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INTRODUÇÃO
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para a injustiça social, com a manutenção de privilégios e para dificuldade de acesso
igualitário e plural a espaços de poder, produzindo e reproduzindo racismo institucional
e estrutural.
A partir dos resultados obtidos no último certame (XXI Concurso de ingresso
para membros do MPT), o segundo realizado com cotas raciais , em 2020, no qual
logrou-se a aprovação de duas candidatas integrantes do Coletivo Tecendo Diversidade,
atualmente empossadas e em exercício na carreira, são investigadas, por fim, as
ferramentas utilizadas por mulheres negras para romper com estereótipos e limitações
das imagens de controle e, a partir de lugares seguros de subjetivação e auto definição,
conseguir juntas e emaranhadas por uma teia de luta e afetos avançar na construção de
um MPT mais colorido e plural.
5
Disponível em: <http://www.stf.jus.br/portal/jurisprudencia/menuSumarioTese.asp?
tipo=TCC&tese=4708>. Último acesso em 03.03.2021.
6
Homologação do resultado final do concurso disponível em
<https://mpt.mp.br/pgt/trabalho-mpt/procurador/20o-concurso-para-procurador-do-trabalho/resultado-
final-apos-recursos/edital-25-recursos-titulos-e-classif-final.pdf>. Último acesso em 03.03.2021.
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reflexão, propor soluções efetivas, que promovam o ingresso de pessoas negras na
carreira de Procurador (a) do Trabalho.
Nesse contexto, nasceu o Coletivo Tecendo Diversidade para construir e propor
soluções coletivas, por meio de uma teia de parceiros e apoiadores cujo escopo é
potencializar essas juristas negras, indígenas, trans e quilombolas, visando apoiá-las na
construção de mecanismos que garantam inclusão, igualdade e justiça social.
Patricia Hill Collins é uma professora universitária de Sociologia da Universidade de Maryland, College
Park. Ela também é a ex-chefe do Departamento de Estudos afro-Americanos na Universidade de
Cincinnati, e ex-presidenta do Conselho da Associação Americana de Sociologia. Collins foi a 100º
presidenta da ASA, e a primeira mulher afro-americana a ocupar o cargo.
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classe, raça, orientação sexual e gênero que estruturam a sociedade e impedem outros
desfechos e perspectivas para essas mulheres negras. (BUENO, 2020).
No Brasil, entre outras imagens de controle, estão as que sexualizam mulheres
negras ou as que determinam que as atividades de cuidado e o trabalho doméstico, via
de regra em favor de famílias brancas, são as únicas possibilidades disponíveis para a
atuação destas mulheres, limitando suas vivências no mercado de trabalho a cargos
subalternos. Como preceitua Lélia Gonzalez (1979), a exclusão das mulheres negras
aparece estampado nos dois papéis sociais a elas atribuídos: “domésticas” ou “mulatas”.
O primeiro fixa a mulher negra no que a sociedade impõe como seu “lugar natural”
(1979, p.16), responsável pelo trabalho doméstico e de cuidado. O segundo, associado a
um processo de folclorização e feticização, enfraquece a humanidade dessas sujeitas, e
as torna objeto para consumo. Com efeito, essas imagens de subalternidade são
reproduzidas infinitamente na mídia e povoam o imaginário coletivo da sociedade,
mantendo, justificando e naturalizando situações de opressão, injustiça social e falta de
oportunidades.
No sistema de justiça, dificilmente mulheres negras são vistas ocupando cargos
de poder, como o de juíza e procuradora. Especificamente sobre o MPT, de acordo com
o censo interno elaborado no ano de 2021, integram a carreira de membros e membras
um total de 769 pessoas, entre estas 395 mulheres e 374 homens. No cargo inicial da
carreira – Procurador/a do Trabalho – são 309 mulheres e 300 homens. Em relação à
composição étnico-racial, no conjunto dos cargos de membros/membras, verificamos, a
partir dos dados gerais um total de 18,3% de negros (pretos e pardos) 8. Apenas nove
pessoas, 1,3%, se autodeclaram pretas na instituição. O estudo não realizou recorte de
gênero/raça, assim não conseguimos aferir o total de mulheres negras, mas tomando por
base o recorte de gênero, arriscamos estimar que somos por volta de 8% de mulheres
negras. Essa constatação nos traz à reflexão o discurso da “paridade de gênero”,
universalista, que, ao não considerar as mulheres negras, termina por exclui-las
(SANTOS, 2021).
Sobre o baixíssimo número de mulheres negras mostrado no censo do MPT,
citamos a reflexão de Winne Bueno (2020, p. 47):
[...] ser a única ou ser uma das poucas pessoas negras nos lugares de
privilégio ou de acesso ao poder é também uma forma de consolidar esses
estereótipos que desumanizam, coisificam e controlam mulheres negras. Para
8
Foram consideradas o total 132 pessoas pardas e 9 pessoas pretas, conforme autodeclaração, nos três
cargos da carreira: Procurador do Trabalho, Procurador Regional do Trabalho e Sub-Procurador do
Trabalho. No último grau da carreira, não há nenhuma pessoa declarada preta.
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além disso, essa desconfortável posição evidencia o tamanho da segregação
racial e o quanto pessoas negras não são bem-vindas naquele espaço. Quando
apenas um grupo de pessoas negras pode estar presente em um local significa
que essas pessoas na verdade não fazem parte daquele espaço e ali estão
colocadas em razão de uma estratégia de controle das demandas e
reivindicações da coletividade negra.
Nesse primeiro formulário, foram levantadas perguntas como: interesse em participar do próximo
concurso do MPT, se a inscrição de daria pelo sistema de cotas, se haveria pedido de isenção de taxas,
renda média familiar per capita, se já havia prestado concurso na área trabalhista anteriormente, data de
formatura, além de nome e e-mail para contato.
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O Coletivo recebeu mais de 300 inscrições 10. Na época, deliberou-se por criar
um filtro, elegendo-se candidatas que já contassem com mais de três anos da data de
formatura, considerando ser a prática jurídica um requisito para aprovação no concurso.
Preenchiam esse requisito 148 candidatas. Atualmente, esse requisito foi afastado, pois
percebeu-se que a preparação para o certame é demorada e é salutar que se inicie antes
de completada a exigência editalícia.
Nesta ocasião, foram excluídas as interessadas que, na autodeclaração,
responderam ser brancas (3,4% das respostas). Permaneceram as mulheres
autodeclaradas pardas (14,1%), pretas (18,2%) e negras (63,5%). Houve ainda respostas
como mulata (0,3%), morena (0,3%) e indígena (0,3%), que permaneceram entre as pré-
selecionadas. Com relação à escolaridade, 71,2% delas estudaram integralmente em
escola pública antes da faculdade, 10,6% parcialmente e 18,3% não estudaram em
escola pública. Também não foram selecionadas as candidatas que responderam não ter
interesse no concurso do MPT, dada a finalidade do coletivo, bem como aquelas que
disseram que não concorreriam às vagas reservadas a pessoas negras (11,9%). Ao final,
o primeiro grupo de selecionadas contou com 91 mulheres negras. O perfil étnico-racial
dessas era: 68,2% negras, 12,9% pretas, 18,2% pardas e as demais responderam mulata,
morena ou indígena11.
Na mesma época, foram selecionados, entre membros do MPT, professores de
direito ou magistrados do trabalho, aqueles que poderiam gravar videoaulas para
disponibilizar às candidatas. Trinta e oito juristas ofereceram-se gratuita e
voluntariamente para ministrar aulas12.
As primeiras aulas foram divididas em 11 (onze) temas 13, todos de atuação
prioritária pelo MPT e de alta probabilidade de incidência nas provas. Além disso,
foram feitas rodas de conversa sobre o concurso (etapas, peculiaridades e estratégias), e
10
Recebemos 313 (trezentas e treze) respostas.
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Nos formulários seguintes, a declaração quanto à raça, cor ou etnia foi alterada para a forma de múltipla
escolha e não respostas curtas, para padronizar os dados, adotada a classificação do IBGE (branca, preta,
parda, amarela e indígena). Também foi repensada a exigência de tempo de formatura, dado o tempo de
preparação exigido pelo concurso do MPT.
12
Temas como: direito do trabalho, direitos humanos, regime jurídico do MPT, tráfico de pessoas e
trabalho escravo, trabalho infantil, meio ambiente do trabalho, processo do trabalho, trabalho portuário e
aquaviário, entre diversos outros.
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Sendo eles: o futuro do trabalho e os efeitos da revolução digital na sociedade, agrotóxicos e saúde do
trabalhador, empregabilidade de pessoas LGBTI+ e os desafios para inclusão no mercado de trabalho,
inconstitucionalidades, inconvecionalidades e hermênutica jurídica da reforma trabalhista, assédio sexual
e a discriminação de mulheres nas relações de trabalho, conceito de pessoa com deficiência e a inclusão
pessoas vítimas de escalpelamento, acidente de trabalho e tarifação do dano extrapatrimonial, os desafios
do sindicalismo brasileiro pós-reforma trabalhista, terceirização na administração pública: problemas na
execução de contratos por prestadores de serviços e o consequente desrespeito aos direitos trabalhistas,
migração e tráfico de pessoas e aprendizagem, a inclusão de meninas e meninos em situação de medidas
socioeducativas no mercado de trabalho e riscos psicossociais e saúde mental do trabalhador.
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sobre a comissão de heteroidentificação. Além das aulas, foram angariadas e
distribuídas bolsas de estudos em cursos preparatórios específicos para o MPT ou para
área trabalhista e elaboradas e aplicadas questões subjetivas, com espelhos de correção,
por membras do Tecendo.
Para melhor acompanhar algumas das candidatas, as quinze Procuradoras
fundadoras do coletivo selecionaram, cada uma, uma aluna, chamada de mentoranda,
para, semanalmente, orientar os estudos, aplicar e corrigir questões subjetivas e dividir
experiência sobre essa trajetória14. As quinze selecionadas foram extraídas entre as
noventa e uma candidatas selecionadas para o coletivo, sendo aplicado filtro por renda
familiar per capita.
A renda média das selecionadas foi de R$2.023,20 (dois mil e vinte de três reais
e vinte centavos) mensais, o que corresponde ao valor anual de 24.278,40 (vinte e
quatro mil, duzentos e setenta e oito e quarenta centavos). Abaixo, portanto, do valor
médio despendido pelos aprovados no 1º Concurso Nacional da Magistratura, cujas
exigências e gastos são próximos aos do MPT, que foi de R$ 36.163,35 15. Das quinze
candidatas acompanhadas na mentoria, selecionadas entre aquelas mais vulneráveis
economicamente, nenhuma logrou êxito na primeira fase do concurso.
Nesse acompanhamento, foram oferecidas aulas individuais de língua
portuguesa, porque, embora tenham sido selecionadas apenas bacharelas em Direito, o
grau de domínio desta competência dificultava ou mesmo impedia a compreensão das
respostas escritas. Além disso, ainda na preocupação com cuidado interdisciplinar e
multifocal das alunas, por meio de parceria, as candidatas tiveram acesso a psicólogas
que, ao conhecerem o coletivo, ofereceram atendimento social a preços populares.
Em 2020, nove integrantes do Coletivo Tecendo a Diversidade foram aprovadas
para a segunda e terceira fases do certame. Ou seja, das 91 inicialmente contempladas,
10% lograram superar a fase com maior índice de reprovação (acima de 90%) 16.
14
Embora se compreenda a especificidade do Coletivo, é importante frisar que a seleção e o
acompanhamento se deram antes da alteração da Resolução n. 73/2011, promovida em 09.02.2021, que
veda a atividade de coach e similares aos membros do Ministério Público brasileiro. Bem como houve
apresentação de relatórios periodicosdos para a Corregedoria do MPT.
15
Nota Técnica n. 35/2020 do IPEA, disponível em:
<http://repositorio.ipea.gov.br/bitstream/11058/9899/1/NT_35_Diest_Perfil%20dos%20Candidatos
%20Aprovados%20no%20Primeiro%20Concurso%20Publico%20Nacional%20Unificado%20da
%20Magistratura%20de%20Trabalho.pdf>. Acesso em 03.03.2021.
16
Conforme divulgado, 5.646 inscrições foram deferidas, sendo delas 1.115 de candidatos negros,
disponível em: <https://blog.grancursosonline.com.br/concurso-mpt/#:~:text=De%20acordo%20com
%20nota%20da,e%20162%20pessoas%20com%20defici%C3%AAncia.>. Acesso em 03.03.2021.
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As aprovadas tiveram acesso a bolsas em cursinhos específicos para as fases
escritas, agora focados para segunda e terceira fases do MPT e a simulados 17. Duas
chegaram à prova oral e receberam novas bolsas para cursos e simulados e
acompanhamento semanal das Procuradoras do coletivo, também em formato de
simulado e roda de conversa. Nessa etapa, mostrou-se essencial, para além do
fornecimento de técnicas e orientações sobre os conteúdos programáticos, um trabalho
para reforçar a autoestima e a segurança das candidatas. Percebeu-se que a prova oral é,
de todas as fases, a que mais as expõe a medos e inseguranças, em razão da sensação de
não pertencimento as estruturas superiores do sistema de justiça, em razão das imagens
de controle.
Ao final, duas candidatas foram aprovadas em todo o certame e já tomaram
posse no cargo, em 2021, como Procuradoras do Trabalho. Recentemente, ingressaram
como Procuradoras apoiadoras no Coletivo Tecendo a Diversidade.
Em 2021, aplicou-se novo formulário entre as alunas, divulgado exclusivamente
no grupo de WhatsApp, para registrar o interesse em permanecer no coletivo e em
participar de novas etapas de preparação. Um dos objetivos era distribuir mais vinte
bolsas integrais de curso de primeira fase. Foram obtidas 42 respostas18.
Os formulários aplicados para inscrição trazem perguntas referentes ao
desempenho em provas anteriores, condições financeiras, e outros atravessamentos
como: orientação sexual e de gênero, se a candidata é mãe, se é pessoa com deficiência,
etc. Esses dados são entabulados e servem como critério de prioridade para distribuição
de bolsas e acompanhamento das alunas de acordo com suas necessidades e o nível
prévio de preparação.
Analisando os dados disponíveis, anteriores as inscrições de 2022 (em curso),
percebeu-se que as alunas disseram que 71,4% participaram do 21º concurso. Das que
participaram, os percentuais de notas obtidas na primeira fase foram: 7,1% entre 0 e 20;
31% entre 20 e 40; 21,4% entre 40 e 50; 14,3% entre 50 e 60 e 0% acima de 70
pontos19. A maior parte das candidatas já participou de provas anteriores do MPT
(52,4%), sendo que 11,9% já fizeram mais de 04 (quatro) tentativas. 76,2% não teve
aprovação em nenhuma das etapas do concurso. Das 42, duas respostas (11,9%)
registraram que não concorreram no sistema de cotas. Considerado o perfil
17
Inclusive da Escola da Associação dos Procuradores e Procuradoras do Trabalho.
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Assim, 49 (quarenta e nove) das 91 (noventa e uma) inicialmente selecionadas, depois de um ano, não
se mostraram mais interessadas em novas seleções.
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19% preferiu não informar a nota. Duas candidatas (4,8%) disseram não pretender mais estudar para o
MPT, uma por entender que não poderia se dedicar com a intensidade que acredita ser necessária e outra
por mudança profissional.
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socioeconômico, as faixas de renda com maior incidência foram: 2 e 3 salários-mínimos
(28,6%); 3 a 4 salários-mínimos (16,7%) e 0 a 1 salário-mínimo (14,3%). A maioria
atua ou atuou na área trabalhista (85,7%) e já prestou concurso na área (88,1%).
Nas perguntas sobre a escolha pelo MPT, as respostas focam na missão
constitucional do órgão em promover justiça social e igualdade material. Por fim,
perguntadas se o Coletivo (discussões, aulas e pessoas) trouxe reflexão sobre a
autodeclaração racial, 90,5% disseram que sim.
Atualmente, estão abertas inscrições para novas candidatas, incluindo vagas para
mulheres indígenas, quilombolas e pessoas trans. Para se inscrever as candidatas devem
preencher um novo formulário que mescla os aplicados anteriormente, mas
incorporando os aprendizados conquistados, como a necessidade de priorizar respostas
de múltiplas escolhas, para padronização de respostas, e maior detalhamento do perfil
das candidatas, com a interseccionalidade de identidades de gênero, orientação sexual,
ser pessoas com deficiência, ser mãe, ser responsável primária pelos cuidados de outra
pessoa, entre outros atravessamentos.
O Coletivo tem como um dos seus escopos ser ponte entre as candidatas e a rede
de apoio e qualificação necessária, mas também refletir sobre a própria política no
MPT, e alguns pontos se destacaram. No XX concurso, ocorrido em 2017, o primeiro
com cotas, houve inscrição de 5.293 pessoas, sendo 591 nas cotas para pessoas negras
(11,16%). Na primeira fase, foram classificados 312 candidatos, deste 102 pessoas
negras (32,69%). Na segunda fase, dos 66 aprovados, 7 se autodeclararam negros
(10,6%). Na terceira, dos 31 aprovados, restaram 2 candidatos negros (6,45%). Ao final,
foi aprovado um candidato que se autodeclarou negro dentre os 30 aprovados (3,33%).
A queda acentuada dos percentuais ao longo do concurso exige tratamento e reflexão.
Nota-se a existência de um déficit de acesso às demais fases do concurso.
Já na primeira fase do XXI Concurso, dos 5.646 inscritos, 784 concorrem pelo
sistema de cotas para pessoas negras (13,88%). Foram classificados 265 candidatos, 49
negros (18,5%), 53 a menos que no anterior, uma queda de quase 50%. A nota de corte
dessa prova ficou muito próxima à nota mínima para exclusão do certame (50%). Nota-
se que o impacto da nota de corte é desproporcionalmente maior para os candidatos que
concorrem às cotas20.
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Ainda nesse concurso, dos 58 aprovados na segunda fase, 3 se autodeclararam negros. Na terceira fase,
foram 42 aprovados, 3 pessoas negras, sendo duas mulheres, ambas participantes do Coletivo.
1
0
Outro ponto que exige reflexão é a composição étnico-racial e de gênero dos
membros da comissão de concurso, comissão multiprofissional, comissão de execução e
fiscalização para que nelas também se reflita a pluralidade.
Forçoso concluir que estabelecer cotas na legislação não é suficiente para
garantir a inserção das populações vulnerabilizadas no serviço público, mormente nos
cargos cuja prova exige grande aprofundamento nos estudos, em razão da maior
complexidade do exame e maior tempo de dedicação.
Restou claro que, além de fornecer acesso material, com os cursos e apostilas, a
preparação para o concurso exige atenção a autoestima e o próprio reconhecimento das
candidatas como mulheres negras. As candidatas que não se inscreveram como cotistas,
o fizeram por receio de uma reprovação na comissão de heteroidentificação, mostrando
que entender o funcionamento e critérios dessas comissões é essencial para uma maior e
mais segura procura pela política pública.
Ademais, concluímos que as candidatas selecionadas para a mentoria, dado o
recorte econômico, apresentaram diversas dificuldades ao longo do caminho, chegando
muitas delas a desistirem de continuar estudando para o concurso. O que reforça que a
interseccionalidade21 dessas mulheres negras é fator essencial a ser considerado na
busca de sua aprovação.
A interseccionalidade, portanto, propõe e permite entender os distintos sistemas
de poder e como se dá a interação entre eles (BORGES, 2015), mas também viabiliza
que sejam pensadas ferramentas e estratégias para combater essas desigualdades,
alcançando, especialmente, aquelas que não seriam atingidas por ações voltadas a um
sujeito universal, ainda que feminino. Apenas compreendendo que a política pública de
cotas para pessoas negras implementada pelo MPT precisa enfrentar as barreiras
próprias resultantes das interseccionalidades desses candidatos é que haverá maior
efetividade da medida.
A proposta interseccional é a de enxergar a realidade por meio de conceitos
múltiplos de exclusão e não mais isoladamente, como propõe uma perspectiva exclusiva
de gênero. A interseccionalidade denuncia que há uma relação entre sexismo e outras
formas de opressão. O foco é a compreensão do impacto de múltiplas diferenças e
desigualdades. Reconhece-se, assim, que existe uma interação entre as categorias de
gênero, raça e classe e que não levar isto em consideração acaba por perpetuar
21
1
1
exclusões (BORGES, 2015). Para Carla Akotirene, “as mulheres negras são repetidas
vezes atingidas pelo cruzamento e sobreposição de gênero, raça e classe” (2019, p. 19),
a interssecionalidade permite, portanto, enxergar essa indissociabilidade entre racismo,
capitalismo e cisheteropatriarcado. Supera, portanto, a criação de sujeitos universais e
essencializados, lembrando que “nem toda mulher é branca, nem todo negro é homem”
(2019, p. 45).
A própria Resolução n° 170, de 13 de junho de 2017 do Conselho Nacional do
Ministério Público, ao instituir as cotas raciais de 20% nos concursos para membros e
membras, aponta a possibilidade de adoção de outras ações afirmativas, em seu artigo
3°:
1
4
essas mulheres defendam seus pontos de vista em contraposição com o
discurso dominante. Ou seja, o processo de subjetivação de mulheres negras
permite que elas possam exercer sua cidadania de forma plena para além dos
lugares seguros, afirmando sua agencia, autonomia e independência. Quando
podemos controlar a nossa própria narrativa, nomear nossas experiências e
participar da vida pública em nossos próprios termos, somos definitivamente
mulheres empoderadas (WINNIE BUENO, 2020, p.142).
CONCLUSÃO
https://www.hypeness.com.br/2020/06/a-primeira-advogada-do-brasil-foi-uma-mulher-negra-a-historia-
de-esperanca-garcia/
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velado motivo para utilização do artefato de tortura: o silenciamento. Grada questiona,
por que a boca do sujeito negro tem que ser amarrada? Por que temos que ficar caladas?
O que nós mulheres negras teríamos a dizer sobre a atuação na justiça brasileira se nos
fosse possível falar de dentro? O que mudaria no sistema de justiça se as vozes das
pessoas negras fossem ouvidas e as suas percepções e experiências se materializassem
em atuações e decisões que impactassem positivamente as comunidades
subalternizadas? E se o sistema de Justiça representasse efetivamente essas vozes
silenciadas (SANTOS, 2021)?
Pensar um Ministério Público democrático e plural, importa assegurar a
diversidade de gêneros, consideradas as mulheres negras, maior grupo populacional,
que concentram em si as opressões de gênero, classe e raça. Embora sejam a maioria da
população brasileira, não estão representadas nos espaços de poder e isso diz muito
sobre os processos de silenciamento, sobre as práticas institucionais, sobre as imagens
de controle e sobre a urgência em transformar esta realidade.
Mulheres pretas, mulheres periféricas, mulheres indígenas, mulheres
transgêneros precisam integrar as instituições que lutam por direitos, que defendem
direitos, que interpretam e aplicam a legislação para se efetivar a tão sonhada
democracia substancial que tanto desejamos.
REFERÊNCIAS
1
7
AKOTIRENE, Karla. Interseccionalidade. São Paulo: Sueli Carneiro; Polém,
2019, 152p.
-
ANABUKI, Luísa; SANTOS, Cecília. Tecendo Diversidade: análise da
implementação de ações afirmativas para negros e negras voltadas para um Ministério
Público do Trabalho mais colorido e plural”. 2022. Disponível em:
https://www.ipea.gov.br/portal/images/stories/PDFs/boletim_analise_politico/
211220_bapi_31_art_8.pdf. Acesso em: 10 de abr. 2022.
1
8
BUENO, Winnie. Imagens de Controle, um conceito do pensamento de
Patricia Hill Collins. Porto Alegre: Editora Zouk., 1 edição. 2020.
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