redor dos olhos, sobre os
ombros. Ele confiava nela, então tudo ficaria bem. Ela estendeu a
mão e tocou o curativo dele.

215
"Encontre um capacete", disse ela. "Eu acho que você foi
atingido na cabeça com muita força."
Inti riu e Huatli se juntou a ele.
Atrás deles, o corredor balançou, a porta saltando em suas
grandes dobradiças quando algo enorme bateu nela.
"Quanto tempo até o amanhecer?" Inti perguntou, olhando para
a porta.
"Horas", disse Huatli. "Se vier hoje."
"Vamos esperar."
"Tudo bem," Huatli assentiu. "Mas também lutar."
"Poeta-guerreiro", uma voz elegante, áspera pela fumaça. Mavren
Fein, o magro e patrício líder dos auxiliares, saiu da escuridão,
flanqueado por um punhado de paladinos da Legião. Ele apertou os
olhos contra a luz forte das pedras Kinjalli dos soldados do Império
do Sol. Huatli podia ver sua pele fumegando onde a luz o atingia; as
pedras lançam um tipo de luz abrasadora, mais forte que o dia. Ela
ergueu a mão para bloquear a dela.
"Obrigado", disse Mavren, afastando a pele queimada e seca das
maçãs do rosto salientes.
"Bem?"
"E agora?"
Huatli deu de ombros.
"Meu tipo favorito de poeta", disse Mavren. "Aquele que deixa o
silêncio falar."
Huatli estendeu a mão para ele com sua lança curta. "Cuidado,
colonizador", disse ela. "Posso pensar em silêncios mais profundos
ainda."
"Tudo bem", disse Mavren. "Deixe-me tentar novamente,
implorando suas desculpas." Ele estendeu a mão, lentamente. Huatli
não vacilou. O vampiro ergueu uma sobrancelha, olhou para a
ponta, depois para a mão e então empurrou a ponta da lança para o
lado. Ele limpou a garganta. "O que fazemos agora?"
"Agora... nada", disse Huatli.
"Nada?"
Huatli assentiu. "Os phyrexianos sabem que estamos aqui. Mais
virão para nos cercar. Vamos deixá-los."
"Prender-nos aqui fazia parte do seu plano?"
"Ao caçar uma grande besta", disse Huatli. "A isca é necessária."
Ela baixou a lança.
216
"Isca", Mavren fungou. "Cuide para que a armadilha não se feche
também sobre nós, guerreiro-poeta."
Huatli o deixou sair com a última palavra. O último de seus
soldados passou em fila, mantendo um olhar cauteloso nas costas
de Mavren e seus vampiros. A luz foi com eles, desaparecendo até
que Huatli descobriu sua bugiganga. A luz quente de Kinjalli
aumentou, mas nunca floresceu além de uma pequena piscina. Ela
estava sozinha com sua respiração.
A porta explodiu, balançou. As velhas dobradiças rangeram. Um
barril caiu da barricada, abrindo-se ao atingir o solo. Milho estragado
derramou, contorcendo-se com formas escuras.
"Espere," Huatli sussurrou, uma oração em uma única palavra.
Ela se virou e saiu apressada da porta, correndo para pegar o
resto de sua força, uma pequena brasa de luz em uma grande e total
escuridão.
Dias antes
A invasão chegou a Ixalan prenunciada por advertências sutis
ignoradas pelas grandes potências que contestavam o velho
continente. A guerra já estourou; sutileza estava entre as primeiras
baixas. O Império do Sol havia empurrado a Legião do Crepúsculo
para fora da cidade dourada de Orazca. Encorajadas, as forças
imperiais perseguiram as forças expedicionárias da Legião de volta
à Costa do Sol. Lá, em Queen's Bay, o império encontrou uma
constelação de fortalezas atarracadas e imponentes. Dois se
agacharam no continente e um terceiro apareceu em uma ilha
barreira na foz da baía. Este era Miraldanor: a Legião dividiu as
terras do Império do Sol e deu o nome de sua rainha. Isso não
poderia ficar. O imperador ordenou que essas fortalezas fossem
arrasadas.
Milhares de bravos soldados atacaram as paredes de pedra escura
da Fortaleza Leor, no meio das três fortalezas. Os defensores
aguentaram meses - o Império do Sol tinha pouca experiência em
guerra de cerco - mas caíram antes do final do ano. O império
avançou, tomando Leor e dividindo as forças da Legião de Queen's
Bay ao meio. Uma vitória triunfante para o império, mas o
verdadeiro prêmio estava ancorado no porto de Leor: navios,
fragatas de águas azuis que os defensores não podiam queimar
completamente. O Império do Sol, firmemente entrincheirado e
com os fortes remanescentes da Legião cercados, fez a engenharia
217
reversa das naves. O imperador, para a adulação de seus súditos em
Pachatupa, declarou um novo objetivo: eles construiriam seus
próprios grandes navios, cruzariam o oceano e devolveriam à Legião
o medo que aqueles austeros cavaleiros haviam trazido a Ixalan.
Uma grande obra começou. Florestas poderosas caíram à medida
que novos construtores navais se apressavam para atender às
demandas do imperador. A juventude do Império do Sol foi aos
rios, lagos e costas de Ixalan para aprender os caminhos das marés,
dos ventos e das estrelas. Os veteranos endurecidos das campanhas
de consolidação do império e das expedições a Orazca voltaram para
suas cidades para recrutar mais para suas fileiras. Os manipuladores
e disjuntores de Quetzacama se instalam nas selvas, territórios de
reprodução e reservas para encontrar montarias de cavalaria
adequadas. O império fervilhava de energia e empolgação — a
conquista, a guerra pela glória, estava chegando.
Mesmo assim, a invasão já estava em andamento.
Em algum lugar em terras desconhecidas, ou nos grandes giros
que serpenteiam sobre vastas extensões de oceano vazio, os sinais
de invasão se manifestam. Símbolos estranhos vislumbrados em
alinhamentos momentâneos por marinheiros e camponeses
solitários assustados demais para entender o que viam: um lago
fervente, um acre de peixes mortos dispostos em um círculo perfeito
e cortados ao meio por uma linha reta, uma árvore que chora óleo
negro, uma nuvem vermelha, permanecendo em desafio ao vento.
Ixalan agitou-se, Torrezon roncou, e os arquipélagos ao redor de
High and Dry ficaram em silêncio, e ninguém olhou para cima para
ver o céu se abrir em uma manhã úmida na Costa do Sol, revelando
um hediondo e colossal galho de metal de Realmbreaker, a Árvore
da Invasão, mergulhando de um olho de furacão vermelho como
uma ferida.
Os Phyrexianos chegaram a Ixalan e terminaram a guerra do
imperador em seu berço. Em seu lugar havia um terror maior: o Sol
Trino se pôs e não voltou a nascer, obscurecido por nuvens escuras
como tinta, e a hora mais sombria da esperança caiu, estrangulada
nas areias da outrora costa dourada de Ixalan.
Huatli estava em posição de sentido na sala do trono imperial no
alto de Tocatli, a cidadela imperial no coração de Pachatupa, a
capital do Império do Sol. A sala do trono foi convertida na sala de
guerra imperial. Um mapa em escala de Ixalan, Torrezon e o mar
218
que separa os dois continentes dominava a câmara, inspirador em
tamanho e detalhes. Auxiliares e oficiais orbitaram a mesa,
cutucando pequenos soldados modelo e quetzacama, movendo e
removendo os modelos finamente trabalhados enquanto corredores
suados chegavam para transmitir notícias da guerra.
Um anel de pedras brancas cercava Pachatupa, imóvel, exceto
por um ajuste ocasional para a frente. Os Phyrexianos.
Huatli revirou os ombros. Ela estava no front há dias; seu corpo
sentiu o custo da implantação. Ela precisava descansar, não para
ficar em posição de sentido em uniforme de gala enquanto o
imperador reunia relatórios formais de seus generais. Mesmo agora
a vaidade imperial exigia satisfação.
Huatli olhou ao redor da sala de generais, padres e equipe de
comando. A maioria eram homens e mulheres velhos, enfiados em
armaduras feitas sob medida para caber em seus eus mais jovens; a
vaidade imperial sofria, ela pensou. Alguns membros da assembléia
eram seus contemporâneos - soldados promovidos por feitos
heróicos realizados durante a campanha de Orazca, ou oficiais que
se mostraram contra a Legião durante a guerra na selva que se seguiu
- o suficiente para fazer a assembléia não parecer totalmente sem
esperança. Juntos, eles aguardavam o retorno do imperador da
plataforma de observação, onde ele andava, seguido por adidos e
escribas.
A esperança era preciosa agora, e cruel. Sua ausência não era um
vazio, mas uma adaga. Sol acima, Huatli queria dormir. Ela sentia
falta de Saheeli como sentia falta da luz do dia. Huatli fechou os
olhos, confiando em suas pernas para mantê-la de pé.
Lá fora, o céu estava escuro. Segundo os sacerdotes, era meio-
dia, mas a luz estava escondida atrás de nuvens negras como tinta.
O sol havia desaparecido nos primeiros dias da invasão, primeiro
sufocado em uma fraca orbe vermelha por incêndios florestais
queimando em todos os pontos da bússola, agora quase apagado em
um leve rubor. Não apenas fumaça de fogo, mas alguma outra
emissão nojenta expelida dos invasores. Ash caiu. Um regimento de
servidores do palácio correu por Tocatli, vassouras na mão para
varrer os montes cinzentos, mas seus esforços não foram
suficientes. A cidadela imperial assumia a aparência de uma
montanha no inverno; a luz do sol se foi, o ar assumiu um frio
profundo e estranho.
219
"Onde está minha marinha", gritou o imperador Apatzec Intli III
enquanto voltava para a sala de guerra. "Há quase dez mil soldados
e marinheiros a bordo desses navios, encontre-os!" Ele acenou com
a mão, despachando um esquadrão de escribas e oficiais subalternos
para a tarefa. Bom para eles, pensou Huatli - eles nunca
encontrariam a frota e agora tinham uma desculpa para fugir para
os cantos mais distantes do avião.
"Dez mil soldados, centenas de navios", murmurou o imperador,
caminhando para a mesa. "Torrezon estava bem ali", disse ele,
batendo nas costas do fac-símile do continente para enfatizar sua
declaração. Uma coleção de navios em miniatura, esculpidos por
fabricantes de brinquedos especializados em Pachatupa abaixo,
ficava no meio do caminho entre os dois continentes - o último local
conhecido da frota de invasão. Para Huatli, a invasão de Torrezon
sempre foi uma má ideia; sob a ameaça premente dos phyrexianos
cercando as muralhas de Pachatupa, lamentar a interrupção de uma
invasão diante de outra não inspirava confiança.
"Vossa Graça", um dos comandantes - Caparocti Sun - algo,
Huatli não conseguia lembrar seu sobrenome - falou, limpando a
garganta. "Meus aerossauros estão prontos para vasculhar os
oceanos, mas o clima na reta..."
"Kinjalli vasculham o clima", gritou o imperador. "Por que seus
pilotos ficam parados , Caparocti Sunborn, quando deveriam estar
voando ?"
"Existem furacões fortes, Vossa Graça, perto da costa", disse
Caparocti, mantendo a voz calma. O primeiro cerco de Leor, é de
onde Huatli se lembrou de Caparocti. Um imperador gritando com
ele não abalaria Caparocti depois da amarga luta que eles
enfrentaram sob aquelas paredes cinzentas. "Essas tempestades são
selvagens e antinaturais. Meus aviadores me dizem que os céus
brilham com relâmpagos vermelhos e o vento brilha com navalhas.
Não é uma questão de vontade - eles querem voar alto, sua graça. É
uma questão de prudência. "
"Você duvida?"
"Não duvido", disse Caparocti. "Desejo defender o império
contra a perda de mais soldados antes de enfrentar o inimigo."
O imperador olhou para Caparocti, então através dele, sua
mandíbula flexionando enquanto ele apertava seus molares. Huatli

220
sabia que Caparocti estava correto. Ela esperou para ver se o
imperador concordava.
"Dez mil", sussurrou o imperador. Fury o havia deixado. Ele
caminhou ao redor da mesa, seus comandantes e sumos sacerdotes
se separando, até que ele pudesse alcançar os navios em miniatura
finamente esculpidos. Sua Frota da Alvorada, destinada a trazer a
luz do Sol Trino para os cantos escuros e castelos góticos de
Torrezon. A carranca do imperador se aprofundou.
"O resto de vocês, denuncie."
Um por um, os comandantes e sacerdotes desfiaram seus
relatórios, retransmitindo contas sombrias de açougueiros
provavelmente já desatualizadas, embora tivessem no máximo um
dia. Uma dúzia de cidades ao longo da barreira norte relatadas como
vazias, exceto por massas retorcidas de carne fundida e metal. Uma
coluna de assassinos e seus manipuladores massacrados, com apenas
um único esquadrão de sobreviventes para chegar a Pachatupa. Um
reduto ocidental reduzido a cinzas e lagos de petróleo, uma rosa de
ferro pulsando em seu centro. Enxames de insetos mecânicos
zumbindo pelas selvas. Uma dúzia de mortos, cem mortos, mil
mortos, soldados imperiais e civis igualmente fundidos a armaduras
de metal e cabos amarrados, marchando diante de pálidos horrores
como fantoches em cordas.

Arte por Viktor Titov


Isso não foi uma guerra: foi um colapso, buscando seu ponto
final. As forças Phyrexianas, uma mistura de invasores alienígenas
reforçados por uma massa fervilhante de forragem convertida à
221
força, formaram um anel de fogo e metal em torno de Pachatupa,
fechando-se a cada hora. Mesmo com vôos de aerossauros e
raptores velozes avançando à frente do inimigo que avançava, o
atraso entre o evento e o relatório foi tão grande que o império não
conseguiu responder com força. Soldados individuais no campo
lideravam esta guerra, enquanto o imperador implorava a seus
comandantes e generais uma orientação que eles não podiam dar. A
grande força do Império do Sol era seu tamanho, sua logística: era
um brontodonte que derrotava seus inimigos com números bem
organizados, constantes e esmagadores. Mas um brontodonte não
poderia lutar contra um enxame de anhafish furiosos e famintos. No
pé de trás,
"E seu relatório, Huatli?" O imperador perguntou. Ele arrancou
modelos de navios um por um da mesa, deixando-os cair e se
estilhaçar no chão de pedra polida. Ele não respondeu ao estalo
forte de pedra contra pedra.
"Meus lanceiros permanecem na força da companhia", disse
Huatli. "Estamos prontos para derrotar esses invasores, como
Tilonalli faz com o avanço da noite."
"Meu poeta", disse o imperador, com um sorriso pálido
realçando as rugas ao redor dos olhos. Ele largou outro navio no
chão. "Você tem palavras para os mortos, guerreiro-poeta?"
"Há muitos, sua graça", disse Huatli. "Muitos para falar."
"E seus poderes", disse o imperador. "Seu planeswalking, sua
magia. Você pode implorar ao Sol Trino para intervir em nossa hora
de necessidade?"
"Não", disse Huatli. "Mas há outros que poderiam ajudar."
O imperador arrancou outro navio do mapa, o modelo final
ainda não quebrado. Ele o segurou com as duas mãos. "Explique,"
ele ordenou.
Huatli saiu do posto de comandantes e caminhou até a beirada
da mesa do imperador. Ela se curvou para ele, então gesticulou para
o mapa.
O imperador assentiu.
Huatli pegou uma estatueta esculpida na forma de um guerreiro,
uma das muitas agrupadas no topo de Pachatupa. Ela deu uma volta
no sentido anti-horário ao redor da mesa, contornando os
fragmentos dos modelos de navios que o imperador havia quebrado
no chão.
222
"Pachatupa está cercada", disse Huatli, apontando para o anel de
pedras brancas ao redor da cidade modelo. "Nós temos água.
Armas. Soldados. A capital é um punho cerrado, mas está sozinha.
Sem suprimento constante do império, Pachatupa morrerá de fome.
Precisamos quebrar este cerco ou afastar o suficiente dos
Phyrexianos para que possamos reabrir aqueles Linhas de
suprimento."
"Otepec e Atzocan são cinzas", disse Inti, sua voz um estrondo
baixo. "A pequena Pocatli também."
"Sim", disse Huatli. "Mas aqui, no estado de Itlimoc, no estado
de Quetzatl. Não há cidades, apenas terra. Cidades pequenas."
"Isso é verdade", disse Caparocti. Ele encolheu os ombros. "Não
tivemos nenhum relato de Phyrexianos lá."
"Fazendas", murmurou o imperador. "Milho, abóbora e feijão.
Poucas pessoas moram lá, e a maioria veio aqui em busca de
segurança atrás de minhas paredes. Não há nada além de comida."
"Astuto, Vossa Graça," Huatli assentiu. "As pessoas de lá
fugiram e os phyrexianos os seguiram até aqui. Os invasores não
querem vida - eles querem poder." Huatli arrancou uma estatueta de
um dinossauro de uma prateleira sob a mesa, onde os modelos dos
mortos foram armazenados. Ela colocou em Orazca.
"Por Kinjalli", Inti sorriu, um largo sorriso surgindo em seu rosto
enquanto ele entendia.
"Vou chamar os dinossauros mais velhos para Orazca", declarou
Huatli. "Isso atrairá o corpo principal dos phyrexianos para longe
de Pachatupa. Sabemos que eles buscam grande poder, então vou
mostrar a eles grande poder. para quebrar o cerco de Pachatupa."
Um murmúrio de surpresa e aprovação dos generais reunidos
envolveu a câmara.
"Esta é uma aposta, guerreiro-poeta", disse Caparocti. "E se os
phyrexianos nos esperarem em Orazca? E se os anciões não vierem
quando você os invocar?" Caparocti estendeu a mão para os outros
generais e comandantes. "Não podemos poupar nossos soldados e
arriscar a queda de Pachatupa."
Os generais murmuraram novamente, sua aprovação se
transformando em preocupação.
"Eu precisaria apenas de uma pequena força", disse Huatli.
"Minha companhia de lanceiros. Voluntários — aqueles que

223
conhecem as selvas a oeste da capital, aqueles que conhecem
Orazca."
"Nós não podemos-"
"Silêncio, Caparocti", sussurrou o imperador. "Seu desejo de
proteger o coração do nosso império é admirável, mas fique em
silêncio. Preciso pensar."
A sala silenciou. Todos olharam para o imperador, que olhou
para a estatueta colocada ao lado de Orazca no mapa.
O imperador sorriu.
A vaidade imperial estava satisfeita.
Huatli e seus lanceiros deixaram a capital pelos distritos
ribeirinhos, acompanhados por um grupo desorganizado de
auxiliares — voluntários de regimentos despedaçados na onda
inicial da invasão e prisioneiros liberados sob o comando de Huatli.
Cerca de cem soldados e metade dos quetzacama correram ao longo
da margem do rio.
O rio que margeia Pachatupa alimentava a cidade com água doce
de vastas cadeias montanhosas do interior, descendo de Itlimoc para
espiralar e cair através de planícies aluviais fortemente irrigadas.
Mais adiante, o rio desviava para o norte de Pachatupa, onde
grandes canais canalizavam o rio para uso urbano — lavagem,
escoamento, energia para engenhos ribeirinhos e lazer. A partir daí,
o rio continuou até o mar.
A companhia de Huatli saiu da cidade pelo lado norte. Ao sul, os
campos fervilhavam com o fogo e os trovões e trombetas dos
brontodontes e monstrossauros imperiais. Os canhões ribombavam
e ecoavam, relatórios rolando pelas muralhas do sul de Pachatupa
para o céu negro. Uma diversão, uma barragem furiosa e uma única
tentativa de romper o cerco phyrexiano. Os phyrexianos eram
inimigos astutos. Uma simples finta não chamaria a atenção deles:
para comprar o disfarce da empresa de Huatli para escapar da cidade
sem ser detectado, o exército imperial precisava fazer um grande
esforço. Alguns generais manifestaram sua oposição a esse plano,
mas o imperador foi firme.
Huatli correu ao longo da margem do rio sufocada pela
folhagem, agasalhada contra o frio sem sol. Ela queria não pensar
na batalha travada do outro lado da capital, todas aquelas vidas
jogadas no matadouro por sua esperança. Mas ela os agarrou perto.
Ela era a consciência imperial; era seu trabalho lembrar desse
224
momento, colocar essa dor na história. Na escuridão, ela avançou,
seguindo o farfalhar silencioso dos soldados à sua frente, seguido
pelo tilintar sutil e estridente dos soldados atrás dela. A terra abaixo
estava lamacenta e fedia a fumaça e chuva. O largo rio à sua direita,
silencioso apesar de seu tamanho. A possibilidade de Phyrexianos
na margem oposta, a contração de seus músculos, a horrível espera
pela selva escura explodir em zumbidos, máquinas gritando.
Huatli sentiu falta de Saheeli. Ela queria caminhar ao longo deste
rio com seu amor. Ela queria sentar com ela na costa, na areia
branca. Ela queria ficar com ela no coração do verde da selva em
qualquer lugar, sob a luz poente de Ixalli, e beijá-la.
Em vez disso: relatórios de canhão à distância. Um corpo
inchado no rio, flutuando lentamente com a corrente, pálido. Um
vampiro, perseguindo atrás dela.
"O que você quer, Mavren?" Huatli perguntou, sussurrando. Ela
olhou para trás para ter certeza de que era ele, feliz em ver que o
magro e branco paladino parecia tão cansado e desconfortável em
sua armadura quanto ela se sentia na dela.
"Quero agradecer por esta oportunidade", disse Mavren. Ele
caminhava com uma graça incrível – sua visão, ao contrário da de
Huatli, não foi afetada por esta noite de penumbra. "Meus paladinos
e eu achamos que definhar em suas masmorras imperiais é bastante
desanimador. Prefiro uma chance de martírio."
"Não tenho planos de morrer, Mavren", disse Huatli. "Nem um
desejo de glória. Eu faço o que faço pelo povo do império."
"Ninguém planeja morrer", disse Mavren. "Mas a morte tem seus
próprios desígnios. De qualquer forma, eu queria chamar sua
atenção para o nosso acordo."
"Temos um acordo?"
"Meus compatriotas e eu fomos liberados para o seu comando
para esta expedição", disse Mavren. "Nada específico nos foi
prometido como recompensa."
"Não mais definhando em uma cela imperial", disse Huatli. "Essa
é a sua recompensa."
"Eu estava pensando em algo mais concreto", disse Mavren.
"Liberdade."
Huatli parou. Mavren parou. O resto da linha de soldados
continuou, separando-se dos dois como água fluindo em torno de
pedras em um rio. Inti se aproximou e parou com eles.
225
"Os vampiros querem ser libertados depois que tivermos
sucesso", disse Huatli a seu primo. "O que você acha?"
"Eu os mataria aqui mesmo", disse Inti. "Mas podemos usar suas
espadas até que os invasores cuidem delas para nós."
"Eu posso entender você, você sabe", disse Mavren. "Eu falo a
sua língua."
Inti deu de ombros. "Eu falei devagar para que você pudesse
entender", disse ele. Ele se voltou para Huatli. "Sua decisão, primo."
Mavren era um aristocrata. Huatli, em seu papel de poeta
guerreira, compreendia os aristocratas. Os opulentos imperiais e a
fria nobreza de Torrezon eram os mesmos em um aspecto: eles não
mendigavam, mesmo quando mendigavam.
"Nunca fizemos uma barganha", disse Huatli. "Março. Vamos
discutir o que acontece depois, depois."
Mavren curvou-se, mergulhando fundo o suficiente para Huatli
revirar os olhos com o sarcasmo óbvio. Ela começou a andar
novamente. Inti empurrou Mavren para frente, e os dois se
alinharam atrás dela, marchando com a companhia de lanceiros e
auxiliares em direção a Orazca.
Huatli e sua companhia chegaram a Orazca na manhã decidida.
Uma chuva acre caiu sobre a cidade dourada, transformando suas
cachoeiras em torrentes furiosas e escuras. Grande parte da
folhagem que verdejava a cidade agora estava morta, sufocada pela
podridão negra murcha. A joia da coroa do império, reduzida a uma
cratera úmida.
Movimento para a direita, comoção abafada. Soldados, deitados
de bruços na terra molhada, cambaleando para abrir caminho para
um pequeno grupo de batedores sujos de lama que voltavam de sua
expedição à cidade.
"Poeta guerreira", sussurrou a batedora principal quando chegou
a Huatli. "Temos uma rota para o templo. Temilo aqui", disse ela,
indicando um dos homens magros e morenos que se aproximaram
com ela, "está guarnecido em Orazca desde o início da invasão."
"Poeta", disse Temilo, também saudando. — Louvo Kinjalli por
você e seus lanceiros. Pensávamos que estávamos sozinhos contra
os monstros. Você tem água?
Huatli ofereceu a Temilo seu próprio cantil. "Esta noite é
aterrorizante sozinho, mas o amanhecer se aproxima e traz amigos.
Seu relatório."
226
“Os phyrexianos perambulam pela cidade,” disse Temilo. Ele
tomou um longo gole de água, tampou o cantil e o devolveu a
Huatli. "É perigoso estar do lado de fora - temos uma guarnição
bem no coração do distrito ritual, perto do Templo Alado."
"Eu preciso chegar à câmara de recitação lá", disse Huatli,
apontando para o grande templo. "Existe uma rota?"
"Tínhamos um posto de observação lá", Temilo balançou a
cabeça. "Mas ninguém ouviu falar deles por dias, e nenhum de nós
tentou chegar lá - muito exposto."
O Templo Alado era um grande monumento. Construído em
eras passadas pelo comando do Império do Sol, o templo era uma
prova do poder imperial e da glória do Sol Tríplice. Perdido e
esquecido depois que a ganância imperial viu Orazca despojado do
império, o Templo Alado foi alterado pelos Arautos do Rio; agora
mais uma vez sob o domínio do Império do Sol, o templo trazia
aspectos de ambas as culturas.
"A única rota para o topo são os Trezentos Degraus", disse
Temilo. "Existem passagens internas que o levarão até eles; os
projetistas garantiram que ninguém que se aproximasse do topo do
templo pudesse fazê-lo sem caminhar exposto à luz do Sol Trino".
"Excelente", murmurou Inti, sarcástico.
"Construído em um tempo mais honesto", concordou Huatli.
"Obrigado por seu relatório, Temilo. Você pode nos levar até sua
guarnição?"
"Sim, mas devemos agir rapidamente", disse Temilo. "Não é
seguro lá fora."
"Certo", disse Huatli. Ela se levantou e olhou para seus lanceiros.
Com um aceno, sua companhia e seu quetzacama se levantaram.
Um segundo gesto brusco os enviou para a cidade. A companhia se
estendeu em uma coluna, com as armas prontas, e serpenteou pelos
bulevares dourados de Orazca. Exceto pelo som distante de água
caindo e o barulho de sua coluna apressada, Orazca ficou em
silêncio.
Um clarão vermelho iluminou o céu.
Um rugido dividiu o coro da cachoeira, quebrando o suave
estrondo que cobria a cidade. Era um som terrível, não o rugido
natural de um quetzacama, mas algo maior que o som.
Huatli tropeçou, abaixando-se para se proteger junto com o resto
de seus soldados enquanto eles olhavam para o céu, maravilhados
227
com a teia de raios vermelhos se espalhando pelas nuvens ferventes.
Durante o longo momento do rugido, eles não eram uma
companhia de lanceiros veteranos, mas animais aterrorizados,
humanos humilhados pela presença de um deus.
No horizonte oposto a eles, na borda da tigela em que Orazca
foi construída, estava Etali, um dos dinossauros mais antigos. Ele
era enorme, uma criatura de magnitude maior que o maior
monstrossauro ou dreadmaw; estar perto dele era agachar-se sob um
antigo rei, testemunhar uma montanha de dentes e escamas
caminhando, rugindo, triunfante. Olhar para sua silhueta era difícil,
o olho forçado a capturar uma imagem que mal conseguia segurar.
O quetzacama da companhia de Huatli se debateu contra suas
amarras, libertando-se, jogando seus tratadores para o lado. Com os
olhos revirados, muitos fugiram para a cidade.
Nuvens negras como tinta arrotaram do núcleo de Etali, seus
pulmões se transformaram em motores que cuspiam nuvens de
trovão entre suas costelas. Relâmpagos vermelhos ondularam na
espinha de metal brilhante do dinossauro mais velho, pulsando com
o ritmo de uma batida de coração, aumentando sua cadência
enquanto Etali recuava para rugir, construindo um flash que cobriu
o avião em um dia carmesim. Seu rugido forçou a companhia de
Huatli a se ajoelhar, as mãos sobre os ouvidos, seus próprios gritos
abafados pelo grito de Etali.

Arte por Ryan Pancoast


Etali era a tempestade. Os Phyrexianos transformaram o
dinossauro ancião, distorcendo esta personificação de Ixalan para
228
seu próprio propósito hediondo. Huatli se ajoelhou, com as palmas
das mãos na rua fria banhada a ouro. Não havia nada além desse
medo.
O cume sobre o qual Etali estava fervilhava de movimento. Mais
Phyrexianos, tropas terrestres e horrores maiores, diminuídos pelo
tamanho do dinossauro ancião que agora comandavam.
A companhia de Huatli e os auxiliares começaram a correr,
seguindo Temilo em direção à guarnição. Huatli demorou um
momento, procurando por qualquer esperança de Etali na criatura
que ocupava o corpo do ancião. A grande e primitiva tempestade
arrotou nuvens sufocantes, erguendo-se como bigornas. Não havia
mais nada de Ixalan nele.
Huatli esboçou uma oração para Tilonalli, para Kinjalli e para
Ixalli, então seguiu o último de sua companhia, apressando-se à
frente dos phyrexianos que avançavam.
A companhia e os auxiliares de Huatli se abrigaram na guarnição
de Temilo com o resto dos defensores sitiados de Orazca por dias.
Embora escuros, os corredores internos eram secos e seguros; os
phyrexianos ainda não haviam encontrado o caminho para dentro.
Huatli, Inti, Mavren e Temilo ficaram sozinhos no hall de entrada
diante da porta barricada. Eles carregavam tochas pequenas e fracas
- depois de dois dias na escuridão quase total, uma tocha forte era
demais.
"Eles pararam de tentar abrir a porta", disse Inti.
"É claro que eles sabem que ainda estamos aqui", acrescentou
Mavren.
"Então por que eles pararam?" Inti respondeu.
"Pode haver outros bolsões de sobreviventes", disse Temilo,
sussurrando. "Tivemos um aviso da invasão da costa. A guarda da
cidade armazenou armas, comida, água - havia outras guarnições."
Temilo se calou. As probabilidades eram contra essa esperança.
Sobreviventes. A palavra era uma marca de morte. Não
defensores, não soldados, mas sobreviventes. Huatli sabia que a
linguagem era uma arma do coração e da mente: assim como o ferro
é moldado em uma espada, as palavras afiadas se tornam retórica.
Imaginar-se como sobreviventes agora era esculpir o destino em
pedra.
Huatli não poderia fazer isso.

229
"Temilo," Huatli disse, interrompendo a espiral de destruição
entre os três homens. "Você disse que existem outras maneiras de
chegar ao topo do Templo Alado?"
"Não para o topo", disse Temilo. "Mas há passagens para a
camada intermediária, os aposentos dos padres."
"Bom o suficiente," Huatli disse, assentindo. "Inti, Mavren,
chame os soldados. Já nos escondemos o suficiente."
“Os phyrexianos controlam a cidade,” disse Temilo. "Você viu
Etali—"
"Eles nos controlam?" Huatli disse. Ela olhou para Inti, que
balançou a cabeça, depois para Mavren, que, depois de um
momento, fez o mesmo. "Não. Então, você vai nos levar aos
aposentos dos padres", disse Huatli, dirigindo-se a Temilo. "Então
lutaremos até o topo e convocaremos os anciões. Então veremos o
futuro que o destino reserva para o nosso plano."
"Se eles forem transformados?" Inti perguntou. Não duvidando,
não, sua prima não duvidaria dela. Ele perguntou como um
curandeiro ou soldado faria - apenas para maior clareza, para
planejar uma resposta para alcançar um objetivo.
"Então Ixalan está perdido", disse Huatli. "Seremos os primeiros
a saber o fim."
Inti apertou os lábios e assentiu com determinação. Temilo
fechou os olhos e sussurrou uma oração. Mavren sorriu, mostrando
suas presas.
"Você cobrirá este império na morte", disse Mavren. "Mas talvez
a glória também."
"Inti, prepare minha companhia", disse Huatli. "Mavren,
desperte seus paladinos, faça-os orar ao seu deus. Somos nós contra
os invasores - vamos enfrentar esse inimigo juntos antes de virarmos
nossas lâminas uns contra os outros."
"Sim, poeta", disse Mavren. Ele fez uma reverência e depois
desapareceu na escuridão. Com um breve aceno de cabeça, Inti o
seguiu, Temilo a reboque.
Sozinha, Huatli finalmente soltou a respiração trêmula que estava
segurando. Ela manteve suas orações - ela precisaria delas nas
próximas horas. Em vez disso, ela pensou em Saheeli — como ela
era brilhante — e seguiu os outros na escuridão.
Havia trezentos degraus além do arco no meio do Templo Alado
até a câmara de recitação em seu cume. Um número sagrado, cem
230
passos para cada aspecto do Sol Trino. Houve um número não
contado antes, um número sem ordem ou significado, para
representar o plano sem ordem ou significado antes da graça do Sol
Trino. Trezentos passos entre agora e o destino.
A companhia de lanceiros de Huatli correu para formar uma
linha defensiva no arco. Eles organizaram seus escudos e lanças em
uma parede eriçada, apontada para a cidade abaixo.
"Vamos segurar o portão", Inti gritou acima do som do vento
forte. "É um ponto de estrangulamento: o número deles será igual
ao nosso."
"Mas inesgotável", acrescentou Mavren. "Depressa, Poeta.
Acredito na salvação da morte, mas nenhum de nós quer encontrá-
la aqui." O pequeno esquadrão de paladinos da Legião e seguidores
humanos de Mavren usava uma variedade de armaduras e armas -
tudo o que eles mantiveram de sua captura inicial, complementado
com o equipamento antigo que receberam do arsenal imperial. No
entanto, os Torrezonés se portaram com determinação.
"Bom", disse Huatli. "Prima, minha companhia é sua. Mavren,"
Huatli gritou para ser ouvido acima do vento crescente. “Esta é a
minha barganha,” ela disse, apontando para o arco e os phyrexianos
abaixo.
Mavren brandiu sua espada, fez uma reverência e então ordenou
que seus auxiliares se posicionassem. Os soldados do Império do
Sol e da Legião ficaram lado a lado enquanto a chuva começava a
cair. Lento no início, depois estável.
Relâmpagos vermelhos estalaram no céu, iluminando a massa
rodopiante e contorcida de carne e máquina que se contorcia ao
redor da base do templo. As ruas escuras de Orazca estavam cheias
de Phyrexianos – os transformados, que se moviam em hordas que
fluíam como água lenta, e os puros, que andavam acima deles, suas
silhuetas alienígenas assumindo a forma de demônios, pesadelos e
armas. Em um ou dois, eles começaram a subir os degraus mais
baixos do templo, observando os soldados dispostos em seu ponto
central. Seguiu-se uma inundação. O quetzacama mecanizado,
trombeteando e berrando para as coisas menores que corriam ao
redor e sobre eles, subiu os degraus. Fileiras dos miseráveis
marcharam em colunas compactas atrás, ordenadas apesar de seus
uniformes e armas desordenados. Entre eles, as elegantes bestas cor

231
de cobre de outros lugares caminhavam com longas pernas de
inseto,
Além, na distância escura, imponentes monstruosidades
Phyrexianas se arrastavam pela cidade, suas silhuetas humanóides
uma zombaria da humanidade. Perto e longe, havia apenas perdição.
Huatli sussurrou uma oração de aço para seus aliados, virou-se e
começou sua escalada, deixando para trás os sons de máquinas e
humanos gritando, o som de espadas e guerra atrás dela.
Algum tempo atrás
Por que lutar contra o que você não pode derrotar? Uma
pergunta para um poeta, feita por um engenheiro, quando os dois
ficaram acordados na madrugada, na véspera de sua separação.
"O que você quer dizer?" Huatli perguntou. Ela estava distraída
com o cabelo escuro de Saheeli, como ele se sentia entre seus dedos.
Como seda, como seda fina. Ela resolveu se lembrar disso, registrar
esse momento em sua própria história.
"É uma pergunta simples", disse Saheeli. "Eu sei que devemos.
Eu não quero morrer. Eu não quero que você morra, mas há uma
pequena parte de mim que quer apenas . . ."
"Desistir?"
"Descanse", disse Saheeli. "Não quero desistir. Só quero parar de
lutar. Deixe acabar, porque então estará feito. O medo, a dor, a
preocupação - parece que estamos tentando impedir o fim de tudo
: o fim de nossos planos, o Multiverso. Tudo. Temo que não
possamos, e então morreremos, e algo terrível tomará nosso lugar."
Os pássaros da manhã lá fora começaram a cantar, longos gritos
ao longe que falavam de um amanhecer úmido. A voz de Saheeli era
uma respiração suave em seu peito, pouco mais que um sussurro.
Huatli pressionou os lábios na cabeça de Saheeli e a beijou.
"Você quer minha resposta?" Huatli perguntou.
"Acho que você é a única pessoa que pode responder a isso",
disse Saheeli, balançando a cabeça. "Mostre-me o amanhecer, H."
"Houve um poeta guerreiro antes de mim", disse Huatli.
"Yolotzin, que carregava o título séculos atrás. Sua vida foi de dor.
Ela nasceu em uma família em uma pequena aldeia longe de
Pachatupa, numa época em que o império era jovem e faminto,
ainda não um império, mas um no fazendo. A aldeia de Yolotzin foi
conquistada e sua família morta. Ela foi levada de volta para a capital

232
porque sabia falar nossa língua e sua voz era linda. Ao chegar à idade
adulta, ela recebeu o título de poetisa guerreira pelo imperador".
Saheeli se aproximou de Huatli. Sua respiração desacelerou.
"Yolotzin foi uma poetisa brilhante, sua lírica precisa e suave, e
por sua vida ela foi a consciência imperial." Huatli beijou a cabeça
de Saheeli novamente, descansando os lábios em seu cabelo. A
história terminaria, o sol nasceria e ela iria embora.
"Por que ela serviria ao império?" Saheeli perguntou.
"Por vingança", disse Huatli. "Uma longa vingança. Quando
Yolotzin faleceu, o império lamentou. Lágrimas encheram as ruas,
inundando-as como chuva após uma tempestade. Dizia-se que o
imperador vagava pelos corredores de Tocatli, sua voz reduzida a
um gemido enquanto procurava o fantasma de Yolotzin para
implore apenas mais uma estrofe."
A sala, escura, começava a ficar cinza. O sol estava nascendo.
Amanhecer se tornando manhã.
"Ela viveu no fim do mundo", disse Huatli. "E então através dele.
O que enfrentamos não é diferente do que ela enfrentou: um
poderoso inimigo que pretende conquistar, acabar com tudo e
reescrever a realidade. Nosso dever é viver através disso. Rejeitar
diariamente o desespero e, se morrermos , leve o coração de nosso
assassino conosco. Como Yolotzin, não podemos parar isso. Só
podemos sobreviver a isso."
Uma luz quente deslizou pelas cortinas fechadas dos aposentos
de Huatli. Os cantos dos pássaros do lado de fora agora se juntavam
aos sons distantes, mas persistentes, das ruas matinais de Pachatupa,
acordando.
"Isso não inspira exatamente esperança."
"Eu te amo. Nunca vou mentir para você."
"Acho que falei com o guerreiro lá", disse Saheeli, levantando-se.
Ela apoiou a cabeça na mão, apoiando o cotovelo nos travesseiros.
Ela olhou para o dia e depois de volta para Huatli, com um sorriso
suave no rosto. "Eu quero falar com o poeta. Diga-me que vai ficar
tudo bem?"
Era mentira dizer que tudo ficaria bem, mas os olhos de Saheeli
estavam arregalados e a manhã quente e este era o último momento
para os dois, o último momento antes do fim.
Huatli estendeu a mão para Saheeli, passou os dedos pelos
cabelos e puxou-a para perto. Eles se beijaram, para sempre.
233
Quando eles se separaram, Huatli segurou a bochecha de Saheeli,
com lágrimas nos olhos.
"Vai ficar tudo bem", disse Huatli.
Agora
A tempestade rugia, um furacão que odiava e girava com fome.
Granizo, chuva escura e raios vermelhos. Etali deve ter chegado à
cidade. Huatli só olhou para trás uma vez durante sua escalada para
ver que os soldados seguravam o portão - eles o faziam, contra uma
parede contorcida de carne e máquina, grande demais para passar
pela entrada estreita.
Huatli agarrou as bordas do altar e rezou, uma oração para ganhar
tempo antes da recitação. Hora de sua pequena companhia segurar
o portão. Tempo contra a chegada iminente de Etali. Hora de mais
uma manhã. Só mais um momento neste avião. Huatli convocou
sua voz. Fechou os olhos. A parede do furacão assomava acima dela,
e tudo lá fora se reduzia a nada além do uivo do vento, um vento de
ruína, o som do fim.
Huatli falou com o furacão. Ela falou com a morte, com o apetite
do predador, com o oceano agitado, com todas as calamidades e
com o amanhecer. Ela contou a eles tudo sobre seu irmão, o
furacão, como ele foi tirado deles e se voltou contra eles, e como
Ixalan precisava da morte, precisava da fome, do mar, do terror e
do amanhecer para enfrentar um inimigo maior: o fim.
A resposta deles foi o silêncio.
A tempestade vacilou. Huatli abriu os olhos para ver o vento
vermelho girando lá fora. Acalmando.
O poeta guerreiro afastou-se do altar. Ela caminhou em direção
à porta da câmara de recitação, para ficar no topo dos trezentos
degraus e olhar para Orazca e a batalha feroz abaixo.
A companhia de Huatli ainda resistia, sua linha fortificada por
uma parede de cadáveres Phyrexianos. Assomando diante deles
estava Etali, parada apenas um terraço abaixo, quase no portão. O
ancião estava escalando o Templo Alado, abrindo caminho pelas
camadas inferiores sobre os corpos crescentes de seus próprios
aliados quando congelou. Relâmpagos ondularam pelas espinhas de
metal da barbatana traseira da divindade corrompida, crepitando,
falhando. Os phyrexianos continuaram lutando, mas foram
forçados a contornar o ancião, escorregando e lutando para escalar
os corpos de seus camaradas caídos, encontrando as longas lanças
234
da companhia enquanto eles chegavam ao topo do monte. Mortos,
eles caíram de volta pela encosta, abrindo caminho através das ondas
de monstruosidades que se seguiram. Raios de sol iluminaram a cena
sombria, tão brilhante que Huatli estremeceu e ergueu a mão para
cobrir os olhos.
A luz!
Huatli olhou para o céu e a luz rompeu no momento em que a
silhueta titânica de Zetalpa, o ancião do amanhecer, perfurou o
furacão de Etali, mergulhando em direção à terra. As asas de Zetalpa
se abriram mais do que o horizonte - ou pelo menos pareciam - e
seu grito baniu a noite. Dawn veio com fúria, batendo primeiro nas
garras de Etali, envolvendo-o em suas asas, suas poderosas
mandíbulas fechadas em volta do pescoço de Etali. O Templo Alado
tremeu com o impacto e uma onda de choque explodiu em sua face,
espalhando centenas de Phyrexianos, fazendo-os cair dos degraus e
terraços. A companhia de Huatli cambaleou para trás, mas foi
protegida do pior da explosão - eles se recuperaram em instantes e
assumiram suas posições defensivas.
O amanhecer de Zetalpa pode ter sido silencioso ou - como o
primeiro rugido de Etali - pode ter sido tão alto que tornou Huatli
incapaz de ouvir qualquer coisa, mas os rugidos gêmeos crescentes
ao redor da base do templo abriram o dia. Huatli correu para uma
plataforma de observação próxima, um mirante onde os sacerdotes
podiam erguer tributos ao Sol Tríplice à vista das pessoas que
caminhavam pelas ruas de Orazca. De lá, ela podia olhar para as ruas
da cidade dourada.
Outro rio obstruía os bulevares e praças: quetzacama virado,
poderosas criaturas de todas as formas e tamanhos, carnívoros,
herbívoros e onívoros, avançando juntos contra os sitiados
phyrexianos. Movendo-se com eles estava Tetzimoc, a própria
morte, coberta de espinhos e espinhos que estremeciam e se
lançavam em rajadas grossas na direção dos phyrexianos em
retirada. Os retardatários foram arrastados pelo avanço pesado dos
tenentes de Tetzimoc, quetzacama blindados cujas pontas de
marreta esmagaram o metal e derrubaram as fileiras dos legionários
phyrexianos.
Outro rugido chamou a atenção de Huatli. Ela se virou para olhar
a cidade e viu Ghalta montada em um templo distante, berrando um
desafio para os imponentes Phyrexianos que espreitavam a cidade.
235
Esses gigantes carregavam armas feitas de metal vivo e gritante: eles
caíram sobre ela, suas espadas cantando, e ela saltou para enfrentá-
los, fúria contra fúria. Ghalta derrubou um deles, afastando sua
espada para fechar suas mandíbulas em torno de sua parte central,
rasgando seus tendões e tronco de metal. Outro se aproximou por
trás, com a arma erguida acima da cabeça perdida nas nuvens,
prestes a atacar, quando um gêiser de água fumegante irrompeu
abaixo dele. A explosão colunar escondeu uma forma escura em seu
centro: Nezahal, o ancião das marés. Nezahal envolveu o gigante
das pernas aos pulsos, enroscando seu longo corpo em forma de
chicote ao redor da criatura, esmagando-a sob o oceano. s vale de
pressão. A água caiu como chuva, e Ghalta e Nezahal rasgaram os
gigantes restantes.

Arte por Zezhou Chen


"Onde ela está?" Huatli sussurrou, examinando o horizonte da
cidade. Havia mais um ancião para atender o chamado de Huatli. A
poetisa guerreira andava de um lado para o outro no deck de
observação, ousando manter a esperança no alto de seu coração. Os
outros anciãos - Zetalpa, Nezahal, Tetzimoc e Ghalta - responderam
ao chamado dela, saltando para proteger Orazca. Um ancião estava
desaparecido.
Zacama.
Ela foi transformada? Ela estava morta? Um clamor do portão
abaixo chamou a atenção de Huatli: Zetalpa e Etali, emaranhados
em um combate cruel, se separaram por um momento. Zetalpa
voltou para o céu com suas garras, suas grandes asas golpeando o
236
templo. Ela rugiu, seu sangue caindo como chuva enquanto ela
subia, recuperando-se do terrível confronto. Etali sangrou óleo
escuro, cambaleando, mas não mortalmente ferido, agarrando-se
aos degraus. Um impasse.
Huatli correu, descendo os trezentos passos até o portão no
limite de seu equilíbrio, escorregando perto do fundo na pedra lisa
pela chuva, mas não caindo.
"Inti!" ela gritou sobre o som da batalha desesperada. "Inti, onde
você está?"
"Aqui, poeta!" Mavren respondeu. Um Mavren manchado de
sangue e manchado de óleo mancou em direção a Huatli, arrastando
um Inti ferido com ele. Ele carregou o homem maior alguns passos
para trás da fila, esquivou-se de debaixo do braço e colocou-o no
chão, gentilmente. "Onde ele se machucou?" Huatli perguntou,
deslizando para o lado de Inti. Seu primo gemeu, com os olhos
fechados e trêmulos. Como Mavren, ele estava manchado de
sangue, óleo e cinzas.
Huatli verificou Inti, limpando o sangue, as cinzas e o óleo de
seu rosto. Nada cortado, nada disso era dele. Gentilmente, ela deitou
a cabeça dele - nada que ela pudesse fazer por ele agora.
"Huatli!" Um grito da linha - Temilo, chamando-a. Ele agarrou
uma lança. Ataduras envolveram seus antebraços. Ele era, exceto
por sua voz, indistinguível dos outros soldados vivos na linha -
Império do Sol ou Legião, todos eles estavam manchados de cinzas
e suor, envoltos em bandagens esfarrapadas, exaustos.
Huatli atravessou o pátio e juntou-se a Temilo e sua companhia
na linha. Mavren o seguiu.
"Olha", gritou Temilo, apontando para os degraus, na direção de
Etali e das ruas de Orazca além.
Os phyrexianos estavam se retirando, caindo pelos degraus, uma
avalanche de metal e carne desviada sem direção ou liderança. Eles
fluíram em torno de Etali, que estava de costas para Huatli e sua
companhia. Óleo escuro caiu das feridas do ancião transformado.
Sua vela dorsal foi rasgada, retalhada pelas garras de Zetalpa,
espinhos rachados e quebrados pelo ataque do outro ancião. O calor
residual exalado de Etali a cada respiração, o cheiro fedorento de
relâmpagos e ozônio irritante, ácido. A grande tempestade
encurralada por uma máquina estrangeira, reduzida a uma arma
descartável. Huatli poderia chorar.
237
Uma grande forma se movia nas ruas escuras de Orazca abaixo.
Uma forma poderosa tão grande que Huatli a princípio pensou que
a própria terra estava se elevando, como se um terremoto estivesse
movendo uma montanha. As forças phyrexianas descendo pelo
templo estremeceram em resposta, as fileiras da frente correndo
para parar e mudar de direção enquanto o meio e a retaguarda
avançavam, ainda sem ver o perigo diante deles.
Zacama, a última e maior das anciãs, surgiu das sombras, suas
três cabeças berrando um rugido tritonal. As primeiras fileiras do
exército phyrexiano se desintegraram, o metal brilhando como a luz
do dia enquanto o som titânico os banhava, rolando pelos flancos
do Templo Alado como uma onda quebrando na costa. Huatli pediu
que sua companhia mergulhasse no chão. Eles o fizeram, e um
segundo depois a parede de calor que se seguiu ao som do rugido
explodiu pelo portão. Huatli cobriu a cabeça com os braços e gritou,
uma reação primitiva ao som avassalador, o calor explosivo, a
têmpora tremendo — o som do fim e o avião negando o fim.
A onda passou e Huatli viveu. Ela se levantou e ajudou os
lanceiros de cada lado dela a se levantarem. Juntos, eles olharam pelo
portal para ver o resultado da entrada do grande ancião.
Zacama foi para o primeiro terraço, a cabeça principal ignorando
as forças phyrexianas enquanto suas outras cabeças estalavam e
gritavam para eles. Nenhuma das forças viradas tentou atacar
Zacama. Apenas aqueles monstros brancos pálidos da principal
força de invasão tentaram derrubá-la, atravessando seus
companheiros em fuga para se jogar nos tornozelos de Zacama. A
grande anciã atravessou as forças phyrexianas sem cuidado, como
se estivesse andando pela grama alta enquanto escalava o templo em
direção ao Etali transformado. Ele se abaixou e se agachou,
relâmpagos faiscando e zumbindo em sua vela quebrada.
A cabeça principal de Zacama abriu a boca, um bocejo cheio de
dentes em forma de adaga de tamanho humano, e inalou.
"Abaixo!" Huatli gritou.
Zacama rugiu novamente, desencadeando outra onda de calor e
som pelo flanco do templo em direção a Etali. A fachada dourada
do Templo Alado derreteu diante dela, revelando um leque de pedra
escura abaixo. Etali cambaleou, o endosqueleto de metal exposto
superaquecendo, torcendo, queimando e cuspindo enquanto a força
absoluta do berro de Zacama o golpeava. Ele caiu de joelhos,
238
apoiando-se em um de seus braços de navalha para impedir qualquer
nova queda, e levantou o outro em defesa.
Zacama mordeu o braço de Etali com sua cabeça principal e o
soltou com um único e rápido movimento. Etali lutou para se
levantar, mas as outras duas cabeças de Zacama se lançaram para a
frente, prendendo o ancião no chão.
Por um momento, Etali parou de lutar. Zacama o segurou
rápido, imobilizado, finalizado. Sua cabeça principal se aproximou
da de Etali e cheirou, inalando o cheiro de seu primo transformado.
Huatli se perguntou o que os dois trocaram - foi reconhecimento?
Era uma pergunta melancólica, furiosa?
Zacama estendeu a cabeça principal e mordeu o pescoço de Etali.
Etali estremeceu, mas não rugiu ou lutou, quando Zacama arrancou
a cabeça de seu corpo e a jogou na cidade abaixo. O corpo de Etali
chutou, teve espasmos e depois se acalmou.
Zacama se levantou, triunfante. O amanhecer irrompeu atrás
dela. Suas duas cabeças menores rugiram sua vitória, a respiração
fumegando no ar da manhã. Os outros dinossauros mais velhos
gritaram em resposta e foram acompanhados por um coro
retumbante de toda a cidade dos anfitriões quetzacama que os
seguiram.
Huatli se levantou. Enquanto as outras cabeças de Zacama
gritavam sua vitória, sua cabeça principal se virou para olhar para
ela. Huatli levantou a mão para reconhecer o ancião.
Zacama fungou. Uma palavra, um pensamento, um sentimento
de gratidão fora de Huatli, mas familiar para ela. Falar com um
ancião era abordar algo elementar; falar com Zacama era envolver-
se com a alma do próprio plano, e ainda assim Huatli só conseguia
pensar em uma verdade calorosa, quase impossível de considerar.
Eu não menti para ela.
Zacama se virou e desceu o templo. A terra tremeu.
A cortina escura de fumaça, cinzas e furioso furacão vermelho
foi rasgada e perfurada. O sol estava rompendo. Orazca deu as boas-
vindas à luz da manhã e a cidade brilhou como ouro através do óleo.
A aurora havia chegado: o dia, embora ainda não vencido, havia
chegado.

239
INNISTRAD: FAMILY GAME NIGHT
Seanan McGuire

Meu querido irmão—


Como eu gostaria que você me visitasse aqui em Engelturm! Os
terrenos são lindos, e os anjos que uma vez reivindicaram este lugar
deixaram uma surpreendente variedade de ferramentas voltadas
para a destruição e desmantelamento dos mortos. Na pressa de
desfazer o trabalho de sua espécie, querido irmão, eles se tornaram
especialistas em açougueiros de skaabs. Eu acho que você se
beneficiaria em visitar suas oficinas. E, claro, os terrenos são
devidamente profanados, depois de sua longa ausência e da
ocupação de tantas coisas desagradáveis. Realmente, você acharia
isso muito reconfortante. Eu certamente faço.
Eu sei que fere seu orgulho por eu não ter escolhido me
estabelecer em Havengul mesmo depois de deixar meu amado
Thraben para trás. Como deve doer ter sua irmã mais amada tão
perto e ainda se recusar a entrar pelos portões de sua cidade estéril
e industrial! Mas não tema, querido irmão, pois permaneço perto o
suficiente para você visitar, se você não colocar as necessidades de
sua "pesquisa" acima das de sua única família sobrevivente.
Se você ainda não tivesse exigido que eu colocasse nossos pais
para descansar, eles certamente estariam cambaleando para
repreendê-lo agora, sua zombaria infeliz e sem inspiração de um
carniçal. O que você faz não passa de uma pálida imitação da minha
arte e nunca passará do nível da ciência simples para o da inspiração
sublime.
Aqueles galhos brancos no céu da meia-noite eram uma exibição
adorável, como relâmpagos em treliça. Isso foi obra sua, irmão?
Talvez você tenha encontrado sua verdadeira vocação e possa
finalmente deixar os mortos para mim.
Eu gostaria de desejar-lhe felicidades, mas há muito tempo você
se isolou de qualquer coisa além da miséria e, portanto, desejo
apenas que você resista. Que você sobreviva o tempo suficiente para
ver tudo o que você construiu virar pó e apodrecer até o nada, como
seu suposto "gênio" deve fazer um dia.
Sua adorada irmã,
240
Gisa
Gisa-
Não estou arrependido da escolha de lhe dizer que meu
laboratório era muito pequeno para nós dois, muito obrigado, e se
você interpretou isso como se eu tivesse mandado você sair de
Havengul inteiramente, isso é da sua cabeça, não minha. Eu nunca
pedi para você vir aqui. Eu nunca te pedi para morar comigo. Vá
incomodar Jadar. Tenho certeza de que aquele velho antiquado está
criando algo horrível e sem graça com o qual você poderia se
envolver, se lhe pedisse muito bem. Eu, por outro lado, estou
ocupado.
Cadáveres foram lançados no estuário ultimamente, o que desafia
todas as tentativas de costura. Ludevic me deu a grande honra de
pesquisar esse fenômeno, e simplesmente não tenho tempo para
suas travessuras. Vá brincar com algo morto e me deixe em paz.
Linhas brancas à noite? Não. Esses são algum tipo de fenômeno
natural, e nada meu. Se o cosmos deseja se despedaçar, isso é
problema dele, e enquanto ele permanecer fora do meu laboratório,
eu o deixarei em paz. Eu sugiro que você faça o mesmo.
Geralf.
Tédio e Gisa Cecani não eram bons companheiros. Ah, eles se
reuniram muitas vezes ao longo dos anos, para uma tarde ou um fim
de semana, mas esses encontros inevitavelmente terminaram com a
população local tentando literalmente fugir, enquanto Gisa cacarejava
e chamava seus parentes mortos do chão para tornar as coisas mais
interessante.
Thraben ficou entediante depois que todas as pessoas vivas se
foram e ela ficou sem ninguém para lhe fazer companhia, exceto
seus amados mortos. Havengul não era muito melhor. Certamente,
tinha mais do que seu quinhão de vivos, cada um deles maduro para
o túmulo, mas eles estavam tão preocupados com prazeres
mesquinhos e ciência tola que mal chegavam a ser divertidos. Até
seu próprio irmão, o querido e repugnante Geralf, estava mais
interessado em sua pesquisa do que em mantê-la entretida! Ora, ela
havia concordado com uma rodada de NecroWarfare podre dele,
com regras e tudo, e ainda assim ele permanecia em sua
escrivaninha, deixando-a fazer sua própria diversão.
O Engelturm foi divertido. Observar suas queridas criações
contaminar as obras dos anjos era delicioso, e tornava-se divertido
241
novamente a cada amanhecer, enquanto o sol lutava para purificar
o que havia sujo durante a noite. Nenhum dos vampiros locais a
incomodava, por medo de Jeleva, e Jeleva não queria chegar perto
dela desde que um único encontro casual deixou o mago morto-vivo
com a nítida impressão de que devorar a mente de Gisa de alguma
forma danificaria a dela.
Como se algo pudesse ser melhorado pela influência de Gisa
Cecani! Ela se sentou na beira de uma parede em ruínas, deixando
uma cobra morta-viva deslizar entre seus dedos, soltando pele e
escamas a cada movimento, e esperou que algo acontecesse. Muito
parecido com um pássaro carniceiro, ela descobriu que, se esperasse
o suficiente, algo sempre aconteceria, e então ela poderia acontecer
com o que quer que fosse.
A paciência muitas vezes era sua própria recompensa. Um
pequeno grupo de figuras bípedes saiu cambaleando do rio
Silburlind, suas peles brilhando em prata à luz da tarde. Gisa se
levantou, deixando cair sua cobra, e se moveu para olhar mais de
perto. A prata não era um artefato do rio; era a luz brilhando em
pedaços de metal duro e serrilhado, como se essas pessoas
pertencessem a seu irmão.
Gisa se iluminou. Talvez seu irmão estivesse aceitando a oferta
de um jogo, afinal!
Mas as figuras caminharam, em vez de cambalear, e enquanto ela
observava, uma delas sacou uma espada que brilhava com algum
tipo de substância brilhante semelhante a óleo, cortando um de seus
doces e inocentes ghouls em dois.

242
Arte por Denis Zhbankov
A boca de Gisa se abriu em choque furioso. Geralf foi quem
insistiu que eles seguissem regras estúpidas , não ela! E suas regras
incluíam o confronto em um local e hora predeterminados - uma
regra que ela estava disposta a ignorar em troca da oportunidade de
jogar - e uma proibição contra espadas mágicas!
Espadas que brilhavam com arco-íris tóxicos e podiam cortar um
carniçal que facilmente contava como mágico. Gisa fez uma careta,
assobiando uma nota longa e grave. Ao seu redor, os mortos que ela
ressuscitou para sua própria diversão se voltaram para o aglomerado
na praia. Ela assobiou de novo e eles começaram a avançar.
As pessoas metálicas - que afinal não eram skaabs, a julgar pela
maneira como sangravam óleo preto, não viscus vitae, quando suas
criações obedientes os rasgavam membro por membro - lutaram de
forma brilhante e dura, mas no final, eles foram superados em
número por um fator de dezenas.
Gisa esperou até que parassem de se contorcer quando
cutucadas, então deslizou para fora de sua parede e caminhou
devagar, deliberadamente em direção ao estuário. "Você não foi
convidado para brincar conosco", ela disse a um dos cadáveres mais
intactos, olhando para seus olhos abertos e vazios. "Mas agora você
pode entrar no jogo, se quiser."
Ela assobiou, desta vez com mais força, e observou o cadáver se
erguer, balançando, do chão para se juntar ao resto do tesouro.
"Muito bem", disse ela, e se virou.

243
O som de algo caindo a fez se virar e franzir a testa. O ghoul que
ela acabara de chamar estava esparramado na lama, imóvel. Gisa
assobiou, buscando a sensação quase palpável de morte que pairava
no ar ao seu redor, e não encontrou nenhum traço da força
motivadora de sua carniçal dentro do cadáver. Não era nenhum
ghoul. Era apenas um corpo, apenas carne.
Ela o chamou novamente, e novamente ele subiu, e novamente
caiu assim que ela permitiu que sua atenção se desviasse.
Com os olhos um pouco arregalados e o coração batendo um
pouco rápido, Gisa aproximou-se do cadáver, cutucando-o com a
ponta da bota. Não reagiu. Isso nunca havia acontecido com ela
antes.
Assobiando para que seus ghouls a seguissem, ela recuou para as
paredes do Engelturm. Era hora de chamar um pássaro mensageiro.
Era hora de falar com seu irmão.
Caro açougueiro—
Sua mensagem mais recente não foi bem-vinda e começo a me
arrepender de ter me aproximado tanto de você. Você foi o
responsável pelas ridículas abominações que saíram do estuário esta
tarde para arruinar meu lindo dia? O que quer que você tenha feito
com esses cadáveres é vil e inapropriado. Eles se recusam a
responder adequadamente a boas e honestas carniçais, mas insistem
em desmoronar em pilhas sem vida assim que eu virar as costas.
Você fez algo que eu teria considerado impossível, querido
irmão. Você arruinou os mortos-vivos. Não faça isso de novo.
(Não) amor,
Gisa
PS: A espada era um truque desagradável. Você é o único que
disse sem espadas, e agora você dá seus terríveis erros de espadas
científicas cobertas de óleo para atacar minhas criaturas? Péssima
forma, Geralf. Má forma.
Como querido—
NÃO DEIXE O ÓLEO TE TOCAR! Sei que você é esperta,
minha irmã, por ter vivido tanto. O óleo que você viu é um contágio
levado pelos corpos que saíram do estuário. Um antigo associado de
Ludevic veio visitá-lo recentemente. Ele era um homem muito
estranho, mesmo para os padrões locais, com cabelos brancos e
modos frios. Os dois lutaram longamente antes que o homem
partisse. Ludevic me contou sobre esses invasores logo depois, e
244
disse que eles são chamados de "Phyrexianos". (Não relacionado,
ele optou por confiar em mim a defesa de Havengul enquanto visita
um ex-aluno em Selhoff.)
Essas criaturas não são minha criação. Eles pertencem a Phyrexia
e procuram destruir tudo o que faz a própria Innistrad. Eles desejam
transformar nosso glorioso lar em mais um posto avançado em seu
longo caminho para o império. Agora que eles chegaram a
Havengul, precisaremos encontrar uma maneira de detê-los, ou
todos, mesmo os mortos, ainda podem estar perdidos.
Um ponto a nosso favor: parece que o óleo deles afeta primeiro
a mente viva e, portanto, não pode infectar os mortos ressuscitados
de Innistrad, sejam ghouls ou skaab. Podemos combater com
segurança esses phyrexianos, quando tão poucos o fazem. Admito
que invejo sua capacidade de influenciá-los para o seu lado, mesmo
que brevemente; Não posso levantar um cadáver que foi
contaminado por seu óleo, por mais que eu costure habilmente (e
estou limitado pela necessidade de evitar minha própria infecção).
Geralf.
Gisa olhou entre a carta e o estuário, que fervilhava e pulsava
com o volume dos corpos que agora emergiam dele. Esses
"Phyrexianos" vieram em todas as formas e tamanhos, de humanos
a lobisomens transformados e outros horrores encantadores. Eles
seriam um excelente oponente.
Embora seus números imprevisíveis significassem que eles não
poderiam ser seus oponentes por conta própria. Rapidamente, ela
anotou sua resposta e amarrou na perna do mensageiro de Geralf. .
. .coisa, que ele havia enviado de volta no lugar de seu corvo bom,
honesto e morto-vivo.
Irmão-
Se alguém vai destruir Innistrad, seremos nós. Proponho
NecroWarfare, nós unidos contra Phyrexia, o vencedor leva tudo.
Se eu ganhar, posso ficar com Havengul. Se você vencer, o que não
acontecerá, já que finalmente admitiu meu poder superior,
concederei a você o Engelturm, enquanto volto para Gavony.
Vamos causar estragos.
Sua irmã,
Gisa
Gisa-
Está ligado.
245
Geralf.
A primeira salva de Geralf na luta foi mais ou menos o que Gisa
esperava. Uma onda de criações terríveis invadiu as muralhas de
Havengul para enfrentar os phyrexianos entre o rio e a cidade.
Muitos deles tinham três ou mais braços; alguns tinham três ou mais
cabeças . Eles eram horrores além da compreensão e colidiram com
a crescente onda de phyrexianos sem hesitação.
Observando das paredes do Engleturm, Gisa assentiu. Os
phyrexianos estavam concentrando suas atenções na cidade, em
geral, deixando-a sozinha. Isso mudaria uma vez que a batalha
começasse para valer, ela tinha certeza, mas por enquanto, ela podia
assistir.
Seu irmão era criativo, ela tinha que admitir isso. Tartarugas de
dorso escarpado voavam sobre os phyrexianos em asas de águia,
apenas para cair do céu e explodir quando atingiam o solo,
salpicando os phyrexianos com estilhaços e lodo que comiam sua
carne manchada de óleo. Ainda assim, seus hulks foram derrubados
rapidamente e, embora ele mostrasse uma quantidade notável de
criatividade - para ele - nas amálgamas que lançava no exército
adversário, ele ainda estava muito apegado à ideia da forma humana.
Sua imaginação era seu limite, e Geralf sempre fora profundamente
limitado.
Giza suspirou. Hora de ela se envolver. Bem, não seria um jogo
se ela não jogasse. O ar estava tão denso com as mortes residuais de
milhares em Innistrad que ela podia sentir o gosto no fundo da
língua toda vez que inspirava, iluminando sua mente como fogos de
artifício explodindo no céu, então ela respirou fundo, puxando
como tanto dessa morte em si mesma quanto ela poderia segurar,
até que ela sentiu como se estivesse prestes a explodir.
Então ela assobiou. Era uma nota longa e grave, e os poucos
seres vivos próximos o suficiente para ouvi-la estremeceram,
sentindo como se seus ossos quisessem se libertar e se juntar à
colheita sem fim dos mortos. Seus esqueletos se contorceram e
então se acomodaram, sem compulsão, e no fundo da lama do
estuário, bem longe das muralhas da cidade, algo se mexeu.
Gisa parou de assobiar e gargalhou em uma alegria maníaca
quando o dragão lunar morto-vivo que ela havia chamado da lama
subiu, majestoso, no céu. Suas asas estavam cheias de buracos, mas

246
restava o suficiente da membrana de couro para deixá-lo pegar e
subir no ar, puxando-se cada vez mais alto.
Os ghouls mais comuns saíram da lama e cambalearam em
direção às forças phyrexianas, gemendo e lamentando seu desafio.
O dragão lunar pairou acima deles e, ao voar, rugiu.
Vamos ver Geralf superar isso .

Arte por Alexey Kruglov


Gisa sentou-se presunçosamente para trás para assistir à
carnificina, apenas para se endireitar novamente quando outro
moondrake se ergueu da massa phyrexiana, este salpicado com
tubos e pingando com mais daquele maldito óleo. Após o aviso de
Geralf, ela se manteve bem longe do material. Como ele havia
prometido, não incomodou seus queridos falecidos, mas ainda
estava em todos os lugares e obscureceu os detalhes mais sutis da
luta. Talvez mais importante, as criaturas que mostravam traços dela
não se importavam mais com a autopreservação, estando tão
dispostas a morrer por Phyrexia quanto seus carniçais estavam
dispostos a morrer uma segunda vez, por ela.
Talvez fosse por isso que ela não conseguia segurar os
brinquedos Phyrexianos. Talvez eles fossem sua própria forma de
mortos-vivos e, como os fluidos desagradáveis que Geralf e seus
colegas Stitchers usavam para reanimar seus skaabs, o óleo
significava que ela não poderia trazê-los de volta uma segunda vez.
O que quer que fossem, era melhor do que skaabs. Um skaab
quebrado estava quebrado para sempre, e nenhuma quantidade de
apelos e persuasões faria com que ele se levantasse novamente. Pelo
247
menos um Phyrexiano quebrado poderia ser útil, mesmo que desse
mais trabalho do que valia a pena.
Os moondrakes colidiram uns com os outros quando as linhas
de Phyrexianos e ghouls colidiram. O dragão lunar deles tinha dentes
de metal irregulares e os usou para abrir a barriga de sua criação,
despejando suas entranhas podres nos lutadores abaixo em um
emaranhado úmido e desleixado. A perda repentina de massa
concedeu ao dragão lunar de Gisa uma sustentação, permitindo que
ele se elevasse vários metros acima de seu oponente e atacasse de
cima, as mandíbulas apertando o pescoço do outro dragão logo
abaixo da cabeça.
O dragão lunar Phyrexiano tentou se livrar dele, mas a altura
superior do dragão lunar de Gisa o deixou com vantagem e, logo,
ambos caíram no chão, onde o dragão dela arrancou a cabeça do
outro antes de entrar na briga sozinho. pernas, amarração da cauda.
Suas asas foram destruídas além do reparo, mas ela forçou as forças
de Phyrexia a gastar parte de sua própria defesa aérea; o fato de que
eles não tinham usado o moondrake contra as tartarugas voadoras
de Geralf provavelmente significava que eles estavam planejando
algo em torno disso, e agora ela estragou isso.
Presunçosa, Gisa, dirigiu seus ghouls mais profundamente em
suas forças, vendo cada um que ela perdeu como um custo razoável
para os membros que estavam arrancando de seus oponentes.
Phyrexianos sem cabeça tendiam a ficar abaixados, ela observou, a
menos que tivessem movido suas mentes para outras partes de seus
corpos; alguns deles tinham rostos embutidos em seus peitos,
sugerindo um arranjo de órgãos muito mais aerodinâmico. Aqueles,
ela assobiou para seus ghouls apontarem para onde ela presumia que
os nervos controladores estariam, com o objetivo de incapacitar
tanto quanto matar.
Os phyrexianos pareciam ter tão pouca preocupação com seus
caídos quanto os ghouls dela; os corpos, uma vez caídos, tendiam a
permanecer assim. Isso foi bom. Eles, ocasionalmente, tentavam
arrastar os cadáveres mais intactos para longe para que pudessem
construir novos phyrexianos a partir dos restos, como se aspirassem
a tomar o lugar do irmão dela. Isso era ruim e travesso, e não deveria
ser permitido.
E enquanto tudo isso acontecia, ainda mais Phyrexianos surgiram
do estuário. Enquanto ela franzia o cenho para eles, um dos seakites
248
ressuscitados que ela estava usando como sentinela ao redor do
Engleturm grasnou um aviso alto e furioso, e ela se virou para olhar
naquela direção.
Mais phyrexianos estavam se aproximando por terra, e estes
pareciam menos propensos a ignorar sua fortaleza do que aqueles
entre o estuário e a cidade. O caminho atual dessa segunda força os
levaria diretamente além do Engleturm.
"Eu disse três vias, não quatro vias", disse ela furiosamente,
levantando-se. "Pyrexianos maus! Trapaceiros!"
E para a frente marchou o exército invasor.
Dentro das paredes de Havengul, Geralf costurava como nunca
havia costurado antes, batendo corpos em mesas, movendo-se entre
elas com uma velocidade que falava mais de montagem do que de
arte. Suas mãos enluvadas tremiam enquanto ele virava um corpo
particularmente maltratado, procurando os sinais reveladores do
óleo phyrexiano. Aqui, em particular, onde ela nunca saberia, ele
poderia admitir que a arte de Gisa era superior à dele neste aspecto
único e solitário: ela não precisava sujar as mãos se não quisesse. E
oh, ela freqüentemente queria, mas este jogo não arriscava a vida
dela como arriscava a dele. Seus skaabs estavam sob instruções
estritas para evitar cadáveres contaminados, mas não havia muito
que um cérebro apodrecido pudesse fazer para verificar a condição
das coisas que estavam trazendo para ele. A maior parte do trabalho
ainda era dele.
Pelo menos havia muitos cadáveres para serem encontrados.
Mesmo quando um soldado phyrexiano matava alguém, o corpo
nem sempre estava contaminado, e seus skaabs traziam matérias-
primas quase mais rápido do que ele conseguia costurar. O
remendar do cadáver foi a parte mais longa do processo, já que ele
não podia confiar as costuras a mais ninguém, e todos os seus
assistentes vivos foram . . .indisponível, neste momento.
Uma vez que os corpos estivessem devidamente montados, ele
poderia anexar as placas de ligação aos elementos-chave de sua
criação, evitando que os doadores individuais do corpo se rasgassem
quando fossem chamados de volta à vida, e começasse a forçar o
viscus vitae através da tubulação que ele havia instalado
anteriormente para drenar o sangue e icor das veias existentes.
Enquanto isso acontecia, ele já estava descendo para o próximo
corpo ou corpos na fila, alcançando a agulha ou começando a entoar
249
a vox quietus que despertaria a criatura. Ele não tinha tempo para a
instrução e educação normais que se seguiriam; em vez disso, assim
que seu skaab renascido se levantasse, ainda intrigado e inocente do
mundo ao seu redor, ele seria armado, equipado com as informações
básicas sobre o que era um Phyrexiano e como destruí-lo, e enviado
para defender a cidade.
O que restou dela. Os phyrexianos já deviam ter atravessado os
portões, e os gritos do lado de fora do laboratório estavam se
tornando menos frequentes, fazendo-o suspeitar que a população
de Havengul estava diminuindo enquanto ele trabalhava. Enquanto
o laboratório permanecesse seguro, seu trabalho continuaria e,
graças à genialidade de Ludevic, eles tinham tantos túneis e saídas
secretas para empurrar os skaabs que os phyrexianos nunca
descobririam onde ele estava.
Ou assim ele esperava.
Ele estava passando para outra mesa quando as portas para o
maior daqueles túneis ocultos se abriram e um grupo de skaabs que
ele havia colocado para coletar matérias-primas entrou, meio
carregando e meio arrastando uma fera enorme. Geralf piscou.
"Coloque-o na laje grande ", disse ele.
Gisa estava comandando outro grupo de carniçais para arrancar
os phyrexianos das muralhas de Engleturm quando um rugido
retumbante se ergueu da direção da cidade. Ela virou. Assim como
os Phyrexianos. Seus carniçais, sendo muito mais difíceis de distrair,
continuaram atacando, fazendo uma incursão sólida no inimigo.
Uma besta imponente passou por cima da parede de Havengul,
seus chifres projetando-se para cima de seu crânio caprino grosso
como mãos abertas cheias de musgo e peles de couro, suas pernas
longas e robustas aumentadas com pistões e o que parecia ser um
urso morto inteiro.
Sem asas desta vez, mas ainda assim, foi razoavelmente
impressionante, para um dos esforços de seu irmão. Gisa riu e bateu
palmas quando o gigante colossal começou a pisotear os
phyrexianos. Onde os skaabs de Geralf conseguiram encontrar a
coisa? Parecia uma das criaturas que às vezes eram encontradas nas
florestas onde Gavony fazia fronteira com a floresta Kessig. Ela
nunca tinha visto um tão perto do mar.
Ele deve estar ficando sem matéria-prima para enviar seus grupos
de catadores para tão longe da cidade. Bem. Ela não podia permitir
250
que um consertador de carne inútil tivesse o maior brinquedo no
campo de batalha. Cravando os calcanhares na pedra sob seus pés,
Gisa alcançou profundamente a energia de um Innistrad ferido,
puxando a morte para dentro dela até que suas veias cantassem e
seu sangue fosse fogo, até que ela pudesse sentir cada coisa morta e
moribunda por quilômetros em todas as direções. Assim, armada
contra o mundo dos vivos, ela começou a chamar.
Nem um assobio desta vez: uma canção a plenos pulmões,
lamentando suas exigências para o espaço além do túmulo. Ela
alcançou e alcançou, procurando o maior alvo que pudesse
encontrar, e seu poder de busca esbarrou em algo terrível, vasto e
quitinoso, enterrado na lama no fundo do estuário de Silburlind. Ele
estava lá por um tempo, levado por fortes correntes, mas estava
fresco o suficiente para responder quando ela cantou, agitando-se
sob a água.
Rugindo de fúria e estalando todos os nove conjuntos de garras
terríveis, o novo brinquedo terrível de Gisa ergueu-se do fundo do
estuário e começou a se arrastar em direção à terra com fileiras e
mais fileiras de pernas afiadas e serrilhadas. Combinava as garras de
um grande caranguejo, os tentáculos de um kraken e o corpo
quitinoso de uma lagosta em uma configuração horrível que nunca
deveria ser vista acima das ondas. Os phyrexianos que ainda não
haviam se envolvido com a grande besta de Geralf voltaram-se para
esta nova ameaça, reconhecendo-a como um possível fim para a
batalha se não fosse derrotada. Os sobreviventes que estavam
tentando romper o Engleturm se afastaram dos ghouls ainda
agressivos e se juntaram ao resto de sua companhia, formando uma
força maior entre a criatura e Havengul.
Ofegante e cansada do esforço, Gisa afundou em seu assento,
rindo enquanto observava o exército phyrexiano se chocar contra
seu colosso blindado. Eles esfaquearam, cortaram e rasgaram,
balançando aquelas espadas brilhantes e atacando com garras ou
caudas de escorpião que pingavam óleo de suas pontas, e seu novo
brinquedo favorito os partiu em dois, garras cortando como
tesouras através de torsos phyrexianos. Não tinha a precisão de
apontar para o pescoço todas as vezes, mas seus ghouls estavam lá,
limpando, decapitando e desmantelando enquanto a criatura
passava.

251
As forças na muralha da cidade estavam cortando as pernas do
gigante de Geralf, e com um bramido final de tremer a terra, ele caiu,
se espatifando no chão e esmagando vários phyrexianos no
processo. Seus companheiros tentaram em vão libertá-los, então se
moveram para se juntar ao ataque contra a criatura de Gisa.
A terrível fera marinha continuou partindo-os em dois, mas suas
pernas, blindadas como eram, continuaram sendo seu ponto mais
fraco. Eram finos e insuficientes para locomoção em terra,
restringindo sua velocidade e abrindo suas articulações para o
ataque. Os phyrexianos começaram a cortar suas pernas.
Gisa parou de rir.
Ela olhou para os phyrexianos cortaram as pernas debaixo de sua
criatura. Como o gigante antes dele, ele caiu, e seu tamanho era tal
que o topo de sua cabeça arrancou uma parte dos muros da cidade.
Gisa, embora exausta, assobiou para outro enxame de ghouls mais
comuns, colocando-os para defender sua própria fortaleza.
Talvez a regra boba de Geralf de nunca atacar ninguém em seu
quartel-general não fosse tão boba afinal.
Gisa-
Amada irmã. Este terrível novo oponente move-se rápido demais
para nossos recursos, a menos que os juntemos. Embora minha
ciência destrua cadáveres para seu uso, assim como Phyrexia os
destrói para mim, nós dois sabemos muito bem que posso usar
corpos que você já deixou de lado, mas apenas se você rescindir sua
reivindicação sobre eles.
Meus skaabs estão prontos para recuperar nossas maiores
conquistas das muralhas da cidade, e acredito que eles podem fazer
isso sem sofrer perdas inaceitáveis, se ambos focarmos nossas
tropas nos phyrexianos naquela área. Apenas entregue sua lagosta
gigante aos meus cuidados e podemos virar a maré da batalha a
nosso favor.
Geralf.
Gisa, que estava de mau humor com a perda de sua besta, decidiu
enfurecer-se. Ela enfureceu a carta de Geralf bem na borda da
parede, na batalha abaixo. Ela enfureceu o skaab que ele havia usado
para entregá-la em vários pedaços e, quando isso não bastasse, ela
enfureceu uma série de pedras após a carta, jogando-as com toda a
força que pôde.

252
Infelizmente, e ao contrário de quando eram crianças, seu acesso
de raiva não conseguiu nada além de esfregar sua garganta, quebrar
um mensageiro perfeitamente bom e atrair a atenção de vários
phyrexianos. Ela assobiou para um grupo de ghouls próximos atacá-
los antes que eles pudessem começar a escalar as paredes, então
pegou seu kit de cartas, que ela mantinha à mão para dar uma
resposta graciosa à rendição inevitável de Geralf.
Melhor deixá-lo consertar um brinquedo quebrado do que ficar
sem cadáveres sem nenhuma maneira de escapar das forças
phyrexianas. O que quer que fossem, era algo que ela não tinha
interesse em se tornar. Quando ela morresse, ela iria se levantar da
sepultura do jeito certo , como sempre fazia um Cecani.
Querido irmão, abominação gargarejadora de cartilagem...
Minha lagosta está muito quebrada. Eu suponho que você não
pode fazer isso pior. Se suas criações puderem arrastá-lo de volta
para seu laboratório, eu o deixarei ir. Mas você vai me dever!
Gisa
Geralf não se incomodou em responder antes de colocar seus
skaabs para recuperar os corpos dos dois monstros. Eles os
arrastaram por cima do muro, esmagando várias casas, e pelas ruas
até uma praça geralmente usada para mercados e reuniões cívicas.

Arte por Igor Kieryluk


O problema com esse plano era que o laboratório nunca conteria
as duas criaturas. Foi uma luta colocar o gigante sozinho e depois
sair novamente. Para ele realizar este ato mais épico da ciência, ele
precisaria se expor à possibilidade de ataque.
253
Várias de suas criações maiores já haviam carregado o
equipamento que ele precisaria para fora do laboratório, enquanto
um grupo de caçadores limpava os phyrexianos próximos - que
incluíam, ele lamentou notar, alguns locais que ele estava de olho.
para eventual aquisição, uma vez que Ludevic aprovou a separação
da população. Bem, eles estavam arruinados agora, junto com tantos
outros. Mas nada disso importaria uma vez que sua criação surgisse.
Assim que conseguisse isso, seria oficialmente reconhecido
como o maior costureiro que já existiu. Agarrando a broca que
precisaria para criar costuras através da armadura quitinosa da besta,
ele sorriu para si mesmo e começou a trabalhar.
Esta seria sua obra-prima, sua maior e mais terrível criação, e
quando surgisse, toda Innistrad saberia seu nome.
Gisa assobiou freneticamente, assumindo o controle dos
phyrexianos caídos e usando-os para espancar seus ex-aliados até a
morte antes de deixá-los ir e procurar por cadáveres mais honestos.
Eles estavam quase fora. Os aparentemente inesgotáveis mortos de
Nephalia estavam perto de ficarem, bem, exaustos. Em breve, seu
exército seria derrotado e, enquanto as criações de Geralf faziam o
possível para manter a linha, seu irmão inútil havia parado de
acrescentar algo à luta assim que ela soltou sua besta quebrada.
Envolvido em seu próprio pequeno experimento novamente, sem
dúvida, e preocupado demais para se importar com as necessidades
de Gisa , os problemas de Gisa , o fato de que Gisa estava prestes a
ser invadida por Phyrexianos...
Um rugido familiar de tremores de terra ergueu-se por detrás das
paredes de Havengul, sublinhado com um som gorgolejante
profundo, como se estivesse subindo através da lama espessa. Gisa
desviou os olhos da luta por tempo suficiente para se virar e ver a
fusão indescritível de gigante e pesadelo aquático conforme ele se
erguia da cidade, garras estalando e chifres prontos para degolar.
Suas novas pernas eram mais longas, e ele passou facilmente
sobre as paredes enquanto investia contra a massa phyrexiana, garras
afiadas cortando os phyrexianos em dois, deixando seus corpos
espalhados pelo chão. Seus cascos prontamente os transformaram
em mingau, deixando-os muito quebrados para se levantarem antes
mesmo de Gisa assobiar seus carniçais de volta à briga para aliviá-
los do fardo de terem cabeças.

254
Os phyrexianos em suas paredes correram para tentar virar a
maré, tarde demais. Gisa assobiou e Geralf riu, observando a última
força de ataque cair, gritando, diante da maré de mortos.
A fogueira foi ideia de Gisa, claro. Skaabs eram notoriamente
inflamáveis, enquanto seus ghouls só queimavam tão rápido quanto
as pessoas vivas. Ainda assim, eles tinham que fazer algo sobre os
phyrexianos mortos, já que eles eram inúteis para todos os
propósitos necromânticos decentes. Os irmãos sentaram-se na
muralha da cidade de Havengul, observando suas criações
alimentarem o fogo, desfrutando da paz momentânea.
E então Geralf teve que ir e arruiná-lo.
— Vou sentir sua falta, irmã.
"Sinto minha falta? Por que você sentiria minha falta ?"
Geralf deu de ombros, olhos no fogo. "Ora, porque você está
voltando para Gavony, é claro. Os termos do nosso acordo, como
você deve se lembrar. Se eu ganhasse, você me daria o Engleturm e
iria embora."
"Você não poderia ter vencido se eu não tivesse lhe dado meu
brinquedo! Isso não conta como uma vitória. Eu não vou a lugar
nenhum."
"Seu brinquedo, que era tão vital que desabou assim que a luta
acabou? Por favor."
Mesmo com novas pernas, a grande besta não estava equipada
para existir fora da água e desmoronou logo após a batalha,
quebrada além da capacidade de reparo de Geralf.
"Nenhum de nós ganhou", Gisa retrucou.
Os dois continuaram a brigar enquanto os sobreviventes de
Havengul se amontoavam em suas casas, exércitos de mortos-vivos
se posicionando na ampla planície fora do estuário, prontos para
retomar sua luta eterna.
Algumas coisas estão além da capacidade de mudança de
Phyrexia.

255
ELDRAINE: AS AVENTURAS DE
RANKLE, MESTRE DO AMOR
Jenna Helland

Rankle entrou na clareira, com os bolsos cheios de pedras e pó


mágico. Ele estava pronto para uma luta, mas seus amigos estavam
desarmados e de bom humor. Alegremente, eles mostraram a ele um
trono que haviam construído com pedras cobertas de musgo e
folhas de ouro vermelho. Orla jogou pétalas de rosa em sua direção,
e Fifer usava um coelho morto na cabeça - um belo chapéu novo
adequado para uma coroação. Rankle gritou de alegria. Dias de
tormento valeram a pena! Eles estavam prestes a torná-lo seu rei.
Apenas Mags ficou de lado, mordendo o lábio com os dentes
afiados e arrastando o pé descalço nas folhas caídas.
"Lorde Rankle, aproxime-se do trono!" Fifer proclamou com a
voz mais formal que pôde reunir.
Orla começou a recitação: "Com muito barulho, concedemos a
você a circunstância de nobreza e seqüencial arauto real . . ."
"Onde está minha coroa?" Rankle latiu com autoridade.
Todos olharam para Mags, que parecia ainda mais irritada.
"Faça sua parte, Mags!" Fifer gritou.
Rankle deu a Mags seu melhor sorriso real. Ele gostava mais dela.
Ela era habilidosa com uma faca e tinha asas negras lustrosas, como
um morcego. Às vezes, eles emboscavam caravanas juntos e, uma
vez, fizeram a Besta Buscadora chorar.
Mags fez uma careta. Ela enfiou a mão no manto e tirou uma
tiara feita de bolotas e cacos de vidro. O coração de Rankle bateu
um pouco mais rápido. Mags foi o que mais resistiu às suas
exigências de liderança. Mas talvez ela o amasse afinal. Ela deve, ou
eles ainda estariam se esfaqueando sobre quem seria o rei.
256
Mags voou pela clareira e enfiou a tiara em sua cabeça.
"Ai", disse Rankle.
Ela deu a ele um sorriso rosnado e uma pequena reverência, o
que fez seu coração disparar. Rankle alcançou seu trono e se
acomodou sobre as folhas crocantes. Ele olhou para seus súditos e
desejou que houvesse mais deles. Mas ele tinha que começar em
algum lugar, e três era melhor do que nenhum.
"Como seu governante . . ." ele começou, mas então Mags sacou
sua faca e cortou uma corda escondida nas árvores.
A corda estava presa a uma rede escondida sob as folhas.
Instantaneamente, isso o prendeu e o puxou para cima. Ele
pendurou em um monte na frente dos outros, que estavam uivando
de tanto rir.
"Você viu o rosto dele?" Fifer riu.
"Não acredito que ele caiu nessa", disse Orla. "Você estava certo,
Mags."
"Isso foi ideia de Mag?" Rankle gritou de dentro da rede.
"Não, eu só queria estripá-lo," Mags esclareceu. "Fifer tinha que
torná-lo chique."
Rankle não podia acreditar no que estava ouvindo. "Por que?"
"Ninguém quer você aqui", disse Mags.
"Você é muito mau, você é", disse Fifer, ajustando o coelho
morto em sua cabeça.
"Você colocou abelhas na minha boca quando eu estava
dormindo", disse Orla.
"Isso é mau?" Rankle protestou. "Mags usa globos oculares em
seu estilingue."
"Não meus olhos", Orla apontou.
"Você costurou minha boca fechada," Fifer o lembrou.
"Você está bem agora", protestou Rankle. "Olhe para você, não
vai calar a boca."
"Não queremos você aqui", repetiu Mags. "Você vai ou não?"
"Não", disse Rankle teimosamente. Ele virou a cabeça para que
ela não pudesse ver seu lábio tremer. "Esta é a minha clareira. Eu
apenas deixei você ficar aqui porque eu sou legal."
As três fadas se amontoaram, sussurrando. Rankle se contorceu
e tentou ouvir o que eles estavam dizendo.
"Vamos decepcioná-lo se você prometer ir embora e nunca mais
voltar", disse Orla.
257
"Tudo bem", mentiu Rankle. Ele estava muito espremido na rede
para fazer qualquer outra coisa.
Mas assim que Mags lançou a rede, ele voou e deu uma cabeçada
nela com seu copo e tiara de bolota. Mags cambaleou para trás, mas
os outros dois pularam sobre ele. Eles rolaram pela clareira em uma
briga baixa e chutando poeira. Rankle mordeu a perna de Orla antes
que eles o imobilizassem, e Mags enfiou uma vara afiada em sua asa
para prendê-lo.
"Não lute, ou vai rasgar sua asa", alertou ela.
"Não me diga o que fazer!" Rankle uivou, lutando violentamente
e balançando descontroladamente. Mags segurou o bastão no lugar
enquanto Orla e Fifer faziam o possível para mantê-lo no chão.
Finalmente, sem fôlego, Rankle parou de lutar.
"Olha o que você fez", disse Mags, puxando o bastão. A asa de
Rankle estava em frangalhos.
"Ai", disse Rankle, tentando bater as asas, mas sua asa doía ainda
mais.
Orla e Fifer recuaram, parecendo vagamente arrependidos.
Normalmente, quando alguém se machucava, não era permanente.
Talvez isso tenha mudado como eles se sentiam.
"Posso ficar?" Rankle perguntou, virando a cabeça para
inspecionar o dano.
"Não!" todos os três gritaram.
"Nós não gostamos de você", Fifer gritou.
"Ninguém sabe", disse Mags, arrancando a tiara de sua cabeça.
Rankle tentou voar para cima e para longe, mas não conseguiu
com sua asa agora inútil. Ele saiu da clareira.
Rankle estava de tão mau humor que os pássaros canoros o
olhavam de cara feia. Até as borboletas o evitavam enquanto ele se
arrastava pela estrada sob um estranho céu arroxeado.
"Vou esmagar todos vocês", ele gritou para um rabo de
andorinha em fuga.
Rankle alcançou a estrada de carroça que atravessava as terras
fronteiriças, o território entre a selva e o Reino que tanto os
humanos quanto o povo feérico frequentavam. Rankle não passava
muito tempo com humanos, mas se considerava um especialista: se
você queria amigos, precisava de dinheiro. Ele jurou roubar o
primeiro humano que visse. Agora que ele tinha um plano, seu
ânimo se iluminou.
258
A torre do relógio da vila estava à vista quando ele encontrou seu
alvo. Um homem de cabelos brancos com uma barba bem feita e
um manto azul estava em Hero's Rock na encruzilhada fora da
aldeia. Enquanto Rankle subia a colina, ele viu um grupo de aldeões
reunidos enquanto o homem de cabelos brancos gesticulava para o
céu doentio.
"O céu está como uma contusão", berrou o homem. "Você não
pode ver os sinais?"
"Você é um tolo, Chulane", gritou um aldeão. "Volte para seus
livros de histórias."
Chulane ergueu uma folha amarela. Parecia haver um símbolo
gravado nele, mas Rankle estava mais interessado na bolsa de couro
no cinto de Chulane.
"Oh, ai de mim, vejo o sinal do outono", outro aldeão zombou.
"Abra seus olhos!" Chulane implorou a eles. "Algo terrível está
prestes a nos acontecer!"
Os anciãos voltaram para a aldeia, mas um jovem pegou uma
pedra e atirou no velho contador de histórias. Logo vários jovens
estavam arremessando pedras, e Chulane pulou e saiu correndo da
aldeia. Rankle adorava uma boa rodada de arremesso de pedras
tanto quanto qualquer um, mas como era improvável que o jovem
tivesse moedas, ele seguiu o homem perturbado.
Rankle seguiu Chulane, mantendo-se do outro lado das paredes
de pedra ao longo da estrada. Ele continuou procurando um lugar
adequado para emboscá-lo, mas as longas pernas do homem o
ultrapassaram facilmente, e a asa esfarrapada de Rankle o manteve
firme no chão. Chulane continuou delirando sobre "avisar a rainha"
e "Locthwain", com a moeda tilintando alto enquanto ele
praticamente corria pela estrada esburacada.
Em pouco tempo, eles chegaram a um trecho perigoso da estrada
conhecido como Undertaker's Corner, que dava para uma granja
idílica centenas de metros abaixo. Os carrinhos eram conhecidos
por voar do penhasco em vez de fazer a curva fechada à direita para
seguir curvas em ziguezague até o vale.
Quando Chulane parou para apreciar a vista, Rankle subiu mais
alto na encosta, pronto para fazer seu movimento. Mas ele avistou
o Castelo Locthwain no vale abaixo, e todos os pensamentos de
emboscada foram esquecidos. Embora Rankle tivesse ouvido
histórias sobre isso desde que era um bebê, este foi seu primeiro
259
vislumbre do castelo flutuante, que o lembrou de um navio
majestoso no topo de um oceano de nuvens. Suas torres graciosas e
ameias maciças brilhavam apesar da penumbra do dia.
Rankle podia ver uma procissão real serpenteando pelas curvas
em direção a eles. Cavaleiros em armaduras pretas e douradas
escoltaram a carruagem da Rainha Ayara pela estrada traiçoeira. A
Rainha Ayara reinou sobre a Corte de Locthwain e tinha a reputação
de ser feroz e astuta, assim como o próprio Rankle. Ela havia
sobrevivido a incontáveis maridos e estava procurando por
pretendentes que combinassem com seu porte real e inteligência.
Rankle observou até que a carruagem, envolta na heráldica roxa de
Locthwain, chegasse ao topo da colina. Embora nunca a tivesse
visto, Rankle há muito admirava a rainha e se aproximou de Chulane
para ver melhor.
"Ah, a rainha se aproxima", disse Chulane. Então, de repente,
percebendo a pequena figura ao lado dele, ele se assustou e agarrou
a bolsa em seu cinto. "Ah! Fada! Não toque no meu ouro."
Rankle suspirou. Sua curiosidade havia arruinado o elemento
surpresa, mas ele ainda tinha um bolsão de pó mágico e muito
tempo para fazer travessuras depois que o espetáculo tivesse
passado. Rankle saiu da estrada para abrir espaço para a carruagem
da rainha, mas Chulane pulou na frente dela. Imediatamente, dois
cavaleiros flanquearam o velho e apontaram suas espadas para seus
olhos.
"Por favor, deixe-me falar com nossa mais gloriosa rainha",
implorou Chulane, curvando-se tão baixo que sua barba quase tocou
a estrada. "Só uma palavra. Tenho sido muito persistente!"
Rankle se abaixou para debaixo da carruagem antes que alguém
o notasse. Acima dele, ele ouviu a porta da carruagem se abrir.
Houve um farfalhar de saias quando a rainha pisou na estrada. Ela
ficou na frente do Chulane ajoelhado.
Espiando pelos raios da roda, Rankle viu a mão enluvada da
rainha tocar levemente o ombro de Chulane.
"Que dedos longos você tem, minha rainha," Chulane gaguejou
enquanto se levantava.
"O que é tão importante, contador de histórias?" Ayara
perguntou com a voz mais doce que se possa imaginar. Sua voz era
tão convincente que Rankle manobrou para ter uma visão melhor.

260
"O mal está chegando, minha rainha", disse Chulane. "Os céus
logo se abrirão e horrores inimagináveis cairão sobre nós."
"É assim mesmo?" Ayara murmurou. "Bem, entre e me conte
tudo."
Quando os dois passaram por ele, Rankle teve um vislumbre do
rosto de Ayara. Ele sentiu como se tivesse levado um tapa de um
troll. Ele não conseguia respirar. Ele não conseguia pensar. Ele
apenas ficou no meio da estrada enquanto os cavaleiros esporeavam
seus cavalos e a carruagem passava por cima dele, deixando
estranhos rastros pretos em seu rastro.

Arte por Anna Podedworna

Mas Rankle não deu atenção a isso, pois estava apaixonado . O


caminho estava livre pela primeira vez desde que Mags o esfaqueou
com seu bastão. Ele sabia o que deveria fazer. Ele deve se tornar o
próximo marido de Ayara.
Rankle disparou pela estrada em direção ao vilarejo com uma
canção no coração. Ele nunca se preocupou em encontrar uma
companheira, mas se considerava um mestre nos assuntos do
coração. Apenas uma estratégia conquistaria o coração da rainha: a
magia. Especificamente, um feitiço de amor, poção ou feitiço - ou
talvez todos os três. E para isso, ele precisava da ajuda de uma bruxa.
Quando Rankle chegou a Edgewall, ele caminhou pelas ruas
desertas. As lojas fechadas não davam sinais de vida. O único som
era o rangido da placa de madeira do Açougue Três Porcos. Mas
261
conforme ele se aproximava de seu destino, ratos começaram a sair
dos esgotos. Logo eles estavam saindo da sarjeta, um verdadeiro
desfile de ratos. O Piper teria seu trabalho cortado para ele.
Quando Rankle chegou à loja de encantos, os ratos estavam
correndo pelas paredes das lojas e se alinhando ao longo da borda
superior do telhado com seus rostinhos voltados para o céu. O
comportamento estranho deles tirou Rankle de sua festa. Um anel
de nevoeiro tingido com um brilho vermelho marcava o céu acima
da aldeia. Rankle deu de ombros. Era um dia para magias estranhas.
Rankle precisava de algumas magias estranhas próprias.
Com um floreio, ele abriu a porta da loja de encantos e invadiu o
interior escuro e mofado.
"Preciso de uma poção do amor", ele anunciou para a sala vazia
- que, conhecendo as bruxas - provavelmente não estava vazia.
"Vá embora, pequeno fae," disse uma voz desencarnada. "Não
vê que estou ocupado?"
"Não consigo ver você de jeito nenhum", disse Rankle
razoavelmente. "E não vou embora até conseguir o que quero."
A sala vazia suspirou. Quando nada aconteceu, Rankle foi até
uma prateleira próxima cheia de caveiras, ervas e um arco-íris de
porções coloridas.
"Estas são boas", pensou Rankle, passando o dedo pelas garrafas
de vidro.
"Não toque", o quarto vazio o advertiu.
Rankle pegou uma garrafa grande com um líquido dourado e
segurou-a sobre a cabeça.
"Aguentar-"
Rankle quebrou a garrafa no chão. Uma luz branca abrasadora
explodiu para cima, chamuscando seu cabelo e chamuscando o teto,
mas Rankle não parou. Ele pegou outra garrafa - vermelho sangue,
que divertido! Mas um brilho no canto o fez hesitar. Quando o
glamour se dissipou, uma mulher elegante - e muito irritada - se
elevou sobre ele.
"E se você simplesmente destruísse exatamente o que veio
buscar?" ela perguntou.
Rankle parou, impressionado com os poderes de leitura da mente
da mulher. "Como você sabe o que eu vim fazer?"
A bruxa esfregou os olhos cansadamente. "Por que você quer
uma poção do amor?"
262
"Eu devo me casar com a Rainha Ayara!" Rankle proclamou.
"Você e todos os outros daqui até Garenbrig", disse a bruxa.
"Poções do amor são assustadoras, e nós temos problemas maiores.
Agora, se apresse. Preciso terminar de fazer minhas malas."
Rankle pegou uma garrafa de larvas em conserva. "Qual o
problema? Os ratos? Isso é uma poção do amor? Não é, certo?"
"Não . . ." a bruxa começou.
Rankle quebrou a garrafa. O vidro quebrou, o líquido espirrou
em seus pés e as larvas começaram a quicar pela sala como
minúsculas bolas de borracha.
"Ooh", disse Rankle, impressionado.
De repente, houve uma lufada de ar e Rankle foi magicamente
levantado do chão. Imóvel e pairando, ele se viu cara a cara com a
bruxa.
"Você tem olhos bonitos", Rankle murmurou. "Mas não tão legal
quanto a minha Ayara."
"Você é um pouco vazio de destruição e miséria, não é?" a bruxa
sibilou. "Estou deixando Edgewall para me encontrar com algum
parente seu . . ."
"Mags e tudo isso?" Rankle interrompeu. "Não somos parentes
e eles são maus como um bando de texugos."
"Não, seu parente mais alto, mais erudito e menos
indisciplinado", disse ela. "Eu vou te dar uma escolha."
Rankle estava cansado de ficar em um lugar por tanto tempo e
lutou inutilmente contra as garras invisíveis da bruxa.
"Você deveria vir comigo," a bruxa ofereceu. "Estamos unindo
forças para lutar contra a destruição que está por vir."
Rankle mal ouvia. Não se mexer era uma tortura. Ele tentou
chutar, bater, agarrar e morder, mas nenhum músculo se moveu.
"Você não pode me dizer o que fazer!" ele uivou.
"Ou você pode partir em busca de uma flor especial do amor,
que conquistará o coração de Ayara para sempre."
Rankle parou de lutar. "Flor do amor", disse ele.
A bruxa revirou os olhos. "Estou chocado com sua escolha. É
uma jornada longa e difícil. E você deve prometer não voltar para
Edgewall até encontrá-lo."
"Flor do amor!" Rankle gritou quando a bruxa o libertou de seu
feitiço, e ele caiu sem cerimônia no chão.

263
A bruxa pairava sobre ele. "Não abandone sua busca porque você
está cansado, com fome ou entediado. Prometa-me, pequena fae."
Rankle levantou-se, limpou-se e sorriu. "Eu sou Rankle. E você
tem minha palavra", ele prometeu.
Rankle estava cansado e entediado, mas não estava com fome
graças ao bolso cheio de larvas em conserva.
Ele havia seguido as instruções da bruxa, mas não havia flores
nesta parte da floresta, que era escura, desconhecida e cheia de
corvos. Ruídos estranhos ecoavam acima e faziam os pássaros
voarem em todas as direções, exceto para cima. Rankle não
conseguia ver o céu através dos galhos escuros amarrados acima. E
ele não conseguia sentir o cheiro de nenhuma fada em lugar
nenhum, o que significava que a bruxa provavelmente o havia
enviado para um território hostil.
Talvez ela o tivesse enviado em uma missão tola por razões que
ele não conseguia entender. Talvez até a flor fosse uma falsidade.
"Quem já ouviu falar de um 'Lilás de Longa Duração da
Saudade'?" Rankle murmurou para o corvo mais próximo, que
parecia estar encolhido dentro do oco de uma árvore. "Esta é uma
busca idiota."
Abatido, ele abandonou sua busca e voltou para Edgewall. Ele
estava se aproximando das terras fronteiriças quando um rebanho
de alces irrompeu do matagal e quase o pisoteou. Ele escapou
saltitando e subindo em um galho baixo enquanto eles passavam
trovejando.
"Rude!" ele os chamou. Ele estava prestes a pular quando uma
estranha criatura apareceu na clareira. Rankle semicerrou os olhos
para os espinhos brancos da fera e as costelas vermelhas brilhantes.
Tinha três caudas e não tinha olhos e tinha o tamanho e a forma de
um cachorro. Um líquido preto e espesso escorria de sua boca. Cães
babavam. Então, perto o suficiente.
"Olá, cachorrinho", disse Rankle, pulando de seu galho. Ele
gostava de cachorros.
Mas quando ele se aproximou, um zumbido baixo começou a
emanar de seu peito e os espinhos em suas costas se desdobraram.
De repente, uma de suas caudas disparou sobre suas costas e atacou
Rankle, que só foi salvo por seus pés rápidos, que o tiraram do
caminho antes que ele percebesse o que estava acontecendo.

264
"Cachorro Mau!" Rankle gritou. Mas a besta o atacou
novamente, e ele foi forçado a fugir e se esquivar, tentando
desesperadamente evitar as grandes mandíbulas babando. Ele gritou
um encantamento que não impediu seu ataque. Apoiado contra a
árvore, ele jogou pedras, larvas e pó mágico - sem sucesso. Ele se
encolheu e fechou os olhos - pensando na adorável Ayara -
enquanto a besta bufava e abria suas mandíbulas. Escondido atrás
das pálpebras, Rankle ouviu um ganido mecânico, raspagem de
metal e um esmagamento. Ele abriu os olhos e viu a besta em duas
metades e um anão de barba ruiva arrancando seu machado da
carnificina. Os olhos de Rankle dispararam do cadáver vazando para
o machado maciço e para um anel de ouro brilhando no dedo do
anão.
"Isso é legal . . .Rankle se conteve. Melhor admirar o anel
secretamente — por enquanto. "É um belo machado", concluiu.
"Depressa", disse o anão. "Há mais a caminho."
Vendo como o anão tinha um grande machado e um anel
brilhante, Rankle o seguiu.

Arte por Viko Menezes

A noite estava estranhamente negra e fétida. Criaturas estranhas


chilreavam das sombras. Mas o pior de tudo era o anão. Torbran,
Barão de Algo ou Outro, não parava de falar sobre vagens de
sementes malignas e uma árvore realmente má. Mas pelo menos
Torbran havia encontrado uma boa caverna no meio de um
265
penhasco para passar a noite, e o anão teria que dormir em algum
momento.
"Os tribunais caíram", disse o anão com voz trêmula. "Os
Kenriths se foram."
Rankle bocejou e tentou se acomodar no chão rochoso da
caverna.
"Amanhã, devemos nos posicionar contra esses invasores
imundos. Tenho uma tarefa muito importante e precisarei de sua
ajuda. Quando chegarmos a Locthwain . . ."
Rankle se animou. Locthwain? Ele não podia acreditar em sua
sorte. O anão o levou diretamente ao seu verdadeiro amor. Com um
pouco de sorte, ele teria um novo anel para seu pedido de
casamento.
"Você verá a gravidade de nossa tarefa." Torbran continuou. Mas
então um barulho estranho o deteve. Parecia o abaixamento de uma
ponte levadiça combinado com gritos. Ele reverberou pela caverna
e ecoou pelo vale. O anão pegou seu machado e olhou para fora na
escuridão.
"Não tema", disse Torbran quando o som desapareceu.
"Preparamos uma armadilha para esses monstros. Devo encontrar
uma maneira de fazer minha parte. O destino nos uniu . . ."
Rankle fingiu roncar o mais alto que pôde, esperando que o anão
finalmente entendesse a dica. Torbran suspirou e encostou-se à
parede, envolvendo-se com o manto e mantendo uma das mãos no
machado. Logo, ele estava roncando de verdade.
Rankle esperou até pouco antes do amanhecer. Ele rastejou
silenciosamente até a entrada e examinou os arredores. A caverna
do penhasco dava vista para a granja e para o Castelo Locthwain,
exatamente como ele suspeitava. Nuvens turbulentas de tempestade
obscureciam tudo, exceto as torres do castelo flutuante, e havia
alguns pés de feijão muito estranhos saindo das nuvens, mas isso era
irrelevante para a próxima fase de seu plano: roubar o anel do dedo
de Torbran.
Rankle sentou-se perto, mas não muito perto, do anão
adormecido. Ele tirou um pouco de pó de fada do bolso e borrifou
no anel de ouro. Silenciosamente, ele murmurou um encantamento
e ficou encantado ao ver que funcionou. O anel havia se
transformado em uma lagarta. Rankle mal podia conter sua
excitação enquanto ela rastejava do dedo de Torbran e avançava
266
lentamente pelo chão em direção a ele. Infelizmente, antes que o
alcançasse, o anão abriu os olhos.
"Não acredito que adormeci", disse Torbran. "Recomponha-se.
Devemos partir imediatamente."
Rankle manteve um olho no rastejante anel que virou lagarta. Se
ao menos chegasse até ele antes que o anão percebesse que . . .
"Meu anel sumiu!" Torbran gritou.
Rápido como quiser, Rankle pegou a lagarta enquanto Torbran
procurava freneticamente ao seu redor. O pânico do anão
confirmou a suspeita de Rankle: não era apenas um anel brilhante.
Era um anel brilhante e mágico.
"Você pegou?" perguntou Torbran.
Rankle balançou a cabeça e começou a lamber a lagarta para
remover o pó mágico.
"O que você está fazendo?" Torbran trovejou. "Você perdeu o
juízo?"
Com uma última lambida, a lagarta voltou a formar um anel.
Rankle se levantou e escondeu o anel nas costas, mas o gabarito
estava pronto. Torbran parecia chocado, até cabisbaixo.
"Você vai chorar?" perguntou Rankle.
"Eu salvei sua vida, e é assim que você me retribui?" perguntou
Torbran.
"É um anel dos desejos?" Rankle se perguntou. "Eu sempre quis
um anel dos desejos."
"Não é", disse Torbran, mas havia um leve gorjeio em sua voz.
"Bem, vamos descobrir. Desejo uma cesta de guloseimas!"
Torbran investiu contra ele, tropeçando na cesta de biscoitos que
apareceu de repente. Ele estava prestes a atacar novamente quando
Rankle levantou a mão.
"Venha atrás de mim de novo e vou desejar que você fosse uma
tartaruga", advertiu Rankle. "Em um pântano. A milhas daqui."
Torbran recuou. "Você não me ouviu ontem à noite? Nossa
espécie foi feita para trabalhar em conjunto."
Rankle pegou a cesta e girou pela caverna, maravilhado com sua
boa sorte. Ele tinha um anel dos desejos e uma cesta de biscoitos!
"Nossa casa foi violada", disse Torbran. "Temos uma chance de
detê-los, mas preciso do meu anel."
"Eu deveria desejar que Ayara estivesse aqui?" perguntou Rankle.
"Ou que é o dia do nosso casamento? Ou isso é pressa?"
267
"Como você pode pensar em se casar com Ayara quando o avião
está condenado?" perguntou Torbran. "Abra seus olhos! Essas
abominações invadiram as cortes e estão vindo para o tipo fae a
seguir."
"Esses são meus futuros súditos", protestou Rankle. "
Abominations é meio maldoso, não acha?"
"Tudo o que importa para você será destruído, a menos que você
me dê esse anel", gritou Torbran.
Rankle fez uma pausa. Ayara pode ser destruída? Ele não queria
isso.
"Então, com este anel, você pode apenas desejar isso . . .como
você chama isso, invasão?" Rankle perguntou.
Torbran torceu as mãos em frustração. "Não, não posso desejar
algo tão poderoso e de longo alcance. Deve ser algo deste plano, se
isso faz algum sentido para você."
"Parece que tenho mais planos do que você", disse Rankle.
"Vamos com o meu."
"Não, eu tenho planos . . ." Torbran começou.
"Eu desejo uma poção do amor!" Rankle interrompeu. Uma
poção rosa brilhante apareceu instantaneamente em sua mão.
Torbran guinchou, balbuciou e guinchou novamente. Rankle
saiu correndo da caverna e desceu a encosta em direção a
Locthwain. Torbran se arrastava atrás dele, ainda chiando e
cuspindo.
"Você viu Ayara?" Rankle gritou por cima do ombro. "Ela é tão
bonita quanto o nascer do sol. Tão delicada quanto o orvalho da
manhã. Tão sábia quanto mil sábios."
Atrás dele, Torbran finalmente encontrou suas palavras: "Dê-me
o anel! Resta apenas um desejo."
Eles quase alcançaram o vale quando as nuvens se dispersaram
como se fossem afastadas por um gigante, e Locthwain foi revelado.
Rankle congelou. Não mais pairando, o castelo caiu no chão, sua
torre inclinada em um ângulo não natural e suas ameias
estranhamente transformadas. O céu se contorceu com os estranhos
pés de feijão metálicos.
"Como você pode não chorar pelo que Eldraine se tornou?"
Torbran sussurrou ao lado dele.
Legiões de cavaleiros Locthwain estavam em formação, prontos
para a batalha. Mas eles não eram mais os soldados reais que ele vira
268
na encosta. Suas armaduras infestaram sua pele, e cordas de tendões
vermelhos e pontas brancas se tornaram adornos horríveis em seus
corpos. Rebanhos de cachorros estranhos babavam ao lado de
sombrias carruagens de ossos brancos e carne vermelha.
"Há tantos deles", disse Rankle, impressionado com o número
absoluto no vale.
Uma trombeta soou e a rainha emergiu do sombrio castelo. Para
surpresa de Rankle, ela não era ela mesma. Sua carne foi substituída
por placas escuras e brasas brilhantes. Espinhos projetavam-se de
seus braços e rosto. Seu coração batia dentro de uma caixa torácica
oca enquanto ela comandava suas tropas em uma linguagem áspera
e desconhecida.
Rankle olhou para a poção do amor em suas mãos. "Talvez eu
tenha sido muito precipitado em minhas afeições."

Arte por Anna Podedworna

"Como você desperdiça desejos, estamos lutando na selva,


tentando salvar nosso avião", disse Torbran.
De repente, o chão moveu-se sob seus pés e um estrondo
ensurdecedor ressoou pelo vale. Vasto e profundo, parecia emanar
do coração do avião. Torbran ajoelhou-se, colocou as mãos nos
ombros de Rankle e olhou-o nos olhos: "Um grande abismo está
prestes a se abrir no vale. Ainda não sei como, mas devo atrair
nossos inimigos para esse abismo. . Estou te implorando. Por favor,
me dê o anel."
269
Rankle olhou para o vale. "No abismo, você diz," ele murmurou.
Torbran assentiu solenemente. "Esse anel é nossa única chance
de salvar nosso avião", disse ele.
Rankle se permitiu um último olhar para a Rainha Ayara. Então
ele olhou nos olhos esperançosos do anão. Rankle assentiu com
tristeza e estendeu o anel. O rosto de Torbran se iluminou até que
Rankle abriu a boca.
"Eu queria que chovesse . . ."Rankle gritou.
Chocado, Torbran caiu no chão em desespero. "Você matou
todos nós."
"Eu gostaria que chovesse isso !" Rankle terminou, segurando a
poção do amor.
Instantaneamente, os céus se abriram e gotas de chuva rosa
começaram a cair. Perto dali, o chão se agitava e se abria com um
estrondo estrondoso. Uma grande fenda abriu-se no vale onde
momentos antes havia terra firme. A chuva encantada encharcou as
hordas, que andavam confusas.
"Eis-me", Rankle gritou para eles. "Pois eu sou seu rei!"
"Espere!" Torbran gritou. "O que você está fazendo?"
"Há tantos deles", disse Rankle alegremente. "Espere até Mags
me ver agora!"
Torbran tentou agarrá-lo, mas Rankle facilmente se esquivou e
saltou da encosta. Batendo sua única asa boa, ele desajeitadamente
voou em direção ao abismo.
A essa altura, todos os cavaleiros retorcidos, abominações
gorjeantes e monstruosidades gargarejantes estavam de olho na fada,
que pousou perto da borda do abismo. Rankle saltitava ao longo da
borda. Sob a influência do aguaceiro da poção do amor, eles ficaram
instantaneamente apaixonados pela pequena fae. Corações em
chamas, toda a legião moveu-se em massa em direção ao desejo de
seus corações. Rankle parou na beirada e enfrentou as massas
barulhentas.
"Apanha-me Se Puderes!" ele uivou e caiu de costas no abismo.
Onda após onda o seguiu, derramando-se sobre a borda como
lemingues apaixonados. Agitando desesperadamente, Rankle
conseguiu pairar no ar enquanto as legiões se lançavam em sua
direção e caíam no fundo do abismo. Satisfeito com o desejo em
seus olhos seduzidos, Rankle bebeu de seus gritos de adoração.

270
De repente, um novo som competiu com os gemidos e batidas
fortes de hordas em queda. Era um som lindo: antigo, poderoso e
familiar. Estava em lugar nenhum e ao seu redor. Um feitiço
poderoso de muitas vozes, percebeu Rankle. Ele estava ficando com
sono e sua asa solitária não o segurava mais no ar. Enquanto
afundava lentamente em direção aos corpos empilhados abaixo,
Rankle pôde ver que todos no abismo haviam caído em um sono
antinatural. Deve ser parte do plano de Torbran , Rankle pensou consigo
mesmo, sem se importar nem um pouco. Cercado por seus devotos
admiradores, ele lentamente desceu para descansar em um trono de
admiradores caídos. Ele nunca se sentiu tão desejado. Ele nunca foi
tão amado.

271
RAVNICA: UM E O MESMO
Alison Lührs

Phyresis doeu, é claro, mas assim que minha garganta se


transformou em metal e minhas gavinhas endureceram em arame e
bobinas, senti a parte que eu sabia ser eu descer, se esconder, ficar
pequena e enrolada como uma samambaia. A sensação de cair na
escuridão, a lembrança de um vazio sem fim e vazio. Sinto meu
corpo distante tenso com a lembrança do nada e do pânico,
desesperadamente com medo, e tento abrir caminho de volta à
superfície de luz e cor com todas as minhas forças. O resto de mim
gritou, carregou meu olhar e transformou meia dúzia ao meu redor
em pedra. Eu me contorci e arqueei minhas costas enquanto o óleo
Phyrexiano passava por meus dentes.
"Solte-me! Você vai pagar! Você vai morrer mil vezes por isso!"
foi o que tentei rosnar, mas tudo o que saiu foi o raspar e o barulho
do alumínio sendo arrastado sobre o ferro. Os agentes Phyrexianos
que eu transformei em pedra acima de mim foram empurrados para
fora do caminho por mais corpos de metal, os quais rapidamente
transformei em pedra, que foram derrubados e substituídos por
mais corpos de metal, os quais transformei em pedra. A pilha
crescente de estátuas de ex-inimigos desmoronou e caiu na minha
perna, mas eu não senti, porque minha perna se transformou em
ferro vivo.
Não sou de recuar, mas tudo o que posso fazer é afundar. Cair e
desmoronar nas profundezas de mim mesmo. Estou
desesperadamente com medo. Eu afundo nas paredes da minha
mente e, enquanto desço, enquanto o metal penetra em cada veia,
encontro algo intocado nas paredes da minha mente.

272
Como se meu corpo soubesse onde colocar minha mente, como
se estivesse seguro aqui.
Ele tinha colocado parte de mim aqui antes.
Fugi para aquele lugarzinho privado, aquela porta secreta atrás de
uma estante metafórica, e quando o que restava de mim mergulhou
para abrir o trinco e desaparecer em meus sonhos. Seria mais seguro
se eu não acordasse.
Estou fora. Estou a dormir. Os sonhos são onde a pele e a carne
pertencem.
Algo acontece, na superfície.
Uma isca.
Um rosto conhecido.
Há um momento em que sinto meu corpo beijar, mas não do
jeito que eu quero, e o sonho azeda. Mergulho mais fundo para
esquecer a sensação, o medo de que meu corpo tenha feito o que
meu coração jamais desejaria.
Agora, observo o que fazemos através da névoa da memória e
do sonho. Observar-nos agora, montando um galho frio e
inorgânico de uma árvore estranha e alienígena, liderando a
destruição da cidade que tanto amo, parece um sonambulismo.
Estou tendo dificuldade em discernir a diferença entre os pesadelos
que estamos vivenciando e as lembranças agradáveis de que me
lembro. Parece que não sei dizer se saí da cama ou não. E ainda
assim me sinto acordado, vivo e glorioso, carregado de
propósito pela própria Elesh Norn. Cercado pela majestade de
Phyrexia, venho à cidade de Ravnica para envolvê-la em nosso
abraço.
Sento-me de lado em um grande galho da maior árvore, um
galho reluzente do poderoso Destruidor de Reinos, guiando-o
pelo céu cinza-ardósia de Ravnica, descendo pelos galhos
como uma garra de relâmpago lento. Daqui de cima posso
ouvir o pânico do público, ver pedaços de carne deslizando
como ratos pelas ruas. A estrutura tríplice do Senado Azorius
aparece à frente e eu sorrio, tantos motivos para achatá-la,
tantos métodos. Escolho o mais simples e ordeno que um
galho mergulhe direto no centro. A poeira e as nuvens que
surgem no impacto são suavizadas pela chuva, e podemos ver
o galho sondar o interior do Senado como um dedo em uma
ferida. Estamos muito satisfeitos.
273
Arte por Leon Tukker
Há um edifício que me chama a atenção, ao lado da piscina
onde costumava derramar uma fonte, sua aparência é normal,
mas sua gravidade nos aproxima.
"Faça o landfall aqui", eu grito. Dezenas respondem ao
nosso comando, e o Realmbreaker continua a mergulhar. Os
grandes membros do Realmbreaker mergulham nos
paralelepípedos e o erguem para o céu, mas pedimos cautela
em meio ao caos - quero entrar naquele prédio, mas não tenho
certeza do porquê. É a prisão em que fui mantido, a prisão da qual
tentei e consegui escapar, e aqui, das profundezas da minha própria
mente, a horrível memória irrompeu como uma mola. Meu coração
bate forte na memória do medo e é confuso, por que esse corpo
entra em pânico? O pânico é um estado fraco e carnal. Talvez
as respostas estejam dentro do prédio. Eu guio meu galho para
baixo e as larguras de minhas forças se unem como . . .
Eu tenho dezessete anos de idade.
Meus pés estão submersos em água parada há semanas, e eu abro
uma venda com meus tentáculos. Eu assobio e luto com força
adolescente, mas alguém está me segurando - suas unhas cravam em
meus braços enquanto ele me segura perto. Eu o dominaria em
qualquer outro dia, mas metade das minhas costelas está quebrada,
o sangue escorre do meu lado. Eu suspiro. Tudo está escuro e cheira
a miséria e mijo. As mãos que me seguram não são familiares, elas
pertencem a um estranho.
"Vou te contar o que está acontecendo, que tal?"
274
Sua voz é rouca e perto do meu ouvido. Eu quero que ele seja
xisto. Eu quero que sua língua se desfaça em arenito. Ele é um
guarda da prisão Azorius, e eu quero despedaçá-lo com minhas
mãos.
Eu não posso ter certeza. Isso está acontecendo agora?
A única outra górgona chama o resto de nós do outro lado da
cela da prisão.
"Vocês não estão sozinhos minhas pombas, estou aqui, estou
aqui."
Eu grito por ela, e meu grito é interrompido por um soluço.
Eu ouço duas perfurações molhadas, um grito, então um som
que me lembra carne batendo no chão molhado. Os outros
prisioneiros Golgari chamam por ela. "Ludmilla!! Não!"
"Ela está no chão agora. Vocês Golgari não se importam com
isso, amam o chão, não é?"
Eu grito e ouço seu apelo pelo resto de nós através de sua própria
angústia - "Não tire os olhos deles também, não os pegue, estou aqui
pombas! Estou aqui, estou aqui! Vocês estão não estou sozinho,
estou aqui!!"
E então, com um golpe molhado e um baque pesado, ela não
estava. Eu era a única górgona que restava.
Eu não estava sozinho. Nunca estamos sozinhos.
Nós?
Nós — Phyrexia, Golgari, somos um e o mesmo.
Algo está errado. Estou tendo dificuldade para me
concentrar. Devo demonstrar minha capacidade como general
de afastar suspeitas de fraqueza. Mas o sonho agora serve ao
meu propósito. O sonho é um lembrete de que não fui forte o
suficiente, que só nós podemos eliminar esse preconceito dos
aviões. Só Nós poderíamos ter evitado aquela dor.
Onde estamos de novo? O ar está enfumaçado com detritos
e umedecido pela chuva. O céu está coberto de galhos
entrelaçados. Meus parentes Phyrexianos inundam as ruas, e
nós os seguimos até a prisão onde meu eu mais fraco do
passado foi encarcerado.
Minhas botas estalam quando entramos na entrada
demolida da prisão. O teto está meio desmoronado, buracos
no chão levam a uma elaborada rede de celas e câmaras

275
secretas. Eu nunca vi nada disso até o dia em que tentei
escapar, então continuamos em frente.
Uma série de guardas Azorius e Boros acaba. Eu me inclino
para o meu tenente e não posso deixar de sorrir quando digo:
"Cegue-os."
Meus agentes avançam e, em dez deliciosos segundos,
fazem exatamente isso.
Um Kraul completo que reconheço como tenente limpa o
sangue de suas garras. Com uma garra eu os aponto para
cima. "Leve-os ao Transguild Promenade como um exemplo
do que fazemos com os injustos."
O que é isso dizendo de novo? Olho por olho e olho e olho
e olho . . .
Nossas forças abriram uma caverna que leva à cidade
subterrânea. Eu o reconheço, então começamos a descer.
"Transforme meu povo no nosso", ordenamos enquanto
descemos ao reino dos Golgari, "estou aqui, pombas, estou
aqui. Vocês não estão sozinhos. Nunca mais estarão
sozinhos."
Galhos profundos mergulham na cidade abaixo. Eu sigo
um até a cidade baixa dos Golgari. Estou cercado por aliados
Phyrexianos transformando rapidamente os rostos de horror
próximos, acima de nós, em rostos brilhantes, perfeitos,
completos. Phyrexia é tão linda, olha como nosso povo é lindo
junto e reluzente. É uma colméia no sentido mais verdadeiro,
todas as peças de um único propósito. É estranho, nós Golgari
nos esforçamos muito para criar um verdadeiro enxame de
muitas partes díspares e, finalmente, nos reunimos em um
coletivo. E o Realmbreaker segue obedientemente -
projetando-se da superfície acima como grandes raízes, eles
derrubam Korozda, o grande labirinto, e enviam uma grande
rachadura nas paredes da catedral de Svogthos. O som dela
vibra no meu peito e eu rio.
As horas de nossa invasão se transformam em um dia
inteiro, depois dois, depois mais, avançamos sempre,
implacáveis. Não precisamos da singularidade do sono. Não
precisamos de abastecimento. Precisamos de corpos.
Isso ainda parece sonambulismo. Um sonho, uma
lembrança, vem à nossa mente. Através dos choques e
276
colapsos, cantamos sem vergonha. A melodia dobra enquanto
cantamos, chocalhando no metal de nossa garganta:
"Um castelo cresce no Velho Abaixo,
Suas janelas brilham com um brilho antigo.
Alguns vagam por seu labirinto, uma confusão de decadência,
e o Reino da Podridão se erguerá um dia."
É noite em Ixalan, e eu canto para a vasta e movimentada selva.
Nosso pequeno bote se saiu tão bem em nos levar rio acima até a
cidade dourada. Há um brilho de umidade na minha pele e ela fica
pálida na luz da lua. Vaga-lumes dançam ao nosso redor, e Jace está
sorrindo como se tivesse um segredo.
"Música alegre", ele brinca.
"Os Golgari têm pouco para se alegrar." Eu abro meus olhos.
Meu tenente está olhando para mim. Eu falei em voz alta?
Eu sou incapaz de explicar.
Felizmente, uma coorte de guerreiros Selesnyanos
atravessa um buraco no labirinto - que estranho vê-los aqui
embaixo! Eles pensam que marcham como um, mas não
sabem o que é .

Arte por Artur Nakhodkin


A cidade subterrânea está repleta de minha coorte,
transformando meus súditos e parentes, é uma visão tão
orgulhosa e bonita. Mas estou caminhando, ao que parece, em
direção a algum lugar de que me lembro. Não nos
importamos, estamos ocupados latindo ordens e fazendo
nosso trabalho e nos deliciando com o quão bem servimos
277
Phyrexia. A glória de Phyrexia tem, e usa, mil assassinos, mas
eles também viram nosso potencial. Elesh Norn vê que somos
mais valiosos como evangelizadores, como líderes, e dói meu
coração saber que ela vê minha qualidade mais preciosa.
Poucos me veem como algo mais do que um ser criado para
matar . . .mas eles viram o que eu realmente poderia fazer.
Uma parte de mim se lembra de ter aprendido isso no convés
de um barco, aperfeiçoando-o em um trono de pedra, e olhe
para nós agora. Que glória posso dar como general. Eu nos
conduzo por becos e conexões, descendo escadas e fechando
um pequeno apartamento escondido de tudo. Sonambulismo
no sentido literal.
Estou acordado por um momento e conheço meu antigo
apartamento. Eu abro a porta.
Deuses, é pequeno. Eu adoro isto. É normal e cheio de
resíduos.
Não moro aqui desde que me tornei mestre da guilda. O
apartamento é apertado, lotado de lembranças e lembranças de pelo
menos uma dúzia de aviões diferentes. Um estandarte de Locthwain
acima do fogão, um bule Theran em que guardei chá, um chifre
Kaldheimr para beber, uma carruagem Segoviana inteira que mal
consegui carregar para as Eternidades Cegas, mas agora está sob
uma redoma de vidro - sempre gostei de bugigangas . É
extravagante, todos esses itens em uma sala, como todos eles
são discordantes um ao lado do outro, mas eu gosto. O efeito é
estranho, estando neste quarto antigo. Eu sorrio por estar de volta
com as coisas da minha antiga vida, antes de ser Guildmaster, antes
do Multiverso se tornar complicado. De certa forma, as coisas eram
melhores quando minha vida era portátil. Basta olhar para todos os
meus tesouros e as histórias que trouxe com eles. Não tenho certeza
se isso está acontecendo agora ou se é a memória de outra pessoa
que posso percorrer e tocar. Por que eu sonharia com um
apartamento feio sobre a glória do meu povo unificando o
Multiverso em um todo perfeito? Por que eu sonharia com
uma sujeira sem sentido como essa? Memória e sonho se
misturam. Lembro-me do brilho das estrelas de outro plano.
Lembro-me de comprar chá nas selvas de um avião e trazê-lo para
casa para os amigos deste.Eu sei que esses lugares existem, que
todos os tipos de histórias acontecem dentro deles, e me
278
consolo em como eles serão mais parecidos conosco, mais
familiares . Não mais caminharei incerto sobre o solo de outro
plano, mas caminharemos com facilidade com a linguagem de
nossas mães em nossos ouvidos.
Há um objeto na mesa de centro que não consigo
identificar.
Eu sei que é um objeto. Sei que é prata opaca, uma série de
pilhas de círculos e gravuras, com uma longa ponta saindo de
um anel vazio na lateral. Eu o pego, viro para frente e para trás,
e longas linhas laranjas de magia aparecem brevemente de
suas pontas. Estou cada vez mais irritada, o que é isso? Eu
vasculho minha mente, mas o conhecimento está distante,
guardado pela almofada da memória. Não, mantido a salvo
por algo (alguém?).
São semanas antes da Guerra da Centelha, e estou deitado no
chão do meu apartamento segurando minha testa na pior enxaqueca
da minha vida. Os anéis de ar e as luzes brilham tão profundamente
em minha mente que eu sinto o trinco no fundo de minha própria
mente. Uma mão pressiona a ponte do meu nariz enquanto a outra
se agarra desesperadamente à bússola taumática. Eu disse aos meus
atendentes que precisava de privacidade e corri para cá, bem a
tempo de me trancar em meu antigo apartamento, cair no tapete e
com força de vontade abrir o alçapão da minha mente onde Jace e
todas as minhas memórias dele foram mantidos.
Aperto a bússola com tanta força que corta minha mão. Lamento
saber que nosso plano foi em vão, mas o que me faz chorar é
perceber que esqueci a primeira vez que me apaixonei.
A bússola taumática é uma coisa tão linda, tão desesperadamente
importante e vital. Essa nova dor de cabeça está repleta de
irritação. O objeto não tem importância. Eu o seguro na palma
da mão como uma joia roubada e o guardo no bolso.
Acima há um estrondo profundo que nos tira do
apartamento feio e chato. Quando saio para as ruas da cidade,
vejo o teto, o solo acima se desfaz à medida que os galhos do
Realmbreaker afundam mais. Eu agarro um galho e subo em
direção à Câmara do Pacto das Guildas. Vejo rostos familiares
no céu. Ral Zarek e Tomik Vrona se aproximam, voando nas
costas de uma gárgula. Mesmo a essa distância, vejo-os dar as
mãos antes de Ral sair para as ruas enquanto Tomik decola.
279
Uma onda amarga de ciúmes preenche o que resta do meu
estômago e agarro o objeto em nosso vestido, embora não
entenda por quê.
O céu é uma erupção de guerra. A imensa nave Boros paira
sobre metade do horizonte, expelindo anjos e cavaleiros
celestes com brilhantes clarões de fogo. Do outro lado do
horizonte, grandes protótipos frágeis de Izzet piscando em
ciano e vermelho oscilam em direção aos telhados. Um colide
com uma nave Phyrexiana, que encadeia meia dúzia de
explosões para cima para atingir os anjos completos acima.
"Derrame o máximo de óleo brilhante que puder nas ruas",
ordeno aos nossos novos parentes Golgari, "e cegue todos
eles." Metade da frota phyrexiana se concentra no mago
relâmpago lutando contra a multidão enquanto a outra
continua cegando todos os cidadãos em seu caminho. Ao fazê-
lo, mãos metálicas arrancando pares de olhos suaves, as
vítimas que eles deixam para trás desabam universalmente no
concreto em terror e dor. Do céu ao solo, o avião é uma
cavalgada de guerra.
Lembro-me de esqueletos tingidos de azul, zumbis, todos os
modos correndo para onde eu aponto, Nicol-Bolas, o Deus-
Imperador, paira bem acima de mim. Ele é o único que já confiou
em mim para liderar. Ele é o único que já me deu uma chance
exceto para Phyrexia, exceto para minha nova família, meu
novo povo, eles confiaram em mim e olha como eu os
recompensei com glória!
Enquanto nossos tenentes cumprem minhas ordens, fico
satisfeito com a conveniência, com a tática de cegar primeiro
e deixá-los à phyresis. As massas gritando e tropeçando caem
no chão e avançam tateando, as mãos sujas de óleo, os dedos
acariciando as feridas vazias no rosto.
A cena é uma confusão total de óleo e sangue e olhos
gelatinosos. Eu olho para os instigadores, para os Golgari que
se tornaram Phyrexianos, e estou cheio de orgulho.
Finalmente, meu pessoal está no comando.
O sonho muda (por que essa dor de cabeça não vai
embora?) e estamos guiando um enxame para destruir o
telhado da Câmara do Pacto das Guildas, deliciando-nos em
esmagar o assento de Niv-Mizzet, deleitando-nos com a
280
poeira de um telhado recém-reparado desmoronando a
Fundação. Todo o prédio se abre como uma casa de bonecas,
e cabemos tão bem lá dentro, todas aquelas cadeirinhas e
mesinhas, uma parede inteira nua e exposta como uma ferida
aberta.
Uma parede exposta leva a uma sala que reconheço. Na
frente, a escrivaninha que Lavínia utilizava para cumprir suas
obrigações. Além disso, a entrada pela qual nunca tive permissão
para passar, o escritório particular em que ele costumava passar as
noites, o banheiro com o espelho de que nunca precisava, a cama
em que nunca dormia. maneira de fazer outras pessoas dormirem.
À nossa direita, onde ficava a muralha sul, a cidade está em
frangalhos. A Árvore da Invasão mergulha pela metrópole como as
pernas de uma grande aranha. Não gosto mais desse sonho. Eu vejo
guerreiros Golgari, seus corpos misturados com metal, eu os vejo
carregando o mesmo símbolo da bandeira que me segue, isso não é
um bom sonho.
Essa dor de cabeça está piorando. Abaixo de mim, vejo
muitas guildas correndo aterrorizadas, mas outras correndo
com curiosidade - um grupo fugitivo de banqueiros Orzhov
decola de uma maneira enquanto alguns biomantes Simic se
aproximam como voluntários, curiosos com essa nova forma
de biomancia. Um punhado de Izzet que não cegamos tenta
estudar o óleo, ingênuos ao risco enquanto o espalham entre
os dedos. Eu aceno para recebê-los.

Arte por Alex Brock


281
Então, uma interrupção. As forças da cidade estão
recuando, posso dizer pelo tilintar e pelo barulho de alarme
nas vozes de nossa coorte. Nós identificamos a fonte -
aproximando-se rapidamente, aquele idiota carnudo com o
raio acendeu parte do Destruidor de Reinos. Eu pulo para um
galho e monto até o telhado, subindo para me juntar ao nosso
coletivo e enfrentar Ral Zarek de frente. Todos nós estamos
aqui, meus irmãos do exterior em massa e nadamos com os
recém-concluídos - superiores Golgari empurram seus ex-
irmãos Izzet para a frente, o sangue de suas órbitas se
misturando com óleo, na esperança de distrair e enojar o
mestre da guilda Izzet.
Conforme ele se aproxima no ar, vemos Ral Zarek vacilar.
Ele evita meu olhar, sabiamente com medo de petrificação,
mas como resultado vê o dano que causamos ao seu povo. Ral
cai no telhado, ofegante, furioso, mantém os olhos no chão e
segue em frente. Damos um passo à frente para encontrá-lo,
com as garras estendidas, ágeis e prontos para esquivar - vejo
brevemente a magia laranja de algo em meu bolso apontando
diretamente para ele - e corro para atacar.
Mas ali, em sua mão, está um segundo aparelho que não
reconheço. É pequeno, cilíndrico, e em um soco do boxeador
ele o planta bem no meu esterno e aperta um botão.
Minha visão fica branca.
Tudo se convulsiona e gagueja.
Eu desmorono.
Eu acordo brevemente, então desapareço.
Nós gememos, caímos no chão e vomitamos bile negra e
oleosa.
Meu corpo está se desintegrando. Quebrado. Um
dispositivo sintonizado com o óleo phyrexiano? O sonho me
diz que vou me recuperar, mas nosso corpo grita em agonia.
Eu vejo meu próprio sangue – é preto brilhante, e eu vomito
pela segunda vez.
Eu ouço e sinto meus irmãos se retirando apressadamente.
Meu corpo quebrado é um exemplo a ser feito. Eles veem meu
quebrantamento como fraqueza, prova de que não estou apto
para liderar. Minhas forças não duram o suficiente para eu

282
argumentar, nem teria forças para argumentar se tentasse. Por
minha própria medida, sou indigno.
Mal consigo entender o que Ral diz. Soa algo como
desculpe. Ele ainda não consegue olhar para mim, e minha
visão escurece quando ele se afasta.
Os sonhos desaparecem. A dor de cabeça floresce. Tudo ao
meu redor desmorona.
Eu não posso mover meu corpo. Deitei sob os escombros,
meio carne, meio metal, sangrando e quebrado. Não consigo
respirar fundo, e cada expiração traz um bocado de sangue e
óleo. Já vi a morte tantas vezes. Mas desta vez não posso
correr. Se eu olhar através do teto aberto para as nuvens acima,
ainda posso ver as bordas de Realmbreaker e ouvir aplausos
nas ruas da cidade ao meu redor.
É hora de eu ir também, suponho. Completei centenas,
destrui Ravnica, sou glorioso e bom. Agora, eu fecho meus
olhos e espero pela morte que Phyrexia prometeu que eu
nunca enfrentaria sozinho.
O tempo deixa de significar. A chuva vem e vai.
Eu sangro, esvazio e acordo no pequeno e distante canto da
minha mente que phyresis nunca poderia tocar.
Uma visão aparece para mim, nestes momentos antes de morrer,
eu liberto deste corpo terrível e caio de volta em minha própria
mente. É um vazio. Escuro e incerto. Uma voz me cutuca: "Você
pode abrir os olhos para mim?"
A luz do meio da manhã de um café na Tin Street é brilhante e
acolhedora, filtra-se pelas cortinas e reflete na calçada a chuva da
noite anterior. Eu vejo Jace na minha frente. Ele envolve as mãos
nuas em torno de uma xícara de café. Eu posso ver o começo de sua
cicatriz em seu dedo anelar direito. Ele não está usando a capa, aqui,
em vez disso, ele usa uma bela capa de lã, camisa de linho limpa, um
alfinete segurando tudo no lugar. Sem capuz, seu cabelo castanho
recém-cortado ainda tem as linhas acentuadas de quando ele o
aparou. Há uma sacola com livros recém-comprados aos nossos pés.
Seu rosto é aberto, amigável, com um sorriso relaxado e um pouco
mais de ruga nos cantos dos olhos do que eu me lembro quando nos
conhecemos, tantos anos atrás. Ele me olha bem nos olhos, como
sempre, sem medo. Deveria ser assim.
"Você está ótima", eu digo.
283
"Você pode respirar?"
"Não se iluda, Beleren, você literalmente não me tira o fôlego", eu falo
inexpressivamente.
"Do que você consegue se lembrar?"
A pergunta me enerva. O que eu me lembro? Lembro-me de
observar minha vida distante através de meus próprios olhos nestes
últimos dias. Lembro-me de Realmbreaker, lembro-me da minha
transformação e, lentamente, lembro-me com horror de que atraí
Jace. Eu o traí. Eu o transformei. E então eu saí, voltei para casa e
então . . .
"Eu mereço morrer", concluí. Antes, eu havia jurado nunca
matar alguém que não merecesse. Quantas centenas de vezes eu
quebrei meu voto ontem? Os olhos de Jace suavizam. Ele desculpou
meus assassinatos tantas vezes. Ele deveria dizer que concorda. Ele
deveria dizer que eu mereço meu próprio castigo. Isso seria
misericordioso, mas em vez disso ele diz—
"Eu ficaria triste se você fizesse isso." Seu perdão é uma agonia.
Por favor. Que esse sonho acabe para eu morrer, sozinho, como
sempre, como mereço. "Posso entrar?"
Eu sei o que ele quer dizer e guardo minha mente. "Tenho
vergonha do que você vai ver."
"Você quer dizer ver o que você fez?"
Percebo que estou tremendo de auto-repulsão. "Acontece que
sou tão monstruoso quanto todos pensavam."
Ele pega meus dedos e os coloca nas costas de sua mão direita.
Meus dedos traçam uma cicatriz reta que começa em sua junta e
desce em uma longa linha raivosa por seu antebraço que continua
sob a manga da camisa. Lembro-me de sua memória; o Consórcio.
Alhammarret. Lembro que ele também é um monstro. Então, eu o
deixei entrar. Eu aperto sua mão e aceno com a cabeça e o sinto
aninhado ao lado da minha mente.
Ele vê olhos, sangue e óleo, ouve minha alegria, sente a
contorção de meus lábios metálicos contra os dele. E tudo o que ele
faz é apertar minha mão com mais força. Isso me mata.
"Vamos para algum lugar privado", diz ele baixinho, e com a
lógica dos sonhos estamos de repente em uma praia aberta com areia
macia e branca como farinha, com a brilhante lua cheia refletindo
no mar em uma dança estrelada. Jace se deita ao meu lado, o ar está
quente, a brisa perfumada com flores noturnas e sal.
284
"O você que me beijou não foi você. O você que liderou a
invasão não foi você. O você que eu conheço só machuca quem
merece." Ele está tão perto, tão relaxado. "E aquela parte que você
sabia que estaria segura aqui. Estamos no canto da sua mente que
fiz para você todos aqueles anos atrás."
"Só nós monstros aqui."
"Acho que sim", ele sorri.
Aqui, em meu sonho, com minha amada a quem traí, escondida
nas profundezas de um corpo quebrado que ordenou a matança de
milhares. Sinto outra lágrima em minha bochecha.
"Sinto muito por ter enganado você", eu digo.
"Sinto muito por não ter vindo como prometi", ele responde.
"Nada disso deveria ter sido assim."
" Nada deveria ter sido assim", concordo. "Eu gostaria que
pudéssemos ter tudo de volta. Faça tudo da maneira certa." Ele está
olhando para mim como se eu estivesse dizendo algo crítico, como
uma peça de máquina em sua mente travada no lugar com minhas
palavras. "Jace. Você vai me dar um último presente antes de eu
morrer?"
"Qualquer coisa."
"Eu quero um recomeço."
Ele sorri. "Eu gostaria disso também."
Eu o beijo.
É intenso e sincero, desesperado e imediato. Ele se sente como
um regresso a casa. Nossas bochechas pressionam, ele faz um
pequeno barulho e os dedos dos pés em minhas botas se curvam,
eu puxo seu lábio inferior suavemente entre meus dentes e ele
suspira de prazer. A maré bate na praia. Nós nos agarramos
desesperadamente, recuperando o tempo perdido, nossos corpos se
aproximando na areia. Eu corro minhas mãos por aquele cabelo, e
é tão macio quanto eu esperava que fosse, e quando minhas unhas
roçam a superfície de seu couro cabeludo, ele geme em resposta.
Em uma corrida repentina, eu finalmente entendo o que manteve
Liliana no anzol todos esses anos, e atrai meus olhos para cima e ao
nosso redor enquanto ele deixa uma trilha de beijos no meu
pescoço. Jace projeta de volta , sua mente substituindo meu próprio
sonho, uma onda de imagens próprias; estamos em um apartamento
Kaladesh, estamos no convés do The Beligerent , estamos em uma
clareira em Zendikar, estamos em um castelo Innistradi, estamos na
285
Câmara do Guildpact, nossos lábios pressionam e por em um
momento emocionante, sinto o beijo de sua perspectiva e, então,
perfeitamente, estamos de volta à praia cercados por infinitas
estrelas impossíveis. Eu rio, "Você é incrível!" e ele me beija ainda
mais forte.
E então, quando começamos a nos cansar, ele para e eu sorrio ao
ver uma pequena sarda marrom em seu olho que eu nunca havia
notado antes. Ele parece apologético. "Prepare-se. Esta parte dói."
Ele embala meu rosto, encosta a testa na minha, se prepara e exala
como se fosse fazer um esforço. "Eu entendi você."
Eu sorrio, sem saber do que ele está falando. "Você sempre me
pegou."
A vulnerabilidade se encaixa estranhamente na janela do meu
coração, mas vale a pena abrir as cortinas para ele. Eu descanso a
mão em sua bochecha e digo a ele o que sinto, do jeito dele .
Silenciosamente, as palavras enchem minha mente e eu as preencho
com o sol de Ixalan e o perfume das rosas da cidade baixa, projeto
a sensação de nossas mãos apertadas, a emoção em meu peito
quando ele sorri, a adoração da sarda marrom em seu lado esquerdo.
olho. Uma cinza de esperança de que um dia ele veja meu próprio
rosto cheio de rugas, que nossas mãos velhas e artríticas ainda se
apertem enquanto caminhamos em direção à escuridão nublada. Há
um momento de reconhecimento em seus olhos, uma suavização
nas bordas, e um daqueles raros sorrisos que encontra seus olhos
floresce em seu rosto enquanto ele instintivamente lê meus próprios
pensamentos.
Ele beija minha testa e eu o acaricio de volta. Jace encontra meus
olhos, testa de volta para a minha, e responde em voz alta, do meu
jeito.
"Eu também te amo, capitão."
E eu suspiro quando minha mente e visão explodem em um
branco incandescente e surpreendente.
Ral
Eu só quero ir para casa e dormir, caramba.
A chuva encharcou minhas roupas, há mais escombros do que
cidade neste ponto, e mesmo que eu tenha eletrocutado mais
capangas phyrexianos do que posso contar, meu corpo ainda pula
como se houvesse mais. A invasão terminou há dois dias, mas meu
corpo ainda não recebeu o memorando. Minhas mãos ainda
286
cansadas de lançar, meus ombros ainda tensos de pânico. A
recuperação da invasão deveria significar uma recuperação para mim
também.
Estou acordado há quase dois dias neste ponto, instruindo o
restante dos Izzet a liderar a limpeza, a carregar o entulho, erguer
prédios e lavar todo esse maldito sangue. Mas não importa o quanto
eu tente me concentrar no esforço de recuperação, tudo o que posso
ver é a longa fila de pesquisadores e magos Izzet, lado a lado, uma
longa fila de rostos gritando e órbitas vazias, e tudo que eu quero
fazer é dormir. e espero que a memória desapareça. Deuses, por que
não posso ser otimista.
Tomik está aqui agora, pelo menos, estamos supervisionando o
que era a (segunda) Câmara do Pacto das Guildas. Ele se senta com
a cabeça entre as mãos e mantenho a palma da mão em seu ombro
enquanto tentamos não pensar em olhos. Mas tudo o que vejo é o
rosto dela. Brilhante e alegre. Ela escolheu a maneira de transformá-
los que machucaria mais a todos. Isso não era ela, e ainda era
absolutamente. Meu estômago revira e eu tento engolir.
Subindo os escombros atrás de mim, ouço passos. É um oficial
de alto escalão, um dos que eu confio. Há um pedido de desculpas
em seu rosto.
"Bem?" Pergunto: "O interruptor hemoelétrico funcionou. O
que você encontrou?"
Os lábios da policial tremem, ela sabe que o que está prestes a
dizer vai me assustar, e me preparo para o inevitável quando ela
anuncia:
"Não há sinal do corpo dela, senhor."

287
NOVA CAPENNA: A QUEDA DE
PARK HEIGHTS
Elise Kova

Flores pendiam do teto, penduradas como candelabros, perfumando a sala


com o aroma de flores exóticas. Estátuas recém-polidas brilhavam na penumbra
e a música carregava seus pés pelo chão . . .mas nada brilhava tão lindamente
quanto ela .
Os Maestros reunidos - amigos e familiares - foram todos mantidos em
cativeiro. As cordas cantarolavam sobre sussurros amorosos e lágrimas
tranquilas e felizes. Eles estavam cercados por tudo e todos com quem já se
importaram e, no entanto, a única coisa que Errant viu foi Parnesse.
Ela era a musa de Errant. Cada respiração e pincelada que estava por vir.
E o sorriso de sua esposa enquanto deslizavam pela pista de dança? Superou
os holofotes mais brilhantes. Era mais perfeito do que qualquer coisa que a mão
de Errant pudesse esperar capturar em tinta. Eles fizeram a próxima curva e
Errant se inclinou, roçando o nariz no de Parnesse. Ela soltou uma risada
suave. O mundo era perfeito.
Então, uma sombra caiu sobre New Capenna.
Uma taça de vinho se derramou no chão, o líquido vermelho fluindo
artificialmente na forma de um círculo quase completo com uma linha traçada
no centro. Ela já tinha visto aquele símbolo antes, muitas vezes, nas exposições
do museu. Mas o que ele estava fazendo aqui, agora? Os pés de Errant
tropeçaram e, quando ela se virou novamente, os olhos amorosos de seus amigos
e familiares haviam mudado.
Riachos de óleo preto pingavam de suas bochechas. Tendões vermelhos
rastejavam sobre seus corpos como as vinhas de uma planta invasora.
288
Alcançando. Agarrando. Amarrando pratos pálidos e irregulares. Suas
expressões também se transformaram - bocas abertas com sorrisos largos e muito
felizes sob olhos famintos. Junte-se a nós , eles pediram sem palavras. Seja
um conosco . A celebração não era mais sobre Errant e Parnesse. Era agora
a união distorcida de todos eles, condensando-se na singularidade de um ser.

Arte por Aurore Folny


Até seu pai, Anhelo, havia se transformado.
Errante tropeçou. Ela puxou Parnesse para mais perto.
"Querido?" Sua esposa estava alheia. Ela não estava vendo o que era
Errant? Ela não sentiu o miasma sinistro que substituiu o aroma das flores?
"O que está errado?"
"Temos de ir."
"Ir aonde?" Parnesse diminuiu a velocidade até parar, segurando a bochecha
de Errant. "É o dia do nosso sindicato. Por que iríamos embora?"
"Você não pode ver-" Errant foi interrompido por um estrondo baixo à
distância que anunciava a morte e a guerra. O céu listrado com carmesim que
rasgou as estrelas em botão. Ramos chapeados dispararam pelas aberturas de
outros planos e afundaram nas fundações de New Capenna. Sem aviso, o teto
do museu do Maestro foi arrancado, deixado de lado - um presente se desfazendo
nas mãos de uma criança ansiosa demais.
Errant olhou horrorizado para o monstro que pairava sobre uma New
Capenna em ruínas e distorcida. Atraxa era maior que a vida. Suas asas
pálidas se estendiam tanto que podiam tocar cada extremidade da outrora
orgulhosa barreira de New Capenna.
Com uma mão em garra, ela lentamente estendeu a mão. Parnesse soltou um
grito. Pervertido errante, pronto para proteger sua esposa, fugir e...
289
Ela saltou do canto esquálido da estação de trem abandonada em
que ela e Parnesse se esconderam para cuidar de seus ferimentos e
descansar brevemente. Errant não tinha a intenção de adormecer.
Mas roubar debaixo do nariz dos invasores phyrexianos havia
exigido muito deles. Eles pagaram com sangue para sair vivos.
O grito de Parnesse ainda ecoava em seus ouvidos. Infelizmente,
não veio inteiramente do pesadelo.
Seu perseguidor os alcançou.
O estrondo de uma besta conversora Phyrexiana mergulhando
através da parede quebrou seu breve indulto. Era do tamanho de
um dos pequenos bondes que transportariam passageiros para
dentro e para fora desta estação destruída não muito tempo atrás. A
poeira e os escombros assentaram-se nas costas espinhentas da fera.
Injetores afiados nas pontas de suas caudas projetam sombras
sinistras na névoa. Óleo brilhante, preto e brilhante, pingava de sua
boca estendida entre dentes afiados como navalhas.
Errant estava manobrando pela cidade há algum tempo . . .mas
ela sempre usou caminhos marcados como passagens seguras e
secretas. Esta missão foi a primeira vez que ela viu um dos
infiltrados de New Capenna de perto. Esses foram os monstros
responsáveis pela queda dos Maestros e toda a brutalidade que se
seguiu. Seu pai . A garganta de Errant se apertou e seu sangue gelou.
Seu único pensamento era enfiar uma das cargas que batiam
suavemente em sua bolsa naquela enorme boca. Não seria a
vingança que ela merecia por tudo o que havia perdido. Mas seria
um começo.
A mão de Parnesse se fechou ao redor da dela, afastando Errante
de suas fantasias perversas. "Temos que levar isso de volta para a
tripulação!"
"Mas você-"
"Estou bem ", Parnesse a interrompeu, embora ela ainda tivesse a
mão pressionada contra a coxa ensanguentada. Ela foi pega em uma
grade torcida durante a fuga inicial. "Eu estarei em uma situação
muito pior se aquela coisa nos pegar."
"Certo." Errant girou, segurando Parnesse. As duas mochilas
pesadas que continham os explosivos que haviam roubado do
estoque de um velho rebitador no Mezzio bateram contra seus
quadris quando começaram a correr.

290
Os dois partiram e o monstro que os perseguia também. Eles
dançaram nos fundos, derrubaram a parede da estação do bonde e
emergiram em uma trilha alta que se elevava sobre o Mezzio,
emaranhando-se com os galhos da Árvore da Invasão que parecia
crescer a cada dia.
New Capenna era uma casca de sua antiga glória. Os salões
dourados de Park Heights estavam agora manchados e escuros. As
cores vivas e a vida efervescente do Mezzio foram substituídas pelos
cinzas foscos das cinzas da guerra.
Desde que os phyrexianos retornaram, os defensores da cidade
vinham travando uma batalha perdida. Eles eram refugiados em sua
própria casa, correndo de um lugar para outro enquanto o caos
reinava. Não havia uma hora em que a fumaça não subisse de
alguma estrutura desmoronada ou queimada. Não havia uma hora
em que flashes de magia não explodissem durante a noite enquanto
os cidadãos de New Capenna lutavam com crescente futilidade. Não
havia tempo nem para lamentar os mortos e moribundos nas ruas.
A fera conversora mergulhou nos escombros atrás deles,
sacudindo o corrimão. Parnesse cambaleou, sua perna ferida quase
cedendo. Errant se agarrou a ela. O rosto de sua esposa estava
perigosamente pálido. O rastro de sangue de Parnesse era sem
dúvida como a besta conversora os rastreou.
"Você consegue correr nos trilhos?" Errant gritou, embora
Parnesse ainda estivesse ao alcance do braço. O barulho estrondoso
das garras da besta raspando contra a grade de metal quase abafou
suas palavras.
"Apenas vá!"
As vibrações dos passos do phyrexiano zumbiam através das
solas das botas de Errant enquanto ela conduzia Parnesse pela curva
do corrimão. Mais à frente havia outra estação de bonde
abandonada, o arco sob o qual o corrimão desaparecia decorado
com redemoinhos pintados e bordas afiadas. Escondido no grafite
estava o rabisco do pichador - uma linguagem simbólica de origem
há muito esquecida, mas bem lembrada por aqueles que fizeram das
ruas seu lar.
Perigo , diziam os símbolos. Errant se mexeu e saltou para a
saliência de um edifício próximo. Ela girou, estendendo as mãos
para a esposa. Seu estômago estava na garganta quando Parnesse
pulou, contando principalmente com sua perna boa. Errant a
291
agarrou e puxou para perto, ajudando Parnesse a recuperar o fôlego
e a pisar antes de seguirem as marcações verdes ao longo do prédio
em segurança.
A fera tentou pular, mas a saliência era muito estreita. Ele
afundou suas garras no prédio, tentando encontrar apoio e rasgando
pedaços de aço e cimento no processo. Mas não conseguiu se
segurar com firmeza e caiu na rua abaixo, aterrissando com um baque
forte e uma nuvem de poeira.
Se ao menos uma queda como essa fosse suficiente para matar um
phyrexiano. Errant não diminuiu o passo. A besta estava atordoada e
eles tiveram que aproveitar a oportunidade para escapar.
Ela olhou para Parnesse, os olhos caindo para a coxa de sua
esposa. Parnesse favoreceu sua perna ilesa, mas manteve-se sem
problemas. Errant tentou esconder sua preocupação. "Você parece
um pichador normal que acabou de marcar o território do
executor."
"Prefiro meu estúdio, obrigado!" Parnesse ofegou.
A arte de Errant ficava melhor espalhada na lateral de um prédio.
Correr de uma fera conversora não era muito diferente de correr de
executores do Broker. Pelo menos, foi o que ela disse a si mesma
para manter a cabeça nivelada e os pés firmes.
Dobrando uma esquina, atravessando três varandas e descendo
uma escada de incêndio, eles diminuíram o passo em um beco mais
baixo - os lados queimando e os baús arfando. Parnesse encostou-
se na parede, agarrando os dois joelhos. Errant procurou por
quaisquer outros sinais de rabiscos do pichador, mas não havia
nenhum. Quem quer que tenha destacado a rota que eles seguiram,
terminou seu grafite aqui.
"Como você está indo?" Errant disse suavemente. Havia tanto
sangue encharcando as bandagens aleatórias que ela enrolou na coxa
de Parnesse apenas uma hora atrás. "Abriu de novo."
"Precisamos continuar."
"Deixe-me apenas . . ." Errant se ajoelhou e arrancou a outra
manga.
Parnesse pousou a mão no ombro de Errant. "O ponto de
encontro não é muito mais longe agora."
"É longe o suficiente." Errant amarrou sua manga firmemente
ao redor da coxa de sua esposa, terminando o nó com a frustração
queimando no fundo de sua garganta. Ela havia jurado manter
292
Parnesse segura. Mas tudo o que ela conseguiu fazer foi correr de
cabeça para o perigo. "Talvez você possa encontrar um esconderijo
e ficar—"
"Com essas coisas aqui fora?" Parnesse inclinou a cabeça para o
lado.
"Você tem um ponto." Errant se levantou e começou a descer o
beco, mas um rosnado baixo fez com que ambos parassem em seu
caminho. Uma fera conversora estava empoleirada em um prédio
próximo, logo à frente. Aparecendo ameaçadoramente.
Como isso os alcançou?
Um rugido por trás. Abatido e mancando, mas ainda mortal, a
primeira besta conversora espreitava o beco, suas espinhas rangendo
contra os edifícios. Eles ondularam em seu corpo. Contraindo-se.
Pronto para levá-los para a gaiola em suas costas e convertê-los em
um dos asseclas de Phyrexia.
"Errante." O tom de Parnesse era irritantemente calmo.
"Opções?" Ela já sabia a resposta antes de perguntar.
Não havia janelas ao redor deles. Nenhuma porta que eles
pudessem tentar arrombar. A saída de incêndio mais próxima estava
fora de alcance sem um impulso. Mas era a única chance . . .para um
deles.
"Eu posso tentar içar você lá em cima." Errant apontou para a
escada de incêndio. "Então eu vou atraí-los para mim."
"Não."
"Eu não vou deixar que eles levem você."
"Nós dois sabemos que não vou fugir deles com minha perna
assim e você não vai me deixar." Parnesse enfiou a mão em um dos
sacos no quadril de Errant, colocando um explosivo embalado na
forma de um disco de metal na palma da mão de Errant. Sua calma
ultrapassou a preocupação de Errant. "Nenhum de nós será
convertido."
"É muito perto." Errant olhou para o pequeno explosivo.
"Henzie disse que um desses pode derrubar um pequeno prédio."
As bestas conversoras continuaram avançando. Lento e objetivo.
Inevitável.
"Fizemos uma promessa", disse Parnesse suavemente. " Qualquer
coisa sobre se tornar uma dessas coisas."

293
Errant encontrou os olhos de sua esposa. Seu estômago deu um
nó e uma onda de náusea a alcançou. Como Parnesse podia estar
tão calmo? Ela sabia o que estava sugerindo.
"Se você vê outra maneira, eu adoraria ouvi-lo." Parnesse exibia
um sorriso derrotado. Ambos sabiam a resposta.
Errant agarrou o pulso de Parnesse, puxando-a para um beijo
feroz, mas breve. "Jogue o mais longe que puder," Errant sussurrou,
surpreso por seu medo e tristeza não sufocarem as palavras. "Eu te
amo até a tinta secar."
"Eu te amo até que todas as telas estejam preenchidas." O
polegar de Parnesse apertou o pequeno círculo no centro do disco.
Errant refletiu o movimento. Ela não deixaria Parnesse fazer isso
sozinha. Não importa o que, eles estariam juntos até o último
momento.
Ambos jogaram e uma explosão mais alta do que qualquer outra
ouvida em dias abalou as ruas de New Capenna.
". . . acreditar . . ."
". . .eles iriam. . .Eu não. . ."
". . .mover!"
"Espere. . ."
Espere . As duas palavras ficaram com Errante mesmo quando
tudo o mais se confundiu com o nada.
As sensações retornaram lentamente. Uma contração de seus
dedos. Uma dor surda nas costelas que rapidamente desapareceu.
Então veio o peso do familiar cobertor de lã. O cheiro do óleo e das
aparas de aço dos consertos de Henzie. O perfume de Kamiz
pairando no ar.
Errant abriu os olhos. Levou vários segundos para colocar a sala
em foco. Suas tintas e sprays cobriam a parede. A iluminação piscou
da mesma forma que sempre - poder inconsistente desde que os
phyrexianos assumiram o controle da cidade. O metal esmagado da
algema que seu pai lhe dera antes do casamento refletia seu rosto
em pedaços.
Errant piscou. Ela teve o sonho mais estranho...Era o casamento
dela. Algo sobre Atraxa? Uma missão para a resistência? Bestas
conversoras? Ela levantou a mão para esfregar os olhos e parou no
meio do movimento.
Parnesse .

294
Sua mão caiu para o lado e pousou no lugar vago na cama onde
sua esposa deveria estar. Um ruído estrangulado de pânico e medo
saiu das profundezas de seus piores pesadelos.
Jogando o cobertor de lado, Errant ficou de pé. Fora da porta e
em um corredor estreito que ligava o pequeno aglomerado de
quartos nas profundezas do Treza que sua improvável equipe havia
reivindicado como deles. Ela mal conseguia ouvir conversas fracas
saindo da sala comunal sobre o sangue correndo em seus ouvidos e
o martelar de seu coração.
"Você está acordado", uma voz desconhecida falou por trás, as
palavras um pouco rígidas, mas não indelicadas.
Não era estranho encontrar pessoas que ela nunca conheceu na
resistência. Mas Errant nunca tinha visto um anjo em carne e osso,
apenas suas estátuas que eram como monumentos amargos para um
tempo melhor na história de New Capenna. Os antigos comissários
de New Capenna finalmente retornaram. Muito pouco, muito tarde,
provavelmente. Duas asas iridescentes se estendiam das costas da
mulher, formando um arco gracioso ao redor de seus ombros e
emoldurando-a com um leve brilho de madrepérola.

Arte por Aaron J. Riley


"Sim, agora, se você me der licença . . ." Errant sufocou a coceira
instantânea para tentar capturar a interação única de cor e luz na
pintura, ao lado de sua curiosidade pela presença de um anjo, com
sua preocupação por Parnesse.
"Gostaria de ver Parnesse?"
O coração de Errant deu um salto. "Onde ela está?"
295
"Por aqui." O anjo a levou para a sala que eles começaram a usar
como triagem. Com certeza, em uma das três camas, estava
Parnesse.
Errant correu, caiu de joelhos, pegou a mão de Parnesse e beijou
seus dedos com um suspiro de alívio. A contração de seus dedos
contra os lábios de Errant foi quase o suficiente para fazê-la chorar.
Ela estava viva. Uma mão se fechou ao redor de seu ombro.
"Devemos deixá-la descansar", sussurrou o anjo.
Era verdade. Mas Errant não conseguia se mexer. Ela demorou
e saboreou a visão de seu amado em uma peça gloriosa por mais
alguns minutos. Finalmente, ela se afastou e seguiu o anjo para fora
da sala.
"Como?" Errant perguntou suavemente enquanto o anjo fechava
a porta atrás deles. Tantas perguntas começaram com essa palavra.
"Você não estava longe do ponto de encontro. Quando ouvimos
a explosão, sabíamos que você precisava de nós", disse ela, de fato.
"Vocês dois ficaram gravemente feridos. Felizmente, eu estava
presente para consertar suas feridas instantaneamente, embora
exigisse uma parte significativa de mim. . . .do meu Halo, como você
o chama."
"Halo é realmente maravilhoso", Errant meditou suavemente.
Errant tinha visto curandeiros na base usando o Halo para consertar
as pessoas, ela só podia imaginar o que um anjo - um ser feito de
material - poderia fazer.
"Halo é uma das magias mais poderosas que temos. Poderosa o
suficiente até mesmo para restaurar a forma corpórea de um de
nossa espécie que a perdeu anteriormente."
"Poderia curar Phyrexianização?" Talvez fosse por causa do
sonho, mas seu pai e amigos dos Maestros que haviam sido
transformados estavam no centro dos pensamentos de Errant. Halo
era capaz de muito mais do que um mero aprimoramento de
poderes, como era usado antes do ataque dos phyrexianos. Parecia
que todos os dias New Capenna estava descobrindo novas maneiras
de usá-lo em sua luta.
"Infelizmente não." Uma carranca surgiu nos lábios do anjo.
"Halo pode atuar como preventivo contra a conversão, mas não
como uma cura."

296
"Essa ainda é uma ferramenta útil," Errant disse pensativo,
tentando esconder sua decepção pessoal. Uma cura era esperar
demais.
"É. Também foi fruto de grande sacrifício. Esperávamos que
houvesse mais para esta luta." O anjo tinha suas próprias tristezas,
parecia.
Errant mudou de assunto, indo para a sala comunal no final do
corredor. "Como você veio parar aqui . . ."
"Della," o anjo terminou para Errant. "Meu nome é Della."
"Como você veio parar aqui, Della?"
"Isso seria obra minha," Perrie disse orgulhosamente quando eles
entraram na sala comunal.
" Você tem um anjo do nosso lado?" Errant ergueu uma
sobrancelha para ele enquanto cruzava para a mesa onde Perrie e
Kamiz estavam sentados.
"Os Brokers estão acumulando Halo. É natural que sejamos nós
a negociar com os seres feitos dele." Perrie apontou enquanto ele
respirava em seu monóculo, limpando-o meticulosamente. Errant
sempre achou que era comicamente pequeno para o tamanho de seu
rosto. Mas ela nunca diria ao homem que tinha o apelido de "o
Pulverizador" que discordava de suas escolhas de moda.
"Não somos algo para ser guardado", Della murmurou baixinho.
"Exatamente," Errant percebeu. "Os anjos odeiam os corretores
tanto quanto o resto de nós."
"Eu não disse isso . . .Della meio caminhou, meio deslizou até
um assento à mesa. — Mas qualquer escrúpulo pessoal pode
esperar, por enquanto. Não haverá nada para disputar se Atraxa
conseguir o que quer e converter completamente New Capenna."
"As famílias se foram, já não há mais nada para brigar." Errant
sentou-se pesadamente em sua cadeira habitual.
"Só porque você perdeu os Maestros não significa que o resto de
nossas famílias se foi." Kamiz esticou a teia entre os dedos.
"Eu nunca fui um Maestro. Apenas cresci com eles." O tom de
Errant era tenso. Cada palavra trazendo à tona uma memória que
ela tentou sufocar quando elas se tornaram dolorosas demais para
suportar.
"Seu pai foi o chefe da família, por um tempo. Você poderia
muito bem ter sido um deles." Perrie voltou a colocar o monóculo
em seu rosto.
297
"Nomes não importam mais," Errant disse secamente, tentando
acabar com a conversa sobre sua família ali.
"Fale por você mesmo." Henzie saiu de sua oficina, devolvendo
seus muitos anéis de ouro aos dedos depois de mexer. "Os Riveteers
ainda têm luta pela esquerda. Vai levar muito mais do que uma
invasão de outro mundo para nos derrubar para a contagem."
"Os Obscura também estão lutando", acrescentou Kamiz.
"E os corretores." Perrie nunca foi de ser superada.
"E o que isso nos trouxe de bom?" Errant tinha um cansaço em
seus ossos que nenhum descanso ou Halo poderia curar. "Todos os
dias estamos mais em perigo do que no anterior."
"Você viu o céu - nossa cidade - é tudo um grande emaranhado
de galhos de árvores phyrexianas. O que devemos fazer rapidamente
sobre isso, boneca?" Henzie sentou-se, ajustando o boné em volta
dos chifres. "As famílias estão liderando a resistência da melhor
maneira possível."
"Brigas nos becos, tiroteios nas ruas e esse 'plano mestre'
enraizado em encontrar qualquer entrada secreta de que você
precisasse." Errant saiu procurando por ela mesma, uma e outra vez.
"Bem, nós realmente o encontramos ", anunciou Henzie com
orgulho. Errante parou. Será que alguma coisa finalmente deu certo?
"Enquanto você estava pegando os detonadores e as cargas, os
Rebitadores fizeram uma descoberta. Há um núcleo na cidade -
pense como uma viga de suporte principal de que todo o resto foi
construído. Finalmente descobrimos como chegar até ele e agora
nós conheço apenas o único lugar para bater muito bem para
derrubar todos os Park Heights.
Parecia bom demais para ser verdade. "Então o que estamos
esperando?"
"Paciência, cara de boneca", incentivou Henzie.
"Paciência? Paciência? " Errant apontou o dedo para Henzie.
"Fomos pacientes. Trabalhamos incansavelmente neste plano que
as famílias idealizaram. E o que isso nos trouxe até agora? As
mesmas coisas que as famílias sempre receberam em New Capenna
- brigando, roubando e agora as ruas ficando pretas com óleo
brilhante como perdemos cada vez mais a cada hora."
"Ouça, Ziatora vai checar tudo, primeiro. Então vamos enviar
você para explorar. Então—"
" Eu? Você está me mandando embora de novo?"
298
"Errante-"
Ela conhecia o tom apaziguador de Kamiz. "Não não . . .Eu
terminei." Errant se levantou. "Cada missão que você me enviou foi
pior que a anterior e hoje foi muito difícil. Parnesse e eu somos
artistas, não brigões."
"Eu vi a maneira como você se move pela cidade e discordo",
Kamiz sorriu. Errant ignorou o elogio.
"Não podemos fazer isso sem você." Perrie cruzou os braços.
"Quem honestamente vai chegar lá e colocar as acusações? Eu?"
Suas narinas se dilataram com um bufo. "Você realmente quer me
ver tentando andar ao longo de uma pequena grade com esses pés
grandes?"
"E eu não conheço os rabiscos", acrescentou Henzie.
"Kamiz é ágil o suficiente e pode ler os rabiscos do tagger."
Errant gesticulou para a mulher.
"Eu conheço o básico do rabisco. Encare isso, Errant, você é o
pijama do gato quando se trata de se locomover nesta cidade,
especialmente agora que todos os caminhos normais estão
destruídos, barricados ou patrulhados. Não posso me comparar a
você quando se trata de obter as acusações", Kamiz continuou a
bajular.
"Então Pratique." Errante deu de ombros. "Temos o que você
precisava. Não vou mais arriscar a minha vida ou a de Parnesse."
"Minha vida não depende de você para decidir, querida esposa."
A mulher em questão falou gentilmente, mas com firmeza. Parnesse
estava parado na entrada do salão, parecendo mais forte do que
nunca. Embora ela ainda andasse com um leve e preocupante
coxear.
"Mas . . ." Errant engoliu em seco. Parnesse estava certa. Não
cabia a Errant decidir seu destino. "Eu me preocupo por nós, é
tudo."
"Eu me preocupo conosco todos os dias. Todos nós." Parnesse
apertou os dedos de Errante. "Mas é por isso que devemos continuar
lutando. Sei que você também acredita."
Errant suspirou pesadamente. Ela fez. Foi por isso que ela
concordou em trabalhar com a resistência quando eles a abordaram
pela primeira vez. Por que ela ensinou o máximo que pôde a
rabiscos e como encontrar caminhos entre os prédios quando
parecia que não havia nenhum.
299
"Então . . .você voltou?" Henzie perguntou depois de um longo
e tenso momento de silêncio. Errant encontrou seus olhos. Ele deu
de ombros levemente. O que mais você pode fazer? o gesto
perguntou. Não havia mais nada que qualquer um deles pudesse
fazer. Em nenhum lugar eles poderiam ir.
"Sim, estou dentro. Se não podemos contar com as famílias para
manter New Capenna segura, então alguém tem que fazer isso."
Errant podia ver Perrie se arrepiar com o canto dos olhos com a
declaração, mas ele não se opôs ou ofereceu resistência. Todos eles
tinham opiniões diferentes sobre como as famílias ajudaram ou não
ajudaram New Capenna a sobreviver. Melhor deixar assim o
máximo possível. "Sinto muito pela minha explosão mais cedo."
"Faz um dia e meio para você," Kamiz relaxou um pouco em sua
cadeira. "Compreensível, realmente."
"E agora?" Errant não queria se demorar em si mesma.
"A fase final: Operação Falling Star", disse Henzie com um ar de
autoridade e mistério. "Vamos derrubar Park Heights bem na
cabeça de Atraxa."
"E como vamos colocar Atraxa em posição?" O chefe
Phyrexiano tinha se contentado em ignorá-los até agora.
"Poderíamos entrar em plena luz do dia xingando o nome dela e
fazendo cara feia e Atraxa nem piscaria. Ela não nos vê como uma
ameaça."
"É por isso que temos que fazer algo realmente grande. Tenho
conversado com Falco e, com os Riveteers se reunindo, seus planos
estão indo para o estágio dois", disse Perrie com confiança.
"Não é de admirar que ele esteja causando tantos problemas",
Kamiz murmurou. "Se ele continuar o que está fazendo, ou pior . .
." Falco foi o único até agora que conseguiu fazer o olho de Atraxa
estremecer.
"Então a própria barata de chumbo pode ir ao santuário de Nido
para acabar com isso", concluiu Perrie.
"Bem onde precisamos dela", disse Henzie.
"Se o plano estiver avançando, poderei prestar alguma ajuda a
Falco também. Um anjo, ou dois, serão ainda mais tentadores para
Atraxa", acrescentou Della.
"Falando em anjos. Os Corretores têm algum Halo em reserva."
Perrie colocou as mãos sobre a mesa, como se tivesse que se
preparar para confessar isso. "Isso vai sair também."
300
"Você está escondendo de nós?" A cauda de Henzie se contraiu
em agitação.
"Guardando para o estágio dois," Perrie insistiu.
"Bom, me traga um pouco. Vou precisar", declarou Errant.
Quando Perrie lançou um olhar cético em sua direção, ela se
dobrou. "Você não vai me mandar para o meio disso sem me dar
munição adequada. Não posso explodir acusações se eu entrar em
uma briga." Perrie relaxou em seu assento e concordou com um
aceno de cabeça. "Também precisarei de um sinal para quando
Atraxa estiver em posição e for hora de detonar."
"Acredito que posso ajudar com isso também", disse Della.
"Bom." Era um plano improvável e arriscado e um pouco de
Halo do lado dela não iria mudar isso. Mas era o melhor que eles
tinham e, de muitas maneiras, parecia a última esperança de New
Capenna. Henzie tinha razão . . .ela não podia ir embora agora.
"Vou relatar a Ziatora, então. Temos uma chance nisso, então é
melhor acertarmos." Henzie inclinou-se para a frente, apoiando os
cotovelos cobertos de listras na mesa.
"Nós iremos", Parnesse jurou por todos eles. "Não vamos deixar
que roubem a beleza de New Capenna. Não quando todos nós
trabalhamos tanto para fazê-lo."
Demorou alguns dias para colocar todos na mesma página.
Algumas coisas em New Capenna nunca mudaram e uma delas foi
convencer as famílias a jogar bem juntas - mesmo quando
compartilhavam um inimigo comum.
Mas, finalmente, eles acertaram os detalhes finais. O plano estava
finalmente acontecendo. Falco e seus corretores estavam em posição.
As famílias restantes foram reunidas em torno dele, algumas à vista,
muitas não. Os rebitadores avançaram cedo, trabalhando para
garantir suportes para garantir que fosse apenas Park Heights a cair
e para identificar áreas seguras para sua resistência. Della havia
reunido os anjos. Errant havia planejado duas rotas - uma para si
mesma e outra para Parnesse.
Parnesse juntou-se à equipe que reunia todos os cidadãos
remanescentes de Park Heights, tentando conduzi-los para uma
zona segura antes que tudo desmoronasse. Errant podia vê-los bem
abaixo dela de vez em quando, enquanto ela avançava pelos
telhados, pelos pescoços dos guindastes, pelas vigas de aço e saltava
entre os galhos monstruosos da Árvore da Invasão. Parnesse queria
301
estar com ela, mas Errant insistia que ela seria mais rápida sozinha.
Além disso, sua esposa conhecia os rabiscos do pichador de Errant
melhor do que ninguém e teria a melhor chance de levar os cidadãos
para um local seguro.
Com alguma sorte, ela os veria novamente na zona segura
quando isso acabasse.
A sacola com as cargas dos Riveteers retiniu contra seu quadril e
um mapa desenhado por Henzie girou em sua mente enquanto ela
fazia seu caminho pelas passagens de New Capenna que estavam
escondidas à vista de todos. Mas manter o foco em seu próprio
trabalho era difícil, pois o rugido das feras conversoras abaixo
chacoalhava seus ossos. Algo estava errado . Os phyrexianos
estavam indo atrás dos cidadãos em fuga, incluindo Parnesse.
Errant pegou um dos potes presos em seu quadril, cada um cheio
com uma mistura de tinta de seu próprio estoque e o Halo que Perrie
havia presenteado. Ela correu e saltou do galho da árvore em que
estava correndo. No meio do outono, ela soltou dois dos frascos.
Eles caíram com explosões de cor e poder, desviando o ataque das
feras abaixo.
Ela pousou em uma varanda, rolou e ganhou velocidade
novamente com dois longos passos antes de pular da borda irregular
do prédio meio desmoronado. Uma besta conversora virou seu
rosto para ela com um rugido. Errant sorriu e jogou um terceiro
frasco bem em sua boca.
Halo-pintura foi em todos os lugares. As feras se espalharam,
rugindo de dor. Errant não tinha percebido o quão satisfatória seria
a coloração daquelas superfícies brancas e imaculadas. Essa luta
seria sua obra-prima — a grande marca que ela deixaria em New
Capenna.

302
Arte por Olivier Bernard
Um dos monstros mudou de rumo, indo na direção dela. Errant
pousou em uma grade, disparando ao longo dela. Ela ganhou
Parnesse e os cidadãos tempo suficiente - ela esperava. Agora ela
tinha que se preocupar consigo mesma. A besta refletiu seu salto
selvagem de aço, para tijolo, para galho para fechar a distância para
Errante. Ele bloqueou seu caminho e soltou um rosnado quase
satisfeito.
"Você não acha honestamente que aqueles potes eram tudo que
eu tinha, não é?" Errant pegou o spray de tinta em seu coldre. Era
um modelo antigo com uma parte superior desajeitada e uma grande
esfera para segurar a tinta na frente do cabo. Mas seu volume deu
espaço para Henzie adaptá-lo às especificações de Errant. "Vamos
ver o que isso pode fazer."
A tinta espirrou, girando com os arco-íris iridescentes do Halo
com o qual foi infundido. Ele invadiu a fera conversora,
transformando-a de vermelhos e brancos monstruosos em um
caleidoscópio de cores mais vibrantes do que a paleta de um artista.
A criatura rugiu, recuou e caiu nas ruas abaixo. Aterrissou com
um respingo na borda da carnificina que Errant colheu. Halo
ricocheteou. O ar vibrava com magia como a luz do sol entre os
prédios em um dia quente.
Uma onda de energia a fez correr mais rápido do que antes. Uma
besta como essa a teria feito se encolher de medo dias atrás. Um
como esse quase acabou com a vida dela e de Parnesse. Agora, ela

303
tinha o poder dos anjos em suas mãos e era algo que esses monstros
deveriam temer.
Errant avançou, mais adiante em becos e depois em passagens
de serviço com confiança renovada. Talvez o resto deles estivesse
certo; eles tiveram uma chance. Tudo o que ela tinha que fazer era
colocar as cargas exatamente onde Henzie disse a ela e depois sair.
Fácil.
Nas profundezas do coração de New Capenna havia um núcleo
- uma estrutura de suporte que os primeiros Riveteers haviam
construído e percorria toda a extensão da cidade. Era como um
poderoso tronco para a árvore que era seu lar. Escondido à vista de
todos por um labirinto de vigas e ramificações. Alcançado apenas
através de entradas esquecidas exploradas pelos mais corajosos
exploradores urbanos. Errant diminuiu o ritmo enquanto se
aproximava do que parecia ser o coração de metal da cidade que ela
tanto amava.
Ela começou a descarregar sua bolsa e colocou as cargas
exatamente onde Henzie havia instruído. O diabo disse a ela que ela
tinha que fazer isso porque ela era a mais rápida, a mais ágil e a que
poderia chegar com confiança a esse ponto. Mas Errant se
perguntou se isso também tinha algo a ver com o fato de ela não ser
uma Rebitadeira. Ela não tinha conexão com essa estrutura do jeito
que eles teriam. Destruí-lo provavelmente seria como perder um
membro para eles.
Com os explosivos no lugar, Errant foi embora. Mas uma figura
solitária bloqueou seu caminho. Ela olhou para olhos familiares, mas
estranhos. Errant piscou, convencendo-se de que não era um novo
pesadelo. Isso era real. Seu pai estava diante dela.
Mas ele não era o homem que ela conhecia. Tendão vermelho
esticou seu pescoço. Ele se projetava sob as placas pálidas que
substituíram partes de seu corpo com ângulos agudos e anormais.
Partes de sua carne foram esvaziadas - um vazio onde antes estava
seu coração. Ele era como um mural meio estragado com pichações.
Vislumbres do que antes ainda eram visíveis. No entanto, não era o
bastante.
Ele era uma zombaria do homem que a criou. E, no entanto, a
simples visão dele fez Errant querer correr para ele. Para segurá-lo
e buscar conforto para a menina que ainda chorava pela perda de
seu pai que ela conheceu.
304
"Errante," ele murmurou o nome dela.
"Não", ela retrucou. "Não fale com a voz dele."
"Esta é a minha voz." Anhelo levou a mão ao peito, a outra
varrendo dramaticamente para o lado. "Assim como você é minha
filha."
"Você -" ela pegou seu pulverizador "- não é meu pai. Ele nunca
seria um deles . "
"Errante," ele disse o nome dela no mesmo tom que ele tinha
falado com ela ao longo dos anos, como se ela fosse pouco mais que
uma criança teimosa. "Não seja tão resistente. Você sempre quis ver
a beleza. Possibilidade. Seu olho para isso é impecável. Venha, posso
mostrar a você a beleza de Nova Phyrexia. Nosso futuro glorioso
não é muitos, mas um. Um, único golpe de brilho."
Ela observou seu rosto enquanto ele falava. Ouviu seu tom. ele
acreditou . . .toda palavra. Ele realmente pensou que havia beleza na
singularidade em que os Phyrexianos estavam tentando colapsar
todo o Multiverso.
"A beleza não se encontra colorindo as linhas. Não se faz com
uma só cor, nem com uma pincelada." Errant lentamente balançou
a cabeça. "Beleza é confusão e experimentação - fracasso e triunfo
e todas as amargas, mas doces, dificuldades que vêm de ultrapassar
os limites do que é conhecido. Está na originalidade. Você sabia
disso, uma vez."
"Mas então eu vi a verdade."
"Você vê apenas o que eles dizem." Errant deu um passo à frente,
a mão que segurava seu borrifador tremeu. Mas ela poderia liberar
o poder de Halo em seu próprio pai? Anhelo se mexeu, claramente
tentando bloquear seu caminho. "Pai, se você ainda sente algum
amor por mim, vá embora."
"É porque eu amo você que quero protegê-lo - você e Parnesse
- ambos devem se juntar ao verdadeiro caminho para estarem
seguros."
"Você não vai encostar um dedo nela. Em nenhum de nós." Os
dedos de Errant tremeram sobre a liberação do bocal. Ela não poderia
fazê-lo .
O céu se iluminou com uma explosão de Halo, chamando a
atenção de ambos. Era isso — o sinal de Della. Atraxa estava no
lugar. Ela teve que se mover. Agora .

305
"Chega. Junte-se a mim." Anhelo tentou atacá-la, mas ela foi
muito rápida.
Errant saltou para uma janela mais baixa. O brilhante Halo,
caindo do céu como fogos de artifício contra os restos ainda
brilhantes de New Capenna, contrastava com a penumbra do núcleo
protegido. Empoleirado no parapeito, Errant encontrou seus olhos
uma última vez, ainda brilhando com o brilho do sinal do anjo. Ela
ergueu a mão, acionando os interruptores do detonador e expondo
um botão final.
"Adeus, pai," Errant sussurrou enquanto ela tombava para trás,
jogando seu corpo através das vigas do núcleo e ao ar livre além.
Ela apertou o botão.
O núcleo acima dela explodiu com uma chama laranja e fumaça.
Edifício estremeceu. Os outrora invejáveis picos de Park Heights
estavam desmoronando e queimando até virar pó. Os suportes de
aço que se conectaram ao ponto fraco que Errant havia explorado
gemeram e se torceram. As estruturas caíram como flores na brisa
da primavera. Parecia que a própria cidade estava acordando de um
longo sono com um rugido, determinada a expulsar seus invasores.
Errant caiu com força em uma saliência, rolando, lutando,
puxando os pés para baixo e começando a correr através do caos
em ruínas, apesar de ainda não ter recuperado o fôlego. A pedra
rachou embaixo dela, mal oferecendo apoio quando ela saltou para
um galho da árvore. Em seguida, de volta a um prédio. Suas
passagens marcadas estavam caindo em um labirinto caótico.
Atraxa queria Nova Capenna e a teria enfiado goela abaixo em
pedaços. E, uma vez terminada a invasão, New Capenna seria
reconstruída. Algo ainda melhor do que antes.
Cerrando os dentes, Errant se esforçou até seu limite físico
tentando se manter de pé. Ela tropeçou, caiu. Mas continuou. Ela
tinha que continuar, Parnesse estava esperando por ela de volta na
zona segura. Não era muito longe daqui. Ela poderia fazer isso.
Errant jogou todo o seu peso no salto, mas suas mãos erraram o
corrimão que ela estava mirando. Seu estômago disparou em sua
garganta, bloqueando seu grito. O mundo desacelerou como o que
poderia ser seu último segundo.
Então, dois braços robustos a envolveram. Seu corpo
desacelerou, pairando no ar. Esquivando-se milagrosamente da
chuva de detritos.
306
"Della?" Errant piscou para o anjo, seu salvador mais uma vez.
"Você parecia precisar de alguma ajuda." As asas de Della se
estenderam atrás dela e deslizaram para baixo tão leves quanto uma
pena.
"O resto da equipe?" Perguntou Errante.
"Eles estão bem."
A conversa foi interrompida por outro estrondo alto. Sem aviso,
uma onda de magia percorreu a cidade. Ele caiu sobre os prédios
como uma onda de força bruta. New Capenna brilhava com o poder
de Halo.
Bem acima da cidade, os galhos da Árvore da Invasão
começaram a murchar, recuando pelos portais rasgados nos céus.
Pela primeira vez no que pareceram anos, ela podia ver vislumbres
de um céu não fraturado. Em resposta, trompas de guerra ecoaram
por toda a cidade.
"Um contra-ataque?" ela perguntou freneticamente.
"Sim, nosso." Della virou o rosto para o céu e uma massa de
anjos subiu para os portais vazios, correndo atrás dos galhos e nos
planos além.
"O que está acontecendo?"
"Os anjos estão sendo lançados no Multiverso, trazendo o poder
de Halo com eles." As asas de Della se estenderam ainda mais
quando seus pés finalmente tocaram um telhado sólido e ela soltou
Errante.
"É o fim?" Errant permaneceu focado nos anjos saindo de New
Capenna. Eles levaram sua magia e poder com eles. Mas algo lhe
assegurou que New Capenna ficaria bem mesmo sem eles. Pela
primeira vez, eles conseguiram trabalhar juntos. Talvez tenha sido o
começo de um novo futuro brilhante.
"Não", Della admitiu, um tanto triste. "Isso por si só não será
suficiente para acabar com esta guerra ...mas pode nos dar a chance
de vencer. Você, New Capenna, desempenhou seu papel e fez seus
sacrifícios. Agora é a nossa vez."
"Errante!"
O grito fez seu coração disparar. Errant girou, percebendo que
eles haviam pousado na beira do telhado no Mezzio que Henzie
havia marcado como seguro da demolição. Ela estava tão
concentrada no que New Capenna havia perdido que quase perdeu
o que ainda estava de pé: Perrie, Henzie, Kamiz, todos os cidadãos
307
que escaparam da queda de Park Heights e - o mais importante de
todos - Parnesse.
Errant gravou a memória de sua esposa correndo pela distância
entre eles em sua mente com cada emoção vívida. Ela saborearia
esse momento até o fim de seus dias, sabendo que era lindo demais
para ser capturado por um pincel ou borrifador.
"Parnese!" Errant abriu os braços bem a tempo de Parnesse se
jogar neles. "Você esta bem."
"Você também. Eu estava tão preocupada." Parnesse relaxou seu
aperto, olhando para Errant com aquele sorriso deslumbrante que
fez seus joelhos fraquejarem.
"Estou bem, graças a..." Errant parou no meio da frase. O anjo
se foi. "Della . . ."
"Onde ela está indo?" Parnesse havia inclinado a cabeça para o
céu. Errant se perguntou se ela poderia encontrar Della entre todos
os anjos voando, correndo para os portais abertos.
"Para nos ajudar a vencer esta guerra." As palavras eram
vagamente doces, mas salgadas de todas as lágrimas que foram
derramadas para chegar a este momento.
"É de tirar o fôlego", sussurrou Parnesse.
Fumo espesso. Anjos brilhantes. Lágrimas de raiva que rasgaram
anormalmente entre as nuvens. Uma cidade queimando e, de alguma
forma, também se erguendo em conjunto.
O braço de Errant deslizou ao redor da cintura de sua esposa.
"Isso é . . .parece esperança."

308
ZENDIKAR: BATALHAS NO CAMPO
E NA MENTE
A. T. Greenblatt

Nahiri sempre quis salvar sua casa. Ela fica em um ponto de


vantagem sobre um dos incontáveis fragmentos de pedra à deriva
no céu de Zendikar e faz um balanço de seu avião.
Muito abaixo dela, a invasão phyrexiana está ganhando terreno.
Ela vê a vanguarda marchando para a frente, espalhando seu óleo
viscoso e suas sementes mecânicas enquanto avançam, e a terra
verde sob seus pés murchando e fumegando em preto enquanto se
movem em direção a Sea Gate. Eles estão conquistando este plano,
rapidamente, e logo Zendikar estará curado e em paz, como todos
os outros planos para os quais Phyrexia trouxe unidade e ordem.
Ótimo , pensa Nahiri.
Ela tentou mudar seu mundo natal antes, devolvê-lo à sua antiga
glória e acalmar o Roil, e não conseguiu. Ela tentou proteger este
plano dos Eldrazi e não conseguiu. Mas desta vez, ela não falharia.
Desta vez, ela salvaria Zendikar ajudando sua transformação em sua
forma mais pura e idílica.
Ela é mais sábia agora também. Ela entende que Zendikar e seus
residentes lutarão contra a mudança e que, se deixados por conta
própria, os habitantes equivocados deste plano podem conseguir
impedir os phyrexianos. Então, ela deve ajudar no renascimento de
sua casa, esculpi-la, desbastar suas impurezas e impulsos até que
reste apenas a perfeição.
Nahiri fecha os olhos e com sua litomancia, sente através da rede
dispersa de edros, a defesa que ela criou há tanto tempo para manter
309
os Eldrazi afastados. Ela precisa de uma fortaleza, um nexo para seu
novo poder forjado. Um sorriso satisfeito se espalha em seu rosto
quando ela o encontra.
Sim, a Skyclave em Emeria será o ponto de acesso perfeito para
conectar todas as redes Hedron e abrir as brechas entre os planos,
permitindo que a atual invasão phyrexiana se torne uma inundação.
Uma cascata que lavará este plano novamente.
Ela olha para seus próprios braços, recém-cobertos pelos
símbolos brilhantes e brilhantes de Phyrexia e onde antes estavam
suas mãos, agora há duas lâminas de pedra em chamas.

Arte por Zara Afonso


Ela sorri.
Pois ela também foi esculpida, em algo melhor. Ela entende isso
agora.
Há consolo em jogar linha, apesar dos novos horrores que esses
novos invasores mecânicos trouxeram para sua casa. Akiri é grata
por esta coisa imaculada, mesmo enquanto ela procura as ruínas
flutuantes de Emeria em vão.
"A visão não estava clara", disse Tazri. "Vi as pedras se reformando e os
edros se alinhando , de onde se espalhou o óleo e a corrupção. No centro havia
uma única figura. Senti nossa condenação, mas também nossa salvação."
"Onde?" perguntou Akiri.
"Não tenho certeza", respondeu Tazri, corando levemente. "Parecia estar
em algum lugar acima de Tazeem. Muitos edros."
Não era muito para continuar. Os edros em Zendikar eram tão
dispersos e numerosos quanto túneis secretos e cavernas em Guum
310
Wilds. Mas Akiri confiava em Tazri, e sua visão abençoada
significava que Akiri tinha que pelo menos tentar. Havia uma
pequena parte culpada dela que sentia alívio por estar longe da
batalha em Sea Gate. Estar escalando, balançando e lutando pelo ar
rarefeito e frio mais uma vez.
Ela ouve passos nas pedras atrás dela e, um momento depois,
seus dois companheiros a encontram na borda em que ela está.
"Qualquer coisa?" ela pergunta.
Orah balança a cabeça, o clérigo kor mantendo seu próprio
conselho. Kaza, dá de ombros. "Desculpe chefe." Mas mesmo o
típico mago humano alegre parece desanimado.
Akiri acena com a cabeça e não deixa transparecer sua frustração.
Seus companheiros - seus amigos - insistiram em acompanhá-la,
embora soubessem que buscavam a menor das esperanças. E eles
precisavam desesperadamente de esperança.
Ao longe, Linvala desliza com o vento. O anjo chama a atenção
de Akiri e Akiri balança a cabeça.
"Mantenha seus olhos atentos", diz Akiri, e com um movimento
fluido, engancha outra linha em um penhasco à deriva a cinquenta
passos de distância.
Então, ela está subindo novamente.
Aqui, no espaço traiçoeiro acima da terra, nos espaços vazios
entre pontos de apoio, ela deve se concentrar, ela deve ouvir e
observar. Pois a qualquer momento algo pode mudar e uma reação
que é um momento tarde demais significa a morte.
Quando Akiri está jogando linha, não há espaço para fantasmas
ou arrependimentos do passado.
Com facilidade praticada, ela atravessa a lacuna, lançando linhas
no meio do arco, habilmente agarrando-se a destroços e edros
traiçoeiros, até rolar para uma saliência de aparência sólida.
É apenas porque ela está sintonizada com cada movimento que
ela capta a cintilação à distância. Akiri se vira para ver uma ágil
mulher kor aparecer do nada em um fragmento isolado, sua pele
cinza coberta por símbolos escuros e brilhantes, pontas projetando-
se de seus ombros, seus braços terminando não com mãos, mas com
longas lâminas ardentes de fogo. Ela mudou, mas mesmo à
distância, Akiri sabe quem é. Essa figura, esse rosto, assombra seus
sonhos desde que ela perdeu Zareth.
Desde que ela caiu.
311
"O que você vê?" Linvala pergunta, descendo ao lado dela.
Akiri só pode apontar, o horror se acumulando em seu estômago.
"Avise Tazri", ela sussurra. "Pressa."
Nahiri, o Planeswalker, voltou para Zendikar e Akiri entende
naquele momento com pavor desenfreado, a invasão Phyrexiana
ganhou vantagem.
Eles têm lutado incessantemente por dias incontáveis e, ainda
assim, os Phyrexianos continuam chegando. Tazri lutou batalhas
suficientes para saber que a luta está tanto no campo quanto na
mente. Então, ela mantém o maxilar cerrado e a voz clara enquanto
grita comandos para o exército desorganizado dos lutadores de Sea
Gate e não deixa transparecer sua exaustão. Mas os galhos da Árvore
da Invasão continuam chegando. Brancos, rachados, metálicos e
maciços, os galhos irrompem dos portais que se abrem no céu e no
mar. De cada novo galho, uma onda de invasores phyrexianos se
espalha pelo campo de batalha.
Tazri vê o medo no rosto de Erem, o guerreiro kor de pé ao lado
dela enquanto a mais nova onda de monstruosidades de máquinas
corre para se juntar às forças já crescentes na base de Sea Gate. O
óleo escorregadio e de aparência doentia que segue o inimigo sobe
pelas colunas de mármore do Sea Gate que Tazri planejou e projetou
com tanto amor.
Ela chega ao lado de Erem e coloca a mão em seu ombro.
"Os Eldrazi eram mais assustadores", diz ela, e ele solta uma
risada trêmula.
Mas sua mente volta para sua visão. Seus pensamentos nunca
estão longe disso, ao que parece. O choque da pedra, o calor
chamuscante do poder sem restrições, a figura no centro de tudo,
apenas seu contorno visível. O sentimento de desespero, tingido de
esperança.
Secretamente, ela espera que Linvala e Akiri não tenham
encontrado nada em suas buscas desde que partiram. Que a visão
dela é um problema para outro dia. Ela já tem um exército de
problemas diante dela.
O inimigo está quase no portão.
"Guerreiros!" Tazri grita. "Esta é a nossa casa! Nós matamos
falsos deuses por ela! Nenhum invasor jamais a reivindicará de nós!"
Ao seu redor, seus lutadores se reúnem e rugem ferozmente,
roucos e cansados como estão.
312
Tazri grita seu grito de guerra, virando-se para enfrentar os
invasores. Então, ela ataca, correndo de cabeça para a briga.
Sementes maciças e distorcidas atingem a terra ao seu redor
enquanto ela desvia e apara o golpe da lança de um guerreiro
phyrexiano. Elevando-se e mais máquina do que carne, o inimigo se
move em fileiras ordenadas, com precisão mecânica. Esses lutadores
sem alma com apenas um objetivo: assimilação total.
Uma onda de horror se instala nela, mesmo quando Tazri
derruba guerreiro Phyrexiano após guerreiro Phyrexiano.
"Como você está fazendo isso tão rápido?" alguém diz ao lado
dela. Tazri vira uma fração. Erem está defendendo seu flanco.
"Eles não têm imaginação", diz ela com um sorriso.
Eles lutam bem juntos, ela e Erem. Mas ainda há mais vagens,
mais portais, mais galhos. O inimigo é implacável, talvez infinito.
Não. Sem desespero. Tazri pensa e dobra sua ofensa,
Ainda assim, ela fica aliviada quando vê o anjo no céu e quando
esse anjo vem se juntar a ela e a Erem, empunhando seu cajado com
precisão mortal.
"A litomante voltou. Nós a espiamos perto de Emeria," a voz de
Linvala é quase inaudível sobre o choque de armas contra a
máquina.
"Ótimo. Poderíamos usar a ajuda de um Planeswalker", grita
Tazri e afunda sua espada em outro inimigo.
"Ela não voltou como aliada."
"O que?"
Mas antes que o anjo possa responder, há um grito terrível ao
lado de Tazri. Ela se vira para ver que Erem foi perfurado na perna
por um dos invasores e está sendo arrastado para uma cápsula aberta
e manchada de óleo.
"Não!" ela grita e atravessa o Phyrexiano segurando a lança. Ela
se abaixa para ajudar Erem a se levantar. Mas antes que ela pudesse
agarrar o braço dele, outra vagem bate no chão, a poucos metros de
distância, derrubando-a. Com um silvo, o casulo começa a se abrir,
permitindo que os monstros Phyrexianos se desenrolem e se
espalhem.
Tazri se recupera rapidamente, mas não rápido o suficiente.
Erem se debate e grita seu nome enquanto dois invasores o arrastam
para a vagem mais próxima e o selam lá dentro.

313
Tazri luta e luta para alcançá-lo, mas são tantos inimigos. Muitos.
E ainda, mais vêm.
Ao seu redor, os bravos guerreiros de Sea Gate estão sendo
subjugados.
Ela chega ao casulo a tempo de ouvir a mudança dos gritos de
Erem. De dentro de sua prisão de metal, seu amigo começa a rir.
Sua voz se transformando em algo mecânico e distorcido.
"Tazri!" grita Linvala. "A cidade está perdida. Devemos partir!"
"Não", responde Tazri, mas sua própria voz é engolida pelo
terror e pelo riso distorcido. Ela também não luta enquanto o anjo
a envolve em seus braços e voa alto no ar.
De cima, Tazri assiste horrorizada enquanto sua casa é,
novamente, consumida por criaturas que não são deste plano.
Nahiri sabe que seu avião está envenenado e entende que tentará
rejeitar seu antídoto. E assim, ela não fica surpresa quando o Roil
vem atrás dela. Ela está correndo pelo céu, saltando de pedra em
pedra enquanto constrói um caminho ao ar livre, quase voando,
quando a terra lá embaixo começa a roncar e tremer, desalojando
seu ritmo. Xingando, Nahiri tropeça e salta para um edro próximo
para recuperar o equilíbrio.
O Roil sempre tentou miná-la. Sempre foi imprevisível,
indisciplinado e destrutivo. Mas ela é mais sábia agora e mais
poderosa.
Os símbolos em seu corpo brilham quando ela joga os braços
para trás e começa a esculpir a terra abaixo dela. Quando o chão
treme e tenta desequilibrá-la, ela o sufoca com pedras tão pesadas e
tão grossas que o violento abalo se reduz a meros arrepios. Quando
ele a ataca com gêiseres de água e magma, ela estrangula suas rotas
de fuga, asfixiando a turbulência tão abaixo da terra que levará um
milênio para o magma voltar à superfície novamente.
Cada mudança, cada truque que o Roil usa, Nahiri sufoca com
sua força recém-descoberta.
Eventualmente, a terra se acalma. O Roil estremece como um
peixe ofegante fora d'água e finalmente para. Por quilômetros, a
paisagem tornou-se a uniformidade cinzenta do leito rochoso.
Nahiri levanta os braços em triunfo. Óleo preto escorre pelas
lâminas em chamas que já foram suas mãos. Ela ri de alegria.
Que perfeição! Antes de sua conversão phyrexiana, ela nunca
teria sido capaz de realizar tal feito.
314
E assim, alegremente, ela se volta para a Emeria Skyclave. Ela
não será impedida em sua justa missão.
Ela não pode ser parada.
Akiri está rastreando o Planeswalker corrompido há dias. Ela
testemunhou a pedra quebrada do Skyclave consertar e se
transformar em metal branco. Os edros se alinham, vibram com
poder e começam a brilhar com uma luz sobrenatural. Agora há óleo
vazando das rachaduras das pedras forjadas. Com cada mudança no
Skyclave acima, mais inimigos chegam abaixo. Eles irrompem por
portais, os galhos da Árvore da Invasão horrivelmente longos e
gigantescos, deixando o céu vermelho e enchendo o ar com o
zumbido dos motores e passos enquanto o exército phyrexiano
avança. Abaixo de seus pés, a terra se transforma em metal branco
rachado, quebrado por grossas veias vermelhas semelhantes a
tendões.
Mesmo a essa distância, Akiri pode ver que seu avião está
morrendo.
"Algum sinal do anjo?" ela diz a Orah na borda abaixo dela.
"Ainda não", ele responde. "Kaza ainda não viu Linvala."
Akiri faz uma careta e se esforça para ser paciente. A jornada de
Sea Gate a Emeria é longa, mesmo de asa.
Se Zareth estivesse aqui, ele teria argumentado para não esperar,
para atacar Nahiri e lutar por sua casa. Mas Zareth é uma memória
e um buraco vazio em seu peito que não pode ser preenchido. Akiri
conhece Nahiri bem o suficiente para entender que enfrentá-la
sozinha significaria a morte.
Então, Akiri espera, mas não está ocioso. Leve em seus pés e
rápida no ar, ela voa, explorando as poucas peças não corrompidas
do Skyclave, procurando uma maneira de entrar. É assim que ela
encontra uma entrada no lado oeste, recuada e pequena o suficiente
para ter sido protegido do óleo corruptor.
Finalmente, Akiri avista Linvala no céu avermelhado. O anjo está
segurando alguém em seus braços, e Akiri reconhece o halo
brilhante em volta do pescoço de Tazri.
Orah e Kaza também os localizam e, com Akiri, os três
aventureiros se levantam para cumprimentar os recém-chegados.
Linvala desce e coloca Tazri no chão. Ambos parecem varridos pelo
vento e exaustos.
"Voei o mais rápido que minhas asas permitiram", diz Linvala.
315
"Eu sei", responde Akiri, segurando o anjo e Tazri nos ombros.
"Você tem certeza que Nahiri está aqui como nosso inimigo?"
pergunta Tazri, incapaz de manter a mistura de esperança e
desespero em sua voz.
"Sim. Eles a mudaram", responde Akiri, hesitando antes de
acrescentar: "E eu conheço essa expressão em seu rosto. Ela
pretende transformar Zendikar."
"Isso não é prova", protesta Tazri.
"Não, mas isso é!" estala Akiri e aponta para o Skyclave
aparecendo diante deles, é edros vibrantes e óleo pingando. Em
seguida, para a paisagem morta abaixo. "Alguns dias atrás, a terra
estava verde. Estava cheia de vida. Quanto mais edros conectados,
mais rápido o inimigo chega. Nahiri vai destruir nossa casa se não
fizermos nada."

Arte por Thomas Stoop


Os dois aventureiros se encaram por um momento.
"Ela está certa, Tazri", Linvala diz calmamente.
Tazri acena com a cabeça, os punhos cerrados ao lado do corpo.
"Porta do Mar . . ." Akiri começa a perguntar. Mas a expressão
nos rostos de Tazri e Linvala responde à sua pergunta.
"Somos os únicos que restaram para parar Nahiri", diz Tazri
enquanto inspeciona a Skyclave, transformada e cheirando a invasão
phyrexiana.
"No interior está nossa última esperança de salvar nosso lar",
concorda Linvala. "Não podemos falhar. A única questão que resta
é como proceder."
316
Por um momento, ninguém fala.
"Encontramos uma maneira de entrar", oferece Kaza.
"E ainda não está corrompido", diz Orah, apontando para a
pequena entrada no fundo do penhasco do Skyclave.
"Vou te levar lá", diz Akiri, entregando uma corda a Tazri. "Não
toque no óleo."
"Eu sei." Tazri cerra os dentes.
Akiri conduz seus companheiros, viajando entre as rochas e pelo
ar que não é mais frio e claro, mas doentiamente quente e sufocado
pelo cheiro de gordura.
A entrada no Skyclave é um mau presságio, uma lacuna áspera
na pedra levando a uma escuridão sem fim à vista. Akiri enrola suas
cordas enquanto diz: "Não sei que horrores nos aguardam lá dentro.
Não sei o que Nahiri está planejando, mas ela é implacável. Você
pode morrer ou ser mudado. Quem não quiser ir, deve sair e não
sentir vergonha."
Ela olha para Linvala, Tazri, Orah e Kaza sucessivamente. Todos
eles encontram seu olhar e não se movem.
"Zareth nunca nos perdoaria se a deixássemos vencer", diz Kaza,
calmamente. Orah acena com a cabeça e o peito de Akiri dói com a
memória da teimosia infame de seu amigo perdido.
Ainda assim, Akiri hesita.
"Não derrotamos os Eldrazi para sermos destruídos por isso",
diz Tazri com o maxilar cerrado e caminha para a escuridão.
A princípio, Tazri se pergunta por que a passagem está tão
silenciosa. Pelas histórias que ela ouviu nas tavernas dos
aventureiros, os túneis da Skyclave devem estar cheios de criaturas
aterrorizantes e maravilhas deslumbrantes da antiga civilização kor.
Dizem que tudo se move em cidades flutuantes e fragmentadas no
céu. Tudo é traiçoeiro, não se pode confiar onde se põe os pés.
Mas aqui na escuridão da Skyclave que Nahiri está corrompendo,
tudo está parado.
"Algo está errado", Orah sussurra, seus olhos cinzentos
examinando cada rachadura e cada canto enquanto eles caminham.
"Sim. Geralmente somos atacados agora", concorda Kaza.
Diante dela, Tazri pode apenas distinguir a silhueta alta de Akiri.
A mulher kor se move com discrição e cautela e Tazri se sente grata
por ter um aliado tão experiente ao seu lado. Apesar de sua raiva e

317
dor, Tazri está feliz por ter pedido a Akiri para explorar as ruínas
depois que ela teve sua visão.
No fundo do túnel, há uma cintilação. Algo brilha brevemente
em vermelho, depois desaparece.
"O qu..." Linvala começa, mas Akiri a silencia com um gesto. O
lançador de linha avança alguns centímetros. Atrás dela, Orah e
Kaza sacam suas armas. Pela primeira vez, Tazri desejou que a
auréola em seu pescoço não brilhasse tanto no escuro.
Há uma cintilação novamente. E depois um mais longo, agora
mais perto. Rápido como um raio, embora Tazri possa apenas
distinguir a forma de um humanóide, vermelho e preto e curvado.
Então, por segundos agonizantes, não há nada. Eles não se movem,
Tazri mal respira.
"Para onde foi?" Kaza sussurra, eventualmente.
Algo ruge atrás deles.
Os cinco aventureiros se viram para encontrar uma criatura
enorme, como uma árvore gigante retorcida, boca aberta e
devoradora, olhos cheios de raiva. Suas folhas esfarrapadas restantes
são pretas e sua casca foi substituída por tiras de metal opaco. Óleo,
em vez de seiva, escorre por entre sua casca metálica.
O elemental corrompido ergue seus membros e Tazri rola, o
impacto errando-a por centímetros. Ela se ajoelha, saca sua espada
e rosna.
Com seus anos de experiência em batalha, Tazri entende que os
ataques da criatura dependem de seu tamanho maciço e que, se
acertar um golpe, seus membros os esmagariam como uma bota em
um galho. Ouve-se um estrondo estrondoso quando um galho
grosso se choca contra as pedras a um palmo de distância de Tazri.
Não há como ela desviar e desviar isso .
Então, ela muda de tática, atacando os pontos vulneráveis; os V
de seus membros, seu rosto quando ela pode, suas raízes quando ela
não pode. Seus colegas aventureiros fazem um belo trabalho em
mantê-lo distraído, mas é somente quando Akiri afunda uma de suas
linhas de anzol na criatura e usa a corda para desequilibrá-la que
Tazri consegue a abertura que ela está esperando. Ela enfia sua
espada na boca escancarada da criatura.
Ele não faz barulho quando morre. E de alguma forma, isso
perturba Tazri mais do que qualquer grito de morte.

318
"Bem", diz Linvala, dobrando as asas e tirando o cabelo dos
olhos. "Que inesperado."
"Oh, deuses", diz Orah com a voz estrangulada. Tazri se vira para
ver o clérigo segurando sua mão direita. As pontas de seus dedos
estão cobertas por um óleo preto doentio.
"Ora . . ." Akiri dá um passo à frente. Mas Orah recua.
"Eles estão vindo", diz ele e acena para o túnel.
À distância, há outro clarão vermelho. Então outro.
"Para Zareth", diz Orah, e encontra o olhar de Akiri. "Para nós ."
Com isso, ele entra na Skyclave com o bastão na mão.
Os cinco aventureiros lutam como demônios. Os elementais que
eles encontram são poderosos e estranhamente familiares, com
frentes maciças e musgo brilhante. Mas todos eles foram
transformados em uma subversão de seus antigos eus. Uma vez
guardiões de Zendikar, agora fanáticos de Phyrexia. Tazri e os
outros derrotam um elemental phyrexianizado, depois dois, depois
quatro. Mas há muitos para a separação de um aventureiro suportar.
"Correr!" Akiri grita e os conduz por uma passagem vazia. Pela
segunda vez na memória recente, Tazri foge de um inimigo em vez
de enfrentá-lo e derrotá-lo. A vergonha queima nela. Nada mais
importa se você não parar Nahiri , ela se lembra, e corre mais rápido.
Eventualmente, o túnel se abre para uma sala ampla, antiga, vasta
e outrora bela. É coberto por designs antigos de kor. Mas Tazri
apenas absorve um vislumbre de seus arredores antes de serem
engolidos por lampejos vermelhos de todos os lados. Em instantes,
ela e os outros estão cercados por dezenas de elementais oleosos
vermelhos e pretos que já foram a própria alma de Zendikar.
Não há escapatória.
"Ainda não podemos morrer", Orah resmunga e segura a arma
com a mão esquerda. Sua direita é quebradiça e branca, suas veias
do preto mais escuro.
"Não por muito tempo", concorda Kaza. "Eu tenho planos
depois disso."
Os elementais se aproximam, retorcidos e implacáveis. A espada
de Tazri não vacila, mas ela prende a auréola em volta do pescoço e
reza para quem estiver ouvindo. Ela pode sentir o cheiro acre do
óleo escorrendo das peles dos elementais.
Não há escapatória.
Então, à sua esquerda, há uma luz ofuscante.
319
Com um suspiro coletivo, os elementais cambaleiam para trás,
confusos e alarmados. Tazri olha e vê Linvala irradiando luz e
avançando. Os elementais abrem-se diante dela, como a água à
espreita. Só então Tazri vê a porta do outro lado da câmara.
"Correr!" Linvala grita e eles obedecem. Ao seu redor, Tazri está
vagamente consciente dos sons de placas de metal batendo na pedra,
mas ela não desvia o olhar das portas, não diminui o passo.
Ela agarra as alças e com uma oração meio formada, empurra.
As portas se abrem e Tazri quase desmorona de alívio.
Rapidamente, os cinco aventureiros barricam a entrada com
qualquer coisa que possam encontrar. Pedras, ossos, pedaços de
madeira quebrados.
"Como?" Tazri pergunta ao anjo enquanto enfia outro pedaço de
madeira sob a maçaneta da porta.
"Vislumbrei a saída um mero momento antes da chegada dos
elementais", responde Linvala com um sorriso malicioso. Mas não
era isso que Tazri estava perguntando. a luz do anjo . . .
Mais tarde, pergunte novamente mais tarde. Foco. Sobreviva agora. ela
pensa.
É somente quando ela tem certeza de que seus inimigos não
podem passar, que Tazri para para inspecionar seus novos
arredores.
Ela inala profundamente.
Ao redor deles estão as carcaças de todas as criaturas vivas que
não sobreviveram à transformação phyrexiana. Corpos meio
mudados de metal e carne, apodrecendo, escorrendo, cheirando a
decomposição e corrupção. Bestas e elementais, tudo o que uma vez
chamou este Skyclave de lar, agora está pervertido ou erradicado.
Tazri não se pergunta mais por que os túneis estão tão
silenciosos.
Nahiri doutrina outro elemental antes mesmo de cruzar o limiar.
Quando ela entrou pela primeira vez no Skyclave, os túneis estavam
cheios deles. O coração de Zendikar, Nissa chamou as criaturas.
Mas o que aquele elfo tolo sabe sobre corações?
Aquele primeiro elemental que ela enfrentou era enorme, todo
folhas e espinhos, erguendo uma pedra como arma.
Nahiri encarou seu inimigo e riu. Com seus novos poderes, com
seus braços como lâminas, ela é uma arma. Em poucos minutos, a
coisa verde macia estava sob suas botas, ficando preta enquanto o
320
óleo abençoado da mudança a transformava em uma crente de
Phyrexia. Infinitos eram os elementais e as outras criaturas que
chegaram para detê-la enquanto ela trabalhava no coração da
Skyclave. Um por um, ela converteu todos eles.
Ou os matava e deixava seus corpos fora da câmara, se ela
estivesse impaciente.
Desta vez, eles não vão me parar. Desta vez vou curar Zendikar. Nahiri
pensa enquanto despeja mais de seu poder no núcleo da Skyclave.
Ela está simplesmente tentando fazer o possível para ajudá-la em
casa. Sempre tem.
Quando ela chegou a esta câmara central, dias atrás, ela usou sua
alegria de sua nova transformação e sua nova força para realinhar os
edros e ampliar as fendas entre os planos. Milênios atrás, com Ugin
e Sorin, ela atraiu os Eldrazi das Eternidades Cegas para Zendikar
usando a rede Hedron. Agora ela fez o mesmo, chamando
alegremente o Realmbreaker através dos planos.
Sua alegria recém-descoberta era realmente poderosa, mas não
era suficiente.
No segundo dia, Nahiri recorreu a velhas táticas e despejou toda
a sua raiva na transformação, quase reforjando o Skyclave inteiro e
expandindo a rede Hedron em vastas áreas do plano. Ela ficou
chocada, porém, quando alguns dias depois, sua raiva secou e o
trabalho ainda não foi feito. Então, ela canalizou sua dor, sua dor
pelas traições, pelas perdas, pela solidão ao longo dos milênios. Ela
estava apenas tentando fazer a coisa certa. Ela está sempre tentando
fazer a coisa certa.
Ao redor de Zendikar, os edros começaram a se reconectar e
vibrar com poder.
E assim, Nahiri descobre que a dor é tão poderosa quanto a raiva.
Mas também não é infinito.
O trabalho está quase pronto quando Nahiri gasta o que resta de
sua dor. Sua nova rede se estende pelos oceanos, as fronteiras entre
os planos tornaram-se frágeis e finas. Ela está tão perto.
Mas pela primeira vez em sua longa existência, a antiga
Planeswalker está vazia de raiva, tristeza e dor. Nahiri não tem mais
nada para dar.
Não. Ela tem uma coisa a oferecer.

321
Ela entra na grande e bela rede que construiu e se funde com as
pedras no centro, tornando-se sua pedra angular, o coração que une
seu trabalho aqui.
Lá, Nahiri começa a derramar sua própria essência em sua
gloriosa criação.
O único caminho que lhes resta é seguir em frente, por mais
terrível que seja. Há outro conjunto de portas do outro lado da sala.
Tazri se aproxima. Ela pode ouvir o zumbido do poder e das pedras
se movendo do outro lado.
"O Planeswalker está aqui", ela diz e se move para abrir a porta.
Mas ela hesita.
Nahiri é muito poderoso. Que esperança temos? Tazri sabe que a batalha
está tanto na mente quanto no campo. Mas ainda assim, ela não
consegue afastar o pensamento. Atrás dela, Linvala e Akiri hesitam,
como se lutando com suas próprias dúvidas.
É Kaza quem se aproxima e coloca as mãos na maçaneta acima
da mão de Tazri.
"Não temos outra casa", diz ela e abre as imponentes portas de
pedra.
Tazri engasga com o quadro diante dela. Sua visão lhe deu algum
aviso sobre o que esperar e ainda ver com seus próprios olhos; a
antiga câmara kor transformada em uma mistura grotesca de metal
branco rachado, tendões vermelhos e pedras cinzas. Óleo brilhante
correndo em córregos no chão. Tazri testemunhou muitos horrores
para se assustar facilmente, mas a visão de Nahiri, completa e
incrustada no coração do Skyclave, faz seu sangue gelar.
"Pequenos elementais. Bonitos", diz Nahiri quando os nota, com
os lábios curvados em um sorriso preguiçoso. Mas então seu olhar
se fixa em Akiri e seus olhos se estreitam em reconhecimento. " Você
."
Akiri não diz nada. Em vez disso, com a rapidez e a segurança de
um lançador de linha, Akiri atira uma faca na garganta do
Planeswalker.
A faca nem chega à metade da sala antes que uma pedra a acerte
no chão.
"Você não pode me impedir", rosna Nahiri. A sala começa a
tremer.
Tazri corre para o Planeswalker corrompido, desembainhando
sua espada enquanto corre. Ela se esquiva de manchas de óleo,
322
pedras salientes e metal rachado. Uma laje de granito avança em sua
direção pela esquerda e ela se abaixa. Outro voa para ela pela frente
e ela rola, e fica de pé suavemente. Ela não para de se mexer.
Ela está perto, ela pode ver as veias queimando nos braços de
Nahiri. Ela levanta a espada com um rugido. Para Zendikar , ela grita
sem palavras enquanto abaixa sua arma.
Ela não sente a pedra se mover sob ela até que seja tarde demais.
De repente, ela está voando em direção ao teto na velocidade de
quebrar os ossos. Ela rola para fora da plataforma no último
momento e cai no chão com um baque alto . Tazri geme, mais de
choque do que de dor. A centímetros de distância há uma poça de
óleo preto e está crescendo, chegando até ela. Ela se levanta e ataca
novamente.
O chão se inclina e uma mecha de pedra trançada chicoteia na
parte de trás dos joelhos de Tazri. Ela grita, batendo no chão com
força. Mais uma vez, ela se levanta. Mais uma vez, ela ataca.
Pelo canto do olho, Tazri vê Orah e Kaza esquivando-se
freneticamente de detritos voadores e pedras afiadas como navalhas.
Kaza lança feitiços de bomba incendiária quando pode, embora não
tenha muitas chances. Akiri e Linvala atacam, ambos voando, um
com asas e outro com ganchos. Mas eles também são empurrados
para trás com pedras e a ferocidade dos ataques de Nahiri.
Uma pedra enorme atinge o quadril de Tazri no meio do salto,
derrubando-a.
Do centro da sala, o Planeswalker sorri.
Tazri não pode tocar no óleo, ela não pode alcançar Nahiri. Seu
cabelo e pele chamuscam com o calor do poder do Planeswalker.
Ela luta, mas sabe no fundo que é em vão. A imagem diante dela é
exatamente a de sua visão, mas não há esperança.
Zendikar está perdido.
A auréola ao redor de seu pescoço começa a queimar.
Linvala está a apenas cinco passos de distância, mas sua voz soa
como se tivesse viajado mil milhas quando o anjo começa a gritar.
De repente, tudo se torna brilhante.
A princípio, Tazri não entende. A câmara brilha com uma luz
iridescente. Akiri brilha, e Kaza também. O rosto de Orah é uma
expressão de choque enquanto ele segura a mão direita infectada,
observando o óleo queimar. Tazri olha para baixo e fica surpresa ao
descobrir que ela também está brilhando com um brilho
323
incandescente, o halo em volta de seu pescoço mais brilhante do
que nunca.
Linvala, no entanto, irradia. A luz que se derrama dela é como a
iluminação momentânea na câmara com os elementais, mas mais
forte, sem restrições agora. Tazri mal consegue olhar diretamente
para o anjo.
Dentro de sua tumba de pedra, Nahiri grita e a Skyclave treme
com sua força.
Mas a luz do anjo atordoou o poder de Phyrexia. De repente, as
pedras e cacos de metal branco ficam suspensos, imóveis. O óleo
em seus pés está secando. Nahiri amaldiçoa enquanto as runas em
chamas em seu corpo escurecem.
Ir. Ataque agora. Uma voz sussurra, abaixo de seu queixo. Tazri
toca a auréola em seu pescoço e obedece.
Uma última vez, ela ataca o Planeswalker Phyrexiano.
Seus aliados - não, seus amigos - correm ao lado dela: Kaza
lançando feitiços para distrair Nahiri enquanto Akiri lança seu
gancho, emaranhando os braços do litomante. Tazri vê sua abertura,
mas sabe que sua espada será inútil contra o metal e a pedra que
envolve o Planeswalker.

Arte por Artur Nakhodkin


Use-me , sussurra a auréola. Rápido!
Tazri arranca a auréola de seu pescoço e, em um movimento
desesperado, a arremessa no Planeswalker sepultado.
Há um flash. Há gritos — de Nahiri, de Orah, de Linvala, talvez
dela própria. Então, a luz radiante se foi.
324
Por um momento, há apenas silêncio.
No centro da sala, a pedra angular se quebra e Nahiri desmorona
de seu abraço de pedra e metal. Ela cai no chão com um gemido.
Por um breve momento, Tazri jura que uma expressão de horror
passa por seu rosto quando ela vê sua espada por mãos.
Então, a Planeswalker se recupera, ficando de pé, um rosnado
contorcendo suas feições. " Não ." ela diz e levanta os braços.
Mas ela não é mais o elemento central, mantendo esta Skyclave
pervertida unida apenas pelo poder e pela vontade.
Antes que Nahiri possa desencadear seu ataque, há um estrondo
ensurdecedor vindo das profundezas da Skyclave. Um olhar de
surpresa passa pelo rosto do Planeswalker, antes que todos,
incluindo Nahiri, sejam derrubados.
Akiri sabe como soa, como é o colapso total. O pânico prende
sua respiração e, por um momento, é quase como se ela estivesse de
volta à outra Skyclave com Nahiri, a poucos minutos de perder
Zareth.
Mas não, isso é diferente. Ela está aqui, lutando por sua casa, e o
chão em que ela está desmoronando. Ela precisa se mover. Agora .
Então, Akiri corre. Ela agarra a auréola de Tazri do chão, e então
Tazri pela cintura, e desenrola suas cordas. Um segundo antes de o
chão ceder completamente, ela solta seus ganchos e eles estão se
formando em um arco no vazio. Eles aterrissam com força na pedra
fora da câmara. Acima deles, há outro estalo ensurdecedor e o teto
começa a cair.
Eles correm para a frente, balançando através de lacunas e
esquivando-se, toda ação e reação. Akiri olha para a esquerda e vê
Linvala voando ao lado dela, ainda brilhando com esplendor, mas
mais escuro do que antes. Ela olha para a direita e fica aliviada
porque Kaza e Orah estão juntos, voando no cajado mágico de
Kaza. Assim como aquele outro Skyclave.
Foco. Akiri sacode a memória e corre mais rápido. Não há espaço
para o passado ou distração agora. O túnel pelo qual eles
caminharam horas antes mal é estável, estrondos altos ressoam ao
redor deles.
Mas Akiri pode ver o céu à frente.
Ela agarra Tazri novamente. "Pular!" Ela grita.
Então, eles estão caindo. O vento sopra impiedosamente em seus
cabelos e roupas. Seu estômago aperta com o súbito vazio. A
325
descida rápida. Ela sente o aperto mortal de Tazri em sua cintura
apertar.
Mas Akiri é um lançador de linha mestre e no meio de seu arco
falhado, ela deixa sua corda voar. Eles se prendem a um edro
giratório e, por exemplo, a queda perigosa se torna um arco suave.
Eles planam e pousam com segurança em uma saliência onde o
terreno à deriva é estável no momento.
Só então Akiri olha para trás.
O Emeria Skyclave está caindo na terra. O Planeswalker
corrompido preso lá dentro.
"Você acha que nós a paramos?" Tazri diz, com a voz cansada e
rouca.
Akiri observa a vasta invasão ocorrendo abaixo. Os soldados
mecânicos tropeçam ligeiramente, não marchando mais em fileiras
organizadas. "Talvez", diz ela.
Pois o atirador de linha já enfrentou esse inimigo antes e sabe
que ele é mais teimoso do que pedra.
Mas Akiri olha para cima. O céu de Zendikar não é mais
vermelho e oleoso. Agora, ele brilha com uma luz iridescente suave.
Embora as probabilidades estejam contra eles, eles encontraram sua
menor esperança.
E com ela, ela e seus amigos lutarão para salvar seu lar.

326
327
AQUELA QUE QUEBRA O MUNDO
por Grace P. Fong

Nissa Revane está cavando sua própria cova. Sob a cobertura da


noite, ela enfia a pá na terra de Zhalfir e enxuga o suor da testa. A
tarefa deveria ser fácil para ela. Afinal, é apenas terra. Antes, ela
podia dobrar a natureza com um capricho, mas agora seu coração
palpita, seus membros tremem. Ela conclui que deve ter excedido
seu corpo em recuperação e decide que vai ter um descanso
merecido após concluir esta tarefa. Mas não tinha como ignorar a
pergunta que a assombra: é isso que acontece quando
um planeswalker perde sua centelha?
Ela perguntou aos outros o que aconteceu, mas eles só puderam
descrever a batalha e sua ressurreição. Ninguém pôde responder o
que havia acontecido em sua alma. Chandra sugeriu que era um
efeito colateral de sua ressurreição. Karn teorizou que foi danificada
quando os phyrexianos alteraram a mente e o corpo de Nissa.
Mas Teferi apenas ouviu e acenou. “Não é só ela,” ele disse.
A centelha de Teferi havia desaparecido em algum momento
após a invasão. A de Koth também. Chandra era a única entre eles
que parece ter mantido a sua – bem, Chandra e Ajani.
O sílex havia explodido nas Eternidades Cegas. Buracos haviam
sido abertos no espaço entre os planos. Talvez isso seja algum tipo
de resposta natural do Multiverso; uma grande poda, um recuo
daquela energia misteriosa que um dia os preencheu. No entanto, a
causa não importava. Nenhum tipo de teorização ofereceu conforto
a Nissa.

328
Então, para se confortar, ela toca o torrão pesado que levantou
da terra vermelha, mas a terra não a tranquiliza como o solo familiar
de seu mundo natal, Zendikar. Ela o aperta entre os dedos. Ela
pergunta ao Plano como ele se sente, mas ele não responde. Talvez
o dano se estenda além de sua centelha, direto para seus poderes
animistas.

Arte de Tuan Duong Chu

Então ela escuta algo diferente. Não é a voz profunda e


reverberante de um Plano que abala sua alma, mas algo distante,
animado e humano: música. Os tambores de Mirrodin e Zhalfir
estão celebrando sua vitória sobre os invasores phyrexianos. Desde
que deixou o austero clã Joraga em sua juventude, a música se
tornara seu deleite favorito, mas hoje ela a ridiculariza, fazendo
apenas com que seu peito doa. Ela sabe que em algum lugar, sob a
luz do fogo, seus amigos também estão celebrando.
Naquela manhã, Karn e Koth haviam terminado de cobrir o
último telhado em uma nova aldeia. Nissa viu alívio – até felicidade
– em seus olhos enquanto se juntavam aos mirranianos refugiados,
pois todos estavam unidos como sobreviventes. Eles a convidaram
para se juntar a eles.
“Você tem certeza de que sou bem-vinda?” ela perguntou.
“Claro.” Teferi colocou a mão em seu ombro e disse: “Você terá
um novo lar aqui se apenas tentar.”

329
Então Nissa trabalhou com os outros sobreviventes, comeu com
eles, conversou com eles. Mas não era a mesma coisa. Teferi tinha
seu lugar de volta. Koth e Karn estavam forjando um novo. A
Zendikar de Nissa estava trancada em um Multiverso distante.
Zhalfir ainda não falava com ela. Nem os cinco sóis coloridos,
outros refugiados de Mirrodin agora em casa no céu de Zhalfir. Ela
se sentia isolada, perdida no Multiverso sem nenhuma voz
chamando-a para casa. Talvez nenhum Plano a ouvisse novamente.
Todos haviam perdido suas centelhas, mas apenas Nissa ainda
queria caminhar pelos Planos.
Mesmo que seus amigos parecessem seguir em frente sem ela, ela
ainda se importava com a felicidade deles. Então, sem querer
arruinar o ânimo da celebração, ela se desculpou. Havia, pelo menos,
uma tarefa que ela podia fazer. Ela enfia sua pá no chão.
Novamente.
E novamente.
Finalmente, o buraco está fundo o suficiente. Ao lado dele, sua
carapaça phyrexiana aguarda o enterro. Com a líder phyrexiana
morta e sua poderosa influência no óleo brilhante cortada, os
sobreviventes foram capazes de purificá-la com o Halo, mas o metal
inerte permaneceu. Sua estrutura de cobre está coberta por espinhos
retorcidos, e esses espinhos estão cobertos pelo sangue seco de seus
amigos. Ela esfrega uma mancha, e resíduos escuros descascam em
seus dedos. Ela se pergunta de quem era aquele sangue. Talvez de
Koth? Talvez de Wrenn? Talvez de Chandra?
Chandra.
Ela havia machucado Chandra, quase a matado.
Nissa e os outros planeswalkers haviam tentado lutar contra os
invasores phyrexianos, mas ao invés disso, se tornaram armas do
inimigo. Depois da derrota phyrexiana, os amigos de Nissa disseram
que a perdoavam. Eles a libertaram de sua prisão de metal e
limparam sua mente da influência phyrexiana. Eles limparam o óleo
de sua Espada-Caule, mas não puderam limpar as memórias do que
ela havia feito.
A caixa torácica de cobre era uma armadilha e uma armadura, um
construto de terror paralisante e poder intoxicante. Concedeu-lhe a
capacidade de desencadear um chamado através dos galhos da
Árvore da Invasão e falar da glória de Phyrexia para todos os Planos
do Multiverso.
330
E agora, Nissa está desgostosa consigo mesma porque – apesar
dos sacrifícios de seus amigos, apesar dos sacrifícios de Chandra –
parte dela sente falta de ouvir aqueles Planos.
Ela tenta chutar a carapaça para dentro da cova que cavou, mas
é pesada, mais pesada que a pá, mais pesada que a terra.
Alguém atrás dela fala: “Você saiu da festa cedo. Queria ter
certeza de que você tinha algo para comer.”
Nissa reconheceria aquela voz em qualquer lugar. Ela se vira para
encarar Chandra Nalaar, braço estendido, oferecendo-lhe metade de
uma manga madura. O sorriso no rosto de Chandra é acolhedor, e
Nissa sabe que não merece isso.
Nissa balança a cabeça. “Não estou com fome.”
Ela vê o olhar de Chandra desviar para a pá e depois para a
concha phyrexiana vazia. “Precisa de ajuda?”
“Estou bem.”
Chandra dá um passo à frente mesmo assim. Ela entrega a manga
para Nissa e coloca as palmas das mãos contra a carapaça de cobre.
O calor irradia de seus dedos, e o metal sujo começa a ceder sob seu
toque. Seus cabelos se incendeiam em uma chama viva.
Nissa não pode deixar de pensar que ela fica tão bonita assim.
Os espinhos se dobram com o calor. A carapaça amolece em um
pedaço desforme de sucata. O cheiro de metal esfriando enche o ar
da noite, e Nissa quer dizer a Chandra para parar, para deixá-la ter,
pelo menos, esse pequeno sucesso.
Mas, em vez disso, ela ainda diz a Chandra: “Obrigada.”
“Sem problema!” Chandra pisca um olho, e com um chute
rápido, chuta o esqueleto amassado para dentro do buraco. Sem
hesitar, ela faz um gesto com a mão para a pá de Nissa. “Quanto
mais rápido enchermos esse buraco, mais rápido você poderá se
divertir!”
Em vez disso, Nissa entrega a manga não comida para Chandra.
“Eu vou comemorar quando terminar.”
Chandra deixa a manga cair para pegar o pulso de Nissa com as
duas mãos. Suas palmas estão tão quentes. “Faça depois, então!
Vamos lá!”
Nissa sabe que Chandra está apenas tentando fazê-la se sentir
melhor, concentrando-se em sua vitória, mas não está funcionando.
Ela se solta suavemente do aperto de Chandra. “Vou ser rápida.
Prometo.”
331
Mas Chandra não se afasta. Ela passeia, usando o pé para
empurrar a terra para dentro do buraco quando acha que Nissa não
está olhando. Há algo que ela não está dizendo.
Então Nissa pergunta: “Existe um motivo para eu ter que ir
agora?”
Chandra roe o lábio antes de baixar a cabeça e admitir
suavemente: “Porque se você se atrasar, talvez eu não esteja lá.”
Conforme as palavras de Chandra assentam, a memória de Nissa
volta ao dia em que acordou em Zhalfir. A primeira coisa que sentiu
foi a mão quente de Chandra segurando a sua, e a primeira coisa que
viu foi o seu amplo sorriso. Seus membros estavam pesados com o
metal de cobre morto, mas seus pensamentos eram dela. O sorriso
de Chandra era dela.
Estou bem aqui. Chandra disse. Eu estou bem aqui e não vou a lugar
algum.
Nissa queria dizer alguma coisa para lembrar Chandra de suas
próprias palavras. Mas antes que pudesse protestar, a voz de
Chandra se espalhou para preencher o silêncio que ela não suporta.
“Amanhã, vou sair para encontrar Ajani.”
Nissa abre a boca para responder, mas não sabe como reagir a
uma promessa quebrada. Sua reticência só preocupa ainda mais
Chandra.
“É só por um tempo! Só até eu encontrá-lo. Eu sou uma das
poucas pessoas que ainda pode transplanar, certo? Se eu não puder
trazê-lo de volta, quem pode? E eu sei que você estará aqui,
esperando por mim…”
Mas Nissa não quer esperar aqui. Ela não pode escolher, porque
não é mais uma planeswalker.
Nissa mal se ouve quando sussurra: “Mas você me beijou.”
Você finalmente me beijou.
Chandra muda de pé. “Quer dizer, sim, mas ainda tenho que
ir…”
O resto das palavras de Chandra não significam nada para Nissa.
Como Chandra poderia amar tantas pessoas tão livremente? Mas
deixá-las tão facilmente? Será que lhe falta mais do que apenas uma
centelha? Ela tem que saber.
Nissa endurece sua voz. “Então seja clara – que tipo de amor
você tem por mim?”

332
Ela observa a ansiedade crescer dentro de Chandra, formada por
palavras que ela não sabe como dizer, transformando-se em gestos
frenéticos que começam, param e começam novamente como se
seus dedos pudessem moldar seus pensamentos confusos em frases.
O que sai é: “Eu… eu…” As mãos de Chandra caem ao seu lado.
“Tipo, eu sabia que tinha que te salvar.”
“Você é uma heroína, Chandra, uma planeswalker. Você salvaria
qualquer um.” Nissa enfia sua pá no chão. “Não sou diferente de
qualquer outra pessoa!”
“Não, não é isso! É… é… é difícil de explicar – é tão grande,
como, não consigo descrever. Isso não é suficiente? Você não pode
simplesmente acreditar em mim quando digo que você significa
tudo para mim? Tudo!”
Nissa franze a testa. Porque o que Chandra está dizendo não
combina com o que Chandra está fazendo. Nissa pensou que
Chandra entenderia. Que o tipo de amor que Nissa precisa é um que
não a deixe. Ou ela mais uma vez foi atraída para a órbita
indissociável de Chandra apenas para ficar presa em um amor
unilateral? Como seu Sol Imortal particular.
“Por favor,” Chandra implora. “Você não pode pelo menos me
dizer se algo está errado?”
Nissa olha para baixo, para as carcaças carbonizadas de seus
ossos metálicos. Para ela, sua dor é tão óbvia, mas não tem mais
forças para descrevê-la, muito menos para curá-la. Ela não pôde
contar a Teferi, Karn ou Koth sobre isso, e ainda não pode nem
contar a Chandra. Nissa balança a cabeça. “Vá, então, encontre
Ajani, e eu vou esperar aqui.”
Chandra coloca a mão em concha em volta da bochecha de Nissa
e gentilmente vira sua cabeça até que seus olhos se encontrem. Ela
morde os lábios, e sua voz é baixa e reconfortante. “Eu vou voltar,”
ela diz, “Zhalfir não é um lugar ruim, Nissa. Acho que você gostaria
se tentasse.”
Nissa Revane está cansada de tentar. Virando-se para esconder
as lágrimas que se acumulam em seus olhos, ela pega sua pá e não
observa Chandra transplanar indo embora, mas, ainda assim, pode
sentir o cheiro que ela deixa para trás, como as últimas correntes de
fumaça de uma lareira.
Nissa acorda na manhã seguinte e sente imediatamente a ausência
de Chandra. Instintivamente, ela procura a alma deste plano
333
desconhecido em busca de conforto, mas Zhalfir está em silêncio.
Talvez a terra também sinta dor porque sente falta de casa. A dor de
um segundo abandono perfura seu coração e ela até se pergunta se
Ashaya, a alma-mundo elemental de seu Plano natal, ainda
reconheceria seu chamado.
O apelido de Nissa, Shaya, significava Despertadora de Mundos,
não destruidora de mundos.
Ela se deita em sua esteira, contando cada inspiração, cada
expiração. Fazia muito tempo desde que ela meditou de verdade.
Costumava praticar todos os dias antes de se juntar às Sentinelas,
antes de conhecer Chandra. Ela deveria tentar novamente.
Mas não aqui. Cada voz, cada som, cada vibração de vida fora de
sua tenda a faz lembrar do quanto a distância cresceu entre ela e seus
amigos. Ainda assim, há um que poderia entender.
Nissa pega seu cajado e sobe a colina arborizada que tem vista
para a vila. Desajeitadamente, ela se senta no chão, com as pernas
cruzadas ao lado do broto que costumava ser Wrenn. Ela está
crescendo rápido, nutrida pela luz dos cinco novos sóis que Zhalfir
herdou.
Nissa só falou uma vez com a dríade, e não havia motivo para
falar com a mudinha. Ainda assim, ela sente uma familiaridade com
a única outra planeswalker que se ligou à Árvore da Invasão. Nissa
viu tantas coisas horríveis durante seu tempo como phyrexiana, mas
um momento bonito se destacava em sua mente. Quando Wrenn
costurou seu corpo frágil no cerne da Árvore da Invasão, os ossos
de Nissa foram preenchidos por uma música assombrosa e bonita.
Não era apenas uma única canção de árvore. Era um hino cantado
por um coro de vozes planares, tocado nas cordas das linhas de
força.
Nissa tentava lembrar essa música agora. Ela fecha os olhos e
respira devagar. Ouve seu coração, desejando acalmá-lo com cada
inspiração e expiração, concentrando-se em si, nas raízes de sua
alma. E ela ouve.
Uma canção jaz além do silêncio.
Seu tom baixo ronrona profundamente no peito de Nissa, como
em seus primeiros dias como animista, antes de Ashaya. Ela volta
seu coração para isso, mas ouve algo mais. Um tinido silencioso se
solidifica atrás de seus olhos.

334
Não importa. Ela se concentra nessa música, na magia planar.
Mas quando o faz, o tinido cresce. Ela chama mais alto, e o ruído
também. Seus ouvidos estão coçando, tremendo, queimando agora.
Ainda assim, ela tenta novamente. Seu coração dispara. Sua alma
grita pela canção sussurrada. Mas seu grito é abafado por dezenas
de novas vozes alienígenas que ela reconhece e despreza: os Eldrazi,
Bolas e, finalmente, Phyrexia, a mais alta.
O tinido explode em uma estática que dilacera o crânio. Uma dor
vívida percorre seus músculos e sua espinha dorsal. Faíscas coloridas
explodem na escuridão de sua visão.
Ela grita de verdade.
Quando Nissa abre os olhos, ela está deitada de costas na sombra
de uma acácia próxima, e a verdade silenciosa encara-a de volta: todo
ser que tocou sua mente agora está enterrado em sua alma. Ela
passou tanto tempo conectada aos outros que sufocou sua própria
conexão com o Multiverso. Quer esses laços tenham sido feitos por
sua própria vontade ou não, os Planos a rejeitaram.
Ela se levanta com dificuldade. À medida que sua visão se afina,
ela vê uma luz azul pairando no ar, um brilho pulsando no ritmo da
canção da linha de força. Suas bordas se parecem com um pano
rasgado, como se alguém tivesse cortado o tecido da realidade com
uma faca. Nissa estende a mão em direção a ela e rapidamente a
puxa de volta quando um raio de eletricidade salta para seus dedos.
Com um estrondo ensurdecedor, a luz se rasga.
O impacto joga Nissa no chão. Ela se levanta de joelhos a tempo
de desviar da enorme criatura que irrompeu da luz. A besta é
diferente de tudo o que ela já tinha visto antes, um predador maior
que um urso com garras mortais que emitiam nuvens de tempestade
encaracoladas. Rachaduras douradas de raios traçavam seu corpo
musculoso, emitindo faíscas que ameaçavam incendiar a grama seca.
O chão racha sob seus pés e, com um golpe de seus membros, um
arbusto próximo sai voando. Quando vê Nissa, a criatura berra de
raiva.
Nissa não pode deixá-la se aproximar da vila. Muitos ainda estão
se recuperando das feridas da guerra. Eles não podem lidar com um
animal frenético.
Nissa Revane pode não ser uma planeswalker, mas é a única
pessoa aqui agora.

335
Ela rola pelo chão. Com um movimento suave, pega seu cajado
e o carrega com magia. Sua ponta ilumina verde, e a grama do
deserto se curva à sua vontade. Ela a entrelaça consigo mesma,
tornando-se cordas grossas para prender as pernas da criatura. Mas,
ao entrar em contato com sua pele elétrica, a matéria vegetal seca e
se desfaz em cinzas. Nissa convoca raízes e galhos. A fera enfurecida
os rasga do mesmo jeito, deixando poeira em seu rastro.
Ainda assim, Nissa conseguiu um espaço para se levantar. Com
uma respiração profunda, ela tenta se lembrar como é ser uma
heroína, para impedir essa criatura de jogá-la como uma peça de
jogo e se tornar a mão que a move.
Ela envolve seus dedos ao redor do cajado, e sua madeira
retorcida ganha vida. Cipós verdes se enrolam em seus pulsos
enquanto desembainha a espada de seu cerne. Ela projeta sua magia
pela lâmina, e seu metal brilha em verde. Nissa dá um passo ágil para
frente, mas até o uso de pouca magia a deixa sem fôlego de alguma
forma.
A fera se lança, mas desta vez Nissa está pronta. Ela salta para
cima de seu dorso. Quando a criatura empina, Nissa tem que segurar
em sua pelagem para conseguir se equilibrar. Um calor ardente
atravessa sua luva, e ela sabe que não terá muito tempo.
Não quer machucar a criatura, mas ela precisa imobilizá-la. Nissa
enfia sua espada em uma das fendas elétricas em sua lateral – não
muito fundo, apenas uma picada para algo tão grande. A magia
verde se desenrola da lâmina, solidificando-se em gavinhas grossas
e pontiagudas que perfuram a perna da criatura e se enrolam em
torno de seu corpo. A fera empina selvagemente antes de cair de
joelhos danificados. O movimento joga Nissa para o ar, e ela mal
tem tempo para se dobrar em uma rotação antes de bater no chão.

336
Arte de John Tedrick

Ela se endireita e olha para o animal. Sua arma ainda está presa
em seu lado. Ela observa suas gavinhas conectadas à criatura
queimarem novamente. A criatura se sacode e se levanta, ilesa e
ainda mais irritada. Seus olhos encontram os dela enquanto sua
espada cai, inútil, no chão.
Nissa pressiona suas mãos na terra, pedindo ajuda às linhas de
força como costumava fazer. O chão brilha sob seu toque enquanto
ela pede, implora, suplica, para que um elemental apareça. Os seixos
ao redor dela tremem e a esperança se eleva em seu peito.
Então eles caem de volta.
Zhalfir não pode ouvi-la.
A criatura corre diretamente em sua direção, apanhando-a em
suas garras largas. Com um movimento de seus braços enormes, a
criatura a joga para frente e ela cai a metros de distância com um
estrondo doentio. Dor explode em todo o seu corpo.
Através de uma visão turva, ela ergue o queixo e vê a fera se
preparando para atacar, garras estendidas para empalá-la e raios
crepitando em sua coluna. Talvez essa criatura não seja um animal
comum. Ela pensa em como apareceu quando tentou alcançar as
linhas de força. Talvez isso seja um elemental que ela invocou,
enviado por Zhalfir para vingar os erros que cometeu em nome de
Phyrexia.
Ela não quer morrer. Mas não pode negar que seus crimes
merecem isso.
337
Então deixa a cabeça cair completamente no chão. Afinal, por
que lutar contra o mundo quando você sabe quem vai perder?
A criatura avança, presas à mostra. Nissa se prepara para o golpe.
Quando de repente, a besta para.
Ela fica suspensa no tempo, a garra retorcida pronta para atacar.
Nissa sente mãos fortes e quentes levantando-a para longe do
perigo, e a voz de Koth diz: “Nós te pegamos”.
“Não a machuquem…” Nissa tenta dizer, mas não tem certeza
se alguém pode ouvi-la.
Ela vê Teferi, com seu cajado estendido, seu feitiço azul radiante
mantendo a besta paralisada. Karn se aproxima da criatura e envolve
seu pescoço com seus enormes braços de metal.
“Eu vou soltar agora,” Teferi diz.
Karn assente. “Pronto”.
O tempo volta ao normal. A criatura termina seu movimento,
mas suas garras atingem apenas o ar onde Nissa estava. Ela se debate
contra Karn, mas suas garras raspam inutilmente contra o aço. Ela
rosna com as presas expostas, mas Karn aperta seu estrangulamento
para que não consiga virar o pescoço.
Então o ar fica quente com o cheiro de ozônio, e um raio branco
irrompe da pele da criatura. A explosão lança todos ao chão, e Nissa
levanta a cabeça a tempo de ver a criatura avançar em disparada para
longe, nuvens de tempestade rastreando atrás dela.
Koth está de pé novamente, deslizando o braço sob Nissa para
ajudá-la a se levantar. Ele devolve sua arma, agora de volta à sua
forma de cajado. “Você está machucada?”
“Estou bem.” Nissa responde se soltando dele. Ela pega o
cajado, usando-o para se levantar apesar da dor latejando por todo
o corpo. “Como você me encontrou?”
“Teferi ia visitar Wrenn quando viu uma luz estranha no topo da
colina e nos reuniu para investigar. Felizmente, ela também está
bem,” Koth diz, fazendo um gesto em direção à planta.
“É uma luz estranha mesmo,” ela ouve Teferi dizer. Ele está de
pé diante do lugar onde a criatura emergiu, onde ela tinha visto o
buraco na realidade. Agora, a abertura era um portal enorme, alto o
suficiente para qualquer um deles atravessar, até mesmo Karn.
“A criatura,” ela explica. “Eu acho que ela saiu de lá.”
O portal chama por Nissa. Algo do outro lado emite uma energia
como uma canção das linhas de força. É como um coro de melodias
338
caóticas, sobrepostas, de diferentes Planos, mas através de tudo isso,
ela sente uma vibração familiar. É fraca, mas parece como Zendikar.
Mesmo que o Plano não possa ouvi-la, seu coração instintivamente
se enche de saudade. Mas ela precisa de mais do que instinto. Ela
precisa entender. Então, ela se atreve a perguntar: “Para onde você
acha que isso leva?”
Ela quer que isso a leve para casa.
“É difícil dizer,” Teferi reflete. “Mas aquela criatura certamente
não era de Zhalfir.”
O desejo aperta ainda mais o peito de Nissa. “Pode ter viajado
de outro Plano?”
Karn pareceu dar de ombros, um gesto desajeitado com seus
ombros enormes. “É possível. A Quebra-reinos perfurou buracos
no tecido da realidade. O sílex explodiu nas Eternidades Cegas.
Quem sabe o que isso pode ter mudado.”
A garganta de Nissa se fecha ao falar. “Você acha que um de nós
deveria atravessar?”
Silêncio passa pelo grupo, e Nissa começa a se preocupar. Eles
poderiam estar apenas pensando, ou poderia haver algo que eles não
estavam lhe dizendo.
Finalmente, Karn balança a cabeça. “Os riscos são incalculáveis.
Se isso realmente levar às Eternidades Cegas – sem uma centelha,
você poderia ser instantaneamente destruída.”
“Mas aquela criatura não foi destruída!” Nissa balança a cabeça.
Cada frágil fio de esperança que ela construiu se desgasta e se rompe.
Novamente, é isso que significa não ser uma planeswalker.
Teferi coloca uma mão tranquilizadora no ombro de Nissa. “Ou
é possível que essa criatura seja um planeswalker. Mas isso é apenas
uma de um número infinito de possibilidades. Não sabemos para
onde este portal leva, então não podemos afirmar com certeza o que
vai acontecer. Mas atravessá-lo… bem, isso seria simplesmente um
salto de fé.”
Um salto de fé.
Nissa não é do tipo de pessoa que dá saltos de fé. Chandra,
porém. Chandra é uma pessoa que faria. Sem sequer pensar.
Koth fala, interrompendo sua análise. “Sinto a necessidade de
lembrar a todos que a criatura ainda está lá fora, perdida e com raiva.
Nosso povo sofreu muito, e temos o dever de proteger nosso novo

339
lar de mais riscos.” Ele acena para Nissa. “Vamos controlar essa
criatura e depois podemos conversar sobre explorar.”
O grupo concorda, e, por mais que Nissa odeie abandonar o
portal, ela sabe que Koth está certo. Por mais que a guerra tenha
tirado dela, outros perderam ainda mais. Eles precisam se ajudar
primeiro.
Teferi, Koth e Karn já começaram a descer a colina. Nissa segue
o mais rápido que pode com suas pernas cansadas e costelas
doloridas, mas antes de se juntar a eles dá uma última olhada no
portal brilhante atrás dela.
Nissa ainda está machucada. Ela está deitada em um colchonete
em sua tenda, tentando dormir sem sucesso. A curandeira Civic
parecia exausta, mas, ainda assim, examinou Nissa. Nada parecia
quebrado. Nada físico, pelo menos. Mesmo assim, a curandeira
pediu que Nissa ficasse para trás quando Teferi, Karn e Koth foram
procurar a besta do relâmpago. De certa forma, ela está feliz pelo
descanso, porque significa que pode ficar sozinha.
Ela ouve vozes abafadas do lado de fora, as pessoas falando
sobre suas tarefas diárias, falando sobre pessoas que ela nunca
conheceu. Ela se vira tentando dormir novamente. Nessas horas
desejava que a audição élfica não fosse tão sensível.
Mas então, as vozes se aceleram, ficam mais altas, e sua calma é
interrompida por um grito. Seguido pelo som do trovão.
A eletricidade aquece o ar, fazendo seu cabelo ficar em pé. Nissa
não tem dúvidas: a criatura do portal está aqui. O medo afunda em
seu estômago. E se estiver procurando por ela? E se a seguiu até
aqui para completar sua missão?
Suas ações deixaram a vila desprotegida e em perigo. Ela se
levanta cambaleando, pegando seu cajado ao sair da tenda.
Você não é uma planeswalker, ela pensa. Mas, novamente, é a
única pessoa por perto.
A criatura está ocupada saqueando a tenda da comida. O chão
está coberto de lona rasgada e panelas de ensopado derramadas. Até
as maiores mesas de madeira foram partidas ao meio, reduzidas a
lascas. Uma equipe corajosa de guerreiros zhalfirianos e mirranianos
a cercou, mas ela pode ver que suas armas ainda precisavam
desesperadamente de reparo desde a luta contra os phyrexianos. Ela
precisa ajudá-los a afastá-la da vila.

340
Com a ajuda de seu cajado, ela lança sua magia à frente. Espessas
raízes emergem do chão. Elas envolvem o pescoço e os membros
da besta, tentando prendê-la ou pelo menos puxá-la para outra
direção. O esforço faz com que as pernas de Nissa tremam, mas ela
se mantém firme.
Ela não terá muito tempo até que a criatura queime as amarras,
mas ela aproveita sua confusão. Ali! Ela corre em direção a uma
árvore baobá densa do lado de fora da vila.
“Aqui!” ela rosna, desencadeando outra enxurrada de gavinhas
raivosas.
A criatura morde a isca e se vira para longe das espadas e lanças
dos aldeões, meros incômodos em comparação a este novo atacante
espinhoso. Ela balança as garras nas plantas, cortando-as como uma
foice. A alguns metros de distância, Nissa levanta outra ofensiva. A
besta se lança novamente para perseguir sua presa. Lentamente, cipó
a cipó, golpe a golpe, Nissa guia a criatura para fora da vila.
Ela respira aliviada ao ver os habitantes feridos se apressando
para a segurança. Pelo menos ela fez algo bom. Mas o esforço a
exaure. A luz verde em seu cajado se apaga. Ela cai de joelhos.
E a criatura tem apenas um alvo agora: Nissa.
Ela paira acima dela, garras prontas para derrubá-la.
É tão malditamente grande de perto. Nissa ergue o cajado em
defesa e se prepara para o impacto.
Novamente, ele não vem.
Uma figura solitária e ardente fica no caminho. Chandra.
Internamente, Nissa amaldiçoa a habilidade dos planeswalkers de
aparecer exatamente onde há problemas. Chandra ergueu uma
barreira de fogo entre elas e a criatura. A besta cambaleia para trás e
para frente, tentando alcançar a presa que encurralou há apenas um
segundo.
Agora, ela está lançando bolas de fogo na criatura, que está
ficando cada vez mais agitada. Ela treme, e faíscas estáticas saem de
seu pelo. Ela orienta Nissa: “Eu assumo daqui! Volte para a aldeia!”
Mas foi Nissa quem convocou a criatura. Foi ela quem a trouxe
até aqui, e não Chandra. Esta é a sua luta, e Chandra não pode deixá-
la ter nem isso. Seu cajado irradia com luz verde. Centenas de
gavinhas espinhosas surgem do chão. Uma delas quase acerta o
rosto de Chandra.
“Ei! Cuidado!” grita a piromante.
341
As gavinhas chicoteiam a besta. Ela ruge contra cada golpe
doloroso. Uma delas encosta em uma bola de fogo e se inflama. A
besta geme ligeiramente, afastando-se do chicote em chamas. Nissa
assiste Chandra aumentando o calor. Ela range os dentes enquanto
vê cada vinha que conjurou se desintegrar em uma explosão de
chamas. Parecia que ela não tinha feito nada. O suor forma em sua
testa enquanto ela procura na paisagem por seu próximo
movimento.
Os olhos dela passam pelo baobá. O baobá! Seus troncos
espessos resistem ao fogo e a árvore maciça seria uma aliada forte
se ela pudesse animá-la. Ela estende sua magia em direção à árvore,
persuadindo cada galho à vida. Mas ela não está convocando um
elemental que anda por conta própria, ela deve se concentrar com
todo o seu esforço, desejar que se mova, controlar cada ação. Sua
respiração está ofegante. Suas palmas trêmulas suam sob as luvas.
Caule por caule, raiz por raiz, ela o força a sair do chão. Ela lhe
dá um empurrão final, lançando-o contra a besta. Ele atinge a
criatura de lado, derrubando-a na grama. Cansada como está, Nissa
ainda saboreia a sensação fugaz da vitória.
Porque Chandra toma isso como sua deixa. “Obrigada!” ela sorri.
Ela queima ainda mais quente. Muito quente. Ela envolve a besta e
a árvore em um anel de chamas tão alto quanto um elefante.
Nissa cheira fumaça e percebe que a grama seca está começando
a pegar fogo. “Chandra, pare!”
A piromante parece não ouvi-la ou não se importar. Ela aperta
seu círculo, mais perto da criatura que percorre a borda, entrando
em pânico enquanto as chamas se fecham. Ela se levanta, garras e
dentes se debatendo, e destrói o baobá em pedaços. A água dentro
da árvore evapora imediatamente ao contato com a chama
superaquecida de Chandra, transformando-se em vapor branco.
Nem Nissa nem Chandra poderiam prever o próximo
movimento da criatura. Ela inala. Com uma respiração profunda, a
fera da tempestade suga o vapor quente do céu. A umidade adicional
a faz dobrar de tamanho. Mais do que dobrar. Agora colossal, ela
afasta os pedaços da árvore quebrada como brinquedos. Os
destroços em chamas incendeiam a grama onde caem.
Ela se eleva sobre as duas.

342
Elas correm, mas cada passo que a criatura dá equivale a vinte
delas. Em breve, elas se encontram diretamente sob sua forma
maciça. Ela se prepara para um ataque.
“Cuidado!” Chandra empurra Nissa para fora do caminho de
suas mandíbulas, fazendo-as cair no buraco deixado pelo baobá
arrancado.
Quando a tontura da queda desaparece, Nissa olha para cima. A
fera está arranhando, roendo a abertura, mas a lacuna é muito
estreita para seu corpo enorme. Elas estão seguras, mas por quanto
tempo?
“Aaaaaaaaaffffff!” O cabelo aceso de Chandra brilha de
frustração. Ela aponta suas mãos na direção da criatura, outra
explosão se carregando em sua palma aberta.
A fera as prendeu. Toda a savana vai queimar. “Pare!” Frustração
e solidão enchem os pulmões de Nissa, emergindo em um uivo.
“Deixe que eu me salve, pelo menos uma vez!”
A luz se apaga nas mãos de Chandra. “O quê?”
O coração de Nissa está tremendo, mas desta vez, não de
exaustão. Ela usa toda a energia que lhe resta para transformar seus
pensamentos, seus arrependimentos, suas preocupações, em
palavras. “Você me fez uma promessa, Chandra, e ainda assim
partiu. Você acha,” ela diz, com a voz falhando, “que porque eu não
tenho mais uma centelha, estou feliz em vê-la correndo pelo
Multiverso como se nada tivesse mudado? Que eu estou feliz apenas
esperando você voltar?”
As chamas no cabelo de Chandra se apagam, voltando a um
vermelho quente e natural.
Nissa engasga ao falar. “Se é assim que vai ser, você não precisa
voltar. Vou cuidar de mim mesma.”
Chandra pausa, pensando no que dizer, e baixa a cabeça. Sua voz
é suave quando responde: “Não. Eu conheço você. Bem, conhecia.
Acho que as coisas mudaram. E ainda estão mudando.” Ela levanta
seus olhos quentes para encontrar os de Nissa. “Mas eu ainda quero
te conhecer.”
Chandra pega as mãos de Nissa nas suas, e o coração de Nissa
salta para a garganta.
“Nissa, eu sinto muito, muito, muito, muito. Com ou sem
centelha, você é uma lutadora incrível e uma pessoa ainda melhor, e
sinto muito por ter ignorado isso.”
343
Mas a alma de Nissa ainda dói. Ela não está pronta para perdoar
ainda.
Naquele momento, fogo e sujeira começam a cair em suas
cabeças. Incapaz de alcançá-las, a besta elétrica decidiu sufocá-las.
“Talvez possamos detê-lo se trabalharmos juntas,” Nissa diz.
Chandra concorda. “Tudo bem, qual é o plano?”
O calor cresce no peito de Nissa por finalmente ser perguntada,
mas sem sua magia mais forte, ela só pode responder: “Eu não sei.”
“Há algo que já fizemos antes?”
Nissa relembra. Anteriormente, a magia elemental vinha tão
facilmente. Agora ela sabe que estava dando isso como garantido.
Ela afasta uma chuva de sujeira de cima.
“Tem que haver algo,” Chandra instiga. “E quando canalizamos
minha piromancia pelas linhas de força de Zendikar? Se vencemos
um Eldrazi, funcionará aqui, certo?”
“Mas…” A admissão de Nissa vem como um sussurro: “Eu…
eu… eu não consigo mais alcançar nenhuma linha de força.”
“O quê?”
Nissa balança a cabeça, tossindo por causa da nuvem de poeira
que se forma ao redor delas. “Elas não vão me ouvir. Eu tentei.
Muitas vezes. Mas quando chamo por elas, é como se minha voz
não fosse minha. Como se pertencesse a Phyrexia, como se tudo a
que já me conectei estivesse me sufocando.”
Desta vez, Chandra pausa. “Sabe de uma coisa,” ela conclui.
“Você também tem boas conexões.”
“O que você quer dizer?”
“É verdade – você fez coisas ruins enquanto eles te controlavam.
Mas todos com quem você se conectou ao longo dos anos com as
Sentinelas, nós estamos felizes que você ainda esteja aqui com a
gente…” Chandra coloca fogo em um pedaço de terra úmida que
estava prestes a cair sobre Nissa, transformando-o em uma suave
chuva de cinzas. “Comigo.”
Pela primeira vez desde que acordou em Zhalfir, Nissa sorri.
Chandra, doce Chandra, mesmo que ela não perceba, sempre
entendeu e explicou emoções melhor do que Nissa jamais
conseguiria.
Chandra continua, “Suas conexões não estão afogando sua voz,
Nissa. Elas estão se transformando em algo novo, talvez algo ainda
mais poderoso. Vozes infinitas, possibilidades infinitas, certo?”
344
Possibilidades infinitas. Nissa estende a mão para Chandra.
“Tudo bem, vamos tentar.”
Apertando os dedos de Chandra nos seus, Nissa fecha os olhos.
Ela se recolhe para dentro de si e ouve sua voz interior. É difícil,
muito mais difícil do que antes, mas Chandra está ajudando-a
diligentemente a concentrar-se, explodindo as rochas que caem
antes que possam atingi-la.
Nissa é recebida por um zumbido profundo em seus ouvidos,
mas ela se recusa a desistir. Com suas conexões em mente, ela separa
o estático das melodias únicas, as canções individuais que ela captou
de todos os cantos do Multiverso. Ela as organiza, harmoniza e desta
vez, quando ela chama por Zhalfir, sua voz é amplificada em coro.
Ela pede desculpas.
O Plano responde. Ele também foi cortado de tudo o que
conhecia, das conexões que havia feito. Também foi marcado por
Phyrexia e está se transformando em algo novo. Ele a perdoa e Nissa
finalmente pode se perdoar.

Arte de Wisnu Tan

A magia inunda sua carne, seu sangue, seus ossos. Ela ouve
Chandra rir, encantada com o sucesso delas.
Nissa usa o poder elemental para se conectar com a criatura. É
um elemental, mas feito de uma energia desconhecida que nem
Nissa nem Zhalfir reconhecem. Mas Nissa consegue sentir sua
desorientação e confusão, preso em uma forma terrena pela magia
345
desconhecida de Zhalfir e tentando desesperadamente retornar à
energia pura que o criou. Parecido com Nissa. A resposta lhe ocorre.
“Vapor,” anuncia Nissa.
“Hã?”
“É um elemental da tempestade, uma criatura feita de magia. Mas
é de outro plano, então está lutando para se conectar com o poder
de Zhalfir. Acho que podemos fornecer a energia de que precisa se
o aquecermos.”
Chandra pisca. “Calor? Isso eu posso fazer.”
Nissa permite que Zhalfir entre em sua mente e dirige seu poder
para Chandra. Sua visão se torna verde cintilante, ofuscante. Mas
mesmo que ela não possa ver, pode sentir a mão de Chandra na sua.
Ela fica quente, mais quente, até que é insuportavelmente quente,
mas Nissa não solta.
Magia do fogo, como um sol em miniatura, se concentra na mão
livre de Chandra, tão brilhante que Nissa pode vê-la através do
verde. Com sua conexão completa, Nissa vê o que Chandra vê, sente
o que Chandra sente. Chandra aponta para cima, e uma coluna
sólida de fogo acerta a criatura relampejante no rosto. Juntas, elas
assistem a besta inspirar.
Ela ri. E quando a luz verde desaparece dos olhos de Nissa, ela
vê Chandra, com cabelo em chamas e rindo também.
Chuva cai no deserto.
Uma a uma, gotas gordas do céu se juntam em um dilúvio. O
dilúvio se torna uma inundação. A água enche a fenda em que estão
presas, elevando-as. Em breve, estão flutuando juntas, observando
a nuvem se afastar para revelar um céu claro e noturno. Chandra,
com o cabelo ainda em chamas, parece uma lanterna na água.
Ela observa Nissa, recusando-se a desviar seus olhos calorosos
da elfa por um segundo sequer. “O amor vem em muitas formas.
Eu amei Gideon. Eu amei Jaya. Você me perguntou que tipo de
amor eu tinha por você. Eu não sabia como dizer.”
O coração de Nissa bate mais rápido. “Então o que você diria
agora?”
Instintivamente, Chandra tenta mover sua mão enquanto fala,
criando respingos desajeitados ao seu redor. “Ainda é difícil de
descrever. Quando te vi lá em Nova Phyrexia, percebi que queria te
salvar mais do que queria salvar o mundo. Meu amor por você… É

346
como quando você deixou as Sentinelas e depois voltou – não é
perfeito o tempo todo, mas eu quero fazer o meu melhor.”
“Eu não entendo. Como o amor pode mudar?” Para Nissa,
parecia uma emoção direta, com a mesma qualidade primal e
imutável da magia.
Chandra olha para longe para esconder o rosto, mas Nissa pode
perceber que suas bochechas estão tão quentes quanto suas chamas.
“Às vezes, você se convence de que é melhor fazer o que é fácil,
assumido, natural… porque é mais fácil do que enfrentar o
desconhecido. Sob estresse, você se torna quem as pessoas esperam.
Jogar aquela bola de fogo gigante em vez de pensar primeiro, sabe?
Mas você viu além disso. Sempre. Você me fez melhor.”
Encorajada pela vulnerabilidade de Chandra, Nissa reúne sua
própria honestidade. “Mas você me machucou. Eu não quero ser
deixada sozinha novamente.”
“E eu sinto muito. Estou mais arrependida disso do que qualquer
outra coisa que já fiz em toda a minha vida estúpida.” Chandra se
vira para encará-la novamente, olhos brilhantes com uma nova
promessa. “Quando fui procurar Ajani, percebi que ele não quer ser
encontrado. Ele voltará quando estiver pronto. Ainda estou
frustrada, é claro, mas tenho que dar tempo e espaço a ele. Foi aí
que percebi que não posso simplesmente queimar qualquer
relacionamento que me importo. O amor deixa espaço para a outra
pessoa ser quem ela é. Eu tenho que deixar espaço para você
também. Eu quero…”
“Como o fogo precisa de oxigênio…” Nissa faz sua última
pergunta. “Você tem espaço para alguém que não pode caminhar
entre planos?”
“Sim. Eu vou arranjar. Vou vacilar, vou ser tentada, mas vou
conseguir. O fogo vai arder, não importa o que você faça, mas você
pode moldá-lo se você tentar. E eu quero tentar. Por você.”
Nissa pensa por um momento. Por fim, ela assente. “Eu posso
lidar com isso.”
Ela se inclina e coloca a mão no pescoço de Chandra, trazendo a
piromante na sua direção. Seus olhos se encontram uma última vez
antes de se fecharem, e Nissa puxa Chandra para um beijo.
A tempestade repentina havia causado uma enchente que deixou
Teferi, Karn e Koth presos em uma caverna a algumas milhas da
cidade. Eles não conseguiram voltar até a manhã seguinte, quando
347
as águas recuaram. Nissa, Chandra e os aldeões os recebem de volta
com cobertores, ensopado quente e sorrisos. Mais tarde, os amigos
comemoram a vitória das duas. Dessa vez, Nissa se juntou a eles.
Ela e Chandra dividem a manga mais doce que já provara.
Quando a última fogueira se apaga, Nissa pega na mão de
Chandra e a leva até o topo da colina com vista para a vila. Ela acena
para Wrenn antes de parar em frente ao portal.
“Aqui está,” ela faz um gesto, “o lugar de onde a criatura veio.”
Juntas, elas olham para a luz azulada que gira. Chandra pergunta:
“Para onde vai?”
“Eu não sei”, Nissa admite. “Teferi, Koth e Karn também não
sabiam. Mas quando eu escuto, escuto de verdade, acho que ainda
posso ouvir Zendikar lá fora, estranha e distorcida, mas
possivelmente ainda lá. Eu posso estar imaginando completamente,
mas acho que arriscaria o desconhecido para ver meu lar
novamente.”
Chandra concorda firmemente. “E eu estarei caminhando ao seu
lado.”
Cada planeswalker pode ir a qualquer lugar que desejar, mas
Nissa reconhece que a necessidade de Chandra de vagar é mais
profunda do que isso. É parte de quem ela é, e parte do que Nissa
ama. Então Nissa oferece: “Talvez, depois disso, eu não me
importaria de ver mais coisas. Desde que seja com você.”
Chandra sorri largamente. “Deixe-me ser sua tocha, então.
Primeira parada: encontrar o caminho de volta para casa! Ei,
podemos até conferir aquela floresta que você comentou há um
tempo.”
Elas se movem em direção ao portal e colocam um pé no limiar.
Nissa vacila e se vira para Chandra. Apenas por precaução, ela
pergunta: “Você tem certeza de que quer se comprometer com um
salto de fé?”
“Juntas? Claro que sim.”
De mãos dadas, Chandra e Nissa atravessam o portal para apenas
uma das infinitas possibilidades.

348
Arte de Livia Prima

349
IRRECUPERÁVEL
por Grace P. Fong

No fundo do que antes era Emeria, Enclave Celeste, Nahiri


removeu a corrupção de Phyrexia do seu Plano.
Teoricamente, era um processo simples: remover o metal que
tinha sido enxertado nos arredores e deixar para trás apenas a rocha
original. Na prática, era um pesadelo. A completação havia fundido
pedra e metal em um nível molecular, e desprender os dois exigiu
uma quantidade excruciante de trabalho paciente e intricado para
cada parte de metal. Felizmente, Nahiri não tinha nada além de
tempo.
Ela havia perdido a noção de quanto tempo ficou lá embaixo, na
escuridão. No começo, a escuridão foi desorientadora, mas
eventualmente seus outros sentidos se ajustaram para compensar, e
agora Nahiri conhecia cada centímetro de seus arredores. Ela sabia
de onde vinha o gotejamento da água pela pedra, o sibilar frio do
vento pelos corredores, o cheiro sangrento da ferrugem. Sabia que
estava sozinha.
Tudo teve início quando ela acordou e descobriu que a invasão
havia acabado e que, de alguma forma, ainda estava viva, então
arrancou todos os traços restantes de metal de seu corpo. O
processo foi doloroso e sangrento. Descascar o metal havia levado
menos de um dia, mas foram vários dias até que as feridas parassem
de sangrar, e semanas antes que todas as crostas caíssem. Durante
todo esse tempo, ela ficou tensa, esperando que alguém fosse
procurá-la. Mas com o passar do tempo, Nahiri percebeu que todos
deviam pensar que ela estava morta – ou seja, eles não se
importavam se ela estava viva ou não.
Bom, assim estava bem para ela. Ela tinha trabalho a fazer.
350
No momento, ela enfrentava uma situação complicada: estava
trabalhando por um específico corredor nos últimos dias, mas agora
seu caminho estava bloqueado por uma parede de metal
entrelaçado, fundido na rocha circundante. Os pedaços de metal
eram extremamente afiados; ela havia se cortado explorando sua
forma. Teria que desmontar tudo antes de poder avançar.
Envolvendo suas mãos em uma garra de metal, ela procurou pela
junção onde a pedra e o metal se entrelaçavam, persuadindo a pedra
a afrouxar sua aderência. Ela tentava não pensar em quanto esforço
isso custou. Cada ato de litomancia agora lhe custava muito, antes
ela precisava apenas pensar para moldar a pedra à sua vontade.
Por outro lado, ela já não era mais uma planeswalker.
Não conseguia ter certeza do que havia acontecido. Tudo o que
lembrava era de uma explosão de Halo que a atingiu momentos
antes da queda do Enclave Celeste, quando ainda estava dentro dele.
Talvez o Halo tenha sido o que permitiu que ela – talvez outros
também – sobrevivesse depois que o controle da Nova Phyrexia se
desfez. Talvez fosse algo relacionado ao fato de ela ter se fundido
com o próprio Enclave Celeste. Ela não sabia ao certo. Tudo o que
sabia era que estava viva, e vazia. O núcleo de seu poder, sua
centelha, não fazia mais parte dela.
No começo, a dor de sua ausência foi tão grande que ela pensou
que morreria, mas com o tempo, se acostumou com a dor vazia em
sua alma. E aceitou que agora era fraca.
Assim que afrouxou suficientemente a aderência da rocha no
metal, se preparou e puxou. O metal resistiu – e então se soltou tão
abruptamente que Nahiri tropeçou e caiu sentada com força, e a
garra parou com a ponta aberta logo abaixo de seu esterno, a pouca
distância de perfurar sua pele.
Nahiri congelou. Memórias surgiram através dela: como era
sentir o metal não apenas pressionando contra o seu coração, mas
envolvendo-o, quando sua alma foi fundida com a glória da
máquina. Como era pura e não contaminada a visão de perfeição
deles, como Zendikar poderia ser glorioso através de sua salvação…
Com um arrepio ela afastou esses pensamentos. Eles pertenciam
a uma entidade que não existia. Aquele era o fantasma de Phyrexia.
Não era ela.
Não era ela.

351
A ponta da garra raspou levemente contra a sua pele enquanto
ela se contorcia para sair de baixo dela. Uma vez livre, envolveu as
mãos em torno daquilo, tendo o cuidado de evitar as bordas
cortantes, e seguiu de volta pelo corredor, deixando a garra se
arrastar atrás dela. O rangido do metal contra a pedra ecoou ao seu
redor.
A passagem serpenteava em uma subida torta. Quando os ecos
mudaram, ficando mais ocos, ela sabia que estava se aproximando
de seu destino. Ela diminuiu a velocidade e avançou até que seus pés
tocassem a beira de um penhasco. Se desse mais um passo, cairia no
poço contendo sua obra-prima: um monte de metal phyrexiano,
todas as peças de Phyrexia que ela havia passado os últimos dias,
semanas, sabe-se lá quanto tempo, arrancando do Enclave Celeste.
Provavelmente agora havia o suficiente para rivalizar com a altura
do próprio Portão Marítimo, e mal tinha arranhado a superfície do
que o Enclave Celeste continha. Levaria meses para libertar tudo.
Anos, talvez, mas não descansaria até ter vasculhado todos os
vestígios do metal amaldiçoado deste lugar.
Eventualmente, ela teria que descobrir como destruí-lo. Mas por
enquanto, se pudesse arrancar o frio e alienígena controle de
Phyrexia de seu Plano, isso era o suficiente.
E depois disso?
Teria que lidar com isso mais tarde. Por enquanto, isso era tudo
o que podia fazer. Teria que ser suficiente. Antes ela teria ficado com
raiva. Teria ficado furiosa contra o Multiverso por tirar seu poder,
por lhe dar esse destino. Mas agora, onde deveria haver raiva, ela
sentia apenas o vazio e um cansaço sombrio para ver o trabalho
concluído.
Ela jogou o pedaço de metal na escuridão e voltou para baixo da
encosta.
Pequenas criaturas esquivas rastejavam pelo escuro: coisas duras
e magras de ossos demais e carne de menos. Além de Nahiri, eram
os únicos seres vivos naquele lugar. De vez em quando, capturava
uma com um punho de pedra, esmagando-a e superaquecendo a
rocha para cozinhá-la diretamente. O ato de comer era tedioso, mas
necessário. Percebeu-se desejando o sabor da culinária kor. Não a
cozinha dos últimos séculos – a comida pesada e direta de
acampamento que as caravanas kor se reduziram – mas os gostos
mais sutis de uma cultura que o Plano havia esquecido há muito
352
tempo, quando ela ainda era apenas uma mortal. Comeria
novamente quando terminasse, prometeu a si mesma, e não pensou
em quanto tempo isso poderia levar.
A parede de metal desceu, apenas para revelar outra atrás dela,
derrubou aquela também para encontrar mais outra. Então outra, e
outra. Um vago senso de medo crescia nela a cada camada
descascada. Este Enclave Celeste tinha sido o coração do motor
destinado a converter Zendikar em si mesmo; as paredes foram
colocadas deliberadamente para proteger algum componente
central. Certamente não estavam ali para decoração; Phyrexia era
nada se não eficiente. Indecisão e frivolidade eram fraquezas da
carne. Não era nada como uma máquina, pura e reluzente,
incorruptível, bela…
Nahiri agarrou a peça mais próxima e a arrancou com um ímpeto
selvagem de litomancia que a deixou trêmula, sensação que ela
abraçou com prazer. Concentre-se no aqui e agora. Não pense no
que veio antes. Não pense no que você costumava ser.
Não pense no que você fez.
Por fim, a última parede caiu, e ela entrou na câmara onde havia
se ligado ao Enclave Celeste.
Ela soube assim que pôs os pés dentro. A sala cantava para ela,
rocha e metal unidos como o emaranhado onde Nahiri havia se
fundido às próprias paredes. Nessa teia deliberada, ela podia ler a
influência de Phyrexia, como havia tentado pegar a matéria deste
Plano e virá-lo contra si mesmo. Porque era isso que Phyrexia fazia
de melhor, não era? Corromper a essência de um Plano, pegar seu
impulso para proteger, defender e distorcê-lo para servir a seus
próprios fins…
Uma onda de tontura e náusea passou por ela, e Nahiri colocou
uma mão na parede para se equilibrar. Mas, pela primeira vez, o
toque do metal phyrexiano a confortou. Não importava o que este
lugar tinha sido. Phyrexia se foi para sempre. Ainda assim, ela
caminhou ao redor da sala, traçando uma mão sobre a parede para
se tranquilizar que o metal estava, de fato, morto.
Então ela esfregou uma seção da parede e sentiu uma onda de
choque de poder profundo no seu interior.
Puxou sua mão para trás por instinto. Seu primeiro impulso foi
agarrar a rocha ao redor e forçá-la para dentro, esmagando o que

353
quer que estivesse lá. Mas a sensação não havia sido desagradável.
O que sentiu foi algo… familiar.
Cautelosamente, Nahiri colocou sua mão na parede novamente.
Lá estava ela, uma pequena espiral de poder embutida em metal e
pedra. Agora que estava concentrada, pensou que podia sentir as
bordas. Não estava muito fundo dentro do metal.
Sua curiosidade batalhou contra o medo e venceu. Ela recuou
para o corredor externo e moldou para si uma lâmina de pedra.
Ela cortou lentamente, canalizando calor para a borda da lâmina
para derreter o metal. A última coisa que queria era danificar o
objeto que estava tentando libertar, então se concentrou no ato,
forçando-se a não pensar no que poderia ser…
Sua lâmina tocou o ar vazio, e o objeto caiu da parede em sua
mão.
Ela estava segurando um pedaço de pedra do tamanho do seu
punho. Ela passou as mãos sobre ele, sentindo suas curvas. Era um
edro, se aquele edro tivesse crescido em fatias finíssimas de pedra
camada por camada em torno de uma semente central, como uma
ostra depositando camadas de pérola em torno de um grão de areia.
Tudo parecia delicado, como se qualquer pressão errada pudesse
esmagá-las. Quanto ao grão em seu centro…
Era sua centelha de planeswalker.
A sensação era inconfundível. Agora que ela a segurava em suas
mãos, podia sentir o fluxo de poder que ela continha, que havia sido
seu por séculos. De repente, ela ficou agudamente ciente do vazio
onde sua centelha costumava estar, aquele vazio que havia se
esforçado tanto para ignorar.
Vazio, porque eu derramei tudo o que tinha para destruir minha casa. Eu
me esgotei tentando salvá-la de si mesma, porque acreditei que estava fazendo o
certo naquele momento.
Seu coração batia em seu peito como o golpe de um martelo em
metal. Algo borbulhava dentro dela, algo que não pensava ser capaz
de sentir novamente.
Esperança.
O peso do metal acima, abaixo e ao seu redor: de repente, era
sufocante. E a escuridão. Quando foi a última vez que viu a luz do
sol? Há quanto tempo não via sua casa, via Zendikar de verdade?
Ela estendeu a mão, agarrou pedras em punhados grandes e, com
um impulso de poder, arrancou.
354
Pedra se rompeu para cima. Metal gritou e descascou em
afloramentos violentos. A rocha perfurou o teto da câmara e depois
subiu e subiu ainda mais, até, muito acima, perfurar o teto
abobadado do próprio Enclave Celeste, uma escadaria irregular que
se estendia desde seus pés até o exterior. A luz do sol pingava na
escuridão.
Nahiri sentou-se com força. Todo o seu corpo tremia de
exaustão, teve que engolir rapidamente para evitar vomitar, mas
estava feito. Ela tinha um caminho para sair.
Conforme seus olhos se ajustavam à luz, viu seu corpo pela
primeira vez. Sabia que estava marcada, é claro; havia sentido as
cicatrizes no escuro. Mas uma coisa era sentir, e outra era ver as
linhas brancas e enrugadas que listravam sua pele: o padrão
losangular dos Enclaves Celestes marcado em sua pele, onde a carne
havia se fundido ao metal, arrancado e fundido novamente, uma e
outra vez. Sobrepostas a essa precisão friamente geométrica estavam
marcas mais novas e mais duras, onde ela mesma havia arranhado o
nojento e belo toque do metal de seu corpo.

Arte de Marta Nael

Ela passou o dedo ao longo de uma junção irregular que descia


pelo lado externo de sua mão direita, desde a ponta de seu dedo
médio até o cotovelo. Havia um núcleo de metal nas lâminas de
rocha enxertadas em suas mãos, e logo depois que acordou, ela ainda
não tinha descoberto como separar as duas, como conseguia fazia
355
agora. Mesmo que conseguisse, ela não teria se importado. Tudo o
que queria era se libertar do domínio de Phyrexia, não importava o
quanto se ferisse ao fazê-lo. A carne sempre poderia se curar, afinal.
Parecia uma pequena penitência a pagar por ter fracassado em
Zendikar novamente.
Ela se levantou. Suas pernas ainda estavam um pouco trêmulas,
mas, pelo menos, seu estômago não parecia mais querer subir pela
garganta. O edro encaixou-se firmemente em sua palma, como se
pertencesse lá, e ela supôs que, de certa forma, pertencia mesmo.
Nahiri começou a subir.
O caminho para cima era mais longo do que tinha previsto; ela
não tinha percebido o quão fundo tinha ido. A luz aumentava
gradativamente enquanto subia, até que seus olhos doeram com a
claridade. Quando emergiu no casco da Enclave Celeste, seus olhos
estavam fechados e ela sentindo a direção apenas pelo toque na
rocha.
O contato do vento em seu rosto parecia tão estranho quanto o
ar de um novo Plano. Por um momento, ela simplesmente ficou lá,
tentando não se afastar do toque. Mesmo através da pele de suas
pálpebras, seus olhos doíam. Levaria um tempo para se acostumar
a enxergar novamente.
Mas essa era a única razão pela qual os mantinha tão firmemente
fechados?
Olhe, covarde.
Ela abriu os olhos.
O mundo era uma mancha borrada de luz e cor. Então a luz
diminuiu, e Zendikar se revelou diante dela.
Ela quase chorou ao ver a paisagem. Era pior do que qualquer
devastação que o Turbilhão já havia causado, pior do que quando
os Eldrazi haviam devorado Bala Ged. Tendões e metal se
estendiam até onde a vista alcançava, distorcidos e rasgados com
rios de óleo. Foi então que Nahiri viu com muita clareza a força
bruta de Phyrexia em ação, a terraplanagem cega da terra nativa,
ansiosa apenas por espalhar a completação o mais longe e rápido
possível. A finalidade disso era quase inexplicável. Isso não era algo
que mortais pudessem consertar; esse era um problema para os
deuses.
E ela pensou que conseguiria desmontá-lo, uma peça
insignificante de cada vez.
356
A amargura começou a se formar em seu estômago. Meu Deus!
Ela realmente havia se convencido de que estava fazendo algo
significativo lá no Enclave Celeste, recolhendo restos? Era como se
estivesse tentando separar o mar de volta em seus rios componentes.
Sua coleta inútil não era nada comparada ao que Phyrexia – não, ao
que ela havia realizado.
Ao ver Zendikar, ela não podia mais negar: isso era culpa dela.
Phyrexia a tinha usado como um martelo, mas ainda era a
responsável por ter golpeado, por ter trazido o peso de Phyrexia
para baixo em sua casa. Isso era culpa dela.
As cicatrizes em seus braços se contraíram enquanto cerrava os
punhos. Bem, talvez ela tivesse sido parte do problema antes, mas
estava cansada de se esconder como uma covarde. Agora ela ia
consertar as coisas, retorná-las ao que eram antes. O que significava,
em primeiro lugar, encontrar uma maneira de restaurar sua centelha.
À luz do dia, a delicadeza translúcida do edro parecia ainda mais
impossível, as fatias em camadas de pedra eram como um papiro
tridimensional que capturava a luz do sol e a fragmentava em um
arco-íris brilhante. Isso deve ter sido uma barreira protetora de
algum tipo, uma proteção instintiva que sua centelha havia
desenvolvido para protegê-la enquanto era usada para alimentar o
motor do Enclave Celeste. De alguma forma, ela precisava
encontrar uma maneira de extraí-la e fundi-la novamente em si
mesma. Ela deixaria este lugar e encontraria quaisquer aliados que
ainda tivesse em Zendikar – Kesenya, talvez. Nahiri havia ajudado
Kesenya a iniciar sua casa expedicionária, e essa era uma dívida que
a outra mulher, com certeza, reconheceria, mesmo que seu
relacionamento atual não fosse ideal. E Kesenya tinha conexões
com casas expedicionárias em praticamente todos os continentes.
Mesmo que ela não soubesse o que fazer, seria capaz de apontar
Nahiri em uma direção promissora.
O plano se cristalizou em sua mente, afastando uma névoa escura
que ela não tinha percebido antes. Um senso de propósito a
preencheu. Era bom ter um objetivo novamente. Deveria ter
deixado o Enclave Celeste há muito tempo.
Então ouviu antes de sentir, o deslocamento do ar como uma
exalação forte. Uma brisa agitou seus cabelos. Ela girou, sabendo
antes mesmo de ver o que estava acontecendo.
Um planeswalker.
357
A ironia da situação não lhe escapou, que um planeswalker viria
caçá-la agora, neste momento. Nahiri havia feito muitos inimigos
em suas viagens pelo Multiverso, e estava fraca. Se fosse Sorin que
viesse procurá-la, ou Jace…
Mas a figura que apareceu na frente dela era maior do que
esperava, com um rosto felino forte e pelos brancos cobrindo todo
o corpo. Uma cicatriz corria pelo olho esquerdo.
“Olá, Nahiri,” Ajani disse.
Por um momento, Nahiri só conseguiu encarar, sentindo um
senso inegável de alívio de que o planeswalker que ela havia sentido
não era um dos seus inimigos. Na verdade, Ajani era a última pessoa
no Multiverso que ela teria esperado ver. Ela mal o conhecia.
Quando o vira pela última vez, ele era o evangelista mais fiel de
Elesh Norn, seu tenente mais favorecido. O leonino que estava
diante dela agora não estava coberto com porcelana. Agora ele era
apenas… ele mesmo. Carne. Intacto.
E ainda um planeswalker.
Ela falou a primeira coisa que veio à mente. “O que você está
fazendo aqui?” Saiu como um grunhido rouco e enferrujado. Tinha
passado muito tempo desde que tinha falado.
“Não é óbvio? Eu vim procurar por você.” Seus olhos se
moveram sobre o corpo dela. Nahiri encontrou o olhar dele
firmemente, desafiando-o a dizer algo sobre sua aparência. “Eu
pensei… Eu esperava te encontrar morta.”
Ela sorriu sem humor. “Desapontado?”
“Surpreso.” Seus bigodes se mexeram. “Os outros estão
mortos.”
“Quem?”
“Os outros.” Quando não teve uma resposta, ele continuou:
“Tamiyo. Lukka. Jace e Vraska também, eu suponho, exceto que
ainda não encontraram seus corpos.”
Os outros planeswalkers que se tornaram os evangelistas de
Elesh Norn. Uma lista daqueles que lideraram o ataque contra seus
mundos de origem. As sílabas de seus nomes rasgaram seus ouvidos.
“E Nissa?”
Por um longo tempo, Ajani não respondeu, o suficiente para que
Nahiri pensasse que ele não iria fazê-lo. “Ela também sobreviveu,”
ele disse por fim, “mas foi danificada. Eu não sei o que aconteceu;
alguma parte do processo quando fomos purificados de Phyrexia,
358
mas ela não pode mais transplanar. Eu posso, mas… custou a todos.
Teferi, Kaya, Melira… tantos outros. Eles me salvaram. Eles me
purificaram da contaminação de Phyrexia e me mantiveram
intacto.” Um arrepio passou por ele. “Os outros… não foram tão
sortudos quanto você e eu.”
Nahiri manteve a mão fechada em volta do edro, escondendo-o.
Claramente ele ainda estava sentindo a centelha dela, mesmo que
não estivesse mais com ela. Se ele quisesse pensar que ela ainda era
uma planeswalker, não via motivo para informá-lo do contrário.
Nenhuma razão para revelar qualquer sinal de fraqueza,
especialmente com aquela expressão estranha em seu rosto que a
fazia parecer… culpada, ela diria. Mas culpada pelo quê? “Quem te
enviou?”
“O quê?”
“Você não pode ter vindo por conta própria. Quem te pediu para
me encontrar?”
“Ninguém.” Ele parecia surpreso. “Eu só queria ver o que havia
acontecido com você.”
“Bem, se isso é tudo que você veio ver, pode ir embora. Estou
bem.” Ela caminhou até a borda do casco do Enclave Celeste e
olhou para baixo. Seu primeiro passo seria voltar ao nível do solo.
Essa lateral era íngreme, mas ela poderia fazer buracos com as mãos
para subir. Felizmente, o Enclave havia caído em uma superfície
plana, então não precisaria lutar contra florestas ou matagais densos.
Antes, jamais teria se importado, poderia simplesmente desejar ir
aonde quisesse.
Em breve, ela prometeu a si mesma.
Sua nuca se arrepiou. Ela se virou para encontrar Ajani a
encarando. “O quê?” ela respondeu com raiva.
“Você está?” ele perguntou.
“Eu estou o quê?”
“Você está bem mesmo?”
Seus olhos se apertaram. “O que isso quer dizer?”
Ajani não respondeu. Parte do alívio que Nahiri sentiu no
começo desapareceu, sendo substituído por um desconforto. Algo
não estava certo. Ninguém a procuraria a menos que tivesse um
propósito, e em sua experiência, esses propósitos raramente eram
benevolentes.

359
“Olha, estou bem. Então, se não se importa, vá embora e me
deixe em paz. Estou ocupada agora.”
“Curando Zendikar, certo?”
Ela se irritou. “E se eu estiver?”
Outro silêncio. Nahiri percebeu que estava tensionando todo o
seu corpo e se forçou a relaxar. Os bigodes de Ajani se moveram.
“Eu tenho uma proposta para fazer.”
“Não estou interessada,” Nahiri disse imediatamente.
“Você não vai nem me ouvir?” As palavras ainda eram suaves,
mas havia um rosnado nelas, um brilho em seus olhos. Raiva ou
ameaça, Nahiri não sabia e não queria saber; o perigo era claro.
Ela cruzou os braços sobre o peito.
“Desde que as coisas terminaram, tenho viajado pelos Planos e
visto a extensão da destruição que causamos. Tenho certeza de que
não preciso dizer sobre os danos incalculáveis causados ao
Multiverso. Alguém precisa se redimir pelo que fizemos. Consertar
as coisas.” Ele respirou fundo. “Isso pode ser feito por você e por
mim.”
Levou um momento para o significado de suas palavras fazerem
sentido para Nahiri. “Você quer que eu… me junte a você? Seja sua
parceira para consertar o Multiverso?” Um riso incrédulo escapou
dela. “Você tem outros que ajudariam prontamente. Eles te
salvaram, não foi? Vá pedir a eles. Tenho certeza de que você tem
muitos amigos que adorariam fazer isso.” Ela não conseguiu evitar
a amargura em sua voz. “Eu já disse que não estou interessada, então
você pode ir salvar o resto do Multiverso. Aliás, obrigada por isso.
Mas deixe Zendikar em paz. Esta é minha casa, não sua. Eu vou
consertá-la sozinha, sem a sua… a sua intromissão!”
Ele balançou a cabeça irritado. “Isso não é apenas sobre o
Multiverso. Também é sobre nós. Ninguém mais enfrentou o que
nós enfrentamos. Somos os únicos que sabem o que é passar por…
pelo que passamos.”
“Pelo que passamos,” Nahiri repetiu. “Você quer dizer como
phyrexianos.” A palavra estava amarga em sua boca, mas ela se
obrigou a dizê-la mesmo assim. Ajani recuou. “Nissa sabe.”
“Ela também não é mais uma planeswalker.” A tensão de Nahiri
sobre o edro aumentou. “Ela nunca viu as consequências do que
fizemos. De todos no Multiverso, você e eu, Nahiri, somos os
únicos que realmente conhecem os pecados que cometemos. É por
360
isso que precisamos estar lá um para o outro. Precisamos nos ajudar,
para o nosso próprio bem. E não podemos fazer isso sozinhos.”
Nahiri franziu a testa, sem se preocupar em esconder sua
irritação. Ela sempre considerou Ajani um pouco mandão,
assumindo que sabia o que era melhor para todos, mas isso já era
demais. “Eu nunca pedi sua ajuda,” ela retrucou, “e não serei um
bálsamo para a sua culpa. Você terá que aprender a conviver com
isso.”
As orelhas dele se achataram contra o crânio. “Você acha que
estou aqui por acaso?” rosnou. “Isso deve ser feito. Nós trouxemos
o pecado até aqui; temos que ser os que vão consertar isso. Custe o
que custar.” E quando ela não respondeu, ele continuou, a voz mais
suave, mas agora instável: “Não te assombra o que fizemos?
Lembro-me de tudo como… como um phyrexiano.” Parecia lhe
custar dizer aquela palavra. “Cada ato malvado, cada memória. Está
lá, intacto. É assim com você também?”
De repente, ela se viu ajoelhada sobre o pescoço de um elemental
do Enclave, ungindo-o – não, afogando-o – em óleo. Como ela
havia abençoado – amaldiçoado – corrompido – tudo o que tocava,
levando Phyrexia em seu rastro em uma orla de óleo brilhante.
Como acreditou com todo o coração que estava salvando seu Plano
de algo pior. Um gosto amargo e metálico encheu sua boca. Furiosa,
ela afastou essa memória. “Já disse para me deixar em paz, o que
você não entendeu? Por que você ainda está aqui?”
“Porque quero te ajudar,” Ajani rosnou. “Quantas vezes tenho
que repetir?”
Nahiri olhou com raiva, mas, mesmo assim, uma consciência fria
e perturbadora a preencheu.
Ajani era um planeswalker e ainda estava no controle total de
seus poderes. Vir até aqui, apenas porque haviam servido juntos sob
o controle de Elesh Norn, era ridículo. Ninguém em sã consciência
gostaria de relembrar aquele tempo.
E se ele estivesse aqui para matá-la?
Se estivesse, então tudo faria sentido. Sua presença aqui. A
maneira como ele continuava a pressioná-la para lembrar-se de seu
tempo como phyrexiana – ele poderia estar tentando desestabilizá-
la emocionalmente, tornando mais fácil para ele surpreendê-la com
um ataque. Ajani havia sido o estrategista de Elesh Norn, o mais
implacável e leal de seus evangelistas. Phyrexia mudou sua lealdade,
361
mas não o cerne do que eles eram. Aquela determinação obstinada,
aquela capacidade de ser implacável, tinham que ter vindo do
próprio Ajani.
Ele havia vindo para Zendikar procurando por ela
especificamente. Queria descobrir se ainda estava viva. Ele poderia
muito bem ter decidido procurar todos os antigos completados e
eliminá-los, para limpar o Plano da contaminação de Phyrexia. Custe
o que custar, ele havia dito. Ele estava certo sobre uma coisa: eles
haviam causado muitos danos. Pelo que ela sabia de Ajani, ele não
era do tipo que deixava tais erros passarem se houvesse algo que
pudesse fazer a respeito.
Era algo que ela mesma teria feito, se pudesse.
Lukka, ela pensou abruptamente. Tamiyo. Vraska. Ele não disse
como eles haviam morrido.
Ele não havia dito quem os matou.
Tão sutilmente quanto pôde, ela estendeu seu poder, trazendo
todo o casco do Enclave Celeste ao seu redor. Ele havia cometido
um erro, dando-lhe um aviso prévio. Se estava planejando matá-la,
pelo menos ela estaria pronta para isso. Podia não ser uma
adversária para ele, mas poderia pelo menos atrasá-lo tempo
suficiente para – esperançosamente – escapar.
Se ele percebeu que ela havia compreendido sua verdadeira
motivação, não deu nenhum sinal disso. Agora ele estava andando
de um lado para o outro, em movimentos curtos e rápidos, sua
cauda balançando de um lado para o outro. “Nós precisamos um do
outro, Nahiri, quer você admita ou não. Eu sei como é estar onde
você está agora. Quem mais pode dizer isso? Quem mais será capaz
de compreender verdadeiramente a escuridão e a autodepreciação
do que você fez? Quem mais vai entender?” Ele parou
abruptamente e voltou-se para ela novamente. Uma nota de súplica
entrou em sua voz. “Deixe-me ajudar você a se curar – e ajudar
a me curar também.”
Uma onda de descrença passou por Nahiri. Curar? Curar? Com
seu Plano destruído, sua centelha arrancada, e seu corpo refeito de
formas que contariam a história das garras de Phyrexia sobre ela até
o fim dos tempos? Enquanto ele estava ali, parecendo ileso pelo
sofrimento, parecendo inteiro? Mas é claro! Ele tinha amigos para
tirá-lo da confusão, cuidar dele, enquanto ela…ela só tinha a si
mesma.
362
“Não se atreva a me dizer o que eu preciso fazer, seu gato
maldito,” Nahiri sibilou. “Você não tem ideia do que eu passei. Você
não sabe o que fizeram comigo. Você não sabe quais pecados eu
cometi.”
“Então fale comigo. Eu quero te ajudar.”
“Não!” Nahiri cuspiu. “Quem é você para vir aqui e me dar
sermão sobre o que eu deveria ou não fazer? O que te dá o direito?
Você e seus amigos que me colocaram nesse estado” ela passou uma
mão sobre seu corpo “em primeiro lugar. Se você quer alguém para
conversar sobre tudo isso, vá encontrar Nissa. Ou Chandra, ela é
sua amiga, não é? Por que você não está chorando no ombro dela?”
Outro recuo, este mais agudo. Um rosnado perigoso subiu na
garganta de Ajani.
Nahiri sabia que deveria ter parado ali, mas um impulso de
imprudência tomou conta dela. As bordas do edro furavam a palma
da sua mão, a dor era de uma clareza aguda e concentrada. “Eu só
me envolvi nessa bagunça por causa da sua fraqueza. Você acha que
eles teriam que recorrer a alguém como eu se o grande Ajani Juba
D’Ouro não tivesse caído? Se não tivesse ficado ao lado de Elesh
Norn e dito exatamente como vencê-los? Você massacrou os deuses
de Theros. Você assassinou Jaya Ballard. E agora você quer ficar
aqui me dizendo como devo expiar meus pecados?”
Um olhar de fúria tomou conta do rosto de Ajani, e um rosnado
pleno de raiva o rasgou, um som angustiado mais parecido com um
grito animal do que qualquer outra coisa. Suas garras foram
expostas, e Nahiri não precisou imaginar a expressão de luto
assassino no rosto dele.
Ela puxou a pedra ao seu redor, lançando-a entre os dois. Ela só
queria formar uma parede, algo para atrasá-lo enquanto escalava o
casco do Enclave Celeste, mas então a rocha cedeu sob seus pés e
ela percebeu que havia superestimado a força que precisava. Teve
apenas o espaço de uma respiração para perceber o erro que
cometeu e, em seguida, a cúpula do Enclave desabou sob seus pés.

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Arte de Miguel Mercado

A última coisa que viu foram os olhos assustados de Ajani se


arregalando enquanto se lançava na direção dela, uma pata
estendida, a boca aberta para gritar o seu nome.
Ela caiu.
Uma mancha de luz irregular voava distante acima: um buraco
no telhado do Enclave Celeste, um rasgo no tecido do Plano. No
início, emergindo da inconsciência, Nahiri só conseguia olhar
fixamente. O buraco estava tão distante que não fazia sentido.
Certamente deveria estar morta depois de ter caído tão alto. E ainda
assim, aqui estava ela, ainda viva de alguma forma, por pura sorte e
nada mais.
Ela tentou se sentar e quase gritou quando o ombro ardeu de
dor. Ela colocou a mão no ombro e tocou um pedaço de metal, uma
garra que tinha atravessado suas costas e saído pelo outro lado.
Metal phyrexiano. Ela tinha caído no buraco que havia criado.
Quase não conseguiu alcançar e agarrar o metal. A dor quando o
puxou a fez gritar. Mas então ele saiu, e ela ficou lá, o ombro
latejando e o nariz cheio do cheiro de sangue. Ela conseguiria passar
por aquilo. A dor era um estado temporário. A carne sempre poderia
se curar. Quando fosse uma planeswalker novamente, isso não seria
nada mais do que uma lembrança distante.
Suas mãos estavam vazias. Onde estava o edro?
Nahiri se sentou de repente, olhos já se movendo pela pilha de
pedras. Ela estava segurando o edro quando caiu, o que significava
364
que ele também deveria ter caído… sim, lá estava ele, aninhado em
uma curva de metal pontiagudo, a meio caminho. Ela rastejou na
direção dele, as bordas de metal cortando suas mãos e joelhos.
Assim que o pegou, porém, soube que algo estava errado. Os
pedaços de pedra fina e frágil que se projetavam em torno do núcleo
estavam rachados, e até mesmo os que ainda estavam intactos
pareciam opacos e ásperos. Ele deve ter se quebrado na queda. Ela
não conseguia sentir sua centelha.
Por um momento, tudo o que Nahiri pôde fazer foi sentar-se e
observar. Qualquer essência de si mesma que havia sido infundida
na pedra já não estava lá. Sua última esperança de recuperar seu
poder – de se tornar uma planeswalker novamente – tinha acabado.
Tudo o que sobrou para consertar Zendikar era ela mesma:
impotente.
Ela teria rido, se não achasse que isso iria a despedaçaria.
Ela deixou o edro cair de sua mão. Ele rolou para baixo do lado
da pilha de pedras, e ela não se incomodou em ver em que direção
ele caiu.
Quando finalmente emergiu de volta ao topo do Enclave, a dor
em seu ombro se transformou em uma pulsação insistente. Teve que
andar com cuidado; toda a cúpula da Enclave parecia frágil, e ela
estava tão exausta e meio cega de dor que não teria sido capaz de
reforçar nem mesmo um único azulejo. Ajani não estava em lugar
algum.
Nahiri estava ciente de uma emoção crescente dentro dela, algo
profundo, quente e familiar. Havia luto, aquela dor lenta e longa por
seu Plano que havia sofrido tanto e sido quebrado tantas vezes. Mas,
por baixo disso, havia algo ainda mais quente e mais familiar.
Raiva.
Ela conseguia ver tudo com clareza agora. A verdadeira ameaça,
o verdadeiro problema, não era ela. Nem mesmo era Phyrexia. Eram
os planeswalkers. Era isso que os planeswalkers faziam. Eles iam
para um novo Plano, causavam estragos e depois partiam sem
pensar no dano que causaram. Assim como Ajani tinha vindo aqui,
procurando-a por seus próprios interesses egoístas, destruiu sua
última chance de curar verdadeiramente Zendikar e depois fugiu,
deixando-a lidar com as consequências de suas ações.
Ela devia saber disso. Ela já fora um deles.

365
Nahiri cerrou os punhos, sentindo as unhas penetrarem em suas
mãos. A fúria era prazerosa, o calor dela era reconfortante e familiar.
Ela conhecia a raiva. Ela poderia usá-la como combustível para
futuras obras.
E ela sabia o que precisava fazer em seguida.
Se não fossem os planeswalkers, Phyrexia não teria sido capaz de
alcançar o Multiverso, e Zendikar não teria sido atormentada como
foi. Sorin e Ugin nunca teriam conseguido aprisionar os Eldrazi em
sua terra, há milhares de anos, e despertar o Turbilhão. Enquanto
pessoas como eles existissem, sua casa estaria sempre sob ameaça.
Zendikar sempre conseguiu se recuperar dos estragos
provocados. Mas até os Planos ficam cansados, e mais cedo ou mais
tarde, ele encontraria algo – ou alguém – que destruiria seu núcleo
de forma irreparável.
Não se ela pudesse evitar.
Estava cansada de se esconder no escuro. Podia não ter o poder
que tinha antes, mas isso não significa que estava indefesa. Ainda
havia coisas que podia fazer. Ainda havia maneiras, talvez, de selar
Zendikar de forças externas que lhe fariam mal.

Arte de Alexey Kruglov

Nahiri olhou para os destroços de seu Plano, sua linda casa, agora
devastada e quebrada. Ela protegeria aquilo até seu último suspiro.
Afinal, ainda era a guardiã de Zendikar. Ela sempre seria a guardiã
de Zendikar.
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“Nunca mais,” ela respirou. “Chega de dor. Chega de
sofrimento.” Sua voz endureceu com uma convicção furiosa. “Custe
o que custar, eu juro. Nenhum planeswalker colocará os pés em
Zendikar novamente.”

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