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Filosofia

da Biologia

Paulo C. Abrantes
e colaboradores

Filosofía
de la Biología

Segunda Edição
Editora do PPGFIL-UFRRJ
Núcleo de Lógica e Filosofia da Ciência
Editores: Alessandro Duarte e Robinson Guitarrari
Revisão: Alessandro Duarte e Robinson Guitarrari
Diagramação: Alessandro Duarte e Robinson Guitarrari
Foto na capa: Meyers Konversionlexikon (1888), retirada do wikipedia <https://pt.wikipedia.
org/wiki/Ficheiro:Handskelett_MK1888.png>

Filosofia da biologia [recurso eletrônico] / Paulo C. Abrantes (Org.) – Seropédica, RJ:


PPGFIL-UFRRJ, 2018.
662 p.
ISBN 978-85-68541-04-3
1. Filosofia da biologia. 2. Darwinismo . 3. Cultura, comportamento e evolução. 4.
Evolução e desenvolvimento. I. Título. II. Abrantes, Paulo C.

ISBN 978-85-68541-04-3

9 788568 541043

Creative Commons 2018 Editora do PPGFIL - UFRRJ

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Capítulo
3
Função e explicações funcionais em biologia

Karla Chediak

1 Introdução

A filosofia da biologia trata do conceito de função devido à sua importância na


descrição do comportamento tanto de órgãos, tecidos e glândulas quanto de mecanismos
fisiológicos, como o de retro-alimentação. Entende-se, por exemplo, que a função do
coração é bombear o sangue, bem como que a homeostase é um sistema que tem a
função de realizar a regulação térmica interna dos organismos homeotérmicos.
Compreende-se claramente o significado de função quando se consideram os instru-
mentos e os artefatos, que são objetos construídos para realizar funções e atender a certos
fins especificados pelo homem. Determina-se, nesses casos, com relativa facilidade,
qual é a função do objeto e de suas partes, ao se considerar por que razão eles foram
produzidos. Já com relação às funções naturais, o problema é mais complicado, pois,
à luz da teoria da evolução, não é mais possível fornecer explicações para as funções
presentes nos organismos baseadas na intenção de um agente criador.
No entanto, muitos autores julgam que a ausência de um agente intencional não
significa necessariamente a eliminação do caráter teleológico do conceito de função
natural. Segundo Elliot Sober, uma importante contribuição dada por Darwin foi a
de abordar o conceito de função de modo naturalista, ao invés de eliminar o caráter
teleológico das explicações junto com a eliminação de seu caráter teológico:

Darwin é visto corretamente como um inovador que fez avançar a causa do


materialismo científico. Mas seu efeito sobre as idéias teleológicas foi bem
diferente do de Newton. Ao invés de expurgá-las da biologia, Darwin pode
mostrar como elas poderiam tornar-se inteligíveis em um quadro naturalista
(SOBER, 2000, p. 84).

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2 Teleologia e ciência

Desse modo, as discussões sobre o conceito de função têm como um dos pontos
centrais o problema do seu pretenso caráter teleológico. Pode-se dizer que ações e
comportamentos são teleológicos quando são dirigidos a fins, sendo que a teleologia
presente no mundo natural distingue-se daquela presente na ação ou no comportamento
de um agente por não ser intencional.
De fato, a relação entre o conceito de função e a teleologia foi pensada e defendida
por muitos filósofos, como Platão, Aristóteles, Kant, dentre outros. Como esclarece
André Ariew, já se encontra em Aristóteles uma análise bastante sofisticada do conceito
de função e de sua relação com o conceito de teleologia (ARIEW, 2002, p. 30). No
entanto, quando se considera o domínio atual das ciências naturais, o uso de explicações
funcionais que recorrem à teleologia tem sido colocado em xeque. Particularmente, na
biologia, a associação entre função e teleologia muitas vezes é vista de forma negativa
por se considerar que ela está comprometida necessariamente com alguma forma de
finalismo, direcionismo ou vitalismo, o que seria incompatível com o conceito científico
de evolução dos seres vivos.
As críticas mais recentemente apresentadas à vinculação entre teleologia e função
baseiam-se na forma como as teorias teleológicas fundamentam e justificam a perma-
nência da teleologia nos enunciados científicos. Tais críticas vêm de uma tradição que
remonta a Carl Hempel (1905-1997), a Ernst Nagel (1901-1985) e, mais recentemente,
Robert Cummins. Em geral, essas críticas seguem duas vias: uma que defende a exclusão
dos enunciados teleológicos do domínio da ciência por meio da redução dos enunciados
funcionais aos enunciados não-funcionais, como se pode ver nos trabalhos de Nagel;
e outra que propõe a exclusão dos enunciados teleológicos, procurando, porém, uma
forma não teleológica de compreensão dos enunciados funcionais, como faz Cummins.
Tanto Hempel como Nagel defendem que qualquer explicação para ser considerada
científica deve seguir o modelo nomológico, quer dizer, deve considerar um fenômeno
a partir de sua submissão a leis, seguindo seja o modelo de inferência dedutiva seja o
modelo indutivo de submissão a leis estatísticas (HEMPEL, 1965; NAGEL, 1961). De
acordo com esses autores, explicações funcionais também devem adequar-se a esse
modelo nomológico; do contrário, não poderiam permanecer na esfera das explicações
científicas, pois não há lugar no âmbito da ciência para explicações que recorram a
causas finais, a agentes intencionais ou a princípios vitalistas. Nagel, em sua obra The
structure of science (1961), defende que as explicações produzidas pelas ciências romperam
inteiramente com a doutrina dos fins, ou seja, com a necessidade de se postular um agente
intencional, divino, para dar conta dos fenômenos do mundo natural. No entanto, ele
considera que não se pode romper com essa doutrina e continuar a recorrer a propósitos
e finalismos para tratar dos fatores causais do mundo natural:

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por causa da associação das explicações teleológicas com a doutrina de
que objetivos ou fins da atividade são agentes dinâmicos na sua própria
realização, [a ciência moderna] tende a ver tais explicações como uma espécie
de obscurantismo (NAGEL, 1961, p. 402).

Nagel reconhece que há uma especificidade própria da biologia, apesar de os processos


biológicos serem de natureza físico-química e, por isso, as explicações biológicas que
descrevem as regularidades desses fenômenos não são objeto nem da física nem da
química. Porém, aceitar a especificidade da biologia não implica aceitar que haja modos
especiais de explicação no domínio dessa ciência.
A tese defendida por Nagel é a de que os enunciados teleológicos podem ser con-
vertidos em enunciados não teleológicos, porque não há nada neles que não possa ser
expresso em uma linguagem que siga a causalidade ordinária. Portanto, ainda que se
possa expressar de forma teleológica alguns fenômenos biológicos, isso não significa
que exista uma categoria especial de explicação para tais fenômenos. Por exemplo,
sistemas auto-reguladores, com mecanismos de retro-alimentação negativa, são capazes
de manter e procurar sua estabilidade funcional em situações de alterações ambientais.
Trata-se de sistemas com mecanismos dirigidos a fins (goal directed). Não há diferença
importante entre as organizações teleológicas dos sistemas vivos e as organizações diri-
gidas a fins presentes nos sistemas físicos, de tal maneira que se é possível descrever
o comportamento de um míssil sem se recorrer a enunciados teleológicos. Também
deve ser possível fazê-lo para um sistema vivo com propriedades semelhantes, pois ser
auto-regulável e ter a capacidade de se auto-manter não são características exclusivas
dos sistemas vivos, mas sim propriedades encontradas também em sistemas físicos
(NAGEL, 1961, p. 410).
Com relação ao outro tipo de fenômeno biológico ao qual se aplica o enunciado
teleológico, Nagel mantém a mesma convicção, a saber, a de que ele pode ser traduzido
em um enunciado não teleológico. Consideremos, por exemplo, o enunciado que diz
ser a função da clorofila nas plantas com pigmento verde habilitar essa planta a realizar
a fotossíntese e produzir matéria orgânica. Essa enunciação poderia ser convertida em
outra não teleológica seguindo o seguinte modelo: “Todo sistema S com organização
C e em um ambiente E realiza o processo P. Se S com organização C e ambiente E não
tem A, então S não realiza P. Logo, S com organização C tem de ter A” (NAGEL, 1961, p.
403). Aplicando o modelo ao exemplo da fotossíntese, temos: toda planta verde, com
organização de partes e processos adequados, em presença de dióxido de carbono, água
e luz solar, realiza a fotossíntese. Se a planta não tem clorofila, não realiza a fotossíntese.
Logo, a planta tem de ter clorofila.
É, portanto, com base na analogia entre sistemas vivos e sistemas físicos que Nagel
sustenta a tese de equivalência entre os enunciados teleológicos e os enunciados não
teleológicos, e a consequente tradução de um em outro. A apresentação do enunciado

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teleológico em um modelo dedutivo não é apenas possível, como mostra também que o
enunciado teleológico não diz nada além do que está apresentado nesta forma. Dizer que
a função da clorofila nas plantas é realizar a fotossíntese nada acrescentaria à expressão:
plantas realizam a fotossíntese se e somente se contêm clorofila. Quando a função é
atribuída a uma estrutura, órgão ou comportamento de um organismo, o conteúdo
do enunciado teleológico pode ser transportado para um enunciado não teleológico
que apresenta a condição necessária para a ocorrência desse traço1 ou atividade do
organismo (NAGEL, 1961, p. 405).
A argumentação de Nagel a favor da formulação de modelos dedutivos para substi-
tuir as explicações teleológicas das funções biológicas é bastante convincente a princípio,
mas ela apresenta alguns problemas já apontados por vários autores. Por exemplo,
Nagel considera a clorofila como condição necessária para a existência de fotossíntese
realizada por plantas verdes. Talvez isso até seja verdade neste caso, mas, como ob-
serva Cummins, não seria em outros casos de função, como o do coração. O coração
não é condição necessária para a circulação do sangue nos vertebrados, já que bombas
artificiais também podem cumprir essa função (CUMMINS, 1975, p. 743). Além disso,
há outro problema com a solução de Nagel, pois, como bem o assinalou Larry Wright,
não é possível, através da conversão proposta por Nagel, distinguir-se entre um efeito
funcional e um efeito acidental (WRIGHT, 1973). O coração bombeia sangue e também
produz ruído, mas produzir ruído não é reconhecido como função do coração, embora
esse efeito tenha no coração sua condição necessária.
Assim, o uso de explicações de cunho teleológico em biologia foi criticado, porque
envolveria explicações de natureza teológica e metafísica que, não sendo verificáveis,
não poderiam fazer parte da ciência. Também se mostrou problemático o modo como
a causalidade se apresenta nos enunciados teleológicos, pois explicações teleológicas
recorreriam a eventos futuros, enquanto a explicação causal normal recorreria apenas a
eventos passados. Além disso, criticou-se o uso da linguagem teleológica na biologia
por ela implicar antropomorfismo, através da assimilação da função biológica às funções
dos sistemas intencionais humanos, que envolvem deliberação e consciência.
Essas críticas poderiam ser rebatidas, como afirma Ernst Mayr (1998a). A posição
defendida por esse autor é a de que o uso moderno de enunciados sobre processos
teleológicos, ou seja, processos dirigidos a fins, não implica a aceitação de concepções
teológicas ou conceitos metafísicos; e que as explicações de caráter teleológico usadas
na biologia não entram, de modo nenhum, em conflito com as explicações físicas e
químicas. De fato, o projeto de reduzir explicações teleológicas às não teleológicas falha
porque não há equivalência entre elas, havendo perda de conteúdo semântico nessa
transformação, sendo equivocado supor que dizer: “A tartaruga nada até à praia para
depositar seus ovos” é o mesmo que dizer: “A tartaruga nada até à praia e deposita seus
1
Nota do Org.: o termo ‘traço’ está sendo usado como sinônimo de ‘característica’ neste e nos outros
capítulos desta obra.

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ovos”. Além disso, o fato de ser, de alguma forma, distinta da causalidade ordinária não
significa que a explicação teleológica seja incompatível com ela (MAYR, 1998a, p. 432).
Mayr distingue processos teleomáticos de processos teleonômicos na natureza. Os
primeiros dizem respeito aos fenômenos relacionados com os objetos inanimados que
alcançam um fim apenas em obediência às leis naturais ou físicas. Todo o processo de
evolução cósmica, desde o Big Bang até o presente, ou ainda, uma pedra que chega ao
seu estado final quando alcança o solo seriam fenômenos desse tipo: “Estão dirigidos a
um fim somente de uma forma passiva, automática, são regulados por condições ou
forças externas. Uma vez que o estado final de tais objetos inanimados é alcançado
automaticamente, essas mudanças devem ser designadas como teleomáticas (1998a, p.
437).
O termo “teleonômico” é usado por Mayr no lugar do termo “teleológico” para
designar os processos dirigidos a fins, de modo a se evitar possíveis interpretações
equivocadas. Tais processos caracterizam-se por serem guiados por um programa
e dependerem da existência de um objetivo: “Um processo ou um comportamento
teleonômico é aquele que deve sua direcionalidade para um objetivo à operação de
um programa (MAYR, 1998a, p. 438). Essa constitui uma diferença importante nos
níveis de complexidade da natureza inanimada e da viva. Não encontramos processos
teleonômicos em sistemas estritamente físicos, mas somente nos organismos e nas
máquinas fabricadas pelos homens. Tais processos originam-se ou por seleção natural ou
por meio de um agente intencional da espécie humana. O principal exemplo em biologia
é o programa genético, mas também encontramos esses processos no funcionamento
de órgãos e glândulas, em processos relacionados aos mecanismos de auto-regulação,
como nos mísseis auto-dirigíveis, que possuem mecanismos de propulsão para seguir a
fonte de calor mais próxima.
Distintamente dos que defendem a concepção etiológica de função (que veremos a
seguir), Mayr considera que não é adequado o emprego do termo teleonômico quando
se trata da adaptabilidade dos sistemas biológicos. Para ele, os processos teleonômicos
pertencem ao campo das causas próximas, isto é, das causas que decorrem da natureza
físico-química da atividade biológica e são suscetíveis de uma explicação mecânica.
Essas causas devem ser separadas das causas últimas, que dizem respeito às causas
evolutivas, aos mecanismos de adaptação e de seleção natural. Estes não dizem respeito
aos processos teleonômicos, porque uma coisa é o funcionamento do programa e outra
é a origem dele. A adaptação responde pela origem do programa e, nesse caso, uma
linguagem puramente selecionista seria mais adequada, porque o uso da linguagem
teleológica para explicar as adaptações poderia remeter à antiga ideia de que a evolução
conduz a adaptação em direção à perfeição e ao progresso. Também não se poderia
recorrer à pressão seletiva, pois ela não é uma causa próxima, mas uma causa última,
que explica a construção histórica do programa genético e não explica o programa no seu
funcionamento. A seleção, sustenta Mayr, atua sobre eventos passados, como mutações

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e recombinações, e não planeja o futuro; por isso, o seu resultado só pode ser obtido de
modo a posteriori:

Um sistema é capaz de levar a cabo processos teleonômicos, porque foi


programado para funcionar dessa maneira. A origem do programa, que
é responsável pela adaptabilidade do sistema, é um tema completamente
distinto. Combinar o funcionamento em curso com a história da origem em
uma só explicação torna confusas as definições (1998a, p. 448).

E embora haja uma história evolutiva que originou o programa, essa história é irrelevante
para a análise funcional dos processos teleonômicos. Basta, diz ele, que se saiba que
existe um programa que seja causalmente responsável pelos processos orientados a um
fim (1998a, p. 439).

3 Concepção etiológica de função

Apesar da crítica que Mayr, entre outros, dirige à análise de função biológica a
partir da associação entre teleologia e adaptação, tal abordagem encontra hoje muitos
defensores, como Ruth Millikan, Karen Neander, Paul Griffiths e Peter Godfrey-Smith,
para citar somente alguns. Essa abordagem é denominada concepção etiológica ou
histórica de função. Em geral, considera-se que essa concepção de função foi apresentada
e desenvolvida originalmente por Larry Wright, em seu artigo Functions, de 1973.
Wright explica os enunciados do tipo — a função de X é Y — a partir de duas
considerações. A primeira diz que “X está lá porque realiza Y”. Essa fórmula apresenta
a forma das explicações funcionais, estabelecendo a condição necessária para que X
tenha a função Y, descartando a acidentalidade. A segunda diz: “Y é a consequência
(ou o resultado) de X estar lá”. Ela mostra que Y é o efeito de X, pois não basta dizer
que X está lá porque realiza Y, é necessário completar dizendo que Y é o resultado ou
a consequência do fato de X estar lá. Porém, o fato de Y ser o efeito de X está entre
as causas de X: “Em uma explicação funcional, as consequências de X estar lá (onde
ele está, etc) têm de ser invocadas para explicar por que X está lá” (WRIGHT, 1973, p.
161-162).
A formulação de Wright já foi bastante modificada e discutida desde que ele publicou
seu artigo, e há hoje diferenças sutis entre as diversas análises de função disponíveis;
porém, alguns pontos podem ser considerados comuns a qualquer análise comprometida
com uma abordagem etiológica.
Em primeiro lugar, a concepção etiológica de função sustenta que as explicações
funcionais relevantes para a biologia devem dar conta de por que certo traço, órgão ou
comportamento está presente no sistema ao qual ele pertence, cumprindo certo papel
funcional. O que se defende é que a análise que considera somente as disposições atuais
de um traço — ou seja, o comportamento que ele apresenta dadas certas condições —,

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não é suficiente para dar conta do conceito de função biológica, porque não nos fornece
elementos para distinguir entre função e efeito. Por exemplo, o coração tem a função
de bombear o sangue, permitindo, entre outras coisas, o transporte de oxigênio e a
eliminação de gás carbônico, mas o coração também produz ruídos. Esse é um efeito
que acompanha o funcionamento do coração, mas não é sua função. Uma análise das
disposições atuais também não permite distinguir entre papel funcional e acidental de
um traço. Por exemplo, o nariz tem algumas funções, como a respiratória e olfativa.
Eventualmente, ele também pode servir para apoiar óculos, mas esse é um efeito aciden-
tal, não é sua função. Uma análise puramente disposicional tampouco explica os casos
de mau funcionamento ou de não funcionamento de um traço, que ainda assim conserva
sua função. O coração tem a função de bombear o sangue, porém se por alguma razão
ele não o faz, isso não altera a sua função.
Em segundo lugar, a concepção etiológica considera que há um aspecto normativo no
conceito de função biológica, e que somente quando se reconhece esse caráter normativo
se é capaz de compreender o sentido pleno de uma explicação funcional em biologia.
Dizer que o coração deve bombear o sangue significa dizer que é isso que se espera
que ele faça, considerando seu funcionamento normal, e não significa dizer que se está
prescrevendo o seu comportamento. A noção de normatividade, a que a concepção
etiológica recorre, não é prescritiva. Há diferentes modos de se entender a atribuição de
normatividade nesse sentido não prescritivo. Pode-se considerar, por exemplo, apenas
uma avaliação estatística, ou seja, de frequência. Supondo-se, como de fato é o caso,
que, frequentemente, trovão e relâmpago vêm acompanhados de chuva, pode-se dizer
quando troveja e lampeja: “deve chover daqui a pouco”. Não há nada de prescritivo
na enunciação desta frase, expressando-se apenas a indicação do que é provável que
ocorra. Embora seja usual, essa forma de atribuição de normatividade não é aquela em
que se baseia a concepção etiológica, quando defende a aplicação de normatividade
ao conceito de função. Isso porque é possível se conceber que certo comportamento
de um traço possa estar ocorrendo com frequência e, ainda assim, isso não definir
sua função. Considere um vírus que atacou uma dada população e se espalhou nela,
alterando, assim, o sistema metabólico de seus indivíduos de modo a promover sua
própria sobrevivência e reprodução. Embora os órgãos desses indivíduos infectados
tenham adquirido novos papéis, não seria correto dizer que tais papéis são funções
desses órgãos, ainda que tenham se tornado, estatisticamente, mais frequentes.
Desse modo, para a concepção etiológica, a normatividade é uma característica
essencial das funções biológicas e ela está fundada na abordagem teleológica de função.
O conceito normativo de função é teleológico e esse aspecto teleológico permite explicar
por que certo traço está presente nos organismos de uma dada população, cumprindo
certa função.
Os enunciados teleológicos parecem inverter a ordem causal normal, em que as
causas são anteriores ou simultâneas aos efeitos. Porém, o fato de ser, de algum modo,

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distinta da causalidade ordinária não quer dizer que a explicação teleológica seja in-
compatível com ela, podendo-se considerar que só aparentemente ela viola a ordem
causal normal. No caso do comportamento intencional, por exemplo, não há problema
em reconhecer que não há aí violação da causalidade normal. Embora se recorra aos
fins para explicar os meios que os produziram, a determinação dos fins é dada com
anterioridade, através das intenções dos agentes. As intenções podem ser consideradas
causas eficientes do comportamento. Nesse caso, explicações de natureza teleológica
poderiam ser compreendidas como casos especiais de explicações causais normais.
Há quem defenda que só é correto recorrer-se à teleologia nos casos em que existam
agentes intencionais e que seria inteiramente equivocado fazê-lo em outros contextos.
Porém, a proposta da concepção etiológica de função é a de sustentar que não só é
possível, mas é necessário utilizar a teleologia nos enunciados de função em biologia,
embora, nesse caso, não se recorra a nenhum agente intencional. Tais explicações apelam
a outro tipo de fundamento. Elas explicam a presença de certo traço funcional em um
sistema biológico como sendo o resultado da evolução por seleção natural. As funções
que os traços apresentam hoje são consideradas o efeito de uma história evolutiva,
sendo que essa história mesma não é teleológica. De fato, a ação da seleção natural não
é dirigida para nenhum fim, já que se trata de um processo cego, automático e sem
propósito, que não tem intenção nem planos para o futuro. A seleção natural opera
segundo um mecanismo bastante simples, requerendo apenas variação em aptidão,
hereditariedade, reprodução diferenciada e tempo suficiente para que ocorram seus
efeitos cumulativos. De nenhum modo ela entra em conflito com a causalidade normal,
de tipo eficiente.
O caráter teleológico de função, reivindicado pela concepção etiológica, só pode
ser determinado uma vez que se acumulem os efeitos passados da seleção natural,
portanto de modo a posteriori. Tais efeitos dizem respeito ao traço enquanto tipo (type) e
não enquanto espécime (token), pois operam sobre populações e não sobre indivíduos
(NEANDER, 1999, p. 130). Considera-se que a função desempenhada pelos traços
presentes nos indivíduos de certa população contribuiu causalmente para a replicação
do traço e sua fixação nessa população. Desse modo, pode-se recorrer a essa função para
explicar a presença do traço, porque foi um processo causal que promoveu a geração e
fixação do traço (NEANDER, 1999, p.132).
Para a concepção etiológica, certo traço possui função por ter sido selecionado, no
passado, pela seleção natural, graças à função que desempenhou no sistema a que
pertencia e que teria feito diferença, numa dada população, em termos de sobrevivência
e reprodução, ou seja, em termos de aptidão (fitness)2 . Embora não seja a única força
2
Conforme esclarece Paul Griffiths, “a aptidão (fitness) de um organismo pode ser considerada como
sendo a medida de sua capacidade de sobreviver e reproduzir em relação à capacidade de sobreviver e
reproduzir de outros tipos competindo em uma dada população”. A relação existente entre aptidão e
função deve-se ao fato de que “funções próprias de um traço são aqueles efeitos do traço que foram
componentes da aptidão de seus ancestrais. São efeitos em virtude dos quais o traço foi selecionado,

110
determinante no processo evolutivo, a seleção natural fornece, para os defensores da
abordagem etiológica, o único critério para se distinguir o que é funcional do que não é.
Contrariamente à concepção etiológica, que baseia sua interpretação da função bio-
lógica na correlação entre função e teleologia, Robert Cummins defende a proposta de
excluir os enunciados teleológicos das ciências naturais, particularmente da biologia,
conservando, porém, uma análise específica dos enunciados funcionais. A tese defen-
dida por ele é, atualmente, uma das principais propostas de interpretação do conceito
de função biológica e das explicações funcionais.

4 Concepção analítica de função

Cummins, em seu artigo Functional analysis, afirma que Nagel embora tenha criticado
de forma correta a concepção teleológica de função, não compreendeu de fato a natureza
da explicação envolvendo enunciados funcionais. A proposta de reduzir enunciados
teleológicos a enunciados causais não alcançou seu objetivo por não fornecer uma com-
preensão satisfatória dos enunciados funcionais e de seu papel. Desse modo, Cummins
propõe uma abordagem analítica do conceito de função, e afirma que as explicações
funcionais respondem à questão de se saber qual é o papel desempenhado por um
elemento, parte de um sistema, na capacidade e atividade total do sistema a que ele
pertence. Esse modelo analítico não se aplica apenas às funções biológicas. Ao contrário,
ele se aplica muito bem a sistemas não vivos, como linhas de produção de sistemas
computacionais e diagramas em eletrônica, conforme nos diz o autor:

Diagramas esquemáticos em eletrônica fornecem outra ilustração evidente.


Desde que cada símbolo represente um objeto físico qualquer tendo certa
capacidade, um diagrama esquemático de um dispositivo complexo constitui
uma análise das capacidades eletrônicas do dispositivo como um todo em
termos das capacidades de seus componentes (CUMMINS, 1975, p.760).

Porém, o modelo analítico se aplica, também, às análises funcionais em organismos, uma


vez que um organismo pode ser abordado a partir do conjunto de sistemas que contém,
tais como o sistema digestivo, circulatório, respiratório etc. Cada sistema apresenta
capacidades específicas e é composto por um conjunto de elementos com disposições
específicas, que desempenham funções importantes para a realização da atividade geral
do sistema. A capacidade de um sistema realizar suas atividades é, assim, determinada
a partir da análise das funções realizadas por seus componentes, que, no caso dos
organismos vivos, são os órgãos, estruturas e sistemas (1975, p. 761).
A abordagem analítica requer a determinação do sistema considerado, pois é somente
do ponto de vista da capacidade do sistema como um todo que é possível se fazer a análise
efeitos pelos quais ele é uma adaptação” (GRIFFITHS, 1993, p. 412).

111
funcional. Porém, não existe, para Cummins, nada que determine a princípio qual é o
sistema que deve ser considerado. No caso da função biológica, não é necessário sequer
que haja o compromisso de que o sistema contribua para a manutenção e propagação de
seus possuidores: “O que esse exemplo mostra [o autor refere-se à capacidade de voar
das aves] é que a análise funcional pode ser conduzida de modo apropriado em biologia
de forma inteiramente independente de considerações evolutivas” (CUMMINS, 1975, p.
756). Considera-se apenas a relação entre o traço que tem a função e sua contribuição
para o sistema de que faz parte. É necessário, portanto, que, antes de se estabelecer a
função de um traço qualquer, determine-se qual sistema está sendo considerado. Em
relação ao clássico exemplo do coração, cuja função reconhecida é a de bombear o
sangue e não produzir ruídos, diz-nos Cummins ser isso verdadeiro, desde que se esteja
considerando o sistema circulatório. Ainda que seja difícil conceber um sistema em que
o ruído produzido pelo coração seja funcional, isso não é impossível. O autor afirma já
ter sido sugerido que haveria uma função psicológica para a produção de ruído. Nesse
sentido, no contexto de uma análise psicológica desse tipo não seria necessariamente
errado afirmar que a função do coração é produzir ruídos (CUMMINS, 1975, p. 762, n.
21).
A abordagem analítica é um instrumento importante para determinar qual é a dispo-
sição que certo traço apresenta dentro do sistema em que está inserido, ou seja, qual é a
sua contribuição para a capacidade geral do sistema que o contém. Pode-se questionar,
no entanto, se esse tipo de abordagem dá conta inteiramente do que significa função
para a biologia, e se ele satisfaz as exigências das explicações funcionais. O problema se
apresenta quando se consideram as funções apenas como disposições das partes de um
sistema, pois surge a dificuldade de se distinguir entre a função de um traço biológico e
o seu mero efeito. Ao se levar em conta somente a abordagem analítica, pode-se acabar
obtendo conclusões bastante inapropriadas do ponto de vista da função biológica, de-
vido à ausência do caráter normativo da função. Por exemplo, segundo Kitcher, seria
possível reconhecerem-se funções em sequências de DNA mutantes, tendo em vista o
papel que elas desempenham na contribuição da formação de tumores malignos em um
ser humano. Porém, não se teria aí nenhuma verdadeira função nem caberia, nesse caso,
uma explicação funcional (KITCHER, 1993, p. 173).
Isso não significa afirmar que a abordagem analítica não seja importante, mas que ela,
sozinha, não dá conta do sentido de função nem das explicações funcionais utilizadas em
biologia. Há um tipo de pergunta importante sobre função do ponto de vista da biologia
que não é tratada pela abordagem analítica proposta por Cummins. Quando se considera
a função biológica, não cabe apenas questionar a disposição dos elementos, ou seja, sua
contribuição para o funcionamento do sistema a que pertencem; cabe também perguntar
por que aquele elemento está ali cumprindo essa função. Este tipo de questão é aquela
que a abordagem etiológica do conceito de função em biologia pretende responder,
recorrendo à compreensão teleológica do conceito de função.

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Desse modo, a concepção etiológica de função pretende não apenas identificar o
papel funcional cumprido por um traço dentro do sistema a que ele pertence, mas
também dar conta de por que o traço faz parte desse sistema. Essa postura permite
explicar por que razão, ainda quando não funciona, o traço mantém sua função; ou
porque, ainda que ele tenha certo efeito, essa não é a sua função. Para isso, não basta
considerar somente a disposição atual do traço em comportar-se de certa maneira, sendo
preciso levar em conta a origem dessa disposição. Somente quando a origem do papel
desempenhado por um traço tiver se originado a partir da ação da seleção natural, esse
traço é considerado, de fato, funcional.

5 Função e seleção natural

A vinculação necessária entre função e seleção natural, defendida pela concepção


etiológica, tem levantado inúmeras questões, sendo duas delas particularmente im-
portantes. Em primeiro lugar, a que questiona se a seleção é realmente a responsável
pela origem funcional de um traço. Cummins, talvez o mais forte crítico da concepção
etiológica de função, desenvolve sua argumentação principal visando mostrar que não é
correto atribuir à seleção natural a responsabilidade pela geração do traço funcional.
Em segundo lugar, a que questiona se a atribuição de função biológica restringe-se, de
fato, aos casos em que houve seleção natural. Essa crítica não recusa, necessariamente,
a concepção etiológica, mas aponta para algumas de suas deficiências e limites.
É possível abordar a primeira crítica a partir de três questionamentos. O primeiro diz
que não poderia ter havido seleção para um traço devido à função que ele desempenha,
uma vez que, antes de o traço existir, ele não poderia ter tido essa função. Não se poderia
explicar a presença do coração a partir da função de circular o sangue sem se supor,
anteriormente, a presença do coração que realiza essa função. Para que tivesse havido
seleção do coração em razão de sua função de circular o sangue, seria necessário que
houvesse tanto um coração que não circulasse o sangue como um coração que circulasse
o sangue, mas essa seria uma hipótese muito implausível (CUMMINS, 2002, p. 164).
Em segundo lugar, o ancestral de um traço presente atualmente nos organismos
de uma dada população não era, provavelmente, igual ao traço atual que está sendo
considerado. Por isso, não seria correto explicar a presença deste traço atual a partir
de sua função, recorrendo à seleção de um traço diferente. O ancestral do coração, por
exemplo, não era um coração, mas algo como a primeira centralização da circulação de
sangue (CUMMINS, 2002, p. 164).
Por fim, mesmo considerando que o traço já existia numa dada população, não se
poderia explicar sua presença a partir de sua função, porque a seleção natural não agiria
em razão de o traço ter ou não essa função. A seleção agiria sobre o desempenho da
função, selecionando supostamente o traço que melhor realiza a função. Não se poderia,
portanto, recorrer à função para explicar a presença atual desses traços, já que todas as

113
suas variantes possuiriam a mesma função. Pode-se supor, por exemplo, ter ocorrido,
entre corações que já possuíam a função de circular o sangue, seleção do que realizava
essa atividade com melhor resultado (CUMMINS, 2002, p. 166).
Segundo Cummins, a situação em que, de fato, ocorreria o que é sustentado pela
concepção etiológica seria extremamente rara, porém não impossível de ocorrer. Seria
preciso que um traço surgisse com uma função inteiramente nova em uma parte da
população, que fosse benéfico em termos de sobrevivência e reprodução, e ademais
fosse selecionado em razão dessa função. Somente nesses casos excepcionais haveria
realmente seleção do traço em razão de sua função, podendo, por isso, recorrer-se à
função para explicar a presença do traço. O problema é que não se poderia recorrer
a esse tipo de explicação, quando se consideram órgãos complexos, como o coração
e o olho humano3 . No entanto, seria exatamente esse tipo de traço que a concepção
etiológica pretende explicar, apelando para as noções de adaptação, aptidão e design.
Não é fácil dar conta das críticas apresentadas acima, entretanto, algumas considera-
ções podem ser feitas. Em primeiro lugar, a afirmação de que antes de o traço existir
ele não poderia ter função, não afeta a concepção etiológica porque não se leva em
conta uma das principais características desta abordagem que é a história da geração
e da fixação do traço. É claro que, ao se pressupor o traço e a função, corre-se o risco
de explicar a presença do traço pela função e a função pela presença do traço. Para
evitar uma explicação circular, é preciso levar em conta o processo de geração do traço.
Essa abordagem só pode ser feita a partir de uma perspectiva histórica, e essa não é
devidamente considerada na primeira crítica.
Mais séria para a concepção etiológica é a questão levantada no segundo ponto
acima apresentado, que afirma que o ancestral de um traço atual não era igual ao traço
atualmente considerado e que, em razão disso, não seria correto explicar a presença
deste traço atual a partir de sua função, recorrendo-se à seleção de um traço que não era
ele. De fato, não é possível determinar quando o órgão que efetivou a centralização da
circulação do sangue tornou-se um coração, mas não há problema em se julgar como
sendo um coração algo bastante diferente do coração humano, que não apresente as
mesmas divisões internas ou as mesmas válvulas e forma. O que unifica, mesmo hoje,
órgãos diversos sob o nome de coração é a função que todos cumprem por terem sido
selecionados para cumprir tal função — circular o sangue.
Assim, se for considerado, como faz a concepção etiológica, que a explicação da
presença de um traço em um sistema é dada pela sua função — uma vez que o traço foi
selecionado, no passado, por causa dessa função —, então não é preciso que o órgão
mais ancestral do coração tenha de ter sido um coração como o nosso. Basta que, a
3
Segundo Cummins, “a neoteleologia fraca vem a ser verdadeira graças apenas aos raros, ainda que
importantes casos, em que o alvo da seleção é também o possuidor de uma função que conta para a
seleção daquele traço. Esses são os casos em que uma genuína novidade funcional é introduzida” (2002,
p. 165).

114
partir de algum momento, ele tenha podido ser assim denominado graças à função que
desempenhava. Como observa Philip Kitcher, a seleção natural pode ser responsável
pela presença original de um traço nos organismos de uma população, como o coração,
desde que se entenda por presença original o processo que culminou com a fixação
inicial do traço nos membros de uma dada população4 .
No entanto, ainda que seja concedido que a proliferação e a preservação do traço
ocorram devido à função que desempenha e que, por isso, é possível recorrer-se a
essa função para explicar a sua presença, resta a terceira crítica acima apresentada.
Esta afirma que não seria correto apelar para a função caso todas as variantes do traço
possuam a mesma função. Isso porque a seleção natural não agiria em razão de o traço
ter essa função, mas agiria sobre o desempenho da função, selecionando apenas aquele
que melhor realiza a função. Para Cummins, este fato põe em xeque a afirmação de
que a seleção natural é criativa: se a seleção é, em algum sentido, sensível ao efeito da
função, não o é no sentido relevante para a concepção teleológica, pois ela não responde
pela geração do traço, apenas pela sua manutenção (CUMMINS, 2002, p. 163).

6 Concepção etiológica de função e seleção natural

Segundo a concepção etiológica, se a seleção natural responde pela fixação originária


do traço funcional — no sentido delimitado por Kitcher —, ela não apenas é responsável
pela sua manutenção e aperfeiçoamento, mas também explica a presença do traço no
sistema que o contém. Há, sem dúvida, no cerne dessa discussão, uma diferença no
modo de se compreender o processo de evolução por seleção natural. No entanto, ainda
que se admita que a seleção natural seja criativa, a terceira crítica traz realmente à tona
um problema para a concepção etiológica, que nos conduz para a segunda questão
levantada acima: se a atribuição de função biológica restringe-se, de fato, aos casos em
que houve seleção natural.
Embora em muitos casos não se possa separar a seleção recente do traço — voltada
para o seu aperfeiçoamento e manutenção —, da seleção responsável pela sua fixação
originária, pois ambos iriam na mesma direção, há casos em que isso acontece de
modo distinto, casos em que a seleção recente não está em continuidade com a seleção
originária. Por exemplo, casos em que houve seleção passada do traço para certa função,
mas que, atualmente, ele ou não exerce mais tal função ou exerce outra função diferente.
É necessário, então, determinar qual dos processos, no fim das contas, é de fato relevante
para a atribuição da função ao traço. Os autores que defendem a concepção etiológica
nem sempre estão de acordo a esse respeito.
4
Nas palavras de Kitcher, “aqui e na discussão que se segue, me permito uma breve síntese. Ao falar da
origem de uma entidade em um organismo, eu não pretendo me referir é claro à história mutacional
e desenvolvimental que subjaz à emergência de uma entidade em um organismo individual, mas ao
processo que culmina na fixação original da entidade nos membros da população” (1993, p. 264, nota 8).

115
Ruth Millikan, por exemplo, defende uma concepção mais restrita do conceito de
função, na medida em que reconhece como objeto de aplicação do termo ’função própria’
apenas os casos em que há seleção natural. A autora apresenta duas condições para que
haja função própria. A primeira diz:

A originou-se como uma “reprodução” [...] de um item anterior que, devido


em parte à posse das propriedades reproduzidas, realizou F no passado, e A
existe por causa [...] dessa ou dessas realizações (1989, p. 288).

A segunda diz:

A originou-se como produto de algum item anterior que, dadas suas circuns-
tâncias, realizou F como função própria e que, sob aquelas circunstâncias,
normalmente causa F ser realizado através da produção de um item como A
(1989, p. 288).

Nesse último caso, trata-se da “função própria derivada”, como ocorre nos comporta-
mentos condicionados.
A condição necessária posta pela reprodução descreve um processo histórico-causal;
a história, sustenta Millikan, é o fator mais determinante para caracterizar a função: “de
acordo com minha definição, se algo vai ter ou não função própria depende se tem o
tipo certo de história” (MILLIKAN, 1989, p. 292). Se não for reprodução de nada e se
não for produzido por algo que tenha função própria, não tem função própria, ainda
que se comporte da mesma maneira de algo que tenha. Assim, segundo essa definição,
algo pode ter uma função sem que tenha função própria, pois as disposições atuais
não são suficientes para determinar uma função própria. O conceito de função própria
baseia-se no caráter histórico do item, estando ele sustentado na história evolutiva
que responde pelas “razões de sobrevivência” desses itens (MILLIKAN, 1984, p. 28).
Millikan considera como exemplos de função própria não apenas os órgãos dos seres
vivos e o comportamento instintivo, mas também os comportamentos que envolvem
aprendizado.
No entanto, a concepção de Millikan apresenta problemas: afinal há casos em que se
supõe ter ocorrido originariamente seleção para determinado funcionamento do traço
e ter ocorrido uma seleção diferente, ou seja, para outro funcionamento no passado
recente ou atual. Além disso, há o problema dos casos de traços vestigiais que não
apresentam mais funções. A concepção histórica, que se baseia na história evolutiva
originária, considera que devem ser reconhecidas e atribuídas funções para esses traços,
ainda que eles não apresentem mais a função.
Essa dificuldade levou Godfrey-Smith (1994) a defender que deve ser feita uma
importante distinção — entre seleção original, passada, e seleção moderna ou recente —,
e que essa distinção precisa ser levada em conta quando se analisa o conceito de função.
A seleção moderna pode ter agido de modo a conservar, mudar ou mesmo eliminar a

116
função de um traço. O problema é que se apenas for levada em conta a seleção original
ou passada corre-se o risco de deixar de assinalar funções importantes e reconhecidas,
bem como de atribuir função a órgãos que não cumprem mais esse papel. Por isso,
Godfrey-Smith, tomando como ponto de partida a definição dada por Millikan — de
que o processo histórico é determinante para caracterizar certo traço como funcional —,
propõe que se explique a existência de certos traços funcionais entre os membros de uma
população recorrendo ao fato de que, no passado recente, esses membros foram bem
sucedidos no processo seletivo. Além disso, ele observa que é possível que a construção
originária de um traço envolva outras forças além da seleção natural (GODFREY-SMITH,
1999, p. 214).
Apesar de a incorporação da seleção recente na definição de função poder ser conside-
rada uma decisão eficaz — porque resolve alguns problemas apresentados à concepção
histórica baseada na seleção originária —, ela não é suficiente para resolver todos os
problemas que se levantam com relação à concepção etiológica de função. De fato,
não há garantia de que a fixação e a manutenção de um traço seja fruto da ação da
seleção natural. Traços podem ser mantidos porque as variações fenotípicas não foram
produzidas ou ainda porque elas foram eliminadas por outros fatores acidentais que
não a seleção natural. Isso é um problema para aqueles que defendem que as funções
são disposições e capacidades dos traços mantidos por meio da seleção natural. De
acordo com essa concepção, se o traço não for mantido por seleção natural, não possui
função. O problema, no entanto, é determinar até onde a seleção natural responde pela
manutenção do traço. Godfrey-Smith, por exemplo, tem consciência desse problema
quando afirma que os traços estão sujeitos a vários tipos de inércia e cita duas razões
para isso: a ausência de variação e a eliminação das variações por razões não seletivas.
Ele admite também que, nesses casos, a explicação histórica moderna seria simples-
mente falsa e que não há como eliminar esse risco (GODFREY-SMITH, 1999, p. 215). De
fato, são muitas as dificuldades para se obter informações sobre as condições que são
exigidas para se sustentar a hipótese da seleção natural, bem como mostrar as variações
hereditárias e suas diferenças em aptidão.
Desse modo, a perspectiva de que apenas os traços adaptativos, uma vez que evoluí-
ram por seleção natural, geram funções enfrenta dois problemas:

(1) os casos em que se supõe que os traços sofreram originariamente, no passado,


uma seleção para determinada função e que num passado recente ou atual apre-
sentam outra função. O exemplo frequentemente utilizado para caracterizar esse
fenômeno é o da evolução das penas das aves. Acredita-se que as penas das
aves evoluíram, primeiramente, para cumprir a função de termo-regulação e não
para o voo. Sabemos, no entanto, que de um passado recente para cá houve um
aperfeiçoamento das penas tendo em vista esta outra finalidade, o voo5 .
5
Na visão de Schwartz, “embora as penas possam ter surgido por razões não relacionadas ao voo, elas têm

117
(2) O segundo problema para a concepção etiológica de função própria diz respeito
aos traços vestigiais, ou seja, traços que já tiveram função no passado, mas que,
atualmente, não apresentam mais funções. Para a concepção etiológica, que se
baseia inteiramente na história evolutiva originária, esses traços favorecidos pela
seleção natural cumpriram certa função no passado que tem de ser reconhecida e
atribuída a eles ainda que já tenham deixado de cumprir tal função no presente.
Essa é uma posição difícil de ser defendida, contudo. É possível aceitar-se que a
seleção natural tenha desempenhado um papel primordial na fixação e manutenção
de um traço, sem exigir-se que ela seja a única responsável, até porque há muitos
casos em que sequer é possível decidir se houve ou não seleção originária para o
traço, ou se a seleção foi o único processo envolvido na geração e na fixação do
traço.

7 Conclusão

O problema da determinação do domínio de ação da seleção natural, sem dúvida,


afeta diretamente a concepção etiológica. Porém, é possível continuar defendo essa
concepção de função considerando o papel mais recente, e não exclusivo, desempenhado
pela seleção natural, pois somente a negação da ação da seleção natural na geração e
fixação do traço poderia conduzir à sua eliminação.
Desse modo, reconhecemos que tanto a concepção analítica como a concepção etio-
lógica de função têm papéis explanatoriamente relevantes e complementares. Porém,
acredito que é possível afirmar-se que, embora elas sejam distintas, a concepção analítica
pode ser considerada, em certo sentido, primordial. Se considerarmos que o que ela
defende, basicamente, é que a função de um traço é dada pela contribuição que ele
traz para a capacidade ou atividade total do sistema que o contém, então, o sentido
analítico de função, devido ao seu caráter amplo, está implícito em qualquer outro tipo
de abordagem de função. Isso vale, inclusive, para a concepção etiológica, em que se
considera que a função de um traço é o papel que ele desempenhou no passado, remoto
ou recente, e que foi gerado e fixado pela seleção natural. Isso porque a função etiológica
de um traço só pode ser assinalada quando se estabeleceu, primeiramente, a relação do
traço com o sistema dentro do qual ele desempenha, ou desempenhou, sua função.
No entanto, a abordagem analítica não engloba a concepção etiológica, pois não res-
ponde à sua questão específica: a de por que aquele traço está ou esteve presente naquele
sistema biológico fazendo o que ele faz ou fez. Nesse caso, é necessário também mostrar
que esse traço se fixou devido à sua função, devido à contribuição que trouxe para a
sobrevivência e para a reprodução de seus possuidores, e que tenha sido selecionado
de ter sido favorecidas por desempenharem esse papel em algum ponto: elas são muito perfeitamente
adequadas para o voo para que algum biólogo veja todas os seus aspectos como resultado da deriva ou
de felizes efeitos secundários (side-effects) de outros traços selecionados” (1999, p. S219).

118
por essa razão. Porém, a concepção etiológica não se contrapõe à concepção analítica de
função. De fato, ela a pressupõe de alguma forma, designando um caso específico de
função: aquele em que a função é originada pelo processo de seleção natural.
Desse modo, embora distinta da concepção analítica, a concepção etiológica desem-
penha importante papel nas explicações sobre função. Por ser de natureza normativa
e teleológica, ela está associada às explicações evolutivas, uma vez que visa fornecer
razões para a presença do traço no sistema a que pertence.
Já a concepção analítica não é e nem se propõe a ser normativa. Ela tem seu papel
explanatório geralmente relacionado à fisiologia, porque oferece explicações relativas
ao funcionamento das partes em relação ao sistema a que pertencem como um todo.
Porém, como observa Neander, essa posição é um pouco simplificadora, porque não é
de todo verdade que a noção de função empregada em fisiologia não seja normativa
(NEANDER, 2007, p. 13). Se o conceito de função não for normativo, não é possível
distinguir-se a função de um traço do seu mau-funcionamento. O problema é que a
distinção entre função normal e disfunção é empregada amplamente nas explicações de
processos fisiológicos que descrevem os papéis dos traços, os processos e as operações
realizadas pelos sistemas biológicos. Uma análise adequada do conceito de função
empregado em fisiologia deveria, então, também dar conta do seu caráter normativo. E
se apenas a concepção teleológica é capaz de fornecer fundamento para a normatividade
do conceito de função, então mesmo as análises fisiológicas, ao utilizar a noção de
função normal, teriam de recorrer à concepção etiológica. Porém, não parece ser esse
realmente o caso, uma vez que não se costuma levar em conta a história seletiva quando
se fornecem explicações em fisiologia. Desse modo, é preciso formular uma concepção
normativa de função adequada às explicações em fisiologia. Ainda que o emprego do
conceito de função baseado apenas em critérios disposicionais ou estatísticos pareça
suficiente, pode-se questionar se esse tipo de critério realmente oferece fundamento
para um conceito normativo de função.
O importante é que se, de fato, for verdade que o conceito normativo de função é
utilizado tanto nas explicações em evolução como nas explicações em fisiologia, então a
abordagem analítica, por si só, não explica nenhum caso de função em biologia, uma
vez que ela não oferece um conceito normativo de função. E embora seja pressuposta
por qualquer concepção de função, ela sozinha é insuficiente para explicar o uso do
conceito de função em biologia.6

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Agradeço a Gustavo Caponi pela leitura e comentário.

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