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PARTE I

Aspectos Gerais
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MICROCIRURGIA RECONSTRUTIVA

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2 CAPÍTULO 1
PRINCÍPIOS BÁSICOS E MODELOS EXPERIMENTAIS EM MICROCIRURGIA

CAPÍTULO 1
Princípios Básicos
e Modelos Experimentais
em Microcirurgia
José Carlos Marques de Faria
Marcus Castro Ferreira
Marcelo Sacramento Cunha

INTRODUÇÃO época, tinha sua aplicação geralmente reservada para casos


mais graves, nos quais os procedimentos ditos convencionais
A microcirurgia pode ser definida como um conjunto de não podiam ser aplicados. A reconstrução microcirúrgica era
procedimentos cirúrgicos aplicados na manipulação de pe- considerada o último recurso técnico. Na segunda fase, no
quenas estruturas que dependem do auxílio de lentes de au- final da década de 1970 e início da década de 1980, o conhe-
mento (lupas ou microscópio). Apesar de o microscópio cimento de novos territórios vasculares possibilitou o aumen-
óptico ter sido inventado em 1590 por Janssen, somente em to do número de tecidos compostos disponíveis para
1960 sua aplicação em anastomoses de vasos com diâmetro transplante. Os meios ópticos e o instrumental cirúrgico fo-
menor que 2 mm foi relatada por Jacobson e Suarez. A rea- ram aperfeiçoados e a técnica mostrou-se segura e eficaz,
lização de reimplantes de dedos e extremidades mostrou a tendo sua indicação ampliada na prática clínica. Na terceira
eficiência da técnica e forneceu estímulo para que a micro- fase, fim da década de 1980 e início da de 1990, vários au-
cirurgia continuasse a se desenvolver e expandir. Em 1972, tores indicaram a superioridade das reconstruções microcirúr-
Mclean e Buncke relataram um caso clínico de reconstrução gicas em relação a muitos procedimentos convencionais.
do couro cabeludo com omento, e o primeiro retalho cutâneo
A microcirurgia deixou não somente de ser considerada
microcirúrgico transplantado com sucesso foi descrito por
opção reservada aos casos mais complicados, mas a melhor
Daniel em 1973. Na América do Sul, a introdução da micro-
e primeira indicação, mesmo quando outros métodos podem
cirurgia vascular experimental ocorreu em 1971 no Labora-
ser utilizados. Em menos de 30 anos, a microcirurgia difun-
tório de Microcirurgia (LIM 04) da Faculdade de Medicina
diu-se e constituiu-se em recurso indispensável em inúmeras
da Universidade de São Paulo por Ferreira e o primeiro re-
situações clínicas, tendo aplicação em diferentes especialida-
implante microcirúrgico em humanos com sucesso foi um
des, como cirurgia geral, neurocirurgia, urologia, ginecologia,
reimplante de mão realizado pelo mesmo em 1972, introdu-
zindo a microcirurgia vascular na prática clínica brasileira. ortopedia, oftalmologia e otorrinolaringologia. Problemas
Experiência com este método de reconstrução foi relatada clínicos previamente tidos como insolúveis têm sido tratados
posteriormente por O’Brien, Harii, Serafin e Buncke. Gran- com sucesso através da aplicação desta técnica.
des segmentos de tecidos compostos de pele, músculo e osso
puderam então ser transferidos para locais distantes e ime-
diatamente revascularizados.
TREINAMENTO
Desde sua introdução até os dias atuais a microcirurgia A destreza e a precisão nos movimentos necessários à
passou por três fases distintas. A primeira, no fim da década microcirurgia devem ser adquiridos com treinamento experi-
de 1960 e meados da de 1970, quando surgiu como nova téc- mental progressivo. Dedicação, paciência e persistência são
nica, oferecendo novas possibilidades de reconstrução. Nessa importantes atributos.
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CAPÍTULO 1 3
MICROCIRURGIA RECONSTRUTIVA

O correto posicionamento do cirurgião é sentado confor- MATERIAL CIRÚRGICO


tavelmente à altura da mesa, com apoio para as mãos, os an-
tebraços e os cotovelos, orientados perpendicularmente em O material necessário consiste de (Fig. 1.2):
relação à estrutura a ser manipulada. O antebraço deve pre- • microscópio cirúrgico ou lupa;
ferencialmente estar ao mesmo nível da sutura realizada. A
• pinça de relojoeiro no 4 e/ou 5;
cadeira deve ser do tipo ajustável. O tempo gasto com a ex-
posição do campo cirúrgico e posicionamento adequados • tesoura microcirúrgica;
é previsto e não perdido, pois facilita a realização e precisão • porta-agulhas microcirúrgicas;
do procedimento (Fig. 1.1).
• clipes vasculares (microclamps) simples e duplos;
• fios microcirúrgicos;
• pinças anguladas.

Fig. 1.2
Material microcirúrgico.
Fig. 1.1
Posicionamento adequado
do cirurgião, mesa cirúr-
gica e microscópio. O material cirúrgico é miniaturizado. Os porta-agulhas e
as tesouras são de mola, o que faz com que se consiga mo-
vimentos mais suaves.
MICROSCÓPIO Os clipes vasculares obstruem os vasos pela pressão de
uma mola. Além de diferentes tamanhos, possuem especi-
O microscópio cirúrgico escolhido deve ser específico ficidade para veias ou artérias conforme a pressão exer-
para o tipo de cirurgia a ser realizada. Podem ser utilizadas cida. Alguns são montados sobre eixo ou quadro (duplo)
lupas cirúrgicas, que permitem aumento de 2,5 a seis vezes. que permite a aproximação dos cotos vasculares a serem
A utilização da lupa por longos períodos é cansativa, pois o anastomosados.
foco é conseguido com movimentação da cabeça por aproxi- O fio de eleição é o náilon monofilamentar. Os mais fre-
mação e afastamento do campo. A lupa é útil no preparo do qüentemente utilizados são os 8-0, 9-0, 10-0 e 11-0. Para as
campo cirúrgico e dissecção dos vasos ou nervos. O micros- microanastomoses vasculares, o náilon 10-0 é o fio de esco-
cópio é basicamente composto por duas partes: as lentes lha. O náilon 11-0 é usado para veias menores ou para sutura
objetivas que acomodam a distância focal e o sistema bi- de nervos.
nocular que amplia a imagem. Um terceiro sistema óptico A escolha da agulha é tão importante quanto a escolha do
deve ser inserido entre a objetiva e as oculares para tornar fio. Agulhas de 50 a 70 micras são reservadas para vasos
a ampliação variável. A visão binocular torna possível a muito pequenos, mas as agulhas de 100 a 130 micras são uti-
noção de profundidade. lizadas na maioria dos procedimentos microvasculares. As
O microscópio ideal deve alcançar aumento de até 40 agulhas espatuladas causam trauma da parede dos vasos e as
vezes. Aumentos pequenos (até dez vezes) são utilizados atraumáticas são preferidas. A curvatura da agulha pode ser
na identificação de estruturas de preparo do campo opera- de 3/8 ou de 1/2 de circunferência; a escolha depende da pre-
tório. Aumentos moderados (dez a 20 vezes) são utilizados ferência do cirurgião.
na realização das suturas vasculares. Grandes aumentos Pequenos fragmentos quadrangulares de plástico ou látex
(até 30 ou 40 vezes) são utilizados na manipulação de va- (segmentos de luva cirúrgica) são utilizados como material
sos particularmente pequenos como os digitais nos reim- auxiliar. Estes segmentos são colocados sob as estruturas
plantes de dedos. manipuladas a fim de criar contraste, melhor exposição e
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PRINCÍPIOS BÁSICOS E MODELOS EXPERIMENTAIS EM MICROCIRURGIA

evitar aderência do fio aos tecidos adjacentes durante mani-


pulação com pinças e porta-agulhas. Solução de heparina
(1000 U em 100 mL de solução salina 0,9%), lidocaína a 1%
sem adrenalina e bisturi elétrico bipolar são indispensáveis à
realização do procedimento cirúrgico.

Fig. 1.5
TÉCNICA CIRÚRGICA Apresentação da borda
por contrapressão.
O treinamento deve começar com a realização de sutu-
ras em borracha (Fig. 1.3) esticada sobre placa de Petri, uti-
lizando-se fios cada vez mais finos. Os pontos devem ser
dados em diversas direções, simulando diferentes dificulda- Depois de retirada, a agulha deve ser reposicionada na
des técnicas. pinça para transpassar a outra borda. Para facilitar essa ma-
nobra, contrapressão é realizada com a outra pinça aberta na
superfície externa da borda da estrutura. Em seguida, o fio
deve ser tracionado pela agulha na direção do ponto dado, até
que se observe seu final, de modo a manter segmento de 2 a
3 mm de extensão de fio que permita a confecção do nó. Essa
Fig. 1.3 extremidade é apreendida pela pinça, para evitar que movi-
Placa de Petri para treina- mentos bruscos tirem o ponto. A outra pinça volta ao campo,
mento em borracha. para segurar o fio a uma distância de 1 a 1,5 cm da estrutu-
ra, preparando-se para realizar o nó. Esta pinça forma uma
alça ao redor da outra pinça (simples ou dupla) que segura-
rá a outra extremidade do fio, tracionando e realizando o nó.
As pinças devem ser manipuladas da mesma forma que Outros dois nós simples são dados. É importante salientar
uma caneta, com o indicador e o polegar, tendo o dedo mé- que a tensão deve ser somente a necessária para a aproxima-
dio como base. (Fig. 1.4) ção das extremidades. A tensão excessiva leva à lesão das
estruturas, comprometendo a permeabilidade da anastomose,
enquanto a tensão insuficiente produz anastomose ineficiente.
Com o término dos três nós, corta-se o fio a 2 ou 3 mm
de distância. Este pode servir de reparo para apresentação da
estrutura. A distância entre os pontos é a necessária para que
se obtenha uma boa coaptação das bordas da estrutura.

Fig. 1.4
ANIMAIS DE EXPERIMENTAÇÃO
Posicionamento ade-
quado do material mi- O rato é o animal mais conveniente para o treinamento e
crocirúrgico.
ensino de técnicas microcirúrgicas, pois o tamanho de seus
vasos é equivalente ao dos vasos digitais humanos, é de fá-
cil manejo e cuidados em biotério.
Apenas os dedos devem ser mobilizados para movimen- Modelos microcirúrgicos em ratos têm sido descritos des-
tar as pinças. A agulha deve ser apreendida pela pinça a 2/3 de o início da década de 1960. Desde então o desenvolvi-
da ponta da mesma. Este conjunto deve ser posicionado per- mento de modelos para cirurgias humanas, microcirurgia e
pendicularmente à superfície a ser suturada. A distância da reimplantes tem sido comum. O rato tem sido utilizado am-
borda é o dobro da espessura da estrutura a ser manipulada. plamente nas últimas três décadas para o desenvolvimento de
Para maior segurança, com a pinça da outra mão, a borda é modelos de reimplantes de membros e estudo do fenômeno
apresentada por contrapressão.(Fig. 1.5) de não reperfusão.
Após a penetração da agulha, esta deve ser retirada com Os vasos cervicais ou femorais podem ser abordados. A
movimentos delicados, respeitando sua curvatura. Assim não anestesia é realizada com injeção de pentobarbital sódico
ocorrerão lacerações da estrutura e a agulha não será danifi- (35 a 50 mg/kg) intraperitonial, no ponto médio entre a cica-
cada. Deve-se ter cuidado para não tracionar demasiadamente triz umbilical e a crista ilíaca com especial cuidado em não
a agulha e romper o fio. puncionar a bexiga, o que evitaria a anestesia. A manutenção
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pode ser feita com injeções adicionais de pentobarbital


(10 mg/kg) ou por inalação de éter sulfúrico.

MICROCIRURGIA VASCULAR
Após a dissecção e exposição do feixe vascular, realiza-
se incisão na bainha perivascular. Este tecido é tracionado e,
com microtesoura, a bainha é liberada de qualquer aderên- Fig. 1.6
cia que limite seu manuseio. A tesoura deve ser posiciona-
Efeito Carrel.
da de tal modo que as lâminas fiquem paralelas aos vasos, a
fim de evitar lesões à parede do vaso.
Alguns cuidados a serem observados: do delicadamente, permitindo completar a sutura da parede
• não trabalhar com o campo mal exposto ou mal iluminado; posterior. O clipe distal é retirado primeiramente e, a seguir,
o proximal. Caso ocorra pequeno sangramento através da
• procurar constantemente o foco; sutura, o vaso deve ser comprimido com gazes umedecidas
• não cortar o que não se vê ou o que não se tem certeza; em solução salina durante alguns minutos, mas, se houve al-
• não deixar acumular sangue no campo, pois isto provo- guma falha na continuidade da sutura, o sangramento não
cessa após a compressão. Sendo assim, o clipe duplo é reco-
ca espasmo vascular.
locado para identificação do local em que existe a falha e
Recomenda-se aplicação de lidocaína a 1% ou marcaína aplicação de quantos pontos forem necessários.
a 0,25%, para evitar espasmo do vaso. Um segmento de 2 a
O procedimento para a veia é semelhante ao da artéria,
3 cm de comprimento de artéria carótida é dissecado e são
porém apresenta algumas peculiaridades, como paredes mais
aplicados os clipes microvasculares. A artéria deve ser pinça- finas, tendência ao colabamento e à friabilidade. O fio ideal
da e manipulada pela adventícia. Com microtesoura, corta-se é o náilon 10-0 ou 11-0. A excisão da adventícia da veia não
a artéria na sua porção média. Anteparo de borracha é colo- deve ser muito extensa, restringindo-se apenas ao excesso
cado sob o vaso para permitir o contraste entre as estruturas que se projeta sobre o lúmen. Aconselha-se dar os dois pri-
e separar os tecidos adjacentes. A boca do vaso pode ser di- meiros pontos submersos em solução fisiológica 0,9% ou
latada, introduzindo-se a pinça de relojoeiro na sua luz e Ringer simples a fim de promover a abertura do lúmen.
abrindo-a delicadamente. A adventícia em excesso deve ser
ressecada de modo a obter segmento de 2 a 3 mm de vaso
livre da adventícia. Com a seringa e agulha romba, injeta-se, TESTES DE PATÊNCIA
em ambos os cotos, solução de heparina diluída para limpar
eventuais coágulos e evitar lesões no endotélio, expondo te- A pulsação distal pode ser vista ou sentida, porém o vaso
cido trombogênico. pode estar trombosado e a pulsação distal pode estar presente
graças à transmissão da onda de pressão.
O segundo ponto será feito a uma distância de 120º do pri-
meiro e com isso obtém-se o efeito Carrel ou biangulação simé-
trica. Com essa manobra, a parede posterior não adere à parede TESTE DE ELEVAÇÃO
anterior e facilita a aplicação dos outros pontos (Fig. 1.6).
Em um ponto distal à anastomose, coloca-se um instru-
Os pontos são dados a uma distância da borda do vaso de mento curvo sob o vaso, elevando-o até ocluir o fluxo de
duas a três vezes a espessura da parede. A agulha deve ser sangre. Se o vaso estiver pérvio após a retirada da pressão,
introduzida perpendicularmente à superfície do vaso. Os pon- o fluxo sanguíneo poderá ser evidenciado.
tos aplicados a 0 e 120° podem ser usados como reparo.
Deve ser observada a tensão da sutura, pois caso seja exces-
siva pode ser aliviada por aproximação dos clipes, deslizan- TESTE DE ESVAZIAMENTO E ENCHIMENTO
do-os sobre o mesmo eixo que os mantém.
O teste consiste no esvaziamento de segmento do vaso
Geralmente, para vasos de 1 mm de diâmetro, são aplica- (artéria ou veia) entre duas pinças microcirúrgicas com aber-
dos dois a três nós entre os reparos. Uma maneira prática tura da pinça que determina o fluxo (pinça proximal para a
para obtenção da sutura adequada é a aplicação dos pontos a artéria ou pinça distal para a veia). O enchimento do vaso
meio caminho dos dois pontos anteriores. Após a sutura da determina um teste positivo e a ausência do enchimento de-
parede anterior, o clipe duplo, como um conjunto, é inverti- termina um teste negativo (Fig. 1.7A e 1.7B).
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PRINCÍPIOS BÁSICOS E MODELOS EXPERIMENTAIS EM MICROCIRURGIA

ça para realização do procedimento. Fujikawa e O’Brien de-


monstraram que enxertos de veia realizados pela técnica con-
vencional permaneciam patentes se interpostos entre artérias
ou veias. A técnica convencional foi usada para anastomose
de enxertos microvasculares por Lauritzen em 1978. Este
autor introduziu uma técnica para tornar os reparos mais fá-
Fig. 1.7A ceis e rápidos. A telescopagem, experimentalmente, apresenta
Esvaziamento de um altos índices de patência. Estenose no local da anastomose
segmento de veia entre tem sido relatada como uma das desvantagens da técnica.
pinças. Hiperplasia da íntima que pode contribuir para estenose tar-
dia da anastomose parece ser autolimitante. Saitoh e col.,
comparando experimentalmente as duas técnicas, não encon-
traram diferenças significativas com relação aos achados his-
tológicos, índices de patência e estenose. A telescopagem tem
sido utilizada por nós particularmente na realização dos re-
implantes que freqüentemente necessitam de enxertos de veia
Fig. 1.7B para defeitos venosos ou arteriais.
Abertura da pinça dis-
tal e enchimento do
segmento de veia.
RETALHO CUTÂNEO LIVRE IN SITU NO RATO
(Teste positivo).
A região abordada será o abdome, que é nutrido pelos
vasos epigástricos (ramos dos vasos femorais) (Fig. 1.8).

ENXERTO DE VEIA EM ARTÉRIA


É importante ressaltar que o enxerto venoso deve ter
diâmetro compatível com a artéria receptora e ser manipula-
do delicadamente, evitando torções e sendo invertido para
substituir a artéria a fim de diminuir a tensão nesta. O enxer-
to é posicionado e procede-se à anastomose.
Fig. 1.8
Vasos femorais e seus ra-
ANASTOMOSE ARTERIAL TÉRMINO-LATERAL mos dissecados.

A anastomose término-lateral é utilizada com freqüência


em microcirurgia, particularmente na reconstrução dos mem-
bros superiores ou inferiores. Apresenta a vantagem de não O retalho é demarcado em forma de elipse, 7 cm de com-
interromper o fluxo distal do vaso receptor. A artéria é disse- primento por 5 cm de largura. O ponto mais inferior do re-
cada cuidadosamente e são aplicados os clipes vasculares. talho deve coincidir com o ponto de emergência dos vasos
Procede-se à arteriotomia conforme o diâmetro do enxerto da epigástricos e pode ultrapassar a linha mediana em 1 cm. Em
veia. Inicialmente suturam-se os ângulos dos dois vasos seguida, os vasos epigástricos são dissecados e identificados.
(180º) com náilon 10-0, de modo a repará-los. Em seguida, É feita a ligadura dos vasos femorais proximalmente à emer-
a sutura é completada com pontos simples e radiais, geral- gência dos vasos epigástricos. Procede-se à anastomose a
mente quatro a cinco pontos de cada lado, com cuidado para este nível. Uma variação desse procedimento pode ser reali-
não transfixar a outra parede do vaso. zada ao nível dos vasos epigástricos. O retalho é levantado
junto ao músculo, realizando-se hemostasia cuidadosa nas
bordas. O pedículo é banhado em solução de heparina. Para
TELESCOPAGEM facilitar a anastomose, o retalho levantado é fixado ao leito
por alguns pontos. Recomenda-se usar objetiva de 150 mm
O uso de enxertos de veia pode ser necessário devido à e agulha de 70 micra. A dilatação dos vasos é feita introdu-
ausência de vasos receptores em boas condições próximos ao zindo-se apenas um dos ramos da pinça. Após o término da
defeito a ser tratado, permitindo alongar o pedículo vascular anastomose, instila-se lidocaína ao redor do vaso e aguar-
dos retalhos microcirúrgicos e possibilitando anastomosá-los dam-se 10 a 20 minutos para a retirada das pinças. O retalho
em vasos de melhor qualidade e que ofereçam mais seguran- deve ser solto do campo e sua coloração deve ser observada:
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CAPÍTULO 1 7
MICROCIRURGIA RECONSTRUTIVA

• róseo com palidez à pressão digital significa boa de má qualidade dos vasos que podem independentemente
perfusão; predispor a falência do retalho. Muitos autores afirmam ten-
• cianótico com edema significativo indica trombose tar evitar o uso de enxertos de veia por meio de planejamento
venosa; adequado e escolha de retalho com pedículo vascular longo.
Outros advogam o uso de enxertos de veia em reoperações e
• pálido indica trombose arterial. acham mais seguro usar enxertos de veia do que vasos de má
O retalho livre também pode ser realizado experimental- qualidade. Seleção inadequada dos vasos receptores consti-
mente na orelha do coelho, retalho fibular e transferência de tui a mais importante causa de perda de retalhos.
músculo livre em cão. O tabagismo tem sido sugerido como fator de risco para
Como os retalhos livres tornaram-se rotineiros na prática pacientes submetidos a transplantes de tecidos. Estudos ex-
clínica, as perdas têm sido raras. Nos anos 1980, a literatu- perimentais têm indicado que o fumo tem efeito negativo na
ra concentrou-se na descrição de novos retalhos e aspectos sobrevivência de retalhos pediculados, cicatrização das feri-
de transferência de tecidos, como, por exemplo, a técnica de das e sobrevivência de retalhos livres.
anastomose. A introdução de retalhos como o retalho do mús- A irradiação prejudica a qualidade dos tecidos e vasos e
culo grande dorsal e o retalho antebraquial ajudou a diminuir tem sido implicada na predisposição à perda de retalhos. Esse
os índices de insucesso. A disponibilidade de outras áreas efeito, porém, é controverso.
doadoras com vasos de maior calibre permitiu a realização de
anastomoses com o auxílio de lupas de aumento. Deve-se Vários estudos têm indicado que pacientes idosos apre-
considerar que a construção de anastomoses microvasculares sentam alto risco de morbidade e mortalidade operatória.
funcionais é apenas um dos fatores no sucesso dos reimplan- Bonawitz e col. relataram aumento de quase três vezes no ín-
tes e transplantes de tecidos compostos. Vários outros fato- dice de perda em um grupo de idosos (> 60 anos) em relação
res podem interferir nos resultados do procedimento e a um grupo mais jovem. Apesar disso, concluíram que a ida-
somente anos após experiência cirúrgica esses detalhes po- de não deve ser contra-indicação para cirurgia de retalhos li-
dem tornar-se conhecidos e eficientemente controlados. vres. Outros estudos apóiam esta conclusão. Kroll e col.
estudaram 845 casos de retalhos livres nos quais a idade não
O foco da pesquisa tem sido desviado dos aspectos téc- influenciou na sobrevida dos retalhos.
nicos para tópicos como o estudo de agentes vasoativos a
antitrombóticos, no local da anastomose. Os índices de reexploração de retalhos livres variam de
6% a 25%. A complicação trombótica mais comum depende
O uso de anticoagulantes na transferência de retalhos li- da série estudada. Trombose da anastomose arterial é o acha-
vres é controverso. Uma pesquisa de 73 centros de microci- do mais comum em algumas séries. A trombose venosa tam-
rurgia vascular, por Davies em 1979, relatou o uso de 21 bém tem sido relatada como a mais comum das complicações
diferentes agentes antitrombóticos, mas vários centros não os trombóticas em outras séries. Benacquista e col., em 1996,
usavam. Davies encontrou diferença estatística na freqüência publicaram um estudo de 413 retalhos para reconstrução de
de trombose das anastomoses entre os centros que usavam membro inferior com uma taxa de perda de 10%. A causa
algum desses agentes e os que não usavam, mas não no ín- mais comum de perda foi a trombose venosa em 34% das
dice de sucesso final. De fato, enquanto os estudos têm de- perdas.
monstrado de maneira conclusiva que os agentes aumentam
os índices de patência das anastomoses microvasculares, vá- A falha técnica na sutura e a lesão trombogênica do en-
rios têm falhado em mostrar qualquer relação entre o uso de dotélio podem resultar em trombose primária no local da
anticoagulantes e a perda do retalho. Anticoagulantes têm anastomose. Angulação ou compressão dos vasos por hema-
sido implicados na ocorrência de hematoma e sangramen- toma ou edema podem levar à diminuição do fluxo sanguí-
to. Este achado foi confirmado por Kroll e col. que estuda- neo e trombose secundária. Trombose primária parcial pode
ram respectivamente 517 retalhos e descobriram que o uso enviar microembolos ao retalho e causar trombose secundá-
de baixas doses de heparina não tinha correlação com he- ria. A incidência de trombose primária e secundária diminui
matoma e sangramento, enquanto altas doses de heparina com o aumento da experiência do cirurgião.
aumentavam a sua incidência. Dextran também tem sido A reexploração e a revisão das anastomoses devem ser
apresentado como benéfico na manutenção da patência da indicadas em casos de suspeita de oclusão arterial ou veno-
anastomose, porém, da mesma forma, pode incorrer em sa. Os tecidos têm diferentes resistências à isquemia arteri-
hematomas e sangramentos. Baixas doses de aspirina são al ou venosa. Os retalhos musculares são mais susceptíveis
outra conduta utilizada. à isquemia e suportam tempos curtos sem suprimento arterial
Vários estudos têm encontrado correlação entre interpo- (6 horas), os cutâneos suportam mais tempo e devem ser ex-
sição de enxertos de veia e perda de retalhos livres. É pos- plorados em 8 a 12 horas. A oclusão venosa é mais deletéria
sível que anastomoses adicionais aumentem condições aos tecidos que a oclusão arterial e deve ser corrigida em
particularmente difíceis, como traumas graves ou situações menos tempo. O reconhecimento precoce de tais problemas
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8 CAPÍTULO 1
PRINCÍPIOS BÁSICOS E MODELOS EXPERIMENTAIS EM MICROCIRURGIA

é crucial, mas ainda não há métodos de controle infalíveis. Em algumas situações clínicas a aproximação dos cotos
Temperatura, cor, enchimento capilar e sangramento são as- nervosos não pode ser feita primariamente sem tensão. Nes-
pectos clínicos bastante úteis. Medidas transcutâneas de oxi- ses casos, a interposição de segmentos de enxertos de nervo
gênio, pH, oximetria de pulso, doppler e laser doppler podem se faz necessária. Como o padrão de arranjo fascicular ao
ser utilizados para monitorização do retalho. longo dos nervos é muito variável, a utilização apenas de
sutura epineural está justificada. Estes enxertos são obtidos
São descritas taxas de 8% a 34% de reexploração ou revi- a partir de nervos sensitivos menos importantes.
são do pedículo vascular em retalhos microcirúrgicos e a taxa de
salvamento é geralmente alta após esta revisão (69% a 100%).
Nos casos em que a revisão da anastomose não é suficiente, a BIBLIOGRAFIA CONSULTADA
trombectomia com cateter de Fogarty 12 ou lise do coágulo com
agentes trombolíticos têm sido recomendadas. Sanguessugas po- 1. Benacquista T, Kasabian AK, Karp N. The fate of lower extremities
dem ser usadas nos casos de retorno venoso pobre. with failed free flaps. Plast Reconst Surg 1996; 98:834.
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Muitos fatores influenciam o sucesso da sutura neural: experimental em ratos [tese]. São Paulo: Faculdade de Medicina da
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• colocação do menor número de pontos possível — se- 7. Harashima T. Analysis of 200 free flaps. Br J Plast Surg 1988; 41:3.
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sutura deve ser mínima. Se os cotos nervosos retraem signi- 12. Kroll SS, Miller MJ, Recee GP, Baldwin BJ, Robb GL, Bengtson BP,
ficativamente, então eles devem ser aproximados. Isso pode Phillips MD, Kim D, Schusterman MA. Anticoagulants and hematomas
ser feito com a colocação de pontos temporários de fios de in free flap surgery. Plast Reconstr Surg 1995; 96:643-7.
maior calibre, aproximando os cotos seccionados. O fio uti- 13. Kroll SS, Schusterman MA, Reece GP, Miller MJ, Evans GR, Robb
GL, Baldwin BJ. Choice of flap and incidence of free flap success.
lizado é 10-0 e o ponto deve ser aplicado a 1 mm da borda Plast Reconstr Surg 1996; 98:459-63.
do nervo. A seqüência de aplicação dos pontos pode ser di- 14. Lauritzen C. A new and easier way to anastomose microvessels. An experi-
ametralmente oposta ou seqüencial. Vasos da vasa nervorum mental study in rats. Scand J Plast Reconstr Surg 1978; 12:291-4.
podem orientar o alinhamento correto da coaptação nervosa. 15. Lidman D, Daniel RK. Evaluation of clinical microvascular anastomo-
ses — reasons for failure. Ann Plast Surg 1981; 6:215.
Ao término da neurorrafia, os cotos fasciculares que se pro- 16. Lineaweaver W, Buncke, HJ. Complications of free flap transfers. Hand
jetam para fora através da linha de sutura são seccionados. Clin 1986; 2:347.
17. Luritzen C, Fogdestani L, Hamilton R. The sleeve anastomosis in clini-
Outro tipo de sutura é a sutura perineural ou interfascicu- cal microsurgery. Scand J Plast Reconstr Surg 1979; 13:477-9.
lar. Utilizando magnificação máxima do microscópio o epineu- 18. May JW, Gallico GG, Jupiter J et al. Free latissimus dorsi muscle flap
ro é dissecado pela distância de aproximadamente 1 cm. Esta with skin graft for treatment of traumatic chronic bony wounds. Plast
manobra permite a separação do nervo em vários fascículos. A Reconstr Surg 1984; 73:641.
19. McLean DH, Buncke HJJr. Autotransplant of omentum to a large scalp
dissecção pode ser facilitada por injeção de solução salina no defect with microsurgical revascularization. Plast Reconstr Surg 1972;
limite interno do epineuro. Os fascículos são então suturados 49:268-74.
e geralmente um único ponto é necessário. Este tipo de sutu- 20. Saitoh S, Kitagawa E, Nakatsuchi Y. Comparison of the telescoping
ra tem sido pouco utilizado na prática clínica atualmente. anastomotic technique with the end-to-end technique utilizing vein
grafts for venous defects. Short and long-term results. Microsurgery
A técnica mais utilizada na neurorrafia primária consiste 1995; 16:631-8.
na combinação das duas supracitadas, ou seja, epiperineural, 21. Tsai TM, Bennett D, Pederson W. complications and vascular salvage
of free-tissue transfers to the extremities. Plast Reconstr Surg 1988;
a qual permite alinhamento mais preciso dos fascículos ner- 82:1022-6.
vosos e manutenção de sutura mais segura devido à maior 22. Weinzweig N, Gonzales M. Free tissue failure is not an all or none phe-
resistência que o epineuro oferece. nomenon. Plast Reconstr Surg 1995; 96:648-60.

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CAPÍTULO 1 9
MICROCIRURGIA RECONSTRUTIVA

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10 CAPÍTULO 1

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