Você está na página 1de 6

AnBllwr Psicológica (1981).

li(1):123-I27

A natureza humana:
mito que teima em permanecer

CLARA QUEIROZ (*)

A NATUREZA HUMANA: MITO QUE dades do mundo em que cada um se insere.


TEIMA EM PERMANECER Nessa busca de leis gerais o indivíduo é in-
fluenciado pela ideologia da classe domi-
Há dois aspectos que me parece impor- nante. B a esta, mais do que a qualquer
tante referir a propósito das teorias deter- outra classe, é necessária uma explicação
ministas de tipo biológico. Um é o da crença que não ponha em causa a ordem estabe-
profundamente interiorizada na existência lecida.
de uma natureza humana; o outro é o de A sociedade europeia até ao séc. XVII
que a ciência não se constrói no vácuo: é era caracteristicamente estática e tanto a
um produto social e, como tal, está su- posição social de camponeses como a de
jeita, entre outras, as influências ideológicas possuidores de terra era atribuída aos desíg-
do contexto histórico-social em que se in- nios de Deus. E aos desígnios de Deus está
sere. ligada a ideia de natureza e de natural. De
acordo com o teólogo do séc. I11 Tertuliano
tudo o que está em consonância com a
O MITO DA NATUREZA HUMANA ordem estabelecida é natural, vem de Deus,
o que não está é contra-natura, vem neces-
Para além do reconhecimento do outro, sariamente do inimigo de Deus. A análise
tal como este se apresenta em cada mo- que Lovejoy (1948) faz do pensamento de
mento, parece existir também uma necessi- Tertuliano mostra que «A invocação da
dade de enquadrar, justificar, encontrar leis natureza como norma ... funciona de arti-
gerais que se lhe apliquem. Nessa tentativa fício retórico para condenar qualquer cos-
procuram-se razões tranquilizantes para as tume pagão que difira dos costumes dos
contradições, para a violência e desigual- cristãos)). O argumento tradicional da igreja
católica ao condenar a contracepção é ba-
seada na ideia de que os produtos químicos
não são naturais.
(*) Bi6loga. Docente na Faculdade de Ciên- As alterações ideológicas e o abalo que
cias. a rigidez da estrutura social sofreu com a

I23
revolução burguesa do séc. XVIII não pu- meritocracia, incorporado desde a revolução
seram de lado a necessidade de uma expli- burguesa, permanece como ideologia domi-
cação da sociedade que se eximisse a von- nante nas sociedades industriais. B ele que
tade humana: a natureza continuou a ser leva Carlisle (1918), director do New York
invocada na defesa de valores tradicionais. State Board of Charities’ Bureau of Ana-
É deste modo que Malthus (1798) defendeu iysis and Znvestigation a afirmar ((Aqueles
a monogamia com o argumento de que ((0 a quem falta capacidade intelectual vão
mandamento da natureza e da virtude pa- parar aos mais baixos níveis da nossa vida
rece ser o da ligação desde muito cedo a social e acabam nos bairros de lata ... Os
uma só mulher)) e que Graves (1841) dis- mais activos e mais dotados de entre estes
cutiu o papel social da mulher americana abandonam os seus semelhantes mais defi-
nos seguintes termos: ((0 nosso principal cientes. O resíduo que permanece é, con-
objectivo, através destas páginas, é o de sequentemente, composto daqueles de me-
provar que 05: seus (da mulher) deveres nor valor social ... Subsiste com frequência
domésticos absorvem mais a sua atenção do um resíduo de famílias que ... não encontra
que qualquer outro assunto-que a casa trabalho ... A velha doutrina da predesti-
é a sua esfera de acção apropriada; e que, nação, agora revestida de moderna psicolo-
sempre que ela negligencia os seus deveres gia, reafirma-se de novo.))
ou sai desta esfera de acção para se imis- A impotência individual perante a imensa
cuir em algum dos grandes movimentos pú- tarefa que constitui a alteração da ordem
blicos d o quotidiano, ela abandona o local estabelecida leva a incorporação de expli-
que Deus e a natureza lhe atribuíram.)) cações exteriores e de carácter estático, que
Já não é (ou não é só) a vontade de Deus, constituem referenciais em relação aos quais
mas qualquer essência inerente a própria o indivíduo se localiza bem como ao mundo
matéria, que se sobrepõe a vontade hu- que o rodeia. Os reflexos desta busca de
mana e em nome da qual se vai também um determinismo exterior a própria estru-
encontrar a razão porque numa sociedade tura social que a explique encontram-se,
baseada nos princípios da liberdade, igual- ainda hoje, na cultura popular. Expressões
dade e fraternidade subsiste um tão grande como ((quem torto nasce, tarde ou nunca
desiquilíbrio na distribuição da riqueza e se endireita)), ((está-lhe na massa do san-
na condição humana. Continua a haver ri- gue)), «tal pai, tal filho)), ((é a intuição femi-
cos e pobres, dominadores e dominados nina)), contêm implícita a ideia tranquiIi-
tanto dentro de como entre países. E assim zante de que há uma natureza humana
vemos o argumento religioso ser substituído contra a qual nada se pode. Outros clichés
pelo argumento positivista que não dispensa -«sempre houve pobres e ricos)), «não
a crença na nutureza. Como faz notar Le- sou eu quem vai endireitar o mundo»-
wontin (1976) a causa desta situação tem revelam mais explicitamente a sua função
que ser encontrada em proporiedades indi- ideológica na preservação da ordem esta-
viduais e não na estrutura das relações so- belecida.
ciais. A sociedade produz tanta igualdade Na verdade, um certo tipo de determi-
quanto é humanamente possível; as dife- nismo biológico da estrutura social e da cmi-
renças que subsistem relativamente a ri- dição humana está tão profundameaie hte-
queza, estatuto e poder não são mais do riorizado e parece tão lógico, aa sua aparente
que manifestações da desigualdade natu- relação de causa e efeito, que a tentativa
ral da capacidade humana. O princípio da da sua desmistificação afigura-se tão árdua

124
como diz Lewontin (1976) terh sido, no vés dos seus próprios métodos de raciocínio:
tempo de Galileu, demonstrar que é a Terra os antropólogos ao estudarem as divisões
que gira em torno do Sol! de trabalho de um grupo cultural e ao atri-
buírem-nas a uma origem biológica; os so-
ciólogos ao anunciarem que se limitam a
registar fenómenos sociais e acabando, gra-
O DETERMINISMO BIOLÓGICO dualmente, por os ratificar, ao notarem que
o comportamento não-conformista constitui,
A descoberta do mendelismo em 1900 e de facto, um desvio e produz “problemas”;
a grande expansão da biologia que se lhe os psicólogos ao deplorarem o desajusta-
seguiu alteraram a terminologia sem, no mento individual ao papel social e sexual e
entanto, abalar as teorias deterministas. acabando, finalmente, por justificar ambos
A concepção de uma humanidade c o a ca- como inerentes a natureza psicológica, fun-
rácter estático subsiste, agora esse carácter damental As espécies, e biológica na essência.
é-lhe conferido pelas especificidades bioló- Mais tarde este ponto de vista adquiriu sufi-
gicas pré-determinadas. 33. Darlington (1953), ciente força para passar a ofensiva.)) Em
professor de Botânica na Universidade de resumo, o outro é referido em relação a um
Oxford, quem diz que ((osmateriais da here- padrão, que foi sempre o definido pela classe
ditariedade contidos nos cromossomas são dominante, aquele que sempre interessou A
a matéria sólida que, em última análise, manutenção da ordem estabelecida.
determinam o curso da história)); é Herm-
stein (1973), professor de Psicologia na Uni-
versidade de Harvard, quem afirma que
((quando a tecnologia substituir totalmente A NEUTRALIDADE (?) DA CIÊNCIA
mangas-de-alpaca, lenhadores e outras vo- E DOS CIENTISTAS
cações simples, a tendência para o desem-
prego será detectável nos genes de uma fa- Embora Pasteur afirmasse que, ao entrar
mília como o QI o é agora)). no laboratório, deixava A porta os seus cre-
Casos como estes, de crença num deter- dos religiosos, esta não parece ser uma ati-
minismo biológico, por parte de cientistas tude possível para qualquer ser humano,
que influenciaram no seu campo o desen- se é que o era para ele. Vimos como «a filo-
volvimento da ciência, são por demais co- sofia espontânea))leva muitas vezes também
nhecidos. Bastará lembrar que nem o ra- os cientistas a justificar a ordem social, não
cismo, nem o papel da mulher na socie- em termos dos desígnios de Deus, nem tão-
dade, nem a esquizofrenia, nem a crimina- -pouco afirmando que quem torto nasce,
lidade, nem a homossexualidade, nem as tarde ou nunca se endireita, mas buscando
classes sociais escaparam a serem explicados causas na própria ciência, mesmo quando
em termos de moléculas, de genes, de cro- os dados lhes não permitem tais conclusões.
mossomas, de estruturas anatómicas. Os fenómenos vivos são estudados a vários
B o que ressalta da análise de Kate Mil- níveis de integração que poderão ser agru-
let (1971) ao colocar este problema a pro- pados hierarquicamente em molecular, ce-
pósito da situação da mulher: «Cada disci- lular, organismal e social. Detectam-se, nos
plina social contribui para o re-estabeleci- casos apontados, elementos de reducionismo
mento e manutenção de um stato quo reac- que consistem na atribuição de causas de
cionário em política sexual, cada um atra- acontecimentos a um nível hierárquico su-

125
perior a acontecimentos de um outro nível Podemos concluir que o cientista está
inferior. De acordo com Rose (1973) não se sujeito às mesmas influências que os outros
propõe a existência de distinção absoluta membros da comunidade social. Se bem que
entre os acontecimentos pertencentes a um a sua forma de conhecer e explicar o que
nível e os de qualquer outro. Porém, as o rodeia obedeça a uma metodologia e ter-
relações entre os vários níveis não são quase minologia específica, a ciência que ele pro-
nunca de causa-efeito, mas sim relações duz não pode deixar de ter a marca da socie-
complexas que não permitem a simples dade em que ele se insere e das opções que
extrapolação. Existem interacções entre as ele tomou. Mas convém aqui fazer uma
várias hierarquias de organização que têm importante distinção. Enquanto a cultura
que ser consideradas em todas as direcções. popular é influenciada pela ideologia da
Além disso, a cada nível vão aparecer carac- classe dominante, o cientista (e a ciência)
está ao serviço dessa classe dominante,
teres novos, desconhecidos do nível prece-
fornecendo-lhe conhecimento e tecnologia
dente. Quando a existência de um cromos-
para o desenvolvimento da capacidade in-
soma Y extra, num cariótipo humano, é dustrial e, não raramente, fornecendo-lhe
apontada como a causa do comportamento argumentos que fortalecem a ideologia ne-
criminal do indivíduo que o contém (Jacobs, cessária à manutenção da ordem estabele-
1956) está-se a cometer um erro científico, cida. tÉ este aspecto que leva Lewontin
porque o estado actual da genética mostra- (1976) a falar no «determinisrno biológico
-nos que a complexidade das interacções na como arma social)).
acção génica não se compadece com expli- Penso que o que caracteriza a actividade
cações tão simplistas; por outro lado, a humana é a dinâmica da sua criatividade,
noção de comportamento criminal é estra- a evolução cultural que, ainda que possibi-
nha à genética e varia de acordo com as litada pela estrutura biológica, a ultrapassa.
sociedades. As características do comporta- Uma natureza humana com carácter estático
mento e das sociedades humanas, tendo sem e universal não existe. A condição humana
dúvida um suporte biológico, são fenóme- só pode ser entendida na sua dinâmica em
nos iminentemente culturais. Como diz referência ao tempo e ao espaço; só poderá
Ruffié (1976) ((vivemos ainda num equí- ser explicada pelas interacções entre todos
voco ancestral, que consiste em confundir o os níveis hierárquicos de organização, sa-
biológico com o cultural e que nos leva a lientando o que lhe é único, e não pelos
transpor arbitrariamente, para o domínio seus componentes. No dizer de Cooper
social, um certo número de leis da biologia. (1978) «a “natureza humana” é fictícia por-
que, por mais que tentemos, nunca podemos
Um outro aspecto implícito nas afirma- repetir-nos-cada regresso é a um novo
ções de Darlington e Herrnstein, entre ou-
lugar)).
tros, é já de carácter filosófico. Consiste em
explicar o todo pela soma algébrica das suas
partes sem atender às interacções que ocor- REFERÊNCIAS
rem entre elas, nem às características espe-
cíficas dessa unidade que é o todo. Para CARLISLE, C. L. (1918). «The causes of depen-
concretizar, diria que a noção de célula é dency based on a survey of Oneida County».
enriquecida pelo conhecimento que a análise State of New York State Board of Charities,
Eugenics and Social Welfare Bulletin, 15:
dos seus constituintes permite; mas o soma- 459-60.
tório desses constituintes, só por si, jamais COOPER, D. (1978). A Linguagem da Loucura.
levarão i noção de célula. Editorial Presença.

126
DARLINGTON, C. D. (1953). The Facts of Life. Weapon. Burgess Publishing Company, Min-
George Allen & Unwin, Ltd., Londres. neapolis: 6-18.
GRAVES, A. J. (1841). Woman in America: LOVEJOY, A. O. (1948). Essays in the History
being an examination into the moral and in- of Zdeas. Johns Hopkins Press, Baltimore.
tellectual condition of American female SO- MALTHUS, T. R. (1798). «An essay on the prin-
ciety. Harper & Brothers, Nova Iorque. cipie of populatioxw. Population, Evolution,
and Bith Control, ed. Garrett Hardin, 1964.
HERRNSTEIN, R. J. (1973). ZQ and the Merito- Freeman and Company, San Francisco: 4-16.
cracy. Little Brown and Co., Boston e To- MILLETT, I(. (1971). Sexual Politics, Avon,
ronto. Nova Iorque.
JACOBS, P. A. et al. (1965). ((Agressivebehavior, ROSE, S . (1973). The Conscious Brain. Weiden-
mental subnormality, and the XYY male». feld and Nicolson, Londres.
Nature, 208: 1351-52. RUFFIÉ, J. (1976). De lu Biologie ii la Culture.
LEWONTIN, R. C. (1976). ((Biological determi- Flammarion, Paris.
nism as a social weapon)). Biology as a Social - La Nouvelle Grille. R. Lafont, 1974.

127
l v wesa universidade
UMA COLECCÇÃO DIRIGIDA
A ESTUDANTES E PROFISSIONAIS
DE TODOS OS RAMOS
DAS CIENCIAS

Alguns títulos publicados:

A Reprodução -
Elementos para
uma Teoria do Sistema de Ensino
P. BOURDIEU e J . 4 . PAÇÇERON

Psicoses Infantis
S. LEBOVICI, D. WIDLüCHER, C. KOUPERNIK
e outro8

Morfologia do Conto
VLADIMIR PROPP

Etnopsiquiatria
F. LAPLANTTNE

Genética das Populações


E. BINDER

Sobre a Psicanálise
H. EY. D. WIDLüCHER. R. HERALD e outro.

História da Educação
ROGER GAL

Edipo a Luz do Folclore


VLADIMIR PROPP

Psicologia e Educação da Criança


n. WALLON

Grupos e Sociedades - Introdução


a Psico-Sociologia
M. CORNATON PRÓXIMO NÚMERO:
A Personalidade Neurótica
do Nosso Tempo
K. HORNEY

Práticas e Linguagens Gestuais PSICOLOGIA


A. GREIMAÇ

Terapia Familiar E
MAURIZIO ANDOLFI

GESTÃO
Rua Jorge Ferreira de Vasconcelos, 8
(a Entrecarnpos)
Tel. 73 O0 76 - 1700 LISBOA

Você também pode gostar