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Wania Sant’Anna
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Wania Sant’Anna
Historiadora, pesquisadora de relações raciais e de gênero,
consultora da Petrobras para as políticas de diversidade
e equidade de gênero entre 2006 e 2016. Diretora da
Associação do Centro de Estudos Afro-Asiáticos e
consultora de empresas para políticas e programas de
diversidade e inclusão.
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Resumo
O presente artigo traça a evolução histórica das ações afirmativas no Brasil
tanto no âmbito do debate público quanto do desenvolvimento institucional
com o intuito de introduzir a questão atual das ações afirmativas étnico-
-raciais no mercado de trabalho. Para tal, reconstrói a história de discrimina-
ção sofrida pelos afrodescendentes no país desde o momento imediatamente
posterior à abolição da escravidão, quando foram praticamente banidos do
mercado de trabalho assalariado como resultado de políticas públicas que
incentivavam a importação de mão de obra europeia para o Brasil. Em se-
guida, examina o surgimento das demandas por igualdade de oportunidades
advindas do movimento negro no contexto da redemocratização e seu desen-
volvimento até os dias de hoje, quando políticas de ação afirmativa étnico-
-racial estão sendo implantadas no mercado de trabalho, em consequência
da aprovação da Lei no 12.990/2014. Por fim, examina o caso concreto da
aplicação de reserva de vagas na contratação de funcionários da Petrobras,
revelando os meandros de aplicação dessa política de inclusão, inclusive no
que toca à questão da identificação racial.
Abstract
After several decades of struggle by the black social movement for rights, the state
recognized the existence of racial discrimination in the country, as well as the
affirmative action as a policy to correct the inequalities caused by such discrimination.
In this scenario, the passage of Law 12.711 on affirmative action, in 2012,
established a set of substantive changes in the access to public higher education
in Brazil. Understanding the social context that led to the adoption of this law
requires an analysis of the Brazilian process of democratization This paper focuses
on three aspects: 1) the change in state policy related to the inclusion of blacks,
native population, and poor people in higher education; 2) the impact of these actions
in the academic debate; 3) the role of the black social movement in this process.
Methodologically, the work comprehend the legislation that changed the normative
field in relation to ethnic and racial issues after the 1988 Constitution and official
data on the expansion of the participation of blacks, Indians, and poor people in public
higher education..
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Mercado de trabalho e políticas de ação afirmativa
Introdução
Nos últimos quinze anos, a sociedade brasileira viveu intenso debate so-
bre políticas de ação afirmativas destinadas à população afro-brasileira.
Nessa trajetória foi possível apreciar os detalhes e o histórico de discri-
minações e desigualdades que permeiam as relações raciais no país. É
inegável constatar os avanços obtidos nesse terreno – como, por exem-
plo, a definição, aprovação e implementação de políticas públicas e le-
gislações especialmente destinadas a corrigir o perfil de desigualdade
e, dessa forma, contribuir para a superação das situações de discrimi-
nação racial. Entre as medidas adotadas destaca-se, por exemplo, a Lei
no 12.990/2014, que destina 20% das vagas nos concursos públicos da
administração pública direta e indireta aos afrodescendentes. Essa legis-
lação sinaliza à sociedade brasileira o papel do Estado como indutor de
medidas efetivas para assegurar a representação dos afrodescendentes
na condição de gestores públicos.
Sob todos os pontos de vista, o Decreto no 528 (BRASIL, 1890) será exem-
plo absoluto do interesse do Estado em promover a imigração europeia,
mediante “conveniente concessão de favores” que animassem a “inicia-
No período que vai da Abolição da Escravatura até nos anos 1920, a ação
do Estado no Brasil foi decisiva tanto em face do desenvolvimento geral
da história econômica do país quanto, mais especificamente, para a his-
tória da conformação de seu mercado de trabalho. [...] o mercado de tra-
balho no Brasil, no sentido clássico do termo, que pressupõe a existência
do trabalho livre, foi “criado” por intermédio da ação estatal pela abolição
da escravidão, e foi moldado por uma política de imigração, favorecida
por taxações e subvenções, em detrimento da mão de obra nacional. Este
mercado de trabalho nasceu, assim, dentro de um ambiente de exclusão
para com uma parte significativa da força de trabalho. Criando assim o
trabalho livre, o Estado criou também as condições para que se consoli-
dasse a existência de um excedente estrutural de trabalhadores, aqueles
que serão o germe do que se chama hoje “setor informal” (THEODORO,
2005, p. 104-105).8
Augusto, Ferro e Roselino (2015) também estão entre aqueles que utili-
zaram métodos de mensuração mais sofisticados para suas análises.12 A
partir da base de dados da PNAD de 2002 e 2012, os autores utilizaram o
método Oaxaca-Blinder para mensurar o diferencial de salário médio au-
ferido por trabalhadores do sexo masculino brancos e afrodescendentes.
O resultado surpreende por sua magnitude. Em 2002, 39% da diferença
entre os salários de brancos e o salário de pretos e pardos era explicada
pelas características dos trabalhadores – ou seja, deixaria de existir se
pretos e pardos tivessem as características dos brancos – e aproximada-
mente 44% da diferença salarial era residual ou não explicada, e portanto
pode ser atribuída ao efeito de discriminação entre os grupos. Já em 2012,
a parte explicada correspondia a 30% da diferença salarial e a parte não
explicada a cerca de 53% (AUGUSTO, FERRO, ROSELINO, 2015, p. 19).
[...] ainda que a população negra tenha tido acesso ampliado aos fa-
tores que são associados às melhores oportunidades de inserção no
mercado de trabalho, [verifica-se] a persistência de um componente da
QUADRO 1: Raça/cor dos servidores que ingressaram no serviço público federal por
grupo/cargo, 2007 a 2012
Fonte: SIAPE, dados relativos a agosto de 2012, citados por Silva e Silva (2014).
•O
s processos de seleção pública de ingresso, comumente, con-
templam cargos de formação de nível médio e superior. O que
na prática significa dizer que afro-brasileiros com formação de
nível médio e técnico ampliam as suas chances de inserção no
mercado de trabalho formal.
•O
s processos de seleção pública têm caráter nacional e isso
contribui para que afro-brasileiros de distintas regiões do país
Vale mencionar, desde já, que esse procedimento adotado, após a homo-
logação do resultado do certame, garantiu tratamento isonômico para
todos os candidatos que participaram do processo de seleção. A definição
das listagens e sua aplicabilidade são descritas mais adiante.
Do ponto de vista prático, a Petrobras optou por formar uma única comis-
são, centralizada, composta de dez pessoas, e responsável por avaliar to-
dos os candidatos, a partir de fotografia e documento de autodeclaração
de cor/raça “preta” e “parda” emitida pelo candidato. Essa comissão foi
concebida respeitando características tais como diversidade de gênero,
região de origem, área de atuação na companhia, pertencimento étnico/
racial, entre outros critérios combinados. Aliás, também aqui, a compa-
nhia optou por acolher outra recomendação do ministro Lewandowski,
relembrando que ele menciona como válida a formação de comissão
de avaliação da autodeclaração desde que respeitado esse componente de
diversidade na sua composição.
No PSP 2014.2 foram oferecidas 663 vagas e, destas, 110 foram reservadas
para pessoas pretas ou pardas, conforme previsto na Lei no 12990/2014.
É importante ressaltar que todos os candidatos que optaram pelas co-
tas também contaram para a ampla concorrência. 14 candidatos cotistas
foram aprovados na ampla concorrência, saindo da reserva de vagas. No
total tivemos, portanto, 124 candidatos cotistas aprovados.
No PSP 2014.2 foram oferecidas 663 vagas e, destas, 110 foram reservadas
para pessoas pretas ou pardas, conforme previsto na Lei no 12990/2014. É
importante ressaltar que o fato de um candidato constar da listagem es-
pecífica de aprovados para atendimento das vagas reservadas para pes-
soas pretas ou pardas não implica que seu ingresso foi para atendimento
da cota, uma vez que tais candidatos também constam da relação de
ampla concorrência. A companhia, porém, expandiu o número de vagas
posteriormente à publicação do edital, o que resultou em um admissão
total de 124 candidatos pela reserva de vagas. Além desses, outros 93
candidatos constantes da relação de pessoas pretas ou pardas foram ad-
mitidos no processo devido a sua classificação na ampla concorrência,
ou seja, sua admissão não teve por objetivo o atendimento à cota.
Conclusão
Notas
4 Grafia atualizada.
6 Ver autores citados na nota 3 para uma perspectiva crítica em relação a esse
tema.
10 Buscando sanar essa questão, vale mencionar que o Aviso Circular Conjunto
n° 01, de 28 de dezembro de 2012, assinado pela Casa Civil, Secretaria de Políticas
de Promoção da Igualdade Racial e Ministério do Planejamento, torna o quesito
“cor ou raça” informação obrigatória dos registros administrativos, cadastros,
formulários e bases de dados do Governo Federal, inclusive aquelas que conte
nham informações pessoais de público externo. Essa deliberação auxiliaria no
monitoramento da Lei no 12.288/2012, que institui o Estatuto da Igualdade Racial.
19 Entre 2002 e 2012 ingressaram 731 novos diplomatas no Itamaraty, dos quais,
como mencionado, 19 participantes do Programa Bolsa-Prêmio de Vocação para
Diplomacia, representando 2,59% do total de ingresso.
27 Cabe mencionar como informação adicional que não houve, por parte da
companhia, nenhuma alteração na forma de convocação realizada para os
candidatos. Não foram criadas novas etapas que demandassem convocações
adicionais. As convocações foram realizadas, como de costume, por meio de
telegrama encaminhado pela unidade gestora de cadastro, sendo vedada a
comunicação por telefone e/ou e-mail. O uso dessas formas de comunicação
com o candidato é admitido apenas em casos excepcionais.
Referências
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