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Resumo
Jacob Boehme, o teósofo teutônico, estrutura a Criação em Três Princípios Divinos:
Ungrund, Fiat e o Mundo Material, uma Trindade que na sua obra é análoga a Deus-
Pai, Deus-Filho e Espiríto Santo. Em consonância com a Teoria Geral do Imaginário,
podemos afirmar que esta visão alinha-se com o conceito de contraditorial, proposto por
Gilbert Durand.Neste trabalho, nos propomos a analisar a imagem “O Globo
Filosófico”, ou “O Olho das Maravilhas da Eternidade”, presente na obra “As quarentas
questões sobre a Alma”, de Boehme. A importância desta estrutura imagética decorre da
profusão simbólica dos conceitos cosmográficos nela presentes, que indicam uma
postura não dicotômica tão cara ao esoterismo ocidental.
Abstract
Jacob Boehme, the Teutonic theosophist, structure Creation in Three Divine Principles:
Ungrund, Fiat and the Material World, a Trinity that in his work is analogous to God the
Father, God the Son and Holy Spirit. In line with the General Theory of the Imaginary,
we can say that this vision aligns with the concept of “contradictious” proposed by
Gilbert Durand. In this work, we propose to analyze the image "The Philosophical
Globe", or "The Eye of Wonders Eternity", present in the work" The forties questions
about the Soul" the Boehme. The importance of this imagery structure follows the
symbolic wealth cosmographic concepts present in it, indicating a non-dichotomous
attitude so dear to Western esotericism.
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Mestrando no Programa de Pós-Graduação em Ciências das Religiões – UFPB, membro do Grupo de
Pesquisa Videlicet - UFPB, membro do Núcleo Paraíba da URCI – Universidade Rose-Croix
Internacional. E-mail: carlosrc23@gmail.com
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Graduado em Segurança Pública pela APMCB-PMPB, pós-graduado em Segurança Pública pelo CEPE-
PMPB, graduado em Direito pela UFCG, graduando em Filosofia pela FESC-FAFIC. E-mail:
jf.segundo@gmail.com
1 Introdução
Tido como um dos maiores gênios metafísicos da humanidade, Jacob Boehme (1575-
1624), apesar de contar apenas com instrução básica, foi responsável por uma profunda
compilação de conhecimentos cosmogônicos e escatológicos. A estrutura de seu
pensamento, ao permitir novas abordagens teológicas e filosóficas da criação e do papel
que a divindade e o homem nela ocupam, enriqueceram a produção simbólica do
imaginário ocidental, enquanto capacidade do indivíduo e da coletividade de dar sentido
ao mundo.
A cosmogonia de Boehme vem propor uma resposta mítica de nossa origem e de dois
dos quatro mitologemas identificados por Durand (1984), para quem, o homem, diante
do positivismo científico, questiona-se sobre: os mistérios da vida, da morte, do amor e
do sofrimento; deste questionamento, o indivíduo forja o mundo, através de imagens e
mitos.
Lidas por Leibiniz, Hegel, Fichte, Schelling e Franz von Baader, as obras de Boehme
influenciaram o pietismo alemão, os quakers ingleses e a geração romântica, razão por
que Hegel o considerou o primeiro autêntico filósofo germânico. A cosmogonia do
sapateiro de Gorlitz serviu também de supedâneo às obras de outros pensadores do
gênero, a exemplo de Louis-Claude de Saint-Martin e Joseph de Maistre. Daí porque
ficou conhecido como “Príncipe dos Filósofos Divinos”.
Conforme ver-se-á a seguir, a teosofia cristã boehmiana é uma corrente esotérica com as
seguintes características: 1) foco na Sabedoria ou Sophia, 2) ênfase na experiência
espiritual direta (mística), 3) cosmologia espiritual e 4) um líder espiritual que orienta o
seu círculo através de cartas e conselhos orais (HANNEGRAFF, 2006, p. 149).
Este trabalho, partindo das constituintes imagéticas contidas no “Globo Filosófico”, ou
“Olho das Maravilhas da Eternidade”, busca, em Boehme, traçar a relação existente
entre o mundo celeste, terrestre e infernal e de como um está contido no outro
(BOEHME, 2007, p. 79).
A análise imagética a seguir tende a retornar da imagem “final” a seus motivadores
primevos, pois as imagens, enquanto mediadoras entre o pensado e o comunicado,
conseguem atribuir uma concretude a conceitos e ideias em si oriundos de profunda
abstração.
2 O sapateiro de Görlitz
Jacob Boehme nasceu em Alt-Seidenberger, Alemanha, em 1575. De origem humilde,
na infância cuidou dos animais da família; escolarizado, aprendeu o ofício de sapateiro.
Estabeleceu-se em Görlitz, onde casou e teve quatro filhos.
Homem de fé, as guerras religiosas de então levaram-no a uma profunda angústia.
Clamou fervorosamente para que Deus lhe esclarecesse o que era a verdade, viu-se
envolvido por uma luz, que o manteve por sete dias em estado de contemplação. O
fenômeno se repetiria em 1600, mas ele nada comentou.
Em 1610, nova iluminação, onde o que vira em parte, revela-se face a face,
contemplando então a criação dos três mundos: foi a inspiração para “A aurora
nascente”, que, através de um amigo, caiu no conhecimento público e levou as
autoridades religiosas a proibirem-no de escrever.
Todavia, em 1619 dá-se a quarta iluminação, que leva Boehme ao perfeito entendimento
das verdades divinas e a escrever “Os três princípios da essência divina”, “A tripla vida
do homem”, “A assinatura das coisas”, “Mysterium Magnum” e outras obras (não mais
ocultou a luz sob o alqueire).
Em razão da aversão do clero luterano à sua obra, que o proibiu de continuar a escrever,
Boehme passou em Dresden seu último ano, retornando a Görlitz tão-somente para lá
falecer (FRANKENBERG, 1994, p. 15-34).
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No original: “The upsurge in spiritual alchemy coincided with the breakdown of religious unity during
the Reformation. Alchemical symbolism provided an ideal framework for individuals seeking new
schemes of salvation both for themselves and the world at large. The books written by Jacob Boehme
illustrate how well alchemical symbolism served spiritual and theosophical ends. Boehme’s writings fuse
alchemical, Paracelsian, hermetic, and kabbalistic themes into a theosophical exhortation to spiritual
rebirth”.
Boehme, por profundas experiências místicas, conseguiu discernir os contornos da
Criação e assim localizar e/ou alocar – entenda-se locus com o mesmo sentido de
centrum – os princípios criativos, o homem, a alma, o céu, o inferno, pelo que,
apresenta em seus escritos uma proposta cosmogônica de marcante abrangência
simbólica, o que lhe é natural, pois dados os quatro portentosos insights que teve:
FONTE: BOEHME, Jacob. A revelação do grande mistério divino. Américo Sommerman (Org.). 3. ed.
São Paulo: Polar, 2007, p. 122.
Embora, assim como em Eliade (2002), deva-se compreender o centro desta estrutura
imagética como o ponto originário do qual todo o universo emana, a escolha do
vernáculo cosmografia para definir a pesquisa se atém ao fato de que o esquema
boehmiano descreve os princípios e qualidades da Criação, num viés eminentemente
cosmogônico. Não há descrição do posicionamento dos astros no espaço, mas como o
universo emanou do invisível para o visível.
O Teutônico define como elemento primordial da criação, o Ungrund, “sem fundo”, o
que remete a uma apreensão parcial do mistério divino pelos qual a Criação emanou do
Nada, do Não-Ser:
O Sem Fundo (Ungrund) é o eterno Nada, mas cria um eterno início como
atração [ou desejo]. Pois no Nada há uma atração por algo, mas como nada
há com que possa criar algo, a própria atração o cria. No entanto, a atração
também é um nada ou apenas uma desejosa busca. Essa é a eterna origem da
magia [divina], que cria em si, onde nada há. (BOEHME, 2007, p. 81)
Oportuno frisar que para os físicos, tal qual no Ungrund, o universo não nasceu de
matéria, mas de um diminuto ponto, com densidade e espaço infinitos, num vazio
quântico em estado de caos indescritível e não regido pelas noções de espaço-tempo.
Nesse sentido, os astrônomos refutam um tempo zero do universo, o qual nasceu do
nada, por si mesmo, sob o efeito da força repulsiva do vazio quântico (FILKIN, 1998).
De acordo com o sapateiro de Görlitz, da força contrativa aprisionada surgiu uma
vontade contrária ao aprisionamento – a força expansiva – e da luta entre elas nasceu a
rotação. Estes três primeiros princípios da Natureza são o seu fundamento. “Posto que
no Nada há uma atração [ou desejo] ela cria em si mesma a Vontade para algo. Essa
Vontade é um espirito, ou pensamento, que sai da atração e busca a atração”
(BOEHME, 2007, p. 83).
Assim, podemos filosofar sobre a boa Vontade única de Deus e dizer que em
si mesmo Ele não pode desejar nada, pois não tem nada em si nem diante de
si que possa dar-lhe algo. Por isso conduz-se para fora de si, à divisibilidade e
ao centrum, a fim de que uma contrariedade possa surgir no que foi emanado,
para que através do mal o Bem possa tornar-se perceptível, efetivo e capaz de
vontade, pois desejará separar-se do mal e retornar à Vontade única de Deus.
(BOEHME, 2007, p. 35)
Fonte: Geheime figuren der rosenkreuzer aus dem 16 tem und 17 tem jahrhundert. Altona: J. D. A.
Eckhardt,1758, s/n.
Já as sete qualidades (também chamadas forças, movimentos, fontes-espíritos, espíritos
e forças) pelos quais Deus se revela são: 1) adstringência ou força contrativa; 2)
amargor ou força expansiva; 3) angústia ou rotação; 4) explosão, ou fogo; 5) luz; 6) som
ou tom; e 7) tangibilidade ou corporeidade. Elas são responsáveis, conforme sua
intensidade, pelos diversos níveis de realidade da manifestação divina. Segundo
Boehme, embora as cite em ordem numérica, elas estão por toda parte e se engendram
mutuamente, de maneira que esta ordenação visa facilitar o entendimento do leitor.
Tecidas estas considerações, explore-se agora o “Olho das Maravilhas”, levando sob a
ótica da Teoria Geral do Imaginário, pela qual, a imagem é matéria do processo pelo
qual a consciência simboliza o mundo percebido (DURAND, 1984).
Apesar de representada em duas dimensões, a imagem retrata uma esfera (sólido
geométrico), cuja borda exterior é o (1) Abismo e em seu ponto central há um coração,
idealização da expansão espaço-temporal dos conceitos apresentados. No interior desta
esfera, há duas semiesferas, oriundas da aparente secção de uma esfera menor (ambas
têm igual tamanho). Na verdade, elas estão dispostas assim, a fim de representar as
qualidades contrárias/complementares da realidade, de modo que à esquerda do
observador representa o 1º Princípio e a seguinte, o 2º, pelo que o Pai (9) se contempla
na criação, na sua Imagem (15) e a Treva (24) está do lado oposto a Deus (33),
separador da luz e das trevas (Gn. 1, 4). Assim, como na concepção monista da Criação,
as imagens refletem-se.
Figura 3 – “Globo Filosófico” ou “o Olho das Maravilhas da Eternidade”, contido
em “Quarenta questões sobre a Alma”, de 1620.
Fonte: BOEHME, Jacob. As quarenta questões sobre a alma. 1. ed. São Paulo: Polar editorial, 2005, p.
57.
5 Conclusões
Na imagética do “Olho das Maravilhas da Eternidade”, Jacob Boehme lançou as bases
de uma nova visão cosmogônica, pela qual as relações entre a criação e o “Criador”
ganharam um novo significado, apreensível ao se levar em conta a dimensão simbólica
dos postulados do sapateiro de Görlitz.
Boehme é sem dúvida um dos mais importantes pensadores místicos, pois, ao conceber
seu sistema, rompeu com os postulados impostos pelas igrejas cristãs e propôs suas
próprias respostas para questões fundamentais da cultura ocidental em seus
mitologemas.
“O Olho das Maravilhas da Eternidade”, até onde esta pesquisa apurou, é a única
gravura elaborada pelo próprio teósofo teutônico, na qual sintetizou a essência de seu
pensamento, onde se destaca a dualidade como condição sine qua non de existência do
universo. Tal é sua atualidade, que o próprio autor esclarece que em duas dimensões
procurou representar algo que é tridimensional – que se trata de um globo e que não
haveria outra imagem ou forma de representar sua cosmogonia –; nisto, é precursor de
ideias hoje em debate nos campos da física e da mecânica quânticas: veja-se a sua
representação da manifestação criadora por expansão, via um crescendum de esferas,
adequada às modernas teorias do surgimento e expansão do cosmos.
No “Olho” também há uma patente escatologia, cujo cerne está na Vontade do homem,
a qual, por óbvio, não foi objeto deste estudo.
Assim como outras expressões simbólicas que ilustram nosso imaginário esotérico
ocidental, o “Olho” dá sua contribuição de forma a sintetizar e amalgamar a abordagem
judaico-cristã dos três elementos que intrigam e instigam o pensar humano (o Homem, a
Natureza e Deus) na sua busca pela essência e finalidade da existência.
REFERÊNCIAS:
______. As quarenta questões sobre a alma. 1. ed. São Paulo: Polar editorial, 2005.
GEHEIME figuren der rosenkreuzer aus dem 16 tem und 17 tem jahrhundert. Altona: J.
D. A. Eckhardt, 1758.