Escolar Documentos
Profissional Documentos
Cultura Documentos
A hipótese
darwiniana
da pangênese
Figura 1.
Darwin produziu muitas obras
importantes ao longo de sua
Tendo sido originado a partir de “Variação H. Huxley (1825-1895), colega zoólogo de vida. Além do livro em que
publicou sua teoria evolutiva (A
no estado doméstico” (primeiro capítulo d’A Darwin, encorajou-o a publicar tal hipótese. Origem das Espécies), destaca-se
Origem), a Variação de Animais e Plantas sob E Darwin, assim como o aconselhou Huxley, o livro A Variação de Animais e
Domesticação trata de questões como ‘varie- publicou-a na forma de uma “Hipótese Pro- Plantas sob Domesticação em
dades domésticas produzidas pelo homem visória”, ou seja, uma teoria não definitiva, que publicou sua hipótese de
herança, a “Hipótese Provisória
através de seleção artificial’, ‘o tempo para mas que ele considerava muito provável. da Pangênese”.
domesticação e seleção de variedades de in-
“Alguém mexendo nos seus papéis daqui
teresse’ e ‘porque há mais variação no estado
a meio século vai encontrar a Pangênese
doméstico do que no estado selvagem’. Além
e dizer “Olhe esta maravilhosa antecipa-
de questões acerca da domesticação na evo-
ção de nossas teorias modernas e aquele
lução, Darwin também trata, neste livro, do
idiota estúpido, Huxley, impediu que ele
problema da herança. No capítulo XXVII
a publicasse”. […] Tudo que eu vou dizer
d’A Variação Darwin publica pela primeira
é: publique suas ideias, não tanto na for-
vez a “Hipótese Provisória da Pangênese”,
ma de conclusões definitivas, mas como
nome que recebeu seu modelo de heredita-
desenvolvimentos hipotéticos das únicas
riedade.
pistas que temos no momento”. (Hux-
A primeira versão da hipótese da pangêne- ley para Darwin. 16 de Julho de 1865.
se foi escrita mais de vinte anos antes da sua Darwin Correspondence Database,
publicação n’A Variação. Contudo, ainda em http://www.darwinproject.ac.uk/
1865, Darwin a considerava incompleta. Em entry-4875. Acessado em 06/Mar-
carta datada de 16 de julho de 1865, Thomas ço/2015. Tradução livre dos autores).
O objetivo geral da pangênese era fornecer duzir a si mesmo através de suas partes. De
uma explicação elaborada para o que se co- acordo com esta hipótese, cada unidade do
nhecia na época a respeito dos mecanismos organismo seria capaz de produzir pequenas
responsáveis pelo surgimento e herança da gêmulas que, nutridas apropriadamente, se
variação entre indivíduos dentro de uma multiplicariam e se desenvolveriam em uni-
mesma população. Dentre as ideias de Da- dades semelhantes àquelas nas quais tiveram
rwin a respeito dessas questões estavam dois origem. Após circularem pelo organismo
pressupostos muito populares em sua época durante certo tempo essas unidades, ainda
e que estavam presentes, também, no sistema parcialmente desenvolvidas, acomodar-se-
teórico do naturalista francês Jean-Baptiste -iam nos órgãos reprodutivos, formando o
de Lamarck (1744-1829) na forma de duas embrião. Durante a fertilização, o conjunto
leis – “Uso e desuso” e “Herança dos caracte- de gêmulas de cada progenitor passaria por
res adquiridos”. um processo de associação de modo a iniciar
a formação de um novo indivíduo, o qual
Resumidamente, a hipótese da pangênese
expressaria características de ambos os pais,
(do grego pan- todo e genesis- origem/nas-
explicando, assim, a semelhança entre des-
cimento) era baseada na ideia de que toda
cendentes e parentais (Figura 2).
a organização do corpo era capaz de repro-
Figura 2.
Esquema representando o
processo de geração de novos Outra característica das gêmulas era a dor- épocas do desenvolvimento seriam armaze-
indivíduos, por reprodução mência. As gêmulas poderiam eventualmen- nadas nos órgãos reprodutivos. Desse modo,
sexuada, de acordo com te entrar em estado dormente sendo, então, as mudanças que ocorressem no corpo de
a hipótese da pangênese repassadas por diversas gerações sem se ma- um indivíduo ao longo de sua vida também
darwiniana. O embrião seria o
conjunto de unidades – células, nifestar até que, em dada geração, as caracte- passariam a ser codificadas em parte de suas
ou apenas gêmulas, parcialmente rísticas, codificadas numa gêmula dormente, gêmulas (somente naquelas produzidas
desenvolvidas – liberadas pelo voltassem a ser expressas. Esta propriedade após a mudança ter acontecido), podendo,
corpo do parental ao longo de das gêmulas era capaz de explicar o atavismo portanto, ser passadas aos seus descenden-
todo o seu desenvolvimento.
– reaparecimento de uma característica an- tes. Assim a pangênese corroborava a lei da
cestral numa dada geração após ausente em herança de caracteres adquiridos. Além dos
diversas gerações anteriores. caracteres, o momento em que uma gêmula
passaria a ser expressa estava, também, co-
As gêmulas seriam continuamente produzi-
dificado nela. Isto explicava o aparecimento
das pelo organismo ao longo de toda a vida
de certas características semelhantes em des-
do indivíduo, portanto, gêmulas de todas as
centes e parentais na mesma idade.
Ainda na formação do embrião, as diferentes plamente aceitas nos séculos XVIII e XIX
gêmulas associavam-se em grupos de modo (RODRIGUES, SILVA, 2011). Um paradigma é uma teoria
a formar cada estrutura num tempo e local geral pela qual, em detrimento de
A real discordância entre as teorias dos dois
apropriado. Assim, a pangênese era, também, outras, vemos e interpretamos os
naturalistas diz respeito ao entendimento do dados da realidade (uma forma
capaz de explicar a manifestação de diversas
processo evolutivo. Para Lamarck, o proces- de “viseira conceitual”), ou seja,
anormalidades pela ocorrência de erros nes-
so evolutivo definia-se como uma tendência diferentes paradigmas trazem
sas associações, que provocavam a expressão consigo uma linguagem com a
natural ao aumento de complexidade dos se-
de características em locais do corpo, ou épo- qual descrevemos os dados e uma
res vivos, o que era explicitado nas duas leis forma através da qual fazemos
cas do desenvolvimento, inadequados.
que representavam as verdadeiras novidades nossas observações e organiza-
Todas essas questões que Darwin se propôs do seu sistema teórico – “tendência para o mos nossos experimentos. O ter-
a responder com a hipótese da pangênese es- aumento da complexidade” (1ª lei) e “surgi- mo foi definido assim por Thomas
tavam até então sem uma resolução e eram mento de órgãos em função de necessidades Samuel Kuhn (1922-1996), um
físico estadunidense conhecido
motivo de debate entre os estudiosos da épo- que se fazem sentir e se mantêm” (2ª lei). pelo seu trabalho com a História
ca. Com a pangênese, além de uma só respos- Darwin, por outro lado, não via tendência e Filosofia da Ciência. Seu livro
ta para todas estas perguntas, Darwin forne- alguma na evolução que não fosse aquela da mais conhecido é “A Estrutura das
ceu uma explicação para a origem e natureza transformação da variação intrapopulacional Revoluções Científicas” publicado
em 1962.
da variação (CASTAÑEDA, 1994), item em variação interpopulacional por força da
fundamental para a ratificação de sua teoria seleção natural. Portanto, na teoria evoluti-
evolutiva presente n’A Origem. va darwiniana não havia mais espaço para a
ideia de aumento da complexidade dos seres
AS TEORIAS DE DARWIN vivos. A evolução acontecia sem propósito e A perspectiva materialista
E LAMARCK não estava mais associada ao progresso, visto sustenta que a única coisa da
que os conceitos de melhora e complexidade qual se pode afirmar a existência
A diferença entre as teorias evolutivas de La- tornam-se relativos a determinado tempo, é a matéria, assim, todas
marck e Darwin é apresentada, muitas vezes, as coisas são compostas de
espaço e outro indivíduo (ou espécie) usados matéria e todos os fenômenos
como sendo fundada na discordância entre como referência. Evolução, segundo a con- são o resultado de interações
eles em relação às leis de ‘uso e desuso’ e ‘he- cepção darwinista, definia-se por mudança e materiais. Esta perspectiva se
rança dos caracteres adquiridos’. Contudo, ramificação (Figura 3). opõe ao idealismo que admite
fica claro agora que, no que diz respeito ao a ideia (alma, essência etc.)
mecanismo de produção de variação nova e A teoria darwiniana da evolução rompeu, como base da existência e,
também, com o paradigma fixista ao apre- também, ao dualismo que
ao modo como ela é repassada aos descen- produz dicotomias do tipo corpo
dentes, Darwin e Lamarck tinham algumas sentar a variação numa perspectiva mate- e alma, aparência e essência
ideias muito semelhantes. O que não é sur- rialista. De acordo com Darwin a variação etc. No caso do darwinismo, a
preendente, uma vez que o ‘uso e desuso’ e a nada mais era do que a realidade do mundo perspectiva materialista deixou
natural e, deste modo, negava-se a perspec- de encarar a variação individual
‘herança do adquirido’ eram concepções am-
como estática, o resultado da
expressão imperfeita de uma
essência imaterial ou um ruído
a ser evitado na atividade de
ordenação (classificação) do
mundo vivo. A variação individual
passou a ser encarada como a
realidade do mundo biológico e
o material da evolução. A partir
desta perspectiva materialista,
Darwin pôde entender o
processo de especiação como
um processo de conversão
da variação entre indivíduos,
dentro de uma determinada
população, em variação entre
populações diferentes, no tempo
e no espaço. Ou seja, o processo
de especiação passou a ser
entendido como um processo
de transformação de variação
intrapopulacional em variação
<a href=”http://www.shutterstock.com/gallery-1473677p1.html?cr=00&pl=edit-00”>Giovanni G</a> / <a href=”http://www.shutterstock.com/editorial?cr=00&pl=edit-00”>Shutterstock.com</a>
interpopulacional.
Figura 3.
Esquema representando as
concordâncias entre as ideias de
Darwin e Lamarck, que diziam
respeito a origem da variação e
ao modo como ela era herdada,
HISTÓRIA E NOVIDADE dos e, consequentemente, a hipótese da pan-
assim como as contradições entre
gênese. Weismann convenceu boa parte da
as teorias evolutivas de ambos os NO ENSINO DE BIOLOGIA comunidade científica de sua época, e assim a
naturalistas.
Mesmo em sua época, a “Hipótese Provisó- concepção de herança dos caracteres adquiri-
ria da Pangênese” não obteve o mesmo êxito dos perdeu muito de sua popularidade.
da teoria evolutiva de Darwin. Sua aceitação
pela comunidade científica da época não foi Eventualmente, a pangênese foi desacreditada
unânime, mas apesar das críticas recebidas, e passou a ser considerada como um dos gran-
seu autor manteve-se sempre convicto em re- des equívocos de Darwin, sendo, ainda hoje,
lação à plausibilidade da mesma. historicamente menosprezada e esquecida.
Contudo, podemos dizer que, na época em que
A crítica de maior repercussão para a hipó- foi desenvolvida, a hipótese da pangênese re-
tese de Darwin veio, porém, após sua mor- presentava uma boa resposta para as perguntas
te, com a publicação de August Weismann a que se propôs responder (qual o mecanismo
(1834-1914), em 1893, da teoria da continui- para os efeitos do uso e desuso e para heran-
dade do plasma germinativo. Weismann pro- ça do adquirido, como se dá o atavismo, qual
pôs que somente aquilo que fosse modificado a origem das anormalidades etc.). Ela não foi,
no plasma dos gametas (“germeplasma”) seria simplesmente, uma repetição do senso comum
herdado pelos descendentes. Assim, modi- da comunidade científica a respeito da heredi-
ficações no corpo dos indivíduos (“somato- tariedade naquele tempo. Os mecanismos de
plasma”) durante sua vida não poderiam ser herança apresentados por Darwin eram mais
herdadas. Guiado por sua teoria sobre a here- sofisticados, pois compunham uma hipótese
ditariedade, ele realizou um experimento que heurística que poderia ser adotada como dire-
contradizia a herança dos caracteres adquiri- triz, mesmo que provisória, para o estudo da
hereditariedade. Serviu, por exemplo, para de- tiva do Desenvolvimento). Neste sentido, o
terminar experimentos realizados por Francis projeto darwiniano de unificação evolução/
Galton (1822-1911), primo de Darwin. Os ex- desenvolvimento com sua hipótese provisória
perimentos de Galton envolviam a transfusão da pangênese poderia ser visto como uma es-
sanguínea em coelhos para testar a circulação pécie de prenunciação da Evo-devo.
das gêmulas na corrente sanguínea (STAN-
Como escreveu Ghiselin, “é seguro dizer
FORD, 2006). As explicações de Darwin para
que ela (a hipótese da pangênese) não es-
o problema da hereditariedade estavam, sem
tava errada no sentido de ser falsa, pois
dúvida, de acordo com seu tempo.
não estava tão distante do que nós consi-
Mais do que isso, de acordo com Ghiselin deramos verdade. A ideia de que a evolu-
(GHISELIN, 1975, p.51), a hipótese da pan- ção envolve mudanças nos mecanismos de
gênese era, também, parte do projeto darwi- desenvolvimento é um fato, sua utilidade
niano de unificação do estudo da Evolução somente os imprudentes e desinformados
com o estudo da Embriologia – ramo da Bio- poderiam negar. […] Ainda sim a hipó-
logia do Desenvolvimento que estuda as fases tese provisória me parece ter um grande
de formação e desenvolvimento do embrião. problema: ela era anacrônica. Deu uma
Na época, questões relacionadas ao desenvol- resposta do século IX para uma questão
vimento eram correntemente abordadas em do século XVIII que precisava ser traba-
estudos evolutivos, porém de modo pouco sis- lhada em termos do século XX.” (GHI-
temático. Darwin reconheceu que os estudos SELIN, 1975, p. 55).
embriológicos poderiam trazer esclarecimento
sobre o processo evolutivo, no sentido de que
a variação presente no mundo natural poderia
ser melhor compreendida através do estudo da
morfogênese.
No entanto, a redescoberta dos trabalhos de
Gregor Mendel (1822-1884) logo no início do
século XX promoveu a separação entre Evolu-
ção e Embriologia. A matemática robusta da
genética e a possibilidade de, assim, se testar
a evolução dentro de laboratórios ganhou a
comunidade científica. Com os posteriores tra-
balhos de Ronald Fisher (1890-1962), Sewall
Wright (1889-1988) e John Haldane (1892-
1964) foi estabelecida a Teoria Sintética da
Evolução (TSE), definindo a evolução, pura
e simplesmente, como uma mudança das fre-
quências gênicas em populações naturais (SIL-
VA, 2001).
Apesar de, no século XX, a influência do de-
senvolvimento no processo evolutivo ter sido
negligenciada e, naquele momento, não haver
mais espaço para a discussão de hipóteses como
a da pangênese, hoje, no século XXI, estudos
defendendo a necessidade de se interpretar os
processos evolutivos a partir da perspectiva
do desenvolvimento foram retomados. Graças
às novidades evidenciadas com os avanços da
Biologia Molecular ao longo dos séculos XX
e XXI, surgiu uma nova linha de estudo em
evolução chamada Evo-devo (Biologia Evolu-
Concluímos com este trabalho que a discus- responder elegantemente às mais diversas
são da hipótese da pangênese de Darwin em questões em herança da época e cumprir seu
sala de aula, primeiro, pode trazer esclareci- papel de definir a origem e natureza da varia-
mentos sobre o empreendimento científico. ção e como ela seria herdada, apresentava um
Mostra que algumas ideias não aceitas atu- grande poder heurístico. Hoje, levando em
almente podem ter sido plausíveis em perío- consideração a atual emergência da Evo-devo,
dos históricos anteriores e que as explicações é possível dizer que a pangênese foi, e conti-
dependem do conhecimento que se tem na nua sendo, historicamente injustiçada ao ser
época. Segundo, pode permitir uma melhor apresentada, apenas, como o “erro de Darwin”.
abordagem das semelhanças e diferenças en-
tre as ideias de Darwin e Lamarck ao eviden- REFERÊNCIAS
ciar que um dos principais tipos de herança CASTAÑEDA, A. C. As ideias de herança de
que Darwin queria explicar era a herança de Darwin: suas explicações e sua importância.
caracteres adquiridos, noção defendida tam- Revista da SBHC, v. 11, p. 67-73, 1994.
bém por Lamarck. Darwin Correspondence Database, http://www.
Por fim, com o uso da História da Ciência, darwinproject.ac.uk/entry-4875 acessado
é possível rediscutir o lugar da hipótese da em 06/03/2015).
pangênese na história da Biologia do Desen- DARWIN, C. R. The Power of Movement in
volvimento, da Genética e da Biologia Evo- Plants. London: John Murray, 1880.
lutiva. Afinal, era uma hipótese que, além de DARWIN, C. R. 2002. A Origem das espécies.
Belo Horizonte: Editora Itatiaia, 2012.
Tradução de Eugênio Amado da obra “Ori-
gin of Species”. London: John Murray, 1859.
DARWIN, C. R. The Descent of Man and Selec-
tion in Relation to Sex. London: John Murray,
1871.
DARWIN, C. R. The Expression of the Emotions
in Man and Animals. London: John Murray,
1872.
DARWIN, C. R. The variation of animals and
plants under domestication. London: John
Murray, 1868.
GHISELIN, M. T. The rationale of pangenesis.
Genetics, v. 79, p. 47-57, 1975.
MARTINS, L. A.-C. P. Lamarck e as quatro leis
da variação das espécies. Epistéme. Filosofia e
História da Ciência em Revista, vol. 2, n. 3, p.:
33-54, 1997.
POLIZELLO, A. Modelos microscópicos de
herança no século XIX. Filosofia e História
da Biologia, vol. 7, n. 2, p. 137-155, 2012.
RODRIGUES, R. F. C.; SILVA, E. P. Lamarck:
fatos e boatos. Ciência Hoje, v. 48, n. 285,
p.68-70, 2011.
SILVA, E. P. A short history of evolutionary the-
ory. História, Ciências, Saúde-Manguinhos, v.
8, n. 3, p. 671-687, 2001.
STANFORD, P. K. Darwin’s pangenesis and the
problem of unconceived alternatives. British
Journal for the Philosophy of Science, v. 57, p.
121-144, 2006.