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SIMPÓSIO -É-

O papel das variáveis biológicas


no estudo do comportamento
Recebido para publicação em 5/10/1982

O papel das variáveis biológicas


na análise experimental do comportamento*

MARIA HELENA LEITE HUNZIKER, Departamento de Farmacologia, Universidade Estadual de Cam-


pinas.

0 comportamento dos organismos tem sido estu- verificados pelo outro. Enquanto os etólogos
dado de diferentes maneiras nas diversas áreas da enfocaram os comportamentos instintivos da
ciência. Embora todas levem era conta o falo do espécie no seu meio natural, os behavioristas
comportamento ser apresentado por um organis- se preocuparam mais em estabelecer, no labora-
mo que está inserido num determinado meio am- tório, leis gerais que pudessem ser extrapoladas
biente, elas diferem quanto ao enfoque preferen- para as diferentes espécies e fora da condição
cial dado às variáveis ambientais ou às biológicas. experimental.
No caso da Análise Experimental do Compor- Segundo Breland e Breland (2), haviam três
tamento (AEC), a posição tradicionalmente ado- premissas subjacentes a essa postura behavio-
tada tem sido a de náo utilizar variáveis internas rista: 1) que os sujeitos chegavam ao laboratório
do organismo nos seus estudos, mas apenas variá- como uma tabula rasa, 2) que as diferenças entre
veis ambientais passíveis de observação e men- as espécies eram insignificantes, e 3) que todas
suração, numa relação funciona! com o com- as respostas eram igualmente condicionáveis a
portamento do indivíduo. De uma maneira ge- todos os estímulos. Entretanto, o trabalho pio-
ral, o procedimento da AEC tem sido o de efe- neiro desses autores demonstrou que essas pre-
tuar operações no meio ambiente e avaliar as mu- missas eram inadequadas: treinando milhares de
danças comportamentais decorrentes dessas ope- sujeitos, das mais diferentes espécies, os Breland
rações. Dentro dessa metodologia, frequente- encontraram dificuldades para instalar ou manter
mente não se levava em conta nenhum dos dois alguns comportamentos em algumas espécies.
níveis de análise das variáveis biológicas relacio- Essas dificuldades, segundo eles, não poderiam
nadas com o comportamento: 1) a história evo- ser explicadas por razões técnicas de controle
lucionária da espécie em estudo (no sentido de
ambiental, mas sim por limitações biológicas.
se esclarecer os limites biológicos da aprendiza-
A partir dessas observações, eles sugeriram que
gem), e 2) as alterações fisiológicas e bioquími-
"o comportamento de qualquer espécie não po-
cas correlacionadas com a emissão de um com-
de ser compreendido, predito ou controlado
portamento.
adequadamente sem o conhecimento dos seus
A pouca importância dada aos limites bioló- padrões instintivos, sua história evolucionária e
gicos da aprendizagem foi, provavelmente, de- seu nicho ecológico".
corrente de um posicionamento filosófico ambien- Embora anteriormente a essa publicação já
talista, dentro da controvérsia instinto X apren- exisfissem várias críticas à dicotomia instinto-
dizagem. Durante algum tempo, essa controvér- aprendizagem, as observações dos Breland tive-
sia separou em dois campos opostos etólogos e ram grande repercussão na AEC, provavelmente
psicólogos behavioristas, sendo que cada um des- pelo fato de haverem saído de dentro do pró-
ses grupos minimizou a importância dos fatos prio behaviorismo: eles haviam sido alunos de
Skinner e utilizavam os conhecimentos de AEC
* Palestra apresentada na 34a, Reunião Anual da SBPC. para treinar comercialmente animais para dife-

Cu'iu-ia e ri//íura- 4 I . M 2 2 413


HM CinNÍIA H ( I M . T I J K A . 36(3). MAKÇO DE 1984

idiiloii ÍUis (pui tíxoniplo, para utilização em 3P elos dessa cadeia, deixando para os biólogos
propaganda). No seu rastro, outros behaviroistas o estudo do elo intermediário que são os proces-
também desenvolveram estudos contrários à pos- sos intemos do organismo.
tura estritamente ambientalista. Por exemplo, o Contudo, embora realmente não caiba ao psi-
trabalho de Bolles (1) sobre aprendizagem de cólogo fazer investigações biológicas, não é raro
esquiva, no qual ele analisa a existência de rea- que ele necessite dessas informações para fazer
çCtós defensivas específicas da espécie; os de Ko- uma análise comportamental adequada. Como
norski (9) e os de Jenkins e Moore (8), no qual exemplo dessa situação, citarei alguns estudos
são analisadas as diferenças topográficas de uma relacionados com um fenómeno comportamental
mesma resposta dependendo de diferentes esta- chamado de "efeito de interferência". De uma
dos motivacionais; o conceito de preparação, maneira geral, esse efeito se caracteriza pela di-
proposto por Seligman (15) etc. ficuldade em aprender uma resposta instrumen-
Esses trabalhos, juntamente com os demais tal em decorrência da exposição prévia a uma
desenvolvidos por pesquisadores não behavioris- condição de incontrolabilidade. O procedimen-
tas, tiveram como consequência um abrandamen- to usualmente empregado no seu estudo consis-
to das posições radicais dentro da controvérsia te em expor o sujeito a um certo número de cho-
Instinto X aprendizagem. Isso gerou uma maior ques elétricos, de duração fixa, apresentados em
aproximação entre a etologia e a psicologia be- intervalos variáveis de tempo. Esses choques são
haviorista, de forma que atualmente a questão liberados independentemente do comportamen-
dos limites biológicos da aprendizagem tem sido to do sujeito e não são por ele modificados. Tais
cada vez mais considerada como relevante para características os define como incontroláveis.
uma análise do comportamento (17). Vinte e quatro horas após essa sessão, o mesmo
Quanto à utilização de variáveis internas do sujeito é submetido a uma sessão de aprendiza-
organismo, tem predominado na AEC o posicio- gem instrumental, geralmente de fuga, ou seja:
namento defendido por Skinner (15, 17). Se- são apresentados choques elétricos que podem
gundo esse autor, desde que o comportamento ser interrompidos por uma resposta específica
é um fenómeno diretamente observável e men- do sujeito. A latência dessa resposta frente a ca-
surável em determinadas dimensões, não seria da choque é registrada e posteriormente compa-
adequado que se utilizasse, para explicá-lo, variá- rada às latências apresentadas por sujeitos não
veis internas, pertencentes a outro nível de obser- expostos aos choques incontroláveis. Os resulta-
vação e medidas em outras dimensões, como se- dos relatados indicam que os sujeitos expostos
ria o caso das variáveis fisiológicas. Contudo, é à condição de incontrolabilidade apresentam
importante ressaltar que a objeção de Skinner latências muito mais elevadas que os demais,
quanto às causas biológicas do comportamento ou seja, demoram mais para aprender a respos-
não é a de que elas não existam, mas apenas de ta instrumental (efeito de interferência). Foram
que não são relevantes para uma análise juncional realizados testes onde o tratamento prévio foi
Segundo ele, o conhecimento dessas variáveis tem com choques controláveis (sob uma contingên-
utilidade restrita na previsão e controle de um cia instrumental), e nesse caso não se observou
comportamento específico. Dentro dessa argu- o efeito de interferência. Assim, um conjunto de
mentação, Skinner cita o fato de que usualmen- dados demonstrou que tal efeito é decorrente da
te não se tem a informação neurológica no mo- incontrolabilidade dos choques e não dos cho-
mento em que se queira prever um comportamen- ques em si (para uma revisão da área, ver Maier
to particular, além de ser pouco provável que se e Seligman (13).
altere diretamente o sistema nervoso para contro- Há alguns anos venho desenvolvendo pesqui-
lá-lo. Assim, embora seja inegável que, dada uma sas relacionadas com essa área de investigação
operação efetuada no meio, ocorrem processos (4, 5, 6). Embora esses estudos não tenham re-
dentro do organismo que se correlacionam com plicado alguns resultados relatados na literatura
determinada resposta, é possível, para fins de uma (4), pude verificar, através de uma alteração no
análise funcional, que independentemente de se procedimento original, que, aparentemente, os
conhecer esses processos se possa prever e contro- sujeitos são diferencialmente sensíveis às condi-
lar o comportamento a partir do conhecimento ções de controlabilidade e incontrolabilidade,
i i operaçío efetuada. Consequentemente, a AEC quer seja esse controle • "real" ou "aparente"
ie concentrado no estudo apenas do 1? e (6), Ou seja, esses resultados sSo consistentes
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com o fato básico, relatado na literatura, do analgesia, verificada nessas condições, foi deter-
efeito de interferência só se verificar em decor- minada pela dimensão "psicológica" de incontro-
rência da incontrolabilidade dos eventos. labilidade dos choques e não pelos choques em si.
Desde os trabalhos iniciais de Overmier e Assim, se no estudo do comportamento as dis-
Seligman (14) e Seligman e Maier (18), até os ciplinas têm diferido entre si quanto ao niVel de
dias atuais, foram realizadas inúmeras investiga- análise da interação organismo-ambiente, em al-
ções com esse procedimento básico, tendo-se guns momentos toma-se necessário que se esta-
criado uma área de pesquisa que influenciou, beleçam pontes entre estes diversos níveis. Ou
inclusive, a análise de depressão em humanos seja, em alguns casos toma-se indispensável que
(16). Essa aplicabilidade clínica decorre de uma pesquisas sejam realizadas por equipes multidis-
das hipóteses explicativas desse efeito comporta- ciplinares onde o psicólogo trabalhe lado a lado
mental que, apesar de não ser a única, pelo me- com outros profissionais. Como no exemplo cita-
nos atualmente é a mais difundida: a hipótese do do estudo do efeito de interferência, futuras
do desamparo aprendido (leamed helplessness). investigações serão mais produtivas, na medida em
Segundo tal hipótese, o sujeito exposto à con- que psicólogos, fisiologistas e farmacologistas
dição de incontrolabilidade aprende que não há realizem um trabalho conjunto. Sem dúvida, essa
relação entre o seu comportamento e os eventos maior proximidade entre psicologia e as demais
do meio. Essa aprendizagem se generaliza para disciplinas biológicas só favorecerá um conheci-
novas situações dificultando, futuramente, a mento mais amplo e dinâmico do comportamen-
aprendizagem oposta de que ele pode controlar to dos organismos.
os eventos do meio através da emissão de uma
resposta específica. REFERÊNCIAS
Tal hipótese foi formulada a partir de uma
análise na qual, dada a manipulação de arranjos 1. BoUes, R . C. 1970. Species-specific defense reactions
ambientais, foram registradas alterações compor- and avoidance learning, Psychol. R., 71: 32-48.

tamentais decorrentes desses arranjos. As outras 2. Breland, K . e Breland, M. 1961. The misbehavior of
hipóteses formuladas também foram, de uma ox%3s(\%Tt\%.Amer. Psychol., 61 :681-684.
maneira geral, decorrentes dessa mesma metodo-
3. Chescher, G . B. e Chan. B. 1977. Footshock induced
logia de análise.
analgesia in mice: its reversal by naloxone and cross
Contudo, recentemente surgiram dados a res- tolerance with morfrne, Life Sei., 21 : 1569-1574.
peito de processos interiores do organismo que
4. Hunziker, M. H. L . 1977. Efeitos da exposição pré-
modificam substancialmente a avaliação desse
via a choques não contingentes sobre a aquisição do
efeito comportamental. Foi demonstrado que comportamento de fuga como função de algumas
choques provocam um aumento do nível central dimensões da resposta. Dissertação de mestrado,
de endorfmas, produzindo analgesia, ou seja, apresentada ao Instituto de Psicologia da Universi-
reduzindo a responsividade do sujeito a estímu- dade de S ã o Paulo, 1977.

los dolorosos (3, 11). Esses dados apresentaram 5. Hunziker, M. H . L . 1980. Efeito de interferência e
implicações diretas na interpretação do efeito atividade durante o choque. Comunicação apresen-
de interferência pois a maior latência dos sujeitos tada na X Reunião Anual da Sociedade de Psicologia
de Ribeirão Preto.
frente à contingência de fuga poderia ser, simples-
mente, uma deconência da sua menor sensibilida- 6. Hunziker, M. H . L . 1981. Um estudo sobre incon-
de aos choques. Foram realizados testes de anal- trolabilidade: considerações metodológicas, uma
gesia após o uso do procedimento empregado nos análise experimental Tese de doutoramento, apre-
sentada ao Instituto de Psicologia da Universidade
estudos do efeito de interferência (7, 10, 12),
de São Paulo.
tendo sido constatada uma redução da responsi-
vidade a estímulos dolorosos nos sujeitos expos- 7. Jackson, R, L . , Maier, S. F . e Coon, D. J, 1979.
tos aos choques incontroláveis, mas não nos ex- Long-term analgesia effects of inescapable shock
and learned helplessness. Science, 206 : 91-93.
postos a choques controláveis.
A partir desses dados ficou mais difícil analisar 8. Jenkins, H . e Moore, B. R. 1973. The form of the
o efeito de interferência sem levar em conta esse auto-shaped response with food or water reinfor-
cers. J. Exper. Anal. ofBeha.. 20 : 153-182.
processo de analgesia. Porém, vale a pena notar
que eles não sugerem apenas uma análise fisioló- 9. Konorski, J . 1967. Integrative activity of the brain.
gica do evento comportamental, uma vez que a Chicago, University of Chicago Press.
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10. Maclennan, A. J., Jackson, R , L . e Maier, S, F . 1980. avoidance respondíng. J. Comp. Physiol. Psychol.
Conditioned analgesia in lhe rat. Buli. Psychon. Soe, 63 : 28-33,
387-390.
15. Seligman, M, E . P. 1970, On the generality of the
11. Madden I V , J . , Akil, H . , Patrick, R . L . e Barchas, laws of leaining. Psychol. Rev., 77 :406-418.
J . D. 1977. Stress4nduced parallel changes in central
16. Seligman, M. E . P. 1975. Helplessness: on depression,
opioid leveis and pain responsiveness in the rat,
development, and death, San Francisco, W. H ,
Nature, 265 :358-360.
Freeman.
12. Maier, S. F . . Davies, S., Grau. J . W„ Jackson, R . L . ,
17. Seligman, M. E . P. e Hager, J. L . 1972. Biológica!
Morrison, D. H . , Moye, T . , Madden I V , J. e Barchas,
boundaries of learning. Nova York, Appleton-Cen-
J. D. 1980, Opiate antagonists and long-term anal-
tury-Crofts.
gesic reaction induced by inescapable shock in rats,
/. Comp. Physiol. Psychol.. 94 : 1172-1183. 18. Seligman. M. E , P. e Maier, S. F . 1967. Failure to
13. Maier, S, F , e Seligman, M. E . P. 1976, Learned escape traumatíc shock. / Exper. Psychol, 74 :1-9.
helplessness: theory and evidence. / . Exper. Psychol.: 19. Skinner, B, F . 1950. Are theories of learning ne-
General. 105 : 3^6. cessary?Ps^/c/io/. Rev.. 57 :193-216.
14. Overmier, J , B. e Seligman, M. E . P. 1967. Effects 20. Skinner, B. F . 1970. Ciência e comportamento hu-
of inescapable shock upon subsequent escape and mano. Brasília, Editora Universidade de Brasília.

Contribuição de disciplinas biológicas à compreensão da


psicologia

MARIA TERESA ARAÚJO SILVA, Departamento de Psicologia Experimental, Instituto de Psicologia,


Universidade de SSo Paulo.

É de se louvar a iniciativa da Associação de Mo- Quero primeiro me dirigir à dimensão das va-
dificação do Comportamento, empreendendo e riáveis fisiológicas. Skinner olha esse problema
coordenando este Simpósio. Creio ser muito im- de forma bastante radical: se analisarmos as ações
portante levantar e debater o tema do papel das humanas, vamos verificar que o comportamento
variáveis biológicas na determinação do compor- final é produto de operações externas ao organis-
tamento. Digo que acho o tema importante e mo. Por exemplo, a reunião de pessoas nesta sala'
Aluul porque sinto no aluno de psicologia uma é explicada pela história passada de cada uma de-
loiilkléiiv-iit, pio^oiwoiU) wmw, H Mi\m M) tipru< Idi, d^rinlda pâlo ambiente, e não por intervenções
\\m\i t\lVtU <[W m^wmw U com- SOIMÍ mi fisiologia, Uma Íluslni(;íío mais extrema
desse pensamento é a vlsSo de uma concentração
portamento. Isso é tanto mais espantoso quando
popular nazista, e o conhecimento óbvio de que
iembramos que mestres indisputáveis da ciência
essa mobilização não foi conseguida às custas de
psicológica, como Pavlov e Piaget, tiveram suas
eletrodos implantados no cérebro.
raízes na biologia.
Desejo focalizar o problema sob o seguinte Essa posição rendeu a Skinner a acusação de
aspecto: do ponto de vista de modificação do ser um psicólogo de organismos ocos. Um joma-
comportamento, de interferência sobre o com- lista inglês que o entrevistou recentemente pergun-
portamento, de controle do comportamento, tou-lhe se isso era verdade. Sua resposta: "Nunca
interessa ao psicólogo a biologia do organismo disse isso. Sempre reconheci a importância do que
ocorre dentro do organismo. Só um idiota não o
com que vai trabalhar? Será que ele precisa co-
reconheceria" (1). Na verdade, a objeção que
nhecer as variáveis genéticas, fisiológicas e farma-
Skinner repetidamente coloca é de que as condi-
cológicas que podem afetar o comportamento,
ções internas do organismo só são úteis na modi-
ou pode dispensar esse conhecimento sem maio-
ficação do comportamento se formos capazes de
res prejuízos?
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manipulá-las diretamente. E é quanto a essa pos- pela superação dos limites, isto é, pela aprendiza-
sibilidade que ele se mostra um tanto cético — gem, e não pelos limites. Mas, por isso mesmo, é
pelo menos ao nível de nosso conhecimento atual, sempre bom lembrar...
considera a possibilidade de controle por meios No domínio dos limites, há em primeiro lugar
ambientais gigantescamente maior. O que eu de- a constatação do óbvio: ninguém tenta ensinar
sejo apontar aqui são instâncias em que me pare- um macaco a voar ou uma formiga a ler. 0 me-
ce ser possível a manipulação da condição interna nos óbvio foi muito repisado na década passada,
do organismo na modificação do comportamento. e pode ser ilustrado pelos experimentos clássicos
No meu modo de ver, o fisiólogo descerra para da Garcia sobre aversão gustativa (3). Resumindo
o psicólogo o ambiente interno do organismo, 0 vários de seus experimentos, temos que o proce*
organismo, separado pela pele do mundo exter- dimento básico consiste em parear um estímulo
no, é povoado de estímulos musculares e quími- incondicionado (UCS) como aplicação de raios X
cos, e de respostas viscerais, glandulares, elétricas ou administração de cloreto de lítio, que produ-
e neuroquúnicas. Esses estímulos são sujeitos a zem náusea e mal-estar, com um estímulo condi-
condicionamento clássico e as respostas, muito cionado (CS) de tipo gustativo, olfativo, ou espa-
provavelmente, a condicionamento instrumental. cial. 0 condicionamento é medido pela inges-
Isso já é suficiente para não poderem ser ignorados tão de um líquido como sacarina, em condições
pelo psicólogo. É certo que o acesso a esse ambien- de extinção: diante da apresentação do CS, a in-
te interno ainda é pouco viável. Mas em uma épo- gestão é suprimida com o CS gustativo, pouco
ca de marca-passos para cardíacos e de próstese afetada pelo CS olfativo, e indiferente ao CS es-
da visão para cegos o caminho está aberto. Talvez pacial. A supressão também não é obtida quando
o exemplo mais vivo de aplicação desse conheci- o CS é de natureza audiovisual. Já quando o UCS
mento seja a prática do biofeedback, em que o é choque, a supressão é praticamente total fren-
indivíduo é feito consciente de seus estímulos e te ao estímulo audiovisual e nula frente ao estí-
de suas respostas internas, sendo assim capaz de mulo gustativo. Ou seja, a associação entre mal-
controlar seu comportamento. Por exemplo, o estar produzido por raio X ou por certas drogas
indivíduo pode ser informado da produção de tóxicas se faz facilmente com estímulos gustati-
ritmo alfa através de registro de seu EEG, essa vos e dificihnente com estímulos de outra natu-
informação servindo de reforçador e levando a reza; já o mal-estar produzido pelo choque se assor
consequente aumento desse ritmo cerebral. Um cia mais facilmente com estímulos audiovisuais.
outro exemplo dessa técnica é o de um hemiplé- Ao utilizar o termo "mal-estar", estou delibera-
gico que, reaprendendo a andar, leva implantado damente querendo me referir aos UCS internos
na perna um aparelho que o informa a respeito produzidos pelo estímulo externo, pois aí está
dos estímulos proprioceptivos gerados pelos seus um caso em que faz diferença, do ponto de vis-
movimentos, para que possa discriminar os corre- ta da aprendizagem, saber como o organismo
tos dos incorretos (2), Isso é interação entre es- foi atingido intemamente — já que, externamen-
tímulos e respostas — uma interação que se tomou te, o paradigma de condicionamento foi o mes-
menos turva por meio da invasão do organismo mo em todos os casos.
e do conhecimento de sua fisiologia. A existência de maior ou menor capacidade
Passo agora a uma breve apreciação das variá- associativa foi também demonstrada para respos-
veis genéticas. Creio que um defensor exaltado tas e estímulos reforçadores. Um artigo bem co-
do isolacionismo da psicologia poderia dizer que nhecido, sobre o '*mau-comportamento dos orga-
mesmo a dotação genética dos organismos se plas- nismos", anaHsa vários casos de insucesso de con-
mou através da evolução, que foi a interação do dicionamento instrumental deconente da falta
animal com o ambiente que fez dele o que ele é, de afinidade entre resposta e reforçador (4). 0
e que portanto o comportamento vem primeiro. porquê de certos estímulos se associaram prefe-
Mais relevante, me parece, do que discutir prio- rencialmente entre si e com certas respostas tem
ridades, é admitir que o organismo nasce com de ser procurado na biologia do animal, gerada
lúnites biológicos definidos — o que, de resto, por sua história evolutiva, e não pela sua história
não é negado por ninguém, muito menos por de condicionamento.
Skinner. Os estudos de cunho etológico são os A decodificação dos limites e possibilidades
que dão maior ênfase a esse aspecto. Os psicólo- do organismo a nível do sistema nervoso central
gos em geral se interessam predominantemente vem sendo feita com sofisticação cada vez maior.
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Um exemplo elegante diz respeito ao grau de es- Esta incursão nas variáveis biológicas do com-
pecialização de células do córtex visual de maca- portamento foi necessariamente breve e seletiva.
cos. Há células geneticamente especializadas em Desejei salientar que o psicólogo não pode ignorar
detectar formas oblíquas que se movimentam em a biologia do organismo. Mas quero colocar tam-
uma dada direção — todos os outros estímulos bém o aspecto oposto. O pesquisador de área bio-
evocam apenas pequena resposta dessas células. lógica não pode ignorar os fatores ambientais.
Um conjunto de células respondendo diferencial- Por exemplo, o farmacólogo precisa saber que a
mente a ângulos e movimentos poderia presumi- tolerância à morfina tem elementos ponderáveis
velmente ser o mediador da discriminação de de condicionamento clássico. Citemos alguns
formas. Um animal como o polvo, cujo sistema desses elementos: a tolerância à morfina é me-
visual só detecta linhas horizontais e verticais, nor se animais são testados em ambiente dife-
também comportamentalmente só discrimina for- rente daquele em que sofreram repetidamente
mas horizontais e verticais, não oblíquas. É preciso a injeção da droga; a tolerância é retardada se o
notar, porém, que essas descobertas, notáveis a sujeito é exposto previamente ao estímulo condi-
nível de avanço do conhecimento do cérebro cionado (no caso, a injeção e tudo mais que a com-
humano, não trazem nova luz aos problemas de
panha); animais que recebem injeção placebo e
aprendizagem ou de controle comportamental.
que, portanto, estão recebendo o CS sem o UCS
Na verdade, é no setor de drogas psicoativas (extinção), perdem a tolerância, ao contrário dos
que o comportamento me parece ser mais susceptí- que não a recebem. Note-se, porém, que a respos-
vel de ser afetado pela manipulação da condição ta condicionada à morfina tem sentido oposto à
intema do organismo. Trata-se nesse caso de resposta incondicionada: em vez de bradicardia,
uma intervenção direta sobre a neurofísiologia há taquicardia; em vez de hipertermia, aparece
cerebral. Essa intervenção tem efeitos muitas ve- hipotermia; em vez de analgesia, ocorre hiperal-
zes dramáticos sobre estados emocionais, cogni- gesia. Decorre daí a proposta de um interessante
tivos e motivacionais, como é de conhecimento modelo para explicar a tolerância à morfma, em
geral, e seu uso e abuso não têm uma dimensão que o efeito da droga no organismo tolerante é
desprezível como no caso dos eletrodos implanta- visto como a soma das respostas condicionadas e
dos no cérebro. O psicólogo não pode ignorar a incondicionadas à droga. Como essas respostas
enorme quantidade de pessoas que tentam aliviar têm direção oposta, o efeito final é rebaixado (5).
sua ansiedade tomando um Diazepam, e não fre- Essa proposta tem apUcações imediatas nos pro-
quentando um terapeuta; ou os que tentam con- gramas de reabilitação de dependentes à morfina.
trolar seu peso ingerindo anfetaminas, e não uti- Tal como a psicologia, as disciplinas biológicas
lizando técnicas de autocontrole. são província de especialistas, dada a complexida-
Mais importante, o psicólogo não pode ignorar de e extensão das matérias envolvidas. Mas o es-
que, do estudo do mecanismo de ação dessas dro- tudioso de psicologia pode e deve promover uma
gas, talvez surja a pista de descoberta de eventuais interação com essas disciplinas, prendendo de
distúrbios bioquímicos na doença mental. Por sua linguagem o suficiente para dialogar, ainda que
exemplo, sabe-se que na depressão grave existe com sotaque.
um fator de risco genético que faz supor uma ba-
REFERÊNCIAS
se orgânica para a doença. A descoberta dessa
base orgânica abriria a possibilidade de interven- 1. Breland, K, e M, Breland. 1961. The misbehavior of
organisms./4mer. Psychol, 61 : 681-684.
ção farmacológica tão eficaz, ou quase tão efi-
2.Cohen, D. 1977. Psychologists on psychology. Lon-
caz, quanto a dieta pobre em fenilalanina para a dres, Routidge and Kegan Paut.
oligofrenia fenilpirúvica. 3. Garcia, J . , B. K . McGowan e K . F . Green. 1972. Bio-
Mas não é só no campo da doença mental que logical constraints on conditioning. In Black, A. H .
e Prokasy, W. F . (orgs.). Clássica! conditioning 11:
o estudo da ação de drogas pode abrir espaço pa-
current research and theory. Nova York, Appleton-
ra interferência no comportamento. Já há pesqui- Century-Crofts.
sadores procurando o substrato do reforço positi- 4. Meyerhof, P. G. 1979, Modificação do comporta-
vo nas endorfinas, substâncias semelhantes à mor- mento motor de um hemiplégico adulto com o em-
fina porém presentes no cérebro. Não é preciso prego de biofeedback. Tese de mestrado apresentada
imaginação de ficção científica para prever, a ao Instituto dé Psicologia da USP.
5. Siegel, S. 1979. The role of conditioning in drug
partir daí, a possibilidade de modificação de es-
tolerance and addiction. In Keehn, J. D. Psychopa-
tados motivacionais. thoiogy in animais. Nova York, Academic Press.
CIÊNCIA E CULTURA. 36(3), MARÇO DE 1984 419

Drogas e comportamento
FREDERICO G. GRAEFF, Departamento de Farmacologia, Faculdade de Medicina de RibeirSo Preto,
Universidade de São Paulo.

A B S T R . \ C T . Drugs and behavior. When introduced into the organism, certain chemical substances act on the
isr-trai nervous system and markedly change behavioral and psychological processes. As a consequence, they
have been named psychotropic or psychoactive drugs. Some of these drugs, such as the antipsychotic agents,
ar.udeprcssants, antimaniacs, anti-anxiety agents and opiate analgesics are used for therapeutic purposes. Others,
sach as lhe hallucinogenic drugs and psychostimulants, are mainly used in non-therapeutic contexts to produce
euphoria or altered states of conscíence. Several clinicai and experimental studies suggest that the psychological
aod behavjoraJ effects of psychotropic drugs are a consequence of drug-induced changes in specific neurotrans-
miuion processes. The differential use of psychotropic drugs by members of different socio-cultural organiza-
bons, along hystory, is a clear exampíe of the interplay between biological and environmental factors in the
detennination of human behavior.

R E S C M O . Certas substâncias químicas, quando introduzidas no organismo, atuam sobre o sistema nervoso cen-
r í i modificando acentuadamente o comportamento e os processos p s i c o l ó ^ c o s . S ã o , por isso, denominadas
irogas psicotrópicas. Algumas delas são empregadas para tratar distúrbios psiquiátricos e outras condições pa-
'Lológicas. Entre estes medicamentos psicoterapêuticos figuram os antipsicóticos, os antidepresávos e antima-
macos, os ansiolíticos e os analgésicos opióides. Outras drogas psicotrópicas, como os psicoestimulantes e os
alucinógenos, são principalmente usadas em um contexto nâo-terapêutico, para induzirem euforia ou estados
alterados de consciência. Algumas drogas psicoterapêuticas, como os ansiolíticos e os opióides também são em-
pregados com este último fim. Estudos clínicos e experimentais de natureza multidisciphnar, realizados duran-
te as duas últimas décadas, têm sugerido que as alterações psicológicas e comportamentais causadas pelas drogas
psicotrópicas são consequência de modificações relativamente seletivas que estas substâncias produzem ao nível
dos processos de comunicação entre os neurónios, realizados através de mediadores químicos ou neurotiansmisso-
res. O uso diferencial de drogas psicotrópicas nas mais variadas culturas humanas, perdurando desde os tempos
pré-históricos até os nossos dias, mostra claramente a importância dos fatores biológicos, em interação com fa-
tores sociais e ambientais, na determinação do comportamento.

Existem evidências de que já em eras pré-históri- zido nos anos cinquenta foi a clorpromazina, des-
cas, o homem fazia uso de plantas contendo subs- coberta acidentalmente por Laboritt et al. (9),
tâncias psicoativas. Segundo o humanista britâ- na França, ao observarem seus efeitos tranquili-
nico Aldous Huxley (7): "Todos os sedativos, zantes em pacientes que iam ser submetidos a
enforiantes, alucinógenos e estimulantes de ocor- cirurgias. Esta observação atraiu a atenção de
rência natural foram descobertos há milhares de Delay, Deniker e Hart (2), que a ensaiaram em
anos, antes da aurora da civilização. Por volta da pacientes mentais, evidenciando sua eficácia em
Idade da Pedra Lascada o homem estava se enve- atenuar os sintomas da esquizofrenia.
nenando sistematicamente. Houve viciados em Este fato iniciou o que passou a ser conheci-
drogas muito antes de existirem agricultores". do como a revolução farmacológica da psiquia-
Muitas plantas contendo substâncias psicoati- tria moderna, consoHdada pela introdução, logo
vas têm sido usadas milenarmente com fins tera- depois, dos medicamentos anti depressivos e já
pêuticos. O exemplo mais conhecido é sem dúvi- na década dos sessenta, dos ansiolíticos benzo-
da o do uso do ópio para alivar a dor. Outro exem- diazepínicos e dos sais de lítio para o tratamento
plo é o da Rauwolfia serpentina, usada na medici- da psicose maníaco-depressiva.
na tradicional hindu para inúmeros fins, inclusive Entretanto, deve-se assinalar que desde o iní-
o tratamento de doenças mentais. Entretanto, so- cio do século XX já se empregavam largamente
mente na década de cinquenta do nosso século, os sedativos derivados do ácido barbitúrico para
extraiu-se dessa planta e identifícou-se quimica- induzir o sono e aliviar a ansiedade e na década
mente o alcalóide reserpina, que foi uma das pri- dos trinta foram usados os psicoestimulantes do
meiras drogas antipsicóticas utilizadas pela medi- tipo anfetamina no tratamento da depressão
cina ocidental moderna. mental, embora com sucesso muito limitado.
Um outro medicamento antipsicótico introdu- Ao lado da descoberta dos medicamentos
420 CIÊNCIA E CULTURA, 36(3), MARÇO DE 1984

psicoterapéuticos, foram determinadas as estru- caso como reforço negativo. Somente aquelas
turas químicas de alguns alucinógenos, como a drogas cuja auto-administração reforça o com-
mescalina e a psilocibina, extraídas respectiva- portamento de animais de laboratório, como o
mente do cactus peiotl e do cogumelo Psilocybe macaco ou o rato, são capazes de gerar dependên-
mexicana, que crescem na América Centra! e do cia psicológica no homem. Vê-se aqui, claramen-
Norte, A partir da obtenção do LSD-25 por A. te, a importância dos fatores biológicos.
Hoffman em 1943, em Basileia, capaz de indu- Porém, dentre as pessoas que têm acesso ou
zir quadros curiosíssimos de alterações do esta- efetivamente ingerem essas drogas, apenas algu-
do de consciência, uma atenção inusitada foi mas tomam-se dependentes. Influem nesse caso
despertada no Ocidente em relação aos alucinó- fatores pessoais, de natureza constitucional e/ou
genos e o uso dessas substâncias generalizou-se, adquirida e ambiental, inclusive os de natureza
afetando inclusive a estrutura de valores das so- sócio-cultural e económica. É bem conhecido o
ciedades economicamente mais desenvolvidas. fato de que o consumo de opiáceos pelos indiví-
Para salientar ainda mais a importância do duos de raça negra, habitantes dos centros urba-
uso de drogas psicoativas pelo homem, basta lem- nos decadentes das grandes capitais norte-ameri-
brar o consumo generalizado do tabaco, cujo canas, diminuiu substancialmente na medida em
princípio ativo, a nicotina causa efeitos psico- que se avolumava a luta pelos direitos civis, que
estimulantes, mesclados com uma atenuação da canalizou as frustrações de muitas dessas pessoas.
agressividade e das reações emocionais e o da As próprias preferências pelo uso de determi-
cafeína, psicoestimulante suave encontrado em nadas drogas e não outras pode refletir os valores
numerosas bebidas de consumo popular, como dominantes de um dado grupo social. Por exem-
o café, o chá, o mate, o guaraná, os refrescos plo, os jovens norte-americanos dos anos sessen-
do tipo coca, o cacau e outros. ta preferiam utilizar drogas alucinogênicas em lu-
O abundante uso de drogas pela população gar do álcool ou dos psicoestimulantes. Ao mes-
em situações não médicas ilustra claramente a mo tempo, criticavam os valores agressivos, com-
interação entre fatores biológicos, psico-sociais petitivos e aquisitivos da grande sociedade e valo-
e mesmo do ambiente físico na determinação do rizavam a fruição passiva de experiências senso-
comportamento humano. Assim, o uso da cocaí- riais, como as proporcionadas por aquelas dro-
na é ilegal na maioria dos países. Entretanto, os gas. Por outro lado, os executivos bem sucedidos
nativos dos Andes mascam tradicionalmente as dos anos setenta e oitenta, naquele país, preferem
folhas de coca para aliviar a fome e o cansaço consumir psicoestimulantes do tipo cocaína ou
decorrentes do trabalho em grandes altitudes. anfetamina, que elevam o estado de ânimo, au-
Seu uso não só é corriqueiro, como também apro- mentam a atividade, diminuem a fadiga e o apeti-
vado pela sociedade. Outro exemplo refere-se te, além de tirarem o sono.
às bebidas alcoólicas, livremente consumidas en- Uma perspectiva ampla sugere-nos que o uso
tre nós, bem como na maioria dos países do mun- de drogas psicoativas é intrínseco á condição hu-
do, cujo uso, no entanto, é severamente conde-
mana. No dizer de Aldous Huxley (8), ... "A maio-
nado nas nações muçuhnanas, por motivos estri-
ria dos homens e mulheres levam vidas tão doloro-
tamente religiosos. Por exemplo, no Afeganistão,
sas, na pior das hipóteses, ou tão monótonas, po-
nação muçulmana, é vedada a ingestão de bebi-
bres e limitadas, na melhor delas, que a tentação
das alcoólicas, enquanto que a maconha pode
de transcender a si mesmo, ainda que seja por al-
ser consumida sem constrangimento. Fica claro,
guns momentos, é e sempre foi um dos principais
assim, que o conceito de abuso de drogas depen-
apetites da alma". Não se quer com isso justificar
de mais do contexto social do que das proprie-
dades farmacológicas e tóxicas das drogas. moralmente o consumo irrestrito de psicotrópicos,
nem memo eludir o alto preço individual e social
Por outro lado, para que uma droga seja auto- pago para usufruir dos "paraísos artificiais" pro-
administrada ela deve possuir algumas proprieda- porcionados temporariamente pelas drogas.
des farmacológicas essenciais, isto é, precisa Embora o consumo de uma ou outra droga
amar no sistema nervoso central e produzir alte- seja uma constante transcultural, há uma varia-
rações psicológicas de natureza prazeirosa, fun- ção, ao longo da história e entre diferentes grupos
cionando então como recompensa ou reforço sócio-culturais, de quais drogas são permiridas e
positivo, ou, ao contrário, determinar alívio de quais são condenadas, de conformidade com a
tensões ou do sofrimento, funcionando nesse estmtura de valores da sociedade.
CIÊNCIA E CULTURA, 36(3), MARÇO DE 1984 421

Um outro aspecto importante das drogas psi- lula receptora, efetuando-se assim a transmissão
coamas que queremos destacar é a contribuição de informação de uma para outra célula. Existem
que elas vêm trazendo para o melhor conheci- ainda, ao nível dessa junção entre os terminais
mento de funções cerebrais complexas, relacio- nervosos e a célula receptora, denominada sinapse,
nadas com a regulação do comportamento e com mecanismos responsáveis pela rápida inativação
as vivências psicológicas. do neuro transmissor.
O fato da ingestão de alguns miligramas ou até Numerosos sistemas de neurotransmissão foram
microgramas, como no caso do LSD, de uma subs- identificados no sistema nervoso central (SNC)
tância química de estrutura conhecida alterar as dos mamíferos, cada qual apresentando uma
manifestações de uma doença mental ou afetar morfologia própria, constituindo assim numero-
dramaticamente a maneira como uma pessoa vi- sos circuitos neuronais, de cujo funcionamento
vência a realidade é em si mesmo profundamente resulta a integração das atividades cerebrais que
intrigante. Constituiu-se assim num desafio que controlam o comportamento e as funções neuro-
vem sendo enfrentado, principalmente nos últi- vegetativas do organismo.
mos trinta anos, por cientistas da mais variada for- As drogas psicotrópicas parecem atuar basica-
mação: químicos, bioquímicos, farmacologistas, mente afetando os processos de síntese, armaze-
fisiologistas, morfologistas, psicólogos, psiquiatras namento, hberação ou inativação de um ou mais
e outros. Por outro lado, as mesmas drogas cons- neurotransmissores. Algumas drogas podem tam-
tituem-se em instrumentos poderosos para "disse- bém atuar diretamente sobre os receptores, imi-
car" farmacologicamente o cérebro, aumentando a tando a ação de um neurotransmissor ou, ao con-
compreensão de seu funcionamento. trário, impedindo essa mesma ação. Com isto, o
Para procurar interpretar como as drogas psi- funcionamento de determinados circuitos cere-
coativas causam seus efeitos farmacológicos, vêm brais são alterados, determinando o aparecimento
se formulando, apoiadas em abundante evidência dos efeitos característicos do gmpo farmacológico.
clínica e experimental, algumas hipóteses cujo Existem, por exemplo, fortes evidências de que
maior valor até o momento, tem sido o de inspi- os medicamentos antipsicóticos, do tipo clorpro-
rar novos testes experimentais. Citaremos aqui mazina, bloqueiam a ação do neurotransmissor
apenas algumas das mais importantes, sem contu- dopamina sobre seus receptores. Conforme a via
do nos deter na análise crítica de cada uma delas. dopaminérgica afetada, surgem não só os efeitos
Para uma revisão deste assunto recomendamos a terapêuticos desses medicamentos, basicamente
leitura de um recente livro da autoria de Green a melhora sintomática da esquizofrenia, como
e Costain (5). também os efeitos colaterais, do tipo rigidez mus-
De modo geral, parece cada vez mais claro cular e dificuldade de movimentação voluntária,
que as drogas psicoativas modificam funções além de alterações hormonais características.
cerebrais por interferirem com mecanismos de Por sua vez, os medicamentos antidepressi-
neurotransmissão. Sabe-se que os neurónios do vos, inibidores da monoaminoxidase ou compos-
sistema nervoso dos mamíferos comunicam-se tos tricíclicos tipo imipramina, parecem afetar
entre si ou com os órgãos efetuadores por meio basicamente a neurotransmissão mediada pela
da liberação de substâncias químicas, denomina- noradrenalina e/ou pela serotonina, em circuitos
das neurotransmissores. Estes são sinterizados cerebrais responsáveis pela regulação do estado
nos neurónios e armazenados em vesículas no inte- de ânimo ou humor. Contudo, não se sabe com
rior dos terminais nervosos, sendo liberados à certeza, quais dessas alterações estão diretamente
chegada do impulso nervoso, que por sua vez relacionadas com o efeito terapêutico.
propaga-se ao longo das fibras nervosas como um Enquanto isso, os psicoestimulantes do tipo
fenómeno elétrico. Uma vez liberados, os neuro- anfetamina facilitam a liberação de dopamina e
transmissores atuam em sítios localizados na mem- de noradrenalina peio impulso nervoso, resultan-
brana de outro neurônio, de uma célula não neu- do daí seus efeitos psicológicos e comportamen-
ronal ou do próprio terminal que os libera. Estes tais, além dos efeitos periféricos que imitam uma
sítios especializados, denominados receptores, descarga do sistema nervoso simpático.
são capazes de reconhecer especificamente os neu- Finahnente, recentes resultados experimentais
rotransmissores, bem como moléculas quimica- indicam que as drogas capazes de aliviar a ansieda-
mente semelhantes. Da combinação do neurotrans- de, tais como o álcool etílico, os barbitúricos e os
missor com o receptor resultam alterações na cé- benzodiazepínicos atuam primariamente facilitan-
422 CIÊNCIA E CULTURA, 36(3), MARÇO DE 1984

do a neurotransmissão mediada pelo ácido gama- laboratório. Essas drogas vêm permitindo uma
aminobutírico ou GABA. Os benzodiazepínicos, abordagem frutífera de problemas que antes eram
que são os mais eficazes, possuem mesmo recepto- apenas objeto de vagas especulações filosóficas.
res no sistema nervoso central, capazes de reco-
nhecê-los especificamente. Os possíveis circuitos REFERÊNCIAS
neuronais envolvidos na ação ansiolítica dos tran-
qiiilizantes menores, como também são denomi- 1. Cox, B . M., Opheim, K . , Teschemacher, H . e Golds-
tein, A, 1975. A peptide-like substance from pitui-
nados os medicamentos ansiolíticos, foram objeto
tary that acts like morphine. 2. Purífication and
de uma recente revisão (4). properties. Z.í/c5c/., 16 : 1777-1782.
Um dos maiores progressos da neurociência mo- 2. Delay, J . , Deniker, P. e Hart, J . M. 1952. Uttlization
derna foi sem dúvida a demonstração da existência en therapeutique psychiatrique d'une phenothiazine
de receptores opióides no SNC, capazes de reco- d'action centrale élective./In. Médico-Psychol., 110 :
nhecer a morfma e seus análogos (10). Pouco de- 112-118,
pois, isolaram-se do tecido nervoso substâncias 3. de Oliveira, L . F . 1979. Dor: fisiopatologia. Rev.
endógenas, denominadas encefalinas (6) e endor- Brasil, de Anestesio!.. 28 : 227-246.
fmas (1), capazes de ativar tais receptores. Essas 4. GraeíT, F . G . 1981. Minor tranquilizeis and brain
substâncias atuam como neurotransmissores e defense systems. Brazil. J. Med. Biol. Res., 14 : 239-
exercem funções importantes, entre as quais a 265.
de acionarem mecanismos auto-analgésicos (3). 5. Green. R . A. e Costain, D. W. 1981. Pharmacology
Asshn, a morfina e análogos atuariam imitando and biochemistry of psychiatric disorders. Cichester,
a ação desses compostos. Por outro lado, proce- John Wiley & Sons.
dimentos analgésicos não-farmacológicos, como 6. Hughes, J . , Smith, T. W., Kosterlitz, H . W., Fothergill,
a acupuntura, parecem ativar os mesmos meca- L . A . , Morgan, B. A. e Morris. H . R . 1975. Identifi-
nismos analgésicos centrais que envolvem as ence- cation of two related pentapeptides from the brain
with potent opiate agonist activity. Nature, 258 :
falinas e/ou endorfinas, pois seu efeito é antago-
577-579.
nizado pela naloxona, droga que bloqueia os re-
ceptores das encefalinas. Fato semelhante se dá 7. Huxley, A . 1957a. The history of tension. An. New
YorkAcad. Sei., 67 : 675-684.
com o efeito denominado placebo, isto é, a anal-
gesia conseguida pela administração de substân- 8. Huxley, A. 1957b. As portas da percepção e O céu
e o inferno. R i o de Janeiro, Civilização Brasileira,
cias farmacologicamente inertes.
9. Laboritt, H . , Huguenard, P. e Alluaume, R. 1952.
Transpomos, assim, a ponte entre o físico, o Un nouveau stabilisateur vegetatif, le 4560 R P .
psicológico e o biológico, ponte esta que está sen- PresseMédi, 60 :206-208.
do construída, em grande parte, com o auxílio 10. Pert, C. B. e Snyder. S. H , 1973. Opiate receptor:
das drogas psicoativas, cujos efeitos podem ser es- its demonstration in nervous tissue. Science, 179 :
tudados tanto no homem, como nos animais de 1011-1014.

Organização cerebral do comportamento

LUIZ ROBERTO G. BRITTO, Departamento de Fisiologia e Farmacologia, Instituto de Ciências Biomé-


dicas, USP'.

0 principal objetivo de um fisiologista interessa- portamento na atividade neural, é necessário lem-


do no comportamento é, sem dúvida, a sua com- brar que as funções básicas do sistema nervoso
preensão em termos do funcionamento do siste- são duas, a saber: 1. A regulação específica dos
ma nervoso. Assim, a fim de situarmos o com- mecanismos que garantem a estabilidade intrín-
seca do organismo; 2. A emissão de comporta-
1.05508, São Paulo, SP. mentos. A primeira permite, por exemplo, a ma-
CIÊNCIA E CULTURA, 36(3), MARÇO DE 1984 423

nutenção da pressío arterial, da pressío parcial da medida da efetivação, dos componentes mo-
de oxigénio, do fluxo sanguíneo adequado para tores e neurovegetativos, e até mesmo do apren-
os vários tecidos corporais etc, enquanto a se- dizado etc. Evidentemente, essas abordagens são
gunda, mais geral e complexa, responde pelas in- complementares, e muitas vezes são combinadas,
lerações do organismo com o meio em que vive. dependendo do aspecto que se quer analisar;
Estas duas funções estão obviamente interliga- cada uma delas pode ser mais adequada em um
das, visto que somente a estabilização correta determinado problema ou espécie animal, mas
dos parâmetros fisiológicos pode permitir a per- claramente nenhuma é suficiente. Recentemen-
feita operação no ambiente, sendo que diversas te, duas técnicas têm sido de inestimável valor
modalidades comportamentais visam mesmo esta nesses estudos: o mapeamento empregando xe-
homeostase. e que todos os comportamentos nónio radiativo, que permite avaliar fluxos san-
requerem ajustes nas variáveis mencionadas aci- guíneos regionais no cérebro, inclusive em huma-
ma (5). nos, e outro tipo de mapeamento que se utiliza
O passo inicial na compreensão da atuação do de 2-desoxi-D-glicose marcada com C^**; em ambos
sistema nervoso na organização dos comportamen- os casos, é possível localizar estruturas neurais
tos consiste na identificação dos elementos sen- com participação mais atíva em determinado
soriais, centrais e efetores envolvidos na descri- comportamento, já que nelas haverá redistribui-
ção de seus padrões de conexões e atividades, e ção dos fluxos sanguíneos e maior utilização de
na determinação das propriedades e interações glicose, substrato fundamental da atividade neu-
que criam estes padrões. A etapa seguinte seria ral. Estudos empregando essas marcações têm da-
o conhecimento de como o repertório comporta- do uma ideia muito clara da organização comple-
mental comideto está representado no sistema xa dos processos neurais, visto que jamais aquelas
nervoso, cm forma de sistemas funcionais, e co- substâncias são localizadas em regiões restritas,
mo estes têm acesso aos mecanismos efetores. mas sim em muitas áreas do sistema nervoso si-
Finalmente, poder-se-ia perguntar como estão multaneamente. Desta forma, é muito mais lógi-
uranjadas em termos neurais as seqiiéncias de co falar-se de sistemas neurais implicados em
:omportamento e o que as determina; é interes- certas modalidades comportamentais, e não em
sínie lembrar que este último ponto tem sido "centros" localizados, responsáveis por certos
objeto de investigação principalmente psicológi- tipos de atividade. Esta ideia fica também clara
ca e etológica, mas os neurobiológos têm aíen- quando são analisados resultados de estimulação
i r - r e m para o problema, mais recentemen- elétrica e lesão, que serão discutidos adiante.
Cenamenle estamos muito distantes des- Com relação aos experimentos com estimula-
: Í ; rr.e'2S. e por muito tempo será impossível a ção elétrica, sabe-se há muito que pulsos elétricos
e . i r ; : ; : l o de um modelo que explique todos aplicados em determinadas regiões cerebrais po-
directos implicados na organização funcional dem gerar manifestações comportamentais em
i : c comportamento; as razões disso são o conhe- tudo semelhantes às que se verificam na natureza
cimento muito limitado da hodologia neural e ou em ambientes menos restritos. Exemplos são
a complexidade operacional do sistema nervoso, o beber e comer pela excitação elétrica do hipo-
ce modo que nem o estudo de seus componentes tálamo lateral, o alerta pela estimulação da for-
isoladamente permite concluir quais seriam as mação reticular do mesencéfalo e o sono resultan-
propriedades do imenso conjunto que formam. te da arivação de determinados circuitos talámi-
Acreditamos que somente um esforço integrado cos. Um óbvio problema com estes resultados
da psicologia, farmacologia, neurofísiologia e neu- é que a estimulação é bastante inespecífica, le-
roanatomia, entre outras, permitirá que se faça vando à ativação de todos os elementos no local
progresso real na área, e é com muita satisfação onde é feita, incluindo corpos celulares, axònios,
que podemos observar que essa conjunção está que cursam pela região etc. Assim, poder-se-ia
sendo ao menos tentada no momento. discutir se o efeito observado é devido à ativida-
Especificamente com relação à neurofísiolo- de daquela região ou de uma distante, resultante
gia, a diversidade de métodos empregados na aná- da atividade de fibras que a ela se projetam, ou
lise do comportamento dá uma boa ideia da ambos. Dada a complexidade hodológica das
complexidade do assunto. Invesriga-se por meio três estmturas mencionadas nos exemplos, esta
da observação em laboratório, de lesões e esti- questão é bastante pertinente. A estimulação
mulação cerebral, de registro eletrofisiológico. farmacológica (com mediadores químicos e ou-
424 CIJÊNCiA E CULTURA, 36(3), MARÇO DE 1984

tras substâncias) e os métodos de registro unitá- mento de retração de um membro à estimulação


rio têm colaborado muito na resposta necessária dolorosa, incluindo alguns,de seus componentes
que se coloca, indicando que realmente as três" neurovegetativos. Ao mesmo tempo em que isto
regiões participam na organização daqueles três demonstra que a medula já contém circuitos
comportamentos. Todavia, isto não justifica falar- suficientes para a organização de alguns padrões
se em "centro da fome" no hipolálamo lateral comportamentais, indica que é necessário inter-
ou "centro de alerta" na formação reticular, ou câmbio de informações entre níveis muito diver-
ainda "centro do sono" no tálamo: a estimulação sos do sistema nervoso para que o comportamen-
em diversas outras regiões do sistema nervoso to surja de maneira global e adaptativa. Outro
gera respostas semelhantes; por exemplo, ativa- aspecto do mesmo problema diz respeito à re-
ção de áreas límbicas como a amígdala pode cau- cuperação funcional após lesões amplas de áreas
sar ingestão de alimentos, de áreas corticais fron- rostrais do cérebro: um animal descerebrado, ou
tais pode gerar alerta e da formação reticular da seja, no qual é praticada uma secção que separa
medula oblonga pode levar ao sono. Parece mui- o mesencéfalo das estruturas situadas acima des-
to mais coerente discutir a questão em termos de te, é capaz de uma recuperação comportamental
um sistema neural que contém elementos envolvi- muito grande a médio prazo. Esta preparação,
dos na programação de um certo comportamen- se mantida nos primeiros tempos após a cirurgia,
to, sendo que o hipotálamo lateral e a amígdala com muito cuidado, pode locomover-se quase
límbica seriam dois destes componentes no caso normalmente e até mesmo apresentar comporta-
da alimentação. A combinação de métodos permi- mento alimentar, agressivo e outros. Esta plasti-
tiria, então, airibuir-se a cada componente um pa- cidade funcional é ainda mais evidente quando a
pd distinto, como na análise e identificação das destruição é feita mais acima, preservando-se re-
•fionnaçOes geradoras, ou nas etapas de decisão giões hipotalâmicas e talâmicas; a preparação ta-
ecfediaçio(3,4). lâmica, de fato, dificilmente pode ser distingui-
As ksOes cerebrais têm levado exatamente à da de um animal normal, após meses da lesão
• • a i incerpretação, felizmente. Inúmeras regiões experimental. Fatos como estes, que indicam
cadbaà^ quando lesadas, modificam os compor- um elevado grau de redundância na organização
Onrotos de alimentação, alerta e sono, para nos cerebral do comportamento, não têm sido verifi-
aotennos aos exemplos iniciais acima, nos seus.vá- cados com essa consistência no ser humano, pos-
DOS aq>ectos. O ciclo sono-vigília pode ser modi- sivelmente pela maior dependência neste do neo-
ficado ou mesmo abolido por lesões localizadas córtex, que atinge o máximo grau de evolução
ou transacções em vários pontos do neuro-eixo, na nossa espécie. Todavia, mesmo em humanos
rebelando o importante papel da foimação reti- há relatos de recuperação funcional após lesões
cular do tronco cerebral na sua organização. O acidentais e até mesmo de pessoas com massa
comportamento de ingestão pode ser inibido ou encefálica reduzida que têm comportamentos
facilitado por lesões no hipotálamo e diversas e nível intelectual praticamente normais; isto po-
outras áreas límbicas. E o alerta pode ser perma- deria resultar se estruturas subcorticais tivessem
nentemente suprimido por destmiçâo na forma- se reorganizado de modo tal a permitir a execução
ção reticular do mesencéfalo, o que caracteriza de funções que, em condições normais, seriam re-
um papel chave desta estrutura na programação sultantes de operações neocortícais.
daquela modalidade comportamental. Essa abor- Um terceiro e promissor tipo de abordagem, en-
dagem, a destmtiva, tem contribuído ainda na tre aquelas a que estamos nos limitando, consis-
elucidação de outro ponto que julgamos relevan- te dos registros eletrofisiológicos. A possibilidade
te: o de que um sistema neural envolvido na or- do estudo da atividade elétrica em agregados
ganização de um certo padrão comportamental neuronais, bem como de neurónios individuali-
não é obrigatoriamente constituído de estmturas zados com microeletrodos, representa uma forma
vizinhas, mas pode estar representado em níveis bastante direta de avaliação da participação de
muito distintos e distantes do sistema nervoso, certa estrutura em algum comportamento, inclu-
ainda que interligados. Por exemplo, os compor- sive durante a manifestação espontânea dele.
tamentos de micção e defecação reaparecem al- Assim, é muito evidente o envolvimento de neu-
gum tempo após uma transecção total da medu- rónios reticulares no ciclo sono-vigflia, assim co-
la espinhal, mas tomam-se, a partir daí, totalmen- mo na fase do sono paradoxal, onde há ativida-
ani'rica: neurônios no hipotálamo lateral au-
CIÊNCIA E CULTURA, 36(3), MARÇO DE 1984 425

mentam sua frequência de impulsos à visão de essa tarefa, sendo restrito a alguns mecanismos
alimentos quando o animal está faminto, mas, situados principalmente na "entrada" e na "saí-
não quando saciado; neurónios mesencefálicos da" dos sistemas neurais e a informações ainda
disparam milésimos de segundo antes de um muito limitadas no que concerne aos mecanis-
movimento ocular desencadeado por um estí- mos mais centrais, de difícil acesso experimen-
,muIo em movimento; a atividade em algumas tal. Assim, parece estar certo D. H. Hubel, um
regiões límbicas aumenta claramente pouco an- dos ganhadores do prémio Nobel de medicina e
tes e durante a emissão de um comportamento fisiologia em 1981, quando escreveu: " A t the
agressivo; potenciais surgem no eletroencefaio- present stage, with a reasonable start in under-
grama antes da execução pelo indivíduo de uma standing the structure and workings of individual
tarefa que a ele tenha sido atribuída. Esses exem- cells, neurobiologjsts are in the position of a man
plos indicam claramente que o registro da ativi- who knows something about the physics of
resistors, condensers and transislors and who
dade neural constitui uma metodologia funda-
looks inside a television set. He cannot begin
mental no estudo do comportamento, já que po-
to understand how the machine works as a whole
de ser feito com mínima intervenção do experi-
until he learns how the elements are wired toge-
mentador, e fornece ideias muito boas sobre as
ther and until he has at least some idea of the
etapas da manifestação comportamental, pro-
purpose of the machine, of its subassemblies
blema de difícil abordagem com estimulação
and their interacfions." (Scientific American,
ou lesão cerebrais. Por exemplo, um experimen-
241 ; 39-47, 1979.)
to cuidadoso permite saber se as células em ques-
tão modificam sua frequência de potenciais por Se esta analogia parece muito interessante pa-
mecanismos de retroalimentação gerados pelo ra a neurobiologja geral, certamente seria mais
comportamento em questão ou se integram me- ainda para a organização cerebral do comporta-
canismos que o programam ou efetuam. Além mento, que representa o aspecto mais global das
disso, em alguns casos, corresponde ao único funções do sistema nervoso.
ou a um dos poucos indicadores de um compor-
tamento, como no caso do sono, onde os padrões REFERÊNCIAS
eletroencefalográficos são a única forma segura
de se saber se um indivíduo está dormindo. Fi- 1. Bentley, D. e Konishi, M. 1978. Neural conttol of
behavior. An. Rev. Neuroscie., 1 : 35-59.
nalmente, é seguramente o método que melhor
se aplica ao estudo da organização funcional 2. Carlson, N. R. 1977. Physiology of behavior. Boston,
do sistema nervoso no comportamento humano, Massachussetts, AUyn and Bacon Inc., 650 p.
pelo fato de mesmo potenciais de bakíssima
3. Mogenson, G. J . , Jones, D. L . e Chi, Y . Y . 1980.
amplitude poderem ser recolhidos nos registros From motivation to action: functional interface
eíctracranianos; esses potenciais após promedia- between the limbic system and the motor system.
ção, podem caracterizar o processamento de Progr. in Neurobiol, 14 : 69-97.
informações a nível mental. 4. Moyer, K. E , 1980. Biological substrates of agression.
Esta resumida versão do nosso problema já Progr. in Brain Res., 53 ; 359-368.
indica suficientemente a dificuldade de se estu-
5. Timo-laria, C . 1978. A consciência como proble-
dar o comportamento em fisiologia. Como men-
ma biológico. In Ciência e consciência. Carlos Cha-
cionado antes, o conhecimento da estrutura do gas, org. Rio de Janeiro, Editora Tempo Brasileiro,
sistema nervoso é ainda muito imperfeito para p. 23-56.

Penso que estavam certos os juízos que formei quando menino..


Somerset Maughan

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