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Dependência Química:

uma Abordagem Integradora

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O Tratamento da Dependência
Química e As Terapias Cognitivo-
Comportamentais
Teoria comportamental

Prevenção de recaída
sumári
19 Terapia cognitivo-comportamental das habilidades
sociais e de enfrentamento de situações de risco

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A dependência química na
Psicoterapia Analítica Funcional:
um diálogo contingente
O Tratamento da Dependência
Química e As Terapias Cognitivo-
comportamentais
TEORIA COMPORTAMENTAL Essa indução excessiva e sem função aparente sobre a con­
tingência é chamada de comportamento adjuntivo.
A teoria comportamental apresenta, em seu desen­ A partir desses três tipos de interações entre mudan­
volvimento, diversas linhas de abordagem para os proble­ ças ambientais e ações do organismo, os analistas do com­
mas do homem. Embora todas elas tenham suas raízes no portamento produzem análogos com o objetivo de reprodu­
behaviorismo de John Watson, muitas (p. ex., a cognitivo­ zir os fenômenos em estudo laboratorial. Além desse ponto
comportamental) de­senvolveram­se em ramos teóricos, con­ de partida, os analistas do comportamento consideram dois
ceituais e técnicos que justificam, hoje, uma nomenclatura aspectos importantes para a detec­ção e intervenção de pro­
diferenciada. Outras passaram a designar sua abordagem blemas psiquiátricos: se o comportamento “transtornado” é
como analítico­comportamental; suas bases científicas são as uma resposta anormal do organismo a mudanças normais
encontradas na análise do comportamento, como teoria, e no do ambiente ou se o comportamento problemático é uma
behaviorismo radical de Skinner, como prin­cípio filosófico. resposta normal do organismo a uma situa­ção ambiental
Este capítulo apresentará as explicações a respeito da depen­ que mudou de maneira exacerbada. Caso seja observada
dência química a partir da ótica dessa proposta teórica. uma resposta anormal do organismo a mudanças normais
A abordagem analítico­comportamental prima pelo es­ do ambiente, aventa­se a hipótese de que o organismo seja
tudo dos fenômenos por meio do método experimental, e resultado de alguma va­riabilidade da espécie que aponte
suas intervenções são derivadas dos achados obtidos por uma sensibilidade física extremada ou diminuída a algum as­
esse método. Os modelos experimentais, por essa razão, pecto ambiental. Nesses casos, a explicação da origem do
estão entre as principais estratégias utilizadas pelos analis­ problema pode ser encontrada em outras ciências, como
tas do comportamento para compreender melhor os trans­ a biologia ou a medicina em suas diver­sas especialidades.
tornos psiquiátricos. Nesses modelos, buscam­se relações Embora a análise do comportamento tenha meios de lidar
observadas entre as ações do organismo e mudanças no com o comportamento problemático oriundo desse tipo de
ambiente onde esse organismo vive. variação, ela não consegue explicar as variabilidades físicas,
Um dos tipos de interação estudados pelos mode­ as quais podem ser descritas pela genética, neuro­logia, fi­
los experimentais é aquele re­lacionado às mudanças no siologia, etc. Já os casos nos quais uma resposta é problemá­
ambiente, chamadas de estímulos. O organismo apresen­ tica por conta de mudanças extremas na situação ambiental
ta rápida adaptação a tais mudanças, o que é chamado de constituem o âmbito principal do estudo da psicopatologia,
respostas. As interações entre estímulos e respostas são área que utiliza os modelos experimentais da análise do
chamadas de comportamentos reflexos ou respondentes. compor­tamento. Nesses casos, assume­se que a maior parte
Há outro tipo de interação relacionado a mudanças no dos organismos, se expostos a situações extremas, poderia
ambiente causadas pela ação do organismo e que podem desenvolver o comportamento psicopatológico.
influenciar na probabilidade futura dessa ação. Nessa intera­ Assim, por meio da observação e da manipulação de
ção, as consequências da ação do organismo podem torná­la variáveis ambientais, o analista do comportamento procura
mais provável (i.e., ocorreria o fortalecimento da classe de recriar, em laboratório, um análogo expe­rimental do pro­
respostas) ou menos provável (ocorreria, então, o enfra­ blema estudado, de forma a produzir relações similares
quecimento). A essa interação dá­se o nome de contingência àquelas observadas no desenvolvimento de relatos de ca­
operante. sos clínicos. Obtendo­se o modelo, realiza­se a avaliação em
Existe, ainda, uma terceira interação a ser notada, na termos de similaridade das respostas estudadas (o quanto
qual alguns parâmetros das mudanças do ambiente em uma o comportamento dos sujeitos experimentais é semelhante
contingência operante produzem indução ex­cessiva na ao observado na popu­lação clínica), responsividade e sele­
frequência de outra ação, esta última aparentemente sem tividade a certas substâncias já conhecidas na atuação sobre
função na rela­ção comportamental originalmente estudada. o problema (i.e., se as respostas observadas nas situações

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experimen tais deixam de ocorrer sob a ação de substâncias to pode ser observado apenas sob algumas circunstân cias.
utilizadas com frequência no en frentamento das psicopa­ A condição para esclarecer as circunstâncias envolvidas no
tologias), bem como processos comportamentais básicos aparecimento do comportamentoproblema é denominada
envolvidos na determinação do problema. Um aspecto rele­ “análise funcional”, que nada mais é do que o análogo expe­
vante a ser considerado é que nem mesmo um modelo expe rimental das condições envolvidas no modelo experimental.
rimental está isento de uma concepção por parte da psi­ Como consequência dessa forma de enfocar os pro­
copatologia, e é importante apresentar, de maneira breve, blemas, as diversas con cepções de normalidade (a concep­
qual a visão da análise do comportamento sobre esse tema, ção de estatística, de obediência a leis e de reversibilidade)
visto que tal visão é bastante distinta da concepção médica encontradas na literatura acabam sendo questionadas. Em
e psiquiátrica tradicional. discussões sobre a anormalidade ou normalidade do com­
portamento, o analista se utiliza ape nas do critério sofri­
Psicopatologia e Conceito de mento do indivíduo ou de pessoas ligadas a ele para de­
Normalidade cidir se uma relação é psicopatológica ou não. É na busca
de excessos ou déficits comporta mentais – determinados
A partir dos pressupostos e dos modelos descri­ pelas mudanças nas probabilidades dos comportamen tos,
tos, as perguntas norteadoras do trabalho do analista do as quais, por sua vez, são produzidas pelas mudanças am­
comportamento são: o comportamentoproblema é função bientais – que se encontram os caminhos para a solução
de quais variáveis ambientais? Que mudanças ocorrem no dos problemas de comportamento.
ambiente que produzem o comportamento problemático? A partir dessa perspectiva, os analistas aproximam­
Quais manipulações podem ser feitas para impe dir que esse se das patologias do com portamento como “combinações
comportamentoproblema se instale? quantitativas e qualitativas de processos que são, elas pró­
A análise do comportamento é uma ciência inspira­ prias, intrinsecamente ordenadas, absolutamente determi­
da no conceito darwinista de evolução das espécies. Des­ nadas e normais em sua origem”.
sa forma, foi aplicado o raciocínio de variação, sele ção e
manutenção das espécies no quesito comportamento dos Uma Visão Naturalista da
organismos. Sabe­se que, segundo a proposta da sele­ Dependência Química
ção natural, ocorrem variações morfológicas ao longo das
gerações de indivíduos, cabendo ao ambiente selecionar As descrições darwinistas a respeito da evolução das
aqueles que apresentam as morfologias mais aptas para a espécies e concomitantemente do comportamento demons­
sobrevivência, descartando indiví duos que não apresentam tram que o fenômeno da dependência química é mais natu­
características bemadaptadas (evolução das espécies). Esse ral do que se poderia imaginar.
raciocínio, aplicado ao comportamento, indica que, assim Segundo Ronald Siegel, além da espécie humana, são
como ocorre na seleção natural, cada indivíduo varia sua for­ observadas na na tureza muitas espécies que apresentam de­
ma de se comportar, e o ambiente trata de selecionar e man­ pendência a substâncias psicoativas em hábitat natural. Essa
ter as respostas que melhor se adaptam. Nessa perspectiva, observação enfatiza o aspecto evolutivo do comportamento,
o comportamento é mais uma característica biológica a ser acompanhando a evolução dos organismos (o que resulta em
considerada, assim como órgãos e tecidos, que variam dis­ diversas espécies) e também o argumento de que o compor­
cretamente entre indivíduos intra e entre gerações. tamento dos humanos de intoxicarse não pode ser considera­
Essa concepção colocou em discussão o conceito do desviante (ou anormal), mas um resultado natural da inte
de normalidade na área da psicologia. Considerando que ração organismos/ambientes. O comportamento de intoxicar­
aquilo que um organismo faz é o melhor que ele “sabe” fa­ se estaria, assim, na base da própria biologia das espécies e
zer, mesmo os comportamentos “anormais” são encarados na sensibilidade delas aos princípios ativos das substâncias.
como mera variação comportamental. Esse tipo de com­ Como exemplos de comportamentos de autoadminis­
portamento seria o melhor que um organismo sabe fazer tração de substâncias psicoativas em outras espécies, Siegel
quando inserido em determinado ambiente. Em outras pa cita elefantes que buscam álcool resultante da fermentação
lavras, acreditase que as respostas que “dão certo” em um de frutas, felinos dependentes da erva alucinógena Nepeta
ambiente permanecem no repertório comportamental de cataria, pombos e outros pássaros com visíveis alterações
um indivíduo, e aquelas que “não dão certo” são enfraque­ comportamentais resultantes do consumo de sementes de
cidas. Por essa razão, considerase que o comportamento maconha, cavalos e gado que consomem papoulas que os
é determinado pela intenção entre a ação do organismo e excitam e desorientam e coalas que apresentam efeitos nar­
pela mudança ambiental produzida por essa ação. Ações cóticos por conta do consumo de folhas de eucalipto. Apesar
que podem ser efetivas em um ambiente talvez não o se­ dessa diversificação, que reforçaria a ideia da especificidade
jam em outro, tornando o comportamento muito plástico, e biológica na afinidade pelos princípios ativos, R. Siegel re­
sua análise bastante complexa. Esse tipo de comportamen­ lata a descoberta das substâncias pelo homem por meio da

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observação dos efeitos do consumo de certas plantas nos liza determinadas substâncias até a retirada de circulação
animais, e descreve uma impressionante correlação entre as na sociedade daqueles que as utilizam, o que é feito por
substâncias utilizadas pelo maior número de culturas huma­ meio de internação. Os governos em geral empregam esse
nas e aquelas consumidas pelo maior número de espécies critério porque os usuários, quando estão sob o efeito de
animais (r = 0,90, p < 0,01). Segundo ele, os relatos regis­ substâncias, poderiam oferecer risco a si próprios e a outros
trados em do cumentos do folclore, da religião e da ciên­ indivíduos. Em nossa cultura, encontramse nesse critério as
cia referemse ao comportamento de au toadministração de seguintes substâncias: maconha, anfetaminas, alucinóge­
substâncias psicoativas com termos como “fissura” (craving), nos, cocaína, heroína, entre outras, inclusive as sintetizadas.
“paixão” (passion) e “dependência” (addiction). O segundo critério considerado é o “clínico”, que indica for­
Ronald Siegel aponta variáveis de aprendizagem que tes sintomas de abstinência, dificuldade de remissão e alto
poderiam interferir no comportamento de dependência de número de recaídas. Encontramse, nesse critério, o tabaco,
substâncias. Aquelas utilizadas pelo maior número de cul­ o álcool, os tranquilizantes e os hipnóticos, assim como os
turas e de espécies animais (tabaco, álcool e alucinógenos) opioides e os estimulantes. A dependência química dessas
apresen tam um gosto aversivo, aspecto que não justificaria substân cias é acentuada, com prejuízos à saúde dos de­
seu uso. Exposições prévias a princípios ativos da substância pendentes. O terceiro critério é o “epidemiológico”, ou seja,
levariam a uma habituação facilitada ao gosto, por proces­ aquele que aponta as substâncias utilizadas pelo maior nú­
sos respondentes, como sombreamento ou bloqueio. Um mero de pessoas. Sob esse critério, encontramse, no Oci­
exemplo disso é a habituação à qual o filhote de coala seria dente, os seguintes agentes: cafeína, álcool, tabaco, maco­
submetido ao sugar o leite materno com gosto amargo por nha, tranquilizantes, anfetaminas, alucinóge nos, opioides e
conta das folhas de eucalipto ingeridas pela mãe. Em idade cocaína. O quarto critério, por fim, classifica as substâncias
jo vem, o coala já estaria habituado ao gosto aversivo das mais passíveis de autoadministração em condições de labo­
folhas narcóticas, facilitando seu consumo. ratório, o que indicaria o potencial de abuso. Nesse critério,
Além das variáveis de aprendizagem, as variáveis so­ encontramse cocaína, anfetaminas, opioides, barbitúricos,
ciais (tamanho e densi dade do grupo, competição, pressão anestésicos dissociativos (cetamina), álcool, nicotina, cafe­
predadorpresa, etc.) podem determinar o consumo elevado ína, benzo diazepínicos e maconha.
de substâncias que não sejam as preferidas pelas espécies Todos esses critérios são elaborados a partir de condi­
não humanas. Por exemplo, sabese que o álcool é um dos ções clínicas de abuso de substâncias com claras perdas e ris­
agentes mais difíceis de se rem autoadministrados em ani­ cos à integridade dos indivíduos que as utilizam. Como visto,
mais de laboratório, pois seu gosto é amargo. No entanto, muitas substâncias encontramse em mais de um critério de
gatos e macacos mudam sua preferência para soluções alco­ depen dência, tornandose, claramente, um problema social.
ólicas em detri mento de outros fluidos não alcoólicos quan­ Por meio dos modelos experimentais, a teoria analítico­
do submetidos a estresse induzido. Ronald Siegel aponta comportamental busca conhecer os possíveis controles do
para o fato de que humanos, embora tenham uma lista ex­ comportamento no uso de substâncias. Esses modelos aju­
tensa de motivos pelos quais apresentam o comportamento dam a esclarecer as relações que facilitam ou dificultam o
de intoxicarse, enfrentam consequências muito desagradá­ uso/ abuso de substâncias. Com fundamento em processos
veis, distantes daquelas que os motivaram quando adquiri­ básicos respondentes, ope rantes e de indução por esque­
ram a predileção pela substância. As próximas seções deste ma de reforço, a teoria analíticocomportamental descreve (e
capítulo abordarão alguns dos processos comportamentais explica) por que esses fenômenos ocorrem.
que explicam essa incongruência.
Processos Respondentes
O Conceito de Dependência: Os
Parâmetros da Cultura A dependência química é considerada quando uma
substância, administrada por um certo tempo, é interrom­
Apesar de toda essa concepção naturalista do consu­ pida, ocasionando sintomas de retirada e “fissura”. Estão
mo de substâncias, sabese que a vida social do indivíduo também intimamente associados à tolerância o decréscimo
dependente acaba ficando muito prejudicada. Para oferecer do efeito da substância no decorrer de repetidas adminis­
suporte no enfrentamento, na intervenção e na prevenção trações e a necessidade de aumento de quantidade para
dos problemas oriundos do uso/abuso de substâncias, al­ a obtenção do mesmo efeito antes observado. Esse fenô­
guns critérios devem ser considerados. meno é abordado pelo estudo de um processo comporta­
A cultura classifica a dependência química em pelo mental denominado pela literatura como respon­ dente ou
menos quatro critérios, que devem ser considerados quan­ pavloviano. Segundo esse modelo, determinadas respostas
do tal problemática é abordada. O primeiro é o critério “le­ do organismo ocorrem em decorrência da exposição a as­
gal”, proibição colocada pelos governos e sancionada por pectos do ambiente (os estímulos).
leis e puni ções que vão desde a prisão de quem comercia­ Algumas respostas das espécies são específicas a

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determinados estímulos rele vantes do ambiente para sua que produz rapidamen te alterações no organismo (i.e., seus
sobrevivência. Essas respostas adaptam o organismo às efeitos). Os dados que dão suporte a essa interpretação de­
variações ambientais, protegendoos. Assim, por exemplo, monstram que aspectos do ambiente que precedem fiel­
se ocorre um aumen to súbito na temperatura ambiental, mente a administração da substância passam a adquirir pro­
muitos organismos endotérmicos (inclusive os humanos) priedades de estímulo condi cionado, ou seja, produzem,
apresentariam como resposta adaptativa o alargamento dos quando apresentados, efeitos semelhantes (respostas con­
poros, permitindo, dessa maneira, a excreção do suor, o que dicionadas) aos que as substâncias psicoativas têm sobre os
ajudaria a manter a tem peratura corporal em níveis ideais. organismos (res postas incondicionadas). Por exemplo, há
Esse processo comportamental denominase reflexo incondi­ relatos de que estímulos utilizados para sinalizar injeções de
cionado, visto que os organismos seriam preparados biolo­ morfina produzem aumento na secreção salivar, efeito natu­
gicamente para apresentar essas respostas na presença de ral observado na administração desse opiode. A ingestão da
determinados estímulos, sem que nenhuma condição espe­ substância (estímulo) produz uma rápida resposta do orga­
cial de aprendizagem fosse necessária para a ocorrência da nis mo. A administração é confiavelmente precedida pelos
relação (Fig. 9.1). rituais e procedimentos de ingestão, e dizse que há aí um
pareamento entre o antecedente e o efeito da subs tância
sobre o sistema. Quando essa ligação estiver bem estabele­
cida, o organis mo apresentará, perante o próprio ritual ou
procedimento de ingestão, os mesmos efeitos que a droga
FIGURA 9.1 – A relação respondente: um estímulo ambiental (aumento de produz, antes mesmo de entrar em contato com a substân­
temperatura) produz uma resposta típica da espécie (sudorese). cia (comportamento respondente condicionado).

Ocorrem também outras aprendizagens úteis para a


preservação dos organis mos. Assim, indivíduos submeti­
dos a elevados riscos tornamse sensíveis a estímu los menos
danosos para o organismo, mas que precedem fielmente o
aparecimento do estímulo pernicioso. Assim, por exemplo, a
mera apresentação visual ou olfativa de suco de limão produ­ FIGURA 9.3 – Rituais e procedimentos de ingestão e o reflexo condicionado.
zirá, em quem já tenha sido exposto a essa substância, uma
salivação que, de alguma maneira, “antecipa” o contato da Entretanto, as substâncias apresentam outros efeitos
língua com o suco ácido, protegendoa de possíveis danos. importantes. Algumas produzem efeitos típicos em um pri­
Esse processo é denominado reflexo condicionado, pois foi meiro momento, desequilibrando a homeos tase do corpo.
necessária pelo menos uma ocasião de pareamento entre os Assim, por exemplo, quando ocorre aplicação de morfina,
estímulos (a visão ou o olfato do sumo de limão + o sumo de além das respostas de analgesia pretendidas, imediatamen­
limão em contato com a boca) para que houvesse o controle te são observadas bradicardia e hipertermia. Em seguida,
da salivação pela visão ou pelo olfato, que inicialmen te eram após um certo tempo, o corpo reage aos efeitos do opioi
neutros para essa resposta. A sensibilidade a essas aprendi­ de, as dores voltam, e observamse as respostas de aumento
zagens também é produto da evolução (Fig. 9.2). do batimento cardía co e diminuição da temperatura corpo­
ral. Quando ocorre consumo frequente de morfina, os estí­
mulos pareados a sua aplicação passam a controlar as res­
postas mais tardias: taquicardia, hipotermia e hiperalgesia,
antecipandoas em relação à ingestão. Podese especular que
esse controle seja adaptativo porque “prepararia” o corpo
para a exposição à substância, o que é semelhante ao que
foi relatado sobre a salivação eliciada pela visão do suco de
FIGURA 9.2 – Esquema de resposta no reflexo condicionado. Rc: reflexo limão, antes mesmo de este entrar em contato com a boca.
condicionado.
Há evidências de que as substâncias psicoativas apre­
sentam efeitos semelhan tes àqueles observados em estí­
mulos incondicionados. Se elas forem considera das como
estímulos ambientais, e seus efeitos, como respostas in­ FIGURA 9.4 – Estímulo causado pela ingestão da substância, seus efeitos e
condicionadas, o modelo reflexo poderá ser utilizado para a busca pela homeostase.
explicar e controlar muitos fenômenos que envolvem a pro­
blemática da dependência. Esse tipo de análise permite que Portanto, são muito importantes os diferentes efeitos eli­
a substância seja vista como um estímulo incondicionado, ciados pelos estímu los ambientais que foram pareados com a

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ingestão de substâncias. São esses efeitos opostos – que, em nos organismos, é possível complementar o estudo, acres­
um primeiro momento, “defenderiam” o organismo dos efeitos centando os processos operantes que originam os proble­
da substância ingerida com frequência – que explicariam gran­ mas de dependên cia. Tais processos podem ser resumidos
de parte dos proble mas envolvidos com a dependência. em processos reforçadores positivos (que produzem, como
Muitas substâncias de dependência apresentam efeitos consequência de uma ação, um evento que tem a proprie­
opostos sobre diversas respostas. S. Siegel, baseado em uma dade de aumentar a frequência dessa ação) e negativos (que
série de estudos, relata alguns exemplos além da morfina. A produzem, como conse quência de uma ação, a retirada de
adrenalina produz as seguintes respostas incondicionadas: uma condição aversiva, aumentando também a frequência
taquicar dia, diminuição da atividade gástrica e hiperglicemia. dessa ação). Essa interpretação explica as ações de busca e
Em reação a essas mudanças, observase, em seguida: bradi­ ingestão de substâncias (dependência).
cardia, aumento da atividade gástrica e hipoglicemia. O mes­ O primeiro problema a ser abordado é o da tolerância.
mo ocorre com a nicotina (resposta imediata: hiperglicemia; Partindo do princípio de que as substâncias têm um efeito,
posterior: hi poglicemia), a anfetamina (imediata: aumento de em primeira instância, reforçador – seja pelos efeitos agra­
consumo de oxigênio; posterior: diminuição no consumo de dáveis (p. ex., a euforia causada pela cocaína) ou pela eli­
oxigênio), o opioide nalorfina (imediata: taquicardia; poste­ minação de sensações desagradáveis (p. ex., a redução da
rior: bradicardia), a metildopa (imediata: diminuição da pres­ timidez e da ansiedade resultantes da ingestão de álcool)
são sanguínea; posterior: aumento da pressão sanguínea), –, é de se esperar que seu consumo passe a ser frequente.
entre outras. Os estímulos antecedentes à ingestão da droga Assim, quando expostos a situações que exigem respostas
começam a adquirir controle sobre as respostas do organis­ imediatas a falhas de repertório (como desânimo ou timi­
mo opostas aos efeitos da substância, preparandoo para a dez), os indivíduos fazem uso dessas substâncias.
ingestão. Quando o organismo ingere a droga, os efeitos são O fato de produzirem também efeitos respondentes
atenuados (tolerância). Se o organismo não a ingerir, sofrerá compensatórios logo após seu consumo explica o motivo pelo
dos efeitos opostos (abstinência) (Fig. 9.5). qual o indivíduo necessitaria de quan tidades cada vez maio­
res do agente para observar seus efeitos reforçadores positi
vos ou negativos. Ao consumir a substância com frequência,
os indivíduos ficam gradativa e antecipadamente “prepara­
dos” para recebêla, minimizando os efeitos de sua ingestão.
Os estímulos condicionados à ingestão devido ao pareamen­
to de monstram que, em médio prazo, o efeito compensató­
rio que aparece antecipada mente à exposição à substância
exige que uma quantidade maior da substância seja consumi­
FIGURA 9.5 – Efeitos do consumo da substância no organismo e efeitos da da para obterse o mesmo efeito procurado pelo organismo.
não ingestão (abstinência). Esse aumento de quantidade é denominado tolerância.
O mesmo mecanismo explica a abstinência e a conse­
O fenômeno mais importante que ocorre nesse mo­ quente busca ativa pela substância. Quando o organismo é
mento é que os estímulos ambientais que antecedem a in­ exposto com frequência à ingestão no mesmo ambiente, os
gestão da substância acabam por adquirir controle sobre as estímulos que o compõem passam a adquirir controle ante­
respostas tardias da ingestão. Além disso, como os estímulos cipado sobre as respostas que viriam naturalmente em um
ambientais antecedem a administração da substância, seus segundo momento, após a ingestão da droga. Podese ob­
efeitos condicionados passam a ocorrer antecipadamente servar que, quando o organismo for exposto aos estímulos
aos efeitos de fato, que só ocorrerão após o consumo. Essa que antecedem a ingestão da droga (mas sem a exposição a
característica produzirá um complexo sistema de eliciações ela), refle xamente ele produzirá respostas desconfortáveis
que auxiliará a compreender os problemas de tolerância, abs­ (taquicardia, sudorese, hipogli cemia, diminuição de inges­
tinência, procura ativa pela substân cia, overdose e recaída. tão de oxigênio, entre outras). Como exemplo, pode se citar
uma pessoa dependente de heroína injetável que responda
Dependência: Interação Entre a colheres e isqueiros como estímulos condicionados por te­
Processos Respondentes e rem sido pareados confiavelmen te à ingestão do opioide.
Ao ser exposto a esses estímulos (colheres ou isqueiros),
Operantes de Tolerância, o indivíduo imediatamente começa a produzir as respostas
Abstinência, Procura Ativa Pela compensatórias, isto é, as mesmas respostas que “protegem
Substância, Overdose e Recaída o organismo” dos efeitos perniciosos da substância quando
ela está em ação (e que, em sua ausência, são aversivas): su
Após a compreensão a respeito dos processos res­ dorese, tremores, desconforto gástrico, etc. Para que essa
pondentes envolvidos na intro dução de certas substâncias condição aversiva seja eliminada, uma única resposta conhe­

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cida pelo indivíduo é possível: a ingestão da substância. Essa sintoxicação e esteja ha bituado a diversos aspectos do am­
combinação entre as reações aversivas sentidas é denomi­ biente, quando for recolocado em seu ambiente social de
nada “abstinência”. origem, ele entrará em contato com vários outros estímulos,
A busca pela substância, a fim de eliminar seus efeitos, ausentes no ambiente de desintoxicação. Por exemplo, uma
é conhecida como fissura ou craving. Para eliminar os efeitos garota dependente de heroína, internada para desintoxica­
indesejáveis da abstinência, o indivíduo passa a consumir ati­ ção em uma clínica, ficará livre da exposição à substân cia,
vamente a substância, mantendo o ciclo ingestão – pareamen mas continuará exposta aos estímulos “colher” e “isqueiro”.
to – busca ativa, pelo processo de reforço negativo. A inges­ As reações condi cionadas a esses estímulos diminuirão em
tão da droga, então, elimina o estado aversivo produzido pela intensidade (entrarão em extinção) até que a moça receba
exposição aos estímulos ambientais as sociados à ingestão. alta por não apresentar os sintomas de abstinência e de
A fissura seria também o processo responsável pela busca ativa pela heroína naquele ambiente. Ao sair, quando
overdose. Considerando­se que o indivíduo tome sempre a encontrar seu namorado, a garota ficará exposta a um con­
mesma dose nas mesmas situações e que já apresente tole­ junto de estímulos relacionados ao rapaz, desde o “boné
rância, ele terá uma quantidade conhecida de ingestão sufi­ surrado” que ele costumava usar quando ambos consumiam
ciente para alcançar o efeito pretendido. Por exemplo, uma a heroína e expressões faciais por ele emitidas na ocasião do
pessoa dependente de cocaína sabe quantos “papéis” pode consumo da droga até as emoções e os estados corpóreos a
cheirar para obter a excitação comportamental. Enquanto ele relacionados e que também estavam associados ao uso
ela se dirige ao local habitual de consumo (bar, “balada”, da substância. Isso já seria o suficiente para que ocorressem
etc.), seu corpo vai gra dativamente se preparando para a novamente as respostas condicionadas de fissura pela droga
entrada da substância no organismo por meio das respostas (pois os estímulos citados não foram subme tidos ao pro­
antecipatórias, e, então, a fissura aumenta. No entanto, se a cesso de extinção), a subsequente busca ativa para eliminar
cocaína for apresentada ao indivíduo fora do ambiente habi­ o estado desagradável da fissura, a busca e a ingestão da
tual de consumo (p. ex., no ambiente de trabalho) e que não heroína e, por fim, a recaída.
tenha sido associado ao uso do estimulante, a quantidade A Figura 9.6 representa os efeitos das substâncias (A)
comumente consumida terá um efeito muito maior do que e dos estímulos antecipatórios a sua ingestão, demonstran­
o pretendi do, provocando overdose com sérios riscos. Isso do os fenômenos de tolerância (B), abstinên cia, recaída e
acontece porque os estímulos que compõem o ambiente de overdose (C e D).
trabalho não têm o poder de eliciar, em antecipação, os efei­
tos compensatórios da substância. Modelo Comportamental Para
Há, por fim, o processo de recaída. Para explicálo, há os Excessos: O Comportamento
outro processo impor tante a ser considerado. Os proces­
sos respondentes são passíveis de extinção, ou seja, se os Adjuntivo
estímulos condicionados forem apresentados muitas vezes
sem haver, em seguida, os estímulos incondicionados, eles Esse é um modelo que explica excessos comportamen­
perdem o controle sobre as respostas condicionadas antes tais, seja qual for sua natu reza (comportamento excessivo
apresentadas. Por exemplo, quando um dependente de de comer, copular, agredir, usar substâncias, etc.). Ele enfa­
hero ína é impedido de usála, em geral ele é retirado do am­ tiza a importância de parâmetros particulares de esquemas
biente no qual a substância está disponível, ficando também de reforço (es pecialmente os parâmetros combinados de
impedido de entrar em contato com os estímulos que habi­ distribuição e magnitude dos reforça dores), determinando
tualmente acompanham a ingestão. Porém, alguns estímulos o excesso do comportamentoalvo. Considerese o caso de
presentes no ambiente de reclusão são semelhantes àque­ animais trabalhando para produzir alimento em certa distri­
les do ambiente original, ou lá estavam também. Por exem­ buição e magnitude de liberação por oportunidade. Nessas
plo, mesmo em uma clínica de tratamento de dependência condições, Falk observou que ratas que não eram privadas
quí mica, estímulos como colheres e isqueiros (utilizados de água eram capazes de consumir uma enorme quantidade
para o consumo de heroína injetável) continuam presentes do líquido, se disponível, dependendo da distribuição pro­
no cotidiano do paciente. Ainda que participem de relações gra mada para a liberação do alimento. Em alguns casos,
de abstinência ou fissura, nesses ambientes não haverá he­ sujeitos experimentais che garam a consumir água em quan­
roína. Dessa forma, os estímulos antecipatórios (colheres e tidade equivalente a metade de seu peso corporal quando
isqueiros) são apresentados no dia a dia do paciente sem expostos a esses esquemas de reforço de alimento. A esse
que ocorra o pareamento entre eles e a substância, e, por fenômeno foi dado o nome de polidipsia. Em estudos sub­
essa razão, vão perdendo o controle sobre o organismo, o sequentes, Falk estudou os efeitos da distribuição, da quan­
qual passa a se habituar a eles, deixando de responder com tidade e do tipo de alimento liberado. Essa área demons
abstinência e fissura. trou que o comportamento excessivo é determinado pelo
Embora o indivíduo tenha sido submetido a uma de­ esquema de liberação de reforçadores para um certo com­

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FIGURA 9.6 – Curvas dos efeitos da introdução da substância (A, B e C) e dos efeitos dos estímulos que a antecedem fielmente no organismo (D).

portamento (alimento) e da disponibilidade de execução de comportamento de um grupo de dependentes de heroína,


outro comportamento (no caso, beber água) nos intervalos em que poucos dos seus membros referiram sé rios sinto­
entre as liberações dos reforçadores. É preciso notar o com­ mas de abstinência quando a disponibilidade do opioide foi
portamento resultante: o beber é excessivo e ocorre mesmo interrompi da. Os membros desse grupo utilizavam heroí­
que os animais não estejam privados de água. na diariamente, mas apenas uma vez ao dia e em pequena
O comportamento adjuntivo mostrouse comum a mui­ quantidade. A rotina diária deles era muito bem estabelecida
tas espécies, inclusive humanos. Ele ocorre também em fun­ (considerada nesta análise como o análogo ao esquema de
ção da disponibilidade dos estímulos no am biente: se houver liberação de reforços), pois o dia desses indivíduos começa­
água, polidipsia é o resultado. Se houver roda de atividades, va com chegar à rua em pontos de encontro estabelecidos,
o ani mal corre excessivamente. Se houver uma fêmea recep­ trocar informações sobre as condições de disponibilidade
tiva, ocorre cópula, e assim por diante. Foram observados da heroína e as atividades da polícia e, em seguida, o “tra­
comportamentos excessivos de correr na roda de ati vidades, balho” de conseguir dinheiro para a compra da substância
cópula, agressão, pica (ingestão de elementos não comestí­ até a hora do almoço ou o início da tarde. Depois do con
veis), autolesão, fumar, lamber jatos de ar, comer salgadinhos, sumo, esses indivíduos se socializavam no início da noite (o
entre outros. Esse modelo foi uti lizado também para explicar reforçador social). Aparentemente, segundo o autor, não era
o uso e o abuso de substâncias, pois há situações em que elas a dependência física que explicaria, em primeira instância,
estão presentes e seu consumo não é determinado nem pelo o constante uso da droga, mas o esquema social de reforço
efeito refor çador direto das suas sensações nem pela remo­ por estímulos associados a ela (a exposição a outros usuá­
ção de condições aversivas; não há condição de fissura pre­ rios, as conversas com eles sobre a heroína, etc.). Isso expli­
sente nem estímulos eliciadores de respostas antecipatórias. caria o uso frequente (diário), sem os efeitos de abstinência
Hartnoll ilustra esse modelo em um relato sobre o quando da indisponibilidade do opioide.

10 Dependência Química: Uma Abordagem Integradora


O Modelo de Discriminação e cer. Para desenvolver seus estudos, essa abordagem optou
pelo método experimental que “quebra” um fenômeno com­
Generalização de Uso de Substâncias
plexo em pequenas partes. Por esse método, os con troles
Podese supor que a utilização inicial de substâncias do comportamento são estudados e descritos pouco a pou­
tenha muitas origens – ob servação dos efeitos nos outros co, indutivamente. Ao utilizarse de modelos experimentais,
ou nos animais, pressão ou oportunidade social, curiosi­ pretendese fazer a descrição das variáveis de controle do
dade, etc. No entanto, a “escolha” da substância também fenômeno. O ponto de partida, em geral, ocorre pela simi la­
parece ter expli cações comportamentais, que vão desde a ridade topográfica das respostas (formas parecidas) quando
sensibilidade até o princípio ativo que produziria a tolerân­ observados diversos casos clínicos. Contudo, quando anali­
cia e a dependência, passando pelo efeito (se relaxante ou sados individualmente, cada um desses casos pode deman­
ex citatório) e chegando ao pertencimento a algum grupo dar análises funcionais completamente distintas. Os dados
social (como ocorre com substâncias ligadas a rituais mís­ relativos aos modelos experimentais sobre dependência de
ticos ou religiosos). Devese atentar para o fato de que a substâncias apresentados neste capítulo revelaram diversas
maior parte dos usuários de um tipo de substância se “es­ formas de interação entre as respostas de dependência dos
pecializa” nela e costuma procurar substâncias com efeitos organismos e os ambientes em que se encontram, justifican­
similares aos já conhecidos. Hartnoll afirma que encontrou do suas origens e manutenção.
claros exemplos de subgrupos de usuários pesados de O estudo de qualquer patologia do comportamento
subs tâncias específicas na Londres dos anos 1970 e que por meio dos modelos experimentais não pretende que um
vários deles, cuja substância de consumo primário era a único processo seja explicativo dos problemas humanos ou
anfetamina, nunca haviam usado ou afirmavam não gos tar que um tenha primazia explicativa sobre outro para dar conta
de cocaína. Isso reforçaria a crença de que os indivíduos des ses problemas. É mais comum que se encontrem muitos
teriam a “sua” droga, ou seja, aquela de maior predileção. processos interagindo e concorrendo para os mesmos efei­
No entanto, observamse também, especialmente em ca­ tos do que um único processo ser suficiente para a determi­
sos de abuso pesado e constante, usuários de múltiplas nação do problema. No caso da dependência de substân­
substâncias que produzem efeitos farmacoló gicos e com­ cias, isso não é exceção. A teoria analíticocomportamental,
portamentais e passam por circuitos neuronais distintos. apesar de produzir conhecimento por meio da análise (ou
Esses casos indicam problemas de comportamento em “quebra” em pequenas partes) do fenômeno, também se
outro nível explicativo; por exemplo, o uso indiscrimina­ ocupa da síntese comportamental, que é muito mais do que
do de substâncias pode apontar mais um comportamento a mera junção das partes. Nos últimos anos, alguns analistas
desa fiante, reforçado por quebrar regras sociais, do que do comportamento têm se ocupado de sínteses comporta­
uma condição de dependência farmacológica, de escolha mentais. Há algumas tentativas de sínteses comportamen­
de uma substância de predileção. A busca pelo compor tais aplicadas a outros problemas psicopatológicos, como
tamento infrator seria a motivação básica para esse tipo a ansiedade. Pelo menos, essas duas formas de abordar a
de escolha generalizada. Além disso, o estado alterado de psicopatologia – a análise e a síntese comportamental – con­
consciência e de comportamento pode proporcio nar ao ti nuam sendo desenvolvidas para abarcar a complexidade
indivíduo que usa “qualquer” tipo de substância uma sé­ dos processos envolvidos nos excessos e déficits compor­
rie de remoções de estímulos aversivos. Como exemplos, tamentais.
podemos citar a remoção de convívio social em indivíduos Ainda há muito a ser pesquisado e descrito para que
com fobia social, o afastamento de trabalhos indesejados a busca de soluções para a questão da dependência quími­
ou para os quais as pessoas não têm habilidade, a evitação ca continue. Por meio do método experimental, acreditase,
de contato com variáveis de contro le emocionais de cer­ será possível desenvolver técnicas e estratégias de enfren­
tas situações como abandono, desvalia, etc. Por fim, alguns tamento para o problema. A teoria comportamental, de ma­
casos de abuso generalizado de substâncias podem ser ex neira mais ampla, e a analíticocom portamental, mais espe­
plicados por reforço positivo; por exemplo, em seguida a cificamente, têm oferecido ferramentas muito úteis para a
um estado de compor tamento ou de consciência alterado, concepção, o estudo e o controle sobre o fenômeno.
o usuário recebe cuidados e atenção social, auxílio que não Além dos estudos em laboratório experimental, que
receberia caso não atingisse essa alteração. devem ser aprofundados, pesquisas aplicadas de análise do
comportamento e estudos de casos clínicos pode rão acres­
Considerações Finais centar conhecimento útil para que ciência e tecnologia do
comportamen to sejam desenvolvidas. Os modelos experi­
A teoria analíticocomportamental tem buscado muitas mentais de psicopatologia, além de dar o suporte científico
formas de interpretar o fenômeno da dependência de subs­ para esse desenvolvimento, também podem auxiliar e me­
tâncias, sobretudo por entender que os com portamentos lhorar a concepção cultural de um problema tão relevante
são multifuncionais, ou seja, têm muitas razões para aconte­ na sociedade.

Módulo 03 11
PREVENÇÃO DE RECAÍDA
Elaborada por Marlatt e Gordon na década de 1980,
a prevenção de recaída é o conjunto de técnicas que tem
como objetivo principal a manutenção da mudança de hábi­
tos. Essa abordagem é baseada nos pressupostos descritos
pela psicologia do aprendizado social, do comportamento
aditivo como hábito adquirido, isto é, a pessoa experien­
cia uma gratificação após um comportamento ou o utiliza
para evitar uma situação estressante (p. ex., bebe para ficar
à vontade em uma festa), e esse comportamento passa a
ser repetido durante ou antes de situações desa gradáveis,
tornandose uma habilidade de enfrentamento maladaptada.
Uma vez aplicado o comportamento aditivo, as consequên­
cias negativas podem realmente ser adiadas, e o indivíduo
tem a sensação momentânea de solução.
Tendose aprendido a ideia do comportamento depen­
dente, a modificação no modo de pensar e agir se torna uma
possibilidade. Nesse ponto de vista, nem sempre existe uma FIGURA 10.1 – Modelo em espiral dos estágios de mudança.
causa psicológica subjacente, e o foco do tratamento passa
a ser a forma de chegar ao controle, e não o motivo de têlo mesmo tempo, a rejeita, e é nessa fase que a ambivalência,
perdido. estando em seu ápice, deve ser trabalhada para possibilitar
Inicialmente desenvolvida com o objetivo de fazer a um movimento rumo à decisão de mudar.
manutenção comporta mental no tratamento da dependên­ Trabalhada a ambivalência, o indivíduo pode passar
cia química, a prevenção de recaída hoje em dia abrange para o estágio de pre­ paração, em que está pronto para mu­
todos os comportamentos considerados aditivos (transtor­ dar e comprometido com a mudança. Faz parte desse estágio
nos da ali mentação, jogo patológico, etc.), em que o indi­ o aumento da responsabilidade pela mudança e a elabora­
víduo busca uma gratificação ime diata, relevando possíveis ção de um plano específico de ação. O estágio seguinte é o
efeitos adversos desse comportamento, como desconfor to de ação, no qual a pessoa usa a terapia como um meio de
físico, desaprovação social, problemas financeiros, entre assegurarse de seu plano, para ganhar autoeficácia e final­
outros. O objetivo deste capítulo é descrever as bases da mente criar condições externas para a mudança. O grande
técnica da prevenção de re caída, os diferentes modelos, teste que compro va a efetividade da mudança seria a estabi­
as evidências da efetividade e os novos campos de estudo lidade por anos nesse novo estado; no processo de mudan­
dentro da abordagem. ça, isso se chama manutenção. Porém, devese observar que
atingir alguma mudança não significa manterse em tal estágio,
Processo De Mudança, Lapso e visto que muitas pessoas acabam recaindo e tendo de reco­
Recaída meçar o processo. Esse recomeço nem sempre ocorre pelo
estágio inicial. Muitos passam inúmeras vezes pelas diferen­
O conceito de prontidão para a mudança, baseado no tes etapas para chegar ao término, isto é, uma mudança mais
modelo de Estágios de Mu dança, foi desenvolvido por Pro­ duradoura. Daí os auto res passarem a ilustrar o processo de
chaska e colaboradores. Tendo como base o con ceito de mudança como uma espiral, pressupondo um movimento,
motivação como um estado de prontidão ou vontade de mu­ como mostra a Figura 10.1.
dar (como um estado interno mutável de acordo com fatores Existe uma diferença entre lapso e recaída: o lapso é
externos), esse modelo acredita que a mudança se faz por um retorno momentâneo ao hábito anterior com uma “encru­
meio de um processo, e, para tal, a pessoa passa por diferen­ zilhada”: um caminho retorna definitivamente ao nível anterior
tes estágios. do problema (recaída total) e o outro leva à mudança positiva.
A entrada para o processo de mudança é o estágio de A recaída é um lapso mais demorado, mas também é conside­
pré­contemplação, em que o indivíduo ainda não está con­ rada transitória, isto é, uma série de eventos que pode ou não
siderando a modificação. De modo geral, a pessoa, nesse ser seguida de um retorno à abstinência. Marlatt e Witkiewitz
estágio, nem sequer encara seu comportamento como um utilizam a seguinte metáfora para descrever o aprendizado
proble ma, podendo ser vista como “resistente” ou “em ne­ decorrente do processo de recaída: uma pessoa que começa
gação”. Quando algum nível de consciência sobre o problema a andar de bicicleta ou esquiar sempre cai mais nas primei­
é desenvolvido, a pessoa entra no estágio seguinte, de con­ ras tentativas. À medida que treina, as quedas e os tropeços
templação. O contemplador considera a mudança, mas, ao diminuem, e a pessoa adquire habilidade naquela atividade.

12 Dependência Química: Uma Abordagem Integradora


Fatores Que Influenciam a Recaída ram que as habilidades de enfrentamento são predi­
toras de sucesso, sobretudo após o tratamento, não
Marlatt e Witkiewitz descrevem dois grandes grupos importando qual o tipo deste. No modelo cognitivo­
de fatores que influenciam a recaída: os intrapessoais e os comportamental, o maior preditor de recaída é a di­
interpessoais. Os fatores intrapessoais são os seguintes: ficuldade do indivíduo em lidar com situações de alto
risco.
• Autoeficácia: o conceito desenvolvido por Bandura • Estados emocionais: nas primeiras investigações so­
define autoeficácia como confiança e capacidade que bre episódios de recaída, os estados emocionais ne­
o indivíduo sente de ter um determinado comporta­ gativos eram seu mais forte preditor. Muitos estu dos
mento em uma situação específica. Segundo o modelo mostram a relação entre afeto negativo e recaída de
cognitivo comportamental, uma boa autoeficácia é fa­ uso de substâncias; entre eles, Baker e colaboradores
tor preditivo de sucesso de tratamento. identificaram os estados emocionais negativos como o
• Expectativas de resultado: segundo Brown e colabo­ primeiro motivo para o uso de substâncias.
radores, seriam a antecipação que o indivíduo faz • Relações interpessoais: o suporte/apoio social funcio­
dos efeitos de uma experiência futura. Acreditase nal ou nível de suporte emocional é altamente predi­
que as expectativas influenciam o resultado do trata­ tivo de manutenção da abstinência nos mais diversos
mento: a expectativa positiva da substância leva a um tipos de dependência. É importante tanto a qualidade
resultado ruim de tratamento e viceversa. A expec­ como a quantidade do apoio.
tativa positiva da substância ou do comportamento
dependente (p. ex., “Um cigarro me ajudaria a rela­ Os Alicerces da Prevenção de
xar.”) gera resultados negativos para o tratamento; Recaída
em contrapartida, a expectativa negativa (p. ex., “Eu
vou ter aquela ressaca se beber!”) implica melhores De acordo com a abordagem de prevenção de recaí­
resultados de tratamento. da, a primeira etapa no trata mento é o reconhecimento do
• Fissura: a expectativa positiva da antecipação do uso comportamento dependente como um problema. A partir
de substâncias está diretamente associada à “fissura” daí, então, o indivíduo pode pensar em mudança.Para a pre­
aumentada. “Fissura” é o fator mais estudado nesse venção de recaída, não basta reconhecer o problema, são
campo e o menos compreendido. Alguns achados so­ necessá rias mais duas estratégias: o treinamento de habili­
bre o assunto indicam que ela prediz recaída, mas esta dades sociais, isto é, saber como lidar de forma efetiva com
não está diretamente associada ao aumento de “fissu­ as situações que se colocam, e as mudanças no estilo de
ra”, a qual aparece como preditor de recaída em indi­ vida. Uma vez abstinente, é importante que o indivíduo re­
víduos abstinentes e não tanto em usuários. Larimer e estruture sua rotina, suas atividades e sua rede social. Essas
colaborado res distinguiram a “fissura” – desejo subje­ estratégias são foco de trabalho específico da prevenção de
tivo de consumir a substância – de uma outra urgência recaída e são essenciais para a manutenção da mudança de
mais relacionada a comportamentos impulsivos. Utili­ com portamento.
zando esse conceito, é possível minimizála, colocando
em foco as sensações do indivíduo e suas expectativas Situações de alto risco
de resultado em relação ao uso da substância.
• Motivação: de acordo com o modelo dos estágios de Uma situação de alto risco é aquela que impõe uma
mudança, a motivação é o fator principal de mudan­ ameaça ao indivíduo e o im pede de se controlar (autoeficá­
ça. Cox e Klinger reforçam essa ideia quando pro­ cia), aumentando o risco de um lapso ou de uma recaída. Es­
põem que “o caminho final e comum do uso de álcool sas situações são o foco principal de trabalho na prevenção
é motivacional”, considerando que a motivação é um de recaída, que tem como objetivo reconhecêlas e evitálas
elementochave para trabalhar a mu dança de compor­ quando necessário e possível, as sim como ensinar o indiví­
tamento. Portanto, ela se relaciona ao processo de re­ duo a lidar efetivamente com elas de outras formas, que não
caída das seguintes formas: para a mudança positiva consumindo a substância.
de comportamento ou para que o indivíduo se engaje As situações de alto risco estão classificadas em dois
no comportamentoproblema, que é o que se denomi­ grandes grupos: aquelas que se referem a estados emocio­
na ambivalência. A ambivalência, em geral, relacionase nais do indivíduo ou ao ambiente e aquelas que se referem a
tanto com a autoeficácia (“Eu quero parar de fumar, questões de relacionamento com terceiros. Os determinan­
mas não sei se consigo.”) quanto com as expectativas tes intrapesso ais e ambientais são:
de resultado (“Eu vou parar de beber, e não terei mais
ressacas.”). • Estados emocionais negativos, como frustração, raiva,
• Habilidades de enfrentamento: muitos estudos prova­ depressão, medo,

Módulo 03 13
• solidão, entre outros. Modelo linear de prevenção de recaída
• Estados físicos e fisiológicos negativos:
— associados ao uso prévio de substância (p. ex., absti­ Quando Marlatt e Gordon publicaram a primeira edição
nência); de seu livro, a esque matização da recaída foi realizada a par­
— outros: dor, contusão, etc. tir de um modelo linear de acordo com a Figura 10.2. Nesse
• Estados emocionais positivos (alegria, satisfação, etc.) modelo, o indivíduo, diante de uma situação de alto risco, tem
• Teste de controle pessoal: o indivíduo que está em duas opções: uma delas é ter uma resposta de enfrentamento
um processo de mudança e, muitas vezes, abstinente positiva, isto é, não usar a substância. Esse comportamento
sente vontade de “testar” sua autoeficácia para ver se resulta em uma experiência de autocontro le (autoeficácia):
é realmente capaz de manter o controle e se expõe quanto mais o indivíduo mantiver seus objetivos, maior será
a uma situação em que se sentiria muito impelido a sua percepção de autoeficácia e, consequentemente, dimi­
consumir a substância. nuirá a chance de recaída. A segunda opção é o indivíduo
• Cedendo a tentações, à vontade de consumir a subs­ ter uma resposta de enfrentamento negativa, isto é, ceder ao
tância: desejo de consumir a substância. Nesse caso, a autoeficácia
— na presença de “gatilhos” – o alcoolista vai a uma fes­ diminui, e surgem os “resultados e expectativas positivos do
ta e, estando com muita “fissura”, expõese ao gatilho, uso da substância”, ou seja, a pessoa começa a pensar nas
isto é, ver e estar com pessoas que estão bebendo. vantagens que teria se consumisse a substância (p. ex., sensa­
— na ausência de “gatilhos” – o usuário de cocaína está ção de bemestar e de afastamento dos problemas), e, então,
em casa sozinho, mas com muita vontade de consu­ ocorre o lapso ou o começo do consumo. O lapso é um uso
mir a substância (que, neste caso, é o próprio gatilho), isolado, diferente da recaída, que é uma retomada dos pa­
apesar de não ter a droga por perto. drões de uso original, intenso e frequente. No lapso, a pessoa
ainda pode recuar e retomar o caminho da resposta positi­
Os determinantes interpessoais são: va, mas o que se observa é que fica mais difícil cessar o uso
uma vez retomado, pois o que ocorre a seguir é o cha mado
• Conflito com companheiro, família ou amigos, que gera: efeito da violação da abstinência (EVA), exemplificado pelo
— frustração ou raiva; seguinte pensa mento: “Já furei a abstinência mesmo, já dei
— outros sentimentos (ansiedade, apreensão, etc.). um pega no baseado, então vou fumar ele inteiro!”. É como
• Pressão social: uma permissão que a pessoa se dá para continuar consumin­
— direta, na presença de alguém; por exemplo, quando do a substância. É uma reação emocionalcognitiva a um lapso
os amigos insistem para que o jovem entre na roda de inicial: influencia a probabilidade de que o lapso seja seguido
maconha; por um aumento do uso da substância.
— indireta (usa pessoas como modelo); por exemplo, O EVA é um construto dimensional: quanto maior ele
quando o jovem cede ao uso de álcool ao pensar no for, maior será a pro babilidade de recaída ou de agrava­
pai, que é seu modelo e tem o hábito de beber. mento do lapso inicial; e quanto maior a discre pância entre
• Aumento dos estados emocionais positivos: por exem­ o comportamento atual e o idealizado, maior será a culpa.
plo, quando as pessoas estão se divertindo em um show, Há dois elementos cognitivoafetivos que influenciam o EVA:
mas tomam ecstasy para intensificar as sensações.
• Dissonância cognitiva (conflito e culpa diante da autoi­
Marlatt e Gordon acreditam que o determinante da re­ magem: “Eu não devia ter bebido, mas bebi.”);
caída é um preditor de sua magnitude. Portanto, é essencial • Efeito da atribuição pessoal, isto é, associar a recaída
identificar qual a situação de alto risco para cada indivíduo. a questões intrapessoais (p. ex., incapacidade de en­
Existem diferentes formas de identificar as situações frentamento).
de alto risco: Quanto mais evidentes forem esses fatores, maior será
• Observar diretamente o comportamento. o “tombo”, ou seja, mais grave será a recaída. Junto com o
• Quantificar a autoeficácia (alguns instrumentos úteis EVA, surgem os “efeitos contínuos da subs tância”, isto é, sen­
são o questionário de confiança situacional e o de au­ sações prazerosas que passam a se sobrepor aos prejuízos
toeficácia. Escrever uma autobiografia: ao escrever sua na men te do indivíduo, o que aumenta as chances de recaí­
história, a pessoa vai se dando conta dos eventos ou da. Esse esquema do EVA mostra o quanto os pensamentos
estados emocionais que mais a deixam suscetível ao influenciam o comportamento propriamente dito, mais uma
uso da substância. vez enfatizando a importância do uso de uma abordagem
• Descrever as recaídas passadas e as fantasiadas. cognitivocompor tamental. Daí a necessidade de o profissio­
• Automonitorar­se: por meio de um diário descritivo de nal, junto com o paciente, identificar os pensamentos, senti­
sua rotina, a pessoa identifica um padrão de uso, bem mentos e comportamentos vinculados ao consumo, a fim de
como seus antecedentes e suas conse quências. encontrar alternativas para evitar o hábito de uso.

14 Dependência Química: Uma Abordagem Integradora


FIGURA 10.2 – Modelo em espiral dos estágios de mudança.

Mudanças no estilo de vida uma comemoração ou um elogio) ou negativos (doença ou


morte de alguém próximo ou uma separação). Também são
Depois de identificadas as situações de alto risco e fontes de estresse pequenos aborrecimentos ou coisas boas,
feito o treinamento para lidar com elas ou com outras situ­ como pequenos fatos corriqueiros, negativos ou positivos,
ações estressoras, é necessária uma mudança no estilo de que podem servir de estressores, desequilibrando o ritmo
vida, isto é, mudar rotina, amigos, locais que frequenta e ati­ normal do dia a dia. Podese citar como exemplos de abor­
vidades, a fim de evitar a proximidade com o que lembra ou recimentos a chegada inesperada de uma conta e uma briga
leva o indivíduo à substância. Sabese que uma das principais no trânsito; como fatos positivos, um elogio recebido no tra­
razões da recaída é uma vida desequilibrada, o que se deve, balho ou o filho que traz um bom boletim escolar para casa.
basicamente, a dois motivos: A dificuldade de lidar com estressores pode gerar ain­
1. Quando há um desequilíbrio entre os deveres, isto é, da mais estresse. Por isso, a assertividade, entre outras ha­
as coisas que precisam ser feitas – trabalho, estudos, bilidades, deve ser trabalhada ao longo do tra tamento e
cuidar da casa e de si mesmo – e o lazer, ou seja, o continuamente abordada.
que se gosta de fazer, não é obrigatório e traz satis­ Para que a pessoa explore essa rotina, é importante
fação, como, por exemplo, descansar, passear, ir ao ci­ que sua percepção sub jetiva a respeito das tarefas e ativida­
nema e ficar com a família. Indivíduos que não encon­ des que lhe dão prazer seja avaliada para que, a partir desse
tram muitas fontes de prazer na vida diária sucumbem diagnóstico, a rotina seja reelaborada de forma mais equili­
à gratificação imediata do comportamento dependente. brada. Portanto, em um primeiro momento, devese avaliar a
Quando a pessoa sente que está dedicando tempo ex­ rotina atual e depois pensar nas possibilidades de mudança.
cessivo aos deveres, acaba ficando com uma sensação Nesse segundo momento, é importante auxiliar o indivíduo a
de autoprivação e uma necessidade correspondente de explorar alternativas, sem esquecer do princípio da entrevista
autoindulgência, isto é, de agradar a si mesma. A proba­ motiva cional, isto é, “deixar na mão” do indivíduo a responsa­
bilidade de recair aumenta à medida que os “deveres” bilidade da escolha. Muitas vezes, é considerada a troca das
se sobrepõem aos “desejos”, aumen tando, portanto, dependências negativas (que seriam exatamente o uso de
a chance de retorno ao comportamento dependente substâncias) por dependências positivas, que poderiam ser
como uma forma maladaptada de restaurar o equilíbrio. um esporte ou a ida frequente a uma comunidade religiosa.
2. Quando há uma fonte de estresse na vida do indivíduo. Uma estratégia utilizada para refletir sobre o estilo
de vida é elaborar um plano de ação, cujas atividades são
Tais fontes podem ser diversas, como grandes eventos pensar em metas, além de considerar opções e possíveis
de vida, que podem ser positivos (uma promoção no trabalho obstáculos. Um exemplo de plano de ação, sugerido por
que leva a pessoa a ficar ansiosa para cum prir o esperado, Miller e Roll nick (Fig. 10.3), mostra que é importante, nesse

Módulo 03 15
momento, que o terapeuta sirva de conselheiro. Assim como rotina está muito desequilibrada. Diante de um estilo de vida
propõem os autores da prevenção de recaída, a função do desequilibrado, tendo apenas trabalho e deveres, a pessoa
terapeuta é ajudar o paciente a pensar se as metas estabe­ pode ter reações afetivas (em geral, somáticas) ou cogniti­
lecidas por ele são viá veis e condizentes com seu percurso vas. Na forma física, o desejo pode se ex pressar por meio
até o momento, por mais que sejam diferentes daquelas que da “fissura”; na forma cognitiva, pode manifestarse por uma
o terapeuta imagina para ele. A ideia é “ficar ao lado do distorção, “dando a permissão” para uma potencial recaída
paciente” em um plano que represente o progresso para a na forma de racionali zação, negação ou DAIs.
recuperação. O plano de ação possibilita ao indivíduo pen­ Essas ideias estão baseadas nos trabalhos de toma­
sar objetivamente aonde quer chegar, considerando essas da de decisão feitos pelos pacientes; a qualidade e o tipo
possibilidades de forma realista, mas também relembra a da primeira decisão no processo de mudança têm muita
necessidade de se planejar, isto é, pensar antes de fazer, o influência sobre os resultados. Mais especificamente, para
que aumenta a probabilidade de sucesso e evita recaídas. compreender o processo de tomada de decisão em um pro­
cesso de recaída, o trabalho de Jannis e Mann é de extre­
Decisões Aparentemente ma importância. Eles propõem o modelo do conflito, isto
Irrelevantes é, como fatores psicológicos afetam a tomada de decisão
e como esta gera o estresse: quanto mais baixos forem os
As decisões aparentemente irrelevantes (DAIs) são níveis de estresse que envolvem uma tomada de de cisão,
armadilhas mentais que podem causar problemas na manu­ mais tranquila e calculada ela será, enquanto altos níveis de
tenção da mudança. Elas foram primeiramente des critas estresse podem gerar consequências na decisão. Naquelas
por Marlatt e Gordon, mas são muito conhecidas na área que envolvem a recaída, há dois fatores que podem aumen­
das adicções como setups. As DAIs são uma série de deci­ tar o nível de estresse: as situações estressoras ou de alto
sões do dia a dia, como onde almoçar, qual caminho pegar risco – que levam o indivíduo ao ponto de ter de se posicio­
para ir para casa, se vai ou não visitar um amigo, etc. Essas nar quanto ao uso ou não da substância – e o conflito entre
decisões podem levar o indivíduo a uma situação fora do “devo ou não devo me satisfazer”. Entre os cinco diferentes
seu controle e a tentações difíceis de resistir. Os indivíduos padrões de tomada de decisão listados por Jannis e Mann,
não estão conscientes desse processo, ou estão apenas par somente três estão mais associados à recaída:
cialmente conscientes, e, em geral, dãose conta dele apenas • Hipervigilância: é o padrão mais extremo, quando a
em retrospectiva, isto é, depois que aconteceu. Os parentes pessoa age impulsivamen te por se sentir pressionada
e amigos veem o lapso surgindo, mas a pessoa entra na situ­ ou necessitada de um alívio. Há um estreitamento dos
ação de risco não consciente ou levada pelas circunstâncias. processos cognitivos, a pessoa não se permite pensar
Algumas dessas armadilhas são óbvias, mas outras são sutis nas alternativas nem pesar suas decisões, o que torna
e envolvem pequenas decisões corriqueiras. Em geral, esses limitadas as possíveis opções.
movimentos são “pequenos o suficiente” para pare cerem • Evitação defensiva: muito comum no campo das de­
irrelevantes para a própria pessoa e os outros. Se a racio­ pendências, a pessoa culpa algo externo por seu ato:
nalização convence a todos, sem levantar nenhum alarde de “Se não fosse pelo meu amigo, eu não teria fumado”.
culpa ou embaraço, o indivíduo estará diante daquela situ­ A pessoa racionaliza ou se defende, distorcendo os
ação impossível de enfrentar, e, em geral, o que se ouve é: fatos, isto é, exagera os benefícios do consumo e mi­
“Não é minha culpa que isto esteja acontecendo!”. nimiza os efeitos adversos.
Muitas vezes, criar um estresse enorme que resulta • Vigilância: é o padrão mais efetivo de tomada de deci­
na necessidade de recom pensa também é um tipo de ar­ são. A pessoa é capaz de buscar todas as alternativas
madilha, mais um exemplo de como o desequilíbrio da vida possíveis e pondera qual delas é mais apro priada para
cotidiana pode prejudicar e precisa ser trabalhado, assunto aquela situação.
que será abor dado nos próximos capítulos. Acreditase, por­ No caso das DAIs, o processo decisivo é muito impor­
tanto, que as pessoas caiam nessas armadilhas quando sua tante, e a atitude mais comum é a “evitação defensiva”. O

As mudanças que quero fazer são: _____________________________________________________________________


As principais razões para eu querer fazer tais mudanças são: ______________________________________________
Os passos que planejei para mudar são: ________________________________________________________________
A forma como as pessoas podem me ajudar é: __________________________________________________________
Pessoas Forma de ajudar
___________________________________________________________________________________________________
Saberei que meu plano está funcionando se... ___________________________________________________________
Algumas coisas que podem interferir no meu plano são: __________________________________________________

FIGURA 10.3 – Formulário para planejamento de mudança.

16 Dependência Química: Uma Abordagem Integradora


primeiro passo para auxiliar os pacientes a lidar com essas O Modelo Dinâmico de Recaída
armadilhas é ajudálos a reconhecêlas e entender o papel
delas nes se processo de tomada de decisão. O paciente Após duas décadas de estudos sobre essa aborda­
deve compreender o princípio das DAIs e o fato de que é gem, foram feitas muitas críticas que apontavam a necessi­
mais fácil intervir no início dessa cadeia do que nos eventos dade de incluir mais complexidade ao construto da recaí da,
tardios. Uma vez que essa cadeia aproxima o paciente do determinantes de recaída adicionais (p. ex., fissura), mais
lapso, fica muito difícil ou quase impossível frear o consu­ informações sobre o tipo ou timing do evento de recaída e
mo. As DAIs devem ser vistas como alertas que servem de um aumento da validade do construto. Obtiveramse tam­
sinal para que uma intervenção seja feita. Diante desse sinal, bém muitos achados sobre a importância de autoeficácia,
o paciente deve estar muito atento ao processo de deci­ afe tos positivos e negativos, expectativas de resultados,
são, e, em qualquer momento de esco lha, deve haver uma fissura, sintomatologia da abstinência, habilidades de en­
avaliação cuidadosa sobre qual caminho tomar. Porém, para frentamento, motivação e suporte social no processo de
tomar todo esse cuidado, é necessário que ele reconheça os recaída. A teoria da prevenção de recaída, que havia partido
pequenos eventos como armadilhas para a recaída. As DAIs do modelo linear, passou a apoiarse em um modelo mais
mais comuns se referem a: dinâmico, no qual a interação de diversos fatores resulta na
• exposição engenhosa à substância, geralmente se mis­ recaída ou na manutenção da mudança do comporta mento,
turando com pessoas com o mesmo problema. como mostra a Figura 10.4.
• definição de metas irreais, sendo que o fracasso é ine­ Em cada situação de risco, o paciente se depara com
vitável, e a consolidação do lapso, compreensível. o desafio de considerar as diversas ameaças e possíveis
• testes de habilidade, como ficar sem consumir subs­ consequências. A resposta do indivíduo é um sistema auto­
tâncias em uma situação extremamente arriscada com organizado no qual entram fatores de risco distais (p. ex.,
o seguinte pensamento: “Se consigo ficar sem fumar anos de dependên cia, história familiar, comorbidade, etc.),
nessa situação, conseguirei em qualquer outra”. processos cognitivos (autoeficácia, fissura, motivação, etc.), e
• consumo de substância em função de outra pessoa: “Se habilidades cognitivas e comportamentais. Esse novo mode­
meus amigos não acenderem um baseado, ficarei bem”. lo sugere muitas relações possíveis entre os fatores distais e
• falta de limites nos fatos corriqueiros, como, por proximais. Na Figura 10.4, as linhas pontilhadas representam
exemplo, ter de passar em frente à pracinha onde os as influências proximais, enquanto as contínuas representam
colegas estão fumando para ir para casa. as distais. Os quadrados supõem uma relação de reciproci­

FIGURA 10.4 – Modelo dinâmico de recaída..

Módulo 03 17
dade, isto é, as habilidades de enfrentamento influenciam o pesquisa concluiu que a prevenção de recaída é efetiva na
consumo de substâncias e vice­versa. Como mostra o grande redução do uso de substâncias e na melhora da adaptação
círculo no fundo, as situações de alto risco têm um papel es­ psicossocial. A prevenção de recaída mostrouse significati
sencial na relação entre fatores de risco e consumo de subs­ vamente efetiva em tratar alcoolistas e usuários de múltiplas
tâncias, por isso é importante que tais situações sejam identi­ substâncias em com paração a tabagistas e usuários de co­
ficadas e avaliadas. Em ambos os esquemas, a autoeficácia é caína, embora esse dado mereça ser analisado com cuidado,
um dos determinantes cruciais da recaída. visto que a amostra continha um número pequeno de usuá­
O uso isolado de habilidades de enfrentamento efetivas rios de cocaína. A prevenção de recaída também foi efetiva
pode não garantir a melhora da autoeficácia e a manuten­ em diferentes modalidades – individual, em grupo e de ca­
ção da abstinência, mas, combinadas com o suporte social sal –, sendo mais efetiva no tratamento do alcoolismo. Esse
funcional, o afeto positivo generalizado e as expectativas de dado poderia ser justificado pelo fato de essa abordagem
resul tado negativas, as habilidades podem aumentar razoa­ ter sido criada para atender às demandas de uma população
velmente a probabilidade de manutenção da abstinência. de alcoolistas. Mais pesquisas que estudem a aplicação da
O modelo dinâmico assume que a recaída pode ocor­ prevenção de recaída no tratamento do uso de outras subs­
rer de forma repentina e inesperada, trazendo à tona o com­ tâncias poderiam contribuir para corroborar esses achados.
portamento anterior. Essa ideia se aproxima tanto de obser­ Uma metanálise mais recente incluiu 53 ensaios con­
vações clínicas quanto de modelos que assumem que um trolados de terapia cog nitivocomportamental para transtor­
comporta mento modificado é instável e facilmente afetado no por uso de substâncias cujo tratamento tinha por base o
pelo contexto. Esse novo mo delo dinâmico está estrutu­ modelo de prevenção de recaída. Os resultados estão de
rado não apenas na teoria cognitivocomportamental, mas acordo com a revisão de Irwin e colaboradores: 58% dos
também na teoria do sistema dinâmico não linear (NDST, indivíduos usuários de alguma substância se saíram melhor
nonlinear dynami­ cal systems theory) e na teoria da ca­ do que os controles. Porém, diferentemente da revisão an­
tástrofe, que, em termos gerais, é um modelo dinâmico de terior, aqueles que obtiveram melhores resultados foram os
compreensão de eventos em que pequenas mudanças po­ usuários de maconha.
dem alterar o sistema abruptamente. Com relação ao tabaco, duas grandes revisões vêm sendo
feitas pelo Centro Cochrane. Em um primeiro momento, os resul­
Efetividade da Técnica de Prevenção tados eram desfavoráveis para a prevenção de recaída; porém,
de Recaída e Novas Fronteiras em uma nova análise, os dados mostraram que intervenções de
mútua ajuda baseadas no modelo cognitivocomportamental da
A influência da prevenção de recaída nas abordagens prevenção de recaída geravam maior tempo de abstinência quan­
comportamentais dos com portamentos dependentes é evi­ do comparados com aconselhamento em grupo. Considerando­
dente. Porém, o fato de tal modalidade de trata mento ser se que muitos estudos têm de monstrado a efetividade de inter­
mesclada com outras técnicas torna sua avaliação sistemática venções breves, o modelo cognitivocomporta mental de recaída
bastante limitada. Carroll conduziu uma revisão com 24 en­ ou as técnicas de prevenção de recaída poderiam ser pensados
saios clínicos randomizados que in cluíam estudos com de­ para uma aplicação breve ou mesmo para uma sessão de reforço
pendentes de cigarro, álcool, maconha e cocaína. A conclusão (buster session) em um programa de tratamento mais amplo.
foi que a prevenção de recaída é mais efetiva que a ausência Estudos recentes mostram a aplicação da prevenção de
de tratamento e tão efe tiva quanto outras intervenções ati­ recaída associada a outros tratamentos, como farmacoterapia e
vas, como a psicoterapia de apoio e a interpessoal. meditação profunda. Um novo campo de pesquisa que se abre
Muitos estudos mostraram que as técnicas de pre­ é a influência genética na resposta ao tratamento e à recaída.
venção de recaída reduzem a intensidade do episódio de A prevenção de recaída, baseada no controle total da mente
recaída quando comparadas com ausência de tra tamento (MBRP, mindfulness­based relapse prevention), é a mais notável
ou outras técnicas ativas. Diversos outros estudos mostra­ aplicação da habilidade ao setting clínico. Isso acontece porque
ram que a prevenção de recaída tem efeitos mais duradou­ essa abordagem potencializa os efeitos das práticas cognitivo­
ros que outras abordagens, sugerin do que tal modalidade comportamentais, mas, ao contrário destas, a MBRP enfatiza
pode oferecer uma melhora continuada ao longo do tem po. uma atenção não julgadora sobre os pensamentos e urgências
Esses achados apontam para uma curva de aprendizado na de uso. A “fissura” é vista como passageira, e a proposta é que
qual a melhora nas capacidades de enfrentamento resulta essa sensação seja vivenciada como uma onda que cresce, tem
em um decréscimo da chance de recair e foram confirmados seu pico e decresce. A ideia é que se “surfe” na “fissura”.
por ambos os modelos de recaída descritos neste capítulo.
Irwin e colaboradores conduziram uma metanálise Considerações Finais
das técnicas de preven ção de recaída no tratamento de ál­
cool, tabaco, cocaína e uso de múltiplas subs tâncias. Vinte A prevenção de recaída vem se mostrando uma abor­
estudos foram incluídos, representando 9.504 indivíduos. A dagem muito útil no manejo de casos de dependência quí­

18 Dependência Química: Uma Abordagem Integradora


mica. Identificar situações de risco, aprender a enfren tálas de de metodologias de pesquisa e modelos chamados de
e mudar o estilo de vida são atitudes que podem contribuir prevenção de recaída, mais estudos que controlem a forma
para a manuten ção da mudança de comportamento. como a técnica é aplicada (número de sessões e seu con­
A literatura comprova a efetividade da técnica aplicada teúdo, formação do terapeuta, etc.) podem contribuir para
a diferentes subs tâncias; porém, por conta da diversida­ resultados mais consistentes.

TERAPIA COGNITIVO-COMPOR- vimento das habilidades de autoobservação, autoavaliação


e autorreforço), resultaram no desenvolvimento do modelo
TAMENTAL DAS HABILIDADES SO- teórico do treinamento instrucional, que tem como premis­
CIAIS E DE ENFRENTAMENTO DE sa básica o fato de que mudanças relacionadas a determi­
nados comportamentos ocorrem a partir das alterações nas
SITUAÇÕES DE RISCO instruções que uma pessoa dá a si mesma, evitando os pen­
samentos disfuncionais e buscando os mais adaptativos.
Historicamente, o conceito de habilidades sociais tem A definição de comportamento socialmente habilidoso
uma relação estreita com o desenvolvimento da assertivida­ tem sido alvo de mui ta controvérsia, visto que aquilo que
de, da competência social e do comportamento adaptativo. pode ser socialmente aceito em determinada situação pode
Nos últimos tempos, tais habilidades passaram a significar não ser em outra. Assim, as definições que sugerem como
um méto do de tratamento que objetiva a superação de dé­ parâmetro a eficácia no atingimento dos objetivos ou suas
ficits e dificuldades interpessoais, além de auxiliar na ma­ consequências parecem ter mais consistência entre diversos
ximização de repertórios de comportamentos sociais. Sob autores. Nesse sentido, as consequências devem prever o
esse enfoque, segundo alguns autores, o treinamento das alcance dos objetivos, a manutenção ou melhora da relação
habilidades sociais e de enfrentamento é um modelo de tra­ (quando a habilidade incluir relacionamentos interpessoais)
tamento que representa uma coleção mais di versificada de e a eficácia na manutenção do autorrespei to. Dessa for­
técnicas com o objetivo de desenvolver um repertório de ha­ ma, esperase que o comportamento socialmente hábil gere
bilidades que permitam que o indivíduo lide de modo eficaz sempre mais reforço positivo do que negativo; além disso, é
com situações que geram es tresse. Esse modelo está conti­ sempre útil avaliar o compor tamento emitido e as reações
do em um outro, de maior amplitude, denominado terapias que ele provoca nos outros.
cognitivo­comportamentais (TCCs). Uma definição completa de comportamento social­
Estudos evidenciam que pessoas com habilidades de mente habilidoso é atri buída a Caballo: o conjunto de ações
enfrentamento frágeis em relação a determinadas situações­ emitidas por um indivíduo em um con texto interpessoal, no
estímulo tendem a reagir de forma mal adaptativa. Tais fragi­ qual ele externa sentimentos, desejos, opiniões e direitos de
lidades, somadas a fatores biológicos e genéticos e também forma adequada ao contexto em que está inserido, respei­
à histó ria de aprendizagem social do indivíduo, podem resul­ tando e aceitando os mesmos comportamentos nas demais
tar em vulnerabilidade para o uso de substâncias psicoativas. pessoas. Os objetivos desse compor tamento são resolver
O objetivo deste capítulo é apresentar de forma didática os problemas imediatos e minimizar a ocorrência de futuros
conceitos centrais que dão sustentação a esse modelo, bem problemas de mesma ordem. É importante salientar que a
como os resultados das intervenções com esse tipo de terapia mudança de com portamento não ocorre de um momento
em pacientes dependentes de álcool e outras substâncias. para outro, de forma que o treino é de suma importância
para o aprendizado, do mesmo modo que o insucesso inicial
Teoria Das Habilidades Sociais: na prática desses comportamentos não deve ser visto como
Conceitos Centrais um fator desmoti vador.
Os principais estilos de respostas relativos às habili­
A teoria das habilidades sociais pode ser explicada a dades sociais – capacidade de dizer “não”, pedir favores,
partir do modelo de aprendiza gem social, que sugere que fazer pedidos e expressar sentimentos positivos e ne gati­
as habilidades são aprendidas por meio de experiências in­ vos, bem como iniciar, manter e terminar conversações – fo­
terpessoais vicariantes (i.e., a observação do desempenho ram primeiramente definidos por Lazarus e deram origem
de outros), a partir de um processo de assimilação mental de a outras habilidades sociais e de enfren tamento de situa­
modelos bemsucedidos. Essas experiências mediadas por ções consideradas de risco para determinados contextos, as
processos cognitivos (crenças, percepções e pensamentos) quais são enumeradas como segue:
orientarão o desenvolvimento de determinadas habilidades
de forma particular e única para cada indivíduo. Outros 1. fazer e aceitar elogios;
estudos que tinham como objetivo o desenvolvimento do 2. fazer e recusar pedidos;
conceito de autocontrole (construído a partir do desenvol­ 3. expressar amor, agrado e afeto;

Módulo 03 19
4. iniciar e manter conversações; definidas como estímulos que ameaçam a percep ção de
5. defender os próprios direitos; controle em relação ao contexto em que estão inseridos e,
6. expressar opiniões pessoais, inclusive o desacordo; portanto, como possíveis precipitadoras do início do uso de
7. pedir a mudança de comportamento do outro; substâncias após certo tempo de abstinência. As habilida­
8. desculparse ou admitir ignorância; des de enfrentamento podem ser definidas como fer ramen­
9. fazer e receber críticas; tas comportamentais ou cognitivas usadas pelo indivíduo
10. resistir às tentações; com o objetivo de restaurar o equilíbrio diante de situações
11. dar e receber feedback. de risco que incluem adversidades ou de situações nas quais
ele se sente em desvantagem ou pouco autoeficaz. O de­
O treinamento de habilidades sociais visando o desen­ senvolvimento e o treino dessas habilidades capacitam o in­
volvimento de estraté gias de enfrentamento de situações divíduo para apre sentar uma resposta mais adaptável dian­
de risco tem sido usado com sucesso em mui tos contextos, te das situações consideradas de risco. O desenvolvimento
como, por exemplo, nos tratamentos voltados para indivídu­ de habilidades de enfrentamento não é adquirido com fa
os que apresentam transtornos psiquiátricos diversos (como cilidade e, muitas vezes, pode não ocorrer naturalmente; é
a dependência de substân cias psicoativas), doenças crôni­ algo que precisa ser praticado com persistência, e, portanto,
cas e agudas e déficits intelectuais, além de ser usa do no há necessidade de envolvimento, treino e reforço positivo.
tratamento dos familiares desses pacientes. Partindo desse No Brasil, alguns estudos já mostram a relação entre
pressuposto, fortaleceuse o conceito de habilidades de vida, a presença de habili dades sociais e comportamentos mais
que apresenta, como um de seus objetivos, a prevenção do funcionais entre dependentes de álcool, de maconha e de
uso de substâncias em jovens, tendo como cenário para a nicotina, embora alguns estudos apresentem resultados
intervenção a própria escola. Promover o ajustamento so­ con troversos, ou seja, dependentes e não dependentes de
cial positivo, melhorar o desempenho acadêmico, prevenir álcool, nesse caso, não apre sentam escores diferentes em
condutas sexuais de alto risco e ensinar a con trolar a ira são questionários de habilidades sociais. No entanto, a literatu­
outros objetivos desse programa aplicado a adolescentes ra sobre o assunto, mais extensa em outros países, enfatiza
em idade escolar. a importância do desenvolvimento de tais habilidades como
um elemento auxiliar na diminuição dos fatores predispo­
Habilidades Sociais e de Enfrentamento nentes à recaída e também como uma condição importan
e Dependência Química te na prevenção do uso entre aqueles que não experimen­
taram substâncias. O modelo de intervenção, apresentado
Em dependentes de álcool, o treinamento de habili­ inicialmente por Monti e colaboradores e, após, revisado e
dades sociais para o enfrenta mento adequado de situações ampliado por Kadden e colaboradores, sugere que o tra­
consideradas de risco começou a ser utilizado na década tamento não deve atender a um modelo “tamanho único”,
de 1970, como uma abordagem complementar aos tra­ ou seja:
tamentos praticados na época. Hoje, a terapia cognitivo­ • O tratamento deve sempre ser planejado para um pa­
comportamental das habilidades sociais e de enfrentamento ciente ou um grupo de pacientes visando o atendimen­
é aplicada e adaptada para o alcance de melhores resultados to das demandas específicas do indivíduo ou do grupo.
nessa população específica, mantendo duas premissas cen­ • A escolha das habilidades a serem desenvolvidas e
trais: o papel central das habi lidades no enfrentamento das treinadas, assim como o tempo dedicado a cada uma
situações de risco, em que gatilhos específicos po dem oca­ delas, dependerá das necessidades de cada indivíduo
sionar tanto o lapso quanto a recaída, e o desenvolvimento ou grupo.
de habilidades voltadas para o desempenho eficaz de cada • O número de sessões deve variar de acordo com a de­
paciente, não utilizando, portanto, um protocolo único para manda.
todos. Duas abordagens têm sido apontadas pela literatura
científica como eficazes no tratamento da dependência de No modelo de intervenção apresentado por Monti e co­
substâncias: o gerenciamento de contingências e o aumento laboradores contem plase o treino de habilidades interpes­
e manutenção da percepção da autoeficácia. O desenvolvi­ soais e intrapessoais, que pode ser aplicado em sessões de
mento e a prática (treino) das habilidades contribuem para atendimento individual ou em grupo. As habilidades intrapesso
o aumento da autoeficácia, ou seja, permitem que o indiví­ ais incluem o desenvolvimento de estratégias para lidar com os
duo apresente uma resposta de enfrentamento eficaz diante gatilhos, a fissura, o pensamento negativo e a raiva. Faz parte
de situações consideradas de alto risco, prevenindo tanto a desse grupo o treino de habilidades para tomadas de decisão,
ocorrência de lapsos (uso episódico) quanto a própria reca­ resolução de problemas, manejo de situações de emer gência,
ída (padrão de uso anterior). aumento das atividades prazerosas e enfrentamento de de­
Entre indivíduos dependentes de álcool ou outras cisões aparen temente irrelevantes. No grupo de habilidades
substâncias, as situações de alto risco para recaída são interpessoais, o foco está no treino da assertividade (incluindo

20 Dependência Química: Uma Abordagem Integradora


como dizer “não” ao oferecimento de álcool e outras substân­ a ser mais real do que simulado (como acontece nas sessões
cias) e da comunicação de modo geral. As habilidades no trato individuais), além da vantagem de um custo menor tanto para
com outras pessoas ou com o ambiente social incluem também o indivíduo quanto para a instituição. O tempo de duração das
a forma de falar e ouvir sen timentos, assim como fazer e rece­ sessões, o conteúdo específico de cada uma, as diretrizes de ha­
ber críticas (até em relação ao comportamento de beber); além bilidades, a tarefa de casa e um manual de conduta técnica para
disso, tal habilidade favorece o desenvolvimento de uma rede o terapeuta serão descritos ao longo deste livro.
de suporte social que facilite e mantenha o processo de mu­
dança de comportamento. Esses autores ainda contemplam, Considerações Finais
em seu programa de tratamento, sessões destina das a pacien­
tes com comorbidades, que necessitam, portanto, de treino no Aumenta o número de estudos no Brasil e em outros
manejo de problemas específicos, como a depressão e a ansie­ países sobre as intervenções baseadas no treino de habili­
dade, e no desenvolvimento de habilidades especiais para lidar dades, evidenciando que esse modelo apresenta desfe chos
com transtornos psicóticos e da personalidade. positivos para a manutenção da abstinência em indivíduos
A terapia de habilidades sociais e de enfrentamento pode dependentes de álcool e outras substâncias, servindo, ainda,
ser conduzida em ambiente ambulatorial, individualmente ou como ferramenta para a prevenção do uso de substâncias
em grupos (em média, 8 a 12 mem bros), bastando que o(s) entre jovens. Ainda que os estudos realizados contemplem
sujeito(s) esteja(m) disposto(s) e pronto(s) para partici par da in­ a ex posição de pacientes ou grupos de pacientes a protoco­
tervenção. Essa terapia apresenta algumas vantagens quando los preestabelecidos de con duta terapêutica, os resultados
conduzida em grupo, como a prática das habilidades com outras mostramse positivos. Como defendem os autores citados,
pessoas, o número maior de modelos oferecidos pelos demais conforme os modelos de tratamento forem construídos para
participantes e a maior chance de “modelagem” (já que os parti­ cada paciente em particular, é possível que resultados mais
cipantes de um mesmo grupo têm características semelhantes). satisfatórios sejam obtidos, com con sequências mais dura­
Ou tro aspecto é que o treino das habilidades em grupo tende douras em termos de alcance do objetivo da intervenção.

A dependência química na Psicoterapia


Analítica Funcional: um diálogo contingente
Morandi M. A dependência química na Psicoterapia Analítica Funcio­
nal: um diálogo contingente. Rev. bras. psicoter. 2015;17(3):63­79 ainda nao foi amplamente estudada, porém sua influência na
clínica da dependência química merece atençao.
A dependência química representa hoje um dos maio­
res desafios enfrentados por profissionais de saúde de todo o Terapia Comportamental:
mundo. A busca por dados e evidências científicas que garan­ conceitos e evoluçao
tam respostas cada vez mais eficazes ao tratamento continua
em constante processo de construçao. O presente trabalho, O objetivo de uma ciência é buscar relaçoes constantes
através de uma revisao da literatura, tem por objetivo apre­ entre eventos, e foi exatamente isso que os primeiros cien­
sentar o ponto de encontro entre as teorias comportamentais tistas que estudaram o comportamento fizeram: inicialmente
e o fenômeno da dependência química, postulando a inte­ eles buscaram identificar relaçoes constantes entre os estí­
raçao lógica da Psicoterapia Analítica Funcional (FAP) como mulos e as respostas por eles eliciadas que ocorressem da
possibilidade de ajuda a usuários de álcool e outras drogas. mesma maneira e nas mais diversas espécies. Esse tipo de
Os Comportamentos Clinicamente Relevantes (CRB) e a re­ manifestaçao comportamental, chamado à época de com­
laçao terapêutica sao colocados enquanto alternativas de portamentos reflexos, é inato, característico das espécies, e
operacionalizaçao do responder contingente do terapeuta desenvolvido ao longo de uma história filogenética1. Contu­
aos comportamentos aditivos. Apesar dos avanços no refina­ do, Ivan Petrovich Pavlov, ao estudar tais reflexos biologica­
mento da descriçao da FAP e da validaçao empírica de seu mente estabelecidos, observou que seus sujeitos experimen­
mecanismo de mudança clínica, a tarefa de especificar o res­ tais (caes) eram capazes de aprender novos reflexos. Pavlov,
ponder contingente do terapeuta ao comportamento aditivo através de seu clássico experimento, colocou um cao em um

Módulo 03 21
pequeno quarto vazio, tocando uma campainha ao mesmo causam o comportamento no sentido de originá­lo, apesar
tempo em que mostrava a comida ao animal. A saliva surgia de assumirem lugar importante na análise que Skinner faz
imediatamente. Repetiu esse processo várias vezes. Notou de certos tipos de comportamento.
que a saliva aparecia quando a campainha era tocada sem Em sua obra Sobre o behaviorismo6, Skinner, entre
que a comida fosse apresentada ao animal. A isso chamou outros temas, transcorre acerca de críticas comuns e equi­
de comportamento condicionado, ou aprendido. Millenson vocadas feitas ao behaviorismo radical. Segundo o autor,
esclarece, entao, que se organismos podem aprender novos o processo histórico da terapia comportamental, sua am­
reflexos, podem também aprender a sentir emoçoes (respos­ pla possibilidade de aplicaçoes, os diversos modelos de
tas emocionais) que nao estao presentes em seu repertório behaviorismo desde Watson e, principalmente, um grande
comportamental quando nascem. Para exemplificar essa con­ desconhecimento sobre o behaviorismo radical favorecem
diçao, o autor se orienta através de outro experimento clás­ o surgimento de diversas opinioes enganosas sobre o que
sico sobre condicionamento pavloviano e emoçoes, feito por vem a ser a Análise Clínica do Comportamento. Dentre al­
John Watson, em 1920, o qual ficou conhecido como o caso gumas concepçoes errôneas, aparece a ideia de que é uma
do pequeno Albert e o rato. Basicamente, o bebê Albert, de terapia superficial, nao trabalha o indivíduo como um todo,
11 meses, foi condicionado a ter medo de um rato, que ele foca apenas um problema específico, tem alcance tempo­
nao temia antes de ser submetido ao condicionamento. Para rário, nao leva em consideraçao a história de vida do clien­
estabelecer a relaçao de medo, Watson provocou um enorme te, trata o indivíduo enquanto ser passivo num mundo de
barulho atrás da cabeça de Albert sempre que o rato lhe era causas e efeitos, etc. De­Farias7 aponta o fato de que, para
mostrado. Em pouco tempo a mera visualizaçao do rato pro­ alguns autores, as expressoes “Terapia Comportamental” e
duzia sinais de medo na criança. “Modificaçao do Comportamento” (aplicaçao de técnicas es­
A despeito da importante relevância do comporta­ pecíficas para problemas específicos) sao sinônimas, o que
mento respondente (reflexo) para análise, compreensao e prejudica o entendimento de que a prática atual de tera­
modificaçao (intervençao) do comportamento, outros pes­ peutas comportamentais está muito além do que uma mera
quisadores entenderam que ele sozinho nao conseguia aplicaçao de técnicas.
abarcar toda a complexidade do comportamento humano1. Com tudo isso, Castanheira8 nos orienta que a psi­
Respondendo a isso, em anos mais recentes, Burrhus Fre­ coterapia comportamental deve partir da necessidade das
deric Skinner exerceu influência comparável e defendeu pessoas de melhorar suas vidas, de lidar de forma bem­su­
algumas das mesmas reformas. Sua posiçao foi muitas ve­ cedida com o controle coercitivo e de libertar­se daquilo
zes descrita como uma teoria de estímulo­resposta, mas ele que mais lhes incomoda ou prejudica. Segundo Skinner9, os
repudiava esse rótulo por duas razoes. Primeiramente, sua psicoterapeutas têm, também, como objetivos, levar o clien­
abordagem depende da conexao entre uma resposta e um te à auto­observaçao e ao autoconhecimento, oferecendo
evento reforçador subsequente, nao apenas entre um estí­ uma melhor qualidade de vida e uma independência pesso­
mulo e uma resposta subsequente. A marca registrada do al maior para a resoluçao de problemas futuros, ampliando
condicionamento operante de Skinner, termo cunhado por seu repertório de possibilidades.
ele mesmo, é que o controle reside nas consequências do
comportamento. Classifica­se como operante, pois produz Dependencia Quimica:
consequências (modificaçoes no ambiente), e é afetado por conceituaçao e critérios
elas. Em segundo lugar, Skinner se distingue por um desa­
grado pelas teorias que tentam justificar o comportamento diagnosticos atuais
através de constructos explanatórios, pulsionais, e de variá­
veis hipotetizadas. Ele nao propoe que estados internos nao De acordo com a definiçao da 10ª ediçao da Classifi­
existem, mas sim que nao devem servir como instrumento caçao Internacional de Doenças (CID­10), da Organizaçao
de trabalho em uma análise científica do comportamento4. Mundial de Saúde (OMS), a dependência química é marca­
Sobre esse ponto, Baum5 esclarece que a explicaçao cien­ da por uma condiçao caracterizada pelo comportamento de
tífica consiste apenas na descriçao de eventos em termos consumo descontrolado de uma ou mais substâncias psico­
familiares. Ela nao tem nada a ver com a revelaçao de uma ativas com repercussoes negativas em uma ou mais áreas
realidade escondida além de nossa experiência. Mente, von­ da vida do indivíduo, causando algum tipo de alteraçao em
tade, ego e outros conceitos sao muitas vezes chamados seu funcionamento global. Ainda de acordo com a OMS, a
de ficçoes explanatórias, nao porque expliquem algo, mas dependência química consiste em uma doença considera­
porque supostamente explicam. Indo mais além, o autor diz da crônica, recidivante e incurável, atribuída a um conjunto
que eventos privados (assim nomeados pois só uma pes­ de fenômenos comportamentais, cognitivos e fisiológicos
soa pode relatá­los, mesmo que outras estejam presentes), que se desenvolvem após o uso repetido de determinada
como pensamentos, emoçoes, sentimentos e sensaçoes, substância, mas que pode ser tratada de forma efetiva, me­
por mais que afetem o comportamento, ainda assim nunca lhorando a qualidade de vida de seus portadores. Os pre­

22 Dependência Química: Uma Abordagem Integradora


juízos neurológicos, cognitivos e relacionais causados pelas tude associadas ao uso de substâncias está relacionada a
substâncias sao, em sua maioria, irreversíveis, progressivos comportamentos impulsivos, e quando o indivíduo deixa de
e passam despercebidos pelo indivíduo. Os danos físicos e sentir o prazer de outrora, mas continua imbuído no com­
sociais, quando percebidos, impulsionam, ainda mais, o de­ portamento de buscá­lo, é porque instalou­se o fenômeno
pendente químico a uma insaciável busca pelos efeitos da da tolerância, ou seja, houve uma adaptaçao funcional de
substância. É fundamental lembrar que a droga é apenas circuitos neuronais à presença da substância.
um dos fatores da tríade que leva à dependência. Os outros É necessário partir dos critérios do Manual Diagnós­
dois sao o indivíduo e o ambiente atual e histórico no qual tico e Estatístico de Transtornos Mentais ­ 5ª ediçao (DSM­
droga e indivíduo se encontram. 5), da Associaçao Americana de Psiquiatria, para uma re­
Fonseca e Lemos explicam que todas as drogas ca­ flexao sobre o diagnóstico de dependência química. Essa
pazes de causar euforia ou alívio do sofrimento têm uma nova ediçao, publicada recentemente, em 2014, traz uma
característica em comum: atuam de maneira diferenciada no profunda revisao de classificaçao dos transtornos mentais
circuito do prazer ou de recompensa, o que resulta na libe­ com importantes modificaçoes nos critérios diagnósticos de
raçao de dopamina, e o início da açao tem relaçao direta dependência de substâncias. O DSM­5 removeu a antiga
com a via pela qual a droga entrou no organismo. O circuito divisao feita pelo DSM­IV entre os diagnósticos de abuso
de recompensa cerebral tem a funçao biológica de manter a e dependência, reunindo­os numa única categoria, Trans­
sobrevivência da espécie, ou seja, a lembrança de onde há tornos Relacionados a Substâncias e Adiçao, aumentando,
alimentos e parcerias sexuais. Cada vez que é estimulado, assim, sua abrangência e possibilitando intervençoes em es­
esse circuito manda mensagens para a amígdala, que classi­ tágios iniciais da doença, acabando com a distinçao entre
fica o estímulo como “bom” e, por sua vez, manda estímulos uso, abuso e dependência.
para áreas relacionadas à memória. No entanto, é provável Dentre os principais critérios do DSM­5 que um indi­
que a memória da droga seja permanente. Alguns autores víduo dependente de substâncias pode preencher, ainda
afirmam que a memória da adiçao jamais será esquecida, se encontram os fenômenos da tolerância, definida como
assim como a memória da ansiedade e da dor, o que possi­ a perda do efeito de uma droga devido à administraçao re­
velmente explique por que, quando animais sao colocados petida ou à necessidade de aumentar a dose para obter o
no ambiente em que a cocaína foi autoadministrada no pas­ mesmo efeito, e da abstinência, conjunto de sinais e sinto­
sado, ocorre aumento da liberaçao de dopamina na amíg­ mas físicos que em geral é o reverso do efeito da droga. Os
dala e aumento do tempo relacionado ao comportamento demais critérios continuam englobando a dificuldade do in­
de busca pela droga. Isso indica que algo armazenado em divíduo em interromper o consumo de drogas mesmo dese­
uma memória específica pode ser recuperado a qualquer jando fazê­lo, ou o domínio do comportamento de consumir
momento, e essa memória é de difícil extinçao. Essas novas a substância sobre outras prioridades.
memórias passam a fazer parte da personalidade do indiví­ No complexo fenômeno das alteraçoes que levam ao
duo sob perspectiva molecular. Afinal, o cérebro é plástico preenchimento dos critérios tratados pelo DSM­5 para o
e reconstruído por experiências e comportamentos reforça­ diagnóstico da dependência, uma novidade: a inclusao do
dos13. Atualmente, os avanços científicos, incluindo estudos fenômeno do craving, postulado pelo manual enquanto um
e achados no campo da dependência química, permitem forte desejo ou urgência de usar uma substância específica.
dizer que o uso repetido de substâncias ativa os mesmos Anteriormente, tal sintoma só estava presente na CID­10, da
sistemas cerebrais de motivaçao que costumam ser ativados OMS. O craving nao havia sido incluído entre os critérios
por comportamentos essencialmente vitais, como os rela­ diagnósticos do DSM­IV por se tratar de fenômeno subjeti­
cionados à alimentaçao e fuga de situaçoes ameaçadoras. O vo. Entretanto, sua importância no processo da recaída foi
cérebro entao passa a funcionar como se essas substâncias reconhecida, e os aspectos psicológicos e neurobiológicos
e seus estímulos associados fossem biologicamente neces­ que o determinam ainda vêm sendo bastante estudados.
sários. E com a exposiçao repetida, as associaçoes vao se Cordeiro afirma que um dos maiores estigmas do diagnós­
tornando cada vez mais fortes, desencadeando respostas tico de dependência está na impossibilidade da cura ou
comportamentais cada vez maiores. mesmo na dificuldade em lidar com os pacientes. Entender
A vulnerabilidade crônica à recaída é um dos maiores a doença e suas características é essencial para que o pro­
desafios no tratamento do dependente químico. De fato, fissional diminua frustraçoes e aumente as expectativas dos
entender a dependência como transtorno crônico, no qual usuários e familiares acerca do tratamento.
a recaída é um risco constante que implica tratamento contí­ Os manuais diagnósticos sao importantes, pois auxi­
nuo, foi uma grande contribuiçao, didaticamente esclarecida liam o profissional a diagnosticar a dependência de modo
por McLellan17, motivo pelo qual grande parte do foco das objetivo, identificando melhor o problema e sua gravidade,
pesquisas sobre dependência vem sendo direcionada aos além de auxiliar o profissional no mapeamento das interven­
fenômenos da recaída. Volkow e Fowler18 explicam que a çoes necessárias a cada caso, porém o fenômeno da depen­
busca repetida de sensaçoes prazerosas de maior magni­ dência química nao pode ser considerado somente a partir

Módulo 03 23
de suas características biológicas, mas também, e igualmen­ seja, produzem, quando apresentados, efeitos semelhantes
te, de seus aspectos psicológicos e sociais envolvidos. (respostas condicionadas) aos que as substâncias psicoati­
vas têm sobre os organismos (respostas incondicionadas).
Teoria Comportamental e Banaco explica que a administraçao de dada substância é
Dependencia Quimica precedida pelos rituais e procedimentos de ingestao, e diz­
­se que há aí um pareamento entre o antecedente e o efeito
Os tratamentos psicossociais para transtornos mentais da substância sobre o sistema. Quando essa ligaçao estiver
foram considerados cientificamente efetivos a partir de inter­ bem estabelecida, o organismo apresentará, perante o pró­
vençoes baseadas nos princípios da teoria comportamental. prio ritual ou procedimento de ingestao, os mesmos efeitos
E o interesse da comunidade científica pelas intervençoes que a droga produz, antes mesmo de entrar em contato com
de base comportamental decorreu, em parte, dos resulta­ a substância (comportamento respondente condicionado).
dos positivos obtidos em estudos de ensaios clínicos, mas Após a compreensao a respeito dos processos res­
também de seu alto rigor metodológico. Deve­se considerar pondentes envolvidos na introduçao de certas substâncias
que, por meio desses estudos, as pesquisas de intervenço­ nos organismos, é preciso complementar o estudo acres­
es psicossociais alcançaram o mesmo rigor metodológico centando os processos operantes que originam os proble­
dos estudos farmacológicos. A dependência química, sob o mas de dependência, e Banaco consegue elucidar de forma
olhar do processo comportamental respondente, ou pavlo­ clara acerca desses processos orientados ao consumo de ál­
viano, é considerada quando uma substância, administrada cool e drogas. O autor explica que tais processos podem ser
por um certo tempo, é interrompida, ocasionando sintomas resumidos em processos reforçadores positivos (que produ­
de retirada e craving. Estao também intimamente associados zem, como consequência de uma açao, um evento que tem
à tolerância o decréscimo do efeito da substância no decor­ a propriedade de aumentar a frequência dessa açao) e ne­
rer de repetidas administraçoes e a necessidade de aumen­ gativos (que produzem, como consequência de uma açao, a
to de quantidade para a obtençao do mesmo efeito antes retirada de uma condiçao aversiva, aumentando também a
observado. Algumas respostas das espécies sao específicas frequência dessa açao). Essa interpretaçao explica as açoes
a determinados estímulos relevantes para sua sobrevivên­ de busca e ingestao de substâncias (dependência). Partindo
cia. Assim, por exemplo, se ocorre súbito aumento na tem­ do princípio que as substâncias têm um efeito, em um pri­
peratura ambiental, organismos endotérmicos (inclusive os meiro momento, reforçador ­ seja pelos efeitos agradáveis
humanos) apresentariam como resposta adaptativa o alar­ (p. ex., a euforia causada pelo crack), seja pela eliminaçao
gamento dos poros, permitindo, dessa maneira, a excreçao de sensaçoes desagradáveis (p. ex., reduçao do estresse de
do suor, o que ajudaria a manter a temperatura corporal em um rapaz que acabara de discutir com sua mae) ­, é de se
níveis ideais. Esse processo comportamental denomina­se esperar que seu consumo passe a ser frequente. Com isso,
reflexo incondicionado, uma vez que organismos estariam quando exposto a situaçoes que exigem respostas imedia­
preparados biologicamente para apresentar tais respostas, tas a falhas comportamentais, uma única resposta aprendida
sem que nenhuma condiçao anterior de aprendizagem fosse pelo indivíduo é possível: o consumo da droga.
necessária para a ocorrência da resposta. Por outro lado, a Através dos exemplos citados no parágrafo anterior e
mera apresentaçao visual ou olfativa de um suco de limao que serviram para elucidar o funcionamento de um processo
produzirá, em quem já tenha sido exposto a essa substância, operante no comportamento de uso de substâncias, poder­
uma salivaçao que, de alguma maneira, antecipa o contato ­se­ia dizer que, quando se fala em falhas comportamen­
da língua com o suco ácido, protegendo­a de seus possíveis tais no repertório de um indivíduo, a exemplo da discussao
danos. Esse processo é denominado reflexo condicionado, entre uma mae e seu filho, poderia concluir­se, talvez, algo
pois foi necessária pelo menos uma ocasiao de pareamento de uma inabilidade por parte desse indivíduo em manipu­
entre os estímulos (a visao ou o olfato do suco de limao ­ lar, ou controlar, de forma eficaz, situaçoes geradoras de
sumo de limao em contato com a boca) para que houvesse desconforto psíquico que o orienta ao consumo de drogas
o controle da salivaçao pela visao ou olfato, que inicialmente para alívio da tensao, ou até mesmo a inabilidade em lidar
eram neutros para essa resposta. Evidências confirmam que com sentimentos disfóricos. Caberia, assim, ao analista do
as substâncias psicoativas apresentam efeitos semelhantes comportamento, frente a esse conteúdo de demanda, de
àqueles observados em estímulos incondicionados. Consi­ forma sistemática, identificar essas falhas, que podem estar
derando­as estímulos ambientais, e seus efeitos como res­ se repetindo inclusive em outros contextos ou situaçoes por
postas incondicionadas, o modelo reflexo poderá ser utiliza­ conta de um longo processo histórico de aprendizagem, in­
do para explicar e controlar muitos fenômenos que envolvam tervindo de modo a enfraquecer a funçao condicionada pela
a problemática da dependência. Os dados que dao suporte droga, construindo, em contrapartida, e de forma colabora­
a essa interpretaçao demonstram que aspectos do ambiente tiva, repertórios comportamentais mais adaptativos frente a
que precedem fielmente a administraçao da substância pas­ emoçoes e sentimentos negativos e situaçoes de conflito.
sam a adquirir propriedades de estímulo condicionado, ou Tal processo, quando apoiado nos fundamentos teóricos e

24 Dependência Química: Uma Abordagem Integradora


práticos da clínica analítica funcional, levaria o indivíduo a re­ çao que “ensina” o cliente a identificar e lidar com situaçoes
conhecer a real funçao que a droga, historicamente, estabe­ de alto risco, focando suas intervençoes em técnicas espe­
lece em sua vida, promovendo, assim, um autoconhecimen­ cíficas para drogas específicas. Na clínica da FAP, seriam o
to mais global e histórico acerca de si mesmo, construindo indivíduo, sua história e a relaçao funcional que aquele es­
novas possibilidades para lidar com situaçoes aversivas, e, tabeleceu com a substância, seja ela qual for, que deveriam
por outro lado, enfraquecendo a relaçao funcional estabe­ emergir enquanto foco do tratamento e de mudança clínica.
lecida com a substância, melhorando sua qualidade de vida O breve trecho a seguir demonstra uma sequência de inte­
e adquirindo uma independência maior para a resoluçao de raçao na qual o terapeuta tenta desmistificar o discurso da
problemas futuros. Uma direçao possível desse processo droga enquanto problema e orientar o cliente a uma elabo­
será o objeto de discussao do próximo tópico. raçao mais funcional estabelecida com as substâncias:

A Dependencia Quimica na C: Eu estou bem, quer dizer, acho que estou conse-
Psicoterapia Analitica Funcional: guindo vencer a droga. O remédio ajuda muito. Também
estou evitando frequentar lugares onde sei que posso encon-
Um Dialogo Contingente trar pessoas usando cocaína e álcool. Acho que nao posso
estar na presença delas. Tenho ficado mais dentro de casa,
Fester é o primeiro autor de origem analítico­compor­ com minha família, assim nao encontro droga na rua. Tam-
tamental a chamar a atençao para a importância da relaçao bém procuro nao conversar muito com minha irma, assim ela
terapêutica como instrumento de mudança. Baseados nas fica longe de mim, nunca nos damos bem. Sempre brigamos
ideias desse autor, e em consonância com a filosofia beha­ e isso me deixa nervoso, e quando fico nervoso, logo quero
viorista radical, Kohlenberg e Tsai, ao longo da década de beber e usar droga para ficar mais calmo. [Cliente refere a
1980, começaram a utilizar a relaçao terapêutica como ins­ fuga de gatilhos ambientais e afetivos enquanto mecanismo
trumento de mudança clínica. Dessa forma, surge a Psicote­ da abstinência. Vale­se de técnicas de Prevençao de Recaída
rapia Analítica Funcional (FAP), com grande aceitaçao entre importantes, porém ainda permanece agarrado à topografia
os terapeutas comportamentais da atualidade. O responder do comportamento (ao consumo ou nao de substâncias), e
contingente do terapeuta aos comportamentos clinicamente nao à sua funçao, como propoe o behaviorismo radical de
relevantes (CRBs) (do inglês, Clinically Relevant Behaviors) Skinner e a clínica da FAP.]
do cliente na clínica da FAP consiste no mais importante me­
canismo de mudança comportamental. Apesar de avanços T: Acredito ser realmente muito importante você estar
expressivos, ainda há pouca especificaçao do que constitui se preocupando mais em deixar de frequentar os locais que
esse responder contingente. Em geral, a descriçao de como antes frequentava, e que eram vulneráveis ao uso de drogas
o terapeuta pode responder aos comportamentos clinica­ e bebidas, além de querer estar mais perto da família neste
mente relevantes resume­se a orientaçoes em constante momento. Mas eu gostaria que você me falasse um pouco
processo de refinamento. mais sobre a sua relaçao com esta irma. Por que nao se en-
De acordo com Tourinho, os comportamentos comple­ tendem? Aliás, fale-me um pouco sobre a sua história e sua
xos (como os relacionados à dependência química) deixam relaçao com as drogas. Quando começou a beber e fazer
de ser considerados meras reaçoes ao meio, descritas pelo uso de cocaína? Em que momentos de sua vida você sentiu
paradigma respondente, passando a ser vistos como um que o consumo aumentou? [Terapeuta reforça positivamente
conjunto de relaçoes, do indivíduo com o ambiente, descri­ o movimento do cliente em conseguir abster­se das substân­
to pelo paradigma operante. Através desse direcionamento cias, reconhecendo a importância das habilidades tecnicis­
proposto pelo autor, os modelos respondentes que justifi­ tas apresentadas, ao mesmo tempo em que tenta implicá­lo
cam o comportamento aditivo de um dependente químico de modo mais pessoal nas relaçoes funcionais estabelecidas
seriam observados na clínica da FAP de maneira secundá­ com o álcool e a cocaína ao longo de sua experiência vital.]
ria, ampliando o olhar sobre um indivíduo complexo e em
constante relaçao com o ambiente que o cerca. Nesse caso, Bush et al. nos orientam que, para visualizar a aplicaçao
modelos de tratamento de orientaçao tecnicista, como, por clínica da FAP, propoe­se a formulaçao de caso em termos
exemplo, a Prevençao de Recaída (PR), elaborada por Mar­ de comportamentos­problema e classes de respostas con­
latt e Gordon na década de 1980 e bastante familiar aos correntes, dentro e fora da sessao. Garcia afirma que essa
leitores de trabalhos voltados ao tratamento das depen­ conceituaçao é essencial para o trabalho clínico, uma vez que
dências, seriam recursos utilizados em segundo plano para o estabelecimento de metas terapêuticas depende do enten­
abordar os usuários de álcool e drogas. Nao se trata, aqui, dimento de quais respostas serao alvo de intervençao, visan­
de invalidar a técnica, uma vez de sua importância em casos do tanto à sua reduçao quanto à modelagem de respostas
de clientes mais angustiados ou em início de tratamento, concorrentes. Na clínica da dependência química, esse en­
porém seu modelo de atuaçao ainda preserva uma condu­ tendimento pode ficar bastante claro, uma vez que o com­

Módulo 03 25
portamento de consumo de álcool e drogas pode ser elegido T: Precisa dele de que forma? De que modo ele te aju-
como resposta­alvo da intervençao, visando à sua reduçao, e da? [Terapeuta tenta investigar a relaçao que Felipe estabe­
respostas concorrentes seriam aquelas construídas enquanto lece com a droga.]
outras possibilidades possíveis para lidar com a idiossincrasia
dos problemas vitais apresentados pelos clientes. C: Quando eu fumo o crack ele me deixa mais desini-
A FAP introduz o conceito de CRBs, definindo­os bido, mais tranquilo. É só eu fumar que parece que me sinto
como comportamentos­alvo que ocorrem durante a sessao. leve, esqueço de meus problemas e minha timidez desapa-
Kohlenberg e Tsai30 sugerem três tipos de CRBs, classifi­ rece, mas tudo isso só por um momento, depois fico pior.
cando­os como CRBs 1, 2 e 3. Os autores explicam que os [Cliente engaja­se em mais um CRB 1.]
CRBs 1 sao os comportamentos que se referem ao problema
do cliente e cuja intervençao clínica objetiva reduzir a frequ­ T: Fica pior! E o que você pensa sobre isso? [Terapeu­
ência; CRBs 2 relacionam­se com a melhora clínica, ou seja, ta responde ao CRB 1, pedindo para o cliente descrever o
sao os progressos do cliente, aqueles comportamentos cuja comportamento em curso.]
frequência deve aumentar com a terapia; ao passo que os
CRBs 3 sao as respostas verbais dos clientes sob controle C: Penso que preciso encontrar um jeito diferente de
discriminativo do seu comportamento e das suas variáveis lidar com essas minhas emoçoes e meus problemas. Sempre
controladoras. Em outras palavras, CRBs 3 sao explicaço­ fui assim, desde pequeno. Um dia eu fumei essa porcaria e
es oferecidas pelo cliente ao seu próprio comportamento, e parece que me senti bem. Esqueço de tudo. Aí toda vez que
desejáveis na medida em que se espera que o cliente consi­ eu me sinto triste, ansioso, ou com alguma coisa me incomo-
ga por si só realizar autoanálises funcionais de seus próprios dando, eu lembro do crack. No fundo eu sei que ele nao me
comportamentos e dos comportamentos das pessoas com ajuda, mas também eu nao sei o que eu posso fazer. Sei que
quem convive. Em termos comportamentais, CRBs 3 sao de algum jeito eu preciso parar com isso, senao eu vou aca-
descritas com o termo “autoconhecimento”. Como exemplo bar morrendo. Tenho que voltar a trabalhar, estudar, estar
de CRB 1 de um dependente químico, o cliente consumiria com meus amigos, reconquistar a confiança da minha fa-
cocaína para ser positivamente reforçado com sensaçoes de mília. [Cliente responde com CRB 2, enfraquecendo o com­
euforia e alívio de tensao frente a uma realidade psicossocial portamento de consumo e fortalecendo comportamentos
fragilizada. Mesmo produzindo reforçadores positivos em concorrentes e mais adaptativos. Como o CRB 1, na clínica
curto prazo, essa resposta pode representar uma puniçao da dependência química, tende a ocorrer com mais frequên­
em longo prazo e provocar a perda de reforçadores, como a cia que o CRB 2, em alguns casos, mesmo que o terapeuta
nao resoluçao de suas questoes e o distanciamento gradati­ ignore o CRB 1 e busque evocar o CRB 2, a emissao deste
vo das pessoas de seu convívio. Como exemplo de um CRB último pode demorar demasiadamente.]
2, esse mesmo cliente, diante de uma situaçao de conflito e
geradora de craving, emitiria um comando direto a si mes­ T: Pelo que entendi, parece-me que de alguma forma
mo no sentido de tentar construir estratégias mais adapta­ você aprendeu que o crack te ajuda em algumas situaçoes
tivas de resoluçao de problemas e manejo da fissura. Um específicas, como te confortar em momentos de tristeza ou
CRB 3 aconteceria quando o próprio cliente verbalizasse ansiedade, e ainda te faz esquecer alguns problemas. Você
relaçoes funcionais que estabelece com a droga nao só em nao quer falar um pouco sobre esses problemas? Sao eles
seu contexto atual, mas também em contextos históricos, que te deixam triste ou ansioso? [Terapeuta interpreta a fala
promovendo a si mesmo um autoconhecimento profundo e do cliente e tenta convidá­lo a uma implicaçao mais histórica
orientador de um estilo de vida mais saudável e adaptativo, diante de seu consumo de droga.]
conforme ilustrado no diálogo terapeuta­cliente a seguir:
C: Como eu disse, desde pequeno eu sou assim. Minha
[Cliente Felipe (nome fictício, alterado para resguardar vida foi muito difícil. Meu pai bebia, batia na minha mae,
a privacidade e o sigilo), de 25 anos, relata ao terapeuta sua mas ele já morreu. E minha mae sempre foi muito rígida co-
dificuldade em interromper o consumo do crack, mesmo de­ migo, me prendia muito dentro de casa. Aí parece que eu me
sejando fazê­lo. Na formulaçao do caso, identificou­se que transformei num cara assim... sei lá...
o cliente tem dificuldades em estabelecer vínculos afetivos e
manter­se por muito tempo em algum emprego. O pai, fale­ T: Interessante! Você falava há pouco sobre o consumo
cido, era alcoolista, e a mae, bastante repressora.] de droga, e agora fala de uma infância e adolescência um
pouco mais conturbada. Você acha que pode existir alguma
C: Eu nao sei o que acontece comigo. Sou muito an- relaçao entre isso tudo? [Terapeuta provoca a produçao de
sioso. Só o crack para me aliviar. Cada vez que tento parar CRB 3.]
com ele eu fico mais ansioso ainda. Nao sei o que acontece.
Preciso dele. [Cliente engaja­se em CRB 1.] C: Pode ser que sim... nao sei... (pausa) Quando eu

26 Dependência Química: Uma Abordagem Integradora


conheci esse crack parece que ele me tirava da cabeça as por sua experiência atual e/ou pregressa (CRB 1), na qual o
lembranças dessa minha história. Nao foi fácil... na escola... acesso a novas possibilidades resolutivas ficaria bloqueado
tudo isso sempre me atormentou. Nao tive uma criaçao le- diante de um repertório de adiçao já aprendido, cronificado
gal. Parece que eu nao sei lidar com meus próprios proble- e reforçado positivamente. O desafio dessa clínica seria jus­
mas. Sempre achei que a droga me ajudava. [Cliente enga­ tamente construir junto ao cliente novas fontes de reforço e
ja­se em CRB 3, começa a realizar análises funcionais de seu modelos mais adaptativos de resoluçao de problemas (CRB
próprio comportamento aditivo.] 2 e CRB 3), sem perder de vista a vulnerabilidade crônica
a novos comportamentos de consumo. A fim de orientar o
T: Acredito ser muito importante continuarmos falan- cliente na identificaçao de variáveis mantenedoras e facilitar
do sobre tudo isso. Se estiver disposto, podemos agendar a generalizaçao e discriminaçao de respostas modeladas du­
um novo encontro. Tenho muito interesse em conhecer mais rante a sessao, sugere­se que o terapeuta forneça análises
de sua história. Quem sabe juntos conseguiremos encontrar de contingências de reforço dos comportamentos do clien­
maneiras mais saudáveis de lidar com suas questoes e seus te. Uma breve explicaçao funcional já auxilia o cliente a res­
traumas! [Terapeuta fortalece o vínculo terapêutico e convi­ ponder perguntas sobre a razao que o leva a se comportar
da o cliente à contínua construçao do autoconhecimento.] de determinada maneira, colocando ênfase na história e na
funcionalidade do comportamento39,40, como no exemplo
C: Claro que sim! Você nao sabe o quanto me fez bem a seguir:
falar um pouco disso. Eu acho que já passou da hora de
cuidar mais de mim mesmo, parar de fugir dos meus proble- T: Você dizia há pouco que precisa tomar algumas
mas, e ficar me escondendo atrás de uma porcaria de pedra doses de cachaça sempre depois de um dia de trabalho,
de crack. [Felipe continuou frequentando as sessoes de psi­ pois nao suporta muito a pressao do chefe, pois o considera
coterapia semanalmente. Pôde elaborar melhor comporta­ exigente demais e um tanto quanto arrogante ao te delegar
mentos privados que antes o incomodavam, e o consumo alguma tarefa. Ao mesmo tempo fico pensando na imagem
da droga foi ficando cada vez menos frequente. Com perío­ de seu pai, que, no encontro passado, você disse sempre ter
dos cada vez mais longos entre um episódio de consumo e sido autoritário e também muito exigente. Foi isso mesmo
outro, Felipe conseguiu matricular­se em uma faculdade no que disse?
período noturno, trabalha junto à mae no período da manha
num comércio que esta possui, e a relaçao entre ambos é a C: Sim.
melhor possível. O progresso clínico na FAP acontece ape­
nas quando, como neste caso, o cliente passa a engajar­se T: No que eu te convido a pensar, é justamente nes-
em CRBs 2 e CRBs 3.] sas relaçoes que você estabelece com a bebida. Lembro-me
de ter dito que conheceu o álcool em festas com amigos, e
Como verificado no diálogo acima, a intervençao na nos momentos de bebedeira percebia que a substância te
FAP envolve a modelagem direta das respostas do cliente no “transportava a outro mundo”, como você mesmo definiu.
aqui e agora da sessao, presumindo­se que sua eficácia de­ Você ainda disse que, quando se sentia estressado com as
penda da resposta do terapeuta ao CRB. Assim, quanto mais reclamaçoes e exigências de seu pai, você saía para tomar
próxima a resposta do terapeuta ao CRB, mas eficaz tende a algumas doses de cachaça e, com isso, se sentia menos ner-
ser a intervençao. Kohlenberg e Tsai36 nos revelam as cinco voso. Com o passar do tempo você foi relacionando o álcool
regras da FAP que orientam o trabalho clínico, de modo que a situaçoes de estresse.
as sessoes sejam propícias à emissao e modelagem de com­
portamentos clinicamente relevantes. Elas orientam o tera­ T: Você tem razao. Nao sei lidar com situaçoes de es-
peuta a: 1) estar atento aos CRBs; 2) evocá­los; 3) respon­ tresse. Parece que logo vem a lembrança daquela época
der a eles; 4) avaliar o efeito de seu responder no cliente; 5) e eu me sinto nervoso. Até hoje nao suporto muito quando
fornecer interpretaçoes e estratégias de generalizaçao. Em alguém fala mais sério comigo. Meu pai, hoje em dia, está
geral, a recomendaçao é que se reforce naturalmente o CRB mais tranquilo, e meu chefe nao é uma má pessoa. Talvez
2 e que se responda ao CRB 1 com cautela. seja o jeito dele de falar. Preciso pensar mais sobre isso e
Com o objetivo de especificar o que o terapeuta pode tentar nao me incomodar tanto quando meu chefe me exi-
fazer para responder ao CRB 1, deve­se inicialmente descre­ gir... quer dizer... quando me pedir algo.
ver o que este constitui. No geral, um CRB 1 é uma classe
de respostas de fuga ou esquiva de eventos aversivos34, e [Essa passagem ilustra como o terapeuta fornece ao
sua emissao frequente restringe o acesso do organismo a cliente análises de seu próprio comportamento. Esse artifí­
novas fontes de reforço38. No fenômeno da dependência cio deve ser usado quando o indivíduo tem mais dificuldade
de substâncias, o comportamento de consumo representa­ em estabelecer essas relaçoes, pois o ideal seria que o pró­
ria uma fuga ou esquiva diante das adversidades impostas prio cliente evocasse esse CRB 3. Desse modo, a produçao

Módulo 03 27
desse autoconhecimento veio acompanhada de uma mu­ nao cabe aqui invalidar o discurso do behaviorismo meto­
dança comportamental significativa quando do retorno do dológico de Pavlov e Watson, uma vez de sua importância
cliente na sessao seguinte.] reconhecida no cenário de estudos sobre análises de com­
portamentos específicos, e de sua imprescindível aplicaçao
T: Parece-me que hoje você está mais animado. Quer prática no tratamento de diversos transtornos, como nas es­
me contar algo? quizofrenias, retardos mentais ou outras complicaçoes em
que o prejuízo cognitivo impossibilite a auto­observaçao ou
C: Bem... a depender de meu chefe, ele continua o produçao de autoconhecimento, como proposto pelo con­
mesmo (risos), mas na semana passada eu só bebi uma vez. dicionamento operante de Skinner, e que sustentam os con­
Foi na sexta-feira. Na verdade um colega de trabalho me ceitos da FAP.
convidou, aí eu nao resisti. Confesso que ainda é um pouco Um terapeuta comportamental nao deve se interes­
difícil parar de beber de uma vez só, mas eu sinto que estou sar pelo comportamento aditivo em si, em sua forma ou
melhorando. Nao sinto mais tanta vontade de beber depois topografia, mas nas condiçoes em que ele ocorre, seus an­
do trabalho. Confesso que ainda vem uma vontade peque- tecedentes e consequentes, sua história de reforçamento
na, mas eu reflito sobre os nossos encontros e a vontade e puniçao e os efeitos destes sobre esse comportamento.
logo passa. Skinner já orientava que o analista do comportamento nao
deve se prender à topografia da resposta, e sim à sua fun­
Retomando a interaçao lógica da FAP, pode­se come­ çao, ou seja, qual reforçador essa resposta produziu no pas­
çar a especificar o que constitui o responder contingente do sado, pois é devido a essa história de reforçamento que a
terapeuta aos CRBs. Catania2 explica que, ao responder de resposta continua sendo emitida.
forma contingente a um CRB 1, o terapeuta promove um O objetivo deste trabalho foi apresentar um elo cien­
importante ponto de transiçao de um comportamento pro­ tificamente embasado entre as teorias comportamentais e
blema a um comportamento de melhora. Porém, a autora o fenômeno da dependência química, confirmando o lugar
adverte quanto ao reforço de um CRB 1 enquanto um ma­ privilegiado que o behaviorismo radical ocupa no direcio­
nejo inadequado segundo as regras da FAP, uma vez que namento da prática clínica de clientes portadores de trans­
isso significaria fortalecer uma resposta relacionada ao pro­ tornos por uso de substâncias e adiçao. Para mais além, o
blema do cliente, que teria como proposta ser reduzida ou presente trabalho constitui um esforço útil para a especifi­
extinguida. Nesse caso o curso de um CRB 1 é permitido até caçao do responder contingente do terapeuta na clínica da
que uma resposta concorrente apareça e seja imediatamen­ dependência química sob orientaçao da abordagem analíti­
te reforçada, no caso, um CRB 2 ou CRB 3. Esse processo é co­funcional.
nomeado pela clínica analítico­funcional como “reforço dife­ Conclui­se que cabe ao terapeuta ter o maior número
rencial”, que em outras palavras implica açoes como ignorar possível de informaçoes a respeito das práticas de atuaçao
a emissao de CRB 1 e reforçar CRBs 2 e 3 ou relatos de da FAP, das ideias e propostas de diversos autores da área,
problemas e melhoras em relaçao a eventos que ocorrem, até mesmo para criticá­los, além de muita resistência e resi­
também, fora da sessao. liência à frustraçao para lidar com a unicidade e a variabili­
dade das dificuldades apresentadas por clientes usuários de
Consideraçoes Finais álcool e drogas.
É imprescindível o desenvolvimento de propostas
O fenômeno da dependência química sob o olhar da comparativas mais extensas entre as técnicas e os princípios
FAP deve emergir para desmistificar as ideias errôneas das analítico­comportamentais de atuaçao terapêutica na clínica
terapias comportamentais enquanto processos que focam da dependência química orientada pela FAP. Afinal, tais com­
em comportamentos específicos e que se baseiam em técni­ paraçoes podem enriquecer as discussoes entre diferentes
cas específicas para mudanças de comportamento enquanto teorias e suscitar o diálogo de temas e práticas, comuns ou
orientadoras de seu trabalho, como considerado pelos con­ nao, bastante relevantes no auxílio do manejo de comporta­
dicionamentos reflexos e respondentes. Em contrapartida, mentos aditivos que sao, no mínimo, desafiadores.

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