Você está na página 1de 34

A Última Diáspora

Sumário

VALTERNE MONS .......................................................................................... 1


NEVE .............................................................................................................. 29
CAPÍTULO I
VALTERNE MONS

• • •

[... 90%... 100%... Interface configurada.] ... omo não a posso


expor, ainda mais sob as circunstâncias dos recentes eventos, decidi
gravar essa linha de pensamento, filtrada por relevância, numa interface
Marca de
independente de colmeia com meus implantes de aumento neural. Está parágrafo

gravando agora... ok. Não posso contar senão por estar completamente
sozinha nisso, então ter um registro dos eventos o mais fiel quanto
possível será um recurso importante em algum momento. A começar
por exatamente isto: aparentemente, expressar determinados
pensamentos para o mundo é algo desagradável o suficiente para que
comecem a dar sinais ambíguos como se tentassem me tornar
...para o mundo. Eu sei que é algo...
irrelevante e inexpressiva. O tipo de coisa que, apenas no geral, se
consiga sentir as consequências práticas. No que eu confiasse na minha
intuição o suficiente para segui-la a dizer que a malícia está no
subterfúgio tão delicado que a rotina mascara, estaria paranoica?
Talvez seja importante fazer entender que não se trata do tipo
de pensamento da vontade infantil de um arruaceiro em provocar o caos
para mero entretenimento egoico, mas, talvez, a essa altura isso já seja
óbvio. Sinto-me numa prisão onde, por medo, me sonegassem algum
minúsculo detalhe que faria toda a diferença entre o que sou agora e o
que inevitavelmente me tornaria e não posso evitar me questionar. “Por
que?” E seja lá para quem esse registro um dia possa se dirigir, talvez
se surpreenda com o contraste entre minha posição nesta sociedade e
meu modo de pensar a partir desse ponto inicial. Nesse caso, não estará
sozinho e faço lembrar que não nascemos o que nos tornamos: os meus
questionamentos também se dirigem a mim mesma. E talvez ainda me
torturem tanto quanto, ou até mais, o fariam a qualquer outro para quem
se revelassem nas minhas condições, mas seriam incapazes de lidar
com a sua realidade.
[linha suprimida da gravação: assunto impertinente1]
Quando chegamos aqui há algumas semanas, o Almirante
Anthony MacEdge logo foi nomeado governador da recém proclamada
República de Jápeto pela OEA. Ele nomeou pessoalmente em seguida,
segundo suas atribuições legais definidas pela OEA, os novos
deputados legislativos para reorganizar o governo local em ruínas após
a guerra2. Nossas ordens eram ocupar todo o território da cidade
adjacente ao terminal-base do elevador espacial que tivesse
fornecimento adequado de energia elétrica mais algumas zonas escuras
consideradas estratégicas. Mas nossas forças de infantaria e fuzileiras
encontraram resistência pesada de origem ainda desconhecida nas
zonas escuras e não puderam cumprir todos os objetivos. Enquanto não
se conhecia a natureza das forças opositoras que anunciavam sua

1
NOTA TEMPORÁRIA: Lembrança de infância de Aimée onde ela definia compaixão
(e justiça?) como um traço central de sua personalidade. Semelhante a minha própria
lembrança de infância ao ver pessoas revirando lixo na rua por sobrevivência.
2
NOTA TEMPORÁRIA: Mentira. Havia um governo organizado localmente
(superestrutura de uma estrutura socializada) que foi ilegalizado pelo governo militar da
OEA.
2
ameaça, foram nomeadas “Locais X” pela inteligência. Aplicamos a lei
e a ordem onde podíamos e, então, como parte das fileiras de
inteligência da Marinha Extraorbital fui nomeada para o novo cargo de
Delegada Militar criado para contribuir na reorganização da corporação
policial local, atuar como uma interface entre as duas corporações,
acelerar a logística de operações conjuntas e com atribuições de
autoridade sobre a 3ª Unidade de Perícia Investigativa de Polícia
Planetária na Avenida Dependêncio Celeste.
27 de Novembro de 4.019. Quando desci por um dos
elevadores espaciais da cidade do Espaçoporto de Jápeto pela primeira
vez, atravessando a cúpula de isolamento atmosférico, a sensação foi de
ter atravessado a fronteira para o Submundo. O terminal-base fica bem
no centro mais movimentado da cidade do espaçoporto no topo da
cordilheira de Valterne Mons que se estende por quase todo o equador.
A janela da cabine ficava orientada para o oeste. Aos lados, tanto para o
sul quanto para o norte, as planícies negras, frígidas e mórbidas de
Cassini Regio estendiam-se até o horizonte curvado. A curvatura da lua
era visível mesmo poucos quilômetros acima do solo o que, por si só,
era capaz de provocar vertigem e ânsia de vômito nos desavisados que
não comedissem seus movimentos.
A visão do relevo sob a cidade era tão clara quanto se eu
pudesse ver por através do terreno artificial do topo dos prédios.
Enquanto o nivelamento estreito do solo no topo da cordilheira
viabilizava todas as estruturas no entorno da avenida central, o resto da
cidade caía com a encosta da montanha. Crateras de impacto de
asteroides tornavam-se visíveis pelo topo das edificações e a luz
amarelada que emitiam acumulava-se discretamente no centro focal de
cada uma delas. O aspecto geral fez me sentir adentrando uma fortaleza
onde sirenas escravizavam, ao seu bel prazer, marinheiros seduzidos
3
pelo seu canto e executavam, com eles, alguma forma de ritual de
sacrifício. Como um enorme zigurate negro enquanto a avenida no
topo, com todas aquelas luzes dos veículos indo de um lado para o
outro, lembrava mais o rio Estige e Aqueronte.
Bem a minha frente no céu negro, Saturno, a três milhões de
quilômetros dali, alinhava-se quase perfeitamente à avenida na direção
oeste. Devido a órbita trancada da lua, era sempre visível naquela
região do céu. O lado noturno dominava na ocasião, então o tênue
crepúsculo visível no horizonte, atravessado pelos anéis, estava
orientado para cima. Sua presença exaltava o aspecto fantasmagórico
do lugar. Saturno, devido sua translação ser a mais demorada entre os
planetas visíveis da Terra a olho nu, era frequentemente associado,
pelos antigos, com o próprio tempo. Como um guardião que,
inexoravelmente inesgotável, espreitava a todos os momentos.

Há alguns dias atrás, depois de me estabelecer num pequeno


apartamento na cidade e completar minha transferência da frota para a
brigada de ocupação do Espaçoporto, fui chamada pelo gabinete do
Deputado Uhly onde recebi uma proposta de trabalho. Na mesma
ocasião, a perspectiva já tinha me dado certas náuseas. O contrato era
de segurança privada, serviço que, apesar de muitos dos meus colegas
oferecerem, nunca eu havia oferecido. Tratava-se, na verdade, de
procurar evidências ou informações sobre tráfico de influência,
financiamento e fornecimento de armas e outros recursos entre o
gabinete do Deputado [NOME 1] e algum agente público ainda
desconhecido para uma operação de natureza também indeterminada
envolvendo a velha estação de recepção a laser de micro-ondas da

4
Esfera Dyson3 que foi abandonada logo antes da expansão da Zona
Escura perto d’A Fronteira. O assessor de gabinete que me atendeu na
entrevista foi bastante enfático para dizer que meu perfil de trabalho
tornava-me um contato e um recurso confiável em potencial para os
seus interesses dentro da Marinha Extraorbital, mas eu não sabia se
realmente gostaria de saber o porquê. Preferi não perguntar. Quanto
mais sobre como sabiam qual era meu perfil de trabalho.
À época, o CIC4 do encouraçado ASEN5 Atlantic, à órbita de
Jápeto, foi convertido em centro de operações da Agência de
Inteligência da Marinha Extraorbital, mas a interface remota com os
implantes do oficialato ainda não estava configurada. Precisei subir o
elevador espacial novamente à órbita para consultar o banco de dados
sobre o Deputado Uhly, mas muitos documentos estavam acima da
minha certificação de segurança. Tudo o que consegui encontrar foi
que, após pressão do governo da República de Jápeto (não mencionava
um agente específico do governo sequer), deixou seu cargo anterior.
Passou a ajudar a organizar e fundar a [ORGANIZAÇÃO 16] e foi
nomeado pelo Almirante Anthony MacEdge para o cargo que ocupa
agora reconhecido por ele como um político moderado, mas não
encontrei qualquer menção que especificasse o cargo anterior:
certificação de segurança. Quanto à organização, reivindicava

3
Uma Esfera Dyson é uma estrutura artifical de escala de milhões de quilômetros de
extenção construída com o propósito de extrair energia produzida por uma estrela.
Consiste de milhões de pequenos satélites equipados com painéis coletores de energia
solar que vão, aos poucos, cobrindo a estrela até, potencialmente, cobri-la inteira. Se
cobríssemos inteiro o Sol, porém, a vida no Sistema Solar seria impossível, então não é o
caso. Muito embora coletar mero 1% de toda a energia produzida pelo Sol significaria um
salto civilizatório de proporções atualmente inimagináveis.
4
Sigla para Centro de Informações de Combate. Trata-se de uma sala em um navio de
guerra que funciona como centro tático e fornece informações processadas para comando
e controle do campo de batalha próximo ou área de operações.
5
Sigla para American States Extraorbital Navy.
6
NOTA TEMPORÁRIA: Partido político mais favorável aos especiados, porém, com
posições conciliatórias com o governo de ocupação militar da República de Jápeto.
5
representar o interesse geral de Jápeto apesar da menção a uma ala
radical no seu interior. Nomes ou referências específicas de membros
dessa ala, de novo, estavam acima da minha certificação de segurança e
restou me perguntar como esperam que realizemos nosso trabalho
nessas condições.
Uma corrente de adrenalina dominadora, porém estranhamente
leve, assolou minha consciência naquele breve momento. Estaria
paranoica?...
Talvez eu devesse considerar isso um aviso de que, nessa área
de trabalho, se você ascende demais torna-se um alvo cada vez maior
para cada vez mais pessoas. Minhas ambições materiais são mais
modestas do que talvez possa parecer e quase todas estão atendidas,
então esse tipo de ascensão não é do meu interesse. Minha verdadeira
ambição, por outro lado, talvez seja estranha à maioria das pessoas, mas
sinto uma profunda necessidade de ser dona das consequências das
minhas próprias escolhas e ações e digo isso porque, como é de se
imaginar pelo que já expus, há muitas coisas que escapam minha real
capacidade de compreensão. Coisas que, cedo ou tarde, pretendo
dominar; sozinha.

Hoje mais cedo, a 3ª UPI-PP recebeu uma convocação da


Marinha Extraorbital através de mim para fornecer todas as forças de
polícia ostensiva disponíveis para uma operação conjunta na Zona
Escura da cidade. O objetivo de tal operação não foi especificado.
Apenas o local e a expectativa de alguma forma de resistência. Apesar
dessa unidade ter poucos destacamentos ostensivos, o que considerei
uma verdadeira desproporção, fui à delegacia pessoalmente
supervisionar a operação. Já na rua encontrei todo um destacamento de
veículos blindados, drones de combate e infantaria do Batalhão Voza
6
ao lado de camburões e patrulhas da PP a minha espera; as luzes
vermelhas e azuis dominavam todo o entorno da gigantesca avenida.
Confesso que não esperava o envolvimento do Batalhão Voza e fui ter
com o Coronel Couraça.
Os implantes de aumento e modificação corporal que ele
usava exalavam a insolência pela qual aquele batalhão era conhecido. O
uniforme preto à prova de balas portava o brasão amarelo do batalhão
nos ombros e parecia desenhado pelos melhores estilistas do Sistema
Solar, mas sua pele por debaixo foi desfigurada em outra coisa. A
superfície, ou melhor, a carne da maior parte de seu corpo estava
exposta e enrijecida como uma armadura em diferentes texturas e tons
escuros de vermelho e preto de forma que lembrasse um demônio.
Outras partes pareciam cavar fundo na carne como feridas necrosadas,
de tonalidades roxas, podres, expostas até os ossos e com pedaços de
carne despencando do corpo como um morto-vivo. Eu tinha ouvido
falar que ele aplicava o aumento para situações de combate, mas não
esperava uma visão tão medonha. Era difícil sequer manter o estômago
calmo.
— Boa noite, Coronel.
— Noite — seco; sem me referir pela patente...
— Coronel, posso perguntar a natureza da presença de seu
batalhão nos arredores desta unidade de polícia?
— Fomos contratados para uma operação conjunta com a PP
desta unidade e a Marinha Extraorbital.
— Eu não fui informada do seu envolvimento.
— Quanta eficiência dos burocratas, não é mesmo? — devo
ter sido inocente em esperar uma resposta respeitosa de uma figura
como essa — Pois então eu sugiro a você procurar confirmação com
seus superiores ao invés de continuar desperdiçando o meu tempo.
7
— Certo. — em menos de trinta segundos aquele homem já
tinha acabado com a minha paciência.
Afastei-me rapidamente do insolente permanecendo no
perímetro da delegacia e contatei o Capitão [NOME 2] no Ministério da
Defesa pela INTERCOM7.
— Boa noite, Capitão [NOME 2].
— Tenente Beaulac. — suspirei aliviada ao ouvir o respeito
em sua voz.
— Capitão, confirma operação conjunta da 3ª UPI-PP com o
Batalhão Voza e a Marinha?
— Confirmado, Tenente. Algum problema?
— Senhor, qual a natureza da ameaça com que estamos
lidando?
— Desconhecido.
— O senhor não acha imprudente que a polícia participe de tal
operação? Mesmo que seja a ostensiva? Podem não estar equipados
para lidar com o que vem por aí.
— Eu não dou as ordens, Tenente. Meus superiores antecipam
possíveis demandas legais e por armas de menor letalidade nessa
operação e eu não estou em posição de questionar sua linha. — “como
poderiam sequer saber o que antecipar?”, pensei.
— Lidar com desconhecidos desse gênero não é atribuição dos
militares?
— Defendi essa posição aqui no Ministério. Por isso também
estamos indo, Tenente, mas não posso mudar o rumo das coisas a essa
altura. Também não posso divulgar informação quanto a

7
Sistema de comunicação remota, ponta-a-ponta, audiovisual, interna e segura da
Marinha Extraorbital baseado nos implantes ópticos de realidade aumentada e de
recepção de sinais de comunicação.
8
fundamentação dessa decisão. As coisas estão em pleno caos há dias,
como você deve imaginar. Ainda estamos nos estabelecendo no
governo, não há lei que oriente os processos, a burocracia está
completamente desestruturada, esse prédio do Ministério está
igualmente caótico e há demandas para todos os lados. Nas condições
atuais do governo, surpreendente tem sido o nível de ordem que tem se
assistido persistir nessa cidade. Eu sei que parece uma jogada
desesperada, mas, nesse atual estado de coisas, talvez seja isso mesmo
que estejamos no final das contas. Ordens são ordens. Sinto muito. A
Marinha já está a caminho da 3ª UPI e espera ver tudo pronto para a
partida quando chegar. Use-a para assumir posições defensivas em
torno da polícia se achar necessário. Não se atrase. Cada um com sua
cruz.
— Certo. — tentei ser educada, mas estava incrédula e
perplexa — Obrigada, Capitão. — ele acenou afirmativo com a cabeça
numa expressão de encorajamento e contentamento; desliguei.
Confesso que o uso de palavras nesse diálogo me golpeou
profundamente. Que signifiquem coisas diferentes para cada um me é
indiferente, mas que um esteja mais alerta para a totalidade de seus
significados na situação do que o outro não...
Há mais a isso do que mero segredo de Estado que me impeça
de avaliar o risco para minha gente. Minha memória revisitou e
reconsultou as palavras do Capitão quatro mil vezes na fração de
segundo entre a saudação final e a minha tomada de decisão. Não acho
que consigo simplesmente lavar minhas mãos da responsabilidade de
manter essas pessoas a salvo; elas estão sob meu comando! Nessa
fração de segundo, minha mente mergulhou no abismo da solidão e do
isolamento da experiência humana e, lá, senti que há quem,
conscientemente, não se interesse em desbravar suas profundezas
9
mórbidas mais do que por mera inconveniência. Para quem tem a
delicadeza de ouvir as palavras na relação com o mundo, as aparentes
contradições de discurso se transfiguram no que, na verdade, são
condições de vida. De alguém. Por mais que esteja ausente. Essa é uma
camada mais profunda de significação que tantos, por medo do que
possa revelar, se recusam a ler; outros, intencionalmente, se recusam a
ensinar ler; outros, ainda, a deixar revelar sequer que sabem ler. Ainda
assim, a verdade é que consequências incalculáveis virão e nós
estamos, agora, na ponta da lança.
Apressei o passo para entrar na delegacia, encontrei o
delegado e acenei para que se articulasse com o Batalhão Voza quando
a Inspetora Contreras entrou na sala.
— Aimée, — eu não ligo para o fato dela me dirigir pelo
primeiro nome, mas confesso que acho surpreendente; não sei se é
coragem ou imprudência8; de fato, poucos oficiais da Marinha seriam
tão permissivos, por assim dizer — o que é tudo isso?
— Operação conjunta. Vamos adentrar à Zona Escura.
— Oh. Parece ruim.
— É ruim.
— Sim. Vou me preparar. — virando-se rapidamente e já
caminhando na direção de seu escritório.
— Você não vai.
— O que? Como assim? — voltando.
— Você é do corpo de perícia, Helena. Apenas polícia
ostensiva hoje. Além de que eu não estarei na patrulha. Estarei num
veículo da Marinha.
— Uau. É realmente ruim.

8
NOTA TEMPORÁRIA: É uma relativa ingenuidade negociada com o mundo.
10
— Sim, bastante. — meus implantes começavam a compensar
por uma dor de cabeça que, sem eles, estaria sentindo agora.
— Dia ruim? — ela me perguntou.
— Nunca é bom quando o Voza está por perto.
— Temos acordo nisso. Você parece estressada.
— Nada com que eu não possa lidar.
— “O pranto dos fortes só cai em solidão.”
— O quê?
— Nada. — balançando a cabeça com um sorriso modesto no
rosto — Apenas um velho ditado japetano.
— Você está tentando me confortar? — estranhei.
— Oh, pode ser interpretado assim. — ri.
— Agradeço.
Às vezes eu gostaria de poder ler a mente dessa mulher porque
não é a primeira vez que ela tem uma atitude inesperada assim. Mas,
que eu pudesse dizer, ao contrário de mim, ela estava calma e confiante
e, talvez, forte de verdade naquela sala fosse apenas ela.
Do lado de fora, drones de mídia começavam a se acumular ao
redor do Batalhão Voza enquanto seus soldados gabavam-se entre si
das somas com as quais seriam pagos e eu simplesmente não sabia o
que pensar daquela situação.

Partimos.

11 de Dezembro de 4.019. Nossas esteiras pesadas rastejavam


rapidamente em direção oeste na larga faixa de concreto sem tráfego da
Avenida Dependêncio Celeste nessa madrugada soando como uma
gigantesca percussão de guerra a anunciar o enfim destino do gênero
humano. As bandeiras azuis da Organização de Estados Americanos,

11
brancas da República de Jápeto e pretas do Batalhão Voza tremulavam
síncronas e rapidamente logo acima dos blindados velozes ainda que
não houvesse uma leve brisa sequer na atmosfera artificial. Junto aos
drones de mídia que nos acompanhavam e às luzes e sons das sirenes e
motores dos camburões da Polícia Planetária, a sensação era de que, de
repente, Valterne Mons tinha aberto os portões para o inferno.
Passamos pelo terminal-base do elevador espacial central
debaixo de seus labirínticos viadutos de acesso rodoviário e ferroviário.
Entrando no ritmo da percussão das esteiras, um enorme trem
carregado com gelo d’água extraído do hemisfério oposto de Jápeto9,
pronto para exportação e refino em alguma estação de espaço profundo,
adentrava a estrutura do terminal a nossa esquerda, ao sul. No comando
de um dos blindados, imaginei aquele enorme comboio passando em
alta velocidade por baixo das vias de acesso de uma das estruturas mais
complexas já criadas pela humanidade, construída no topo de uma
cordilheira de montanhas da lua de outro planeta e tive arrepios. Era a
mais absoluta materialização do poder humano em todas as suas
expressões.
E, ainda assim, Saturno levitava gigante no céu diretamente a
nossa frente logo acima da avenida, sereno, nos lembrando do quanto
tudo aquilo ainda era pequeno e insignificante. O mundo, esse lugar tão
incomensuravelmente grande; nossas esteiras corriam, batiam contra o
concreto ao seu encontro, empurrando-o para trás com força e
estrondo... Os anéis orientados de cima para baixo quase se
encontravam com o solo dividido em faixas de tráfego enquanto o
aumento gradativo dos sinais de abandono e degradação da cidade eram
o indicativo que estávamos nos aproximando da Zona Escura. Minha

9
NOTA TEMPORÁRIA: E de Tétis. Essa informação pode ser importante mais tarde.
12
ansiedade crescia na mesma proporção. Também na mesma proporção,
o comboio desacelerava e, enquanto meus homens dentro do blindado
verificavam suas armas uma última vez, fiz o mesmo e programei meus
implantes para a aplicação de doses de ansiolíticos e antipsicóticos
durante a ação.
Zona Escura, anunciaram na INTERCOM e, enquanto eu
olhava para fora, a cidade mergulhava na escuridão avassaladora e
monstruosa sob a luz tênue e imaculada da Via Láctea quando
quebraram o silêncio dentro do blindado.
— Vocês sabem o que dizem por aí? Essas são as mesmas
coisas que tomaram Mercúrio de assalto quando perdemos contato há
quarenta anos. Alienígenas10 de merda. — um dos soldados.
— Não invente histórias. Ninguém sabe o que aconteceu em
Mercúrio. Essa colônia está em quarentena. — outro respondeu.
— E, mesmo assim, eles continuam construindo a Esfera...
— E?
— Não podem ser humanos. Se fossem, não ignorariam nossas
comunicações. — fez uma pausa — Eles querem drenar o Sol — virou
o rosto dramaticamente para o outro — até apagar.
— Do que você está falando, seu paranoico?
— Olhe a nossa volta. Essas pessoas parecem normais para
você? — apontando para as minúsculas janelas do blindado — Os
ossos e os músculos fracos, as peles esverdeadas, com frequência
passam de dois metros de altura, esqueléticos, quase sem cabelo e
nenhum implante... Quanto mais fundo na Zona Escura, pior fica. Nós
ocupamos metade do território do Espaçoporto, mais da metade do qual
está mergulhado nessa escuridão. Nunca sequer tocamos a outra metade

10
NOTA TEMPORÁRIA: Racismo / xenofobia inconsciente contra os especiados.
13
da cidade enquanto lá se permanece inteira na escuridão. O que você
acha que existe lá dentro, meu caro? — o outro parecia distraído.
— Silêncio. — ordenei — Concentrem-se na tarefa atual ao
invés de ladainhas sem sentido. — e focaram a atenção.
Não os culpava. Eu mesma não estava na melhor disposição
para aquela situação. Olhei para fora do veículo e o comboio havia
desacelerado mais, entrado em modo silencioso e desligado o som das
sirenes. As luzes, porém, continuavam iluminando nossos arredores e
pude ver as pessoas vagando pelas ruínas da cidade. Estranhamente,
observei a tendência daquelas pessoas que o soldado mencionou
seguirem, como nós, o caminho para dentro da Zona Escura com mais
frequência. Pessoas mais terráqueas, em menor número, vinham no
caminho oposto com mais frequência.
Não sei, mas eu não acredito em coincidências. Cada uma
daquelas pessoas certamente tinha uma história particular. Alguma
coisa estava convergindo.
Meus olhos se fixaram em uma das muitas famílias ao redor
de uma das pilhas de lixo no entorno da avenida recolhendo seja lá o
que pudesse ser útil, embora eu não pudesse ver o quê. Confesso que,
apesar da nenhuma novidade ali representada, me entristeci com aquela
cena e não pude evitar me perguntar. “O que está acontecendo aqui?”
De alguma forma, encontrava conforto daquilo no questionamento.
Talvez porque a reflexão me forçasse a um estado meditativo11, não sei.
Mas nossos arredores lentamente se esvaziavam conforme nos
aproximávamos de nosso destino e meus pensamentos se voltaram
novamente para o comboio. “Foi uma ideia estúpida trazer a polícia. O
que tem na cabeça de quem tomou essa decisão?” E fiquei presa nessa

11
Talvez colocar o sentimento em movimento negue a banalidade da situação, pelo
menos para mim mesma.
14
linha de pensamento, em silêncio e hiperfoco, a visão focada no infinito
dentro daquele espaço restrito, por algum tempo12.
Nossos arredores tornavam-se cada vez mais escuros quando a
PP desligou suas luzes e, então, pude ver a tênue luz branca das estrelas
ganhar uma tonalidade mórbida de azul quando era refletida pelas
ruínas metálicas. Um dos soldados comentou a história do nome de
Ventre de Ferro dado àquele lugar perto d’A Fronteira para intimidar as
forças de ocupação venusianas antes da nossa; que havia ouvido falar
que combatentes venusianos mortos em batalha contra as forças de
resistência locais tinham os implantes removidos e traficados.
Não que eu dê ouvidos a boatos, mas a partir daí não era
necessária muita imaginação das consequências aberrantes: implantes
cibernéticos, subcutâneos ou não, são fabricados sob medida para cada
usuário de acordo com suas especificidades biológicas e cognitivo-
psicológicas. Assim, eles podem, simultaneamente, não ser
considerados corpos invasores pelo sistema imunológico, serem
proporcionais às dimensões do corpo onde são alojados, compensar as
adversidades ambientais do espaço sideral e operar junto com a sua
química própria e os mecanismos conscientes e inconscientes da mente.
Implantes cibernéticos sendo usados dessa maneira clandestina
é uma visão aterrorizante para dizer no mínimo, mas outra razão para o
nome talvez seja justamente a alusão a tortura física e mental a que
potenciais compradores tenham se submetido. Renascimento pela
tortura e redenção é uma ideia sacralizante13, mas facilmente
corrompida em validação para a própria tortura. O resultado físico de

12
O que estou fazendo?...
13
NOTA TEMPORÁRIA: Uma das temáticas da história é justamente que tal
sacralização depende da legitimidade da luta a que pressupõe tal tortura. Tortura
autoinfligida, via terceiros que seja, não é legítima e configura, na verdade, suborno à
divindade.
15
tal aberração, no entanto, é uma visão a qual nunca fui exposta e
certamente não a antecipava de bom tom.
Explosão. Senti a onda de impacto de dentro do blindado
empurrando tudo a volta com violência. O comboio parou.
— Sem alvos nas proximidades. — alguém na INTERCOM;
— Três blindados destruídos. — relataram; “porra”, murmurei baixo.
Muita confusão nos canais de comunicação...
— Oficiais para o canal de colmeia da força-tarefa. —
convocaram.
— Os oficiais sempre escondendo as informações. — um dos
soldados, mas eu estava sem paciência e sem tempo para aquilo. “Se
quiser fazer motim espera eu sair desse blindado de merda.”
“Sugestões, senhores”, o comandante da força-tarefa; espero
que ninguém tenha escutado.
“Avançamos, senhor”, a voz carrancuda, barítono, calma e
asmática do Coronel Couraça me denotava indiferença e até psicopatia.
“Nossa posição pode estar comprometida, mas aquelas munições não
são de fácil aquisição. Duvido que tenham mais. Se tivessem já teriam
destruído mais veículos a essa altura da situação.” E ele sabia como
adquiriam aquelas munições?
“Pode ter sido apenas um aviso”, um dos oficiais da Marinha
Extraorbital.
“Destruindo três blindados?”, Couraça respondeu.
“Um aviso ousado”, houve um silêncio cético no canal. “Eu
aconselho mudar a estratégia: nos separar, pegar caminhos diferentes e
surpreende-los no destino atuando em frontes diversos. Seguir o plano
de ação Cronos IV.”
“Sua cautela é reconhecida, Capitão. Vamos de Cronos IV.
Avançamos intimidando.”
16
“Senhor”, comecei, “as forças policiais claramente não estão
equipadas para lidar com esse tipo de ameaça. Veja bem o tipo de
explosão que provocou a destruição de três dos nossos blindados: mal
nós estamos preparados. Devíamos dispensar os camburões da PP.”
“Sua preocupação é bem-vinda, Tenente, mas a PP será
necessária nessa operação. Eles ficam. Felizmente os camburões não
foram atingidos.”
“Senhor, esse ‘aviso’ nos forçou a uma posição de improviso
numa conjuntura de confronto aberto e em completo desconhecimento
das dimensões, capacidades, posições ou mesmo da natureza das forças
opositoras. Eu...”
“A ordem está dada, Tenente Beaulac, e a discussão encerrada.
Cumpram suas ordens.” Calei-me. Minha frustração virou raiva e podia
sentir a expressão do meu rosto fechando como não sentia em tempos.
Com muita força contive, em mim, maiores reações como, por
exemplo, socar o interior daquele blindado. O impulso pelo grito que,
sei antecipadamente, ninguém escutaria durante o naufrágio de um
encouraçado em espaço profundo. O silêncio se fez às custas da minha
tortura e dirigi-me a minha tripulação:
— Plano de ação Cronos IV. Vamos dividir o comboio e
atacar em múltiplas frentes.
— Recuperando instruções, senhora.
A parte boa disso tudo é que Couraça ficou em outra divisão e
provavelmente não o veria de novo tão cedo.
“Tenente Beaulac”, o comandante chamando novamente num
canal privado de colmeia.
“Sim, senhor?”
“Há uma tarefa especial para você nessa operação.”
“Qual seria?” quanto mais eu ainda teria que suportar dessa
17
situação?
“Você não liderará a polícia na desocupação da usina de fusão.
Você tem experiência com reatores de fusão nuclear, certo?”
“Reatores para alimentação de cruzadores interplanetários,
senhor, não de cidades inteiras e também não como parte da equipe de
engenheiros.”
“É o suficiente. Ouça com atenção: você deve ir à sala de
controle do reator e determinar seu estado atual e recente. Encontre os
históricos de operação completos, crie cópias e traga-as para nós. Nós
precisamos dessa informação. Antecipamos que seus recursos na PP
provavelmente serão úteis para as tarefas futuras. Você terá escolta de
um cabo da Marinha a partir do perímetro da usina de onde prosseguirá
a pé. Ele já foi designado. O blindado agora sob seu comando atuará na
proteção do perímetro da usina. Não comprometa sua posição lá dentro.
Não se junte a polícia sob nenhuma circunstância. Considere esta uma
operação secreta.”
“Sim, senhor”, por que não fui informada com antecedência
pelo menos de que nosso alvo era a usina nuclear?
As divisões tomavam seus rumos uma por uma conforme se
preparavam e gradualmente desapareciam por entre os escombros da
cidade nas vias perpendiculares à Dependêncio Celeste. Cada uma com
uma equipe designada de oficiais enquanto a telemetria remota permitia
que acompanhássemos o avanço, a situação e as condições de cada uma
delas. Àquela altura não estávamos distantes, mas havia, a todo o
tempo, a sensação de algo estranho sobre esse lugar. Como se estivesse
em queda livre durante um pesadelo, como se as ruas tivessem perdido
a proporção entre si, como se aquelas cores não o pertencessem ou
como se as relações de causalidade estivessem rompidas. E um zunido
no ouvido me deixava surda.
18
Àquele ponto, como uma ilusão ou miragem, as estrelas no
céu pareciam mais brilhantes enquanto Saturno ocultava-se por entre as
ruínas dos edifícios das vias mais estreitas. O perímetro foi ajustado a
duas quadras de distância da usina onde desembarquei do blindado e
uma brisa congelada me provocou calafrios. Mas como podia ser? Não
existe tal coisa em ambientes isolados do espaço sideral. Será que estou
delirando?... Quando as divisões tomaram suas posições no entorno da
usina, a PP finalmente entrou seguida pelos drones da mídia. Na
distância, por entre as sombras e as ruínas da cidade, o som de tiros
gradualmente ficava mais frequente e intenso enquanto eu ponderava a
ideia de que éramos vigiados. Na realidade aumentada dos implantes
ópticos e auriculares, atualizações da telemetria da missão começavam
a pipocar sobre os locais de confronto. Balancei a cabeça discretamente
tentando manter a sanidade e o discernimento de realidade, mas
secretamente me sentia transportada para outro lugar.
O cabo se apresentou e meu blindado saiu direcionado para
outra área de controle. Pela telemetria tive acesso a uma das câmeras da
PP quando começaram a penetração no alvo. As vidraças do saguão de
entrada do prédio da usina estavam completamente destruídas e os
elevadores foram encontrados inoperantes; acessos administrativos e
escadas estavam bloqueadas. Ao que parece, éramos esperados e eu me
perguntava se alguém soubesse por quem. Os combates pelo perímetro
gradualmente ficavam mais intensos e mais próximos enquanto a PP
demolia os bloqueios inclusive em acessos para a sala de controle do
reator. Olhei para o caminho pelas ruas escuras e cheias de escombros
em antecipação e, de súbito, o tempo parou como se uma assombração
tivesse se apossado de mim. Num instante, como se a relatividade geral
estivesse em jogo, todo o tempo de uma vida passou bem diante de
mim, a espera pelo meu próximo batimento cardíaco ficou insuportável
19
enquanto meus implantes trabalhavam para manter os sintomas
controlados. Apenas a eles e às estrelas, para onde olhei na tentativa de
controlar a respiração, devo a manutenção suficiente do autocontrole e
da sanidade.
Dizem que fica mais fácil com o tempo, mas é mentira.
“Sua deixa, Tenente Beaulac. Estamos enviando agora para
você a planta da usina. Boa sorte”, o comandante da força-tarefa deu a
ordem assim que a PP detonou as bombas de demolição dos bloqueios.
A calma em sua voz era desproporcional a situação.
“Obrigada, senhor”, se até meus pensamentos estavam frágeis
não queria nem experimentar minha voz.
Eu e o cabo, rifles em riste, nos esgueiramos nas sombras pelo
caminho por 30 minutos até a via principal de acesso à usina, mas me
senti atravessando um deserto há 30 dias enquanto era assombrada por
urubus. Apesar de não ter ninguém a volta, os combates agora eram
ouvidos, não apenas no perímetro, mas, também, de dentro da usina.
Depois de subir a escadaria, em frente a entrada, antes do saguão, dois
enormes estandartes vermelhos, gastos, rasgados e sujos, ornados com
os anéis de Saturno em dourado estavam deixados no chão pela tropa.
Aquela cor, apesar de escurecida, contrastava fortemente com o azul
metálico, mórbido, de abandono e nebulado dominante no resto do
ambiente. Eu não sei, mas os senti como se estivessem vivos. Talvez
luzes e sombras que se lançavam sobre eles sugerissem que tremulavam
sem brisa, e, agora, eles me assombravam mais do que os urubus. Eu
não sabia a quem pertenciam e nunca tinha ouvido falar, na história, de
qualquer luta travada contra um inimigo completamente no escuro.
Olhei para o cabo e perguntei se ele sabia, mas, como
esperado, a resposta foi negativa.
No interior do saguão, enquanto consultava a planta do lugar,
20
os mesmos sinais de destruição, mas agora somados com os das
bombas nos acessos e escadas. Navegamos lentamente e em absoluto
silêncio por um labirinto de corredores, jardins internos e escadas
enquanto ouvíamos os combates na distância e, quando tubulações
começaram a dominar as paredes do lugar, eu sabia que estávamos nos
aproximando do reator e da sala de controle.
— Cabo, guarde essa posição. — diante da sala de controle —
Ninguém acessa essa sala enquanto estou lá dentro.
— Sim, senhora.
Painéis de controle lapidavam todas as paredes no seu interior
exceto onde uma janela panorâmica dava visão para a sala do reator,
uma instalação monstruosa com cento e cinquenta metros de diâmetro
coberta de tubulações e pela escuridão do lugar. Dirigi-me ao painel de
centralização de operações que poderia fornecer um panorama sobre a
condução da usina nos últimos meses e, numa primeira análise, pude
apenas constatar a condição operacional atual do reator na capacidade
mínima. Estava queimando deutério na menor taxa possível permitida
pela engenharia da instalação, a cem milhões de graus Celsius, o que já
é estranho por si só. Pessoalmente, eu esperava ver o reator operando
na capacidade máxima ou relativamente próximo a isso, mas, àquela
altura da situação, era impossível assertar o que estava acontecendo
naquele lugar e então comecei a extração dos históricos completos de
operação para armazenagem nos meus implantes.
Fui empurrada violentamente para trás. Os implantes de
inteligência aumentada dispararam. Perdi o equilíbrio, a força, caí.
Sangue começou a escorrer do ombro direito e a janela havia sido
perfurada. O cabo entrou correndo.
— Senhora? — me atendendo no chão.
— Na sala do reator. Vai!
21
— Sim, senhora — saindo por um dos acessos com o rifle em
posição.
O meu estava em coldre, mas, com o ombro baleado, sem
condição de usá-lo. Preparei a pistola. Os implantes trabalhavam para
conter o sangramento, anestesiar o local e expulsar o projétil. Me
levantava quando ouvi um barulho surdo na distância. Na realidade
aumentada, os sinais vitais do cabo desapareceram.
“Não acredito numa merda dessa.”
Posicionei-me no canto da sala, a pistola erguida e mirada para
o acesso por onde o cabo saiu. Os implantes e o uniforme trabalhavam
para me camuflar na escuridão enquanto eu alternava entre a visão
noturna e a de emissões térmicas sobrepostas contra a planta do lugar
na realidade aumentada para varrer meus arredores.
Nem um pio.
...
Nem um pio.
...

Por através de paredes reforçadas eu procurava pelo inimigo.


A assinatura térmica do reator de fusão a minha frente era bloqueada
pelos implantes devido a intensidade da emissão o que tornava tudo um
pouco mais difícil. Observar aquela pequena corona estelar bem a
minha frente, sem demora, me deu um forte pressentimento. Minhas
pupilas dilataram, senti a adrenalina correr pelo meu sangue e todos os
pelos do meu corpo se arrepiar em horror, e, então, achei melhor me
prevenir.
Impossibilitada de caminhar à direita, para onde o cabo tinha
ido, fazer uma varredura panorâmica da área ao redor do reator, talvez
fosse melhor contar com alguma sorte apenas de onde estava e ampliar
22
a visão perto às bordas do bloqueio. Eu estava literalmente olhando
para o núcleo da reação de fusão de uma pequena estrela a minha frente
a procura de qualquer traço de assinatura que pudesse não ser da estrela
enquanto meu ombro jorrava sangue. Ampliava e varria
minuciosamente; ajustando cuidadosamente a sensibilidade.
Uma forma estranha emergia quase imperceptível por trás da
aura térmica coronária daquela estrela à minha frente e ampliei a visão.
Pela forma que submergia e emergia novamente na aura, fui levada a
concluir que estava se movendo, ainda que, por razões desconhecidas,
permanecesse no mesmo lugar. Ajustar a sensibilidade da visão térmica
para melhorar a nitidez foi uma tentativa frustrada e pude apenas
continuar observando enquanto, seja lá o que fosse, continuava
periodicamente emergindo e submergindo como um pulso na imagem.
Mas era claramente orgânico.
Pelo tempo que uma alteração na situação estava tomando,
decidi aplicar ajustes mais finos e mais delicados; e uma escala métrica
porque já estava perdendo a noção de proporção e espaço olhando para
aquela imagem amarelada quase sem nuances. Dessa vez os ajustes
tiveram algum efeito, mas a coisa continuava indistinta. Até que se
moveu ligeiramente na minha direção e, então, parecia com as costas e
um braço realmente atrofiado, como depois de carregar muito peso, e a
escala métrica estava desproporcional. Dois metros de... mas o que14?...
se virou para me encarar.
O qu...
Enquanto estilhaços de vidro voaram na minha direção, atirei
no minúsculo drone de combate atrás da janela, mas, agora, mais uma
perfuração no abdome. O projétil alojado e o grito surdo de dor.

14
“Os... olhos(?)...”
23
“ANOMALIA”, a realidade aumentada alertava. Pude apenas
ignorar.
“Merda. Agora eu tenho que sair daqui.”
A coisa pulsante tinha desaparecido. Desliguei a visão térmica,
a escala métrica e, na dor excruciante, me levantei para seguir o
caminho de volta pelos corredores cheios de tubulações o mais rápido
que podia.
“PERSEGUIÇÃO”, a realidade aumentada alertou.
Procurei o máximo de cobertura possível nas tubulações, me
virei e abati mais um drone. Continuei o caminho.
E mais uma vez; três drones.
Parei exausta por uns instantes; a arma em posição. Olhei para
o fim do corredor e estava tão escuro que me provocou arrepios; meu
corpo gelou. Num pressentimento, liguei a visão térmica e lá estava
aquilo, com quase três metros de altura, braços e pernas
superatrofiados, sem traços distintivos que a visão térmica me
permitisse identificar, mas em pé bem a minha frente na distância e
acobertado pela escuridão do corredor. Senti que sabia que eu o
observava; na verdade, senti que quisesse mesmo que eu o observasse
porque permanecia lá enquanto cada respiração parecia centrar toda a
sua força e atenção num objetivo. E eu estava no caminho. Mal tendo
forças para sustentar a arma e puxar o gatilho, sentia minha consciência
lenta e firmemente parando de funcionar quando desapareceu
caminhando para a esquerda na direção do reator.
Esperei poder considerar a área livre e, me escorando pelas
paredes, continuei meu caminho como podia.
Não podia.

Mais dois drones...


24
Me virei...

Ergui a pistola...

Con... cen... tre... -se!...

...

“ANOMALIA.” “ANOMALIA.” “ANOMALIA15.”

15
Corríamos pela floresta já fazia mais de um oitavo de dia nos perguntando que tipo de
maldição era aquela enquanto a temperatura caía rapidamente e ainda estávamos a caminho.
Custava pouco para o bando se desesperar para chegar à segurança da aldeia; a angústia pela
orientação dos anciãos, mas o nevoeiro começava a se acumular e, então, olhei para cima uma
última vez antes que a vista para o céu fosse totalmente obscurecida. Tentei me convencer de que
realmente não estávamos alucinando. Todos estavam incrédulos e em choque porque, sem
explicações, o Sol perdia as suas forças e as coisas ao nosso redor começavam a congelar bem
diante dos nossos olhos. Corríamos e alguns deixavam cair a caça para correr mais depressa e
nosso líder repreendeu para que mantivéssemos o foco, a calma e a esperança. Não tinham o
escolhido para liderar a caça à toa. Sua atenção com o grupo era admirável.
O Sol ainda estava diretamente acima de nossas cabeças, mas estava escuro como
numa noite de lua cheia quando finalmente chegamos a aldeia. As pessoas tinham se reunido na
taverna em torno da fogueira tentando entender a situação e o ancião veio nos receber. Quem
carregava caça nas costas entregou para outros e nosso líder foi ter com o ancião.
— [ANCIÃO], o que está acontecendo? Meu bando estava caçando a um sexto de dia
daqui. Estávamos terminando quando aconteceu e fomos interrompidos. Você tem alguma
orientação?
— Escute, [CAÇADOR], o que estou prestes a te dizer precisa ficar entre nós porque
pânico generalizado agora só vai fazer a situação piorar. Temos que manter a moral elevada em
situações de crise pois senão não haverá nenhuma perspectiva de saída. Você está me
entendendo?
— Estou escutando.
— Ótimo, pois escute mesmo muito bem: o Sol está morrendo.
— O que? Como você sequer pode saber disso?
— É algo autoevidente, [CAÇADOR]. Vê como trepida mais pelo recebimento da
mensagem do que pela realidade da situação? O que acontece é que, na incapacidade de lidar com
25
ela, muitos entram em negação; outros, ainda que conscientes e dispostos, não estão preparados
para conduzir o conhecimento da verdade pelo interesse comum. Esse é o momento em que cada
um lida com seus próprios demônios e ilusões exatamente da maneira que precisa.
— Mas se isso é verdade não há o quê fazer. Não há nenhuma esperança.
— Sim, não há.
— Então porque a mantém?
— E destrui-la nos serviria de quê? Vê? A esperança nos mantém centrados no que é
realmente importante.
— Mas, [ANCIÃO], não estaríamos cometendo suicídio coletivo?
— E você, ao contrário, sobreviveria na selva sozinho? Se preferir tentar, vá em
frente. Não vou tentar impedi-lo. Entenda, [CAÇADOR], mesmo que não haja esperança agora, há
coisas nesse mundo que escapam mesmo a minha e a sua capacidades de compreensão somadas.
Ou mesmo a de todos nós aqui. Nós não entendemos a causa dessa situação e não sabemos para
onde ela vai. A esperança no acaso, depositada sobre o que é desconhecido, ainda que possa ser
circunstancialmente ilusória, é exatamente a que temos agora, é a que confia no melhor de cada
um de nós e no melhor desenvolvimento da situação. Se não estivermos preparados para esse
desfecho, perdemos para nossas próprias fraquezas antes mesmo de perdermos para a catástrofe.
À luz disso, a alternativa pelo conflito interno que contempla se torna um ciclo vicioso e é a
alternativa pela autodestruição em qualquer circunstância. Mesmo para os que aderirem a ela
posteriormente. Vê a necessidade de manter a esperança e se manter forte por ela? Se quisermos
sobreviver a qualquer circunstância que se abata sobre nós, precisamos aprender juntos a lidar
com as situações mais extremas.
— Entendo, [ANCIÃO].
— Ótimo. Porque você precisará mesmo entender e se manter leal a isso para estar
apto a confrontar a profunda realidade das duas alternativas em disputa aqui nas circunstâncias
mais extremas e desafiadoras se quiser conduzir a aldeia um dia. Uma visão panorâmica do
quadro geral das situações associada a objetividade de soluções quão mais simples quanto
possíveis é absolutamente imprescindível. Com o tempo vai entender que, na realidade, a nossa
única alternativa, como seres humanos largados à natureza caótica e hostil, sempre foi e sempre
será essa por mais técnicas e artifícios com que nos cerquemos; vai entender que a única coisa que
realmente temos, capaz de confrontar isso, sempre foi e sempre será uns aos outros.
O caçador, então, olhou, por sobre os ombros do ancião, para sua irmandade reunida
em volta da fogueira como quem contemplava o próprio destino e, agora, sabia que estava
contente.
26
Não tenho certeza do que aconteceu depois disso, mas tive a
sensação de ainda estar na usina ao raiar do dia, de ter meu corpo
sacolejado e ouvir as vozes indistintas de colegas meus. Não sabia
quanto tempo fiquei inconsciente até acordar no hospital na Praça do
Poder em Valterne Mons. A notícia era que tinham me tirado
inconsciente do saguão da usina numa maca e permanecido
desacordada e internada por mais três dias. Disseram que se não tivesse
sido pelos implantes cibernéticos provavelmente teria morrido, mas
acordei ainda vestida com a dólmã azul-petróleo rasgada e suja do
uniforme da Marinha Extraorbital e o colete kevlar; o sobretudo preto
estava no encosto da poltrona ao meu lado. Recebi alta e, no saguão do
hospital a caminho da saída, lentamente me dei conta, pelo barulho e
pela multidão caótica do lado de fora, por através das vidraças que
davam à rua, do protesto acampado a minha frente. Levantavam
bandeiras vermelhas ornadas com os anéis de Saturno na metade
esquerda e gritavam palavras de ordem como “contra a ocupação
militar da OEA”, “greve geral”, e “fim da PP”. Quando saí sem
alternativa, o impulso foi de procurar por onde pudesse esconder a
minha cara, mas talvez fosse melhor sustentar uma postura marrenta e
apenas sair dali o mais rápido possível.

27
CAPÍTULO II
NEVE

• • •

[AIMÉE BEAULAC ACORDA DESCONECTADA DA


COLMEIA (OU NO MINISTÉRIO DA DEFESA OU EM ALGUMA
ESPÉCIA DE LABORATÓRIO PENSADO PARA CRIAR
CONEXÕES ESTÁVEIS E SEGURAS COM A COLMEIA)
DESORIENTADA PELO FATO DE TER TESTEMUNHADO A
MORTE DA HOSPEDEIRA ORIGINAL DA MEMÓRIA QUE
ESTAVA ACESSANDO. DESDE ENTÃO PASSARAM-SE 8 ANOS,
SENDO 4.029, ANO DE ELEIÇÃO, E APESAR DE AIMÉE ESTAR
HÁ TANTO TEMPO EM JÁPETO QUANTO A HOSPEDEIRA,
TRANSFERIDA DA MESMA FORMA E PARA A MESMA
MISSÃO. AIMÉE COMEÇA A TER CRISES DE IDENTIDADE,
CONFUNDIR-SE COM A HOSPEDEIRA, ASSOCIADAS A
SURTOS E DISSOCIAÇÕES. QUANDO SE TRANQUILIZA, O
CORPO É EXPOSTO PARA AIMÉE COMO PROVA DE QUE NÃO
ERA ELA NAS MEMÓRIAS E SEGUE DESNORTEADA PARA
CASA ONDE SE ENCONTRA COM ISAAC E RECEBE A
LIGAÇÃO DO GOVERNO JAPETANO]

30

Você também pode gostar