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li(1):123-I27
A natureza humana:
mito que teima em permanecer
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revolução burguesa do séc. XVIII não pu- meritocracia, incorporado desde a revolução
seram de lado a necessidade de uma expli- burguesa, permanece como ideologia domi-
cação da sociedade que se eximisse a von- nante nas sociedades industriais. B ele que
tade humana: a natureza continuou a ser leva Carlisle (1918), director do New York
invocada na defesa de valores tradicionais. State Board of Charities’ Bureau of Ana-
É deste modo que Malthus (1798) defendeu iysis and Znvestigation a afirmar ((Aqueles
a monogamia com o argumento de que ((0 a quem falta capacidade intelectual vão
mandamento da natureza e da virtude pa- parar aos mais baixos níveis da nossa vida
rece ser o da ligação desde muito cedo a social e acabam nos bairros de lata ... Os
uma só mulher)) e que Graves (1841) dis- mais activos e mais dotados de entre estes
cutiu o papel social da mulher americana abandonam os seus semelhantes mais defi-
nos seguintes termos: ((0 nosso principal cientes. O resíduo que permanece é, con-
objectivo, através destas páginas, é o de sequentemente, composto daqueles de me-
provar que 05: seus (da mulher) deveres nor valor social ... Subsiste com frequência
domésticos absorvem mais a sua atenção do um resíduo de famílias que ... não encontra
que qualquer outro assunto-que a casa trabalho ... A velha doutrina da predesti-
é a sua esfera de acção apropriada; e que, nação, agora revestida de moderna psicolo-
sempre que ela negligencia os seus deveres gia, reafirma-se de novo.))
ou sai desta esfera de acção para se imis- A impotência individual perante a imensa
cuir em algum dos grandes movimentos pú- tarefa que constitui a alteração da ordem
blicos d o quotidiano, ela abandona o local estabelecida leva a incorporação de expli-
que Deus e a natureza lhe atribuíram.)) cações exteriores e de carácter estático, que
Já não é (ou não é só) a vontade de Deus, constituem referenciais em relação aos quais
mas qualquer essência inerente a própria o indivíduo se localiza bem como ao mundo
matéria, que se sobrepõe a vontade hu- que o rodeia. Os reflexos desta busca de
mana e em nome da qual se vai também um determinismo exterior a própria estru-
encontrar a razão porque numa sociedade tura social que a explique encontram-se,
baseada nos princípios da liberdade, igual- ainda hoje, na cultura popular. Expressões
dade e fraternidade subsiste um tão grande como ((quem torto nasce, tarde ou nunca
desiquilíbrio na distribuição da riqueza e se endireita)), ((está-lhe na massa do san-
na condição humana. Continua a haver ri- gue)), «tal pai, tal filho)), ((é a intuição femi-
cos e pobres, dominadores e dominados nina)), contêm implícita a ideia tranquiIi-
tanto dentro de como entre países. E assim zante de que há uma natureza humana
vemos o argumento religioso ser substituído contra a qual nada se pode. Outros clichés
pelo argumento positivista que não dispensa -«sempre houve pobres e ricos)), «não
a crença na nutureza. Como faz notar Le- sou eu quem vai endireitar o mundo»-
wontin (1976) a causa desta situação tem revelam mais explicitamente a sua função
que ser encontrada em proporiedades indi- ideológica na preservação da ordem esta-
viduais e não na estrutura das relações so- belecida.
ciais. A sociedade produz tanta igualdade Na verdade, um certo tipo de determi-
quanto é humanamente possível; as dife- nismo biológico da estrutura social e da cmi-
renças que subsistem relativamente a ri- dição humana está tão profundameaie hte-
queza, estatuto e poder não são mais do riorizado e parece tão lógico, aa sua aparente
que manifestações da desigualdade natu- relação de causa e efeito, que a tentativa
ral da capacidade humana. O princípio da da sua desmistificação afigura-se tão árdua
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como diz Lewontin (1976) terh sido, no vés dos seus próprios métodos de raciocínio:
tempo de Galileu, demonstrar que é a Terra os antropólogos ao estudarem as divisões
que gira em torno do Sol! de trabalho de um grupo cultural e ao atri-
buírem-nas a uma origem biológica; os so-
ciólogos ao anunciarem que se limitam a
registar fenómenos sociais e acabando, gra-
O DETERMINISMO BIOLÓGICO dualmente, por os ratificar, ao notarem que
o comportamento não-conformista constitui,
A descoberta do mendelismo em 1900 e de facto, um desvio e produz “problemas”;
a grande expansão da biologia que se lhe os psicólogos ao deplorarem o desajusta-
seguiu alteraram a terminologia sem, no mento individual ao papel social e sexual e
entanto, abalar as teorias deterministas. acabando, finalmente, por justificar ambos
A concepção de uma humanidade c o a ca- como inerentes a natureza psicológica, fun-
rácter estático subsiste, agora esse carácter damental As espécies, e biológica na essência.
é-lhe conferido pelas especificidades bioló- Mais tarde este ponto de vista adquiriu sufi-
gicas pré-determinadas. 33. Darlington (1953), ciente força para passar a ofensiva.)) Em
professor de Botânica na Universidade de resumo, o outro é referido em relação a um
Oxford, quem diz que ((osmateriais da here- padrão, que foi sempre o definido pela classe
ditariedade contidos nos cromossomas são dominante, aquele que sempre interessou A
a matéria sólida que, em última análise, manutenção da ordem estabelecida.
determinam o curso da história)); é Herm-
stein (1973), professor de Psicologia na Uni-
versidade de Harvard, quem afirma que
((quando a tecnologia substituir totalmente A NEUTRALIDADE (?) DA CIÊNCIA
mangas-de-alpaca, lenhadores e outras vo- E DOS CIENTISTAS
cações simples, a tendência para o desem-
prego será detectável nos genes de uma fa- Embora Pasteur afirmasse que, ao entrar
mília como o QI o é agora)). no laboratório, deixava A porta os seus cre-
Casos como estes, de crença num deter- dos religiosos, esta não parece ser uma ati-
minismo biológico, por parte de cientistas tude possível para qualquer ser humano,
que influenciaram no seu campo o desen- se é que o era para ele. Vimos como «a filo-
volvimento da ciência, são por demais co- sofia espontânea))leva muitas vezes também
nhecidos. Bastará lembrar que nem o ra- os cientistas a justificar a ordem social, não
cismo, nem o papel da mulher na socie- em termos dos desígnios de Deus, nem tão-
dade, nem a esquizofrenia, nem a crimina- -pouco afirmando que quem torto nasce,
lidade, nem a homossexualidade, nem as tarde ou nunca se endireita, mas buscando
classes sociais escaparam a serem explicados causas na própria ciência, mesmo quando
em termos de moléculas, de genes, de cro- os dados lhes não permitem tais conclusões.
mossomas, de estruturas anatómicas. Os fenómenos vivos são estudados a vários
B o que ressalta da análise de Kate Mil- níveis de integração que poderão ser agru-
let (1971) ao colocar este problema a pro- pados hierarquicamente em molecular, ce-
pósito da situação da mulher: «Cada disci- lular, organismal e social. Detectam-se, nos
plina social contribui para o re-estabeleci- casos apontados, elementos de reducionismo
mento e manutenção de um stato quo reac- que consistem na atribuição de causas de
cionário em política sexual, cada um atra- acontecimentos a um nível hierárquico su-
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perior a acontecimentos de um outro nível Podemos concluir que o cientista está
inferior. De acordo com Rose (1973) não se sujeito às mesmas influências que os outros
propõe a existência de distinção absoluta membros da comunidade social. Se bem que
entre os acontecimentos pertencentes a um a sua forma de conhecer e explicar o que
nível e os de qualquer outro. Porém, as o rodeia obedeça a uma metodologia e ter-
relações entre os vários níveis não são quase minologia específica, a ciência que ele pro-
nunca de causa-efeito, mas sim relações duz não pode deixar de ter a marca da socie-
complexas que não permitem a simples dade em que ele se insere e das opções que
extrapolação. Existem interacções entre as ele tomou. Mas convém aqui fazer uma
várias hierarquias de organização que têm importante distinção. Enquanto a cultura
que ser consideradas em todas as direcções. popular é influenciada pela ideologia da
Além disso, a cada nível vão aparecer carac- classe dominante, o cientista (e a ciência)
está ao serviço dessa classe dominante,
teres novos, desconhecidos do nível prece-
fornecendo-lhe conhecimento e tecnologia
dente. Quando a existência de um cromos-
para o desenvolvimento da capacidade in-
soma Y extra, num cariótipo humano, é dustrial e, não raramente, fornecendo-lhe
apontada como a causa do comportamento argumentos que fortalecem a ideologia ne-
criminal do indivíduo que o contém (Jacobs, cessária à manutenção da ordem estabele-
1956) está-se a cometer um erro científico, cida. tÉ este aspecto que leva Lewontin
porque o estado actual da genética mostra- (1976) a falar no «determinisrno biológico
-nos que a complexidade das interacções na como arma social)).
acção génica não se compadece com expli- Penso que o que caracteriza a actividade
cações tão simplistas; por outro lado, a humana é a dinâmica da sua criatividade,
noção de comportamento criminal é estra- a evolução cultural que, ainda que possibi-
nha à genética e varia de acordo com as litada pela estrutura biológica, a ultrapassa.
sociedades. As características do comporta- Uma natureza humana com carácter estático
mento e das sociedades humanas, tendo sem e universal não existe. A condição humana
dúvida um suporte biológico, são fenóme- só pode ser entendida na sua dinâmica em
nos iminentemente culturais. Como diz referência ao tempo e ao espaço; só poderá
Ruffié (1976) ((vivemos ainda num equí- ser explicada pelas interacções entre todos
voco ancestral, que consiste em confundir o os níveis hierárquicos de organização, sa-
biológico com o cultural e que nos leva a lientando o que lhe é único, e não pelos
transpor arbitrariamente, para o domínio seus componentes. No dizer de Cooper
social, um certo número de leis da biologia. (1978) «a “natureza humana” é fictícia por-
que, por mais que tentemos, nunca podemos
Um outro aspecto implícito nas afirma- repetir-nos-cada regresso é a um novo
ções de Darlington e Herrnstein, entre ou-
lugar)).
tros, é já de carácter filosófico. Consiste em
explicar o todo pela soma algébrica das suas
partes sem atender às interacções que ocor- REFERÊNCIAS
rem entre elas, nem às características espe-
cíficas dessa unidade que é o todo. Para CARLISLE, C. L. (1918). «The causes of depen-
concretizar, diria que a noção de célula é dency based on a survey of Oneida County».
enriquecida pelo conhecimento que a análise State of New York State Board of Charities,
Eugenics and Social Welfare Bulletin, 15:
dos seus constituintes permite; mas o soma- 459-60.
tório desses constituintes, só por si, jamais COOPER, D. (1978). A Linguagem da Loucura.
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l v wesa universidade
UMA COLECCÇÃO DIRIGIDA
A ESTUDANTES E PROFISSIONAIS
DE TODOS OS RAMOS
DAS CIENCIAS
A Reprodução -
Elementos para
uma Teoria do Sistema de Ensino
P. BOURDIEU e J . 4 . PAÇÇERON
Psicoses Infantis
S. LEBOVICI, D. WIDLüCHER, C. KOUPERNIK
e outro8
Morfologia do Conto
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F. LAPLANTTNE
Sobre a Psicanálise
H. EY. D. WIDLüCHER. R. HERALD e outro.
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