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Auto da Barca do Inferno à lupa

Sapateiro Sapateiro

PCH9LLABID © Porto Editora


Vem um Sapateiro com um avantal, e carre- Sapateiro (S.) – personagem-tipo que representa
gado1 de formas, e chega ao batel infernal, e diz: o povo (os artífices).

O S. apresenta-se com objetos específicos da sua


SAP. Hou da barca! profissão, nomeadamente, um avental e formas de
DIABO Quem vem i? madeira com que moldava os sapatos, que depois
vendia, roubando descaradamente os clientes.
Santo sapateiro honrado!2
Sobre este tipo, leia-se este passo de Mário
310 Como vens tão carregado? Martins: “o S. foi sempre vítima da maledicência
SAP. Mandaram-me vir assi... popular, acusado de roubar em solas e cabedais”.2

E pera onde é a viagem?


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DIABO Pera o lago dos danados. Percurso da personagem:
SAP. Os que morrem confessados,
315 onde têm sua passagem? v. 309 – ironia
DIABO Nom cures de mais linguagem! v. 310 – metáfora (adjetivo utilizado com duplo
Esta é tua barca, esta! sentido: carregado de formas e também com o
4 dinheiro que roubou ao explorar os clientes)
SAP. Arrenegaria eu da festa
v. 313 – eufemismo
e da puta da barcagem5! v. 314 – Argumento de defesa do S.: confessou-se
antes de morrer, logo tinha recebido o perdão dos
320 Como poderá isso ser, seus pecados
vv. 318-319 – cómico de linguagem
confessado e comungado? vv. 320-321 – Argumento de defesa do S.: para
DIABO E tu morreste escomungado: além de se ter confessado, também tinha
nom o quiseste dizer. comungado
vv. 322-323 – argumento de acusação do D.: para
Esperavas de viver;
além de ter roubado o povo durante o exercício da
325 calaste dous mil enganos. sua atividade profissional, mentiu ao confessor e
Tu roubaste bem trint’anos não admitiu todos os roubos
o povo com teu mester6. v. 325 – hipérbole
vv. 326-327 – argumento de acusação do D.
v. 328 – “eramá” – arcaísmo
Embarca, eramá pera ti, v. 329 – “que” = porque; o D. mostra que o lugar do
que há já muito que t’espero! S. é na barca infernal
vv. 330-331 – cómico de situação: o S. diz que não
330 SAP. Pois digo-te que nom quero!
quer entrar e o D. insiste, o que resulta num
DIABO Que te pês de ir, si, si! diálogo quase pueril
SAP. Quantas missas eu ouvi, v. 331 – Ainda que não queiras, hás de ir, sim, sim!
nom me hão elas de prestar? vv. 332-333 – argumento de defesa do S.: assistiu
7 a muitas missas
DIABO Ouvir missa, então roubar –
vv. 334-335 – argumento de acusação do D.: o
335 é caminho per’aqui. comportamento do S. revela falsidade religiosa;
versos sentenciosos

1. carregado: carregado de formas e de pecados. 2. v. 309:


em algumas edições da obra, este verso é atribuído ao
Sapateiro e o seguinte ao Diabo. 3. lago dos danados:
condenados ao Inferno. 4. Arrenegaria: Rejeitaria.
5. barcagem: carga que a barca contém. 6. mester:
profissão. 7. então roubar: e roubar em seguida.

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Sapateiro

SAP. E as ofertas8, que darão? vv. 336-337 – argumento de defesa do S.: o S.


E as horas dos finados9? afirma ter dado muitas esmolas
DIABO E os dinheiros mal levados, vv. 338-339 – Indemnizaste aqueles a quem
que foi da satisfação?10 levaste dinheiro em excesso?; argumento de
acusação do D.: o S. não devolveu o dinheiro que
340 SAP. Ah! Não praza11 ò cordovão12,
levou em demasia
nem à puta da badana13, vv. 340-341 – vocabulário específico do ofício de
se é esta boa traquitana14 sapateiro
em que se vê Joanantão15! vv. 340-344 – cómico de linguagem
v. 343 – O S. refere o seu nome, “Joanantão”.
Apesar de se nomear, como o nome era muito
Ora juro a Deus que é graça! comum na altura, não o individualiza. Continua
a funcionar como personagem-tipo.
Vai-se à barca do Anjo, e diz:

345 Hou da santa caravela, Percurso da personagem:


poderês levar-me nela?
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ANJO A cárrega t’embaraça. v. 345 – personificação
SAP. Nom há mercê que me Deos faça? v. 347 – argumento de acusação do A: o A. refere
Isto uxiquer irá.17 sarcasticamente a “cárrega” no sentido de o S.
estar cheio de pecados; metáfora
350 ANJO Essa barca que lá está
v. 349 – “uxiquer” – arcaísmo
leva quem rouba de praça.18 v. 350 – “Essa barca que lá está” – o A. mostra a
sua desconsideração pela barca do D.
vv. 350-352 – argumento de acusação do A.: o S.
Oh almas embaraçadas19!
rouba
SAP. Ora eu me maravilho
haverdes por grão peguilho20 v. 352 – apóstrofe
355 quatro forminhas cagadas vv. 353-357 – argumento de defesa do S.: as
formas, que representam as suas falhas, não são
que podem bem ir i chantadas21
assim tão grandes; cómico de carácter: ainda
num cantinho desse leito! não se apercebeu da gravidade dos seus atos,
22
ANJO Se tu viveras dereito , continuando a querer levar as formas (= pecados)
elas foram cá escusadas. v. 354 – “peguilho” – arcaísmo
v. 355 – “cagadas” – sujas, usadas
vv. 358-359 – argumento de acusação do A.: o S.
deveria ter vivido de forma honesta

8. ofertas: ofertas de dinheiro em cumprimento de


promessas. 9. v. 337: Orações que se faziam pelas almas
dos defuntos. 10. v. 339: quando é que tu os restituis?
11. praza: permita. 12. cordovão: coiro curtido de cabra
para calçado. 13. badana: pele curtida de ovelha ou de
carneiro para calçado. 14. boa traquitana: barca ordinária.
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15. Joanantão: nome do Sapateiro (fala dele próprio na 3.ª


pessoa). 16. cárrega: carga. 17. v. 349: Irá em qualquer
parte. 18. rouba de praça: descaradamente. 19. almas
embaraçadas: culpadas. 20. grão peguilho: obstáculo,
embaraço. 21. chantadas: metidas, colocadas. 22. dereito:
honestamente.

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Auto da Barca do Inferno à lupa

Assi que determinais

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360 SAP. v. 360-363 – cómico de linguagem: trocadilho com
que vá cozer ò Inferno? o verbo “cozer”: o S. cosia os sapatos, mas no
Inferno irá ser cozido e ficará na ementa infernal
ANJO Escrito estás no caderno
das ementas infernais23.

Torna-se à barca dos danados, e diz:


Percurso da personagem:
SAP. Hou barqueiros! Que aguardais?
365 Vamos, venha a prancha logo vv. 365-367 – resignação final do S.
e levai-me àquele fogo!
Não nos detenhamos mais!

23. ementas infernais: listas dos condenados ao Inferno.

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