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Procurando Metatron ou a desalienação da criatura:

Paralelismos entre a Cabala e o Marxismo


Looking for Metatron or the dealienation of the creature:
parallels between Kabbalah and Marxism

airan milititsky aguiar


Graduado em História pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul e em Ciências Sociais pela Universidade
Federal do Rio Grande do Sul. Mestre em História pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul.

resumo O presente trabalho visa formar homologias abstract The main purpose of the present paper is to
entre duas configurações culturais distintas: o establish a few homologies between two different cultural
marxismo e o misticismo judaico. Não se procura partir frameworks: Marxism and Jewish mysticism. I do not try to
de uma base empírica, no sentido de estudar qualquer ground it upon an empirical basis, in order to analyze any kind
tipo real de confluência ou afinidade eletiva entre of a real confluence or elective affinity between these two
essas duas configurações. Procura-se, sim, ver as configurations. All the efforts are directed to look for the
similitudes de forma e conteúdo que foram constatadas similarities of both form and content that I could apprehend
durante o aprofundamento das considerações de while digging deeper across considerations of Michael Löwy`s
Michael Löwy em seu livro Redenção e Utopia. arguments presented in his book, Redemption and Utopia.

palavras- chave Marx; Comunismo; Cabala; Luria. keywords Marx; Communism; Kabbalah; Luria.

Conhecemos a história de um autômato construído de tal modo que podia responder a cada
lance de um jogador de xadrez com um contralance, que lhe assegurava a vitória. Um bone-
co vestido em trajes turcos, com um narguilé na boca, sentava-se diante do tabuleiro, colo-
cado numa grande mesa. Um sistema de espelhos criava a ilusão de que a mesa era total-
mente visível, em seus pormenores. Na realidade, um anão corcunda se escondia nela, um
mestre no xadrez, que dirigia com cordéis a mão do fantoche. Podemos imaginar uma con-
trapartida filosófica desse mecanismo. O boneco chamado “materialismo histórico” ganhará
sempre. Ele pode enfrentar qualquer desafio, desde que tome a seu serviço a teologia. Hoje,
ela é reconhecidamente pequena e feia e não ousa mostrar-se.
Walter Benjamin, Sobre o Conceito de História.

Introdução
Segundo a tradição judaica, Metatron é um anjo serafim, tido como “o Anjo Supremo”,
“Porta-voz Divino”. Visto como mediador de Deus com a humanidade, é o anjo da
morte, mencionado em algumas passagens do Talmud1 como escrivão divino. Tradicio-
nalmente é associado à ascensão de Enoque aos céus, quando este é elevado à categoria
de “primeiro dos anjos”, “príncipe da face ou presença divina”. Em sua transformação
para Metatron é posto, por Deus, em um trono ao lado do Trono da Glória. (Scho-
lem, 1995, p. 74) Visto como ocupante da posição mais alta entre as criaturas criadas,
ele não chega a superar o abismo criado pela religião. O que lhe permite esta ascensão

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é a revelação de Deus e de seu Trono, cujo véu tece turais, não redutível à determinação causal dire-
a imagem de todas as coisas que preexistem desde ta ou à “influência” no sentido tradicional. Trata-se,
o dia da criação. (Scholem, 1995, p.79) a partir de uma certa analogia estrutural, de um
A superação da alienação ou da separação com movimento de convergência, de atração recípro-
o criador pode ter como modelo alegórico esta mi- ca, de confluência ativa, de combinação capaz
tologia. Cabe ressaltar que, segundo Abbagnano de chegar até a fusão. (Löwy, 1989, p.13)
(1982, p. 24), o termo alienação foi usado na Idade
Média para indicar um grau de ascensão mística Escrutinando a trajetória do conceito, advindo
para Deus. A transposição da clivagem estabeleci- da alquimia, ele chega à formulação em Weber, em
da pela religião ou pelo processo histórico, para especial na obra A Ética Protestante e o Espírito
Marx, constitui-se no retorno a uma unidade pri- do Capitalismo (Weber, 2000, p. 62). Utilizando-
mordial, porém num patamar superior. A tradição -se da edição em alemão, ele aponta que a constru-
mística judaica, em especial a escola de Safed, atri- ção argumentativa de Weber passa da metáfora pa-
bui a esta restituição a reconfiguração de um ho- ra o conceito.
mem, enquanto ser cósmico superior, inclusive, a Na busca de fundar um estatuto metodológico
Metraton (Scholem, 1995, p. 312); na teoria para a afinidade eletiva, Löwy constrói quatro ní-
marxista, fala-se na formação de um homem total. veis dessa relação dialética:
O presente trabalho visa estabelecer homologias 1. Afinidade pura e simples, homologia
entre duas configurações culturais distintas: o mar- estrutural. Momento estático: cria a
xismo e o misticismo judaico. Não se procura par- possibilidade, mas não a necessidade de uma
tir de uma base empírica, no sentido de estudar convergência ativa. A transformação da
qualquer tipo de confluência ou afinidade eletiva potência em ato depende de condições
entre essas duas configurações que possa ser veri- históricas concretas.
ficada a partir de dados históricos. Procura-se, sim, 2. Eleição, atração recíproca. Mútua escolha ativa
apreender as similitudes de forma e conteúdo que das duas configurações socioculturais. Início
foram constatadas durante o aprofundamento das da dinamização da afinidade. Neste nível, ou
considerações de Michael Löwy em seu livro Re- na passagem ao próximo, é que se encontra a
denção e Utopia. afinidade eletiva entre A Ética Protestante e o
Nesta obra o autor propõe analisar um “fundo Espírito do Capitalismo, segundo Löwy.
comum” na produção da intelectualidade judaico- 3. Articulação. Pode resultar em diferentes ligas:
-libertária da Europa Central. Nesse sentido, pro- a) simbiose cultural;
cura empreender a construção de um estatuto me- b) fusão parcial e
todológico para o conceito de afinidade eletiva, c) fusão total.
oriundo da obra de Max Weber, bem como de 4. Figura nova.
Goethe e de alguns elementos de Mannheim. Löwy
entende afinidade eletiva como: A hipótese geral de Löwy é de que a obra de
autores como Walter Benjamin, Georg Lukács, Mar-
um tipo particular de relação dialética que se es- tin Buber, entre outros, apresentam em comum
tabelece entre duas configurações sociais ou cul- um fundo cultural neo-romântico e, numa relação

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de afinidade eletiva, uma dimensão messiânica ju- Dos pares análogos de conceitos aqui trabalha-
daica e uma dimensão utópico-libertária. Mesmo dos pretende-se somente constatar a possibilidade
que a “burguesia assimilada judaica” mantivesse de uma convergência entre as duas configurações
apenas pequenos elos com o judaísmo, em alguns culturais. Ou seja, dentro do estatuto metodológi-
rituais como o “Dia do Perdão”, existia um forte co estipulado por Michael Löwy fica-se no primei-
processo de secularização. Para a intelectualidade ro grau – a afinidade pura e simples, o momento
judaica, o retorno ao judaísmo e ao messianismo estático. Os pares a serem trabalhados são:
era o equivalente ao retorno ao passado medieval, 1. Golem e Capital;
à idade de ouro do romantismo alemão. 2. Tikun e Comunismo;
Extrapolando as hipóteses e teses de Löwy, este 3. Galut e Alienação.
estudo visa constatar outras possibilidades de sim- O vocabulário proveniente da teoria marxista
bioses culturais, homologias estruturais e isomor- é conhecido e reconhecido no campo das ciências
fismos entre o misticismo judaico e o marxismo. sociais. No entanto, o vocabulário oriundo do mis-
Trabalhar-se-á fundamentalmente com três pa- ticismo judaico é pouco conhecido, sendo justa
res de analogias entre o marxismo e o misticismo uma breve apresentação.
judaico, nas quais devem ser levadas em conta, Os conceitos de Galut e Tikun são oriundos do
guardadas as devidas proporções, as orientações de misticismo da Cabala Luriana. Originada pelo mís-
Pierre Bourdieu ao analisar o texto clássico de Er- tico Isaac Luria, nascido em Jerusalém no ano de
win Panofsky Arquitetura Gótica e Pensamento 1534 e falecido em Safed por volta de 1572, é um
Escolástico: complicado sistema no qual Deus desenvolve a sua
própria personalidade antropomorficamente.
O Paralelismo entre a evolução da arte gótica e Este processo de autoprodução de Deus não
a evolução do pensamento escolástico no perío- tem fim “Nele”. Certas partes da restituição são
do que tem início em 1130-1140 e se prolonga tarefas do homem. Em certa medida, Luria assume
aproximadamente até 1270 só pode aparecer se, uma criação de Deus pelo homem, pois é o ho-
“colocando entre parênteses as aparências feno- mem que dá a Deus sua entronização completa.
menais”, dedicarmo-nos às analogias ocultas en- O processo do Tikun (literalmente restauração)
tre os princípios da organização lógica da esco- refere-se exclusivamente a uma re-harmonização.
lástica e os princípios da construção da arquite- No processo teogônico houve um desequilíbrio e
tura gótica. (...) Ao renunciar, dessa forma, às um consequente acidente espalhou pelo mundo
aparências de prova, que são suficientes para o centelhas de energia criadora, que contem tanto o
intuicionismo, ou às pequenas provas circunstan- bem quanto o mal – a causa do desequilíbrio. Deus
ciadas, inspiradoras de confiança mas redutoras, é incapaz de reordenar essas centelhas espalhadas
que constituem o deleite do positivismo, Panofsky em todas as esferas do universo. Cabe ao homem
é levado a associar um principio oculto, habitus essa tarefa.
ou “força formadora de hábitos”, a convergência Junto à incorporação do Tikun nesse sistema
histórica que é objeto de pesquisa. (Bourdieu, inovador do misticismo judaico, ocorre uma res-
1999, p. 228) significação de um dos principais conceitos judai-
co: o Galut. Galut é, literalmente, diáspora. No

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entanto a diáspora passa a ser entendida como uma tanto, entende-se aqui que o que define sua maior
tática para a grande estratégia do Tikun. A Galut correspondência à cabala é o desejo consciente de
é uma separação necessária nessa escatologia. fazer na terra um mundo novo, desde que defini-
O Golem é uma lenda tradicional do folclore das particularmente as devidas consciências. Tal
judaico. Constitui-se no ser de barro feito por um como a cabala quer conhecer o caminho para a
Rabino, versado em assuntos cabalísticos. Este ser divindade, para o desconhecido, a complexa unio
é evocado e criado pelo rabino para lhe auxiliar mística, a fim de realizar o Tikun, Marx quer co-
na defesa do gueto. Ao mesmo tempo o Golem nhecer as formas que compõem o capitalismo e
demonstra-se perigoso, portando a possibilidade suas inter-­relações dialéticas a fim de possibilitar
da destruição do gueto ou até mesmo do rabino. a revolução. A consciência almejada pelo marxis-
É esse repertório advindo da tradição mística e mo é a consciência não alienada. Pode-se utilizar
folclórica judaica que é equiparado, mutatis mu- do mesmo conceito para com a cabala lurianica?
tandis, aos conceitos clássicos do marxismo, de Antecipando a resposta: ambas buscam uma espe-
comunismo, alienação e capital. Desde já, deve-se cífica consciência não alienada. Todavia, a aliena-
advertir que a presente pesquisa não busca provar ção da cabala é entre homem e o desconhecido,
ou mesmo refutar as hipóteses, aventadas desde o Deus; no marxismo a alienação é entre o homem
século XIX, da influência judaica no pensamento e si mesmo, seu trabalho e a natureza.
de Marx. O que é apresentado é a constatação de Outras analogias entre o marxismo e a história
que há paridades entre essas duas configurações judaica foram feitas por intelectuais, ao longo do
culturais, que possuem um desejo comum de cons- século XX, sem entrar no terreno do misticismo.
truir um mundo novo. Exemplo da existência dessa perspectiva, com in-
Trata-se da relação entre dois sistemas de pen- teressantes teses sobre a confluência e até mesmo
samento, portanto o material empírico em questão da influência do messianismo no pensamento mar-
consiste nas ideias objetivadas na forma de textos, xiano, é Erich Fromm. Em seu célebre O Conceito
divididos em dois blocos principais: a Cabala Lu- Marxista de Homem desenvolve uma série de ar-
riana e os textos de Marx. Do corpus documental gumentos sobre a relação do marxismo e dimen-
investigado, procedeu-se a uma leitura estrutural sões religiosas judaicas, entre outras. Nas suas pri-
buscando evidências textuais que confirmassem ou meiras páginas, Fromm afirma:
refutassem as hipóteses. Os dados obtidos foram
trabalhados pelo método de classificação analítica A meta de Marx era a emancipação espiritual do
e crítica do conteúdo, demonstrando homologias homem, sua libertação dos grilhões do determi-
apresentadas na construção final do texto. nismo econômico, sua reintegração como ser
O que se busca esgrimir é que, apesar de múl- humano, sua aptidão para encontrar a unidade
tiplas diferenças entre configurações culturais co- e a harmonia com seus semelhantes e com a
mo o pensamento marxista e a cabala, estas confi- natureza. A filosofia de Marx foi, em linguagem
gurações podem conter semelhanças estruturais secular, não-teística, um novo e radical passo à
inegáveis. Poder-se-ia definir as correspondências frente na tradição do messianismo profético.
e paralelismos entre a cabala e o marxismo enquan- (Fromm, 1970, p. 15)
to mera correspondência formal, literária. No en-

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Fromm foi muito perspicaz na análise dentro De forma semelhante a apresentada neste tra-
dessa chave. Ele alude também à correspondência balho, Fromm vê correspondências entre os obje-
entre processo histórico de alienação-desalienação tivos do messianismo profético e a realização do
e o messianismo. comunismo (socialismo para Fromm):

Marx está fundamentalmente interessado na eman- O socialismo, para Marx, é uma sociedade que
cipação do homem como individuo, na superação permite a efetivação da essência do homem su-
da alienação, na restauração da capacidade de- perando sua alienação. É nada mais nada menos
le para relacionar-se inteiramente com seus se- que a criação das condições para o homem ver-
melhantes e com a natureza; que a filosofia de dadeiramente livre, racional, ativo e independen-
Marx constitui um existencialismo espiritual em te; é a consecução do objetivo profético: a des-
linguagem secular e, por força desta qualidade truição dos ídolos. (Fromm, 1970, p.64)
espiritual, opõe-se a prática materialista e à te-
nuamente disfarçada filosofia materialista de nos- Fromm, ao analisar as diversas semelhanças,
sa época. A meta de Marx, o socialismo baseado aponta que a diferença entre as duas configurações
em sua teoria do homem, é essencialmente o mes- sociais não é tanto seu conteúdo ou sua lógica,
sianismo profético expresso em linguagem do mas sua linguagem:
século XIX. (Fromm, 1970, p.16)
Não quer tudo isso dizer que o socialismo de Marx
Mesmo que não adentrando a lógica e ao con- é a concretização dos mais profundos impulsos
teúdo do messianismo tipicamente judaico, Fromm religiosos comuns às grandes religiões humanis-
chega a considerações muito semelhantes às tecidas tas do passado? De fato, é o que sucede, se en-
no transcurso do presente trabalho. A ideia de que tendermos que Marx, à semelhança de Hegel e
o objetivo do messianismo e da filosofia de Marx de muitos outros, exprime sua preocupação com
possuem inegáveis semelhanças é uma. Fromm che- a alma do homem, não em linguagem teísta, mas
ga a considerações interessantes a partir do que filosófica. (Fromm, 1970, p.66)
define como conceito marxista de homem:
Pode-se contestar a possibilidade de o marxis-
Para Spinoza, Goethe, Hegel, assim como para Marx, mo ser um messianismo secularizado, ou expresso
o homem só está vivo na medida em que é produ- em linguagem filosófica do século XIX. No entan-
tivo, na medida em que abarca o mundo exterior no to, o que se buscou esgrimir ao longo do presente
ato de manifestar seus próprios poderes humanos trabalho é o inegável isomorfismo que estas duas
específicos e de abarcar o mundo com estes. Na configurações culturais possuem.
medida em que o homem não é produtivo, na me-
dida em que é receptivo e passivo, ele não é nada, O Golem e O Capital
está morto. Neste processo produtivo, o homem
realiza sua própria essência, retorna à sua própria Grandes homens realizavam antigamente grandes
essência, o que, em linguagem teológica, nada mais milagres. Certa vez, quando nossos inimigos as-
é que seu retorno a Deus. (Fromm, 1970, p.38) saltavam o gueto de Praga, e preparavam-se pa-

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ra estuprar as mulheres, assar as crianças e tru- décima-segunda, foi expulso e saiu do Paraíso,
cidar o resto, quando o fim parecia irremediável, segundo está escrito em Salmos 49:13: E Adão
o grande rabino Loeb largou a Guemara, saiu à não fica em glória uma noite. (Scholem, 2006,
rua, aproximou-se do primeiro monte de lama p. 193)
diante da casa do mestre-escola e moldou uma
figura de barro. Soprou dentro do nariz do golem, Nesse sentido, o golem é um estágio da criação
– e este começou a mexer-se; depois, segredou- do homem ou, extrapolando, da criação das coi-
-lhe o Nome no ouvido, e o nosso golem deixou sas. No entanto, não vai ser apenas esse sentido
o gueto. (I. L. Peretz, O Golem) que a palavra pode ter durante a sua história no
judaísmo: golem passará a designar, sobretudo, uma
O limite do capital é o próprio capital. (Karl Marx) criatura criada pela Criatura que, ao criá-la, cria-
turiza-se ainda mais.
A tradição judaica possui inúmeros mitos. Um O filme homônimo de 1920 produzido na Ale-
dos mais conhecidos é o do Golem. Narrado por manha, por Paul Wegener, um dos clássicos do ex-
inúmeros autores, entre eles I. L. Peretz (1966), a pressionismo alemão, apresenta a lenda ambien-
ideia de Golem constitui um vasto repertório, que tando-a em Praga,2 Hungria, no século XVI. Os
possui inúmeras variações. No entanto, o essencial judeus encontravam-se reduzidos em um gueto. À
permanece o mesmo. noite o Rabino previu, através da astrologia, a ir-
A primeira aparição do termo, simultaneamen- rupção de uma catástrofe sobre os judeus. Imedia-
te sua única exposição na Bíblia, é no Salmo 139:16: tamente põe-se a fazer um Golem, pois as condi-
“Teus olhos viram um golem em mim, em Teu li- ções cósmicas o permitiam. Enquanto trabalhava
vro todos os elementos foram escritos: os dias em na sua criatura, o gueto recebe um decreto imperial
que eles foram formados, e não um deles”, segun- expulsando os judeus. O rabino Loew, entretanto,
do Scholem (2006), nesse trecho, com significado havia realizado o mapa cósmico do imperador e
de amorfo. Desse modo, Adão é um ser amorfo previsto seu futuro. Com essa prerrogativa, pediu
até que o pleroma o anime. Descrevendo as pri- ao imperador que lhe concedesse uma audiência.
meiras horas de Adão, um trecho talmúdico relata: Neste caso, o Golem foi utilizado para impressio-
nar o imperador.
Aba bar Hanina disse: O dia tinha doze horas. Na Desde sua feitura, o Golem já demonstrara sua
primeira hora a terra foi amontoada; na segunda, imperfeição, não obedecendo completamente ao
ela se tornou um golem, uma massa ainda infor- seu criador, demonstrando seu caráter contraditó-
me; na terceira, seus membros foram estendidos; rio: feito para auxiliar, ao mesmo tempo ele era
na quarta, a alma foi colocada nele; na quinta, perigoso.
ficou de pé; na sexta, deu nomes (a todas as coi- Concedendo-lhe a audiência, o imperador so-
sas vivas); na sétima, Eva lhe foi dada para com- licita que o Rabino entretenha a corte com suas
panheira; na oitava, os dois deitaram-se na cama “artes mágicas”. O rabino ruma à Corte juntamen-
e quando a deixaram eram quatro; na nona, a te com seu Golem e é recebido para se apresentar
proibição lhe foi comunicada; na décima, ele a durante o Festival das Rosas. Ao chegar é solicita-
transgrediu; na décima-primeira, foi julgado; na do a apresentar um milagre. O rabino diz: “mos-

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trarei a história de nosso povo e os nossos patriar- ce ser dominado pelo Golem, pela coisa que criou.
cas. E se dão valor às vossas vidas, ninguém deve A vontade ou o poder do Golem, da coisa criada,
falar ou sorrir”. está acima da vontade e poder de seu criador; co-
Imediatamente a Corte se põe às gargalhadas mo a vontade final de Deus, conforme a escola de
com a aparição de Moisés em um tipo de “feitiço Safed, sua plena realização depende da vontade e
cinematográfico”. O rabino realiza uma nova ma- da capacidade do homem reformar o mundo, rea-
gia, o teto do palácio começa a ruir. O imperador, lizar o Tikun.
então, suplica para que o rabino salve sua vida, as- Scholem aponta a formulação do Golem peri-
sim perdoaria os judeus. Loew ordena ao Golem goso, tendo início na Polônia do século XVII. Des-
sustentar o teto que iria desabar sobre a cabeça da taca o seguinte relato de 1674, de Christoph Arnold:
corte, fazendo, assim, o imperador anular o decreto.
Após o sucesso em impressionar o imperador, Depois de recitar certas preces e observar certos
Loew tenta desanimar o Golem, retirando a palavra dias de jejum, fazem eles de barro a figura de um
verdade (emet) de seu peito. O Golem levanta a mão homem, e depois de pronunciarem sobre ela schem
contra seu criador negando-se a ser desanimado, hameforash, a figura adquire vida. E embora a
obrigando o rabino a ludibriá-lo para tal, parecen- imagem em si não saiba falar, ela entende e obe-
do muitas vezes impotente perante a coisa que criou. dece; entre os judeus poloneses ela executa toda
Nessa forma da lenda, assim como em outras espécie de serviços caseiros, mas não lhe é per-
anteriores e posteriores, o Rabino aliena-se no Go- mitido deixar a casa. Sobre a testa da imagem,
lem, e ao criá-lo não mais se identifica com sua escrevem: emet, isto é, verdade. Mas uma imagem
criatura. O Golem revolta-se ou desobedece a seu desse tipo cresce dia a dia; conquanto muito pe-
criador. É, assim, ao mesmo tempo a possibilidade quena no começo, acaba ficando maior do que
positiva, da salvação do gueto, e a possibilidade todas as outras pessoas da casa. A fim de tirar-
negativa, da destruição do gueto. A criatura, ao ser -lhe a força, que por fim se torna uma ameaça
criada, carrega em si a imperfeição de seu criador. para todos dentro da casa, eles apagam rapida-
Este, já criado imperfeito, separado na Criação, mente a letra alef da palavra emet sobre a testa,
consciente mais imperfeito no ato de criar, mais ficando apenas a palavra met, que significa mor-
separado, portanto de seu Criador, Deus. te. Feito isso o golem desmorona a dissolve-se
Portanto, o Golem está para o homem como no barro ou no lodo que fora antes... Dizem que
o homem está para Deus. Dentro da mística judai- um baal schem, na Polônia, chamado rabi Elias,
ca, sobretudo na escola de Safed, Deus, ao se ma- fez um golem que ficou tão alto que o rabi não
nifestar, não consegue resolver sozinho o processo: conseguia mais alcançar a testa dele para apagar
a criatura imperfeita é que deve dar o toque final a letra aleph. Pensou então num ardil, isto é, que
à Criação, e entronizar definitivamente o Criador. o golem, sendo seu criado, devia tirar-lhe as bo-
Parece que esta escola tinha pruridos em relação a tas, supondo que, tão logo o golem se abaixasse,
esse tipo de magia, conhecia seu poder destruidor. apagaria rapidamente a letra. E assim aconteceu,
Ao criar o Golem, ao se manifestar, ao criar as mas quando o golem se desfez em barro, todo
coisas, criar seu mundo, o homem não consegue seu peso caiu em cima do rabi, que estava num
resolver completamente o processo, pois este pare- banco, e o esmagou. (Scholem, 2006, p.236)

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Essa formulação torna-se interessante pelo fato O trabalhador se torna tanto mais pobre quanto
do Golem crescer ilimitadamente, tornando-se ca- mais riqueza produz, quanto mais a sua produção
da vez mais estranho ao seu criador, e por sua di- aumenta em poder e extensão. O trabalhador se
mensão, ao ser desanimado, soterrar o próprio cria- torna uma mercadoria tão mais abstrata quanto
dor. O Golem tem por limite o próprio Golem. mais mercadorias cria. Com a valorização do mun-
No filme, é a pureza da criança que possibilita de- do das coisas aumenta em proporção direta a
sanimar a criatura. O Golem é um poder que se desvalorização do mundo dos homens. O traba-
torna estranho, coercitivo, externo e independente, lho não produz somente mercadorias; ele produz
um poder que deve ser extirpado da coisa criada a si mesmo e ao trabalhador como uma merca-
por seu criador. doria, e isto na medida em que produz, de fato,
Marx, ao elaborar a tese do trabalho alienado mercadorias em geral. (Marx, 2008, p.80)
– a gênese do capital –, parte do seguinte pressupos-
to exposto nos Manuscritos Econômico-Filosóficos: O trabalho, o poder do homem em transfor-
mar a natureza, cria o produto do trabalho, indis-
Não nos desloquemos como [faz] o economista pensável à vida humana – os bens, as roupas, os
nacional quando quer esclarecer [algo], a um es- alimentos, as ferramentas – e, ao mesmo tempo,
tado primitivo imaginário. Um tal estado primitivo, um produto que se apresenta como se fosse algo
que nada explica. Ele simplesmente empurra a exterior, estranho e opressor ao seu produtor – que
questão para uma região nebulosa, cinzenta. Su- desconstitui o seu produtor. Marx explica:
põe na forma de fato, do acontecimento, aquilo
que deveria deduzir, notadamente pela relação Este fato nada mais exprime, senão: objeto que
necessária entre duas coisas, por exemplo entre o trabalho produz, seu produto, se lhe defronta
divisão do trabalho e troca. Assim o teólogo ex- como um ser estranho, como um poder indepen-
plica a origem do mal pelo pecado original, isto dente do produtor. O produto do trabalho é o
é, supõe como um fato dado e acabado, na forma trabalho que se fixou num objeto, fez-se coisa, é
da história, o que deveria explicar. Nós partiremos a objetivação do trabalho. A efetivação do traba-
de um fato nacional-econômico, presente. (Marx, lho é sua objetivação. Essa efetivação do trabalho
2008, p.80) aparece ao estado nacional-econômico como de-
sefetivação do trabalhador, a objetivação como
Marx aponta que sua exposição tomará como perda do objeto e servidão ao objeto, a apropria-
base de explicação uma situação histórica concre- ção como estranhamento, como alienação. (Marx,
ta. Desse modo, o método marxiano já é esboçado 2008, p.80)
nos Manuscritos e leva em conta certa ontologia
do ser, a natureza da existência social historica- Desta forma, quanto mais o homem produz
mente determinada. Esta ontologia é a do ser alie- (cria) mais ele é sujeitado, mais ele é oprimido pe-
nado, apartado de si mesmo, clivado, mais aparta- lo mundo das coisas em que foi co-artífice. O tra-
do, ainda, pelas coisas que produz: a ontologia do balho, alienado, faz do produto do trabalho o al-
ser na civilização industrial. Nesse sentido, Marx goz de seu produtor; sujeita-se, portanto, o produ-
prossegue: tor ao objeto de produção/criação.

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A efetivação do trabalho tanto aparece como de- Evidencia-se, neste trecho do Capitulo Inédito
sefetivação que o trabalhador é desefetivado até d’O Capital, uma das características fundamentais
morrer de fome. A objetivação tanto aparece como do processo necessário de alienação. Além de a ob-
perda do objeto que o trabalhador é despojado dos jetivação do trabalho criar um objeto que se torna
objetos mais necessários não somente à vida, mas estranho, que se opõe a seu produtor, este objeto
também dos objetos do trabalho. Sim, o trabalho se personifica ou se torna um fetiche. Como Marx
mesmo se torna um objeto, do qual o trabalhador aponta, o produto do trabalho parece possuir von-
só pode se apossar com os maiores esforços e com tade e almas próprias, alheias à vontade do produ-
mais extraordinárias interrupções. A apropriação tor – algo como, já apontado anteriormente, a trans-
do objeto tanto aparece como estranhamento que, ferência de um poder mágico, que o homem não
quanto mais objetos o trabalhador produz, tanto domina, dando vida às coisas produzidas. Essas
menos pode possuir e tanto mais fica sob o domínio coisas passam a oprimir e até a comprar o produ-
do seu produto, do capital. (Marx, 2008, p.80-81) tor/criador.
Sendo assim, pode-se inferir certo isomorfismo
Poder-se-ia objetar que este tipo de formulação a essas duas configurações, que partem da premissa
concerne apenas ao momento de juventude de Marx. na qual o objeto criado é criado por um poder apar-
O trabalho realizado por Lucien Sève, entretanto, tado de si. Existe, portanto, no ato de feitura do
esclarece a pretensa ruptura com o conceito de alie- objeto, a transferência de um poder que não é reco-
nação, apontando que tal perspectiva jamais aban- nhecido pelo produtor, pelo criador. A criatura, o
donou Marx. O vocabulário da alienação se faz Golem, é o produto da criação da Criatura, separa-
presente nos estudos preparatórios, Grundrisse, bem da do Criador assim como o trabalhador, apartado
como ao próprio O Capital: de si, se objetifica no capital. Em ambas a criatura/
trabalhador criaturiza-se/aliena-se ainda mais ao criar.
[o que] imprime às condições de trabalho o ca- Este poder transferido para a coisa no ato de pro-
racter de capital, não é a natureza do dinheiro, duzir/criar oprime o sujeito da produção/criação.
das mercadorias e dos valores de uso materiais Portanto toda a discussão sobre esta homologia re-
enquanto meio de subsistência e meios de pro- sume-se ao conceito de Alienação: a fonte do poder.
dução; é o facto deste dinheiro e estas mercado-
rias, estes meios de produção e estes meios de Uma epistemologia do reencontro
subsistência se apresentarem como forças autô-
nomas, personificadas pelos seus proprietários em Ah, se ao te conhecer
face à capacidade de trabalho, despojada de to- Dei pra sonhar, fiz tantos desvarios
da a riqueza material; o facto das condições ma- Rompi com o mundo, queimei meus navios
teriais indispensáveis à realização do trabalho se Me diz pra onde é que inda posso ir
terem tornado estranhas ao operário e, o que é Eu te Amo, Chico Buarque de Hollanda.
mais, aparecerem como fetiches dotados de uma
vontade e de uma alma próprias; o facto, enfim, O conceito de alienação em Marx possui várias
das mercadorias aparecerem como compradoras singularidades. A mais interessante para o presen-
de pessoas. (Marx apud Sève, 1975, p. 59-60) te trabalho é a necessidade que Marx teve de reali-

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zar, ao longo de seus estudos, inúmeras analogias certo sentido, o segredo da acumulação primitiva
entre a alienação econômica e a alienação religiosa. é justamente esta condição do trabalhador que
Mesmo em suas obras da maturidade como O Ca-
pital, a analogia religiosa é evocada para esclarecer não possua senão a sua força pessoal, o trabalho
utilizações econômicas do conceito bem como co- no estado de potência, enquanto que todas as
rolários de questões econômicas. De certa forma, condições exteriores requeridas para dar corpo
a teoria da alienação em Marx busca também ser a esta potência, a matéria e os instrumentos de
uma teoria das formas religiosas e de sua necessi- trabalho necessários ao exercício útil do trabalho,
dade. Como aponta o trecho abaixo d’O Capital: o poder de dispor de víveres indispensáveis à
conservação da força operária e à sua conversão
[...] em geral, o reflexo religioso do mundo real só em movimento produtivo, tudo isso se incorpora
poderá desaparecer quando as condições do tra- do outro lado. No fundo do sistema capitalista
balho e da vida prática oferecerem ao homem existe, portanto, a separação radical do produtor
relações transparentes e racionais com seus se- e dos meios de produção. Esta separação repro-
melhantes e com a natureza. A vida social, cuja duz-se numa escala progressiva, logo que o sis-
produção e relações que implica formam a base, tema capitalista se estabelece; mas, como aque-
só será liberta da nuvem mística que lhe oculta o la forma, a base deste, ele não saberia estabele-
aspecto, no dia em que nela se manifestar a obra cer-se sem ela [grifo meu]. (Marx apud Sève,
de homens livremente associados, agindo cons- 1975, p. 55)
cientemente e senhores de seu próprio movimen-
to social. Mas isto exige na sociedade um con- Essa separação, essa alienação necessária que se
junto de condições de existência material que resolve depois de um longo desenvolvimento, de
não podem ser senão o produto de um longo e inúmeras e dolorosas dores do parto, é condição
doloroso desenvolvimento. [grifo meu] (Marx, da sua superação. Ela não é arbitrária, mas sim or-
1968, p. 88) gânica e necessária ao processo histórico em geral
que culmina no comunismo.
Neste sentido, a fase histórica presente, o capi- Assim sendo, o período em que vivemos pode
talismo, é marcada por ser um período de neces- ser entendido como a sujeição do trabalho vivo ao
sária alienação no trabalho e consequentemente trabalho morto3 ou, como ainda coloca Marx, do
em seu reflexo religioso. Esse período se faz neces- trabalho atraente pelo forçado. Essa caracterização,
sário a fim de que se desenvolvam plenamente as do período necessário de alienação do trabalho,
potencialidades produtivas do gênero humano. É tem como particularidade o que buscamos anali-
esse pleno desenvolvimento que possibilita a base sar anteriormente, o capital entendido enquanto
real na qual o trabalho livremente associado, o co- um Golem: uma criatura criada pela Criatura que,
munismo, vem a ser sua superação, ou negação da ao criá-la, criaturiza-se ainda mais. Na terminolo-
negação. O reflexo religioso da alienação econô- gia marxiana, o capital, criado pelo trabalhador, e
mica é eliminado junto ao processo histórico de as relações que este impõe ao trabalhador, o coisi-
desalienação, mas este somente pode vir a ser su- ficam, reificando o trabalho. Portanto, é dentro
perado pelas condições criadas por ele mesmo. Em das condições de pleno desenvolvimento desta alie-

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nação que a teoria marxiana da revolução implica variadas localizações. “E este é o segredo por
na superação desta separação. A revolução não é que Israel está fadado a ser escravizado por to-
um ato de vontade num aqui e agora, ela é o re- dos os gentios do mundo: a fim de que possa
sultado de um longo e penoso processo no qual o elevar aquelas centelhas que também caíram en-
homem deve incidir. tre eles... E por isso era necessário que Israel se
Essa concepção possui um paralelismo com o espalhasse pelos quatro ventos a fim de levantar
messianismo judaico, à medida que nesse também tudo”. (Scholem, 1995, p.286-287)
há uma separação longa, o Galut, dolorosa e ne-
cessária para que haja no fim uma re-harmoniza- Estas ideias básicas da Cabala Luriana pos-
ção: o Tikun. suem correspondências com o pensamento mar-
Sinteticamente, a ideia de Tikun é a reconsti- xista. Essa escatologia cabalista é homológica à
tuição da harmonia quebrada no plano humano, forma em que Marx pensa o processo histórico
com a queda de Adão ao comer o fruto da árvore em geral. A Galut, esse momento necessário pelo
do conhecimento, ou a entronização final de Deus. qual passa o povo judeu, é ocupada, mutatis mu-
Gershom Scholem explica: tandis, no sistema marxista pela categoria com-
plexa de alienação:
O processo pelo qual Deus concebe, produz e
Se desenvolve a Si mesmo não chega à conclu- A unidade originária entre trabalhador e condições
são final em Deus. Certas partes do processo de de trabalho (abstraindo a relação esclavagista
restituição são outorgadas ao homem. Nem todas em que o próprio trabalhador pertence às condi-
as luzes mantidas em cativeiro pelos poderes das ções objetivas de trabalho) tem duas formas prin-
trevas se libertam por seus próprios esforços; é cipais: a comunidade asiática (comunismo natu-
o homem quem acrescenta o toque final ao sem- ral) e a pequena agricultura familiar (com a indús-
blante divino; é ele quem completa a entronização tria doméstica a ela ligada) sob uma forma ou
de Deus, o Rei e o criador místico de todas as outra. As duas formas são formas infantis e igual-
coisas, em Seu próprio Reino do Céu; é ele quem mente pouco capazes de desenvolver o trabalho
dá ao Criador de todas as coisas a Sua configu- como trabalho social, e a produtividade do traba-
ração final! (Scholem, 1995, p. 305-306) lho social. Donde a necessidade da separação,
a ruptura, da oposição entre trabalho e proprie-
Essa concepção, ao atribuir essa tarefa ao ho- dade (a saber, a propriedade das condições de
mem, traz consigo uma nova significação para o produção). A forma extrema desta ruptura, onde
exílio, para a diáspora judaica, a Galut. Segundo ao mesmo tempo as forças produtivas do traba-
Scholem, Luria ressignifica a Galut: lho social conhecem o seu maior desenvolvimen-
to, é a forma do capital. Só sobre a base mate-
Anteriormente fora considerado (...) quer um cas- rial que ela cria e mediante as revoluções pelas
tigo pelos pecados de Israel, quer uma provação quais passam, no processo desta criação, a clas-
para fé de Israel. Agora ainda é tudo isso, mas se operária e toda a sociedade pode ser repro-
intrinsecamente é uma missão: seu propósito é o duzida a unidade original. [grifo meu] (Marx apud
de reerguer as centelhas caídas de todas as suas Sève, 1975, p. 66-67)

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Assim, vê-se que nas duas perspectivas, tanto cada vez mais se agravam, são partes necessárias, fun-
na Cabala Luriana quanto no marxismo, o proces- damentais para sua superação. Marx, ao descrever a
so histórico, seja ideal ou real, ocorre através de alienação enquanto divisão do trabalho, afirma:
um necessário divórcio, para chegar a um patamar
superior. Mesmo que não coincidindo em conteú- Essa alienação para usarmos um termo compreen-
do, estas duas configurações culturais distintas coin- sível aos filósofos, só pode ser superada, eviden-
cidem notavelmente em forma. temente, sob dois pressupostos práticos. Para
O drama do exílio é levado na Cabala Luriana que ela se torne um poder “insuportável”, quer
às últimas consequências. Chega-se a formular o ato dizer, um poder contra o qual se faz uma revolu-
da criação como exilio da própria divindade para ção, é preciso que ela tenha produzido a massa
criar o espaço da criação (tzimtzum) (Scholem, da humanidade como absolutamente “sem pro-
1995, p.292). Scholem resume esta perspectiva: priedade”... (Marx; Engels, 2007, p.38)

A existência e o destino de Israel, com toda sua A Cabala Luriana tem como contexto a expul-
terrível realidade, com todo seu complicado dra- são dos judeus da Espanha, o que é considerado
ma de sempre renovada vocação e sempre re- um aprofundamento de exílio, ademais de agravar
novada culpa, são fundamentalmente um símbo- o quadro social das massas judaicas. Pois para Scho-
lo do verdadeiro estado de toda existência, inclu- lem a escatologia da Cabala Luriana é a prenun-
sive – embora isto raramente fosse dito sem re- ciada através da própria história mundana:
servas – existência divina. Justamente porque a
existência real de Israel é tão completamente uma O processo intrínseco, extramundano do Tikun,
experiência de exílio, ela é, ao mesmo tempo, simbolicamente descrito como nascimento da
uma experiência simbólica e transparente. Assim, personalidade de Deus, corresponde ao proces-
no seu aspecto mítico, o exílio de Israel deixa de so de história mundana. O processo histórico e
ser apenas um castigo por erros cometidos ou sua alma mais secreta, o ato religioso do judeu,
uma prova de fé. Torna-se algo maior e mais pro- preparam o caminho para a restituição final de
fundo, uma missão simbólica. No decurso do seu todas as luzes e centelhas espalhadas e exiladas.
exílio, Israel deve ir a toda parte, a cada um dos (Scholem, 1995, p. 306).
cantos do mundo, pois em todo lugar há uma
centelha de Schehiná à espera de ser descober- Scholem (1995b, p.21) reflete sobre o êxito des-
ta, apanhada e restaurada por um ato religioso. sa nova concepção:
Assim, assaz surpreendentemente, ainda signifi-
cativamente ancorada no centro de uma gnose porque ofereceu uma resposta válida aos gran-
profundamente judaica, emerge a ideia do exílio des problemas da época. A uma geração para
como uma missão. (Scholem, 2006, p. 140) a qual os fatos do exílio e a precariedade da
existência nele haviam se tornado um problema
O que se percebe nessas duas configurações, tan- sobremodo recente e cruel, o cabalismo podia
to no esforço científico quanto no místico, que o dar uma resposta de uma amplitude e visão
sofrimento, as duras condições de existência, que incomparáveis. A resposta cabalística iluminou

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o significado do exílio e da redenção e escla- O comunismo não é para nós um estado de coi-
receu a situação histórica impar de Israel [dos sas que deve ser instaurado, um Ideal para qual
judeus] dentro do contexto da própria criação... a realidade deverá se direcionar. Chamamos de
(Scholem, 1995b, p.21) comunismo o movimento real que supera o esta-
do de coisas atual. As condições de movimento
Da mesma forma, a concepção marxista do [devem ser julgadas segundo a própria realidade
movimento histórico e a atribuição de uma po- efetiva] resultam dos pressupostos atualmente
tencialidade transformadora à massa trabalhado- existentes. (Marx; Engels, 2007, p. 38)
ra que se formava, ofereceu uma resposta válida
para a situação cada vez mais precária do prole- Assim como o povo de Israel deve se espalhar
tariado. Nessa concepção da história, a restituição por todo mundo, Galut, a revolução e o comunis-
em um patamar superior não se faz senão às cus- mo, para Marx, também são acontecimentos ne-
tas de um longo, doloroso e necessário sofrimen- cessariamente histórico-mundiais.
to, de um divórcio cada vez maior entre trabalha-
dor e propriedade. O aprofundamento necessário O comunismo, empiricamente, apenas é possível
da alienação encontra um paralelo na concepção como ação “repentina” e simultânea dos povos
cabalista, na qual a realização do Tikun necessita dominantes, o que pressupõe o desenvolvimento
de uma radicalização do exílio, dos sofrimentos, universal da força produtiva e o intercambio mun-
chegando às últimas consequências no exílio da dial associado a esse desenvolvimento. (Marx;
alma e até mesmo de deus. Como o próprio Marx Engels, 2007, p. 38)
afirmava que economistas, como Sismondi, não
compreendiam é Mais adiante Marx conclui:

que o desenvolvimento das capacidades do gê- O proletariado só pode, portanto, existir histórico-­
nero humano, embora se faça primeiro à custa mundialmente, assim como o comunismo; sua ação
da maioria dos indivíduos humanos e de classes só pode se dar como existência “histórico-mundial”;
inteiras de homens, acaba por quebrar este an- a existência histórico-mundial dos indivíduos, ou se-
tagonismo e por coincidir com o desenvolvimen- ja, existência dos indivíduos diretamente vinculada
to do individuo singular, que o desenvolvimento à história mundial” (Marx; Engels, 2007, p. 39)
superior do indivíduo não se obtém senão me-
diante um processo histórico em que os indiví- O que aproxima essas duas configurações é o
duos são sacrificados...” (Marx apud Sève, desejo e a concepção da possibilidade de reparar
1975, p.68). um contato original, construindo assim um mun-
do novo, seja entre homem e o Criador através de
Marx ainda coloca, de forma análoga a cabala, atos espirituais, seja entre o homem e as condições
sua perspectiva revolucionária. Marx não postula de trabalho, através da práxis revolucionária; seja o
o comunismo como uma ideia a ser concretizada fim da pré-história humana para Marx, seja o mun-
mas como o movimento histórico real, o comu- do da supressão da mácula, simbolizada pela tira-
nismo é o telos de sua escatologia. nia e pela opressão, para o messianismo judaico.

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À guisa de uma possível conclusão próprio movimento de pensamento das duas con-
figurações culturais e seus maiores representantes.
A miséria religiosa é, de um lado, a expressão da Em síntese, as duas configurações culturais têm
miséria real e, de outro, o protesto contra ela. A seu telos em uma superação, em uma mudança ra-
religião é o soluço da criatura oprimida, o coração dical na ordem do mundo dos homens. O messia-
de um mundo sem coração, o espírito de uma si- nismo cabalista da escola luriana estabelece a pas-
tuação carente de espirito. É o ópio do povo. (Marx, sagem do mundo do caos para o mundo da har-
Karl. Crítica à Filosofia do Direito de Hegel) monia (olam ha tohu e olam ha tikun), o marxis-
mo estabelece a passagem do reino da necessidade
Pensar o processo histórico em Marx na forma para o reino da possibilidade, da pré-história hu-
de um longo processo de alienação e desalienação, mana para a história humana.
bem como a história judaica segundo um longo
processo de exílio e redenção, nos levaram a equi-
parar elementos dessas duas configurações cultu-
rais distintas histórico e culturalmente. notas
Ainda que alguns autores da Europa Central
nitidamente tenham seu esteio teórico também na 1 Registro das discussões rabínicas que pertencem à lei,
cabala e no messianismo, como foi trabalhado bri- ética, costumes e história do judaísmo.
lhantemente por Michael Löwy em seu Redenção 2 A localização é deduzida pelo nome do Rabino, Loew.
e Utopia, o fito do presente trabalho foi levar a Esta história com o Rabino Loew tradicionalmente se
cabo um estudo sobre homologias em nível mais
desenrola como sendo em Praga. Até hoje pessoas vão à
Sinagoga de Praga para ver o Golem em seu sótão,
profundo, mesmo que estas não apareçam dinami-
tornando-o um dos símbolos da cidade, vendido como
zadas em nenhum grupo ou autor. lembrança em diversas lojas de souvenires.
O esforço aqui realizado, apesar de apontar al-
3 A sujeição do trabalhador (trabalho vivo) ao maquinário
gumas possíveis dinamizações dessa analogia, foi
(trabalho morto).
muito mais centrado em estabelecer possibilidades
de existência de uma analogia de pensamento, com
maior profundidade, entre a cabala e o messianis- referências
mo judaico e o marxismo.
Os textos que foram citados e analisados não ABBAGNANO, Nicola. Dicionario de Filosofia. São Paulo:
foram de marxistas, mas sim do próprio Marx, Mestre Jou, 1982
trabalho que Löwy não realizou, focando seu tra- AGUIAR, Airan Milititsky. Saudações para um mundo novo:
balho na intelectualidade judaica da Europa Cen- o Clube de Cultura e o progressismo judaico em Porto
tral. O que é aqui exposto é que esta convergência Alegre (1950-1970). Porto Alegre: Pucrs. 2009
não é somente entre marxistas e o messianismo, BENJAMIN, Walter. Obras Escolhidas: Magia e Técnica,
mas que há a possibilidade de convergência entre Arte e Política: ensaios sobre literatura e história da
o próprio pensamento de Karl Marx e o messia- cultura. São Paulo: Brasiliense, 1986.
nismo judaico. Convergências que vão bastante BOURDIEU, Pierre. A profissão de sociólogo: preliminares
além da mera correspondência formal, chegam ao epistemológicas. Petrópolis: Vozes, 1999.

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FROMM. Erich. O conceito marxista de homem. Rio de


Janeiro: Zahar, 1970.
GOLGHER, Isaias. Evolução histórica do povo judeu:
síntese dos movimentos populares judaicos na
antiguidade. Belo Horizonte: [n.i.], 1951.
LÖWY, Michael. Redenção e utopia: o judaísmo libertário
na Europa Central: um estudo sobre afinidade eletiva. São
Paulo: Companhia das Letras. 1989.
MARX, Karl. O Capital: critica da economia política. Rio de
Janeiro: Civilização Brasileira, 1968, 1v.
MARX, Karl; ENGELS, Friedrich. A ideologia alemã: crítica
da mais recente filosofia alemã em seus representantes
Feuerbach, B. Bauer e Sitirner, e do socialismo alemão em
seus diferentes profetas (1845-1846). São Paulo: Boitempo,
2007.
MARX, Karl. Manuscritos Econômico-Filosóficos. São Paulo:
Boitempo, 2008.
SCHOLEM, Gershom. As grandes correntes da mística
Judaica. São Paulo: Perspectiva, 1995.
SCHOLEM, Gershom. A Cabala e Seu Simbolismo. São
Paulo: Perspectiva. 2006
SCHOLEM, Gershom. Sabatai Tzvi: o messias místico I.
São Paulo: Perspectiva, 1995b.
SÈVE, Lucien. Análises Marxistas da Alienação: Religião e
Economia Política. Lisboa: Estampa, 1975.
WEBER, Max. A Ética Protestante e o Espírito do
Capitalismo. São Paulo: Pioneira, 2000.

Recebido em 08/05/2013
Aceito em 29/07/2013

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